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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

ZZéélliiaa GGaattttaaii 

AA CCaassaa ddoo 

RRiioo VVeerrmmeellhhoo 

66ªª.. EEddiiççããoo 

2000

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Obras da autora

Anarquistas graças a Deus  

Chão de meninos  Crônica de uma namorada  

Um chapéu para viagem  

Jardim de inverno 

Pipistrelo das mil cores  

O segredo da rua 18  

Senhora dona do baile  

Città di Roma  

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

 _____________________________________________________________________ 

 

Gattai, Zélia, 1916-

G235c A casa do Rio Vermelho /Zélia Gattai.  – 6ª. ed.

6ª. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2000.

ISBN 85-01-05539-5

I. Gattai, Zélia, 1916- - Biografia. 2. Amado,

 Jorge, 1912- .-Biografia. 3. Escritores brasileiros

- Casas e residências. I. Título.

CDD - 928.699

99-0556 CDU-92(GATTAI,Z.)

 _____________________________________________________________________ 

 

Copyright © 1999 by Zélia Gattai Amado

Ilustração de capa: Floriano Teixeira

Capa: Pedro Costa

Direitos exclusivos desta edição reservados pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua

Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ-20921-380-Tel.: 585-2000

Impresso no Brasil ISBN 85-01-05539-5

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052

Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

AAbbaass ddoo L L iivvrroo 

Após trinta anos de vida em comum, de amigação  —  gosto

demais da palavra amigação, usada para nomear o que o código defamília denomina concubinato, tenho aversão à palavra concubinato,

má e feia, ; filha do preconceito e da discriminação  — , Zélia requer, no

uso da lei, o direito de usar meu sobrenome, assinar-se Amado. Na

Bahia perde a causa, o juiz encagaçou-se, ignomínia; em São Paulo ela

a ganha, junta Amado a seu nome de solteira.

Não tarda, Nelson Carneiro vence a guerra do divórcio, eu e Zélianos casamos. Três anos depois, dona Zélia sai de sério, escreve e

publica um livro, Anarquistas, graças a Deus, em cujas páginas narra

sua infância de filha de imigrantes, italianos anarquistas e católicos, no

quadro de uma São Paulo afarista onde nasciam o capitalismo com os

Matarazzos e os Crespi e o movimento operário na sede das Classes

Laboriosas e de outros grêmios culturais e reivindicativos. O livro fez

sucesso, ainda o faz, repetem-se as edições, é traduzido, virou série detelevisão na transposição (magnífica) de Walter Avancini. Dona Zélia

tomou gosto, anda pelo quinto volume de memórias sem falar nas

histórias para crianças. Não querendo usar muletas na caminhada

literária, assinou seus livros com o nome de solteira, voltou a ser Zélia

Gattai, renome nacional, por pouco tempo lhe servi de arrimo.

Para mim, nem Amado nem Gattai, apenas Zélia, quando nãoZezinha.

JORGE AMADO

em Navegação de Cabotagem, 1992

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Para Jorge, que me 

ensinou a amar a Bahia  

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O CARA DE SAPO 

De repente dou-me conta de que a paixão de Jorge por sapos é

antiga, vem de longe. Somente agora chego a essa conclusão ao

recordar a compra do automóvel que nos levaria do Rio de Janeiro à

Bahia.

O anúncio do jornal dizia: Particular vende carro confortável,

quase novo, preço de ocasião. 

Não custava dar uma espiada. Próximo à nossa casa, em

Copacabana mesmo, na garagem de um edifício da rua Tonelero, fomos

encontrar o tal carro confortável, quase novo. Tratava-se de um Citroen

ID19, preto, enorme.

 —  É um cara de sapo!  —  entusiasmou-se Jorge.  —  Repare, os

faróis parecem dois olhos arregalados.

Não havia dúvida, o carro tinha a aparência de um batráquio

negro, enorme, escarrapachado. Reparando bem, vi que ele não era tão

quase novo  quanto fora anunciado. Estava  —  não havia dúvida  —  

lustroso, preparado para entusiasmar o freguês. O vendedor, jovem

simpático, bem-falante, ao reconhecer o possível comprador,

entusiasmou-se:

 —  Se acomode, seu Jorge  — disse indicando o assento diante do

volante  — , veja como ele é macio; ligue o motor, acelere, e... não se

assuste, ele vai subir. É carro de suspensão a óleo!  —  explicou de boca

cheia, entusiasmo de quem faz uma grande revelação.

Perdia seu tempo, pois de suspensão e motor de automóvel o

comprador não entendia absolutamente nada. Exatamente como eu

previra, Jorge não se impressionou com a novidade nem mesmo fingiu

admirar-se, fez apenas um sinal negativo com a mão:

 —  Ligar o carro? Eu? Deus me livre! Nunca dirigi automóvel em

minha vida. Quem guia é ela.  — Assim dizendo, apontou-me a porta já

aberta:  — Vamos, Zélia, suba.

Eu também não sabia o que significava suspensão a óleo, qual a

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sua função, a vantagem de um automóvel com tal incrementação.

Passei minha infância e adolescência entre operários na oficina

mecânica de meu pai, ouvindo conversas sobre consertos de motores de

automóveis; decorei até nomes de peças: cárter, pistão, anéis de pistão,platinado, caixa de marcha, embreagem, vela, vela suja, vela limpa,

carburador, virabrequim...  — meu pai dizia "girabrequim", creio que em

italiano. Esses nomes me eram familiares, porém nunca ouvira falar em

suspensão a óleo, certamente coisa moderna. Perguntei:

 —  O que significa suspensão a óleo? Solícito, o rapaz tratou de

explicar:

 —  A senhora não sabe? Pois olhe. Está vendo o cárter?

 —  O cárter?

O jovem resolveu ficar de cócoras e apontou com o dedo.

 —  Isso mesmo. Ali está o cárter. Aquela caixa de ferro está cheia

do LHM  —  o rapaz falava com um certo orgulho do tal LHM  — ,

comporta uns vinte litros desse óleo finíssimo que alimenta a

suspensão. Isso é coisa nova. Só carros desta marca têm essa

vantagem. Assim mesmo, apenas os do último modelo.

Eu nunca ouvira falar no famoso óleo LHM. Mas ele o

mencionara com tamanho entusiasmo que eu nem me atrevi a dar parte

de ignorante, confessar o meu desconhecimento. Restringi-me a

perguntar:

 —  Vinte litros? Tudo isso? O senhor sabe, pretendemos ir à

Bahia de carro, mil e tantos quilômetros de estrada. E se o tal LHM

acabar no meio do caminho? Onde é que vamos consegui-lo?

  Jorge estava doido pra ver o carro em movimento e eu ali

perguntando sem parar. Paciência esgotada, ele respondeu pelo rapaz:

 —  Ora, minha filha, qual é o problema? Tanto posto de gasolina

pela estrada... Em qualquer lugar a gente encontra óleo. Suba, vamos,

não perca mais tempo. Fica aí perguntando bobagens...  —  foi dizendo e

se acomodando. Resmungara em voz baixa, mas alto o suficiente para

que eu o ouvisse. Não gostei.

 —  A gente tem que saber tudo, ora!  —  retruquei enquanto

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subia.

Virei a chave, o motor respondeu, acelerei, a carroceria começou

a elevar-se, foi subindo, subindo, ficamos lá no alto.

 Jorge e eu estávamos tão ou mais entusiasmados que o jovemvendedor.

 —  Estão vendo que beleza?  —  dizia ele.  —  Sabem qual é a

vantagem desse sistema? O carro nessa altura deixa espaço para que o

motor não bata em pedras ao passar por estradas esburacadas,

podendo até enfrentar lamaçais sem correr o risco de ficar atolado.

  Jorge estava encantado, e eu vi logo que nada neste mundo o

faria desistir do negócio mas, mesmo assim, voltei à carga;

 — E o LHM pode ser encontrado em qualquer posto de gasolina?

 — Bem, em qualquer posto, não.  — O rapaz até que era honesto.

 — Esse óleo, pela sua finura, é comparável ao óleo de rícino, e o óleo de

rícino o substituí perfeitamente. A senhora pode comprá-lo, em caso de

emergência, em qualquer farmácia.

 —  O senhor está falando sério? Óleo de rícino, o purgante?

 —  Esse mesmo. É muito fino e bom, pode ser usado sem susto.

Olhei para Jorge que ria divertido. É, não havia jeito. Ele estava

apaixonado pelo Sapão, não adiantava fazer mais perguntas, saímos de

lá de negócio fechado.

DECISÃO T OMADA 

Decidimos nos mudar para a Bahia quando João Jorge

completou treze anos. Nosso filho tornava-se um homenzinho, Paloma

também crescia e o ambiente no Rio de Janeiro, sobretudo em

Copacabana, nos assustava. Queríamos que nossos filhos vivessem em

cidade mais tranqüila, livres das tentações das drogas que andavam na

berlinda, da maconha ameaçando os escolares, oferecida à saída das

aulas.Salvador era, na época, uma cidade pacata, não chegava a

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quinhentos mil habitantes. Lá os meninos poderiam andar soltos, nós

poderíamos dormir tranqüilos.

  Tirar as crianças do Rio de Janeiro era assunto decidido,

assunto prioritário. Existia, no entanto, ainda um motivo para essamudança radical de vida: havia muito que Jorge sonhava voltar a viver

em Salvador, comprar uma casa na Bahia.

Atendendo ao desejo do pai, aos dezoito anos ele partira para o

Rio de Janeiro com o propósito de só voltar com o canudo de bacharel

em Direito embaixo do braço. O coronel João Amado desejava, como era

comum entre os fazendeiros da época, ter um filho advogado, um filho

doutor, sobretudo o primogênito. Jorge não iria desapontar o pai.

Atendeu, pois, ao seu pedido e em 1930 viajou para o Rio: não apenas

faria a vontade do velho como iria lutar para realizar um sonho que

alimentava desde menino: escrever um romance. Sonhava com isso

desde os tempos de colégio, quando, certa vez, na sala de aula, um

professor de português, padre Cabral, ao ler o trabalho de um aluno, na

classe, previra a vocação do discípulo: ... o autor desta redação será um 

dia um grande escritor, profetizara. O autor da composição que

impressionara de tal forma o professor, outro não era senão o menino

 Jorge Amado, o mais vivo e traquinas da classe.

Aos quatorze anos, Jorge Amado já colaborava em revistas e

  jornais e sonhava: quem sabe um dia não chegarei a escrever um 

romance? A oportunidade chegara, talvez numa grande capital ele teria

novos conhecimentos, mais chances de realizar seu desejo.

A VOLTA 

Muitos anos haviam se passado desde os tempos de estudante

do rapazinho Jorge Amado. Ele cumprira sua tarefa, fizera a vontade do

pai: bacharel formado, um retrato de toga e capelo, lá estava,

pendurado na parede da sala do Coronel. Escrevera não apenas umlivro mas muitos livros; fizera viagens de não acabar. Deputado

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comunista, fora perseguido, sofrerá prisões e anos de exílio. Chegara,

pois, a hora de voltar definitivamente para a Bahia, sua terra, sua fonte

de inspiração. Nesses anos todos de ausência, no entanto, ele não

deixou de voltar, sempre que pôde, a Salvador e também a Ilhéus,cidade de sua infância.

DINHEIRO DO IMPERIALISMO AMERICANO 

 Jorge vendera à Metro Goldwin Mayer os direitos autorais de seu

romance Gabriela, cravo e canela. Não recebera o dinheirão que sepoderia imaginar, mas lhe pagaram o suficiente para adquirir uma casa

na Bahia. Comprarei essa casa com o dinheiro do imperialismo 

americano, dizia rindo.

AMIGOS PERNAMBUCANOS 

Morávamos, havia anos, num apartamento dúplex, adquirido

pelos pais de Jorge. Costumávamos passar as férias dos meninos em

Recife, hóspedes de amigos muito queridos. Conhecêramos Laís e Rui

Antunes dos tempos em que ambos terminavam o curso de Direito, Rui,

líder do movimento estudantil de esquerda. Grande jurista, ele tornara-

se professor da Faculdade de Direito de Recife; Laís não advogava,

contentava-se em ser a mãe zelosa de vários filhos, crianças que, nas

férias, enturmavam com João e Paloma. A casa dos Antunes, na cidade,

era enorme, rodeada de pomar com mangueiras de toda espécie.

Possuíam também uma granja nas aforas da cidade que, além do

coqueiral, era plantada de pitangueiras, jambo do Pará, goiabeiras,

pitomba, graviola, frutas para todos os gostos.

Verdadeira alforria para João Jorge e Paloma, eram as férias e a

viagem de avião para Pernambuco, a cada fim de ano, que os libertavam

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da prisão de um apartamento em Copacabana e das recomendações a

azucrinarem-lhes os ouvidos a cada vez que saíam à rua.

Além de Rui e Laís, tínhamos em Recife um outro casal de

amigos íntimos: Dóris e Paulo Loureiro, donos de um laboratório deanálises. Juntando as duas filhas do casal, Cláudia e Paula, e os de Rui

e Laís: Julita, Henrique, Aninha, Iracema e Ricardo aos nossos

meninos, a festa era uma só: brincavam, brigavam, pintavam o bode.

MARIA FARINHA 

A casa dos Loureiro na cidade não era grande: em compensação,

a que possuíam em Maria Farinha era enorme, rústica, na praia quase

deserta, mar de peixes e lagostas garantindo soberbas pescarias e

deliciosas peixadas. Não precisávamos ir longe para trazer peixe. Da

praia, ali mesmo, defronte à casa, era só atirar o anzol e recolher em

seguida o peixe se debatendo. Fiz até a proeza, certa manhã, de pescar,

com anzol de três ganchos, três peixes de uma só vez, deixando uns

estrangeiros que passavam por acaso de queixo caído.

CONVERSAS DE SOTAQUE 

 Jorge não aderia às pescarias, nem às grandes caminhadas. Seu

divertimento era outro: preferia descansar, deitado na rede do terraço,

ouvindo histórias dos empregados da casa e de pescadores que

apareciam por lá na hora da preguiça. Lembro-me bem de três

pescadores assíduos no bate-papo, os três de nome Amaro: um deles, o

Amaro Amarelo  —  palidez igual nunca se viu  — , aparecia nas estadas

da família Loureiro em Maria Farinha. Era um operado, título que  justificava a preguiça para o resto da vida e, além do mais, um

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aposentado do istitute  — como se referia ao Instituto de Aposentadorias.

Funcionava de quebra galho da casa, sem nenhuma função definida, à

disposição de quem dele precisasse para qualquer serviço leve. Os

outros dois Amaro não faziam nada, nem serviços leves, nem pesados,pois também, como Amaro Amarelo, eram aposentados do istitute  e

operados. Tranqüilos, os pais da indolência, cansavam-se só de ver os

outros trabalhar. Gostavam de um papo macio com o baiano, amigo de

doutor Paulo, que ria com as histórias que eles lhe contavam. Conversa

sem compromisso que parecia não levar a nada inspirava o romancista.

Aos sábados e domingos chegavam os amigos da cidade: Marcos,

Benaia, Carlos Pena Filho, Paulo Cavalcanti, Pelópidas Silveira e outros.

Os carros chegavam lotados, cada qual com sua família, esposa e filhos.

Inda bem que a casa era espaçosa, vários dormitórios e redes nos

terraços acomodavam todo mundo. Os homens faziam ruidosas rodadas

de pôquer, as mulheres jogavam canastra, as crianças se espalhavam.

Fins de semanas animadíssimos com jogos e conversas de varar a noite.

Das histórias ouvidas nesses encontros com os amigos pernambucanos

e dos momentos de lazer e preguiça na hora da modorra, foi que nasceu

a inspiração para Quincas Berro Dágua.

O PEIXE DE MEUS SONHOS 

Paulo inventava, de vez em quando, sair num barco a motor, embusca de peixes grandes. Levávamos os meninos maiores e Amaro

Amarelo, o Lobo dos Mares, como o nomeara o gozador Paulo Loureiro.

Compenetrado, Amaro, achando que orientava sem orientar coisa

alguma, braço direito à frente, estirado, movimentando-o de um lado

para outro, não apontando direção nenhuma, fazendo de conta que

indicava o rumo que evitaria as pedras embaixo da água. Não fosse

Paulo conhecedor do pedaço, teríamos batido, naufragado com o sábio conhecimento de Amaro. A presença dele servia apenas para nos

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divertir e colaborar na hora de baixar e levantar a âncora. Um dia ele

até foi útil: movido pelo entusiasmo, esqueceu que era um operado e

ajudou-nos a tirar da água e colocar no barco uma arraia enorme, o

maior peixe que pesquei em toda a minha vida. Não vou mentir, todoscolaboraram: ao ver aquele peixe imenso se debatendo, lutando para

livrar-se do anzol, Paulo tomou a frente e mesmo João Jorge me ajudou

até conseguirmos tirar o bicho da água.

Antes disso, Amaro já participara, dando palpites, de outro

episódio emocionante numa de nossas saídas de barco. Estava eu,

muito na minha, tranqüila, esperando pescar o peixe de minha vida 

quando senti que mordiam minha isca. É ele, disse em voz baixa para

não assustar o peixe e fui puxando a linha, estirada, pesada... o danado

resistindo. Paulo largou sua vara, tentava me ajudar, e eu, orgulhosa,

não deixando, querendo ter a glória de pescar sozinha o peixe que ali

estava ao alcance de minhas mãos... depois de um bom tempo nessa

peleja, eu insistindo, suando, já quase sem forças, aconteceu o que eu

não queria que acontecesse. Não gosto nem de lembrar, muito menos de

contar, mas a verdade é que, numa das arrancadas, a linha se partiu e

a vara ficou leve em minhas mãos, um pedaço de fio balançando no

espaço. Paulo ficou possesso. Ouvi todos os desaforos que um pescador

enfurecido pode atirar sobre um parceiro incompetente que deixa o

peixe escapar por puro orgulho e vaidade. Se eu tivesse permitido a

ajuda dele, nada disso teria acontecido. Amaro, com sua sabedoria

infinita, chegou a afirmar que a garoupa fujona  —  ele vira até a marca 

do peixe  —  tinha pra mais de um metro.

Ainda desconsolados, demos por terminada a pescaria, nem

tinha graça continuar. Ao puxarmos a corda para recolher a âncora foi

aquela surpresa: minha garoupa pra mais de metro, reluzente, outra

não era senão a âncora que eu tentara levantar, gastando todas as

forças. O anzol estava ali, de testemunha, preso na corda que sustinha

o pesado ferro.

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A ARRAIA NOVAMENTE

Não contei, nem posso deixar de contar o final da pesca da

arraia, coisa que nunca pude esquecer, nem eu nem ninguém que seencontrava na casa de Maria Farinha naquela manhã, principalmente

 Jorge que até hoje fala no assunto. Ao saber que eu pescara uma arraia

enorme, Jorge deixou a preguiça na rede, foi até a praia para esperar a

nossa chegada, aplaudir a gloriosa pescadora.

A arraia podia pesar uns dez quilos e Paulo resolveu carregá-la

sozinho. De um só golpe, atirou-a nas costas e, sustendo-a pelo rabo,

foi andando, já que Amaro fizera corpo mole. Quando lembrava que foraoperado de apendicite em criança, Amaro se recolhia. Não havia força

humana que o fizesse levantar pesos acima de cinco quilos e, a seu ver,

aquela arraia devia pesar pra mais de vinte. E com essa, a duras penas,

Paulo chegou até nossa casa trazendo o fardo, exausto, porém

satisfeito.

Avisados do acontecido, todo mundo foi nos esperar no portão.

Reclamando do peso que carregara e da comichão que sentira nascostas o tempo todo, ainda de um só golpe, Paulo atirou a arraia de

costas sobre a areia: do ventre branco do peixe saía uma espécie de

pênis, enorme, vermelho, ainda com vida, latejando. Comichão, seu 

Paulo?, perguntou-lhe Jorge, a perder o fôlego de tanto rir. A história da

arraia macho foi motivo de galhofa para o resto das férias; Jorge

espalhou entre os amigos que Paulo era um fenômeno, o único homem

no mundo a ter excitado sexualmente um peixe.

PLANOS 

Quando comprássemos a casa na Bahia nossas férias iam ser

diferentes: já não precisaríamos viajar para ter um grande pomar,

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 jardim com flores e, quem sabe, à nossa disposição, lá estaria o marzão

da Bahia, repleto de peixes, peixes para nossos anzóis, peixes

fresquinhos para nossas panelas. Iríamos ter a alegria de hospedar os

Antunes e os Loureiro em nossa casa, retribuiríamos o carinho.

L ALU NÃO ACHA GRAÇA 

Ao saberem de nossa intenção de mudança, os velhos não

gostaram, o coronel João Amado calou-se, Lalu se afligiu. Não querendo

discutir com o filho, ela tentava me tomar de aliada:

 —  Menina, vocês estão ficando malucos? Deixar uma cidade

linda como o Rio de Janeiro, com praias e jardins, para irem se meter

naqueles matos?  —  Passava da voz de comando para a mansidão:  —  

Fia, vê se tu dá uns conselhos pra Jorge. Diga pra ele que o lugar de

vocês é na cidade, não é no mato. Se tu não quer ir ele não vai. E só

dizer que tu não quer ir e pronto.

Em realidade, a mudança do Rio para a Bahia representava para

mim uma certa cota de sacrifício, sacrifício esse que valia a pena em se

tratando da segurança de meus filhos, da realização de um sonho de

 Jorge. Já estivera várias vezes na Bahia e me sentira uma espécie de

corpo estranho, uma intrusa. Jorge, rodeado de amigos a recordar fatos

passados, namoros e amores antigos, todo mundo se divertindo, rindo e

eu ouvindo calada.

  Tão calada ficava que aconteceu, certa manhã de domingo,

numa de nossas estadas em Salvador, escutar o que não queria.

Acompanhamos Carybé e Jenner, antes do almoço, à casa de uns

amigos deles, no Campo Grande, pessoas que mal conhecíamos. Como

de hábito, nesses encontros domingueiros, a animação era grande,

exaltação que ia crescendo à medida que as caipirinhas e as batidas

produziam efeito.

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 —  De que fruta é esta?  —  perguntei ao saborear uma deliciosa

batida de mangaba.

 —  Você não sabe?  —  admirou-se alguém.  —  Você não conhece

mangaba? —  Mangaba é manga?  — perguntei inocente.

 —  Não é manga, não  —  riu a dona da casa.  — Manga não tem

nada a ver com a mangaba, mangaba é uma fruta pequena...  —  

explicou, gentil, a senhora.

 — Como é que ela pode saber?  —  interveio uma outra.  — Zélia é

paulista. Em São Paulo não há frutas como as nossas... Lá é só pêra e

maçã, uva, banana...

Nem respondi. Podia enumerar todas as frutas de São Paulo,

variadas e maravilhosas, mas preferi não dar bola. Calei-me.

A conversa e as gargalhadas corriam soltas quando, de súbito,

um cidadão cujo nome não lembro (possuo a qualidade  —  ou será

defeito? —  de esquecer por completo o nome de quem me ofende, me

agride), de pé em minha frente, apontou-me com o indicador: Essa aí 

até parece minha mãe: pamonha e besta. Dessa vez ninguém achou

graça, Luísa, mulher de Jenner, artista vindo de Sergipe, aliás, os dois

são sergipanos, reclamou, os outros também reclamaram. Eu fiquei

ainda mais calada e mais besta.

Felizmente, nessas idas e vindas à Bahia, eu conquistara

algumas amigas: Norma, mulher de Mirabeau Sampaio (colega de Jorge

dos tempos de colégio interno); Nancy, mulher de Carybé, Luísa de

 Jenner, Nair, mulher de Genaro de Carvalho, o tapeceiro inigualável da

Bahia, Lúcia, mulher de Mário Cravo, escultor do ferro e da pedra.

 Todas se tornaram minhas amigas, todas dispostas a me ajudar nessa

mudança. Já não estaria sozinha fazendo papel de "pamonha e besta" e,

ainda por cima, paulista.

Mesmo sabendo que na época a vida da dona de casa na Bahia

não era fácil, tratei de avivar meu otimismo, passei a pensar somente

nas vantagens que iríamos ter com a mudança. Assim enfrentava com

bom humor a pressão de Lalu, que não se conformava de nos ver partir,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

depois de dez anos de convivência.

L ALU VOLTA À CARGA 

 —  E quem vai cuidar da casa, aqui?  — perguntava Lalu.

 —  A senhora vai cuidar da casa por pouco tempo, dona Eulália.

A senhora e seu João vão morar conosco na Bahia. Não vai demorar.

Não encontramos ainda uma boa casa mas vamos achar. Antes do fim

do ano esperamos estar de mudança.

 —  Tu quer que eu fique aqui, trabalhando? Já trabalhei muito

na vida, pra mim chegou...

 Tive vontade de rir mas me contive:

 —  E verdade  — disse  — , a senhora já trabalhou muito, não deve

trabalhar mais. Por isso queremos que venham viver conosco na Bahia.

A senhora devia aconselhar seu João a ir embora com a gente.

 —  Eta sujeitinha pedante! Aconselhar o quê? Ora veja só! Então

tu não sabe que quem não quer ir sou eu? João não diz nada, só quer

ficar junto do filho seja lá onde for... Tu é que deve aconselhar Jorge. Tu

só vai se tu for besta... É só dizer que não quer ir que ele não vai. É

verdade ou não é?

 —  Mas eu quero ir, dona Eulália. Salvador é uma cidade bonita,

tranqüila, vai ser bom para os meninos.

 —  Bom para os meninos? Tá... Que bom, o quê! Bom coisa

nenhuma! Teus filhos vão virar dois tabaréus. Tu pensa que lá tem as

facilidades daqui? Tu pensa que lá tem recepções nas embaixadas? Vai

ver que nem embaixadas tem por lá. Tu pensa que lá é como aqui, todo

mundo convidando pra festas?... Vá atrás disso! Vá atrás!

 —  Lá não tem embaixadores mas tem amigos, dona Eulália. Na

Bahia estão os colegas de Jorge dos tempos do colégio interno:

Mirabeau e Giovanni Guimarães; estão também esperando, Carybé,

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Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner, todos ansiosos.  —  Citei esses

nomes, esperando impressioná-la. Mas qual!

 — Ora veja! Não é por falta de amigos que vocês vão embora; a

casa aqui vive sempre cheia. É verdade ou não é? Tu não acha que seuPortella, seu José Conde, seu João Conde, seu Mauritônio, dona

Eneida, seu José Mauro, a Misette, dona Glorinha, seu Giges (era assim

que ela chamava o poeta Sosígenes Costa), dona Gervance (referia-se à

Giovanna Bonino), seu Waldemar e dona Gerusa então eles não vão

ficar tristes aqui sem vocês?  — Ela mesma respondia:  — Ora se vão!

Não adiantava discutir com Lalu, ela ganhava sempre. Carregava

um trauma dos tempos da juventude. Irmã de desbravadores de mata,

mulher de outro desbravador, vivera no sertão e em fazendas de cacau,

rodeada de jagunços, vendo irmãos e marido serem atingidos por tiros

de carabina, o irmão mais velho perdendo uma vista, o marido com as

costas cravejadas de chumbo... dormia com uma repetição carregada ao

lado do travesseiro para se defender, por via das dúvidas. Muitíssimos

anos haviam decorrido desde esse tempo, mas ela não esquecera, não

queria saber de história: Salvador, Ilhéus, Itabuna, Pirangi ou Ferradas,

era tudo a mesma coisa, o fim do mundo. Sem nenhuma cerimônia, o

que ela dizia mesmo era: o eu do mundo. 

  Jorge não perdia a esperança de convencer os pais a nos

acompanhar. Havíamos de encontrar uma casa, confortável, com jardim

e pomar, onde eles pudessem viver tranqüilos. Mas isso seria resolvido

depois de comprarmos a casa.

A PRIMEIRA T ENTATIVA 

Nesse início de dezembro de 1960, logo que os meninos

entraram em férias, os mandamos para Recife, onde nos aguardariam

na casa de nossos amigos. Tudo fora muito bem planejado: iríamos decarro até Salvador, compraríamos a casa, o carro ficaria nela nos

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esperando, de avião iríamos a Recife, passaríamos as festas de Natal e

Ano-Novo lá, como de hábito. Apanharíamos João e Paloma e da Bahia

voltaríamos todos juntos, de automóvel. Coisa mais simples e tranqüila,

impossível.Os velhos tomaram o místico, nome dado pelo Coronel e repetido

nas risadas ao referir-se ao avião misto  —  carga e passageiros  — , mais

barato do que o de vôo normal, com direito a lanche e tudo. Por muito

favor, Lalu acompanhava o marido a Pirangi, onde possuíam uma

fazenda de cacau. Todos os anos, em dezembro, lá se iam os dois de

avião até Pontal e de lá, numa lancha velha, desconfortável, de apelido

Gasolina, iam para Ilhéus, de onde seguiam de automóvel até Pirangi.

Época de colheita e de acerto de contas, o velho não deixava de estar

presente para o devido controle. Apenas chegavam a Pirangi, ele

montava a égua já atrelada, à sua espera, e se tocava para a roça

enquanto Lalu permanecia na cidade, hóspede das sobrinhas, tratada

nas palmas das mãos, tiazinha pra cá, tiazinha pra lá.

A L ONGA VIAGEM 

No místico, seguiram os velhos para Ilhéus, enquanto Jorge e eu

partimos no Cara de Sapo, como já se sabe. O apartamento da Rodolfo

Dantas ficou sob os cuidados de Milu, Emília Jacob David, amiga dos

velhos, sergipana de Estância. Moça velha, mulher alta e sacudida, umaforça da natureza, Milu não tinha família, quer dizer, não vou mentir,

sobrara-lhe um irmão de quem ela não tinha notícias havia uns trinta

anos. Milu vivia ora na casa de um, ora na casa de outro, sem endereço

certo. A chegada de Milu em casa com sua loucura e sua animação era

um alvoroço. Amiga leal, podíamos deixar tudo em suas mãos, sem

susto.

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Peço licença para contar apenas uma historinha sobre o caráter,

a retidão e a maluquice de Milu.

O coronel João Amado possuía um relógio de estimação, um

cuco, presente dado pelo filho Jorge, que o ganhara de um amigo, omédico mineiro Belini Burza, relógio recebido de um cliente. O cuco em

sua casinha de madeira, pendurado na parede da sala de jantar, era a

grande distração do velho. Relógio bom, gabava ele. Não atrasava nem

adiantava, as horas sempre conferidas com o cebolão de ouro, de

algibeira, preso a uma corrente também de ouro, um American Swatch

Company que o Coronel chamava de meu Patek Philippe, Afinado, o

cuco cantava em horas certas. Saía por uma portinhola e soltava a voz.

Enquanto isso, os pesados pêndulos de ferro, em formato de pinha

rematando duas correntes, se movimentavam, ora um, ora outro.

Enquanto um descia, o outro subia. Acontece que, encostada na mesma

parede que o cuco, bem embaixo dele, havia uma pequena mesa, um

consolo, cuja altura impedia a corrente do relógio de seguir seu curso

normalmente, ir até o fim. Era preciso estar sempre atento, afastar a

mesa no momento exato, para que a pinha não tombasse sobre ela, o

que faria o relógio parar. Isso acontecera uma vez e dera um trabalhão

danado ao velho fazê-lo voltar às boas. Sempre de olho, seu João

controlava e manobrava, puxava rapidamente a mesa antes que

acontecesse o estrago.

Obedecendo às recomendações a respeito do cuco, Milu seguia à

risca as instruções: afastava o consolo na hora certa. Acontece que

numa certa manhã de sábado, ao sair às compras, ela esbarrou de

repente com o irmão, o irmão que não via há séculos. Ficou sabendo

que ele morava no subúrbio do Encantado, passara por acaso em

Copacabana. Do encontro resultou um convite: Milu iria almoçar com a

família no dia seguinte, conheceria a cunhada e os sobrinhos,

relembrariam o passado, matariam saudades.

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De Copacabana ao Encantado faziam-se necessárias duas ou

três baldeações, não sei quantas exatamente, uma verdadeira viagem

em ônibus paradores. Precavida, Milu saiu cedo de casa, comprou na

padaria uns doces para os sobrinhos e se tocou.A viagem parecia não ter fim, contou Milu, tempos depois, ao

narrar sua aventura, o ônibus parando em todos os pontos, recebendo 

  passageiros, despejando outros... Comecei a me preocupar, o tempo ia 

 passando e nada de chegar... desse jeito não ia dar tempo de estar de 

volta em Copacabana na hora de puxar a mesa. Do ponto final do ônibus 

até a casa de meu irmão ainda tinha uma boa caminhada. Fui ficando 

nervosa, agoniada, agoniada... Cheguei no portão da casa do mano,

toda esbaforida, suada. Ele veio me receber, os meninos e a cunhada 

atrás, eu nem vi a cara de ninguém, entreguei a bandeja de doces, o 

  papel todo amarrotado, fui me despedindo, me desculpem, fica para 

outra vez, tenho que voltar antes que a pinha da corrente encoste na 

mesa. Diante do espanto da família que não entendeu nada, ou que na

certa pensou estar a pobre maluca, ela se foi rapidamente para o ponto

do ônibus. Quando abri a porta do apartamento, ouvi o canto do cuco, o 

último antes dele soltar a corrente de vez. Ufa! Foi Deus quem me ajudou!  

O TIMISMO 

Vivo me gabando de ser otimista. Aliás não me gabopropriamente, não é esse bem o termo pois não considero ser o

otimismo uma virtude, cada qual é como é, uns nascem otimistas,

outros pessimistas. Acho apenas que tive sorte de ter nascido otimista,

não me apoquento com pouca coisa, não sofro por antecipação, acho

sempre  — mesmo que o céu ameace desabar sobre minha cabeça  — que

posso dar uma guinada e seguir em frente, acreditando em dias

melhores.

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Viajei para a Bahia, como de hábito, com esse espírito, cheia de

otimismo, certa de que encontraria à nossa espera dúzias de casas, as

mais belas, para comprar. Pura ilusão. Quem tinha uma boa casa não

queria vendê-la.

O SAPÃO BRILHA 

Não precisei recorrer ao óleo de rícino para alimentar meu carro

na estrada. Nossa viagem à Bahia foi perfeita, até divertida. O Sapãonão reclamou, obedeceu sempre que desejei ultrapassar um carro  —  

aliás, quem sempre deseja ultrapassar os carros é Jorge, reclama

quando me deixo ficar para trás: Ora, minha filha! Você parece que gosta 

de comer poeira, todo mundo passa em tua frente!... Foram dois dias de

cansaço, de tensão, mas não poderia me queixar; o ID19 nos

proporcionou momentos muito engraçados. Em todas as paradas ele

causava sensação. Naquela época, os carros desse tipo eram raros noBrasil e, creio, o nosso era o primeiro a enfrentar a BR-316.

Em Teófilo Otoni, por exemplo, o trânsito chegou a parar.

Estacionamos um momento, para tomar um café. Ao voltarmos,

encontramos o carro cercado de curiosos, meninos e adultos,

vendedores de pedras semipreciosas a turistas ali estavam no maior

entusiasmo. Entusiasmo que aumentou quando, ao ligar o motor,

resolvi fazer uma demonstração, botando a suspensão a óleo afuncionar: Uai! Que trem mais sabido! Bonito demais da conta! , disse,

surpreso, um rapazinho enquanto acariciava o capo empoeirado. Em

Milagres o Sapão chegou a realizar um milagre: fez um ceguinho

recuperar a vista. O pedinte cantador, de óculos pretos e cuia

estendida, ao ver o carro parar em frente a uma barraquinha de frutas,

foi se chegando e, esquecido de sua condição de cego, exclamou: Eta 

bichão porreta! Igual que este eu nunca vi. 

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SALVADOR À VISTA 

Chegamos à Bahia muito antes do tempo previsto. Jorge dizia:

Só quero ver a cara de Carybé... só quero ver a cara dele. 

Carybé, mesmo que irmão, de artes com os encantados, íntimo

dos Orixás, afilhado de Exu, ele próprio um capeta, era rival de Jorge

em pregar peças. Eu estava curiosa só de imaginar sua reação ao ver o

automóvel. Diante do compadre embasbacado eu manejaria a

suspensão, faria o carro subir às alturas.

Cansados da viagem, sujos, suados, paramos no portão de

Norma e Mirabeau Sampaio, no Chame-Chame. Ouvimos de Mirabeau e

Norma  —  sobretudo de Norma, animada por natureza  —  exclamações

de entusiasmo diante do Sapão. Eles haviam reservado, a nosso pedido,

acomodações no Retiro de São Francisco, em Brotas, ficaríamos

hospedados nessa espécie de pousada, tranqüila e barata, não iríamos

gastar nosso dinheiro em hotéis caros. Norma entrou no carro, me

ensinaria o caminho. Mirabeau parecia satisfeito:

 —  Eu também vou com vocês mas acho que devíamos antes dar

uma passadinha pela casa de Carybé. Ele vai ficar surpreso, pensa que

vocês chegam amanhã. Quero só ver a cara dele diante deste automóvel.

Vai ficar humilhado. Comprou um fusquinha caindo aos pedaços, não

sabe guiar mas não dá o braço a torcer. Vive fazendo barbeiragens.

Capotou noutro dia em Feira de Santana. Felizmente ninguém se

machucou.

Carybé e Nancy moravam no Rio Vermelho, num sobrado em

cima de uma padaria, no Largo de Santana.

Buzinei debaixo da janela de Carybé, Norma abriu a porta do

carro e da calçada berrou: Carybé!  Nancy espiou da janela, acenou com

a mão, chamou o marido. Ele apareceu, olhou e sumiu, para em

seguida surgir junto ao carro, limpando as mãos sujas de tinta, com

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uma estopa.

 —  Estava trabalhando... pelejando pra botar um cavalo de pé e

o burro não querendo me obedecer  —  riu. De repente grudou os olhos

no automóvel que subia às alturas: — 

Ué! Onde foi que vocêsarranjaram esse Mané Pato?

 —  Mané Pato, Carybé? Você está querendo dizer Mané Sapo?  —  

protestou Jorge.

 —  Sapo? Ora veja! De sapo ele não tem nada. É um pato,

direitinho! Olhe só o bico dele!  — Carybé era forte.

Não adiantou discutir se era sapo ou pato, Carybé ganhou a

parada. O apelido pegou, pegou de tal maneira que até nós, Jorge e eu,

passamos a chamá-lo de Mané Pato e Mané Pato ficou sendo até o

último dia de sua vida.

Mané Pato agüentou ainda duas viagens: Bahia — Rio, Rio —  

Bahia. Continuava lépido, obediente, até que um belo dia, aliás, uma

bela noite, ao voltarmos de uma visita a Odorico Tavares, no Morro

Ipiranga, ao descer a ladeira, na escuridão, não percebi que faltava no

meio da pista uma tampa redonda de ferro, das que cobrem os bueiros.

Meti a roda dianteira na boca-de-lobo, o tanque do óleo bateu com

violência no chão, partiu-se e, era uma vez... Lá se foi o pobre se

arrastando, o óleo escorrendo até a derradeira gota, marcando uma

trilha no asfalto. No portão de Mirabeau, à rua Ari Barroso, logo abaixo

do morro Ipiranga, nosso Mané secou de vez, arriou para sempre; deu

um último suspiro, emudeceu.

Por mais que buscássemos um tanque para substituir o

quebrado, não encontramos. Em Salvador não havia, nem por milagre.

Não havia outro jeito senão despachar o carro. Numa última tentativa

mandamos ele, em cima de um caminhão, para o Rio de Janeiro, onde

havia uma agência da Citroen, mas nem lá conseguiram ressuscitá-lo.

Nosso Mane Pato terminou seus dias num depósito de sucata. Quando

penso nele ainda sinto saudades, um nó na garganta...

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CADÊ A CASA?

Batíamos pernas em busca de casa, muita gente empenhada emnos ajudar e, nada. Meu otimismo rolava por água abaixo.

Genaro de Carvalho nos aconselhara a dar uma olhada num

sobrado antigo, no alto da colina, ao lado da igreja de Santo Antônio. É

a casa que eu gostaria de ter, dissera. Mesmo sabendo que ela estava

ocupada, fomos até lá dar uma espiada.

Genaro nos entusiasmara: Os moradores são suíços, quem sabe 

se eles não estão querendo ir embora, voltar para a Europa? Não custa tentar. 

Aquela, sim, era a casa de nossos sonhos. Toda branca,

contrastando com o verde do gramado, na encosta algumas árvores

enormes e o mar inteiro a seus pés com direito a nascente e a poente

refletidos em suas águas. Já imaginou, Jorge, nas noites de lua cheia?,

comentei, romântica, já me sentindo debruçada na janela, embevecida.

Ao ver-nos ali, tão interessados, a proprietária, uma senhora loira, seaproximou. Antes que ela dissesse qualquer coisa eu me adiantei:

Estamos gostando muito de sua casa. A  resposta veio  pronta: Nós 

também gostamos... Só se fosse louca ela ia vender a casa, disse Jorge.

Daí por diante ia ser difícil encontrar fosse o que fosse que nos

agradasse. Esta era a terceira casa visitada e riscada da lista.

Partimos para uma, na Pituba. Casa boa, nova, com frente para

duas ruas, um belo terreno com árvores e flores. A proprietária, umaviúva, queria vendê-la. O preço anunciado estava dentro de nosso

orçamento. Só havia um inconveniente: ficava bem na praça, ao lado da

igreja, lugar movimentado e barulhento, sobretudo em dias de festas da

paróquia. Esse inconveniente foi superado quando pensamos que talvez

os velhos gostassem de morar lá, poderiam passear na pracinha, sentar

num banco, apreciar o movimento. A casa era bem-conservada, havia

acomodações para todos, até para hospedar a turma de Recife, nãoprecisava de reformas, podíamos nos mudar em seguida. Ao

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procurarmos a viúva para concretizar a compra, ela não teve meia

conversa: Olhe, seu Jorge Amado, esta casa está muito barata... não sei 

onde estava minha cabeça quando dei esse preço. E, além do mais, gosto 

muito dela, é a minha pérola, não faço questão de vendê-la. Tenho outras   propriedades, mas esta é a minha preferida. Não encompridamos

conversa, não quer vender, não vende. Ainda uma riscada da lista.

No local dessa casa na Pituba, por coincidência, ergue-se hoje o

 Teatro Jorge Amado.

Partimos para outra recomendada, na cidade baixa, em

Itapagipe. Diziam maravilhas do casarão antigo, localizado em frente ao

mar. Tratava-se, na verdade, de um casarão velho, caindo aos pedaços,

um horror! Vimos logo que não prestava para nós. Os quartos eram

enormes, altos, a pintura descascando, nas paredes manchas de

percevejos esmagados. Eu as reconheci, eram iguais às que víramos nos

campos de concentração na Alemanha, Tchecoslováquia e Polônia.

Nesta casa encontrei uma coisa que me surpreendeu: um cachorro que

ria. Ele esticava o focinho, levantava o lábio superior, mostrava os

dentes num sorriso. Fiquei encantada com o animal que passou a me

acompanhar por toda a parte como se fosse um velho amigo: Se ficarem 

com a casa, sorriu o proprietário, deixo o cachorro de presente para a 

senhora. E o cachorro sem a casa, não pode ser?  Arrisquei, mas não

pegou. Sem comprar a casa, neca de cachorro.

A VOLTA DE MÃOS VAZIAS 

Não foi daquela primeira tentativa que conseguimos comprar

casa na Bahia. Viemos encontrá-la meses mais tarde, ao voltarmos de

avião. A viagem de automóvel fora cansativa, pesada demais para mim.

Ao voltarmos para o Rio com as crianças, em fevereiro, no Mane Pato,

contratamos um motorista para me revezar na direção, na longaestrada. Assim mesmo, com motorista, a viagem foi cansativa. De avião

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

eram apenas três horas, uma beleza para mim, três horas de

nervosismo para Jorge, que tem horror a viagens aéreas.

PEÇO L ICENÇA 

Por falar em horror a viagens aéreas, peço licença para contar

uma pequena história que não tem nada a ver com a compra da casa na

Bahia, mas sim com o horror de Jorge por viagens de avião.

Há alguns anos, exatamente dez, foi conferido a Jorge o GrandePrêmio de Poesia do Mont Saint-Michel, decisão tomada em reunião de

poetas no Encontros Poéticos Internacionais da Bretanha, medalha

atribuída pelo livro O Gato Malhado e Andorinha Sinhá. O prêmio seria

entregue no próprio Mont Saint-Michel  — a oitava maravilha do mundo

 —  durante o festival anual de poesia, comandado pelo poeta francês

Claude Couffon e pela presidente do Encontros Poéticos, Dodik Jegou.

Conhecer o Mont Saint-Michel era um velho desejo meu e eu me sentiaencantada com essa perspectiva.

Nosso avião, de companhia de vôos domésticos, sairia do

aeroporto de Orly, uma hora apenas de viagem até Saint-Malo, na

Bretanha. De lá ao Mont Saint-Michel teríamos ainda uma boa meia

hora de automóvel.

No momento do embarque, descobrimos que viajaríamos num

turboélice, bimotor, para doze passageiros, e Jorge se alarmou: — Se eu soubesse que ia viajar num aviãozinho desses, não teria

vindo.

 —  Às vezes um aviãozinho desses é mais garantido do que um

aviãozão  —  disse à guisa de conforto, conforto que não pegou, pois

 Jorge continuou reclamando, nervoso.

No avião lotado, couberam-nos os assentos ao lado do motor.

Apenas levantáramos vôo olhei pela janelinha, queria ver Paris do alto.As únicas coisas que eu via, no entanto, eram o motor e a hélice do

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aparelho. Sobre a chapa de metal abaulada do motor, vi escrito: Rolls-

Royce. Me animei:

 —  Fique tranqüilo, Jorge, estamos garantidos por um possante

motor Rolls-Royce. —  E o que é que você quer dizer com isso?  —  irritou-se ele.

 —  Então você não sabe que o Rolls-Royce é o melhor motor do

mundo? Dizem até que não encrenca nunca.

 —  E onde foi que você descobriu que o motor é Rolls-Royce?

Afastei a cabeça para dar espaço, queria que ele mesmo

lesse.

 —  Pois olhe  — disse Jorge em tom de ironia  — , o teu motor que

nunca encrenca acaba de encrencar. A hélice está parando.

Olhei. Vagarosamente, a hélice acabara de dar sua última volta.

Ouviu-se, em seguida, a voz do comissário de bordo: Senhores 

  passageiros, acabamos de ter uma pequena pane no motor esquerdo,

nada de grave... Nesse momento o tumulto e o pânico se generalizaram.

Por favor, pedia o comissário, conservem-se em seus lugares, sobretudo 

evitem o pânico! Vamos aterrissar num campo de emergência. Com a 

colaboração de todos chegaremos a terra sem problemas. 

Adernado, o avião descia lentamente. Morta de medo, pela

primeira vez na vida tive a sensação de ver a morte se aproximar. Se o

motor que era Rolls-Royce pifara, o outro, igualzinho, poderia muito

bem também pifar e aí estaríamos fritos. Mil pensamentos passaram

por minha cabeça: não ia mais ver meus filhos, ia morrer sem conhecer

o Mont Saint-Michel. Segurei a mão de Jorge: se é pra morrer ao menos

que morramos de mãos dadas.

 —  Me dê o jornal que está no bolsão em tua frente  —  disse

 Jorge, a voz quase tranqüila.

 —  E você vai ler jornal, numa hora destas?

 —  Ao menos morro sabendo as notícias...

Após meia hora de agonia, aterrissamos no tal campo de

emergência, com ambulâncias e carros de bombeiro à nossa espera.

Mesmo depois dessa experiência, continuo preferindo as viagens

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de avião a outro meio qualquer de locomoção. Você é uma irresponsável,

costuma dizer Jorge. Você não tem jeito.

 JORGE VESTE FARDÃO 

Nosso plano, ao voltarmos ao Rio, no início de 1961, era acertar

o colégio dos meninos, esperar que os velhos voltassem da fazenda,

orientar a empregada, organizar as coisas lá em casa para então tomar

um avião e voltar para a Bahia a fim de continuar a via-crúcis em buscade casa. Mas nosso plano falhou, aliás, nunca podemos fazer planos e

contar certo com eles. Sempre acontece alguma coisa, que impede.

Dessa vez foi a eleição da Academia Brasileira de Letras.

Com a morte de Otávio Mangabeira, Jorge candidatou-se à sua

vaga na cadeira 23, cujo patrono é José de Alencar e o fundador,

Machado de Assis. Em eleição tranqüila ele foi eleito a 6 de abril. A

cerimônia da posse fora marcada para daí a três meses, Jorge deviaescrever seu discurso de posse, devia atender a entrevistas de

  jornalistas de toda parte, e experimentar o fardão... Ah! O fardão!

Habituado a roupas leves, sandálias nos pés, que penitência

experimentar o fardão! Não podíamos, de forma alguma, pensar em

viajar antes da posse na Academia.

Por falar em fardão, peço licença para contar uma historinha

sobre o fardão: na noite da posse na Academia, enquanto ajudava Jorgea se vestir, ouvia ele reclamar da escravidão do fardão justo, de lã

quente, os bordados a ouro, segundo ele, esses bordados pesam que é 

um horror!  

Dei um passo atrás, olhei-o dos pés à cabeça, encantada: Pronto! 

Já está prontinho, lindo!  

 —  Me dê uma tesoura aí  — ordenou ele.

 —  Uma tesoura? Para quê? —  Não pergunte nada, Zélia, me dê uma tesoura, depressa!

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Assim dizendo, foi desabotoando a casaca  — é casaca ou fraque?  — que

me dera tanto trabalho abotoar. Apanhou a tesoura que lhe entreguei e,

antes que eu dissesse qualquer coisa ou tentasse impedi-lo, foi cortando

o colarinho branco, alto, duro de goma, deixando-o esfiapado, rente àparte escura de lã. Em seguida me devolveu a tesoura: Muito obrigado.

Agora vou me sentir mais aliviado, melhor. 

Ao ver o filho de fardão, de chapéu bicorne com arminhos, capa

e espada, seu João, que nesse dia envergara o melhor terno e colocara

no dedo mindinho o anelão de brilhante, sorriu satisfeito. Meu  filho!,

murmurou e não conseguiu dizer mais nada. Nesse dia Lalu foi ao

cabeleireiro, vestiu o traje bordado de miçangas, elegante, feito pela

sobrinha Diná, famosa modista. Não perdeu a oportunidade de querer

me convencer mais uma vez a desistir da Bahia: Tu tá vendo, fia? Na 

Bahia tem Academia de Letras, com todo esse luxo?  

 Jorge completaria 49 anos daí a um mês, a 10 de agosto, e os

amigos, no Rio, preparavam-lhe uma festa. Viajaríamos depois.

VOLTA À BAHIA 

Ao voltarmos à Bahia, em setembro, por pouco não compramos a

casa do Morro das Margaridas, na Mariquita, no Rio Vermelho, bem

localizada, no alto de uma colina, paisagem de todos os ângulos. Ao

examinarmos a planta, porém, verificamos que aquele terreno todo que

a circundava, não era, como nos haviam dito, área verde da Prefeitura,

intocável. Era, isso sim, terreno loteado, muitas casas e edifícios seriam

levantados em torno tirando-lhe completamente a vista e a privacidade,

o mais importante para nós, já que a casa não era grande coisa,

precisava de muitas reformas.

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SONATA 

Em outubro de 1961, assinamos, finalmente, a escritura de

nossa casa na Bahia, localizada à rua Alagoinhas, bem no alto de uma

ladeira, no Rio Vermelho. Ela pertencia a um pianista suíço, Jean-

Sebastian Benda, contratado pela Universidade da Bahia para ensinar

no Seminário de Música. Família de músicos, a mãe violinista, a irmã e

a mulher, uma jovem baiana, pianistas. O contrato com a universidade

estava para terminar e a família, acrescida de dois filhinhos, preparava-

se para regressar à Europa. Vendemos a casa com muita pena,

disseram.

Essa não era, de jeito nenhum, a casa de nossos sonhos. Grande

e desconfortável, ela necessitava de reformas, de muitas reformas para

que ficasse a nosso gosto. O que nos encantou, no entanto, foi o terreno

enorme e a deslumbrante vista, descortinando o Rio Vermelho,

Descobrimos também uma coisa bonita  —  coisa que nos agradou  — , a

casa tinha nome, um nome poético: Sonata. 

Dois grandes sapotizeiros, seculares, eram as únicas árvores

existentes no terreno, cheio de mato rasteiro. De nosso terraço

podíamos ver o mar em toda a sua grandeza, a Igreja de Santana e o

pequeno porto de pescadores, de onde, a 2 de fevereiro, sai a procissão

de barcos, levando os presentes que o povo oferece a Yemanjá.

PROCISSÃO DE YEMANJÁ 

Na grande festa popular dedicada à Rainha do Mar, orixá da

devoção dos pescadores, o espetáculo do pôr-do-sol, na hora da viração,

é inigualável: dezenas de embarcações a vela, carregadas de oferendas

as mais diversas, desde os sabonetes e pentes para a sereia lavar-se e

pentear-se, aos espelhos para se mirar, frutas, flores, muitas flores,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

levados pelo povo que, paciente, em filas quilométricas, aguarda sua vez

de depositar o presente num balaio e fazer o seu pedido.

O balaio, quando cheio, é colocado no barco. Vento soprando,

velas enfunadas, eles se distanciam, lentamente, um atrás do outro, atéperderem-se no infinito. Só então os cestos, transbordando de prendas,

são depositados no mar. Os presentes que afundam são os que a sereia

aceita e o pedido será atendido; repudiados, os que flutuam.

Assistiríamos de nossa casa, de nosso terraço, à festa da Mãe-

d'Água, a procissão marítima seguindo até o fim.

Rio VERMELHO 

Bairro popular, distante do centro da cidade, levando-se em

conta as maltratadas vias principais. Até de bonde podia-se ir ao Rio

Vermelho, bonde aberto, pesado, que fazia ponto final, no largo da

Amaralina. Nossa rua, a rua Alagoinhas, era mal calçada, rua de casasmodestas e nenhum edifício.

Ao saber da compra da casa, todo mundo se admirou: por que

no Rio Vermelho e não num bairro nobre, como a Barra, o Corredor da

Vitória, por exemplo? Por que vão morar tão longe? Longe de quê, meu

Deus do céu? Longe da Praça Castro Alves e da rua Chile, o chamado

centro da cidade? Estávamos contentes de morar no Rio Vermelho,

contentes da vizinhança de nossos amigos.

VAMOS PLANTAR?

As férias dos meninos se aproximavam e queríamos passá-las

 juntos na casa nova. Casa nova é maneira de dizer. Na casa que deveria

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ir abaixo para ser reconstruída a nosso gosto. Trabalho demorado e

custoso, não queríamos nos apressar, começaríamos as obras em 1962,

os meninos ainda voltariam ao Rio para estudar. Podíamos, no entanto,

tratar do terreno, iniciar uma plantação. Habitaríamos provisoriamentena casa do jeito que ela estava.

De Cruz das Almas, da escola de agronomia, conseguimos um

presente régio: mudas de laranjeiras, de limas, de tangerinas, frutas de

boa qualidade. Entusiasmado, Jorge providenciou um jardineiro para

começar a faxina no terreno.

Não fui com a cara de seu Quiquinho, achei-o com toda a pinta

de preguiçoso e de sabido. Pediu dinheiro para comprar adubo, sabia

onde vendiam adubo. Dias depois um caminhão despejou em nosso

terreno montanhas de lixo: misturadas com a terra, latas de sardinha

vazias, papéis apodrecidos, uma fedentina a atrair todas as moscas do

Rio Vermelho e adjacências.

 Jorge não teve dúvidas, despachou o tal Quiquinho no mesmo

dia. Jardineiro era o que não faltava. Chegou seu Ambrósio, homem

pacato, boa cara. Seu Ambrósio capinou o terreno todo, fez uma

limpeza geral em poucos dias e, mãos à obra: numa só jornada, de

manhã à noite, conseguiu plantar todas as laranjeiras. Ninguém mais

feliz do que Jorge ao mostrar a Carybé a plantação:

 —  O senhor está convidado com dona Nancy a voltar aqui em

breve para saborear as laranjas  — dizia com orgulho.

 —  Muito obrigado, compadre  —  retrucou Carybé.  — Eu também

convido você e a comadre Zélia a provar as frutas de meu pomar. Acabo

de comprar uma casa em Brotas com um terreninho de fazer gosto, todo

plantado de bananeiras, jaqueiras, pitangueiras, mangueiras,

goiabeiras, tudo crescido, dando frutas  —  anunciou Carybé, também

orgulhoso.  — Estou me mudando.

Íamos perder a vizinhança de Carybé, uma pena, mas, afinal de

contas, isso não era motivo para ficarmos tristes, Nancy e Carybé não

iam para tão longe. Brotas ficava logo ali, de nossa casa à casa deles

não levava, de automóvel, mais de quinze minutos.

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Pela manhã, ao despertarmos, tivemos a maior decepção, a

maior tristeza: nossas laranjeirinhas, plantadas com tanto entusiasmo,

lá estavam, completamente peladas, nem uma única folha em seus

galhos. O terreno era minado de saúvas, vorazes formigas que sóaparecem à noite. Elas haviam encontrado seu prato predileto: folhas de

laranjeiras, feito a festa, e se encontravam recolhidas debaixo da terra,

empanturradas.

ZUCA, o MATADOR DE FORMIGAS 

Agora, chegava Zuca. De jardinagem ele não entendia nada, mas

em formigas era doutor- Contratado para liquidar as inimigas, ele fez

um exame no terreno: Aqui tem muita e as que vêm de fora são ainda 

mais, diagnosticou. Vamos ter que liquidar todas as daqui e também as 

dos vizinhos. Enquanto isso, não vale a pena plantar nada. É plantar e 

 perder.

INTIMAÇÃO

Carybé chegou pela manhã, trazendo uma jaca: E lá da casa de 

Brotas. 

Lamentava o estrago das saúvas, quando bateram à porta. Um

rapaz queria entregar em mão própria um papel para Jorge. O senhor 

assina aqui, disse abrindo um livro de protocolo. Jorge deu uma olhada

por alto, assinou e despachou o rapaz: Está entregue. 

Só então foi ver direito do que tratava o documento. Carybé se

aproximou, espichou o olho no papel enquanto Jorge, intrigado, sem

compreender o que aquilo significava, pediu: Veja se você entende isso,

Carybé. 

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 Tratava-se de um papel timbrado com as armas da República,

da Justiça do Trabalho, notificando o Dr. Jorge Amado para uma

audiência de uma reclamação trabalhista proposta por Francisco Bispo

dos Santos. Mais abaixo, dizia que o não comparecimento implicaria em revelia e confissão. Mais abaixo, ainda: Pede-se trazer a contestação por 

escrito. Solicita-se, também, organizar os documentos oferecidos como 

 prova em ordem cronológica e reunidos em uma pasta, caso ultrapassem 

50 (cinqüenta) folhas. 

 — Você está entendendo isso, Carybé?

 —  É uma intimação...

 —  Até aí eu entendi  — disse Jorge.  — Mas intimação de quem?

De quê? Quem é esse tal de Francisco Bispo dos Santos?

 —  Você não conhece?  —  indagou Carybé.

 —  Conheço coisa nenhuma. Vai ver que se enganaram...

 —  Pense bem, Jorge. Como era o nome daquele jardineiro do

estrume podre, o que você despediu? Talvez seja esse sujeito.

 Jorge nem lembrava seu nome:

 —  Como era, Zélia?

 —  Quiquinho  — respondi.

 —  Pois aí está  —  entusiasmou-se Carybé, que acabava de

decifrar a charada.  —  Quiquinho é apelido de Francisco. Veja bem:

Francisco, Francisquinho, Quinho, Quiquinho. É o próprio que está te

intimando, não há dúvida.

 —  Mas eu paguei a ele o que nem devia ter pago...

 —  Ele te deu recibo?

 —  Recibo, Carybé? Qual é o recibo? Um analfabeto que nem

sabe assinar o nome... Nunca pedi recibo a empregados.

 —  Pois faz muito mal. A gente deve sempre pedir recibo para

evitar essas amolações.

 Jorge ficara enfurecido. Que miserável! Jogou lixo no meu terreno,

recebeu como se fosse adubo de primeira e vem com essa... Eu também

estava furiosa, não somente com o pobre-diabo, ladrão descarado, como

também, e sobretudo, com o juiz do Trabalho, de assinatura ilegível a

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mandar tal convocação:

 —  Eu acho que você nem deve se apresentar, Jorge. Não vai te

acontecer nada.

 — 

Não vai acontecer? — 

interveio Carybé — 

Com essa Justiçado Trabalho, nunca se sabe. Quem é esse juiz? Certamente algum

reacionário, teu inimigo que quer te ver no xilindró.... Não convém

abusar... Eu acho que você deve fazer a contestação por escrito, como

eles pedem, organizar os documentos oferecidos como prova, ainda

como eles exigem, arrumar as testemunhas e esperar pela absolvição.

 —  Absolvição!?  —  explodiu Jorge.  — Devo contestar por escrito

para ser absolvido? E isso? Absolvido de quê?  —  Jorge espumava,

berrava.  —  Oferecer documentos como prova? Prova de quê? Não vou

escrever porra nenhuma, não tenho por que fazer contestação... Não

sou nenhum moleque! O que eu vou fazer, isso eu já sei. Vou procurar o

Walter da Silveira. Ora! Absolvição! Vou mostrar a eles a absolvição!  —  

esbravejava Jorge.

 Jorge voou para o telefone. Falou com Walter, que se inflamou

em seguida. Velho amigo, advogado trabalhista, conceituado e temido,

Walter da Silveira brigava e não perdia causas, sempre ao lado do

empregado contra o empregador. Desta vez faria uma exceção, o caso

era muito especial, defenderia o empregador, no caso seu amigo Jorge

Amado, vítima de um juiz cretino. Resolvo esse caso com um pé nas 

costas, deixa comigo. Queria saber de qual junta viera a convocação. Ao

tomar conhecimento, deu um berro, conhecia muito bem o juiz, um

cretino, seu desafeto, ele ia ver o que era bom. Combinaram um

encontro para mais tarde, ele não devia se preocupar.

Mais tranqüilo, Jorge nos contou, com todos os detalhes, sua

conversa com Walter.

 —  E o que é que você  acha que ele vai fazer?  —  quis saber

Carybé.

 —  Acabar com esse juiz. Walter é inimigo dele. Disse ter sido

muito sacaneado por ele, e que agora chegou a sua vez de tirar a forra.

Vai até ao governador se for preciso.

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Carybé se despediu, Nancy o esperava em casa, devia levar

Sossó e Ramiro à escola. Antes de sair, me fez um sinal para que o

acompanhasse até a porta.

 — 

Olha, comadre — 

recomendou-me, apressado — 

, diga a Jorgeque desista do Walter.

 —  Desistir do Walter, por quê?  — me admirei.

 —  Olha, não vá contar nada pra ele, isso é uma brincadeira

minha, de Tibúrcio e de Gisela.  —  Assim dizendo, saiu apressado, me

deixando sem ação.

REVANCHE

Se Carybé pensava que eu ia guardar segredo, mancomunar-me

com ele contra Jorge, estava redondamente enganado. Jorge precisava

saber, o quanto antes, que tinha caído que nem um patinho no trote de

Carybé. Precisava acabar, o quanto antes, aquela agonia. E foi o que fiz,

contei-lhe tudo em seguida:

O que é que você está me dizendo? Carybé? Coisa de Carybé? 

Ora! Só podia ser coisa dele mesmo e eu, idiota, fui cair nessa! ,

enfureceu-se Jorge, ao saber de tudo. Carybé me paga, ele vai me pagar 

caro! Que miserável! Armou tudo direitinho, até uma jaca me trouxe para 

estar aqui no momento, gozar com a minha cara, se divertir à minha 

custa... que miserável.', repetia. Falou até em absolvição... E onde é que 

ele foi buscar o papel timbrado da Justiça do  Trabalho? Só pode ter sido

obra do Tibúrcio. Ele não te disse que armou tudo com Tibúrcio e Giseía?

Eu até entendo ver Tibúrcio envolvido, advogado, procurador do Trabalho 

com entrada franca no Tribunal... Mas Gisela? O que é que essa gringa,

que mal conheço, tinha que se meter?  

Americana, viúva de José Valadares, conceituado crítico de arte,

Gisela, também pessoa estimada na Bahia, era dona de uma escola de

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inglês, a EBEC. Entre tantos amigos era íntima de Nancy e Carybé.

Dagmar Barreiros, mulher de Tibúrcio, era sócia de Gisela, ambos

igualmente amigos do casal. Segundo me contou Nancy, de um

encontro da turma e de conversas sobre a volta de Jorge para a Bahiafoi que surgiu a idéia de lhe pregarem uma peça.

  Jorge dava tratos à bola, a vingança devia começar o quanto

antes:

 —  Fale com Carybé ou Nancy, com Nancy até é melhor. Não

diga que me contou e confirme a minha ida com o Walter ao Tribunal.

 —  Você não vai falar com o Walter?  —  perguntei, já sabendo a

resposta.

 —  Claro que vou falar com Walter, ou você acha que eu não

devia falar?

 Jorge continuava muito nervoso, agitado, e eu tratei de sair de

baixo:

 —  Vou dar um tempinho, o tempo de Carybé chegar em casa,

para então telefonar.

Ao saber que tudo não passara de um trote de Carybé, Walter

ficou desolado, perdia a chance de arrasar o juiz. Prometeu sigilo, com

muito prazer ajudaria Jorge a dar uma lição ao sacripanta.

Não foi preciso eu chamar, Nancy telefonou nos convidando para

  jantar em casa deles. Carybé tomou do fone, queria saber das

novidades. Tudo na mesma, compadre, e não adiantei mais nada.

Convidados também para jantar lá estavam os componentes do

complô:   Tibúrcio com Dagmar e Gisela, que foi ao encontro de Jorge,

toda fagueira:

 —  Mas que chateação, hem, Jorge? Carybé me contou tudo.

Agora me diga, cá entre nós, você pagou ao jardineiro?

Gisela nem sonhava com quem estava se metendo. Tive medo de

que Jorge explodisse, mas ele manteve a linha. Essa vai pagar caro,

pensei.

Carybé e Tibúrcio me chamaram em particular, no quarto,

estavam doidos por notícias. Tibúrcio apavorado com o que podia lhe

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acontecer caso descobrissem o seu envolvimento na trama, a folha

surrupiada do Tribunal, a falsificação da assinatura do juiz. Antes que

me perguntassem algo, me adiantei:

 — 

Olha, compadre, não consegui convencer Jorge a desistir deWalter. Já está tudo combinado, eles vão juntos ao Tribunal, amanhã

cedo. Jorge resolveu ir também para dizer as últimas ao juiz, ele está

furioso.

  Tibúrcio ria amarelo, Carybé sem saber que rumo dar aos

acontecimentos.

 —  E se eu mesmo falar com o Walter, disser para ele não ir?  —  

sugeriu Carybé.

 —  Você quer contar a ele que tudo não passou de uma farsa?

 —  É, que tudo não passou de uma brincadeira  — corrigiu ele.  —  

Afinal de contas, o melhor seria acabarmos de vez com esta história e

rirmos todos juntos...

Carybé e Tibúrcio estavam tão agoniados, tão nervosos que

cheguei a ter pena.

Nancy apareceu, Jorge me chamava, queria ir para casa dormir,

precisava levantar-se cedo, marcara encontro com o Walter às sete

horas da manhã. Ao nos acompanhar à porta, Nancy me deu um

particular, desabafou: Carybé  inventa essas brincadeiras... agora está 

sofrendo que nem um danado, não vai dormir esta noite. 

Ao chegarmos em casa, pedi a Jorge que telefonasse,

tranqüilizasse o compadre que de tão aflito podia ter uma coisa... O

castigo dele e de Tibúrcio só vai terminar amanhã, depois da noite 

maldormida, disse. Quanto à Gisela, ela que aguarde. 

Depois da noite maldormida, Carybé apareceu. Fora à casa de

Walter e, como chegara muito cedo, não se atrevera a tocar a

campainha, ficara tocaiando a saída do advogado para o Tribunal.

 Também seu amigo, Walter ouviu a explicação do que já estava farto de

saber, deu o assunto por encerrado. Agora, todo lampeiro, vinha o peste

oferecer seus préstimos a Jorge, podia ajudá-lo a castigar Gisela, a 

danada que teve a idéia da  brincadeira. O santinho  dizia ter apenas

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entrado de gaiato no imbróglio. Jorge fingiu acreditar e tratou de aliciar

o compadre, que lhe daria boa ajuda na trama da vingança.

V ENDETTA  

O anúncio, de três colunas, na primeira página do jornal A Tarde 

dizia:

BOLSAS DE ESTUDO EM UNIVERSIDADE AMERICANA

A escola de inglês, EBEC, na rua João das Botas, emprosseguimento à campanha de intercâmbio cultural Brasil-Estados

Unidos, oferece aos vinte primeiros candidatos que se apresentarem na

manhã do dia 12, segunda-feira, à citada escola, uma bolsa de estudos

de três meses nos Estados Unidos. Passagens pagas, estada e duzentos

dólares por mês. Pede-se levar documento de identidade e diploma de

curso primário. Assinado: A diretora Gisela Valadares.

CONFUSÃO NO CANELA 

A rua João das Botas, no bairro do Canela, amanheceu

congestionada. Centenas de pessoas aglomeravam-se em frente à

EBEC. Candidatos às bolsas de estudo anunciadas em A Tarde, na

véspera, tentavam entrar na escola, falar com os responsáveis. De

 jornal na mão, impacientes, esperavam ser atendidos, porém ninguém

os atendia. A paciência se esgotara havia muito. Chegavam candidatos,

cada vez mais, e o tumulto se generalizava.

Os detalhes do que aconteceu depois, soubemos pelo olheiro 

Carybé que, metido entre o povo, ouvia as reclamações, divertindo-se à

grande. A muito custo consegui entrar na escola. Ao me ver, Gisela,

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  furiosa, gritou: isso é coisa daquele moleque... o moleque era você... dei 

um conselho: ela devia colocar um cartaz fora da poria avisando que as 

vagas já haviam sido preenchidas. Confusão muito grande, as 

 professoras tendo chilique, ninguém sabendo pra que lado se virar, quer saber de uma coisa?, acabei fazendo o cartaz, eu mesmo... amigos são 

 para esses momentos... Os dois compadres riam de se acabar.

 —  Quer dizer que ela estava furiosa? Boa!

 —  Furiosa é apelido. Ela estava desesperada, histérica, com

medo de que o povo invadisse a escola, rebentasse aquilo tudo... E

quase invadiram mesmo. Não chegaram a forçar a porta mas

ameaçaram, gritaram, disseram todos os desaforos que você pos* sa

imaginar.

 —  Agora só está faltando o último detalhe da vingança  — disse

 Jorge.

 —  Qual é o detalhe, compadre? Você não acha que já está bom?

 —  Eu só quero ver a cara dela quando chegar a cobrança do

anúncio, ou você esquece que ele foi feito em nome dela?

Sobre esse detalhe também tivemos notícia: ao atender o

funcionário de A Tarde com a nota de cobrança do anúncio, de dez mil

cruzeiros, Gisela endoidou: Vá cobrar daquele vagabundo do Jorge 

Amado!  Acabou pagando. Ainda um inesperado arremate da vingança,

detalhe que não entrara no esquema do plano: pressionada com ameaça

de processo, por candidatos de maus bofes, Gisela viu-se obrigada a dar

três bolsas de estudo na própria EBEC, em Salvador.

O ARQUITETO 

A casa do escultor Mário Cravo, no Rio Vermelho, era ponto de

reunião de intelectuais da Bahia e dos que vinham de fora. Rodeada de

um grande terreno repleto de esculturas do artista; casa iluminada,estava sempre aberta para receber a quem lhes batesse à porta. Íamos

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freqüentemente à casa de Lúcia e Mário.

Lá nos reuníamos com Mirabeau Sampaio, Carybé, Jenner

Augusto, para grandes papos e gostosas gargalhadas. Foi na casa do

escultor, em janeiro de 1962, que conhecemos Gilberbet Chaves, joveme talentoso arquiteto. Esta é a pessoa indicada para reformar a casa de 

vocês, disse Mário, ao nos apresentar ao moço e a Sônia, sua noiva.

Mário admirava o trabalho e a competência do jovem.

Devíamos voltar para o Rio depois das férias dos meninos. Nesse

movimentado ano da Copa do Mundo, no Chile, tínhamos programado

uma viagem a Cuba, devíamos partir em maio. Não podíamos pensar

em obras naquele ano, certamente as faríamos em 1963. Enquanto isso,

manteríamos uma na vete entre Rio de Janeiro e Bahia e os meninos

continuariam estudando no Andrews por mais um ano.

Gilberbet Chaves comprometeu-se a nos apresentar um projeto

para a nossa aprovação, trataria do assunto com cuidado e carinho,

faria o estudo com calma, já que não estávamos apressados.

As BANANAS DE PERNAMBUCO 

Mesmo no desconforto da casa, havíamos convidado Dóris, Paulo

Loureiro e as duas meninas para as festas do 2 de fevereiro.

Felizmente Zuca já nos dera sinal verde para recomeçar a

plantação. Ele continuava se ocupando dos formigueiros da vizinhança,

não deixaria que elas voltassem ao nosso terreno.No Instituto Biológico da Bahia, compramos plantas, muitas

plantas, mudas já crescidas. Contratamos Zuca como jardineiro

esperando que, sob a nossa orientação, ele desse certo. Jardineiro

inexperiente, porém bom matador de formigas, boa pessoa.

Estava Zuca na lida de plantar bananeiras, quando chegou a

família Loureiro. Paulo vinha disposto a descansar, deitar-se numa

rede, curtir a preguiça. Encontrou em Zuca a pessoa ideal para umaconversa fiada.

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 —  De que qualidade são essas bananeiras que você está

plantando?  — perguntou Paulo a Zuca.

 —  Aqui tem banana de toda a marca, doutor: prata, ouro, maçã,

da-terra, São Tome... —  Só essas? Em Pernambuco nós temos muito mais. Por

exemplo: temos a banana de canudo, você conhece a banana de

canudo? Pois é uma que se espreme com as mãos e depois se toma o

suco de canudo, feito refresco. Você não conhece?

Zuca sorriu:

 —  Doutor Paulo é tão interessante...

 —  E a banana de metro, a que cresce até arrastar no chão?

Outro sorriso:

 —  Essa também não, doutor Paulo.

 —  E a de saca-rolha? Uma beleza ver as bananas

encaracoladas...

Educado, Zuca apenas esboçou um sorriso: Ai, doutor Paulo! 

2 DE FEVEREIRO 

A festa do 2 de fevereiro era novidade para Dóris e Paulo. De

nossa casa podia-se ouvir a música, assistir a tudo do alto, mas

preferimos participar de perto, sentir o calor do povo, falar com as

pessoas. Entramos na fila para levar flores a Yemanjá, comemos abará

e o delicioso acarajé frito na hora, no azeite-de-dendê, pelas baianas de

roupas bordadas, alvas, impecáveis. Mãos hábeis giravam a grande

colher de pau no caldeirão de alumínio a bater a massa do acarajé, o

odor da cebola dourada no azeite fervendo, espalhando -se pela praça,

subindo por nossas narinas. Nas barraquinhas de bebidas e peixe frito,

o povo abrigava-se do sol, descansava, emborcava sua cerveja, batia

papo, cantava. Nos sentamos numa barraca, escolhemos uma que dava

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sobre o mar: de lá podíamos receber a doce brisa, ver o movimento dos

barcos recebendo os presentes, podíamos ouvir conversas divertidas e

acompanhar os passos de nossos filhos que, enturmados com

Mariozinho Cravo, Maria de Mirabeau e Sossó de Carybé, seespalhavam no meio da folia.

Os Loureiro haviam chegado por uma semana apenas,

desejavam assistir à tão falada festa de Yemanjá, cantada por Dorival

Caymmi, exaltada por Jorge Amado. Regressavam encantados,

aproveitariam ainda uns dias de férias em Maria Farinha, onde Amaro

Amarelo os aguardava com varas de pesca e anzóis.

Da próxima vez viriam também os Antunes, para férias

completas.

VIAGEM A CUBA 

O convite partira de Nicolás Guillén, poeta cubano, maravilhoso,nosso compadre e amigo, companheiro de imensas viagens por esse

mundo afora. Proibido de viver em Cuba durante o governo de Batista,

vivera perambulando pelo mundo, viera algumas vezes ao Brasil,

regressara à sua pátria somente após a vitória de Fidel Castro. Ocupava

um alto posto no Ministério da Cultura e nos convidara para visitar

Cuba, a nós, a Carybé e a Nancy.

Saímos do Rio de Janeiro no mês de maio, para Cuba, devendomudar de avião no México. Desembarcamos no aeroporto da Cidade do

México, escala para Havana. As autoridades policiais examinaram

nossos passaportes e mandaram que esperássemos um momento e,

sem nenhuma explicação, nos fotografaram de frente e de perfil. A

marca do Zorro, disse Carybé, ironizando. Acabamos de ser fichados pelo 

FBI, afirmou Jorge, não escondendo o seu desagrado.

A emoção de ir a Cuba, conhecer de perto esse país tão atacadopor uns e louvado por outros, acrescentávamos o prazer de rever nossos

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compadres Nicolás e Rosa, sua mulher. Não permitimos que a violência

sofrida ao chegarmos ao México viesse perturbar nosso entusiasmo.

Nosso hotel era o Rivera, gigantesco, luxuoso, construído para

receber milionários americanos, hospedava agora delegações desindicatos operários de todas as partes do mundo, hospedava pessoas

que jamais haviam entrado num hotel dessa categoria a não ser para

trabalhar. Nele continuavam os mesmos móveis de sua inauguração, os

mesmos quadros, porém sem o mesmo cuidado.

De seu quarto, no andar acima do nosso, Carybé telefonou.

Subam um momento, 

O que seria que o compadre havia descoberto? Subimos,

curiosos.

 —  Espiem só. — Apontava um quadro, o maior entre vários

pequenos.

 —  Uma natureza-morta. E daí?  — disse Jorge.

 —  E daí? Se aproxime, repare bem.

A essa altura eu já estava junto do quadro. Inúmeras

assinaturas e frases ali rabiscadas sobre o colorido das rosas e das

orquídeas da natureza-morta indicavam a identidade dos hóspedes que

nos haviam antecedido. Espie aqui, Carybé apontava um coração

atravessado por uma flecha, amor de Alméria e Ricardo. Havia frases:

Estive aqui  e gostei João P. dos Reis; Amor de Rosália Perez e Daniel; 

Viva el proletariado!, Abajo el sangriento Batista, assinado Juanito, él 

  justicero. E aqui, neste cantinho, vocês não viram nada? No cantinho

indicado pelo compadre, um lindo anjinho, nas mãos um pergaminho

com assinaturas: Nancy e Héctor Júlio.

 —  Por que você não assinou Carybé, compadre? Teve medo?

 —  Porque não sou besta. Carybé todo mundo sabe quem é,

Héctor Júlio ninguém conhece, não sabem que sou eu. No quarto de

vocês também tem quadros escritos?

Não havíamos reparado, mal tivéramos tempo de abrir as malas.

Nicolás nos deixara no hall do hotel, voltaria para nos apanhar dentro

de uma hora.

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Os quadros autografados não eram um privilégio de Carybé, nós

também tínhamos vários quadros em nosso quarto, mas o preferido

para as assinaturas era o maior, também uma natureza-morta.

Antes que pudéssemos impedi-lo, Carybé sacou do lápis, riscouuma caricatura de Jorge, nu, segurando um coração e dentro do

coração: amor de Zélia e Jorge Amado. Mais respeito, Carybé, estamos 

num país..., não encontrava um adjetivo à altura de Cuba, num país...

civilizado, acabei dizendo, e você não vai fazer das suas. Carybé ria de

se acabar, Jorge também ria, Nancy, a mais comportada, ria menos.

 TíQUETES PARA AS REFEIÇÕES

Acompanhado de uma secretária, Nicolás nos trazia o programa

de nossa estada em Havana.

 — Vocês vão receber, estão aqui neste envelope, os tíquetes para

as refeições. Vocês sabem que estamos em situação difícil, sabotadospelos Estados Unidos que nos fecharam as portas e nos isolam.

Estamos num momento de restrições, vocês vão receber os mesmos

tíquetes que todo mundo recebe. Nada de privilégios, tudo muito

democrático.

 —  Quer dizer que cada cidadão cubano recebe tíquetes para

comer?  — perguntei.

 —  Isso mesmo, comadre, aqui ninguém passa fome..

PASSEIO A PÉ PELO CENTRO 

Saímos andando pelas ruas do centro, e, confesso, fiquei

chocada com a falta de conservação das casas: descoloridas,

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abandonadas, pintura e reboco caindo. Poucos automóveis circulavam,

em geral veículos antigos, americanos, caindo aos pedaços, muita gente

nas ruas. Passou por nós um caminhão cheio de homens cantando. São 

voluntários que vão cortar cana, explicou Nicolás, muita gente desertou,estão faltando braços para trabalhar. 

A cada observação nossa, Nicolás dava explicações, aliás, para

todos os problemas, quase a mesma explicação: falta de divisas, falta de

braços, não ter a quem comprar. Não se pode gastar divisas comprando 

tinta para pintar as casas e deixar de comprar monumentos para 

alimentar o povo... não temos peças de reposição para os automóveis,

nem podemos importar carros novos. Os que aí estão, se não houver um 

recuo dos Estados Unidos, vão acabar e não haverá outros para 

substituí-los. 

Nicolás fez questão de nos levar à Bodeguita del Médio, célebre

taberna, no centro de Havana, onde artistas se reúnem para tomar um

trago, conversar, cantar, tocar violão. Nicolás sempre nos falava da

saudosa Bodeguita, quando juntos viajamos pela China, Mongólia,

União Soviética, Tchecoslováquia, França.

Recebido com ovação pelo pessoal da tasca, don Nicolás pra cá,

don Nicolácito pra lá... Pedimos ao jovem que dedilhava um violão que

cantasse a música sempre cantarolada por Nicolás em viagens, música

que ficara em meus ouvidos: Me voy al pueblo / I hoy es mi dia / me 

voy al centro llenar la calavera... la-ra-la-la, la,la,la,la,la,la... Gostou,

comadre? Estávamos os dois emocionados.

Para o trago não eram necessários tíquetes, para o tira-gosto, de

pão e salame, sim. A maioria dos restaurantes havia fechado suas

portas. Nicolás apontou para um restaurante adiante, no outro lado de

uma praça: Naquele se come divinamente... se come?, corrigiu rindo,

mia, se comia. Sempre rindo, Nicolás explicou: Já não se pode comer lá,

está fechado. 

Almoçamos numa tasca popular — popular como todas as que

existiam em Havana  — , cada cliente de tíquete em punho. O menu era

simples porém gostoso, pareceu-me estar comendo numa casa

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brasileira: arroz, feijão, legumes, um ovo frito, um bife, prato feito sem

direito a pedir bis. Quanto damos de gorjeta?, quis saber Jorge. Aqui as 

  propinas são malvistas. Guillén se pôs a rir, tenho uma história que 

vocês vão gostar de ouvir: Sempre dei a meu peluquero, o que corta meus cabelos há muitos anos  —  já cortava antes de meu exílio  — , um dólar de 

 propina. Depois que surgiu a moda de que a propina humilha o homem,

resolvi entrar na onda, cortei a gorjeta do pobre, repetindo a lição: a 

  propina humilha o homem. Ele não se deu por achado e, com muito 

espírito, estendeu a mão: pois humilha-me, humilha-me muito, Nicolazito,

humilha-me com um dólar... 

Entre os tíquetes do envelope, Carybé descobriu que havia umpara la merienda. Entusiasmou-se: onde é que podemos comer a 

merienda ? Em qualquer lugar, sobretudo no bar do hotel onde vocês 

estão, disse Nicolás.

Nicolás e Rosa nos levaram a conhecer a famosa casa de

espetáculos de Havana, o cabaré Tropicana. Nas suas luxuosas

instalações já não funcionava o jogo, já não se exibiam, em seus palcos,

em shows memoráveis, grandes artistas e cantores de renome universal,

não são mais contratados nem grandes nem pequenos artistas, nos disse

Rosa, com pesar. Vocês vão ver. 

O majestoso Tropicana, com o cassino que atraíra milionários de

Miami, vindos em seus aviões particulares, para o jogo e em busca de

aventuras amorosas, esse já não existia. Isto aqui virou uma bela 

esculhambação, definiu Carybé. Não é à toa que os americanos estão 

 furiosos contra Fidel Castro, concluí.

Os garçons, vestidos cada qual de seu jeito, circulavam, davam

palpites enquanto serviam aos clientes, na maior esculhambação, como

repetia Carybé, divertido. Os cantores que se exibiam não sabiam para

onde ir. Apareceu no palco uma jovem russa, funcionária de um

escritório comercial soviético. Desafinada como ela só e encabulada

também como ela só, a moça cantou uma canção russa, a voz

esganiçada de fazer pena. Pra cantar como ela, até eu, disse Nancy,

horrorizada. Una verguenza, resmungou Rosa, entre o envergonhado e o

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revoltado, habituada que era aos grandes espetáculos na Europa e

também aos de Cuba, de antes da Revolução. O garçom que nos servira

o cuba-libre arregalou os olhos, empertigou-se ao receber das mãos de

Carybé uma gorjeta: Thank you! Esse voltou às grandes noitadas americanas, ironizou Jorge.

Os PROGRAMAS 

  Já tínhamos visto alguns problemas e restrições do país. Os

programas que íamos cumprir, organizados oficialmente, mostravam olado positivo, as coisas boas do regime.

Visitamos uma creche-modelo, para crianças filhas de

trabalhadores. Como esta existem muitas, nos explicou a moça que nos

acompanhava. Enquanto as mães trabalhavam os filhos eram cuidados

por pessoas competentes, em ambiente confortável, alegre. Carybé

sentou-se em meio às crianças e fez vários desenhos atendendo aos

seus pedidos: una cabra, un perro, una casita con el sol... De repenteCarybé bateu no relógio: Esta na hora, são 3:30, hora de l a merienda  —  

a merenda consistia num copo de refresco e uma fatia de queijo. Jorge

levantou-se: Precisamos ir, não era pela merienda que ele se despedia,

lembrara que tinha um compromisso às quatro, ia dar uma entrevista

coletiva na Casa de Ias Américas.

Passamos duas semanas visitando o que nos mostraram e o que

quisemos ver.Gostei de visitar as casas de camponeses que antes viviam em

taperas. Mi casa era tan chica que solo una rueda de la bicicleta entraba 

en ella, la de detrás se quedaba fuera, contou-nos um trabalhador, cuja

casa de duas peças, cozinha e jardinzinho, visitávamos.

Numa das casas que visitamos nos recebeu uma jovem

camponesa, tipo de beleza cigana, de olhar e lábios provocadores,

extraordinária. Acompanhada de violão, ela nos cantou uma canção.  Jorge e Carybé perderam as estribeiras diante do encanto da jovem.

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Entreolharam-se: Que coisa! hem, compadre!, gemeu Jorge, sem ligar

para o beliscão que lhe ferrei. Maravilha!, concordou Carybé, sem

pressa de ir embora, pedindo à moça que cantasse mais.

Visitamos também as aldeias de pescadores. Não era hora depesca e os encontramos consertando redes nos alpendres de suas casas

novas. Sentimos que alguns deles não se mostravam entusiasmados

com a mudança de vida. Acostumados a viver em choupanas, em casas

miseráveis, não achavam necessário manter a casa limpa, arrumada e,

sobretudo, receber a visita das chicas, as educadoras voluntárias que os

visitavam periodicamente para ver se tudo estava em ordem, para

ensinar-lhes a viver na limpeza, a lidar com o fogão, a utilizar a privada,

a conservar a casa. Não necessito de tanto luxo, prefiro viver em paz...

Guillén fez questão de ir conosco, numa viagem de cerca de 150

quilômetros, à Baía de los Porcinos, a tão falada Baía dos Porcos onde,

havia um ano, fracassara uma tentativa de Invasão a Cuba. Desertores

cubanos, treinados pela CIA na Guatemala, haviam saído da Nicarágua

em grandes barcos, para desembarcar na Playa Girón. Nessa tentativa,

combate de apenas dois dias, morreram dezenas de pessoas e foram

aprisionadas cerca de 1.200. Isso ocorrera havia um ano e agora Nicolás

nos levaria até lá.

O que desejava nos mostrar Nicolás de tão surpreendente nesse

malogrado campo de batalha?

De longe avistamos uma longa e larga faixa colorida, cores

vibrantes, que se movimentava. A medida que nos aproximávamos,

pudemos distinguir milhares de caranguejos amarelos, vermelhos,

azuis, cobrindo a abandonada pista de asfalto. Saídos do mangue, ao

lado, pareciam vir ao nosso encontro, andando, ligeiros, nas patas

traseiras, as dianteiras levantadas, verdadeiros fantasminhas,

oferecendo um espetáculo único, inesquecível. Somente um poeta como

Nicolás Guillén poderia ter se empenhado tanto para mostrar essa

maravilha aos amigos.

Ainda faríamos uma visita oficial: visitaríamos, no cemitério de

Havana, o túmulo dos Mártires da Pátria, tombados na Baía dos Porcos.

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  Jorge tem horror a cemitérios, evita sempre ir a enterros, mas

não pôde dizer que não ia e lá fomos.

O velho guia, antigo guarda do cemitério, foi muito recomendado

ao ser escalado para acompanhar os tão importantes hóspedes; a ordemera de nos levar e mostrar o que havia de mais importante no Campo

Santo. Ora! Se era para mostrar o que havia de mais importante, o

velhinho não teve dúvidas, mostraria o melhor: levou-nos ao túmulo do

fundador do rum Bacardi. Lá estava ele, de pé, el senor Bacardi, corpo

inteiro, num pedestal sobre o túmulo, em escultura de bronze. Reparen 

en los anteojos, entre orgulhoso e encantado o guia apontava com o

dedo um par de óculos colocados sobre o nariz de bronze do falecido:

Miren, anteojos autênticos, los mismos que el usaba en vida, disse, a

admiração estampada no rosto.

  Jorge deu por terminada a visita ao cemitério. Batemos em

retirada. Felizmente, o mausoléu dos Mártires da Pátria ficava em nosso

caminho, pudemos vê-lo de relance, cumprir nossa missão. Tratava-se,

sem tirar nem pôr, de um mausoléu igual a tantos que já havíamos

visto em visitas oficiais em várias partes do mundo. Ao contrário do que

imagináramos, a ida ao cemitério não foi aborrecida, até nos divertiu.

ABAIXO O ANALFABETISMO!

Rosa Guillén queria nos oferecer um almoço antes que nosfôssemos mas estava tendo dificuldades. Esperava que o genro, médico

que trabalhava num povoado, viesse passar o fim de semana em casa e

trouxesse a encomenda que ela lhe fizera. No povoado ele conseguiria

obter uma galinha, um patinho, talvez alguns ovos para melhorar o

almoço.

 Tínhamos visto Rosa apenas uma vez, na ida ao Tropicana. Ela

andava ocupadíssima, empenhada na campanha de alfabetização dopaís, campanha que era levada a sério. Qualquer cubano alfabetizado

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deveria ensinar ao menos uma pessoa a ler e a escrever. Rosa visitava

casas, descobria analfabetos por toda a parte, providenciava escolas e

professoras, ficava responsável pelas pessoas cadastradas por ela.

Orlando, neto de Guillén, de quatorze anos, integrava uma brigada de jovens estudantes escalada para ensinar em povoados pobres, próximos

a Havana. Ele ficaria um ano sem estudar, recuperaria depois. O genro,

médico, como já disse, fora mandado para um povoado que antes nunca

vira a cara de um doutor. Mucho sacrifício, nina, disse Rosa num

suspiro, pero no es lo que queríamos? Agora ela esperava a chegada do

genro para poder marcar o almoço.

O apartamento dos Guillén, no 25º. andar de um edifício no

Vedado, bairro de gente rica em outros tempos, era amplo, arrumado

com bom gosto. A vista do alto era deslumbrante. Tudo muito bonito,

  porém quando falta energia elétrica quem é que vai subir vinte e cinco 

andares? Temos apenas um elevador funcionando e às vezes nem ele 

 funciona. A vizinhança é barulhenta, queixou-se Rosa, a maior parte dos 

moradores é de jovens que vêm de fora para estudar e eles não têm a 

mínima noção de higiene, jogam lixo nos corre' dores, riscam os 

elevadores, estragam tudo e a gente nem pode se queixar. Pessoas que 

viviam feito bichos, sem nenhuma noção de higiene, não podem aprender 

de um dia para o outro... às vezes não aprendem nunca, não é verdade? 

Existem grupos de educadoras sanitárias para ensiná-los a conviver com 

a limpeza, mas o número de alunos ainda é muito grande para as poucas 

  professoras. Só neste edifício vive mais de uma centena de rapazes e 

moças. Rapazes e moças considerados inteligentes, capazes de cursar 

uma escola superior. Esses deixaram de cortar cana.

O ALMOÇO DE ROSA 

A mesa de Rosa estava um primor. Toalha bordada, copos decristal, flores no centro da mesa. Rosa se virara para obter, com os

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restritos tíquetes da família, o material para fazer o almoço. Completado

com o frango e o patinho trazidos pelo genro, ela nos apresentava agora

uma bela mesa. Conseguira até espigas de milho e frutas.

Ao entrar na sala de jantar, diante da mesa posta, Guillén seentusiasmou: Que maravilla, Rosita! Me parece que hemos volvido a los 

sangrientos dias de Batista! 

CANDOMBLÉ 

  Jorge quis assistir a um candomblé e eles disseram que não

havia candomblés em Cuba. Num discurso de despedida, para uma

grande platéia de intelectuais e de leitores seus, Jorge disse o quanto

lamentava não ter encontrado um terreiro de candomblé em Cuba, o

quanto repudiava o sectarismo e que não concordava com qualquer

restrição religiosa, fosse ela qual fosse.

Viemos assistir a um candomblé em Havana alguns anos mais

tarde, em 1986, ao voltarmos a Cuba quando Jorge presidiu o Festival

de Filmes Latino-Americanos.

Peço licença para me adiantar nos anos e contar um episódio

sucedido durante o Festival de Filmes Latino-Americanos.

O júri do Festival, presidido por Jorge Amado, era formado de

personalidades literárias da América Latina.

Depois de vistos todos os filmes concorrentes, o júri reuniu-se

para decidir a premiação. A reunião durou um dia inteiro. Já no fim da

tarde chegaram a um acordo sobre os vencedores. A resolução seria

anunciada, em ato público, no dia seguinte. Nesse mesmo fim de tarde

haveria uma grande recepção oferecida ao júri e a personalidades

presentes, vindas a Cuba para a instalação da Escola de Cinema, nas

proximidades de Havana. Entre tantos, recordo-me de Harry Belafonte,

Gregory Peck, Gabriel Garcia Márquez.

Estávamos na festa quando surgiram, afobados, dois cidadãos

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querendo falar com Jorge. Vinham diretamente do aeroporto, traziam

um filme, um curta-metragem que deveria concorrer. Por mil motivos,

haviam chegado atrasados e não se conformavam de saber que o

  julgamento do prêmio já estava encerrado, insistiram. Tratava-se dedois brasileiros, gaúchos, que traziam o curta-metragem de Jorge

Furtado e José Pedro Goulart: O dia em que Dorival encarou o guarda. 

Felizmente todos os juizes estavam na festa e Jorge falou a

todos, convenceu-os a fazer uma sessão extra, assistir ao filme.

Resolveram assisti-lo naquela mesma noite, e quando chegamos

 —  eu acompanhara Jorge a todas as sessões  —  foi feita uma pergunta:

O   filme está dublado? Não estava. Não sei qual a razão, mas nós

brasileiros entendemos o espanhol mas eles não entendem o português.

O impasse fora criado: Como   julgar um filme sem saber o que dizem?,

argumentou um dos juizes. Foi aí que eu tive uma idéia: juntei

atrevimento e coragem e me ofereci: Eu traduzo. E traduzi, mal e

porcamente, mas traduzi e eles entenderam tudo. O dia em que Dorival 

encarou o guarda  ganhou, merecidamente, nesse festival, o primeiro

prêmio de curta-metragem.

Outras histórias dessa viagem, quando tivemos um encontro

com Fidel Castro, ficam para serem contadas em outra ocasião, se

houver outra ocasião, não quero me distanciar ainda mais da Casa do

Rio Vermelho.

COPA DO MUNDO DE 1962

 Junho se aproximava, e com ele a Copa do Mundo no Chile. Em

Cuba, nem uma notícia, nem se falava em futebol. Apaixonados por

futebol, Jorge e eu estávamos na maior inquietação, loucos por notícias

da seleção: o que faziam Pele, Garrincha, Didi, Zagalo? Na televisão o

que mais transmitiam eram discursos políticos, palavras de ordem,

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palestras culturais, música clássica... Tudo muito educativo, educativo

demais para nosso gosto, sobretudo no momento em que estávamos

ansiosos por um futebolzinho, ter notícias da Copa do Mundo, prestes a

começar.No regresso ao Brasil, faríamos escala em Lima, não iríamos via

México. O plano de Nancy era desembarcar em Lima, passar uma

semana com sua irmã que vivia no Peru. A irmã de Nancy nos

convidara e eu me entusiasmara, não conhecia o Peru e essa era uma

boa oportunidade. E a Copa do mundo? Você não quer assistir?, revidou

  Jorge diante de minha insistência. Não houve argumento que o

convencesse, queria sentar-se diante da televisão, na casa dele, não

perder um só jogo. Foi assim que, por causa da Copa do Mundo no

Chile, em 1962, perdi a chance de conhecer Lima.

DOUTOR MIRABEAU 

O ano terminava, novamente chegavam as férias dos meninos.

Da Bahia os amigos nos chamavam, o arquiteto Gilberbet Chaves

queria nos mostrar o projeto da casa.

Presos por compromissos no Rio, resolvemos mandar João Jorge

e Paloma na frente. João se hospedaria na casa de Norma e Mirabeau

Sampaio, Paloma, na de Dorothy e Moisés Alves, fazendeiro de Itabuna,

amigos nossos, a filha mais velha, Balbina, e a sobrinha, Yeda,enturmando com Paloma. João se enquadrava bem na casa de Norma,

enturmava com Arthur e Maria, os filhos e, sobretudo, adorava bater

papo com Mirabeau, ouvir dele as histórias, contadas com graça, dos

tempos em que Jorge era menino. Amizade de infância, Mirabeau sabia

de todas as peraltices do colega no colégio interno, as contava e João o

ouvia fascinado.

Formado em medicina, para fazer o gosto do pai, fabricante decalçados, dono de uma sapataria na cidade, Mirabeau nunca clinicou,

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teve um consultório bem montado, no centro, quando solteiro, que

servira, sobretudo, como garçonnière, para encontros amorosos. Do bem

montado e bem localizado consultório serviam-se também os amigos.

Para não dizer que Dr. Mirabeau nunca teve clientes, teve um:passageiro de navio francês que ancorara na Bahia, o cidadão sofreu

um desarranjo intestinal enquanto passeava pelas ruas de Salvador e,

quando sentiu a segunda eólica, bateu os olhos, por acaso, numa placa:

Dr. Mirabeau Sampaio, clínica geral. Ainda bem que encontrara um

conterrâneo, pelo nome devia ser francês: Mirabeau. Não teve dúvida,

entrou, bateu à porta do consultório. Mirabeau o atendeu e lhe deu

uma amostra grátis do medicamento que convinha a seus males. Não

cobrou a consulta. E nunca mais atendeu ninguém.

Mirabeau não exerceu a medicina. Após a morte do pai, herdou o

negócio de calçados, foi comerciante de sapatos durante muitos anos.

Comandou tão bem e com tal tino os negócios que acabou dono de uma

rede de sapatarias na cidade. Essa, porém, não era a sua profissão.

Sensibilidade e gosto artísticos não lhe faltavam, Mirabeau tornou-se

um artista da goiva e do pincel: escultor e pintor admirado e respeitado,

professor da Escola de Belas Artes.

DONA NORMA 

Norma, mulher de Mirabeau, era a pessoa mais encantadoradeste mundo, alegre, sempre disposta a ajudar a quem lhe batesse à

porta, a animação em pessoa. Peço licença para contar apenas uma

história dela, contar um pouco de Norma.

Quem um dia ler o romance de Jorge Amado Dona Flor e seus 

dois maridos, não deixe de observar o personagem, Dona Norma, que

outra não é senão a própria Norma Sampaio, copiada com maestria,

sem desprezar detalhes, pelo escritor.Ao lado da rua Ari Barroso, no Chame-Chame, onde moravam os

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Sampaio, existia uma favela, pobre, miserável, o Rancho Fundo. Os

habitantes dessa favela adoravam Norma, e sempre que precisavam de

um socorro recorriam a ela. Certa vez, Caminhão, morador do Rancho

Fundo, trabalhador do cais do porto, foi ouvido, referindo-se à Norma:Dona Norminha é a pessoa mais porreta desta rua, fala com a gente como 

se a gente fosse igual que ela, prestativa como ela só, mulher educada 

está aí... filha de família rica, avô senador, não tem o nariz levantado...

Esta gente aí, apontara uns sobrados da rua, do alto de suas 

rnerdacências não valem os seus cocores. 

Nessa mesma favela do Chame-Chame morava seu Antônio,

conhecido como seu Antônio Cozinheiro. Naquela época, os bons

restaurantes eram raros, em geral ninguém convidava ninguém para

comer em restaurantes, convidavam para comer em luas casas, a

mulher se desdobrando na cozinha.

O Conquistador, na Barra Avenida, não chegava a ser um

restaurante, era uma bodega popular, onde o prato de resistência era

uma galinha assada. O cozinheiro, seu Antônio do Chame-Chame, não

dava a receita por nada deste mundo, não explicava como conseguia

fazer uma galinha tão dourada e tenra, tio saborosa.

Formavam-se filas na porta de O Conquistador, candidatos I tal

galinha maravilhosa, aguardavam a vez. Maridos que nunca haviam

levado as mulheres a restaurantes, as levavam na esperança de que,

vendo e saboreando o prato, com prática de Cozinha, conseguissem

reproduzi-lo. Foi o caso de Godô, poeta Godofredo Filho, gourmet  pela

própria natureza, que não titubeou em levar ao O Conquistador dona

Carmem, sua mulher. Dona Carmem era conhecida como mãos de fada

no meninico de carneiro, prato difícil à beca de se fazer e que ela fazia

pra ninguém botar defeito. Mulher de olfato fino e paladar refinado,

dona Carmem desvendaria no primeiro pedaço que pusesse à boca.

Inexpugnável segredo da galinha dourada, desfazendo-se de tão macia.

Para decepção de Godofredo e de amigos freqüentadores de sua mesa, a

mestra do forno e do fogão não desvendou o segredo. A galinha que

tentou fazer no dia seguinte, em sua cozinha, ficou a quilômetros de

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distância daquela de seu Antônio.

  Já passava de meia-noite, chovia torrencialmente, quando

Norma despertou com a campainha tocando, gritos no portão

chamando: Dona Norminha, dona Norminha... Era a mulher de seuAntônio, na maior agonia, gritando entre soluços: Meu marido está 

doido, doido de se amarrar! Quebrou tudo dentro de casa. Me ajude,

dona Norminha, me ajude pelo amor de Deus! Mirabeau dormia a sono

solto e, mesmo que estivesse acordado, não ia resolver nada. Norma

telefonou para seu cunhado, o médico Wenceslau Veiga, aconselhou-se.

Chame uma ambulância, disse ele, receitou uma injeção de calmante.

Mas peça para o enfermeiro aplicar antes de levá-lo, recomendou. Não vá se meter a aplicar a injeção. 

Norma não chamou ambulância coisa nenhuma, conseguiu no

armário de remédios a injeção receitada e tocou-se com a pobre mulher

para a favela, tropeçando na escuridão, vou aliviar uma boa alma, não

disse, mas deve ter pensado.

 —  Boa noite, seu Antônio  —  foi entrando e foi dizendo, como se

nada demais estivesse acontecendo.  — O que é que há, seu Antônio?

Sentado num banquinho, no canto do quarto em desalinho, seu

Antônio levantou a cabeça:

 —  Boa noite, dona Norminha.

 —  Então, seu Antônio, o senhor, tão meu amigo e nem pra me

dar a receita da galinha, hem?

Enquanto falava, embebia o algodão no álcool, a seringa em

posição, ordenou: Arregace um pouco a manga, seu Antônio....

 — Pra senhora eu dou a receita, dona Norma  — disse esfregando

o braço, depois da picada da injeção.  —  Logo que fique bom, andei

perturbado, vou até sua casa ensinar.

Dias depois, a crise passada, seu Antônio, que era homem de

palavra, bateu à porta de Norma. Levava consigo uma panela de ferro,

pesadíssima. Um dos filhos, o mais crescido, trazia um fogareiro a

carvão. Só saiu da cozinha de Norma com a galinha pronta, dourada,

cheirando como ela só.

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Naquele dia Mirabeau e a família puderam comer a galinha do O

Conquistador em sua mesa. Naquele dia e nunca mais, pois Norma não

conseguiu fazê-la sozinha. Não adiantava ter os ingredientes, a panela

de ferro, o fogão a carvão; o ponto e a maneira de mexer, sei lá... faziamparte do mistério.

VAMOS L EVANTAR A CASA?

 Jorge chamou os amigos para conosco estudarem o projeto feitopelo jovem Gilberbet. O encontro foi na casa de Mário Cravo. Estavam

todos lá: Carybé, Mirabeau, Jenner Augusto e o próprio Mário. Projeto

interessante, de casa ampla, largos terraços, muita treliça, grades, casa

para o clima da Bahia. Agora era botar mãos à obra. O empreiteiro,

conhecido da turma, se propôs a iniciar o quanto antes, o trabalho ia

ser demorado, a casa atual iria praticamente abaixo. Seria preservada

uma parte para habitarmos durante aquelas férias, voltaríamos ao Rio elá pelo fim do ano estaríamos de casa pronta. As grades ficam por minha 

conta, disse Mário; eu me encarrego de pintar os azulejos, disse Carybé;

eu pinto as portas e os basculantes de vidro, falou Jenner. Por acaso,

naquela noite, encontrava-se na casa de Mário, de quem era muito

amiga, Una Bo Bardi, que viera de São Paulo para a Bahia, contratada

pelo governador do Estado  —  na ocasião, Juracy Magalhães  —  como

diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia. Lina também deu seupalpite: Por que não colocam no piso das escadas e nos caminhos cacos 

de azulejos? Vocês podem conseguir à vontade na cerâmica do Udo. Ele 

tem montes de azulejos quebrados. Tudo que foi combinado nessa noite

foi feito e muito mais.

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GARRINCHA 

As obras começaram, mas, como havia sido combinado, não

saímos da casa. Os meninos continuaram hospedados com nossosamigos e nós, sem cozinheira, passamos a aceitar convites para comer

ora na casa de um, ora na casa de outro.

Como viajamos de avião, deixamos Mane Pato no Rio e sem

automóvel andávamos sempre de táxi, táxi de um só chofer, o Cigano,

um rapaz educado que estava sempre à nossa disposição. Mas não era

suficiente para nós ter apenas o carro do Cigano. Nossa casa ficava

longe de qualquer condução e a ladeira era íngreme. Resolvemos entãocomprar um fusquinha de segunda mão e contratamos Garrincha como

motorista. Garrincha era negro retinto, magrinho, sempre alegre e

surpreendente. Vez ou outra fazíamos pequenas viagens. Gostávamos

de passear pela feira de gado em Feira de Santana, visitar as pequenas

cidades do Recôncavo, viagens de pouco mais de uma hora que

Garrincha não agüentava. Em meio do caminho, aconteceu uma vez ele

parar de repente, encostar o carro: Tô cansado, a senhora passa pra aqui, saltou, deixando o volante à minha disposição. Que fazer? Eu

tomei a direção.

Um dia perguntei a Garrincha:

 —  Você tem namorada, Garrincha?

 —  Tenho, sim senhora  — sorriu  — , ela é tipo balde.

 —  Tipo balde? — me admirei.  — Como é isso? Me explique.

 —  A senhora não sabe? Pois tipo balde é quando a dona é largaem cima e fina nos quartos.

Na convivência com Garrincha e com a lavadeira Antônia,

aprendi muitas coisas do dia-a-dia do povo da Bahia. Antônia chegava e

da porta ia gritando: Ói eu! Um dia, depois de anunciada a chegada, ela

me disse: Vou sair e volto logo. Tenho que dar uma sastifa para uma 

dona. Vendo que eu não entendera, riu: Eu tinha combinado ir lavar na 

casa dela hoje e não posso porque vim aqui, aí vou dar uma sastifa,repetiu, depois explicou: sastifação. 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

No momento de sair para dar a tal da sastifa, Antônia me

advertiu:

 —  A senhora precisa mandar consertar o chuíte do quarto de

passar. Ele está quebrado. —   Chuíte? Que diabo é isso?

 —  A senhora não sabe?  — parou um momento.  — É verdade. A

senhora fala estrangeiro. Pois olhe, dona Zélia, chuíte é  aquele

negocinho que a gente aperta pra acender a luz. Entendeu?

Fiquei sabendo como me referir ao interruptor de luz na língua

baiana. Fiquei sabendo que falava estrangeiro.

UM PRATO ESPECIAL  

Wilson Lins, escritor, romancista, amigo de Jorge dos tempos de

rapaz, nos convidou para almoçar em sua casa. Anita, sua mulher, mãe

de três filhos, era a chamada verdadeira dona de casa, os almoços emcasa de Wilson eram famosos. A paixão de Anita, no entanto, era o

  jardim; semente plantada por ela vingava, as flores de seus potes nas

 janelas tinham um viço especial.

Anita nos apresentou no almoço desse dia um prato diferente,

não era comida baiana. Que coisa é essa que você fez?, estranhou

Wilson. Pois prove e me diga, respondeu Anita. Tratava-se de um bolo de

arroz, com uma abertura no centro, completamente coberto de queijoCatupiry que escorria, brilhante, ainda quente; camarões graúdos,

ensopados em molho de tomate, saindo do centro e espalhados em

torno, prato bonito de se ver, apetitoso e gostoso. Aprovei a novidade

com entusiasmo. Jorge ficou reticente, pois esperava uma comidinha

baiana e, além do mais, detesta queijo Catupiry.

No dia seguinte fomos comer na casa de Giovanni Guimarães,

colega de colégio interno de Jorge. Giovanni e Jacy, nossos compadres,somos padrinhos de Vânia, a segunda filha do casal.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 Jacy nos recebeu em seu apartamento, no centro da cidade. Foi

logo avisando: Hoje não fiz comida baiana, mas preparei, eu mesma, um 

 prato muito especial para vocês. Trouxe para a mesa o já conhecido bolo

de arroz, coberto de Catupiry e os camarões com tomate.O jantar, no dia seguinte, seria na casa de Godofredo Filho. Hoje 

vamos, com certeza, comer meninico de carneiro. Dona Carmem sabe que 

gosto. 

Dona Carmem colocou sobre a mesa o manjado bolo de arroz,

coberto de Catupiry e os camarões com tomate.

Norma nos chamou para jantar, na noite seguinte. Espero que 

Norma não me dê pra comer o tal de arroz com Catupiry, já não agüento mais, disse Jorge.

Sobre a mesa dos Sampaio foi posta a surpresa anunciada

minutos antes por Norma: bolo de arroz coberto de Catupiry e camarões

com tomate.

Com a liberdade que tinha com a dona da casa, Jorge quis saber

daquela novidade que o impedia de matar as saudades dos pratos

baianos.

 —  Pois é um prato muito caro  —  foi dizendo Norma  — , um

Catupiry inteirinho e o camarão do preço que está... Você não gostou,

compadre?

 —  Eu só quero saber onde foi que você desencavou essa receita.

 —  Desencavei? Desencavei coisa nenhuma! Paguei caro para

aprender. Tomei um curso com uma professora muito da porreta que

veio de São Paulo.

 —  Anita, Jacy e Carmem também tomaram esse curso?

Somente então Norma entendeu tudo.

 —  Mas não aprendi a fazer só esse prato, não se assuste,

compadre, aprendi outros, vou te convidar para um vol-au-vent  de

galinha. Que tal?

 —  Que tal? Eu prefiro uma moqueca de siri-mole, um sarapatel,

um xinxim de galinha, um efó... Deviam proibir essas professoras de

fora dar aulas às senhoras baianas. Vão estragar a nossa culinária.

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CAMAFEU DE OXOSSI

Camafeu de Oxóssi nos deu o recado de Mãe Senhora: que

fôssemos ao terreiro vê-la, queria nos dar um presente.

Amigo do peito, capoeirista, tocador de berimbau, compositor,

Camafeu comerciava produtos africanos numa barraca do Mercado

Modelo: vendia colares de contas, com as cores dos santos, anéis,

pulseiras e mil e uma coisas de candomblé, recebidos diretamente da

África.

Irmão de santo de Jorge, ele também de Oxóssi, também Obá do

terreiro do Axé Opô Afonjá, comandado por uma das mais respeitadas

mães-de-santo da Bahia, Mãe Senhora. Casado com Toninha, doce e

bela mulata, Camafeu era um bom amigo.

Camafeu nos deu o recado em sua barraca no mercado quando

fomos lá comprar colares de santo para levar de presente a amigos do

Rio. Aproveitando a ida ao mercado, almoçamos no Maria de São Pedro,

antigo restaurante popular, onde se comia divinamente. Iríamos no fim

da tarde, desse mesmo dia, visitar Mãe Senhora.

HORA DE L AZER 

Lidinha veio ao nosso encontro: Mãe Senhora está assistindo à 

novela... está pra terminar. Neta da mãe-de-santo, a mocinha conhecia

bem os hábitos da avó, que não gostava de ser importunada na hora da

novela, um de seus raros momentos de lazer. Ela gosta muito de ver a 

Brandines, e daqui a pouco a gente já pode  entrar, explicou Lidinha,

tentando nos deter um momento mais no terreiro. A Brandines à qual

Lidinha se referia era a novela O Cara Suja, de muito grande sucesso naocasião. A protagonista chamada por Sérgio Cardoso, o galã italiano da

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trama, de Biondina por ser lourinha, era, no entender da mãe-de-santo,

a Brandines. Como eu também gostava de assistir à novela da tal

Biondina, resolvemos entrar, eu assistiria, com prazer, àquele fim de

capítulo.Ao nos ver, Mãe Senhora sorriu: Entrem... com um gesto de

mão, lhe dissemos que ficasse tranqüila, esperaríamos. Sentada a seu

lado, a filha-de-santo Stela levantou-se e nos ofereceu cadeiras para

sentar.

Mãe Senhora não desgrudava os olhos da tela, não perdia um só

movimento dos atores, dava palpites, ralhava: Não vá atrás da conversa 

dele, Brandines, olha que tu vai te dar mal,., advertia. Ora! Tá! 

Brandines acabava de dar com os burros n'água. Agora chora... não 

quer ouvir conselhos... Fim do capítulo, entravam os comerciais. Mãe

Senhora, ainda sob a emoção da última cena, suspirou: Agora só 

amanhã. 

Mãe Senhora foi logo nos passando um sabão: Então, vocês 

chegam e nem para vir me ver, salvar seus santos... E preciso que eu 

mande recado. Se eu não chamasse, nem vinham. Pois olhem, tenho aqui 

uma pitangueira para o jardim de vocês. Já soube que estão plantando 

muito e precisam ter um pé de planta daqui do terreiro. Vou dar a vocês 

uma pitangueira já crescidinha. Chamou o menino Reginaldo, pediu-lhe

que trouxesse a pitangueira separada por ela. E até quando ficam por 

aqui? Não esqueçam que antes de voltarem para o Rio temos que fazer o 

bori, já está na hora. Carybé mais dona Nancy podem fazer no mesmo 

dia. Eu mando avisar. 

Antes de nos despedirmos ela quis notícias de seu Paulo e de

dona Simone. Referia-se a Jean-Paul Sartre e a Simone de Beauvoir que

a haviam visitado em 1959. Na ocasião ela jogara os búzios para ambos

e a resposta fora: Seu Paulo é filho de Oxóssi, como Jorge, e dona Simone 

é filha de Oxum, como Zélia. Impressionada, Simone de Beauvoir ouvira

de Mãe Senhora que o santo dela era o mesmo que o de Zélia e que Zélia 

vai ser sua mãe pequena. Vivaldo Costa Lima, que estava conosco,

traduziu tudo ao pé da letra, deu mil explicações sobre o que significava

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

ser mãe-pequena. Não havia dúvida, sendo eu a mãe-pequena de

Simone, daí por diante ela deveria me obedecer, prestar conta de seus

atos, não deve fazer nada sem consultar Zélia, afirmou Vivaldo.

Pensamos que o casal fosse rir, como nós rimos, mas qual! Mostraram-se intrigados com o que viram e ouviram.

Depois da visita ao Brasil, todas as vezes que nos encontramos,

na Europa, Simone e Sartre pediam notícias de Mãe Senhora, mulher

inteligente e sábia, que nunca iriam esquecer. E Vivaldo? Que é feito 

dele?, perguntavam.

STELA DE OXOSSI

A jovem filha-de-santo, Stela, moça esguia, retraída, séria,

atenta a tudo, a eficiência em pessoa, era a eleita de Mãe Senhora que

descobrira na moça as qualidades necessárias para substituí-la no

comando da casa no dia em que faltasse. Mãe Senhora a preparavapassando-lhe os ensinamentos que recebera de Mãe Aninha.

Senhora não se enganara. Mãe Stela de Oxóssi há muitos anos

reina no terreiro do Axé Opô Afonjá, governa com firmeza e competência

o maior terreiro da Bahia.

O MISTERIOSO VULTO 

Devíamos fazer o bori uma vez por ano. O bori lava a cabeça,

limpa-nos dos males de um ano inteiro. Em geral tínhamos, para essa

cerimônia, a companhia de Nancy e Carybé, de Zora e Antônio Olinto,

velhos amigos. Olinto também, como Jorge e Carybé, tinha um posto no

terreiro de Mãe Senhora.

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A cerimônia do bori durava uma noite inteira. Chegávamos à

tardinha. Epifânia, filha-de-santo do terreiro, nos dava um banho de

folhas, vestíamos batas e saias rodadas, brancas, e assistíamos, à noite,

ao sacrifício das galinhas e à preparação da comida feita com a galinhano dendê, farinha, quiabos... Parte daquela comida, acompanhada de

preces em língua nagô, iria lavar nossas cabeças e parte seria oferecida

aos orixás.

Em quartos separados, homens num, mulheres noutro,

dormíamos sobre uma esteira de palha no chão de cimento. Sobre

nossas cabeças era colocada a comida, sustentada por uma faixa que se

transformava em torço. Uma luz fraca, quase nenhuma, e o silêncio.

Peço licença para me adiantar e contar o que aconteceu comigo

semanas depois da visita à Mãe Senhora, na noite em que apenas Jorge

e eu fizemos o bori, já que nem os Carybé, nem os Olinto puderam nos

fazer companhia.

Pela primeira vez fazia o bori sozinha. Deitada sobre a esteira,

mesmo mal acomodada, com o peso da comida amarrada na cabeça e

seu cheiro ativo, adormeci em seguida. Não sei quantas horas dormi.

Acordei durante a noite e vi, de pé, encostada na porta de meu quarto, a

uns três metros de minha esteira, um vulto de mulher, alta, magra,

toda de branco, os braços cruzados. Pensei: Certamente Mãe Senhora 

mandou que Stela ficasse a noite toda aí de pé, de sentinela. Não vendo

razão para esse sacrifício, resolvi pedir à moça que fosse dormir. Forcei

uma tosse. Ela nem se mexeu. Tossi novamente, nada. Será que estou 

vendo direito?, pensei. Será que é uma pessoa mesmo ou uma sombra? 

Resolvi sentar na esteira, quem sabe ela se manifestaria? Sentei na

esteira. Lá estava ela, continuava ali parada. Resolvi então me levantar,

falar-lhe. Fiquei de pé, andei em sua direção. A medida que me

aproximava, ela foi desaparecendo. Junto da porta não havia ninguém.

Deitei-me novamente, olhei, o vulto havia desaparecido.

O dia apenas raiara, os gaios começavam a cantar, quando Mãe

Senhora veio tirar o torço de minha cabeça.

 —  Dormiu bem, minha filha?

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 —  Quase não dormi, Mãe Senhora. Vi um vulto encostado

naquela porta.

 —  Um vulto? E como era esse vulto?

Expliquei-lhe tudo que havia acontecido e ela me perguntou: —  Teve medo?

 — Nem um pingo. Fiquei bastante calma. Mãe Senhora deu uma

gargalhada:

 —  Pois, minha filha, tu viu a alma de Mãe Aninha. É muito raro

ela aparecer... Quer dizer que Mãe Aninha veio te visitar... Parabéns...

 — Falava e ria satisfeita.

Mãe Aninha fora a fundadora do Axé Opô Afonjá, adorada,

respeitada.

 —  Sim, senhora! Agora vamos falar com ela.

Assim dizendo, me levou pelo braço para o peji de Xangô, num

quartinho de frente. Diante do altar do santo, me fez ajoelhar junto

dela. Em seguida, jogou um punhado de búzios que se espalharam

sobre uma toalhinha branca que cobria uma mesinha: braços

levantados, olhos para o alto, Mãe Senhora começou a falar, conversava

com o santo em iorubá, falava e sorria. De repente virou-se para mim:

 Tu não está entendendo nada, não e? Voltou a olhar para o alto: Ela não 

está entendendo nada, por isso eu vou falar em português.  Jogou

novamente os búzios e foi lendo, de acordo com a posição em que eles

haviam caído: Muitas felicidades para você, nunca ninguém vai poder te 

  fazer mal, tudo que for atirado contra tu vai voltar para cima de quem 

quer te fazer mal. Está satisfeita? Volvendo novamente os olhos para o

alto, disse: Muito bem, a conversa está muito boa mas eu tenho que 

cuidar de minhas obrigações. Vamos parar por aqui. 

Eu estava verdadeiramente fascinada com a intimidade de Mãe

Senhora com o egum. Incrédula de formação, sempre em busca do

desconhecido, procurando descobrir os mistérios da vida e os mistérios

da morte, indagando sem nunca encontrar uma resposta convincente,

nessa madrugada, no terreiro de Mãe Senhora, senti-me profundamente

comovida, encantada sem no entanto dar por terminadas as minhas

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

indagações sobre os mistérios da vida e os mistérios da morte.

L IGA PELA RESTAURAÇÃO DOS IDEAES 

Norma telefonou me convidando para fazer um curso com ela.

Chegara à Bahia uma japonesa, professora de arranjos florais, ikebana,

São apenas três aulas, argumentou, você tem tempo de sobra, só vai 

 para o Rio daqui a dez dias... Olha aqui, vocês vêm almoçar com a gente,

vou fazer uma galinha de cabidela para o Jor ge, quero tirar a má impressão dele do último jantar. Venham cedo, Mirabeau tem uma 

surpresa para vocês. 

Da gaveta de um armário de seu ateliê, Mirabeau tirou um

caderno de capa dura, bastante velho, as folhas amareladas pelo tempo.

Aqui está, foi dizendo e rindo, o que eu queria mostrar a vocês. Numa 

arrumação da papelada, encontrei isto. Estendeu-me o caderno: Leia,

Zélia, leia em voz alta, Jorge vai gostar. Logo na primeira página, com caligrafia caprichada, estava

escrito: Este livro fica destinado à cópia dos trabalhos apresentados 

  pelos sócios, lidos nas sessões da Liga pela Restauração dos Ideaes.

Assinado, Cândido Colombo Cerqueira  — Presidente. Bahia, 2 de Julho

de 1926.

Achei graça, essa tal liga fora fundada a 2 de julho, exatamente

no dia de meu aniversário, quando eu completava dez anos. —  Você lembra dessa Liga, Jorge?

 —  Tenho uma vaga idéia  — disse.

 —  Vá mais adiante  — ria Mirabeau.

Mirabeau, sempre que contava uma coisa divertida, ria e falava

ao mesmo tempo, muitas vezes difícil de ser entendido. Virei a página:

Liga pela Restauração dos Ideaes. 

Padroeiro: Santo Estanislau Hostha. Fins: Elevação moral, phisica e intellectual  

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Meios: Practica do Catholicismo   —   Amor e Caridade   —  

Serenidade  — Alegria  — Optimismo  — Domínio de si mesmo e das paixões. 

Lemma: Sursum!!!  

Parei: —  Sursum? O que significa isso?

 —  Talvez uma saudação  —  disse Mirabeau  — , continue a

leitura.

Deveres: Castidade  —  Obediência  —  União  —  Cumprimento dos 

deveres sociais  —  Defesa mutua  —  Estudo. 

Prohibições: Tudo o que servir para deprimir e rebaixar em vez de 

levantar para os ideaes, como leituras más, conversas degradantes e indecorosas, brigas e contendas. 

Direção: Confiada a um Presidente auxiliado por um Censor e pelo 

Conselho dos sócios fundadores, todos subordinados a um Director 

espiritual. 

Diretor Espiritual: Pe. Camillo Torrend S. ]. 

Reuniões: Podendo ser cada semana, ou duas vezes por mez 

consta de  

l) Uma leitura de um capítulo da Imitação de Christo, comentada 

depois por algum sócio ou pelo Director Espiritual. 

Depois de vários itens como tema das reuniões, antes de

encerrar, havia ainda uma advertência:

Infracção: Toda a infracção do regulamento, especialmente a de 

  fallar de assumptos deprimentes será punida com uma reprehensão 

dada pelo Presidente ou pelo Censor  (Antônio Vieira de Mello) ou pelo 

Director informado, e o delinqüente longe de se entristecer com a 

reprehensão e de fomentar pensamentos contra aquelle que o reprehende 

deverá mostrar-se agradecido e offerecer uma communhão por elle. Em 

caso de recidiva poderá ser excluído da liga ou suspenso. 

Enquanto eu lia, Jorge e Mirabeau riam, comentavam,

divertiam-se.

 —  Você fez parte dessa liga moralista, Mirabeau?

 —  Certamente fiz, mas veja: teu marido foi sócio fundador, leia

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mais adiante o discurso dele. Um discurso porreta.

 —  E eu fui sócio fundador dessa liga? Fiz discurso? A gente faz

cada coisa...

Eu não aprendo nunca. Levo sempre ao pé da letra as graças, asironias de Jorge:

 —  Você não sabe? Pois está tudo aqui, veja, não estou

inventando nada, assinado e com data. Você ia completar quatorze

anos.

Discurso pronunciado pelo seu auctor Jorge Amado, em sessão 

ordinária da Liga para a Restauração dos Ideaes em 1926. 

A tarde morre. 

No horizonte o sol entrega a terra à lua, a Jacy dos índios, a 

deusa dos poetas. 

Numa cabana de um camarada agoniza um homem. 

Um padre ao seu lado pede-lhe que se confesse:  

 —  Mas  padre   —   diz o moribundo  —   eu sou um desgraçado,

 pequei em demasia, Deus não me perdoa, 

 —   Perdoa, filho  —   diz o padre e reza uma jaculatória por este 

coração desanimado. 

Mas o desanimo é grande e a morte o leva enquanto pronuncia 

esta blasphemia:  

 —   Pequei muito, se Deus perdoasse seria injusto. È un facto que 

todos os dias acontece aos milhares. 

E o desanimo um dos inimigos com quem temos de travar mais 

aberta guerra.

........................................................................................................  

As celebres injecções tão bem aplicadas pelo Padre Torvend e 

Padre Cabral, os elixirs do Padre Arraino, as communhões freqüentes, a 

confissão, a missa diária, congregam-se para impedir o desanimo. Isto no 

colégio, mas lá fora, nas ferias é tão fácil desanimar!... Como vence-lo?  

O problema está resolvido; uma nova cohorte de guerreiros entra 

no campo de batalha. É a Liga para a Restauração dos Ideaes. E nós,

seus membros não só não devemos, mas não havemos de desanimar. E 

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um dever. Se desanimarmos aonde irá parar o nosso Sursum!!!?  

Paro por aqui, embora o discurso não pare por aqui, ainda vai

longe. Acabo de pedir licença ao escritor Jorge Amado para incluir em

meu livro as palavras do aluno do colégio jesuíta, o menino JorgeAmado que encerrou seu discurso com as seguintes palavras: Se 

abusarem-se com minhas disconessas palavras, vinguem-se exercitando- 

se na paciência. 

Sempre ouvi dizer que padre Cabral, do Colégio Antônio Vieira,

ao ler a composição de um aluno (Jorge Amado) sobre o mar, teria

profetizado que o autor daquelas páginas seria, um dia, um grande

escritor. Fico conjecturando, agora, ao copiar o discurso do tal menino

onde o padre Cabral é citado: não teriam sido essas páginas, na

realidade, as inspiradoras do padre?

IKEBANA

As aulas que tomei, levada por Norma, não têm conta. Cursos

que me valeram e cursos que apenas me divertiram: por exemplo, o de

Ikebana, aulas de arranjos florais, me valeu. Mesmo com poucas flores,

muitas vezes pude enfeitar minha casa e, numa viagem que fizemos no

navio Brasil Maru, para os Estados Unidos, ganhei um prêmio num

concurso de arranjos de flores.

Nunca vou esquecer do curso multiponto da Elgin, na Calçada, ofim do mundo. Tínhamos que tomar várias conduções, perdendo um

tempão no vai-e-vem. Até que foi divertido, Norma aprendeu um bocado

de pontos e bordados, mas eu não tive paciência, o pouco que aprendi

esqueci em seguida.

Norma só não conseguia uma coisa comigo: arrastar-me a

enterros e a velórios. Tendo grande consideração pelas pessoas que

passam a noite velando seus mortos, Coisa mais triste, não deixava decomparecer quando podia e às vezes até quando não podia. Era saber

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da morte de algum conhecido lá se ia ela para o enterro ou para o

velório, levando variado farnel: sanduíches, café, biscoitos, para

confortar um pouco os que iam passar a noite em claro.

Certa vez, passávamos por um enterro de anjinho, enterro pobre,quatro meninos segurando as alças do caixãozinho azul, dois ou três

adultos, entre eles Norma com um ramo de flores. Qual não foi nossa

surpresa ao reconhecermos entre os meninos que carregavam o esquife

o nosso João Jorge. Ele havia sido arrebanhado por Norma para essa

piedosa tarefa. O coitadinho, era tão pobrezinho que não tinha uma única 

 flor, nem mesmo quem lhe segurasse a alça do caixão, explicou ela.

Nosso JARDIM 

Dessa vez, sim, com as formigas afastadas por Zuca, as plantas

cresciam. Os caminhões de adubo, misturados à terra, deram resultado

surpreendente. A pitangueira de Mãe Senhora fora plantada por Zuca,

ao lado de um pé de fruta-pão. Essa pitangueira jamais daria frutos,

não receberia o sol necessário, vivendo à sombra da frondosa árvore.

Não deu frutos, mas vive até hoje.

Ao ver aquele mundo de mudas, plantadas uma ao lado da

outra: mangueiras, cajazeiras, pitangueiras, jambeiros, jaqueiras,

caramboleiras, além de outras árvores não frutíferas, Carybé foi

taxativo: Quando isso tudo crescer, para Jorge ir ao fundo do jardim vai 

ter que ir abrindo picada a facão. Isso só não aconteceu porque nem

todas as plantas vingaram na sombra e muitas morreram por descuido

do jardineiro. Assim mesmo, o bosque ficou espesso. Tirou nossa vista

sobre o Rio Vermelho, mas ficou lindo.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

REMINISCÊNCIA

De meu terraço diviso, entre o arvoredo, Zuca que se aproxima.

Cabelos grisalhos, o mesmo sorriso de sempre. A tiracolo, pulverizador

com veneno de matar formigas.

 —  Matando uma formiguinha, Zuca?  —  pergunto-lhe. Antes de

responder, educadamente como sempre, ele diz:

 —  Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra  

hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a

Deus! Choveu muito e as danadinhas das formigas depois da estiada

costumam aparecer... lá embaixo encontrei um bocado delas. Até

amanhã não vai ter mais nenhuma, se Deus quiser.

Fico lembrando dos primeiros tempos, Jorge na peleja com Zuca:

 —  O Zuca, trouxe estas mudas para você plantar.

 —  Muito bem, doutor. Vamos plantar.

 —  Pensei plantar neste lugar para substituir as que morreram.

 —  Pode deixar, doutor, amanhã eu planto.

 —  Amanhã? Por que não hoje?

 —  Deixa ver, doutor: hoje é quarta-feira, quinta, sexta... tá bom

na sexta-feira?

 —  Não está não, Zuca, eu quero que plante hoje mesmo.

 —  Pode ser de tarde, doutor? Foi aí que me intrometi:

 —  De tarde não, Zuca. Por que de tarde? Tem que ser agora...

 já!

Zuca sorriu, balançou a cabeça:

 —  Dona Zélia é tão interessante... (Queria ele dizer, tão chata?)

Durante esses anos que Zuca nos serve, todas as vezes que

viajávamos deixando o jardim aos cuidados dele, às vésperas de nosso

retorno, estivéssemos onde estivéssemos, recebíamos uma cartinha de

nosso jardineiro. Elas começavam sempre da mesma maneira: Dona

Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que doutor Jorge mais 

dona Zélia estejam gozando boa saúde. Por aqui vai tudo mais ou menos.

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Este ano choveu muito, muita água, afogou um bocado de planta... Ou

então, depois do preâmbulo, até as novidades da carta: Por aqui vai 

tudo mais ou menos. Este ano a seca foi demais. Não choveu nada. Um 

bocado de planta secou... Certa vez, às vésperas de uma viagem nossa à Europa, visitamos

uma fazenda no estado do Rio. Qual não foi nossa surpresa ao

sabermos que nessa fazenda havia um bosque de lichizeiros.

Entusiasmada, pedi aos proprietários uma muda. Com muito prazer,

disse José Amádio, dono da fazenda. Mudas de lichi é o que mais há. A 

  fruta cai, o caroço brota... Chamou um empregado, encarregou-o de

preparar a muda para que eu levasse.Conheci a fruta na China, não sabia que podia encontrá-la no

Brasil. Plantaria o lichizeirinho, com todo o capricho, em nosso jardim.

Viajei do Rio de Janeiro à Bahia levando no colo a latinha com a planta.

Mal botei os pés em casa, chamei Zuca:

 —  Está vendo esta plantinha que eu trouxe do Rio, Zuca? E

uma planta rara, no Brasil não existe. Ela dá a fruta mais deliciosa do

mundo. Vamos plantar e cuidar dela com todo o carinho, entendido,

Zuca?

Zuca olhou a muda, não disse nada. Levei-o para o melhor lugar

que encontrei no terreno, para plantá-la. Comigo Zuca não regateava

dia nem hora de plantar, ele já havia descoberto que dona Zélia era uma

pessoa muito interessante e não teimava. Consultei-o:

 —  Este lugar está bom?

 —  Está mais ou menos... podia ter um pouco mais de sol...

 —  Pois é aí mesmo que vamos plantar minha plantinha rara.  —  

Voltei a frisar planta rara para que ficasse bem gravado em sua cabeça

que ele não podia facilitar, devia cuidar dela com todo o carinho,

durante nossa ausência.

Ordenei-lhe que fizesse a cova bem profunda e exageradamente

larga, cercasse a muda de terra vegetal e adubo, e Zuca só obedecendo.

Pronto, lá estava ela, plantadinha. Com terra boa e tanto adubo ela

cresceria rapidamente, daria frutos, mataria Carybé de inveja. Ele vivia

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se vangloriando da maravilha de seu pomar, atirando em nossas caras

frutas e mais frutas que colhia. Lichi ele não tinha.

Fiz ainda uma recomendação a Zuca antes de partir, mais do

que uma recomendação, uma ameaça: —  Cuide direito de minha planta, Zuca. Quando eu voltar, se

você vier com a conversa de que a planta morreu afogada ou de sede, eu

te mato. Entendeu bem? Eu te mato.

Zuca riu:

 —  Dona Zélia é tão interessante... deixa comigo, pode deixar,

dona Zélia, eu cuido dela.

Dessa vez nossa viagem foi longa, passamos vários meses fora.

De vez em quando pensava no meu lichizeirinho: Estaria crescido? Teria

morrido?

Ao chegarmos ao Hotel Tivoli, em Lisboa  —  nosso endereço em

Portugal  — , na véspera de nosso retorno ao Brasil encontrei na portaria

uma carta dirigida a mim. Pelo envelope e pela caligrafia, identifiquei

Zuca. Olha aqui, Jorge, disse, desta vez ele endereça a carta a mim. Será 

que houve temporais ou seca na Bahia! Abra o envelope, vamos ver o que 

ele diz, apressou-me Jorge. A carta, como sempre, começava assim:

Dona Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que tudo 

tenha corrido bem com dona Zélia mais doutor Jorge. Por aqui, graças a

Deus tudo tem corrido muito bem. Tem chovido pouco e o sol não está 

muito forte. Tenho uma novidade que vai agradar dona Zélia: aquela 

planta dela, rara, está uma beleza. Cresceu muito e já deu uma pitanga.

Sem mais... 

Até hoje, trinta e tantos anos se passaram, Zuca não se

conforma que dona Zélia, pessoa tão sabida, tenha comprado gato por

lebre. Com tantas pitangueiras no jardim ela não viu o que qualquer um

podia ver: a plantinha que ela trouxera do Rio de Janeiro, no colo, com

tanto cuidado, era uma pitangueira e não a árvore rara da qual ela

fizera tanto alarde.

Há pouco, conversando com Zuca à sombra da mangueira, junto

ao terraço, ele recordou o fato e isso deu-me a idéia de narrá-lo agora,

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 já, não deixar para mais tarde ou para amanhã ou depois de amanhã,

no velho sistema do Zuca. Não fosse eu a pessoa tão interessante...

RUFINO

Pelas mãos de Wilson Lins, chegou Rufino. Negro, alto, forte,

 jovem, bem-apessoado, sorriso aberto.

 —  Este é Rufino  — apresentou-o Wilson.  — Mestre-de-obras, ele

tem trabalhado para mim. A especialidade de Rufino é muro de arrimo.

Como vocês vão precisar de um muro de pedras para agüentar a terra

da frente, achei que com Rufino vocês vão estar bem servidos.

Realmente, tínhamos um problema sério e caro a resolver. A

casa ficava no alto de um barranco e seria preciso levantar uma espécie

de muralha para sustentar tanta terra: obra que ia nos custar um

dinheirão.

Contratado, Rufino apareceu com um grupo de pedreiros para

fazer o serviço. Os pedreiros trabalhavam muito e Rufino só olhava.

 —  Você não trabalha, não, Rufino?  —  perguntou-lhe Jorge um

dia, ao vê-lo de braços cruzados.

 —  Tenho que fiscalizar, doutor.

Depois do paredão pronto, dinheiro recebido, Rufino continuou

aparecendo, mesmo sem ter nenhuma função na obra. Recebera

bastante e enquanto não gastasse o último tostão, não precisava se

preocupar em arranjar outro trabalho. Gostara da atmosfera da casa,

aparecia apenas para se divertir, fazendo camaradagem com nossos

amigos, Carybé, sobretudo, que lhe dava muita corda.

Rufino tornou-se um agregado da casa e, no correr dos anos, até

hoje, volta sempre, o sorriso aberto, a simpatia estampada no rosto:

 —  Tudo bem, Rufino?

 —  Tudo mais ou menos.

 —  Mais ou menos? Então não está bem?

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 —  Saí há pouco de casa, dona Zélia, deixei as brasas vivas no

fogão, um caldeirão de água fervendo, nem um grão de feijão dentro...

as crianças em volta olhando a água ferver, todos de boca aberta assim

 — 

imitava as crianças de boca aberta. Na vez seguinte: —  Tudo bem, Rufino?

 —  Tudo mais ou menos.

 —  Mais ou menos? Então não está bem?

 —  A minha mais velhinha foi subir numa árvore para colher

uma manga, estava com fome, teve tontura, caiu e quebrou o braço...

Então eu vim pedir socorro a doutor Jorge e à senhora.

Ao ver Rufino chegar, já sei que vem problema. Ele aprendeu a

ser gentil, sabe nos conquistar. Nos últimos anos, ele nunca chega de

mãos vazias: passa antes por um matagal perto de sua casa e colhe

flores, traz-me grandes ramos de flores. Só depois despeja seus males.

Às vezes o aconselho a procurar Wilson Lins, que se livrou das suas

facadas nos passando a bola.

Sabendo que Jorge adorava teiú moqueado, um belo dia Rufino

resolveu tocaiar um que costumava aparecer no seu terreiro. Matou o

teiú, e sua mulher, que é cozinheira, dispôs-se a prepará-lo. Ele então

apareceu.

 —  Tudo bem, Rufino?

 — Tudo bem. Cacei um teiú para doutor Jorge, sei que ele gosta,

agora estou precisando de um dinheirinho emprestado (o dinheiro que

pede é sempre emprestado, nunca dado, embora jamais tenha a

intenção de devolvê-lo) para comprar os temperos. A patroa vai

preparar.

Meio-dia em ponto, Rufino iniciou a subida da ladeira da rua

Alagoinhas, um tabuleiro na cabeça, o teiú moqueado com seu perfume

marcando presença.

Sem conhecer as habilidades culinárias da mulher de Rufino,

sem saber como seria esse teiú, por via das dúvidas, preparei uma

galinha ao molho pardo para completar o menu. Tínhamos nesse dia

um convidado para o almoço: Antônio Celestino, português radicado no

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Brasil, vivendo desde jovenzinho na Bahia, casado com baiana, pai de

três moças. Celestino era alto funcionário do Banco Econômico, amigo

dos artistas da Bahia, crítico de arte. Eu estava sem saber o que

Celestino ia achar do teiú de Rufino, o que ia dizer, piadista inveterado,qual a graça que iria inventar para acabar com nosso teiú.

No tabuleiro de Rufino o lagartão dourado cheirava. Ele havia

gasto o dinheiro que levara para o tempero, não fizera economia: com o

teiú vinham batatas douradas, ovos duros, pimentão, tudo muito bem-

arrumado. Quem pensar que português não gosta de teiú, se engana.

Celestino não tugiu nem mugiu, entrou direto no lagarto, comeu de

lamber os beiços, Eu provava teiú pela primeira vez e confesso a minha

desconfiança. Pena ter sido pouco, não lembro ter comido nada tão

delicioso. Se soubesse que você ia gostar tanto de teiú, Celestino, não 

teria te convidado ou teria me servido antes, pilheriou Jorge ao vê-lo

repetir o prato, limpar os ossinhos.

Rufino descobriu tarde a sua profissão, a que lhe dava prazer:

figurante de cinema. Durante as filmagens de Dona Flor e seus dois 

maridos, aqui na Bahia, Jorge pediu a Bruno Barreto, que dirigia o

filme, um lugar de figurante para Rufino. Ele chegou até a trabalhar,

quer dizer, fazer força carregando coisas, levantando pesos, durante as

filmagens, além de aparecer em várias cenas. O que recebeu em

dinheiro não lhe deu independência, continua, como sempre, a trazer

flores, a dar facadas.

As OBRAS DA CASA 

O interesse de nossos amigos baianos pela obra da casa era

enorme, acompanhavam passo a passo as demolições e as paredes

levantando... Todo mundo dando palpites, todos ajudando.

Lev Smarchewski fazia parte da turma de artistas e foi trazidoum dia por Carybé. Arquiteto, russo de nascimento, tão brasileiro

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quanto um brasileiro nato, casado com Quinquinha, baiana de família

tradicional, pai de vários filhos, homem dos sete instrumentos. Lev, na

ocasião, debruçava-se sobre desenhos de automóveis de corrida,

montara um para ele próprio. Também construtor de barcos a vela, Levfazia barcos capazes de atravessar o oceano, desenhava móveis, possuía

fábrica de móveis e sobretudo era pintor, bom pintor.

De mangas arregaçadas, Lev chegou com Carybé, disposto a dar

a sua contribuição na reforma da casa. Vira e estudara a planta nas

mãos de Gilberbet, tomara nota das medidas da sala principal, nos

oferecia agora fazer os móveis. Gostamos dos desenhos que trazia, era

um privilégio ter móveis desenhados por Lev.

Carybé trouxera, nessa manhã, o desenho do portão de ferro,

com pássaros e frutas, uma beleza como só Carybé sabia fazer. Ele

próprio falara com Udo Knoff, o alemão dono da cerâmica, e sem

nenhum problema conseguira os cacos de azulejo para colocar nas

escadas e nos passeios. Homem requintado, Udo era amigo dos artistas

da Bahia, sua cerâmica era utilizada em todas as casas de bom gosto.

A Yemanjá vermelha, de madeira, de Mário Cravo, estava à

espera que fosse feito o laguinho no jardim. A bela sereia ficaria no

centro, refletiria na água. Nesse lago seriam colocadas plantas

aquáticas, nenúfares, conhecidas na Bahia como baronesas, haveria

sapos, muitos sapos.

O entusiasmo de Jorge, inventando sempre novidades para a

casa, era tão grande que não tinha vontade de voltar para o Rio, ficava

sempre adiando os compromissos que o esperavam lá, e onde os

meninos já se encontravam desde o início das aulas. Tínhamos

esperança de que antes de terminar o ano a casa estivesse pronta.

Cerca de trinta operários trabalhavam de manhã à noite, a toda hora

chegava material. Jorge e Carybé ali, conferindo tudo. Gilberbet, no

momento, dividia o trabalho na casa com os preparativos para seu

casamento. Ele pensara até em adiar, mas Sônia batera o pé,

casamento não se adia.

O apartamento que possuíamos no Hotel Quitandinha, onde

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haviam passado sua lua-de-mel João Gilberto com Astrud e Glauber

Rocha com Helena Ignês, abrigaria ainda um casal de noivos:

convidamos Gilberbet e Sônia para passar a lua-de-mel lá. Enquanto o

arquiteto estivesse ausente, Carybé tomaria da batuta, dirigiria a obra.

MAUS PRESSÁGIOS 

Mais do que eu, Jorge se afligia com a morosidade da obra na

Bahia, não via a hora de sair do Rio de Janeiro.Andávamos tristes com a morte do Coronel. Seu João morrera

quando menos esperávamos, deixando-nos desolados. Detalhes sobre o

seu falecimento já narrei em livro anterior (Chão de meninos), poupo-me

agora de recordá-los novamente.

Estávamos inquietos com a situação política do Brasil. Víamos

as coisas malparadas. Nosso mau pressentimento se agravara depois de

termos participado de uma reunião, convocada pelo presidente JoãoGoulart, no apartamento de Di Cavalcanti, no Rio, na qual o presidente

 —  empossado a duras penas depois da renúncia de Jânio Quadros  —  

falou a um grupo de intelectuais, dizendo de seu otimismo, de sua

segurança, contando que nomeara novos oficiais, de sua confiança,

reformara comandantes e generais, inclusive seu chefe do Estado-

Maior, marechal Castelo Branco.

  João Goulart ligara-se a movimentos de esquerda, dandoouvidos a sectários e dogmáticos, enfrentando os militares com planos

de reformas, afastando de seu governo comandantes e generais,

apoiando passeatas gigantescas com faixas provocativas, comparecendo

e falando em comícios... Ele não se dá conta de que está forçando uma 

volta atrás?, comentara Jorge, ao ver anunciado um comício monstro na

Central do Brasil. Ele está cutucando vespeiro com vara curta, respondi.

Segundo os que  —  inclusive nós  —  já haviam sofrido na própriacarne dolorosos retrocessos políticos, João Goulart marchava a passos

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largos para a sua deposição, para a implantação de mais um regime

totalitário, de repressões, de censura, de violação dos direitos do

homem em nosso país.

Com esse espírito de preocupação, viajamos de muda para aBahia, no final do ano de 1963 para 1964.

MANÉ PATO NOVAMENTE NA ESTRADA 

Dessa vez viajávamos para ficar. Os meninos já se encontravamna Bahia havia um mês, seu João morrera havia um ano. Desde a

morte do marido, dona Eulália me autorizara chamá-la pelo apelido que

o Coronel lhe dera: Até aqui tu foi minha filha, disse-me ela, daqui por 

diante, tu vai ser minha mãe. Pode me chamar de Lalu. Só depois da

casa pronta, ela iria morar conosco na Bahia.

Carybé nos apressava em ligações telefônicas, voz de longa

distância: Venham l ogo. O olho do patrão engorda o gado... Enquanto vocês não vierem a obra não vai terminar. Já dá pra morar... faltam umas 

coisas pequenas, arremates... Está uma beleza!... 

Conseguimos um motorista profissional para dirigir o Mané Pato

até a Bahia, homem competente que nos daria segurança, eu não me

esfalfaria como da outra vez. Levaríamos no carro mil e uma coisas, a

começar por livros e presentes que Jorge comprara para todo mundo.

Passei a noite empacotando, embrulhando, colocando livros emcaixas. Uma consumição! Ao meu lado, Milu procurava me ajudar. Mais

atrapalhava do que ajudava com seus suspiros e reclamações: Coisa 

mais triste é ser mulher... Deus me livre! Veja! A pobrezinha aí 

trabalhando e o outro lá dormindo... Ave-Maria! Jesus! Não sei como ela 

agüenta... A interminável ladainha só acabou quando dei por encerrada

a arrumação e me despedi para dormir.

Logo cedo Jorge me acordou. Queríamos aproveitar a frescura damanhã, partir antes do sol esquentar. Felizmente Lalu encontrava-se

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em São Paulo, em casa de Joelson, seu filho médico, não ia cair na

choradeira ao nos ver de mudança.

Milu estava a postos, na sala, aguardando que o cuco cantasse

seis vezes. Ficou vendo Jorge e o chofer descerem a bagagem, não seofereceu para ajudar. Os dois que se arrumem, resmungou ela,  pelo 

menos que arrumem o carro... ao menos isso... Eu só desceria, com as

últimas miuçalhas, quando Jorge desse por terminadas as arrumações.

  Jorge demorava a subir, devia estar tendo dificuldade de

acomodar tanta coisa. De repente a porta abriu-se e ele entrou, todo

nervoso, falando alto:

 —  Não coube nem a metade...

 —  Nem a metade?

 —  Nem a metade, sim, nem a metade  —  repetiu.  — Eu não sei

que necessidade você tem de levar tanta coisa... que mania..

 —  Sou eu quem quer levar tanta coisa? Decidimos juntos o que

levar, você não lembra? Agora eu é que sou a culpada...  —  Cansada e

nervosa, comecei a chorar.

 —  Também não é motivo para tantas lágrimas  —  disse Jorge

mais calmo, em tom conciliador.  —  Desça comigo, vamos, você vai me

ajudar.

 Jorge tem fama de bom arrumador de mala de automóvel  —  ele

próprio se gaba disso  — , mas dessa vez fracassara. Depois de nova

tentativa, com a ajuda do porteiro do prédio, conseguimos encaixar

tudo: na mala do carro e na parte de trás onde eu viajaria, espremida.

Subimos para nos despedir de Milu.

 —  Conseguiram?  — perguntou ela.

 —  Tudinho, Milu, coube tudo  —  respondi.  —  Quando a casa

estiver em ordem você vai passar uma temporada conosco.

Milu já tinha seu discurso preparado: Minha filha, foi dizendo,

trate de se cuidar. A mocidade é uma só, a vida também é uma só. Não 

ligue pras coisas que ele te fizer, homem é assim mesmo, escravagista,

fuzilava Jorge com o olhar enquanto ele prendia o riso. Quando ele lhe 

maltratar não diga nada, não chore, num gesto patético abriu os botões

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

da blusa, abra a blusa, assim, e diga apenas: não me mate aos poucos,

mata de uma vez, mata! 

A CASA COMEÇA A FUNCIONAR 

Vários operários ainda trabalhavam dentro das portas, quando

nós e os meninos entramos para habitar a casa da rua Alagoinhas.

Conseguimos a transferência de João Jorge e Paloma do Colégio

Andrews, no Rio, para uma escola pública em Salvador, o ColégioEstadual Manuel Devoto. Sempre quisemos que nossos filhos

estudassem ao lado de meninos de classe menos favorecida, fossem

colegas de crianças que não tinham tido os mesmos privilégios que eles.

Nossos filhos já haviam feito o curso primário, no Rio de Janeiro, na

escola pública Marechal Trompowski. Só depois foram para um colégio

particular. Queríamos nossos filhos sem empáfia, eles deviam conhecer

de perto as necessidades do povo.

Exu, MEU COMPADRE 

Manu, artesão do ferro retorcido e do latão, foi escolhido por

 Jorge para fazer um Exu a fim de enfeitar o jardim: O Compadre vai ser 

o guardião da casa, disse Jorge.

Lá estava ele, enorme, formoso, de cauda virada, chifrinhos e

estrovenga, Exu pra ninguém botar defeito, nem mesmo Carybé, se

roendo de inveja.

Não tardou muito, um recado de Mãe Senhora pedia que Jorge

fosse vê-la, com a maior urgência.

A mãe-de-santo havia sabido da existência do Exu em nosso

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 jardim e estava horrorizada. Tu não tem juízo, seu Jorge? Onde já se viu 

botar dentro das portas um orixá forte desses, sem o fundamento?  Não

quis nem ouvir Jorge, tentando lhe explicar que colocara a escultura no

  jardim apenas como decoração. Se tu não tem cabeça, eu tenho, disseMãe Senhora, encerrando a bronca.

No dia seguinte, mal o sol levantara, apareceu na porta Loló,

emissário de Senhora. Trazia uma enorme sacola, dentro dela o

necessário para assentar o santo: um galo preto, um litro de azeite-de-

dendê, um litro de cachaça, farofa amarela e alguns charutos. Cavou a

terra, fez uma valeta em torno da escultura, nela atirou os charutos,

despejou o dendê, a cachaça, a farofa e o sangue do galo de pescoço

decepado na hora.

Até hoje sigo as instruções de Mãe Senhora: às segundas-feiras,

infalivelmente, chova ou faça sol, dou de beber ao meu compadre,

despejo meio copo de cachaça sobre ele, assobio uma música que

Verger me ensinou e, com isso, dou por completada a obrigação. Nas

minhas ausências, Aurélio me substitui.

EXPLOSÃO 

Montar a casa não era fácil. Casa grande, de muito movimento,

tivemos que comprar três refrigeradores e um freezer. Tudo a postos,

ligamos os quatro aparelhos de vez. Ouviu-se um estrondo. O

transformador, que servia à rua toda, não agüentara a carga, explodira,

e com ele nossos aparelhos. Quem pensou que por ser Jorge Amado ele

fosse ter todos os privilégios enganou-se: o novo transformador, de alta

voltagem, potência infinitamente superior, com capacidade para

beneficiar a rua toda, foi pago por Jorge, dinheiro alto, de seu bolso.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

O SAPO-CURURU 

A casa estava pronta e graças ao excelente arquiteto e aosnossos amigos, grandes artistas da Bahia, tínhamos conseguido o que

desejávamos: viver numa casa ampla, arejada, agradável, sem requintes

de grandeza, combinando com a nossa maneira de ser, de vida simples,

sem ostentação. Uma casa sincera, como disse certa vez Gilberbet, em

sua linguagem de arquiteto. Estaríamos rodeados de arte e, ainda de

quebra, para a satisfação de Jorge, tínhamos até sapos coaxando à

noite no laguinho redondo, rodeado de flores.Peço licença para interromper o que dizia e contar a história do

sapo-cururu:

Certa noite, chovia torrencialmente quando ouvimos o coaxar

forte de um sapo junto à porta de nossa sala. Lá se encontrava um

enorme sapo-cururu. De onde teria vindo? Esse detalhe não interessou

a Jorge. Tivesse vindo ele de onde fosse, devíamos, sem perda de tempo,

contar a grande novidade a Carybé. Na casa dos Carybé, em Brotas, nãohavia lagos nem lagoas e, portanto, nada de sapos, o que deixava nosso

amigo na maior frustração.

Não levou meia hora, enfrentando temporal e ventania, apareceu

Carybé. Acocorou-se ao lado do cururu e começou a coçar-lhe cabeça e

costas. O sapo inchou de tal forma que parecia uma bola de futebol.

Não brinque com ele, compadre, preveniu Jorge, daqui a pouco ele vai 

começar a soltar veneno por aí e veneno de sapo é perigoso. Carybé sódesistiu da brincadeira quando o sapo perdeu a paciência, se

movimentou, deu um pinote inesperado e, a largos saltos, sumiu entre

a folhagem do jardim.

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BRINCADEIRINHA 

Resolvi um dia pregar uma peça em meu compadre e, armada de

um gravador, registrei o coaxar dos sapos. Fomos à casa de Carybé. Seu

ateliê ficava nos fundos do jardim, em cima da garagem. Deixei meu

gravador no último degrau da escada, junto à porta e, quando a prosa

estava bem animada, dei uma saidinha e liguei o gravador. Espera,

espera aí, gritou Carybé, interrompendo uma frase pelo meio, vocês 

também estão ouvindo? Tenho sapos no jardim, gritou. Foi em busca de

uma lanterna, saiu porta afora, à procura dos sapos, sem lembrar que

seus compadres também eram bons em pregar peças.

CALASANS NETO 

Em nossa casa, feita com tanto carinho, tanta arte, tanta beleza

espalhada por todo lado, havia uma falha: a porta de entrada destoava

de tudo o mais, era azul, sem nenhuma graça. A porta que faltava só

veio a ser colocada alguns anos depois da inauguração da casa.

O talentoso artista, autor da bela porta que veio substituir a que

era azul, sem nenhuma graça, Calasans Neto ou Mestre Cala, como é

chamado, caprichou na provocante Tereza Batista entalhada na

madeira que se abre a nobres e a plebeus.

Mestre Cala conhecera a fundo a heroína do romance de Jorge

Amado, ao ilustrá-lo em 1971. Pícaro, ele soube muito bem recriar a

personagem do escritor, dando forma e sensualidade à jovem Tereza,

aproveitando a deixa e, por que não?, dar a doutor Emiliano Guedes,

que amou Tereza, traços de Jorge Amado. Numa das ilustrações do

livro, ele retrata o casal tomando banho de rio, ambos nus, claro!

 —  Como é que você se atreve a mostrar meu marido nu,

tomando banho de rio, abraçado com Tereza, Cala?  — pilheriei, fingindo

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

ciúmes.

Calasans não é homem de perder o rebolado, não ia perder

dessa vez:

 — 

Você reclama porque não reparou que a minha Tereza é vocêtodinha.

 —  Ora, Cala, não me venha com essa conversa, você fez Tereza

de costas, nem se vê o rosto.

 —  E quem falou em rosto?  —  riu o malandro.  — Ela é você de

costas, sem tirar nem pôr...

 —  Do balaio grande  — completou Jorge, que se divertia ouvindo

a discussão.

Mestre da gravura e do entalhe, artista também do pincel,

Calasans Neto pertencia a uma geração de jovens, do movimento Mapa,

formado por um grupo de moços talentosos, a geração de Glauber

Rocha, Paulo Gil Soares, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Anísio Melhor,

Sante Scaldaferri, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos. Esses

não eram da fornada dos mais velhos, da geração de Jorge Amado,

Mirabeau, Mário Cravo e Carybé.

Conhecíamos a todos, admirávamos o talento desses artistas,

cada qual na sua especialidade: Glauber Rocha com seu talento

cinematográfico, Sante com sua pintura, Calasans com suas gravuras e

seus entalhes, João Ubaldo Ribeiro no início de sua famosa literatura,

Fernando da Rocha Peres, Carlos Anísio Melhor, com sua poesia, e

Paulo Gil Soares, homem de mil artes nas letras.

CASA CHEIA 

Amigos na Bahia era o que não nos faltava. Nosso círculo de

relações com figuras da intelectualidade baiana era cada vez maior:

Vivaldo Costa Lima, por exemplo, tornou-se nosso amigo mesmo antesde habitarmos a Bahia. Inteligência viva, Vivaldo era quem mais

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entendia de candomblé. Com ele aprendi muita coisa. Nas festas do

terreiro do Axé Opô Afonjá, de Mãe Senhora, enquanto Jorge, no seu

posto de Obá, sentava-se ao lado da mãe-de-santo, Vivaldo, a meu lado,

esclarecia minhas dúvidas, explicava-me coisas que, no meudesconhecimento dessa religião, ignorava.

Quando da visita de Sartre e Simone de Beauvoir à Bahia,

Vivaldo os acompanhou, respondeu com enorme competência a todas

as questões que o ilustre casal, interessadíssimo no assunto, lhe fez,

tornaram-se amigos.

Outra amizade que conquistou nossa intimidade foi a

deValdeloir Rego. Doutor em capoeira, autor de importante livro sobre a

arte de lutar capoeira. Valdeloir passou a freqüentar nossa casa e

muitas vezes nos acompanhou às festas nos terreiros de candomblé.

Com Valdeloir também aprendi muito.

Foi Odorico Tavares quem descobriu e nos apresentou o artista

Emanuel Araújo, muito jovem, quase um menino, porém já um mestre

na arte da gravura.

Fomos pela primeira vez, à casa de Emanuel, levados por

Odorico. Íamos ver os trabalhos, louvados pelo expert em arte, e tivemos

uma surpresa. O menino Emanuel nos esperava com um delicioso

almoço preparado por ele mesmo. Nessa ocasião o jovem se dedicava a

desenhar gatos. A série de gravuras que nos mostrou nesse dia era de

gatos. Só gatos, os mais belos, de olhos de todas as cores,

impressionantes.

 Já havíamos visto um trabalho de Emanuel, à venda, na loja de

antiguidades que Luz da Serra mantinha no térreo do Hotel da Bahia.

Gostamos, porém era um só, em sua casa, diante do desfile de gatos

que ele nos apresentou, pudemos nos encantar e ver que o menino iria

longe, não havia dúvida, ele era um artista de mão-cheia. Desde então

Emanuel ficou sendo nosso amigo, freqüentador de nossa casa.

Luz da Serra, mulher poderosa, tornara-se nossa amiga desde a

nossa chegada à Bahia, mesmo antes de comprarmos a casa. Amizade

que perdura até hoje.

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As VELHINHAS SE ENCONTRAM 

Lalu chegara para ficar definitivamente. Preparamos um quarto

especial para ela, o único a ser assoalhado e forrado, na enorme casa de

telha-vã com piso de lajotas.

Convidei mamãe a passar uma temporada conosco. Ela e Lalu se

davam muito bem  —  inimigas íntimas  — , distraíam-se contando e

ouvindo casos. Lalu gabando os filhos, filho dela não tinha defeito.

Mamãe, mais modesta, bem mais, não elogiava os seus; aventurou-se,

apenas uma vez, em conversa com Lalu, a justificar a sorte da filha

caçula:

 — Zélia nasceu com a estrela.

Lalu não perdeu tempo:

 —  Nasceu mesmo, casou com meu filho! Jorge também nasceu

com uma estrela. Só que a dele é bem melhor que a de Zélia, a estrela

dele é muito forte, ajuda ele a escrever livros, uma beleza!

Essas conversas muitas vezes se repetiam e enchiam o dia das

duas velhinhas.

Dona Angelina chegou ansiosa para ver as maravilhas da Bahia,

conhecer o Pelourinho do qual ela tanto ouvira falar.

  Já naquela época o Centro Histórico de Salvador estava muito

arruinado, casas caindo aos pedaços, muito lixo acumulado pelas ruas.

Levei-a ao Pelourinho e à feira de Água dos Meninos, onde chafurdamos

na lama para fazer algumas compras. Dona Angelina não gostou e,

muito confidencialmente, temendo ofender, me disse: Nunca vi tanta 

sujeira... Gostaria de ouvir os comentários de dona Angelina nos dias de

hoje. Ela nos deixou há muitos anos, não viu, não chegou a ver a

restauração do Pelourinho, a urbanização da cidade. O que diria ela?

Parece que estou a vê-la e ouvi-la: Que beleza! Gente danada! Nunca 

 pensei. 

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Habituada a comer verduras e legumes, dona Angelina

estranhou. Naquela época, em Salvador, não havia verduras a escolher.

Encontrava-se: taioba, língua-de-vaca, repolho, abóbora, quiabo,

maxixe, jiló, alface e tomate da pior qualidade. —  Com um terreno tão grande, por que não fazem uma horta?

 —  sugeriu dona Angelina.  —  Plantem escarola, tomate do bom, alface,

couve-manteiga, couve-flor, brócolis, rúcula, salsão...

Lalu ouvia atenta a lista de verduras que dona Angelina citava:

 —  Virgem Maria!  — disse ela.  — Pra que tanta verdura? Quem

é que vai comer tudo isso? Eu mesma não como, meu filho também não

gosta de verduras...

Os planos de dona Angelina iam muito além da mesa dos

Amado:

 —  Olhe, dona Eulália, vocês podiam até ganhar muito dinheiro

vendendo verduras. Nesta casa tem duas garagens e vocês só têm um

carro. Então! Podiam muito bem usar uma para fazer uma quitanda...

Seria a única da rua, única do bairro.

Lalu ouvia estatelada a proposta da mãe de Zélia:

 —  Olhe, dona Angelina. Vou lhe pedir um favor: a senhora

nunca mais me repita uma baixeza dessas.

 —  Baixeza, dona Eulália? Então vender verduras é baixeza?

Numa terra que não tem verduras, vender verduras é até uma obra de

caridade  — respondeu mamãe, revoltada.

 —  A senhora esquece, dona Angelina, que meu filho é um

grande escritor, um homem conhecido no mundo inteiro? A senhora

quer que ele vire verdureiro?

A discussão estava pegando fogo e eu, que até então me divertia

ouvindo-as, resolvi intervir:

 —  Muito bem. Dona Eulália tem razão em não querer que o filho

vire verdureiro, nem teria cabimento uma coisa dessas. Mas eu tenho

uma solução: Jorge não vai nem entrar na quitanda, Lalu fica na caixa

registradora e mamãe recebe e serve a freguesia, ela é muito

comunicativa, gosta de contar casos, a clientela vai gostar.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Mamãe entendeu que não valia a pena insistir, Lalu se deu por

vencedora.

A CASA DAS FRUTAS 

Correu voz que haviam aberto na Barra, no Alameda, uma casa

que vendia frutas e verduras vindas de São Paulo. Era a primeira e

única, freguesia enorme. Quem nos deu a boa nova foi Mirabeau. Jorge

resolveu dar uma espiada, pois, se ele não fora habituado a comerverduras e não sentia falta delas, adorava frutas e atrás das frutas é

que ele queria ir.

Mirabeau tinha um chofer de nome Edgard, que o servia desde

os tempos de solteiro. Algumas vezes na vida, por circunstâncias

diversas, Mirabeau deixou de ter automóvel mas nunca dispensou o

chofer. Na ocasião da abertura da Casa das Frutas, Edgard exercia sua

verdadeira função: dirigia o carro de Mirabeau.Mirabeau chamou Edgard.

 —  Você sabe onde fica a Casa das Frutas?

 —  Sei, não, doutor.

 —  Me disseram que fica no Alameda. Chegando lá a gente

pergunta. Deve ser fácil  — disse Mirabeau.

Assim dizendo, Mirabeau chamou Jorge e ambos embarcaram

no automóvel, Edgard ao volante. Ao chegarem ao local indicado,Edgard encostou o carro:

 —  Vou perguntar ali, no ponto de táxi, na certa eles sabem onde

fica a tal...

Voltou sem a indicação:

 —  Ninguém sabe, não, doutor.

 —  Vamos mais adiante  — ordenou Mirabeau. Rodaram mais um

pouco: —  Vá perguntar naquela padaria  —  mandou Mirabeau.

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Enquanto Edgard ia em busca do endereço, Jorge divisou, mais adiante,

um cartaz anunciando: Casa das Frutas. Ao voltar, ainda uma vez sem

a indicação, Mirabeau lhe mostrou o anúncio da casa. É ali mesmo. 

Somente dias depois ficamos sabendo do engano de Edgard. Eleconfidenciou a Arthur, filho de Mirabeau, que havia entendido casa das

putas. No ponto de táxi o chofer lhe dissera: Eu mesmo não sei, não.

Mas se você descobrir, me avise. Quanto ao empregado da padaria: Casa 

de puta mesmo, por aqui não tem. Se tivesse eu saberia, mas está vendo 

aquele prédio, ali adiante? Dizem que lá moram umas francesas que 

 facilitam. 

FLORINDA DOS SANTOS 

Uma das coisas que me encantou, durante anos, foi ver, quando

menos esperava, passar em minha frente, nas ruas da Bahia, um vulto

de mulher coberta da cabeça aos pés por uma mortalha de cetim roxo,

séria, calada, excessivamente maquiada, andando entre a multidão. Não

era esmoler mas não se acanhava em pedir restos de ruge, batom,

qualquer maquiagem. Ninguém conhecia a sua identidade. Nem o nome

dela sabiam. Corriam lendas sobre sua vida, falavam de amor

malparado, de mulher rica que perdera a fortuna, de caso de loucura,

mas nenhuma das histórias que ouvi me convenceu. A mulher de roxo

de repente sumiu, nunca mais foi vista. Somente agora, no jornal da

 TV, soube seu nome. Florinda dos Santos, a mulher de roxo, falecera

aos oitenta anos num asilo onde fora internada havia tempo.

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HÓSPEDE INESPERADO 

Um belo dia tocaram a campainha da porta. Fui atender, dei de

cara com um senhor idoso, uma valise de viagem depositada ao seulado, junto à porta de entrada. Embaixo, na calçada, dois rapazes que o

acompanhavam me deram um alô já se despedindo, o automóvel à

espera, de porta aberta, disseram: Ele é tcheco, é um diretor de cinema,

veio do Rio a convite de Walter da Silveira que vai prestar uma 

homenagem a Jores Ivens e a este cavalheiro, amanhã. Ele vai se 

hospedar aí com vocês. Não tive tempo de dizer nada, eles se foram.

O cavalheiro tcheco, professor ilustre da Academia de Artes dePraga, me cumprimentou em tcheco: Dobriden. Dobriden, respondi a seu

cumprimento e não fui mais adiante. Além do tcheco o cavalheiro falava

inglês, mas preferia falar tcheco já que lhe haviam anunciado que os

hospedeiros na Bahia, ex-moradores da Tchecoslováquia, falavam a

língua correntemente. Exageraram. O pouco do tcheco que eu

aprendera, àquelas alturas, já estava quase que completamente

esquecido, e Jorge também guardara apenas algumas palavras.O professor Broussel (não lembro se o nome era exatamente

esse) entendeu logo que não poderia manter longas conversações

conosco, nem longas e nem curtas. Ele participara de um festival de

curtas-metragens, no Rio, chegava à Bahia convidado por cineastas

baianos que iam homenageá-lo, assim como a Jores Ivens, famoso

cineasta, internacionalmente amado e respeitado. Ivens não pudera vir

à Bahia nessa ocasião, viria depois a convite de Jorge, velho amigo delongos encontros pela Europa.

Acomodei o professor tcheco no apartamento da frente, junto à

sala. Ele me perguntou se havia laranjas em casa e eu lhe dei uma

cestinha com laranjas, um prato e talheres. Ele então me pediu água

fervendo e um recipiente onde coubessem as laranjas. Colocou duas

laranjas dentro do recipiente, despejou a água fervendo em cima, até

cobri-las. Só depois de alguns minutos, descascou-as. Me contou dasrecomendações que lhe haviam feito, de só comer frutas no Brasil

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depois de matar os micróbios.

A homenagem ao professor tcheco seria realizada no dia

seguinte, às onze, no Cine Guarany, na Praça Castro Alves. Eu ia levá-

lo, pois nosso chofer Garrincha mostrara-se incapaz de dirigir o ManePato e fora despedido. Estávamos à espera de um novo motorista que

devia chegar a qualquer hora.

Pela manhã, depois do café, enquanto aguardávamos que o

professor arrumasse os seus pertences, ouvimos um ruído estranho que

vinha do banheiro: floc, floc, floc... O que estaria acontecendo? João e

Paloma, que iriam conosco, estavam intrigados com o estranho barulho

que não parava: floc, floc, floc... Por fim, o professor abriu a porta,

numa das mãos trazia a valise  —  depois da homenagem ele iria

diretamente para o aeroporto  — , na outra, algo branco, embolado. Ao

tomar o carro recusou-se a sentar na frente ao meu lado, cedeu o lugar

a Paloma, sentou-se atrás com João.

Um vento forte entrava pela janela traseira e eu notei que as

pessoas que passavam na rua paravam para olhar. Dei uma espiada

para trás: o velho desfraldara uma camisa branca para fora da janela,

verdadeira bandeira tremulante; a camisa era, sem dúvida alguma, a

que ele lavara pela manhã, lavagem causadora do intrigante ruído, e ele

agora pretendia secá-la.

Guido Araújo, jovem cineasta baiano, um dos promotores do

evento daquela manhã, nos recebeu à porta do teatro, conduziu o

ilustre diretor ao palco onde Walter da Silveira e outras personalidades

o aguardavam para darem início à cerimônia.

GOLPE DE ESTADO 

Aurélio, o novo motorista, veio avisar que Dr. Wilson Lins e dona

Anita, estavam chegando. Havíamos passado dias de angústia, com os

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boatos políticos que corriam, boatos alarmantes de golpe militar.

 Jorge estivera em São Paulo e no Rio, fora tratar com a editora a

publicação de Os pastores da noite, romance que acabara de escrever.

  Jorge saíra do Rio para a Bahia com o irmão, James Amado,num Peugeot novo que comprara para substituir o arruinado e

pranteado Mane Pato, que ficara no ferro-velho para sempre.

Os boatos sobre o golpe que se armava eram tantos e tais que,

ao verem os dois irmãos pegando estrada, comentaram: já estão

fugindo.

Os boatos se confirmaram na véspera dessa inesperada visita de

Wilson Lins. Rádio e televisão anunciavam a deposição do presidente

 João Goulart, que fugira para o Uruguai, tropas na rua, no Rio Grande

do Sul, Leonel Brizola, cunhado do presidente, comandava um

movimento contra o golpe.

Os generais reformados pelo presidente não estavam tão

submissos e conformados como ele supunha. Era anunciado o nome do

general Humberto de Alencar Castelo Branco, para substituir João

Goulart.

  Telefonamos para alguns amigos no Rio e sentimos na voz de

todos que voltara a prudência ao falar por telefone. A censura e a

autocensura já andavam à solta comboiando toda a sorte de restrições.

O sorriso estampado no rosto, olhos brilhando de satisfação,

Wilson era o próprio vencedor do golpe, golpe chamado pelos golpistas

de revolução:

Em nome da revolução... disse ele, mas não o deixei terminar a

frase. Olhe, Wilson, não venha falar em revolução nesta casa! Estamos 

cansados de sofrer, cansados de golpes militares. Me admira você, nosso 

amigo, vir com essa conversa de revolução, revolução fajuta, fascista, que 

vai acabar com a liberdade, vai botar todo mundo de novo na cadeia...

Diante da minha violência Anita quis reagir, mas Wilson não deixou.

Vim aqui para oferecer meus préstimos, apenas isso, justificou-se ele.

Sem mesmo lhe pedir, acabamos precisando da ajuda de Wilson

Lins. Homem cotado pelos cabeças do golpe, ele mesmo um dos

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inocentes úteis, conseguiu libertar João Jorge, que fora espancado e

preso ao participar nas ruas de uma passeata estudantil. Nem foi

preciso recorrer a Wilson. Ao saber da prisão de nosso filho foi ele

quem, espontaneamente, se mexeu, não teve dúvidas em acordar, demadrugada, uma alta autoridade, tirou João da cadeia, veio trazê-lo em

casa, de manhãzinha.

Nossos amigos andavam preocupados com o que pudesse

acontecer a Jorge. Começavam as invasões de lares, os livros de Jorge

Amado apreendidos, os leitores tachados de comunistas por lerem tal

escritor. Temerosas, as pessoas tratavam de esconder os livros

proibidos.

Ao voltar de uma viagem à União Soviética, havíamos trazido

miniaturas do Sputnik, novidade, coisa tola, mas que agradara os

amigos. Depois desse malfadado 1º. de abril até os pequenos Sputniks,

por prudência, foram destruídos por alguns de seus apavorados

possuidores.

A preocupação dos amigos de Jorge era saber se ele pretendia

exilar-se ainda uma vez. Daqui não saio, respondia Jorge. Se quiserem

me prender, que venham, mas não creio que tenham coragem de tocar em 

mim, a repercussão no estrangeiro os amedronta. 

O golpe iria, certamente, prejudicar o lançamento do livro novo,

Os pastores da noite, apenas saído da impressora. Dmeval Chaves, dono

da livraria e nosso amigo, chegou a sugerir o adiamento da tarde de

autógrafos. Jorge não concordou, e na tarde do lançamento a Livraria

Civilização Brasileira ficou abarrotada de amigos, de leitores, heróis

arriscando a própria segurança, e de olheiros da polícia política.

Depois dessa tarde, pelo que se soube, algumas residências

foram visitadas pela polícia, várias pessoas intimadas a depor para

responder a perguntas que tais: Qual a sua ligação com Jorge Amado? 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

DONA ZÉLIA ENTRA NA DANÇA 

 Já que falei em movimento estudantil e contei da prisão de João

  Jorge, peço licença para continuar no assunto e contar um episódioocorrido com Paloma e eu, fato que se deu alguns anos depois quando

nossa filha já cursava o Colégio de Aplicação.

Naqueles tempos de descontentamento, todo motivo era motivo

para que os estudantes levantassem a voz, se organizassem.

Dessa vez o que os incomodava era a assinatura do Acordo

MEC/USAID. A medida mexera com os estudantes universitários,

levando-os a promover uma passeata e concentração em frente àreitoria para protestar junto ao reitor. O Colégio de Aplicação, onde

Paloma estudava, pertencia à universidade, e seus alunos aderiram ao

movimento. Tomei conhecimento da reivindicação, achei-a justa.

Paloma chegou em casa, toda inflamada:

 —  Mãe, amanhã vou participar de uma passeata. Não adianta

dizer que não.

Ela acompanhara nossa angústia na ocasião em que João Jorgefora preso e temia que eu a aconselhasse a não se envolver. Enganara-

se redondamente. Perguntei-lhe o motivo da passeata e, ciente, quis

saber:

 —  A que horas vai ser essa concentração?

 —  Ao meio-dia, quando terminar a aula. Para grande espanto de

Paloma, eu disse:

 —  Muito bem, eu também vou. —  Você vai, mãe? Vai mesmo? Mas a passeata é só para os

estudantes, não é para as mães.

 —  Você não conhece tua mãe, menina  — disse Jorge, que ouvia

o diálogo  — , ela está doidinha para ir... deve estar morrendo de

saudades dos tempos dela... Tua mãe não foi brincadeira, Paloma, ela

não perdia uma passeata, uma concentração... Foi numa dessas que

nos conhecemos, e ela me pegou, você sabia?Eu não estava doidinha, morrendo de saudades de uma

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passeata, como pilheriara Jorge. Eu estava, isso sim, preocupada com

minha filha, com aquela juventude inexperiente que poderia fazer

bobagens, botar tudo a perder. Com minha velha experiência política,

testemunha e vítima de vários retrocessos democráticos, retrocessosdesastrosos, devidos exclusivamente à inépcia de falsos dirigentes,

queria estar ao lado dos estudantes tentando ajudá-los, impedindo-os

de praticar atos de vandalismo.

A PASSEATA 

Cheguei antes da hora marcada. Tive dificuldade para estacionar

o carro, o bairro do Canela estava intransitável, centenas de

adolescentes se aglomeravam nas adjacências e em frente ao Colégio de

Aplicação. Procurei por Paloma, ela ainda não havia saído, fiquei

esperando junto ao portão de entrada. De repente ela chegou

acompanhada de uma professora. Ao me ver, gritou, eufórica: Mãe.Olhou para a professora, que havia, minutos antes, tentado dissuadi-la

de participar da passeata dizendo-lhe: Pense em sua mãe, e disse: Está

vendo? Esta é minha mãe. Se a mãe não tem juízo, deve ter pensado a

professora, lavo minhas mãos. Disse qualquer coisa que não entendi e

entrou no colégio.

No meio de tantos jovens eu me sentia a própria choca, cuidando

dos pintinhos. Saímos andando e, ao ver um menino colhendo pedrasno chão, dei meu primeiro grito de comando: Vamos fazer uma passeata 

  pacífica, nada de provocações, jogue fora essas pedras... Surpreso, o

menino me obedeceu.

A passeata subia a Avenida Sete de Setembro, paramos em

frente ao Palácio da Aclamação. Enquanto os meninos gritavam,

pedindo escolas para as crianças, tudo bem, eu gritava com eles, mas

quando vi que voltavam a colher pedras do chão, dispostos a quebrar osvidros das janelas do Palácio, subi num monte de pedras encostadas a

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um poste, abracei-me nele e voltei a ordenar, aos gritos, com toda a

veemência, que deixassem as pedras no chão e, sempre aos berros, fiz-

me entender: aquela não era uma passeata de baderneiros, de

provocadores, botei toda a minha experiência em funcionamento e elesme ouviram.

Passávamos pela casa de Genaro de Carvalho, em frente ao Hotel

da Bahia. Da janela, ele chamou Nair e ambos não acreditaram em seus

olhos ao me verem entre os meninos, gesticulando e gritando com eles.

Nosso destino era a reitoria, tínhamos combinado cantar o hino

nacional para anunciar nossa chegada, mas não deu tempo: fomos

recepcionados por um camburão de onde saltaram vários soldados com

máscaras, em disparada sobre nós, atirando bombas de gás

lacrimogêneo. Havia chovido e as plantas do jardim da reitoria estavam

molhadas; também molhados estavam os carros estacionados. Com um

desembaraço enorme, os jovens molhavam os rostos com as folhas e as

flores, empapavam lenços na água depositada nos capôs e nos vidros

dos automóveis, passando-os molhados no rosto a fim de neutralizar o

efeito do gás. Meninos sabidos, mais experientes do que eu supunha.

Segui-lhes o exemplo, molhei meu rosto com flores mas, mesmo assim,

passei algumas horas sentindo um incômodo ardor nos olhos.

L ALU SE ACIDENTA 

Durante o almoço, o guardanapo de Lalu escorregou de seu colo,

ela baixou-se para apanhá-lo, perdeu o equilíbrio, a cadeira tombou e,

bumba, lá se foi ela ao chão. Coisa de segundos para interromper um

almoço, alarmar a todos. Tentávamos levantá-la, mas ela se recusava

num gemido só: Ai, ai, ai, me deixem, quebrei minha perna. A muito

custo, conseguimos colocá-la na cama e, enquanto esperava o médico

que Jorge chamara, ela se lamuriava: Ai, meu Deus, o que vai ser de minha vida.. Velha e de perna quebrada! Osso de velho não cola nunca..,

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Não vou mais poder andar... Não adiantava querer consolá-la, dizer que

certamente não fora o fêmur o osso fraturado, que talvez nem houvesse

fratura. Lalu se ofendia: É  porque não é tu que está sofrendo as dores 

que estou sofrendo, é por isso que tu fica aí dizendo essas coisas, pensando que estou fingindo... ai, ai, ai... 

O médico não demorou a chegar, trazendo o necessário para

fazer uma radiografia de cujo resultado só se soube no dia seguinte:

completamente descartado o diagnóstico de Lalu: nada de fratura na

perna, apenas trincara um osso na virilha, pequena rachadura sem

importância.

 Tu viu!, disse-me ela ao ficarmos a sós, não quebrei a perna, não,

 foi só a caixa da periquita. Fez uma pausa. Também ela já não tem mais 

serventia, não é, fia?  

Não foi preciso engessá-la, apenas o repouso e a imobilidade por

alguns dias seriam suficientes para recuperá-la. Eu estava sempre a

seu lado, mas um dia necessitei sair com Jorge e ao voltarmos

encontramos a cama de Lalu vazia. Chamei por Eunice, nossa

empregada, e, tranqüilamente, ela nos disse que dona Eulália estava

passeando no jardim. Alarmados, fomos ao seu encontro e qual não foi

a surpresa: Lalu passeava refestelada nos braços de Rufino.

Emocionados, vimos a cena: o homem forte, braços estirados para a

frente e sobre eles uma pluma, frágil, delicada, feliz da vida entre o

arvoredo e as flores, a nossa Lalu.

Creio ter sido a emoção daquela tarde o motivo, válido por toda a

vida, de nosso reconhecimento, carinho e paciência com Rufino. (Pode

parecer invenção minha mas não é: interrompi o que estou escrevendo

para atender a Rufino, dar-lhe o dinheiro para que pague a conta de

água atrasada de três meses. Com seu eterno sorriso, estendeu-me o

aviso, dizendo-me apenas: Já estão pra cortar.)  

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L ADEIRAS DA BAHIA 

Esta cidade do Salvador é uma cidade de muitas ladeiras, seus

nomes os mais belos e sugestivos:

Ladeira do Aquidabã, Ladeira dos Perdões, Ladeira da Água

Brusca, Ladeira da Preguiça, Ladeira do Quebra Bunda, Ladeira da

Roça do Lobo, Ladeira do Curriachito, Ladeira do Taboão, Ladeira do

Sangradouro, Ladeira Amparo do Tororó e mil outras, cada nome

fazendo refletir sobre sua origem. A do Quebra Bunda, penso eu, deve

ter sido dada após a queda de alguém.

DADÁ REALIZA SEU SONHO 

Na Ladeira dos Perdões morava Dadá, viúva de Corisco, lugar-

tenente de Lampião. Dadá perdera uma perna numa luta do cangaço.

Ferida e sem recursos para tratar-se, a perna gangrenara e o jeito fora

cortá-la. Sentada o dia todo em frente a uma máquina de costura, ela

vivia de confeccionar embornais de lona, bordados, iguais aos que fizera

para Lampião e seu bando. Embornais coloridos e bordados,

verdadeiras belezas.

Conhecêramos Dadá ao irmos em busca de comprar embornais,

uma amiga nos dera o seu endereço. Estávamos de viagem marcada

para a Europa e queríamos levar alguns para presentear amigos. Daí

para a nossa amizade com Dadá foi um pulo. Casada pela segunda vez,

vários filhos, ela colara, pelas paredes de seu modesto quarto, retratos,

recortes de jornais e revistas do bando de Lampião e, sobretudo, de

Corisco, de quem falava com grande ternura. Contou-nos que fora

raptada por ele aos quatorze anos, ele passara a cavalo, a apanhara e a

envolvera numa manta. Fora muito feliz com o cangaceiro, não admitia

que falassem mal dele. Transfigurava-se ao contar os episódios por que

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passara, chorava ao recordar a barbaridade que haviam cometido,

cortando as cabeças de Lampião, de Corisco e dos demais do bando,

conservadas em formol, sob uma redoma de vidro, expostas à visitação

pública, no Museu Nina Rodrigues, na Faculdade de Medicina.Nunca permiti que enterrassem o corpo de Corisco. Um corpo deve 

ser enterrado inteiro, com cabeça, disse ela. Espero que um dia ainda 

apareça um governador que se dê conta desse horror e libere as cabeças.

Quando isso acontecer, disse-nos, eu vou fazer o enterro. Indicou-nos

um baú de flandres, debaixo de sua cama: Ali dentro estão os ossos de 

Corisco esperando pela cabeça, para o enterro. 

Dadá e o segundo marido dormiram durante muitos anos sobreo esqueleto de Corisco, até que o governador Luiz Viana Filho, homem

de letras, culto e civilizado, apenas eleito acabou com aquela

monstruosidade, ordenando que as cabeças fossem enterradas.

Havia muita gente no Campo Santo naquela tarde assistindo ao

enterro de Corisco, realizado por sua amada. Lá estava, firme, solidária,

Maria Amélia, mulher de Roberto Santos, que por vezes a socorrera.

Contribuímos para a compra do caixão. Quero um caixão decente para 

ele, dissera-nos Dada. Ao lado dela, vimos Corisco ser enterrado,

esqueleto e cabeça juntos no mesmo caixão, num caixão decente.

BIOGRAFIA DE CORISCO E DADÁ 

Sabedor da amizade e do carinho de Jorge por Dadá, tempos

depois do enterro de Corisco um cidadão telefonou: queria, em nome de

Dadá, falar com Jorge Amado um assunto da maior importância. Sendo

em nome de Dadá, Jorge marcou entrevista com o cavalheiro. Ele

apareceu, a vigarice estampada no rosto:

 —  Seu Jorge Amado — foi dizendo  — , tenho uma proposta a lhe

fazer, empreitada que pode nos dar muito dinheiro.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 Jorge não mostrou curiosidade pela proposta, perguntou-lhe:

 —  Como vai Dadá? Esteve com ela?

 —  Não é bem isso  —  confessou o cara.  —  Andei entrevistando

Dadá...Não foi preciso ouvir mais nada, Jorge entendeu tudo, foi

levantando. O sujeito estava ansioso para explicar a que vinha.

 —  Veja bem, seu Jorge  —  insistiu  — , tenho um belo material,

material precioso das entrevistas com Dadá e das pesquisas que fiz

sobre o bando de Lampião, de Corisco, o amor de Dadá. Pode dar um

livro e tanto.

 —  Já está escrevendo o livro?  — perguntou Jorge

 —  Bem, a minha participação no livro será apenas de

pesquisador, essa é a minha especialidade. Pensei que o senhor

poderia, com a prática que tem, escrevê-lo em três tempos. Nós dois o

assinaríamos. Que tal?

Vendo Jorge calado, cara de poucos amigos, ele ainda ousou:

 —  A gente pode até dar uma coisinha à Dadá, o que acha? Jorge

 já não achava mais nada, perdera a paciência. Levantou-se, despediu-

se:

 —  A sua proposta não me interessa. Me desculpe, tenho o que

fazer.  —  Chamou Aurélio, pediu que acompanhasse o cidadão até a

porta.

Dias depois, o "pesquisador" voltou à carga, uma, duas, três

vezes, tentando, por telefone, convencer o escritor a ser seu sócio no

livro. Cansados dos repetidos telefonemas, resolvemos não atender

mais, deixamos que a secretária eletrônica gravasse as mensagens.

Uma delas, creio que a última, porque depois ele desistiu, foi tarde da

noite. Uma voz de além-túmulo dizia: Jooorge Amaaado, hóóó Jooorge 

Amaaado! Quem fala aqui é a alma de Corisco... ouviu bem? 

Coooriiiscooo... Faça o livro de Dadáaaa, Jorge Amado! Faça o livro de 

Dadáaaa... ouviu bem? Hó! Jorge Amado... senão eu vou aí com Lampião 

te puxar os pés... 

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As CAMPAINHAS T OCAM

Histórias como a da alma de Corisco e outras se repetem nesta

nossa casa do Rio Vermelho. Não fossem elas cansativas seriam até

pitorescas. Tocam as campainhas do telefone e da porta, algumas vezes

eu atendo o telefone e ouço histórias e pedidos como, por exemplo, o da

senhora que, ao terminar de ler Capitães da areia, descobrira o bom

coração do escritor e o carinho dele pelas crianças:

 —  É dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo

com a senhora mesmo: eu tenho uma filha de dez anos, menina

estudiosa, só tira notas altas mas... não tem computador para fazer os

trabalhos... Ela me pede sempre um computador e eu não tenho

dinheiro para comprar. Então pensei... Talvez o Jorge Amado ou dona

Zélia...

 —  Um computador? A senhora quer um computador? Entendi

direito?

 —  Isso, dona Zélia, mas não precisa ser grande, pode ser

pequeno mesmo... desses portáteis, ela é uma criança...

Outro telefonema:

 —  E dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo

com a senhora mesmo. Sabe o que é? Minha professora mandou que a

gente lesse o livro de Jorge Amado, Mar morto. Eu não tive tempo de ler

e preciso falar sobre ele hoje. Se não souber, tiro zero. Eu queria então

que Jorge Amado, ou a senhora, me contasse o enredo do livro, pode ser

mais ou menos, não precisa ser tudo...

Outro telefonema:

 —  Jorge Amado não pode atender? Então eu falo com a senhora

mesmo. Sabe o que é? Eu tenho uma filha muito bonita e muito

inteligente, uma verdadeira artista. Ela tem vontade de trabalhar no

teatro. Eu queria pedir ao Jorge Amado, eu agradeceria muito se ele

pudesse fazer um teste com ela no teatro dele... Ela é uma gracinha,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

garanto que ele vai gostar, vai contratá-la...

Em homenagem ao escritor, foi dado, há um ano, seu nome ao

teatro inaugurado na Pituba: Teatro Jorge Amado. Daí a confusão,

dessa e de outras que telefonam pedindo entradas.Desta vez foi a campainha da porta que soou:

Aurélio veio anunciar: Tem um caboclo aí na porta, quer mostrar 

ao doutor Jorge uns versos que ele escreveu. Ocupado, com visitas em

casa, Jorge mandou dizer que não estava.

Passaram-se alguns minutos, novamente a campainha da porta

soou. Outra vez Aurélio apareceu, na mão uma folha de papel pardo: E 

o caboclo que voltou. Enfiada no papel uma enorme pena de peru e,

abaixo, escrito: QUIS FALA COM NHO-NHÔ MAS NHO-NHÔ XISCONDEU!  

Ainda um telefonema: não vendo jeito de falar diretamente com

  Jorge Amado, conformada em se abrir comigo, a voz feminina foi

falando sobre o motivo do telefonema:

 — O único bem que possuo na vida é a minha história. Moro em

casa de aluguel, preciso muito comprar uma casinha para morar e

quero propor ao Jorge Amado vender a ele a história de minha vida. Não

tenho nada escrito, está tudo na minha cabeça e se ele estiver de

acordo, posso ir à sua casa e lhe conto tudo. É uma história muito boa,

muito forte, vai dar um romance e tanto, com toda a certeza.

O IMPERADOR ROMANO 

Quando o Concorde fazia a linha Rio de Janeiro — Paris, Com

escala em Dacar, viagem que reduzia à metade o tempo de Vôo, Jorge

não quis outra vida. Tomamos o Concorde algumas vezes. Com pouco

mais de três horas de vôo, desembarcávamos no Senegal e lá ficávamos

até o vôo seguinte a Paris, três dias depois.

Em Dacar tínhamos a companhia de João Cabral de Melo Neto,

velho amigo, na ocasião embaixador do Brasil no Senegal, visitávamosLeopold Senghor, presidente da República, nosso velho conhecido dos

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

tempos do exílio em Paris. Mais do que a companhia formidável desses

ilustres amigos, gostávamos de perambular pelas ruas, andar pelo

mercado, conversar com as pessoas, uma graça, um divertimento. Jorge

 já se tornara popular entre os barraqueiros do mercado, com os quais,durante horas, barganhava o preço da mercadoria, no velho estilo

africano. A intimidade entre eles era tal que certa vez, enquanto um

deles teve que se ausentar por alguns minutos, confiou a barraca a

  Jorge, que não queria outra coisa senão mercadejar como se fosse o

dono daquilo tudo e até conseguiu vender um bubu. No mercado e

numa butique elegante, de uma irmã do presidente Senghor,

compramos os mais belos bubus, os mais vistosos e coloridos, cômodos

para o nosso clima quente. Jorge adotou o bubu como traje de verão na

Bahia, veste-o ao levantar-se da cama, soltão, em cima da pele, o ar

circulando, um conforto.

Naquela manhã, ele escolhera para vestir o mais colorido dos

bubus e tomava o café quando a campainha da porta tocou. Quem

seria, àquela hora? Eram apenas sete horas.

Aurélio entrou anunciando:

 —  Está aí na porta um padre.

 —  Um padre?  — admirou-se Jorge.  — Tem certeza?

 —  Tenho sim, senhor. Ele está de batina branca, traz alguns

livros para o senhor autografar.

 —  Mande ele entrar  — disse Jorge.

Homem ainda moço, simpático, o padre começou por pedir

desculpas pelo horário, tão cedo. Convidei-o a tomar café conosco, ele

agradeceu, acabara de tomar, aguardaria que Jorge terminasse para

autografar os livros que trouxera, dele e de outras pessoas de sua

paróquia, em Tucano, cidade de águas térmicas da Bahia.

O visitante mostrava-se emocionado e, de mãos trêmulas,

transmitiu um convite do prefeito da cidade, se quiséssemos fazer uma

estação de águas lá, seríamos hóspedes da prefeitura.

Os livros autografados na mão, o padre passou a falar da

emoção que sentia diante de seu autor preferido, citou trechos de

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

romances seus... Não sendo afeito a elogios à queima-roupa, muito pelo

contrário, Jorge ficou encabulado, procurou mudar de assunto, como

sempre acontece. Dessa vez não conseguia mudar de conversa, o padre

era seu fervoroso admirador. Finalmente, cortando um elogio no meiode uma frase, Jorge lhe perguntou:

 —  O senhor tem condução?

 —  Não, não tenho. Vim de táxi e o despachei na porta. Naquele

tempo não havia a facilidade de hoje, de pedir táxi por telefone, e o jeito

foi mentir:

 —  Meu motorista deve sair agora e talvez o senhor possa

aproveitar a condução.

Dizendo isso, Jorge chamou Aurélio e pediu-lhe que deixasse o

reverendo onde ele quisesse: Depois você vai fazer o que mandei.

Escolado, Aurélio entendeu tudo. Jorge levantou-se para as despedidas

e qual não foi nosso espanto ao ver o padre cair de joelhos diante a seus

pés, tentando beijar-lhe a mão, olhos voltados ao céu e exclamar: Que 

lindo! Parece um imperador romano!  

Ao voltar da empreitada, Aurélio comentou: O padre estava muito 

impressionado com doutor Jorge. Ele até me perguntou: O mestre traja-se 

sempre assim? Ao que eu respondi: Daí pra mais!... 

(Interrompo meu trabalho para ouvir um recado que Rose me

traz: Uma mulher telefonou agora, pedindo para a senhora escrever uma 

carta para Roberto Marinho pedindo-lhe um emprego de Mista, na Rede 

Globo, gostaria que fosse em novela.)  

CASA PRONTA, HÓSPEDES ILUSTRES 

Morávamos na rua Alagoinhas fazia algum tempo, ocupáramos a

casa com operários ainda trabalhando nos mil e um retoques de

acabamento e, com ela nesse estado, hospedáramos os amigos de

Pernambuco  —  as famílias de Paulo Loureiro e de Rui Antunes  —  e

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também Floriano Teixeira.

O último operário que nela trabalhara arrumou as ferramentas,

despediu-se. A casa estava pronta. Tudo em seus lugares. Uma beleza.

Podíamos receber à vontade.Muitos amigos foram nossos hóspedes, no correr dos anos:

Georges Moustaki, Roseana Sarney e Jorge Murad, Pablo Neruda e

Matilde, Chico Anísio e Sônia Braga, Odylo Costa, filho e Nazareth,

Arnaldo Estrela e Mariuccia Jacovino, Antônia e Gabriel Darboussier,

Moacir Werneck de Castro com Nené, Tereza e Márcio Amaral, Beatriz

Costa, Nicole e Frank Thomas, Antoinette Hallery, Misette Nadreau,

Anny-Claude Basset, Antônio Olinto e Zora Seljan, Sérgio Porto, entre

tantos outros, vindos de todas as partes.

Só depois de instalados foi que nos demos conta  —  eu,

sobretudo  —  de que a casa, maravilhosa no lado esquerdo, era um

horror no lado direito. Ela fora construída parede e meia com o vizinho,

a cozinha era mínima, a área de serviço não passava de um corredor

separado, por um muro, do quintal da casa ao lado e não havia

lavanderia.

Bocas santas as de Lalu e de dona Angelina, ao afirmarem que

os filhos haviam nascido com uma estrela: um belo dia, soubemos que o

vizinho da direita pretendia vender a casa. Não perdemos tempo, não

discutimos preço, compramos a casa e, novamente, entramos em obras.

Demolimos a residência modesta de três pequenos cômodos

acanhados e fizemos uma cozinha grande, lavanderia, área de serviço,

quarto para hóspedes e um grande gabinete com estantes, muitas

estantes para as traduções dos livros de Jorge. O terreno dos fundos,

um belo terreno, foi transformado em jardim de rosas, com roseiras

trazidas de São Paulo e de outras partes. Carybé jurava que o clima da

Bahia não se prestava para roseiras, mas teve que entregar os pontos

ao vê-las, meses depois, floridas das mais belas rosas do mundo.

As mais belas roseiras viveram uns poucos anos, viveram até

que uma cartinha de Zuca, na véspera de nosso regresso à Bahia, de

uma de nossas viagens à Europa, endereçada para o Hotel Tivoli, nos

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contava: Tudo por aqui vai mais ou menos.... choveu muito estes tempos 

e as roseiras sofreram bastante... Haviam sofrido tanto que,

desanimados, resolvemos acabar com o jardim e nele cavar uma piscina

que nos vale, até hoje, nos dias quentes de verão e até nos dias quentesde inverno.

No gabinete feito para Jorge trabalhar, ele nunca trabalhou:

Quero saber o que se passa em minha volta, não consigo produzir em 

ambiente fechado, costuma dizer e é verdade. Jorge escreveu Dona Flor 

e seus dois maridos no terraço aberto, o gato Nacib, um siamês que o

acompanhava por toda a parte, era seu peso de papel. Nacib dormia

sobre as folhas dos originais, podia ventar à vontade que elas nãovoavam. Gabriela e Vadinho eram sua família, esposa e filho, porém o

grande amor de Nacib era Jorge.

Certa vez, ao vê-lo parado diante da máquina, perguntei-lhe se

estava tendo algum problema. Nenhum problema, disse ele,  preciso 

consultar uma página e estou com pena de acordar Nacib, que dorme tão 

bem... 

Quando chovia, aliás, quando chove, pois ele não mudou seus

hábitos, chuva de açoite, molhando tudo, Jorge se recolhe, e é numa

das extremidades da mesa de jantar que ele instala sua máquina, a

papelada, e trabalha sempre ligado ao movimento da casa, querendo

saber quem telefonou, quem tocou a campainha da porta.

GATOS 

 Jorge teve a quem puxar esse seu amor por gatos. Lalu sempre

teve um gatinho de estimação, falava muito num de nome Buzégo mas

os que conheci foram Professor e Naninha. Professor morreu ao cair de

um segundo andar do Hotel Ópera, onde os velhos moraram, no Rio de

 Janeiro. Naninha veio com ela do Rio e recebia de sua dona tratamentoespecial, verdadeira baronesa: Sempre gostei de ter gato fidalgo, dizia

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Lalu ao ajeitar a gatinha sobre uma almofada de cetim, ao colocar-lhe

um babador no pescoço antes de dar-lhe na boca o mingauzinho.

A empregada que atendia Lalu um dia lhe perguntou:

 — 

A Naninha já comeu, dona Eulália? Lalu ficou danada: —  Que é isso, menina, mais respeito com minha gata! Ela é tua

irmã, por acaso, pra você chamar ela de Naninha? Ela é tua patroa,

entendeu?, é Dona Naninha! Dona!!!

Dona Naninha era uma gata bonita, porém sem nenhuma raça.

Lalu mandara castrá-la: Não quero que ela se meta com qualquer gato 

 por aí. Ainda se fosse com o gato de Jorge, gato de raça, eu até deixava,

mas o burro nem olha pra cara dela, gato muito cheio de vontades, gato 

 prosa. Um dia, Nacib, o gato cheio de vontades, o gato prosa, engasgou-

se com uma espinha de peixe e morreu, deixando-nos inconsoláveis.

 Jorge não disfarçou a tristeza de perder seu companheiro. Nunca mais 

vou me apegar a nenhum animal, disse. Nacib morreu deixando viúva a

Gabriela, uma siamesa como ele, e Vadinho, filho do casal.

Ao voltar de São Paulo, onde fora tratar com o editor da

publicação de um novo livro, Jorge deu uma parada no Rio. Leu num

 jornal um anúncio: Vendem-se gatinhos persa azuis, tratar na rua Santo 

Amaro... Seu amor por gatos falou mais alto do que a promessa feita de

nunca mais se apegar a animais.

A ninhada anunciada já estava quase toda vendida quando

 Jorge chegou, só restara uma gatinha. Pois é uma gatinha mesmo que 

eu quero, disse ele, encantado com o bichinho cinzento de longos pêlos

finos de seda, quase a lhe cobrir os olhos e o focinho achatado.

Comprou a bichaninha, com pedigree, detalhe, aliás, que para ele não

tinha a menor importância, estava encantado com o animalzinho e isso

bastava. A gatinha chegou à Bahia já batizada: se chamaria Dona Flor.

Dona Flor crescia, cada vez mais linda, Jorge encantado com ela,

até que um belo dia a flagramos cruzando Gabriela. Dona Flor não era

apenas macho, revelava-se um garanhão de primeira. Achamos a maior

graça nesse engano de sexo, mas os empregados não gostaram da

brincadeira, a decepção foi geral, sentiram-se logrados e trataram de

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mudar-lhe o nome: Onde é que já se viu um macho ter nome de mulher?,

dizia Eunice, preconceituosa. Passaram então a chamá-lo de Dom Floro.

Para nós ele continuou sendo Dona Flor, o pai de Chacha, que nasceu

da sua primeira cruza com Gabriela, gatinha linda, de pêlos brilhantes,escuros, olhos de âmbar, grandes e amarelos. Seu nome — nome de uma

heroína argentina  —  foi sugerido por Pedro José Entío, jovem argentino,

namorado de Paloma na época.

Poderia, ainda uma vez, pedir licença para contar que Chacha

ficou sendo minha gata com quem eu conversava nos passeios pelo

  jardim. Mulher de Vadinho e de todos os gatos da redondeza, Chacha

insistia em dar cria ao meu lado e, certa vez, após uma operação que

me obrigara a ficar em repouso, ela, praticamente, induziu Jorge a

forrar minha cama com jornais e plástico e pariu sobre meu corpo... A

cada intervalo de um gatinho para outro, eu falava com ela,

massageava-lhe a barriga, mas... fico por aqui com os gatos, já falei

demais neles. Deixo até de contar detalhes sobre um casal que tivemos,

vindos da ilha inglesa de Man, no mar da Irlanda, gatos extraordinários,

que tinham a postura e andavam aos saltos, como coelhos, mortos por

Chacha numa crise de ciúmes.

O GOLPE DO BICHO-PREGUIÇA 

Falarei, se me permitem, num bicho-preguiça em nosso jardim.  Tudo indicava que o rapaz, parado na esquina da padaria, no

Largo de Santana, vendia o enorme animal peludo que trazia nos

braços.

 —  Pare, Aurélio, quero ver que bicho é aquele  —  disse Jorge.

Aurélio deu a volta na praça, parou na esquina:

 —  É um bicho-preguiça. Olha só a cara dele!

  Jorge pagou pelo animal o que o rapaz lhe pediu, achou caromas pagou, iria enriquecer o arvoredo lá de casa. Pediu segredo a

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Aurélio, não devia me dizer nada, soltariam o bicho no terreno sem que

eu visse, queria fazer-me surpresa.

Quando me mostraram a preguiça subindo, lentamente, num pé

de mulungu, nem de longe acreditei que ela tivesse aparecido sozinha,com suas próprias pernas, mas fiquei contente, chamei as crianças,

todo mundo de cabeça para cima assistindo à lenta trajetória do

animal.

No fim da tarde, já não havia mais uma única folha no mulungu.

Zuca disse logo: É a planta que o bicho-preguiça mais gosta. Tínhamos

três pés de mulungu e, em dois dias, eles ficaram reduzidos ao toco,

não sobrou uma folha sequer. No quarto dia quem sumiu foi a preguiça.

Nem cogitamos em mandar procurá-la, em pouco tempo o animal daria

cabo de nossas árvores com tal competência que faria inveja às saúvas

destruidoras.

Dias depois, quem é que estava firme, na esquina da padaria no

Largo de Santana? O mesmo rapaz que nos vendera o animal. Ali estava

ele tentando passar adiante o bicho-preguiça, certamente o seu ganha-

pão.

CASA MOVIMENTADA 

As portas de nossa casa estavam sempre abertas para os

amigos. Trouxemos da Europa, certa vez, uma quantidade boa de

queijos e convidamos alguns amigos para saboreá-los, num domingo

pela manhã. Reunidos em torno dos queijos e do vinho, estavam:

Carybé e Nancy, Mirabeaue Norma, João Ubaldo Ribeiro, Francês Switt,

Alexandre e Judy Watson, Jenner e Luísa, Lev Smarchewski, Coqueijo e

Aydil, Gilberbet e Sônia, muita conversa, muita cantoria e muita risada.

Ainda havia muito queijo e vinho, repetiríamos aquele encontro

delicioso. A notícia se espalhou e, no domingo seguinte, em vez de

quinze pessoas, apareceram vinte. O número de conhecidos e

desconhecidos, parentes e aderentes, que apareciam a cada domingo foi

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crescendo: Soubemos que vocês estão recebendo aos domingos... open 

house... E, de repente, nos demos conta de que, mesmo sem queijo

francês, estávamos sendo obrigados a receber, aos domingos pela

manhã, dezenas de pessoas em nossa casa. O que fora satisfação ealegria tornara-se uma obrigação, trabalheira sem tamanho, um

cansaço para nós.

Felizmente, uma viagem ao estrangeiro nos ajudou a terminar a

esbórnia das manhãs dominicais.

UM EBÓ SEM RUMO CERTO 

  Jorge reservava as tardes de domingo para uma rodada de

pôquer. Por vezes, quando os parceiros eram muitos, faziam duas

mesas: Mirabeau, Mecenas Marcos, Negro Batista, Odorico Tavares,

Yves Palermo, os infalíveis. Enquanto os homens jogavam pôquer, as

mulheres se acabavam no bigorrilho ou no buraco: Norma, Nancy, Josette, Emina, Stella Robato e eu. O único homem a jogar conosco, de

vez em quando, era Alexandre Robato, cineasta, fotógrafo, dentista,

homem cheio de bom humor. Carybé não gostava de jogo, mas vinha

com Nancy, ficava desenhando.

Um dia ouvi Lalu falando a Jardelino, seu irmão mais novo,

 Jarde, como ela o chamava: Tu nem imagina, meu irmão, os amigos de 

Jorge aqui na Bahia não trabalham, são todos artistas, todos vagabundos, só vivem pintando quadros, cantando, gostam de conversar,

de rir e de jogar baralho... O único trabalhador, deles todos, é Jorge, vive 

escrevendo o coitadinho, às vezes tenho até pena... 

Num domingo à tarde, depois de uma movimentada partida de

bigorrilho, ao despedir-me das parceiras, senti forte dor nas costas.

Certamente apanhei uma corrente de ar, pensei. Jorge me massageou,

mas a dor não foi embora. Passei uma noite incômoda, a estranha dorpersistia.

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Pela manhã, apareceu Carybé com Olga de Alaketo, mãe-de-

santo, nossa amiga.

Carybé tivera um sonho muito estranho: sonhara que eu tinha

tido um filho e a criança nascera andando e falando. Ao passar pelacasa de Olga, coisa que costumava fazer ao deixar os filhos no colégio

ali nas imediações, ao tomar o cafezinho com a mãe-de-santo, contou-

lhe o sonho que tivera comigo. Olga, dona dos mistérios e dos segredos

dos encantados, arregalou os olhos, não quis encompridar conversa:

Vamos agora mesmo à casa de Jorge, Zélia está correndo perigo de 

vida... Prevenida, com um ramo de folhas variadas no braço, ela entrou

no quarto onde eu me encontrava com dores, sem poder me levantar:

Isso é trabalho feito aqui dentro das portas, afirmou. Vocês têm 

alguma empregada que é de candomblé? Nós não sabíamos mas, depois

de uma sondagem, tivemos conhecimento de que a cozinheira lidava

com ebós. Tudo então ficou claro: a cozinheira queria dobrar Jorge, que

se recusara a aceitar em casa, como empregada, sua filha com uma

criança de colo. Orientada, ninguém soube por quem, a cozinheira

então depositara um pó branco nos quatro cantos da casa, aferventara

umas ervas, jogara tudo pelas escadas da rua. Segundo Olga, nas ervas

atiradas porta afora, estava o perigo, perigo às vezes até de morte. Como

 Jorge tem corpo fechado, explicou ela, nada pega nele, a mandinga virou 

sobre a pessoa mais próxima: Zélia. 

Como que por milagre, depois de umas sacudidas das folhas,

que Olga trouxera, em cima de mim, e de palavras em língua nagô, as

dores sumiram.

O ANEL DE JUREMA 

Bm toda a literatura de Jorge Amado sente-se o destaque que ele

dá aos mistérios das ruas da Bahia, no poder dos encantados. Vimcompreender realmente a verdade dessas afirmações ao mudar-me para

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Salvador, ao conviver com seu povo, com seus preceitos e segredos.

Num domingo à tarde, enquanto Jorge e eu dormíamos a sesta,

Beatriz Costa, atriz portuguesa, nossa hóspede na ocasião, atendeu à

porta. Uma senhora, muito aflita, queria falar com Jorge. A visitante erade São Paulo, estava há dias procurando encontrar-se com o escritor,

devia regressar no dia seguinte. Beatriz despachou-a: Não pode, o 

escritor precisa de descanso, é preciso respeitar... Tivemos pena da pobre

que, segundo Beatriz, partira chorando.

À noitinha, apareceu Carybé, vinha nos chamar para ir à festa

de Oxóssi, no candomblé de Mãe Senhora.

A festa começara, já fora oferecido o padê a Exu, as filhas-de-

santo dançavam, quando, de repente, Beatriz apertou meu braço: Olhe 

lá, a mulher Que esteve à tarde na vossa casa... De aspecto simples, a

senhora estava acompanhada de um casal.

Assim que as filhas-de-santo foram levadas para mudar o traje,

  Jorge levantou-se da cadeira dos obás, ao lado de Mãe Senhora, veio

para fora, Beatriz e eu o acompanhamos. A paulista precipitou-se sobre

 Jorge:

 —  O senhor é Jorge Amado, não é?

 —  Sim, senhora  — confirmou Jorge.

Sem nenhum preâmbulo, ela foi direto ao assunto:

 —  Jorge Amado, onde é que está meu anel?

Nesse momento, vimos Camafeu de Oxóssi andar em nossa

direção. Sem fazer nenhuma pergunta à mulher, Jorge respondeu-lhe:

 —  Seu anel está com Camafeu de Oxóssi.  —  Assim dizendo,

apresentou-a a Camafeu:  — É ele quem tem seu anel.

A mulher, então, tirou da bolsa um papel com um desenho,

mostrou-o a Camafeu:

 —  O senhor tem este anel?

 —  Tenho, sim senhora  — disse ele.

Resumo aqui a história da forasteira: nunca soube seu nome nem seu

endereço. Tudo que sei é que era costureira de profissão, casada, e o

marido querendo abandoná-la por outra. No Terreiro da Cabocla

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 Jurema, em São Paulo, fora-lhe aconselhado ir a Salvador, procurar o

escritor mais importante da Bahia, pedir a ele um anel  —  deram-lhe o

desenho do anel  — e, de: posse dele, ela reconquistaria o marido.

Levando o desenho na bolsa, ela partira de ônibus para a Bahia.Hospedara-se num pequeno hotel junto à rodoviária. O que se passou

quando bateu em nossa porta já se sabe. Por coincidência, ao voltar

para seu hotel depois da frustrada visita, viu passar de automóvel uma

freguesa sua, de São Paulo. A freguesa e o marido passeavam em

Salvador e a convidaram para ir ao candomblé, naquela noite. Foi assim

que a costureira pôde falar com quem procurava.

Acostumado a lidar com pessoas, as mais estranhas, Jorge não

se surpreendeu com a pergunta à queima-roupa. Não quis perder tempo

questionando com a mulher que o abordava. Solucionou o caso

apresentando-a a Camafeu que se aproximava, pessoa indicada, já que

o amigo possuía  — como já se sabe  — uma barraca de coisas africanas,

no Mercado Modelo. Por coincidência, Camafeu acabara de receber, da

África, uma partida de anéis, pulseiras e outros enfeites. Encantara-se

com um dos anéis, esse seria de Toninha, levou-o para casa, não ia

vendê-lo.

Qual foi, finalmente, o resultado dessa série de coincidências?

 Tudo o que eu soube foi que Toninha ficou sem o anel. E a costureira

reconquistou o marido? Isso só Deus sabe. Nunca mais tivemos notícias

dela.

PESSOA IMPORTANTE 

Nesse dia eu mesma atendi à porta. Em minha frente, Zé

 Trindade, nos braços um cachorrinho pequinês.

Popular ator de filmes de chanchada, Zé Trindade apresentava-

se em teatros e na televisão, fazia sucesso com seus programashumorísticos. Viera à Bahia visitar a família, daria um show no teatro e

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aproveitava a ocasião para visitar o amigo Jorge Amado.

A cadelinha é um mimo para você e já está batizada: o nome dela 

é KM, disse-me Zé Trindade ao me entregar o presente.

A chegada de Zé Trindade em nossa casa causou alvoroço entreos empregados. José, o faxineiro, Neusa e Eunice estavam excitados.

Ouvi um cochicho entre eles: Tu sabia que doutor Jorge era tão 

importante assim? Até Zé Trindade? Eu, hem! Nem acredito... 

Nossa casa era freqüentada por Dorival Caymmi, Vinícius de

Moraes, João Gilberto, Tom Jobim, Sérgio Porto e outros bambas, sem

contar os estrangeiros e os artistas importantes da terra. Nenhum

deles, no entanto, aparecera em filmes de chanchada e nem eram

populares. Na opinião de José, Neusa e Eunice, esses amigos de doutor

  Jorge não passavam de gente boa, gente educada. Adoravam Carybé

mas nunca iriam achar que podia ser importante um cara que só

andava de sandálias japonesas e em mangas de camisa. No entender

dos empregados lá de casa, estou certa, esses amigos estavam longe de

dar ao doutor Jorge o status e as glórias de um Zé Trindade.

Kiki não morou conosco muito tempo. Ela chegou num momento

em que viajávamos freqüentemente e para que tivesse companhia

durante a nossa ausência a deixávamos sob os cuidados de nossa

amiga Auta Rosa, esposa de Calasans Neto, louca por cachorros e dona

de Yuki, um pequinês que, embora platonicamente, adorava Kiki. Auta

e Calasans se afeiçoaram a Kiki e a cadelinha acabou ficando com eles,

morando em Itapuã.

Na época de nossa chegada à Bahia, Caetano Veloso, Maria

Betânia, Gilberto Gil, Calasans Neto freqüentavam pouco a casa do Rio

Vermelho. O mundo dessa juventude era outro. Calasans Neto só veio a

ser cidadão de nossa casa depois de seu casamento com Auta Rosa,

moça de Ilhéus, alegre, franca, que nos conquistou, tornando-se uma de

nossas melhores amigas. Quanto a Caetano Veloso, viemos estreitar

nossos laços de amizade na Inglaterra quando, banido pelo golpe

militar, Caetano foi viver em Londres. Nessa época, passamos seis

meses morando num apartamento alugado, na Georges Street, onde

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 Jorge escreveu o romance Tieta do Agreste. 

Gilberto Gil despedia-se da Bahia, as terras do Sul abriam-lhe as

portas. João Jorge e Paloma freqüentavam o grupo dos jovens artistas e

eu os acompanhei algumas vezes às despedidas de Gilberto Gil, emlocais os mais diversos, cada despedida uma festa.

GLAUBER ROCHA 

Dos jovens baianos geniais, apenas Glauber Rocha era íntimo de

 Jorge, mantinham uma amizade quase de pai para filho. Alma inquieta,Glauber não parava na Bahia. Casara-se com Helena Ignês, antes que

nos mudássemos para Salvador. Assistimos ao seu casamento e lhes

oferecemos nosso apartamento no hotel Quitandinha, onde os noivos

passaram os primeiros dias de sua lua-de-mel. Lá, Glauber adoeceu,

deve ter se chateado naquele imenso e deserto hotel, desceu para o Rio

e ficou em nosso apartamento na Rodolfo Dantas. De Salvador, Jorge

viajara para Pernambuco e eu para o Rio. Passei a dormir na sala paraceder nossa cama ao casal. Chamei um médico amigo, Dr. Alcedo

Coutinho, que o botou de pé em três tempos, e lá se foi Glauber, partiu

para novas aventuras, para novos filmes já bulindo em sua cabeça,

mundo afora.

Acompanhamos a carreira de Glauber e sua vida até o fim.

Estávamos em Portugal, onde nosso amigo se refugiara, depois de uma

campanha sórdida e sectária desencadeada contra ele, no Brasil, por termanifestado sua opinião favorável sobre o general Golbery do Couto e

Silva, teórico da Revolução, com quem manteve bom diálogo.

Sensível como era, Glauber Rocha não pudera suportar o

patrulhamento do qual estava sendo vítima.

Ao vê-lo gravemente enfermo, Jorge aconselhou-o a retornar ao

Brasil onde teria a assistência de sua mãe, de seus amigos, estaria na

sua terra. Desculpou-se por não aceitar dessa vez o conselho do amigo,recusou-se a voltar. íamos visitá-lo diariamente no hospital, em

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Cascais, e depois em Lisboa, onde fora Internado.

Amigo fraterno de Glauber, desde os tempos da juventude, João

Ubaldo Ribeiro passava um ano em Lisboa, coincidindo com I estada de

Glauber em Portugal. Na casa de Ubaldo e Berenice, Glauber encontrourefúgio e carinho. Incansável, durante a enfermidade do amigo, João

esteve a seu lado até o fim.

O cantor Raimundo Fagner, que se encontrava de passagem por

lá, na época, também o visitava sempre, fazia-lhe companhia. Foi nessa

ocasião que conhecemos e ficamos amigos do cantor e compositor

cearense. As últimas fotografias de Glauber, no hospital, foram tiradas

por mim e por Fagner.

 Já nas últimas, quando não havia mais esperanças, Glauber foi

transportado para o Brasil, onde faleceu apenas chegou.

DORIVAL CAYMMI 

Dorival Caymmi passava temporadas na Bahia e era assíduo

freqüentador de nossa casa. Foi nessa época que ele compôs a canção

para Menininha do Gantois: ... a mão da doçura, está no Gantois... Isso

mesmo. A mão da doçura, a doçura ela própria, Mãe Menininha, a

ternura em pessoa.

Amigos de longa data, Caymmi e Jorge são confundidos muitas

vezes, porém de parecido eles têm apenas as cabeças brancas.Certa vez, no terreiro do Gantois, numa visita à Mãe Menininha,

encontramos no barracão algumas pessoas à espera de serem

atendidas. A chegada de Jorge provocou um certo movimento, houve

cochichos, olhos em cima dele. Reconheceram-no, pensei. Não passou

muito tempo, uma senhora do grupo, não resistindo à curiosidade,

adiantou-se:

 —  O senhor não é o Dorival Caymmi? —  Não sou o Dorival Caymmi, mas sou o irmão dele  —  

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respondeu Jorge, tranqüilamente.

Caymmi nos contou que o mesmo se passava com ele:

 —  Jorge Amado, como vai o livro?

 — 

Vai indo, vai indo — 

respondera Dorival ao homem que oabordou na rua.

Se nossos empregados não davam a devida importância aos

amigos da casa, em compensação a chegada de qualquer um deles

movimentava a rua.

Vinicius de Moraes, outro amigo de toda a vida, não deixava de

aparecer, sempre que vinha à Bahia. Numa dessas visitas, que durou

um dia inteiro, ao sair, à noitinha, foi abordado por um grupo de jovens

na calçada em frente à nossa porta. Munidos de cadernos e canetas,

voaram pra cima dele: Dorival Caymmi, pode me dar um autógrafo? 

Vinicius não perdeu o rebolado, foi autografando: Dorival Caymmi,

Dorival Caymmi, Dorival Caymmi..., muito obrigado, e se foi rindo

satisfeito.

Comigo aconteceu confusão semelhante: eu fora visitar Mãe

Menininha no Gantois. Perguntei a um preto velho, sentado junto à

 janela, pela mãe-de-santo. De onde estava gritou: Ó L icinha! Avise Mãe 

Menininha que a mulher de seu Carybé está aí. Corrigi-o em seguida:

Não sou a mulher de seu Carybé, não, sou a mulher de Jorge Amado. Ele

fez um gesto com a mão: É tudo a mesma coisa...

VINÍCIUS DE MORAES 

Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a

série de canções para crianças, de sua autoria:

A beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão

em punho, Vinicius cantava.

Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querercontar logo a história que me veio à memória  —  como já devem ter

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as

lembranças chegam  —  esqueci-me de pedir licença para, ainda uma

vez, avançar no tempo. Peço agora, pois devo explicar como foi que as

músicas infantis de Vinícius de Moraes se salvaram. Avanço tanto,tanto, que falo até de meus netos, os três que existiam na época:

Mariana, Bruno e Maria João.

Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma baiana,

Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma

casa ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de

Itapuã.

Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava  — como foi dito

 — quando chegaram meus três netos.

Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse

Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não 

tinha teto, não tinha nada... Espera aí, interrompi, vou buscar um 

gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho

ligado e ele recomeçou: Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá... Cantou

todas as canções, intercalando entre elas uma chamada: Esta é para 

Marianinha!... Esta é para Bruninho!... Esta é para Maria João!...

Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois elas

ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não

restara nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei

meu cassete à Gilda Queiroz Matoso, última e amada companheira do

poeta até seus derradeiros momentos. Gravação precária, porém a

única que restou e é a que se ouve até hoje.

Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa,

adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria,

queria ficar perto deles.

A rua da Amoreira, onde moravam  —  e moram até hoje  —  

Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso

não bastasse, havia esgoto a céu aberto.

Freqüentador assíduo da casa, inconformado com a situação

dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao

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prefeito de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e

carinho para a rua.

Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-

petição na primeira página do jornal A Tarde.

Petição ao Prefeito 

Prefeito Clériston Andrade

A quem ainda não conheço:

Quero tomar a liberdade

Que eu nem sequer sei se mereçoDe vir pedir-lhe, em causa justa

Um obséquio que, sem favor

Muito honraria (e pouco custa!)

Ao Prefeito de Salvador.

Existe ali no Principado

Livre e Autônomo de Itapuã

Uma ruazinha que, sem embargoPertence à sua jurisdição

Uma rua não sem poesia

E cujo título é dar teto

A uma das glórias da Bahia:

O gravador Calasans Neto.

Dizer do estado dessa ruela

(Da Amoreira) eu não arriscoPorque sem esgotos, correm nela

Rios de...... — Valha-me o asterisco!

E isso é uma pena, Senhor Prefeito

Pois Calasans e sua gravura

 Têm cada dia mais procura

De fato como de direito:

O que constrange os visitantesCom boa margem de estrangeiros

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

A, entre gravuras fascinantes

Ver quadros nada lisonjeiros.

Calce essa rua, Senhor Alcaide

E eu lhe garanto que algum diaPro domo sua, esta Cidade

O há de lembrar com mais valia.

Na expectativa de que acorde

Um novo "Cumpra-se", sem mais

Aqui se assina, muito ex-corde

O seu, Vinícius de Moraes.

  Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco

tempo a rua de Auta e Cala foi consertada e asfaltada e, diga-se de

passagem, ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das

imediações.

Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no

mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.

Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa

ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da

limpeza pública, levando para Cala e Auta a petição, enquadrada.

CONCEITO DE L IBERDADE 

Numa edição pequena da editora Macunaíma, Vinicius de

Moraes publicou um livro sobre seu amigo Pablo Neruda: História

natural de Pablo Neruda ou A elegia que vem de longe. 

Um belo dia, estava Vinicius, muito na dele, tomando seu

uisquinho na casa de Cala, divertindo-se com as histórias que o

anfitrião lhe contava, mestre na arte de contar histórias, quando

apareceu uma repórter do Jornal do Brasil  para entrevistar o poetasobre o livro recém-saído.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Naqueles anos duros de censura e repressão, as palavras deviam

ser medidas. A repórter, inocente ou não, fazia perguntas

comprometedoras. Vinícius, ele próprio, fora vítima da ditadura,

perdera seu posto de diplomata com o seguinte despacho do presidenteda República: Afaste-se esse vagabundo. Assinado: Artur da Costa e 

Silva. 

Experiente, Vinícius respondia com evasivas às perguntas da

repórter até que a jovem resolveu fazer-lhe a pergunta definitiva:

 —  Vinícius de Moraes: o que pensa o senhor sobre a liberdade?

Qual é o seu conceito de liberdade?

Vinícius não titubeou, tranqüilamente respondeu:

 —  Meu conceito de liberdade é poder fazer cocô de porta aberta.

MOUSTAKI VEM À BAHIA 

Assinando a coluna social de A Tarde, notas lidas pela Bahia

inteira, July (Julieta Isenssée) anunciava: A convite de Vinícius de 

Moraes, chegará à Bahia, nesses próximos dias, o compositor grego, de 

nacionalidade francesa, Georges Moustaki, autor de  Le Meteque e de 

 Joseph, entre tantas composições maravilhosas. Ele virá para a estréia,

no Teatro Castro Alves, do show de Vinícius de Moraes, O poeta, a moça

e o violão, que terá a participação de Toquinho e Maria Creuza. Georges Moustaki chegou à Bahia quando Vinícius ainda

morava em casa de aluguel, casa sempre movimentada, ponto de

encontro de artistas, cantores, compositores, mais movimentada, sem

comparação, do que a nossa.

Além de Toquinho e Maria Creuza, integrantes do show, estavam

hospedados com Vinicius a atriz Suzana Gonçalves e a estrela

canadense Alexandra Stewart. Com a casa repleta, Vinicius nosconsultou, talvez pudéssemos hospedar Georges Moustaki. Foi com o

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maior prazer que concordamos: o compositor seria nosso hóspede.

Conhecêramos Moustaki na França, éramos seus admiradores.

Paloma possuía uma coleção de cassetes das canções dele e a voz de

Moustaki nos acompanhava em todas as viagens de automóvel.Georges Moustaki lera os livros de Jorge Amado e, segundo diz e

repete, se apaixonara. Pedira à Verinha, jovem paulista, nossa

conhecida, amiga dele, que o apresentasse ao escritor. Daí começou o

nosso relacionamento.

O BANDIDÃO 

O poeta, a moça e o violão estrearia no dia seguinte, havia grande

expectativa em torno do espetáculo. Ocupadíssimos com os

preparativos e os ensaios, Vinicius não poderia ir ao aeroporto esperar

seu convidado que chegaria naquele dia. Pediu então às duas atrizes,

Suzana e Alexandra, que o fossem esperar. Elas tomariam um táxi, deItapuã ao aeroporto era um pulo.

Plantadas no meio da rua à espera de que passasse um táxi,

viram que um carrão de luxo, um rabo-de-peixe, que passara por elas,

diminuíra a marcha, parará, dera uma ré. Bem-posto, óculos ray-ban, o

moço perguntou:

 — Querem carona? Para onde vão?

Encantadas, elas aceitaram, o cavalheiro era simpático. Eleabriu a porta da frente e as duas entraram.

 —  Você não é a Suzana Gonçalves?  —  Ele a reconhecera das

novelas, era seu admirador.

 —  Sou eu mesma. Minha amiga também é atriz, ela não fala

português.

 —  Você não está me reconhecendo, Suzana?  —  perguntou ele,

rindo. —  Não, não estou. Creio que nunca o vi antes.

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 —  Ainda bem  —  disse ele ao mesmo tempo em que tirava os

óculos.  — E agora?

A moça tentava lembrar-se:

 — 

Não, não me lembro. —  Eu sou Mariel Mariscot — disse. — Isso não lhe diz nada? Claro

que dizia: Mariel Mariscot, o temido policial-bandido do Esquadrão da

Morte, procurado como agulha no palheiro pela polícia. Os jornais

haviam se ocupado muito dele. Suzana conseguiu apenas dizer:

 —  Não acredito. O senhor está brincando, está querendo me

assustar...

 —  Não estou brincando, não. Abra a caixa que está a seus pés e

veja.

O homem não mentia. Na caixa havia nada mais, nada menos do

que uma metralhadora e munições.

Alexandra Stewart estava sem entender nada até o momento em

que viu a metralhadora e aí se apavorou, empalideceu: Vamos pedir 

 para ele parar e vamos descer, pediu a moça. Vivo, Mariscot entendeu o

que a canadense dizia: Explique a ela que não precisa se assustar, eu 

não sou nenhum bicho-papão, não sou o bandido de quem tanto falam.

Apenas faço justiça com minhas próprias mãos, nunca matei um 

inocente, só mato bandidos, assassinos, por isso pertenço à Scuderie Le 

Cocq. Não se assustem, por favor, repetiu ele. Levo vocês ao aeroporto e 

 posso até esperar que vosso amigo chegue  — é um cantor grego, não é?  — e 

levo vocês de volta à casa de Vinicius. A conversa havia rolado bastante

antes da descoberta da sua identidade.

Mariel Mariscot estava a par de tudo, não conhecia, nem de

nome, Georges Moustaki, mas em compensação era grande admirador

de Vinícius de Moraes, até cantar, cantou um verso do Poetinha que,

segundo ele, o comovia às lagrimas: Mas quero as janelas abrir para que 

o sol possa vir iluminar nosso amor... 

Aos poucos foi conquistando a confiança de Suzana, que chegou

até a oferecer-lhe entradas para o show, no dia seguinte.

Entradas para o show, disse ele, infelizmente não posso aceitar.

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Sou procurado pela polícia, como você sabe, não posso me arriscar a ir a 

um local fechado, se me pegam me matam na hora. ..Só não abro mão de 

esperar por vocês no aeroporto. Vivo tão solitário que as suas 

companhias, hoje, foram um presente para mim. Georges Moustaki encontrou à sua espera as duas belas e um

possante rabo-de-peixe, dirigido por um membro do Esquadrão da

Morte, que o levou a Itapuã.

Ao deixá-lo na casa de Vinícius, Mariscot, gentil, ofereceu-se:

Posso, se quiserem, passeá-lo pela Bahia, não façam cerimônia, estou 

disponível, não tenho o que fazer, conheço os mais belos recantos da 

cidade. Será um grande prazer para mim. Convite tentador, mas isso

seria demais, não foi aceito.

Ao tomar conhecimento do acontecido, Vinícius quase desmaiou.

Moustaki, ao saber dos detalhes, achou muita graça e sempre que fala

de sua primeira visita à Bahia conta com orgulho: Na minha primeira 

visita à Bahia fui recebido pelo maior bandido do Brasil. 

Peço licença para dar uma nota, nota que nada tem a ver com a

Casa do Rio Vermelho, mas que pode satisfazer a curiosidade de quem,

por acaso, tenha se interessado pelo fim que levou Mariel Mariscot:

Os jornais anunciaram com estardalhaço: Preso na fronteira da 

Bahia, ao regressar ao Rio de Janeiro, de automóvel, o bandido Mariel 

Mariscot, perigoso elemento do Esquadrão da Morte... 

 Tempos depois, voltei a ler nos jornais: Morto por uma rajada de 

metralhadora, no rosto, o fugitivo da polícia Mariel Mariscot, membro do 

Esquadrão da Morte... O carro do bandido, dirigido por ele próprio, foi 

abordado e metralhado, de frente, numa rua do centro do Rio de Janeiro,

 por um pelotão da polícia... 

PAIXÃO 

Nessa sua primeira visita à Bahia, Moustaki passou um mês

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conosco e sua presença na rua Alagoinhas aumentou ainda mais o

movimento da casa: músicos e compositores o visitavam, moças bonitas

e feias também apareceriam. Houve até uma que apelidamos de

peitudinha, devido, só podia ser, aos seus peitos enormes. Essa seplantou e não queria mais ir embora. Outra convidada por Moustaki a ir

à praia e, não tendo um biquíni à mão, declarara: Isso não tem 

importância, tomo banho nua mesmo. Solícita, quis emprestar-lhe um

maio, clássico, Christian Dior. Olhando com o maior desprezo para o

meu lindo Dior, ela deu um chega pra lá, monologando com desdém:

Samba-canção. 

O telefone tocou, queriam falar com Jorge. Jorge Amado foi

chamado:

 —  Querem falar com você  —  disse Misette, que passava uma

temporada conosco e atendera o telefone.

 —  Homem ou mulher?  — quis saber Jorge.

 —  Tanto pode ser homem como mulher  — riu Misette.

 —  Alô! É Jorge?

 —  Sim, eu mesmo.

A voz  — masculina, segundo ele  —  vinha do fundo do coração e

exclamou:

 —  Paixão!!!

 —  Espera um pouco  — disse Jorge, rindo - — , há uma pequena

confusão, não sou eu a sua paixão. Sua paixão já vai lhe falar.  —  

Passou o fone para Moustaki.

Essa história rendeu muita risada e até hoje os dois, Georges e

 Jorge, se tratam por paixão.

Moustaki voltou ainda várias vezes à Bahia e, numa delas,

inspirado, compôs duas músicas: Bye bye Bahia e Bahia. Nessa última

há um verso que diz: c'est la que j'ai trouvé lê paradis, à côté de chez 

Jorge Amado.

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A CANJA 

O show de Vinicius, no Castro Alves, foi o maior sucesso, o

teatro superlotado. Moustaki foi chamado ao palco, deu uma canja,cantou Águas de março em sua versão francesa. Na volta para Itapuã,

ao passarem por Amaralina, Vinicius resolveu dar uma esticada no bar

Samburá. Passaria ainda uma horinha com os amigos, se distendendo.

 Toquinho dedilhava o violão, Maria Creuza cantarolava, falavam,

riam. Vinicius pediu a Moustaki que cantasse sua versão do Balance,

ele adorava ouvi-la. Moustaki cantou: ... j´sais pas dance, pas dance... o 

balance, balance... A pedido de Moustaki, Vinicius entrou com Garota de Ipanema. Cantava, alma e charme para dar e vender, quando de

repente, surgiu um empregado do bar. Interrompendo o poeta disse:

Vamos acabar com isso aí? O patrão não quer esculhambação aqui 

dentro! 

O HOMEM FORTE 

Homem forte da Bahia, diretor do Diário de Notícias,

mandachuva da TV Itapuã, primeira estação de televisão no estado,

também da organização dos Diários Associados, de Assis

Chateaubriand, Odorico Tavares mandava e não pedia.

Na casa de Odorico Tavares, no Morro Ipiranga, encontrava-se a

mais bela coleção de quadros, pinturas de renomados artistas

brasileiros e estrangeiros. Lá estavam as famosas marinhas de Panceti,

as mais belas mulatas de Di Cavalcanti, a Bahia de Carybé, gravuras de

Calasans Neto, dois ou três Portinari. Além da valiosa coleção de

pintura, Odorico possuía imagens de ; santos, tantas e tão belas que,

basta dizer, durante alguns anos o Museu de Arte Sacra da Bahia foi

famoso pelos objetos sacros e pelas preciosas imagens emprestados por

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Odorico Tavares, de sua coleção.

Numa sala, à parte, estavam os primitivos e entre os baianos

destacavam-se João Alves, Cardoso e Silva e Willys, pseudônimo de

 Thales Porto, um mestre primitivo que pintava pouco, seus elos quadroseram raros. Três personagens que faziam história.

A grande casa de Odorico, comandada por Gercina, meiga e doce

criatura, a esposa que fala pouco e manda muito, era movimentada e

sóbria. As filhas Leda e Maria, o filho Jader, ajudavam a receber os

visitantes, personalidades quase sempre recomendadas por

Chateaubriand.

A grande festa era a chegada de Di Cavalcanti, amigo fraterno de

Odorico, pernambucano como os donos da casa, que vinha para os

bate-papos e as rodadas de pôquer com parceria formada: o anfitrião,

 Jorge, Mirabeau, Yves Palermo, Negro Batista... Muitas vezes o jogo era

na rua Alagoinhas e, então, todos almoçavam conosco, e o festival de

histórias contadas por Di era em nossa casa. Eu não participava do

pôquer mas me regalava, ali ao lado, sem dar palpites, ouvindo as

histórias e as invenções do imaginoso Di. Recordo ele cantando a

paródia de uma canção italiana: Comme prima..., que ele dava a sua

versão: Quem tem prima, come prima... 

MÚSICA PARA o ANIVERSÁRIO 

Odorico Tavares ia completar cinqüenta anos, Gercina e os filhos

haviam preparado uma festa de arromba, até Assis Chateaubriand viria

para a comemoração.

Uma festa dessas sem banda de música não tem graça, não

presta, pensaram os compadres Jorge e Carybé. Se bem pensaram,

melhor executaram: foram ao comandante do Corpo de Bombeiros,

conseguiram que a corporação prestasse uma homenagem ao ilustreaniversariante, mandando a banda tocar marchas e dobrados, em hora

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determinada pelos dois pelintras, na porta da casa em festa, no Morro

Ipiranga. Não satisfeito com isso, por conta própria, Carybé comprou

uns rojões para serem disparados à chegada dos músicos.

Do caminhão aberto que encostou, homens uniformizados, cadaqual com seu instrumento, desembarcaram em frente à casa de

Odorico, repleta de convidados. Rojões pipocaram no céu, a banda

entoou o hino: O Cisne Branco. Lá dentro os donos da casa se

entreolharam: Foram eles, disse Odorico ao poeta Carlos Eduardo da

Rocha, a seu lado, Jorge e Carybé. Gercina ouviu o comentário e disse:

Isso mesmo, obra dos dois pilantras, de Jorge e Carybé.   Todo mundo

saiu à rua, o primeiro a chegar ao portão, rindo de se acabar, foi DiCavalcanti. Carybé, dava uns requebros na frente da banda, Dmeval

Chaves, o livreiro, vizinho de Odorico, assustado apareceu, de roupão,

entre os moradores da rua, saíra do banho com a gritaria dos filhos que

anunciavam uma revolução, bombas e soldados desembarcando no

morro...

SEM SAIR DO L UGAR 

Di Cavalcanti me telefonou um dia. Soube que vocês têm criação 

de Pug, vi um filhote na casa do Noel Nutels. Ando louco atrás de um 

cachorrinho dessa raça. 

  Tínhamos, realmente, um casal de cachorros da raça Pug,vindos da Inglaterra, chamavam-se: Mr. Pickwick e Capitu. Mr.

Pickwick, homenagem de Jorge a um personagem de Charles Dickens,

autor de seus encantos, e Capitu, heroína de um romance de Machado

de Assis.

Déramos a nosso amigo Noel Nutels um cachorrinho de Capitu,

parideira de grandes ninhadas. O cãozinho foi o amigo fiel do famoso

médico indigenista, até seus últimos dias. Numa visita ao enfermo, Divira o cãozinho e ficara alucinado.

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 —  Pois olhe, Di  — eu lhe disse  — , minha cadelinha está prenha

e eu vou guardar um cachorrinho pra você.

Di Cavalcanti riu satisfeito.

 — 

Em troca, vocês vão receber um quadro meu. —  Sem sair do lugar!  — exclamei.

Aprendera com Odorico Tavares, cuja teoria era a de que jamais

se deve recusar um presente de obra de arte. É aceitar na hora, sem 

 fazer rapapés, sem discutir, sem sair do lugar, frisava o mestre.

Semanas após minha conversa telefônica com Di, soubemos da

vinda dele à Bahia. Fora anunciado que lhe seria outorgado o título de

Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia.

A notícia da homenagem da universidade a Di Cavalcanti nos

alegrara e a todos os seus amigos e admiradores. Recebíamos a notícia

com o júbilo de quem havia se revoltado, sem poder reclamar, com a

humilhação imposta ao grande pintor pelos donos da Revolução 

Redentora, destituindo-o do posto de embaixador na França.

Nomeado embaixador na França pelo presidente João Goulart

pouco antes do golpe de 64, ao receber as credenciais Di Cavalcanti

viajou para a Europa a fim de assumir o cargo. Apenas chegara a Paris

e mal tomara posse, sua nomeação fora cassada, fora tirado do posto:

Fui embaixador por um dia..., costumava dizer Di, cheio de bom humor.

FESTIVAL DE CASSAÇÕES 

O embaixador Di Cavalcanti fora cassado, como muita gente

boa, naqueles anos de regime militar, quando se vivia num verdadeiro

festival de cassações.

Uma série de atos institucionais a partir de 1964, culminou, em

1968, com o célebre AI-5, dando poderes totais ao regime militar, carta

branca para cometer, impunemente, os maiores crimes: prender e

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torturar, cassar os direitos do homem, sobretudo de cientistas,

compositores, cantores, artistas plásticos, jornalistas.

O renomado cientista Haity Moussatché, professor e pesquisador

do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, foi cassado e passouquinze anos trabalhando no Conselho de Pesquisas, na Venezuela, até

voltar ao Instituto de Manguinhos em 1985. Moussatché costumava

dizer: Não fui eu quem foi cassado, foi toda uma geração de jovens em 

 formação. 

Dos compositores, os mais visados e atingidos foram Caetano

Veloso e Chico Buarque de Holanda.

Com a cabeça raspada pelos esbirros da polícia, num ato de

violência e selvageria, perseguido, Caetano Veloso deixou o país, foi

procurar teto em Londres.

A vez de Gilberto Gil não tardou a chegar, não era mais possível

viver no Brasil. Como deixar de criar livremente suas músicas? O clima

de restrições, de censura, tornava-se insuportável. Despedindo-se do

Brasil e da Bahia, Gil foi encontrar-se com Caetano em Londres, partiu

deixando aquele abraço. 

Chico Buarque sobreviveu muito tempo com a censura em seus

calcanhares proibindo tudo e ele teimando, prosseguindo, camuflando:

Apesar de você amanhã há de ser outro dia..., cantou ele, cantou o povo

até que a censura maliciou, cassou, prosseguiu na tocaia à espera de

novas composições para novas cassações. Chico partiu, continuou a

compor na Itália, onde viveu vários anos. Debaixo dos caracóis dos seus 

cabelos, cantou Roberto Carlos para Caetano Veloso, no exílio.

Di Cavalcanti voltou para o Brasil, para sua pintura,

aguardando dias melhores para seu país. Agora ele seria recebido com

as pompas merecidas, na Bahia.

A BARGANHA 

Capitú já dera cria, o cãozinho prometido a Di estava à sua

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espera. Na véspera de chegar à Bahia ele me telefonou:

 —  Chego amanhã. O quadro está pronto. Vou levando...

 —  Pois o cachorrinho também está pronto, é lindo, você vai se

apaixonar...Di veio direto do aeroporto à nossa casa, trazendo o quadro.

Quadro enorme, de mais de um metro, mulatas deitadas, coloridas...

Cheguei a perder o fôlego, imaginara que o trabalho anunciado fosse

um desenho, quando muito uma aguada... Lembrei dos ensinamentos

de Odorico: Aceite antes que ele se arrependa... Entreguei o

cachorrinho, apanhei o quadro que foi pendurado, em seguida, na

parede de nosso quarto de dormir, onde se encontra até hoje. No

momento só me ocorreu dizer: aceitamos o quadro em troca de um

cachorro e de quarenta anos de amizade...

Em homenagem a Vasco Moscoso de Aragão, personagem de O

capitão de longo curso  — dos romances de Jorge Amado, a paixão de Di

 — , o cachorrinho foi batizado com o nome de Capitão. Inscrito, por

Beril, mulher de Di, em concursos caninos, Capitão recebeu medalhas

de ouro como o melhor da raça. O remorso da disparatada barganha,

até que diminuiu diante dos diplomas, das glórias e da satisfação que

Capitão dava a seus donos.

Os PRIMITIVOS 

Mostrei interesse pelos primitivos da coleção de Odorico Tavares

e ele mandou que João Alves e Cardoso e Silva nos procurassem.

Personagem popular no centro de Salvador, João Alves começara

a pintar quando ainda era engraxate, no Largo da Sé. Sem nenhuma

instrução, João Alves era um primitivo, ele próprio, de grande

sensibilidade artística. Retratava a Bahia em cores vivas, seus casarios,

seus telhados. Sua pintura era inconfundível, destacava-se entre osdemais primitivos da Bahia.

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  João deixara de ser engraxate, dedicava-se apenas à pintura.

Vendia seus quadros por qualquer dinheiro e quando não vendia

trocava por bugigangas. Até por duas latas de goiabada, certa vez, ele

trocou um quadro. Estava encantado com o bom negócio e me explicou:Eu como uma, a outra fica de pé, de enfeite, na prateleira. 

  João Alves vivia com uma senhora gorda e calada, a criatura,

como ele dizia, numa cafua do Pelourinho. No acanhado cubículo sem

  janelas, escuro e úmido em que viviam, não havia espaço para o

cavalete de trabalho, o jeito era pintar no corredor ou na rua, o que não

fazia diferença para o artista, isso não alterava a qualidade dos

quadros.

Sobraçando três telas, João Alves apareceu um dia, todo suado,

penara debaixo do sol na ladeira íngreme. Foi doutor Odorico que disse 

que doutor Jorge está interessado nos meus quadros... Muito bonitos os

três, ficamos com eles. Na hora de dar o preço, João torceu a boca,

olhou para os lados, por fim disse: Pro senhor eu faço mais barato...

 Talvez, pela cara de satisfação que fez ao receber o dinheiro, deduzi que

ele nunca havia vendido um quadro tão caro. Acostumado com clientes

que pechinchavam, ele devia ter aumentado um pouco o preço, mas

mesmo assim fora barato, nós compramos as três telas e lá se foi João,

feliz da vida.

Desde esse dia, as visitas do pintor se renovaram e todas as

vezes ria satisfeito, os quadros que comprávamos eram, na sua maioria,

para presentear amigos.

CARDOSO E SILVA 

Ao contrário de João Alves, a produção de Cardosinho era

pequena. Ele pintava igrejinhas, caprichava nos detalhes. Pintava,

vendia seu quadro e quando o dinheiro acabava ele pintava outro.Algumas igrejinhas de Cardoso permanecem em nossas paredes.

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Homem de meia-idade, quase calvo, os poucos cabelos que lhe

restavam eram grisalhos. Aposentado de uma repartição pública onde

fora escriturário, Cardosinho era uma pessoa estimável. Dono de

alguma cultura — 

falava até frases em francês — 

, tinha a línguaembolada  —  parecia estar imitando o português falado por inglês  —  

devido a um derrame cerebral que sofrera.

Pessoa alegre, gargalhava por qualquer coisa e também chorava

com freqüência. Espírita e maçom, dizia ser médium vidente, tinha

lembranças de suas vidas anteriores, de suas vidas e das vidas de

amigos. Cardoso afirmava, por exemplo, com a maior convicção e

seriedade, ter nos conhecido, a mim e a Jorge, há cinco mil anos,

quando, na Arábia, eu era a princesa Nadeija e Jorge o príncipe

Zalomar. Ele, Cardosinho, um vassalo.

Nossa história fora romântica e triste, história que provocava ao

narrador lágrimas nos olhos.

Zalomar e Nadeija eram muito felizes, contava ele. Mas um belo 

dia, quando o céu escureceu e o vento forte soprou anunciando um siroco,

teimoso, Zalomar montou em seu cavalo zaino e despedindo-se de 

Nadeija disse: Vou para o deserto de areia, minha amada. 

Nadeija implorou: Não vá, Zalomar! É perigoso! Mas Zalomar não 

a ouviu e partiu: petelé, petelé, petelé... galopava o cavalo. 

Cardoso não contava uma história  —  e eram muitas  —  sem

confirmar a sua veracidade. A história de Nadeija e Zalomar não

escapou à regra. Interrompendo a narrativa, ele me perguntou:

 —  Me diga uma coisa: Jorge Amado é teimoso?

 —  Muito teimoso, teimoso até demais — confirmei e fui dando

corda  — , quando ele encasqueta com uma coisa não há quem lhe tire

da cabeça.  — Por que não colaborar com meu amigo?

O vassalo riu, glorioso:

 —  Estão vendo? Aí está! Teimoso como Zalomar... Não mudou

nada.

O fim da história foi muito triste, prosseguiu Cardoso. Zalomar e 

seu cavalo zaino foram soterrados pelas areias do deserto. Ao saber que 

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nunca mais o seu amado voltaria, Nadeija caiu morta. Os espíritos dos 

dois se encontraram no céu e então combinaram voltar à terra, daí a 

cinco mil anos, para serem felizes para sempre. 

Resolvi provocar Cardosinho: — Jorge combinou nascer na Bahia e eu em São Paulo? Há cinco

mil anos?

 —  Isso mesmo  —  disse ele  — , combinaram se encontrar na

terra... A verdade é que se encontraram... Estou mentindo?  —  A

gargalhada de satisfação encobriu suas últimas palavras.

Uma das mágoas do pintor era a de ter sido, numa de suas

inúmeras encarnações, o cardeal Pierre Cauchon, que presidira o

processo contra Jeanne d'Arc e assinara sua pena de morte:

Eu sabia que a garota era inocente, dizia o ex-cardeal, aos

prantos, mas fui obrigado a assinar... 

Fui também prisioneiro, na França, passei dez anos na prisão des 

Oubliettes, que, como o próprio nome diz, explicava o erudito, era a 

  prisão dos esquecidos. Quem entrasse nela, era para sempre, nunca 

mais saía. A masmorra ficava num subterrâneo ao lado do no Sena e a 

água me cobria até a cintura em dias de baixa e até o queixo em dias de 

cheia. Eu me distraía vendo os peixes passarem pelo meu nariz, para um 

lado e para outro... Por isso sou um dos maiores entendidos em peixes.

Quer uma prova?  

 —  Claro que queremos  —  falava por mim e por Jorge, que ouvia

calado.

 —  Pois então me diga uma coisa: quantas vezes eu já comi peixe

aqui em sua casa, dona Zélia?

 —  Muitas vezes...

 —  E a senhora, por acaso, alguma vez me viu engasgar com

espinhas?

 —  Nunca.

 —  Aí está a prova  — gargalhou ele, vitorioso.

 João e Paloma adoravam ouvir as histórias das reencarnações de

Cardoso. João Jorge, segundo ele, fora seu colega no Egito, há milhares

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de anos, quando João era um notável matemático. Querem a prova?  

 —  Queremos  — dissemos em coro.

 —  Me diga uma coisa, João: qual é a sua cor preferida?

 — 

Azul — 

disse João. — Aí está confirmado: azul. A cor da matemática... Jorge sempre

dizia: De Cardoso não se deve duvidar, com  Cardoso não se deve 

discutir, suas histórias são lindas, cheias de imaginação. Ele não é louco.

Ele acredita no que conta. É uma alma boa.

L ICÍDIO L OPES 

Ainda um pintor primitivo entrou no círculo de nossas relações:

Licídio Lopes, pintor de parede. Homem de meia-idade, pacato,

simpático, Licídio Lopes pintava, para seu prazer, paisagens do Rio

Vermelho. Velho morador do bairro, ele retratava com enorme graça e

fidelidade as praias do Rio Vermelho, as banhistas, muitas banhistas demaiôs comportados, porém sempre mostrando pernas roliças e seios

abundantes.

 Terminada a pintura de nossa casa, na qual trabalhara, Licídio

veio nos trazer um quadro de presente. Só então soubemos de sua arte.

Creio que Licídio nunca mais precisou pintar uma casa. Sua fama de

bom primitivo se espalhou e ele passou a viver dos quadros que vendia.

Homem surpreendente, um belo dia Licídio Lopes apareceu comum manuscrito, um diário que escrevia nos intervalos de tempo.

Páginas de muito interesse, escritas com graça, Jorge se encantou, fez

uma revisão no texto, escreveu um prefácio: "Duas palavras sobre

Licídio Lopes" e conseguiu a publicação do livro com a Fundação

Cultural do Estado. O livro, ilustrado com fotografias do Rio Vermelho,

saiu com o título: O Rio Vermelho e suas tradições   —  Memórias de 

Licídio Lopes.

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FLORIANO T EIXEIRA 

A Bahia ganhava ainda um pintor. Desta vez não se tratava de

um primitivo. Vindo do Ceará pelas mãos de Lina Bo Bardi, diretora do

Museu de Arte Moderna da Bahia, Floriano Teixeira, com sua pintura e

sua simpatia, conquistou a todos os que o cercaram. Carybé, olho

crítico severo, decretou: Esse é dos bons;  Mirabeau Sampaio disse

amém; dos melhores, afirmou Odorico.

Arquiteta de grande competência, numa visita a Fortaleza, Lina

Bo Bardi batera os olhos no quadro de um artista desconhecido, se

encantou e o trouxe à Bahia; faria uma exposição no museu que dirigia.

A primorosa pintura de Floriano impressionou todo mundo, sobretudo a

 Jorge, que viu no modesto funcionário da reitoria, que jamais vendera

um único quadro por lá, um pintor extraordinário. Na Bahia ele teria

mais chance de ir adiante.

Pai de sete filhos, maranhense de nascimento, radicado em

Fortaleza, Floriano titubeou diante da insistência dos amigos para que

largasse o emprego seguro no Ceará e se mudasse, com armas e

bagagens para a Bahia, numa aventura promissora. Ele contara, com

muito humor  — humor é o que não lhe falta  — , que Giotto, seu filho, o

mais velho das crianças, lhe dissera ao despedir-se dele: Olhe,  pai, se 

aparecer por lá, na tua exposição, um besta, e comprar um quadro, não 

deixe de trazer uma televisão pra gente... 

Floriano voltou para Fortaleza levando a televisão para a família

e o bolso cheio. Muitos bestas  —  segundo o menino Giotto  —  haviam

ido à exposição, comprado todos os quadros e mais houvesse...

Em nossa casa do Rio Vermelho, Floriano viveu cerca de dois

meses, pintando, organizando sua vida para trazer Alice, sua mulher, e

os filhos que haviam ficado à espera, em Fortaleza.

Numa casa rústica, na Amaralina, cedida por Mecenas Marcos,

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amigo da turma, Floriano alojou a família o tempo necessário até

engrenar e poder viver em casa própria. Com Alice, mulher tranqüila e

determinada, e seus oito filhos — o oitavo nascido na Bahia  — , Floriano

mudou-se para o Rio Vermelho, numa casa próxima à nossa, pinta evende seus belos quadros e cria netos.

Floriano ilustrou vários livros de Jorge: Dona Flor e seus dois 

maridos, Quincas Berro Dágua, O milagre dos pássaros, O menino 

Grapiúna  e Tocaia grande. É autor das capas de meus cinco livros de

memórias.

CAMUS, BRUNO E NELSON, NA BAHIA 

Quando Marcel Camus chegou com sua equipe à Bahia para

filmar Os pastores da noite completou-se o rebuliço. Desembarcara em

Salvador, com armas e bagagens, poucos dias antes, Bruno Barreto,

trazendo a tiracolo Sônia Braga e José Wilker, para filmar Dona Flor e seus dois maridos. 

Na mesma ocasião, Nelson Pereira dos Santos, na casa da rua

Alagoinhas, trabalhava dia e noite no roteiro de Tenda dos Milagres, a

ser rodado sob sua direção, a filmagem marcada para aqueles dias.

A produção de Os pastores da noite era rica. A equipagem que

Camus trouxera chegara de navio, num imenso caminhão com gerador

elétrico que, segundo foi dito, daria para iluminar Salvador inteira. Aprodutora do filme, Claire Duval, vinha de ganhar rios de dinheiro com

seu filme Emmanuelle, sucesso mundial, e apostava no livro de Jorge

Amado e no diretor famoso.

Camus precisava de muito espaço para trabalhar. Encontrou e

alugou um terreiro de candomblé, desativado, que pertencera a

 Joãozinho da Goméia. Numa das casas que permanecia no terreiro vivia

um casal de empregados.Em conversa com a caseira, Camus perguntou-lhe se conhecia

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mulatas bonitas, precisava de muitas para figurantes. A senhora lhe

respondeu que conhecia poucas, mas bonita mesmo ela só conhecera

uma e dessa ela pendurara o retrato na parede, recortado de uma

revista. Chamou-o para ver. Na página de O Cruzeiro, desbotada pelotempo, Marcel Camus reconheceu sua esposa, Lourdes de Oliveira, com

quem era casado havia anos, desde a filmagem de Orfeu do carnaval, de

Vinícius de Moraes, que ele dirigira e ela fora atriz.

Camus necessitava de um ator da terra para ser o padre que

batizaria o filho do Negro Massu. Explicou a Jorge as características do

personagem que necessitava para a cena de O compadre de Ogun. Jorge

não pensou duas vezes, indicou-lhe Licídio Lopes.

 —  Licídio Lopes? — me admirei.  — Você acha que Licídio?... Jorge

me cortou:

 —  Acho sim. Deixa comigo...

Na bela Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, o padre

Licídio Lopes cumpriria, lindamente, sua missão de ator.

CONFUSÃO NO PELOURINHO 

No Centro Histórico de Salvador desenvolviam-se, ao mesmo

tempo, as filmagens dos três romances de Jorge Amado.

Ao iniciar uma tomada, Camus acionava uma estrepitosa sirene,

seguida de um grito: Moteur!  Como que por encanto, todo mundo secalava, ninguém saía do lugar.

Quando Bruno Barreto ia iniciar uma tomada, munido de um

megafone, um assistente dele, um jovem chileno, alertava com seu

sotaque: Silêncio, por favor! Vamos iniciar a filmagem! O aviso se repetia

várias vezes, tantas quantas fosse preciso, até que o barulho terminasse

e as pessoas se aquietassem em seus lugares.

Quando Nelson Pereira dos Santos ia iniciar seu trabalho, nobrega, lugar quente, considerado o mais perigoso do Pelourinho, sem

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ajuda de sirene nem sequer de um megafone, com sua voz tranqüila, ele

pedia: Vamos começar a filmagem: silêncio, por favor. Não precisava

repetir uma segunda vez, todo mundo se calava.

Nelson fora avisado que lá no brega vivia um temido desordeiropor nome Sergipinho. Dele contavam que havia matado uma pessoa

com um facão e depois lambido o sangue da lâmina. Nelson convocou o

tal Sergipinho para uma conversa. Contratou-o como auxiliar, fiscal

para evitar bagunça. Encantado com o posto, o temido facínora passou

a ser o mais feliz e eficiente auxiliar da equipe.

CONFUSÃO COM DOM AVELAR 

  Jorge era solicitado diariamente pelas três equipes, resolvia

problemas, os mais diversos.

Camus lhe pediu, um dia, que conseguisse autorização do bispo,

na época Dom Avelar Brandão, para que a filmagem do batizado do filhodo Negro Massu fosse realizada dentro da Igreja do Rosário dos Pretos,

na ladeira do Pelourinho. A produção se informara e fora avisada de que

era proibido filmar dentro da igreja.

  Jorge conseguiu a autorização do bispo explicando-lhe que se

tratava apenas de uma cena de batizado católico, nada que pudesse

desrespeitar a religião.

Ao chegar à porta da igreja para a filmagem, em dois ônibusrepletos, Marcel Camus, sua equipe, equipagem, atores e figurantes

foram barrados. Havia ordem superior para não deixar ninguém entrar

com câmeras de filmagens. Surpreso, Camus telefonou para Jorge

pedindo ajuda, os ônibus à porta da igreja aguardando uma solução.

Surpreso e indignado, Jorge não perdeu tempo, telefonou para o Palácio

Arquiepiscopal. Atendeu uma pessoa dizendo que Dom Avelar não podia

atender, estava meditando. —  Meditando? E até que horas ele medita?  — quis saber Jorge.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 —  Depende, às vezes ele fica até meio-dia  — disse o rapaz.

 —  Meio-dia? São apenas nove horas da manhã...

 —  É isso, o jeito é aguardar.

  Jorge não estava disposto a aguardar nem um minuto quantomais três horas. Falou grosso, ordenou:

 —  Pois vá em seguida chamar Dom Avelar, vá por minha conta,

diga que sou eu, que o assunto é urgente, urgentíssimo. Pode ir, eu me

responsabilizo.

Finalmente, Dom Avelar veio ao telefone e justificou a sua

proibição: recebera queixa da direção da irmandade de que uma equipe

de cinema, a de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, havia

dois dias filmara um homem nu dentro do templo. O seu pedido, doutor 

Jorge, foi para filmar um batizado e não cenas de nudismo... não foi isso?  

Depois de muitas explicações, tudo foi esclarecido: sem saber se

podia ou não filmar na igreja e por isso não pedira autorização, Bruno

Barreto encontrara a porta do templo aberta, por ordem de Dom Avelar.

O diretor de Dona Flor não sabia  — e mesmo que soubesse do equívoco,

não creio que seria louco de recuar  — que, a pedido de Jorge Amado, a

igreja fora franqueada para a filmagem de Os pastores da noite e não

para ele.

Bruno Barreto filmara a saída da missa, entre os fiéis Vadinho

nu. Por acaso havíamos assistido à tomada de cena onde o ator

apareceu nu somente de costas, na frente um tapa-sexo, que, como o

próprio nome diz, tapava o sexo de José Wilker. Wilker não entrara na

igreja; aguardara, de roupão, atrás de uma coluna, para, de lá, sem o

roupão, seguir abraçado com Sônia Braga, aliás, Dona Flor, ladeira do

Pelourinho abaixo. Dom Avelar fora mal informado por seus olheiros.

O quiproquó esclarecido, nova ordem do bispo permitiu que a

cena do batizado fosse realizada. Diante da pia batismal, ao batizar o

filho do Negro Massu, o padre Licídio Lopes, bom ator, caiu em transe,

as filhas-de-santo também caíram em transe. Só faltou mesmo a mãe- 

de-santo para que a festa fosse completa, comentou alguém.

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CORAÇÃO MOLE 

O coronel João Amado costumava dizer: Meu filho nasceu para escrever. Fale em literatura com ele que ele entende tudo. Só não fale em 

negócios com ele, pois de negócios ele não entende nada. Tem o coração 

mole demais. 

Em parte, o velho João Amado tinha razão. Quem assistiu ao

sucesso de público de Dona Flor e seus dois maridos, o estouro de

bilheteria por toda a parte, até no estrangeiro, ficou certo de que o

escritor havia enriquecido. Ledo engano.Dos três filmes, rodados na mesma ocasião, na Bahia, Jorge não

teve participação nos lucros. O contrato com os franceses para Os 

 pastores da noite, que na França recebeu o nome de Otália de Bahia, foi

de pouca monta.

Em Tenda dos Milagres, produção de poucos recursos, dirigida

por Nelson Pereira dos Santos, Jorge nem se importou com dinheiro,

assinou um contrato modesto, quase simbólico. Amigo fraterno docineasta, Jorge acompanhava a sua carreira desde quando, quase um

menino, Nelson dirigira o premiado Rio 40 graus. 

Dona Flor e seus dois maridos também rendeu pouco. Produzido

por Luiz Carlos Barreto, velho amigo de Jorge, foi dirigido por seu filho

Bruno, menino de vinte e um anos incompletos, talentoso, apaixonado

pela história de Dona Flor. O coração de Jorge — como diria o velho João

Amado  —  amoleceu e ele assinou um contrato sem participação noslucros, por dois vinténs pingados.

 Jorge Amado não ficou rico com as três produções, como muita

gente pode ter pensado, mas o que ele se divertiu durante as filmagens

e as alegrias que os filmes lhe trouxeram depois, cada qual com seu

sucesso, não havia dinheiro no mundo que pagasse. Mau negócio feito

pelo filho, incompetente no ramo, na visão do velho Coronel, excelente

negócio realizado pelo escritor, mestre na arte de viver.

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PROBLEMAS DOMÉSTICOS 

Numa casa movimentada como a nossa, eu sofria com os

problemas domésticos. Casa enorme, povoada, movimentada, e eu sem

conseguir arranjar empregadas competentes e de confiança. Não me

acostumava com o ritmo lento das que conseguia. Não havia  — e não há

na Bahia — essa de salário alto para todo o serviço da casa, como estava

habituada no Rio. Na Bahia o salário é baixo para pouco trabalho,

serviço que pode ser feito por uma pessoa são precisas duas ou três,

restando ainda a terra de ninguém, como costumo chamar as áreas que

ninguém limpa achando que é obrigação do outro. Ao menos essa é a

minha experiência, até hoje.

A única empregada que dera certo, que me contentava, embora

lenta, era Eunice, pessoa direita, educada, cumpridora. As outras duas

estavam sempre sendo revezadas, tornavam-se mais problema do que

ajuda. Eunice está aposentada há bastante tempo, a lacuna continua

aberta.

Das Dores chegou recomendada. A moça é um pouco lesa mas é 

direita, obediente, é só ensinar e mandar fazer que ela faz.., 

Na adolescência, Das Dores fora babá de uma criança em

Salvador. Um belo dia ela ouviu pelo rádio que o mundo ia se acabar.

Pensou com seus botões: Se é mesmo que o mundo vai se acabar, o 

melhor é eu ir morrer junto de pai mais mãe. Pediu as contas e se

mandou para o interior.

O mundo não se acabou, e a mãe de Das Dores aproveitou a

presença da filha para mandá-la tirar leite da vaca. Bem-mandada, a

mocinha foi. Procurou uma boa posição atrás das patas da vaca,

sentou-se, baldinho a postos, mas, ao tocar no úbere cheio do animal,

recebeu uma patada no pé do ouvido. Ficou sem uma orelha e, como já

foi dito, lesa para o resto da vida.

Das Dores foi contratada. Sempre sorridente, ela era tranqüila.

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  Todos os dias eu repetia o que devia fazer, embora fosse sempre a

mesma coisa: arrume os quartos, varra e tire o pó, bem tiradinho. A

última observação devia ser frisada para que o trabalho saísse a

contento.Certa manhã, depois das recomendações à moça, saímos, Jorge

e eu. Ao voltarmos, horas depois, encontrei tudo do jeito que deixara,

Das Dores não havia mexido uma palha sequer. Fui encontrá-la no

terraço, sentada com o gato no colo. Das Dores nos sorriu:

 —  Nacib estava muito triste  — disse  — , miando pela casa, com

saudades de doutor Jorge...

 —  E você então agradou ele?...  — perguntou Jorge.

 —  É, doutor. Depois que eu botei ele no colo e fui passando a

mão nele, ele parou de miar.

Entusiasmado com o que presenciava e ouvia, Jorge meteu a

mão no bolso, puxou uma pelega de dez, deu a ela:

 —  Sempre que ele miar me procurando ponha ele no colo e

agrade. Agrade muito, viu?

Os MISTÉRIOS DA BAHIA DENTRO DAS PORTAS 

Neusa chegara para substituir Das Dores, quando a moça voltou

para o interior onde foi viver com os pais.

  Tipo franzino, Neusa era uma pessoa educada, discreta,inteligente. Quase perfeita no trabalho, com Eunice ela me dava

tranqüilidade. Até que enfim..., pensava eu.

Ao receber o salário, certa manhã, Neusa saiu para depositar o

dinheiro na Caixa Econômica. Foi e nada de voltar, o que teria

acontecido com Neusa?

Por volta das três da tarde, Eunice veio me chamar, olhos

esbugalhados: —  Corre, dona Zélia. Um homem trouxe Neusa, disse que ela

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

estava perdida na rua. Ela está estirada na cama feito morta. Acho que

ela está morrendo.

Atirada a corpo morto em sua cama, Neusa não dava sinal de

vida. Fiz o que estava ao meu alcance para reanimá-la sem conseguir.Mandei chamar Aurélio, pedia-lhe que buscasse um médico, quando

Neusa despertou e num salto, dando gargalhadas, pôs-se de pé em cima

da cama. Não respondia às minhas perguntas, dizia coisas

ininteligíveis.

Alertado, Jorge apareceu para ver o que estava se passando. Ao

ver Jorge, Neusa deu um salto, gritando: Vovô, vovô, vovô... Antes que

alguém pudesse impedi-la ela correu para Jorge, agarrou-o pelas

pernas, levantou-o e se pôs a cantar e a dizer coisas, com ele nos

braços, suspenso.

Eu nem precisava sair de minha casa para presenciar milagres,

os chamados mistérios das ruas da Bahia. Não podia acreditar que uma

criatura magra e frágil como Neusa tivesse força para levantar aqueles

cem quilos que era o peso de Jorge na época.

 —  Ela está com o santo, doutor  —  diagnosticou o entendido

Aurélio.

 —  Isso mesmo  —  disse Jorge, tentando desvencilhar-se dos

braços da moça, sem conseguir. — Vá Aurélio, vá depressa,

imediatamente, buscar o Luiz da Muriçoca  — ordenou.

Aurélio saiu rápido, em busca do pai-de-santo. Felizmente o

candomblé de Exu, onde Luiz da Muriçoca mantinha boas relações com

o Exu Toco Preto e o Sete Pinotes, ficava numa ladeira na Vasco da

Gama, bem perto de nossa casa.

Pessoa de nossa amizade, Luiz da Muriçoca, poderoso e

competente, viria em seguida socorrer o amigo caso estivesse em casa.

Não havia dúvida.

Felizmente, enquanto aguardávamos o pai-de-santo, Neusa

resolveu libertar o vovô de suas garras e, com a agilidade de um gato,

subiu ao alto do guarda-roupa. Falando e cantando sem parar, ela

descobriu lá em cima, enrolado em jornais, um litro de mel, pela

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metade. Até então, não dando palpites, apenas murmurando.'Ai meu 

Deus, ai minha Nossa Senhora..., Eunice gritou: Ai meu mel!, buscando

dar explicações que ninguém pediu nem interessavam a ninguém: E o 

mel que eu tomo todas as noites, uma colher de sopa, para a minha bronquite... Está me curando... Assim dizendo, levantou as mãos para

Neusa: Me dê meu mel... 

Neusa não estava nem ali. Para desespero da proprietária do

precioso remédio, ela despejava o mel no chão.

Estávamos nessa quando a porta do quarto se abriu e Luiz da

Muriçoca adentrou, seguido de Aurélio.

 — 

O que é que há, meus meninos? — 

disse, dirigindo-se aNeusa.

 —  Meus meninos?  — estranhou Jorge

 —  Você então não vê que ela está tomada pelos Ibejes? Só

crianças como Cosme e Damião, pra fazer essas reinações.

Neusa gritava:

 —  Bulofa, bulofa...

A princípio pensei que ela estava querendo o relógio Bulova de

 Jorge, mas o pai-de-santo traduziu: Ela está pedindo ovos. 

 —  Traga dois ovos, Eunice, vá ligeiro...

 —  Cru ou cozido, dona Zélia?...

 —  Cozidos  — respondi  — , bem durinhos.

 —  Nada disso  —  interrompeu Muriçoca  — , os ovos devem ser

crus.

Meleira igual nunca se viu: sentada no chão, Neusa misturava

mel com os ovos abertos sobre os ladrilhos.

A pedido de Luiz, todo mundo se retirou e o deixamos a sós com

a moça para tirar-lhe o santo que a possuía, aliás, os santos, como

afirmara ele próprio.

O trabalho não foi demorado. Ao sair do quarto, Luiz da

Muriçoca deixava a moça liberada, dormindo profundamente:

 —  Ela não vai lembrar nada do que aconteceu. Deixem que

durma até despertar naturalmente.

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 —  Qual a explicação disso?  —  perguntei curiosa.  —  Ela é

católica, vai sempre à missa, não é de candomblé...

 —  Ela não é mas tem uma parenta que é e fez uma promessa

em nome dela a Cosme e Damião. Essa parenta, não sei se é prima ou oque é, prometeu que se Neusa sarasse de uma doença que teve, com o

dinheiro de um salário ofereceria um caruru a sete crianças pobres. Ela

não deu a comida, botou o dinheiro na poupança... deu nisso...  —  riu o

pai-de-santo.

A VENDEDORA DE QUADROS 

Havia muito que não víamos João Alves. Depois da morte da

criatura, ele não aparecera mais. Supúnhamos que ele devia andar

muito triste, sozinho. Por isso, ao saber que João Alves estava na sala,

me preparei para recebê-lo com palavras de consolo, mas, qual!,

encontrei um João Alves sorridente, feliz da vida, cheio de planos. —  Doutor Jorge, mais dona Zélia  —  foi dizendo  — , encontrei

uma pessoa ótima.

 Jorge e eu nos entreolhamos diante do inesperado:

 —  Ótima, como?  —  quis saber Jorge.  —  Boa pessoa? bonita?

quem é?

 —  É tudo isso e muito mais...  —  respondeu ele rindo.  — É uma

vendedora de acarajé, o nome dela é Neide e eu quero casar com ela. —  Você quer casar ou juntar?  — quis saber Jorge.

 —  Que juntar o quê! Essa é coisa séria, ela só vem pra minha

companhia de papel passado.

 —  Então case de papel passado, João, você não é viúvo?  —  

disse eu.

 João torceu a boca, deu um meio sorriso:

 —  Eu não era casado com a criatura, não. Eu sou solteiro. Eusó posso casar se tiver onde levar a moça. Não posso botar ela na cafua,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

onde a falecida faleceu. Preciso comprar uma casa.

 —  E você tem dinheiro para comprar uma casa?

 —  Tenho não. Vim aqui hoje pra pedir a doutor Jorge mais tua

senhora pra me emprestar o dinheiro. Tive uma idéia, sabia que ele deixava quadros, em consignação,

na galeria de arte de Renot, creio que a única em Salvador.

 —  Por que você não pede o dinheiro a Renot? Ele vende teus

quadros e paga a casa. Muito fácil.

Novamente, João Alves torceu a boca:

 —  Ele não vai concordar não. A galeria dele dá muita despesa...

Entendi que ele já havia tentado com Renot e nada conseguira.

Nós éramos, Jorge e eu, sua última esperança.

Ao ouvir que nós também não poderíamos comprar uma casa

para ele, João assumiu um ar dramático:

 —  Se eu não puder comprar essa casa, então eu me mato.

Diante da situação tragicômica, tentei conversar com ele.

Ficamos sabendo que a moradia de seus sonhos já havia sido

encontrada, ficava em Cosme de Faria, bairro pobre da cidade. Casa

modesta, o proprietário pedia uma entrada e o resto seria pago em

prestações. Pedi a João que trouxesse os quadros que tinha em casa,

pintasse outros e os trouxesse. Eu mesma faria uma exposição aqui em

casa, convidaria a sociedade baiana, venderia os quadros, obtendo o

dinheiro para o primeiro pagamento, assinaria as promissórias e

continuaria vendendo outros quadros que ele pintasse, até resgatar a

última promissória.

Impunha-lhe apenas uma condição: enquanto a casa não

estivesse completamente paga, João se comprometeria a me dar

prioridade na escolha dos trabalhos e estipularíamos um preço fixo.

Nada de vender quadros por qualquer trocado.

Nenhum convidado deixou de atender a meu apelo: Carybé,

Mirabeau e Norma me ajudaram a fazer a lista de prováveis

compradores e todos compareceram, quase todos compraram. Recolhi

dinheiro suficiente para o pagamento maior, dei o restante para o pintor

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

ir se mantendo.

 João estava apressado, marcou a data do casamento, Mirabeau

e Norma, Jorge e eu fomos os padrinhos. A noiva era realmente

simpática, moça inteligente, trabalhadora. João ganhara na loteria,como se diz, ao encontrar Neide para companheira.

Atenta ao compromisso que assumira, preocupada com o

vencimento das promissórias, aproveitei uma viagem ao Rio, poderia

vender também lá os quadros do artista.

A exposição que improvisei, no apartamento da Rodolfo Dantas,

fez sucesso. Vendi todos os quadros que levei, trouxe para a Bahia o

suficiente para quitar várias promissórias e ficar despreocupada por

alguns meses. Trouxe ainda dinheiro para o pintor ir se mantendo

enquanto pintava outros quadros. As pessoas estavam interessadas nos

artistas da Bahia e me pediram que levasse outras telas quando

voltasse ao Rio.

Ao saber que eu estava vendendo para João Alves, apareceu

Cardosinho com dois quadros pedindo-me que os vendesse também.

Aproveitou para nos contar que estivera nos visitando na véspera, à

noite, disfarçado em bolha verde. Do jardim, pelo vidro do janelão, ele

nos vira sentados diante da televisão:

 —  É verdade ou não é?  Estavam ou não estavam sentados

nestas poltronas?

 —  Estávamos — respondi, dizendo a verdade, confirmando a

fantástica história.

Depois de João Alves e Cardoso e Silva, outros pintores

primitivos me procuraram, mas não havia por que só vender primitivos.

Minha clientela tornara-se grande, havia compradores para todos os

gostos e para todos os preços.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

BOLA DE NEVE 

De repente, não mais que de repente, me vi transformada em

marchand de tableaux, vendendo quadros dos mais importantes

pintores da Bahia. Viajava constantemente para o Rio e São Paulo,

onde, de sociedade com minha cunhada Fanny, mulher de Joelson,

expúnhamos e vendíamos os trabalhos em seu apartamento de

Higienópolis.

Os negócios aumentavam como uma bola de neve. Conseguira

pagar, antes do prazo, todas as promissórias da casa de João Alves. Não

havia sentido continuar trabalhando de graça. Começamos a ganhar

dinheiro, Fanny e eu. Vendi vários Carybé, Floriano Teixeira, gravuras

de Emanuel Araújo, Adelson do Prado, Ana Lúcia, Eckemberger, Hélio

Basto e outros. Até Cristos e ceias em madeira, do Louco, escultor

primitivo de Caxoeira, vendi.

DE REPENTE...

Não foi tão de repente que desisti de vender quadros. Quando

me dei conta, estava tão envolvida na nova atividade que já não me

sobrava tempo para nada, nem para me ocupar de Jorge, como fazia há

mais de vinte anos. A rotina de nossa vida mudara. Minha atividade de

mercadora de arte exigia cada vez mais de mim, sobretudo que eu

viajasse constantemente, quase sempre deixando Jorge sozinho, na

Bahia. Jorge não se queixava, mas senti que ele não estava contente,

nem um pouco contente. Ora, se tudo o que eu desejava na vida era

fazer Jorge feliz e ser feliz com ele, por que diabo eu me metera naquela

empreitada, arriscando a tranqüilidade de nossas vidas, arriscando até

a estabilidade de nosso amor?

O dinheiro que eu estava ganhando significava pouco para mim,

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aliás, não significava nada, absolutamente nada, diante do mundo que

 Jorge me oferecia.

Não tive dúvida: desfiz a sociedade com Fanny, desisti de vender

quadros.

As BAIANAS DE CARYBÉ 

Carybé fizera uma série de baianas de cerâmica, uma diferente

da outra, cada qual mais bela. Presenteou os amigos com uma, asrestantes ele vendeu. Vendeu, inclusive, cinco para nós, ficamos com

duas aqui em casa, levamos uma para o apartamento do Rio,

presenteamos James e Joelson, irmãos de Jorge, demos uma para

Alfredo Machado, nosso editor.

Ao ir em busca de mais baianas, para outros amigos, já não

encontrei. Carybé as vendera com uma rapidez incrível, muita gente

querendo, reclamando. Quisemos saber se ele iria fazer novas cópias eele disse que não. Tinham dado muito trabalho, a olaria que fizera as

fôrmas e as queimara no forno ficava distante de Salvador, o transporte

era difícil, ele havia perdido uma porção delas, quebraram-se pelo

caminho.

Ao ouvir de Carybé: Não quero mais saber de negócio com essas 

baianas, pra mim chegou..., tive uma idéia:

 —  Quer fazer um trato comigo, Carybé? Eu me ocupo de tudo,pago as despesas e dividimos o lucro...

Carybé gostou da proposta:

 —  E você vai até o português encomendar e trazer as baianas?

 Tá bom, comadre, trato feito.

O português a quem Carybé se referia era o oleiro, profissional

competente, que ele descobrira em Dias D'Ávila e queimara as fôrmas

das baianas.O português levou mais de um mês para entregar minha

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

encomenda. Nessa época, tínhamos uma Veraneio, caminhonete

espaçosa, com bom molejo, na medida para transportar tanta cerâmica,

de Dias D'Ávila para cá, num bom pedaço de má estrada. Mesmo tendo

Aurélio ao volante, cuidadoso como ele só, assim mesmo, com todasessas facilidades, muitas chegaram quebradas.

Nosso terraço foi transformado num verdadeiro ateliê de

restauração de cerâmica. Em cima das mesas, que espalhei por toda a

parte, podiam-se encontrar baianas sem braço, sem mãos, sem dedos,

sem tabuleiros na cabeça, sem pés, sem enfeites dos vestidos,

aguardando a vez de serem recuperadas. Carybé se encantou ao

deparar-se com aquele verdadeiro hospital, deu-me um conselho: Vá à 

  feira de Água de Meninos e compre pratos de cerâmica, travessas de 

barro, para substituir os tabuleiros quebrados, vai ficar porreta. E ficou.

Consumi tubos e tubos de cola na operação cola-tudo, Jorge e

Carybé de fiscais, exigindo que tudo saísse na perfeição, uma pagodeira

mais do que um trabalho.

Visitando a Bahia, vinda do Rio Grande do Sul, a artista plástica

Zorávia Betiol veio à nossa casa e, ao ver aquele mar de cerâmicas

sendo restauradas, se encantou, não resistiu e entrou na dança; não só

me ajudou a colar, como me ensinou truques de restauração que

aprendi e até hoje aplico ao colar uma e outra peça que aparece

quebrada, ouvindo as empregadas dizerem: Eu não fui ou Tem anos que 

está quebrado, quando cheguei aqui já estava... que fazer? Dona Zélia

vai colando.

Recuperadas, na sua quase maioria, as baianas receberam a

assinatura de Carybé. Aqui na Bahia tudo se sabe e, durante alguns

dias, a casa foi invadida por verdadeira romaria de pessoas querendo

comprar baianas. Até um grupo de turistas paulistas, de passagem pelo

porto de Salvador, sabendo, não sei como, que havia baianas de Carybé

à venda, apareceram e saíram cada qual com sua peça, enorme,

incômoda de ser carregada, porém felizes.

Contas acertadas, Carybé quis saber, um ar de provocação:

 — Vai repetir a dose, comadre?

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 —  Pra mim chega, compadre. Foi muito divertido, mas

suficiente.

Mais do que o lucro que tivemos, Carybé e eu guardamos

algumas peças que enfeitam nossas casas e as de alguns amigos aquem presenteamos.

Com a proeza das cerâmicas de Carybé, encerrei minha carreira

de vendedora de artes.

CASA FESTIVA 

Lalu bem que gostava de ver a casa sempre em festa, sempre

cheia de gente, mas não dava o braço a torcer:

 —  Eta trabalheira danada! Não sei como tu agüenta! O Rio de

  Janeiro era muito melhor do que aqui, não era? Não tinha todo esse

movimento na casa...

 —  E mais alegria do que trabalho, Lalu. Você não gostou de veras artistas do bale do Senegal aqui?

Claro que ela havia gostado. Nem conseguira disfarçar o impacto

que sentira ao ver surgir, portas adentro, o grupo de moças em seus

trajes africanos, artistas lindas. O bale se apresentava no Teatro Castro

Alves, viera recomendado a Jorge e recebemos o grupo em nossa casa.

Muitos artistas amigos nossos vieram à recepção: Norma e

Mirabeau, Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, LevSmarchewski, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Bastos e Altamir, James

Amado e Luiza, entre outros.

Seguindo nosso exemplo, Luiza e James Amado haviam trocado

o Rio de Janeiro pela Bahia, dando a Lalu a maior das alegrias: passara

a ter dois filhos ao alcance da mão. Só falta agora Joelson, dizia ela

cheia de mágoa, mas esse é difícil que venha, São Paulo é muito longe... 

Encantada por uma das dançarinas, linda no seu torço dourado,no frufru da seda pura dos drapeados do traje a envolver-lhe o corpo,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Lalu deu o braço à moça e com ela saiu andando.

Dona Eulália não esquecera os princípios da boa educação em

que fora criada: a polidez ordenava que a dona da casa, ao receber uma

visita, lhe perguntasse: Quer tomar um cafezinho ou prefere primeiro correr a casa?  

Lá se foi Lalu correndo a casa, a bailarina do Senegal a tiracolo.

Divertindo-se ao ver a sogra conversar com a moça que só falava

francês, Luiza aproximou-se e ouviu o curto diálogo:

 —  A senhora gosta de gatos?  — perguntava Lalu.

 —   Je ne comprends pas le portugais, madame   —  respondia a

moça.

Lalu olhou para Luiza e traduziu:

 —  Tá vendo, fia? Ela disse que é doida por gatos!

VERUCHKA NA BAHIA 

Chegavam à Bahia para uma série de reportagens o famoso

fotógrafo Franco Rubartelli e a mais comentada das modelos

fotográficas, Veruchka, mulher que, com sua beleza e charme, causava

 frisson à época.

Nossa casa da rua Alagoinhas foi escolhida, entre outras

locações, para as poses e fotografias da famosa modelo,

A preparação foi grande, uma equipe de apoio se instalou noquarto de hóspedes, o maquiador com seus estojos repletos de toda a

sorte de cosméticos; uma jovem, com um ferro elétrico, começou logo a

passar os trajes — sumários, porém trajes — que Veruchka iria usar. A

bem dizer, havia mais perucas do que roupas. Montanhas de perucas

foram despejadas sobre uma cama: cabelos longos e curtos, castanhos

de todos os tons, chegando ao louro, cada qual mais linda. Veruchka

usava uma peruca sobre a outra, misturando os tons, cabelos de todosos comprimentos se entrelaçando, formando mechas... verdadeira obra

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de arte. Na idade de gostar de perucas, Paloma se encantou, quem me 

dera ter uma dessas, disse baixinho, mas seus olhos falaram alto e a

modelo percebeu o interesse da jovem.

Ao contrário do que se possa imaginar, Veruchka só tinha posenas fotografias, no convívio era a pessoa mais simples e amável do

mundo. Tão gentil que ao perceber o encanto de Paloma por suas

perucas e sabendo que, em breve, Jorge e eu iríamos à Itália, ela pediu

uma mecha dos cabelos de Paloma e outra dos meus: Vou pedir ao meu 

  fornecedor, em Roma, que prepare duas para vocês e quando chegarem 

lá as encontrarão prontas. Presente meu. Deu-me o endereço. E não

mentiu.

PARÊNTESE PARA FALAR DA PERUCA 

Ao chegarmos ao cabeleireiro indicado pela modelo, em Roma, as

perucas já estavam à nossa espera. Coloquei, em seguida, a minha nacabeça: me achei linda. O mesmo não achou Jorge que, ao me ver toda

cheia de cabelos encaracolados, quase teve um desmaio: Coisa mais 

horrível, disse. Enquanto você estiver com esse troço medonho na cabeça 

não vou nem olhar pra tua cara... Virou o rosto para o outro lado.

Ao chegarmos ao hotel, fui logo tratando de retirar a cabeleira  —  

não era por submissão que me desfazia dela, nada disso, queria apenas

corrigir um equívoco: achara que Jorge ia gostar de me ver todaemperucada, mas, nada disso, ele detestara, execrara, ficara infeliz.

Ora, se o que eu desejava era me enfeitar para ele, eu me enganara.

Muito simples, o jeito era abdicar da bela peruca, abdiquei e, diga-se de

passagem, ao retirá-la, senti um enorme alívio. Aí meu Deus! Como 

aquele diabo esquentava! 

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FIM DO PARÊNTESE 

Peço desculpas pelo longo parêntese que acabo de fazer,

encompridando conversa e peço licença para reatar o fio da meada.Quem ficou intrigada com a movimentação na casa foi Lalu. Ao

saber que aquele aparato todo era só para tirar fotografias da moça,

achou um exagero.

Com uma montanha de perucas na cabeça a cobrir-lhe parte do

rosto, estirada no parapeito do janelão que dá para o jardim, Veruchka

posava, Franco Rubartelli só acionando o disparador do aparelho

fotográfico, num clic, clic, clic interminável, verdadeira metralhadora.Ele me explicou depois que, para conseguir uma fotografia perfeita, a

seu gosto, às vezes necessita tirar quatrocentas.

Assistíamos, a certa distância, à sessão fotográfica, quando

surgiu Lalu, de banho tomado, vestígios de talco perfumado e um pente

enterrado nos cabelos lisos, certamente na intenção de dar um jeito

neles: Enfroquei um pouco o cabelo, disse-me,  por que tu não enfroca o 

teu?  Admirou-se ao nos ver assistindo à distância, fora doenquadramento do fotógrafo.

 —  Daí tu não sai no retrato  — disse  — , vá ficar atrás da moça,

boba...

 —  Não vou, não, Lalu. E só a modelo que vai ser fotografada.

 —  Oxente!  —  reclamou ela.  — E a casa não é tua, menina? Vá

lá, vai...  —  insistiu.

Pra não dizer que Lalu usou o pente em vão, antes de despedir-se Rubartelli tirou uma foto dela com um aparelho Polaroid.

 — Este retrato não valeu de nada  — comentou Lalu mais tarde.

HARRY BELAFONTE NA BAHIA 

Os pais de July Belafonte, russos radicados nos Estados Unidos,

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haviam conhecido Nancy e Carybé quando o artista, vencedor de um

concurso internacional, foi pintar dois murais no terminal da América

Latina do Aeroporto Internacional John Kennedy, em Nova York. Dessa

época vinha a amizade deles.Um quadro que Carybé oferecera ao casal naquela ocasião

encantava seu genro, o ator Harry Belafonte. O interesse de Belafonte

pela Bahia aumentou ainda mais quando caiu em suas mãos um

romance de Jorge Amado, Jubiabá. 

Entusiasmado em conhecer a misteriosa terra distante e os dois

responsáveis por seu entusiasmo, Belafonte e July decidiram que a

próxima viagem da família seria à Bahia.

Em seu avião particular, trouxeram os pais de July e os filhos do

casal, David e Gina, crianças. A chegada da família Belafonte causou

rebuliço no Brasil, a imprensa, em peso, foi a Salvador, pois nas

declarações de Belafonte, ao desembarcar no Rio de Janeiro, ele dissera

ter vindo ao Brasil exclusivamente para visitar os amigos Carybé e

  Jorge Amado e conhecer Salvador. Depois voltaria direto para Nova

York. Seu avião não pudera descer na Bahia, pois o aeroporto de

Salvador, na época, não tinha ainda estrutura para vôos internacionais.

Hospedada no Hotel da Bahia, naquela ocasião ainda o melhor

de Salvador, a família Belafonte passou a maior parte de seu tempo em

nossa casa e na de Carybé. Com eles visitamos os artistas Carlos

Bastos e Altamir, Genaro e Nair de Carvalho, que lhes ofereceram um

 jantar; Jenner Augusto e Luísa que os acolheram com um almoço. No

terreiro do Gantois, Belafonte participou de uma festa e, emocionado,

não resistiu, dançou com as filhas-de-santo em transe.

Pessoa adorável, da maior simpatia e simplicidade, Belafonte

conquistou a todos que o conheceram. Pudemos ver em seguida que ele

era igual aos compadres Jorge e Carybé: brincalhão, despojado de

empáfia, comunicativo, gozador. July nos falou de quanto o marido se

divertia pregando peças aos amigos. Entenderam-se os três

personagens, como se velhos amigos fossem.

Nas vésperas da partida, oferecemos a eles uma grande

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recepção, reunindo em nossa casa o que havia de mais significativo da

intelectualidade da Bahia.

Antecipamos uma viagem ao Rio para irmos com os Belafonte,

no mesmo avião. No Rio de Janeiro, estava sendo organizado um grandealmoço a Jorge, não recordo a propósito de quê, programado por

amigos.

Harry Belafonte devia partir do Rio dois dias antes da

homenagem a Jorge, mas foi nos ver e almoçar conosco no apartamento

da Rodolfo Dantas.

Ao abrir a porta do elevador em nosso andar, Belafonte deparou-

se com uma enorme e colorida estatueta de porcelana sobre um móvel

no hall  —  decoração do vizinho de porta  — , horrível figura de mulher

deitada com um cachorro galgo ao lado. Moleque como ele só, Belafonte

não teve dúvida: tirou a jaqueta que estava vestindo, envolveu a

estatueta nela e entrou na sala fazendo um discurso e entregando o

volume a Jorge: Não repare no presente, lhe ofereço de coração. Assim

dizendo, ele mesmo, rapidamente, retirou a jaqueta que envolvia a peça

e explodiu numa gargalhada sem tamanho, gargalhada de satisfação ao

ver a cara de espanto de Jorge diante da execrável estatueta. Ria ele,

ríamos nós com ele, ria também Misette, que se encontrava lá em casa.

Acostumada com esse tipo de brincadeiras, muito ao gosto dos

compadres da Bahia, ela os comparava. Você não acha que os três são 

iguais?, perguntava Misette, entusiasmada. Mais entusiasmada ficou ao

ser convidada a ciceronear os Belafonte durante os dois dias que

ficaram no Rio.

Encontramo-nos ainda muitas vezes com Harry Belafonte e sua

família, em nossas caminhadas pelo mundo: em Nova York, quando

  jantamos em seu apartamento e tivemos a surpresa e a emoção de

encontrar pendurado, em lugar de destaque, um quadro de Portinari.

Em Paris, quando, depois de assistir à sua apresentação no Olympia,

saímos juntos para cear e Belafonte mostrou um exemplar de Tenda 

dos Milagres, em edição americana, todo anotado por ele, que lia no

momento, e trouxera para receber o autógrafo do amigo. Em Cuba,

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quando juntos fomos a uma casa de santeria, cujo ritual é o mesmo do

candomblé da Bahia. Da mesma forma que Belafonte se emocionara no

terreiro de Menininha do Gantois, voltava a se emocionar com os orixás

de Cuba. Com os Belafonte e Gregory Peck, mulher e filha, que estavamcom eles nessa viagem, assistimos à inauguração da Escola de Cinema

e a um encontro de artistas, escritores e cineastas, na casa de Gabriel

Garcia Márquez nas aforas da cidade.

Foi a essa inauguração e a festa de Garcia Márquez que

compareci de chinelos. Essa história, se não me falha a memória, já

contei em outro livro. Só não contei que Belafonte, ao me ver de

chinelos, quase morreu de rir, adorou.

Para quem não conhece os detalhes, peço licença para contar

novamente e explicar que tudo aconteceu por causa da afobação de

 Jorge, sempre preocupado em não chegar atrasado aos compromissos.

Nesse dia da inauguração da Escola de Cinema, distante uns

quarenta ou cinqüenta quilômetros de Havana, Jorge exagerou na

pressa, ficou no meu pé enquanto eu me arrumava: vam´bora,

vam´bora, vam´bora... Eu também me afobei e só me dei conta de que

ainda estava de chinelos quando já tínhamos rodado mais de vinte

quilômetros. Voltar para o hotel, nem pensar. O jeito foi dar a volta por

cima, acreditar no que Jorge dizia para me consolar: Teus chinelos são 

mais bonitos do que qualquer sapato... muita mulher vai morrer de inveja 

ao te ver tão confortável... 

A  noite, após a festa da inauguração, fomos à casa de Garcia

Márquez, uma bela residência com enorme jardim e piscina, cedida ao

escritor para trabalhar e viver a vida toda. Nessa noite, o Comandante

 — como é chamado Fidel Castro, em Cuba  — nos disse: Aqui Gabo pode 

escrever tranqüilamente seus livros. A casa é dele enquanto for vivo.

Depois, certamente, será um museu. 

Com July, nessa viagem a Cuba, fui a um deslumbrante desfile

de modas, onde ela comprou vários modelos para levar a Nova York.

Entusiasta dos produtos de beleza, os famosos cosméticos

cubanos, July comprou grande quantidade deles, para ela e para

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

encomendas que levava.

Encontramo-nos ainda várias vezes com os Belafonte em Nova

York e em Paris. Ao Brasil ele não voltou mais, mas, vez ou outra, nos

manda notícias.

 JUBIABÁ

Jubiabá, romance de Jorge escrito em 1935, conseguiu a proeza

de atrair para a Bahia três personalidades excepcionais:Carybé leu Jubiabá, entusiasmou-se com o livro, com a

descrição da Bahia e da maneira de viver do povo baiano. Disse lá com

seus botões: Quero ver com meus próprios olhos se essa terra existe. Vou 

dar uma espiada. Veio e ficou.

Belafonte também veio à Bahia, como já se sabe, movido pelo

entusiasmo, após a leitura de Jubiabá.

PIERRE VERGER

A terceira personalidade a vir à Bahia pelas mãos de Jubiabá 

merece um capítulo à parte.

Pierre Verger ainda não era doutor em ciências do Centre de

Recherches Scientifiques, na França, nem íntimo dos países da África,

nem profundo conhecedor dos mistérios das religiões africanas, quando

veio pela primeira vez à Bahia. Era apenas um viajante incansável a

correr mundos, os mais impossíveis e distantes, na ânsia de tudo ver,

tudo conhecer, tudo registrar com sua câmera fotográfica.

O título do livro que chamou a atenção de Verger era: Bahia de 

tous les saints, tradução francesa do romance Jubiabá, editado na

França em 1938. Teve a curiosidade de ler o livro e depois o desejo de

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ver de perto essa Bahia distante e desconhecida, descobrir com seus

próprios olhos o belo e o mágico que o autor do livro tão bem

descrevera.

Ancorou em Salvador. Na Bahia encontrou manancial infindávelpara sua curiosidade, cidade à espera de suas descobertas, de suas

fotografias: Aqui vou viver, disse Verger. A Bahia ficou sendo seu porto

de partida e de chegada, a sua casa.

 Tornou-se íntimo dos terreiros de candomblé, amigo de mães e

pais-de-santo.

No terreiro do Axé Opô Afonjá, foi proclamado, por Mãe Senhora,

Oju-Obá, os olhos de Xangô, o que tudo enxerga e tudo sabe.

Realmente, Verger tudo via, tudo sabia. Com Verger tivemos o melhor

relacionamento. Raramente vinha à nossa casa, nos encontrávamos em

festas de candomblé. Eu nunca tivera ocasião de fotografá-lo e

precisava de uma foto sua para um livro que eu preparava, onde

apareceria Jorge, ao longo dos anos, ao lado de amigos, em vários

países do mundo.

O livro, que veio a receber o título de Reportagem incompleta,

seria editado por Aríete Soares, nossa amiga, pessoa da maior

competência, que dirigia uma editora, fundada por ela mesma, a

Corrupio. O livro será incompleto se não houver uma foto de Jorge com 

Pierre Verger, me disse Aríete e ela tinha razão. A ausência de Verger no

livro seria uma falha imperdoável. Na primeira oportunidade eu faria a

foto.

Na primeira oportunidade, ao receber Verger em nossa casa,

tratei logo de apanhar a minha Leica que estava com um filme apenas

começado e anunciei, pilheriando com o Mestre: Com todo o respeito,

 professor, permite-me fotografá-lo?  

Para minha surpresa, Verger me respondeu:

 —  Senhora professora, eu não permito que me fotografe.

 —  E por quê?

 —  Porque não gosto de ser fotografado. Basta esse motivo?

 —  Você está brincando, Verger? Me chama de professora e se

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

nega a posar para mim...

Verger ria mas falava sério, o que me encabulava.

 —  Todas as vezes que você me chamar de professor eu vou

chamá-la de professora, certo? E não gosto de ser fotografado porquenão gosto do meu perfil, tenho um perfil de pássaro  —  ficou de lado  — ,

está vendo? Meu nariz parece um bico de passarinho... Não tire as fotos

 — repetiu.

  Jorge e ele saíram para o jardim, foram sentar-se num

banquinho debaixo da mangueira. Enquanto os dois conversavam,

coloquei a teleobjetiva na máquina e resolvi dar uma de  paparazzi,

fotografá-los sem ser vista, à distância. Bati umas vinte chapas, feliz da

vida.

Ao revelar o filme, no entanto, tive a maior decepção: as quinze

primeiras fotos do filme, tiradas antes, estavam ótimas, as de Verger,

completamente veladas.

Em conversa com Mãe Senhora, contei-lhe o sucedido. Ela riu:

Menina, e tu foi te meter com Verger? Tu não sabe que ninguém pode 

contrariar Verger? Verger é bruxo!  

Acabei achando que Mãe Senhora tinha razão, alguns anos

depois. Mãe Menininha completava oitenta anos, e o historiador Cid

  Teixeira programou uma gravação de depoimentos onde deviam

participar, contando de seus conhecimentos e experiências com a mãe-

de-santo, Pierre Verger, Carybé, Jorge Amado, entre outros.

A gravação deveria ser feita naquela noite, no próprio terreiro do

Gantois. Nesse dia, nos telefonou um amigo de São Paulo, que acabara

de chegar, Thomas Farkas, conhecido homem de cinema. Ao saber da

gravação com Menininha, Farkas pediu a Jorge que conseguisse

permissão para ir conosco, tinha grande interesse em assistir.

Ao chegarmos ao terreiro, a parafernália de Cid Teixeira já estava

instalada: aparelhos e máquinas as mais sofisticadas. Eu levara comigo

um gravadorzinho, seria interessante registrar tudo. O aparelho que

Farkas levara era maior que o meu, um gravador profissional.

Carmem e Cleusa, filhas de sangue de Mãe Menininha, nos

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receberam e nos acomodaram nas cadeiras em frente à mãe-de-santo.

Fez-se silêncio e Cid Teixeira pediu que Verger fosse o primeiro a

falar. De microfone em punho, Verger disse algumas palavras para, em

seguida, pedir aos operadores que parassem, ele reiniciaria. Voltou afalar, mas, de repente, parou: Não, não é isso que eu queria dizer... por 

 favor apaguem o que já foi gravado. Disse e só recomeçou a falar depois

de estar convencido de que seu pedido fora atendido. Ao pedir, pela

terceira vez, que apagassem o que dissera, explicou sua emoção:

desejava ser o último a intervir. Nem preciso dizer que não desliguei o

meu gravadorzinho. Atrás de mim, Farkas também não desligou o seu.

Ao voltarmos para casa, já de madrugada, depois do depoimento

de Mãe Menininha e de Verger, uma beleza, eu disse a Jorge: Ouça só,

gravei todo o começo, Verger emocionado... Ligado o aparelho, cadê a voz

de Verger? O que se ouviu foi uma estática ruidosa que só parou

quando o primeiro depoente, Carybé, começou a falar. Jorge riu:

Também com um gravadorzinho furreca desses, você não podia esperar 

outra coisa... Pela manhã, logo cedo, o primeiro telefonema foi de

Farkas, que me pedia: Por favor, Zélia, estou precisando que você me 

empreste a sua gravação para completar a minha... parece que deu um 

enguiço no meu gravador e toda a fala de Verger, do início, se apagou, só 

deu estática... 

Lembrei do que me dissera a saudosa Mãe Senhora: Não se meta 

com Verger, menina, Verger é bruxo. 

Verger gostou muito quando lhe contei das falcatruas que

tentara contra ele e da palavra sábia de Mãe Senhora. Isso mesmo. Eu 

sou um bruxo, professora doutora. 

Professora doutora foi o título que Verger passou a me dar para

sempre. Caçoada ou carinho? Preferi acreditar no carinho desde o dia

em que, no lançamento de seu livro Oxóssi, na livraria da Editora

Corrupio, Verger me chamou: Professora doutora, venha tirar um retrato 

meu com Jorge e Carybé. Só não tire meu perfil. Verger vestia um belo

bubu africano e essa fotografia dele entre Jorge e Carybé encontra-se no

Reportagem incompleta, editado por Aríete Soares, livro em três idiomas

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

sendo que a tradução para o francês foi feita por Pierre Verger.

Editora principal e amiga dedicada de Verger, Aríete Soares

conseguiu restaurar velhos e antigos negativos que ele deixara em Paris

para publicá-los num livro: Retratos da Bahia. Publicou ainda Orixás,lendas africanas dos orixás e sua obra-prima, o admirável livro sobre o

tráfico de escravos, Fluxo e refluxo. 

UMA NOTA APENAS 

Não quero, nem posso deixar de falar em Cleusa, filha de sanguede Mãe Menininha do Gantois. Amiga querida, herdeira da ternura e da

sabedoria da mãe, Cleusa ocupou o lugar da mãe-de-santo no

candomblé do Gantois. Cultivando com delicadeza e bondade seus

amigos e devotos, honrando o nome da Casa, Mãe Cleusa partiu, tem

poucos meses, nos deixando, seus amigos, muito tristes e um pouco

órfãos. O terreiro está de luto por um ano e, segundo o ritual, estará

fechado durante esse tempo. Só então, no jogo de búzios, os orixáselegerão a nova mãe-de-santo.

CARLOS BASTOS 

Além, pouco além de Itapuã, estende-se a praia de mar bravio da

Pedra do Sal. Nela, Carlos Bastos levantou sua casa, casa senhorial,

requintes compatíveis com seu dono, artista de tela e cavalete, mestre

na argila e no cinzel.

Logo à entrada, na casa da Pedra do Sal, junto à porta,

encontra-se sobre uma coluna o busto de Molière com sua vasta

cabeleira, trabalho do dono da casa.

Conta-se que dois franceses foram visitar Carlos e, ao

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reconhecerem o célebre conterrâneo, exclamaram entusiasmados: O lá- 

lá! Molière! O empregado da casa que lhes abrira a porta, sabido como

ele só, os corrigiu em seguida: Não é mulher, não. Seu Carlos disse que é 

homem mesmo. O pintor Carlos Bastos se diferencia de todos os pintores da

Bahia: em seus quadros ele consegue, brincando com as tintas,

retratar, à perfeição, pessoas de sua intimidade e personagens da

Bahia.

Uma das curiosidades que Jorge quis me mostrar na Bahia foi

um painel de Carlos Bastos, A procissão, exposto no hall do Edifício

Martins Catharino, na rua da Ajuda. Nesse trabalho, o pintor incorporaaos santos os rostos de artistas, em geral seus amigos, e de pessoas

conhecidas na cidade, como, por exemplo, todos os componentes da

família José Martins Catharino. Lá estavam, que me lembre, nossa

amiga, a bela atriz Nilda Spencer, os pintores Genaro de Carvalho,

Carybé, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Mário Cravo, Jenner

Augusto, cada qual com sua respectiva auréola de santo, uns

segurando andores, outros sendo carregados sobre andores. Jorge

Amado teve a regalia de aparecer duplamente: de bispo, puxando o

cortejo, e de São Jorge, ao lado de Cosme e Damião. Por esse painel

Carlos Bastos recebeu o título de Paleta Satânica, dado por um

colaborador de um jornal católico da época.

Anos depois, em 1972, fomos ao Parque da Cidade, no Rio de

  Janeiro, ver o trabalho que Carlos Bastos realizava na capelinha

abandonada, uma dependência do Museu Histórico, capela que nunca

fora consagrada para atos religiosos. Funcionara sempre como um

simples depósito.

Obtendo permissão para pintá-la, Carlos Bastos não perdeu

tempo. Aproveitou todo o espaço de duas paredes para retratar amigos,

apresentar como santos alguns, outros sem o aparato da santidade,

queria que lá estivessem pessoas em evidência e representativas da

época: Di Cavalcanti, Vinícius de Moraes, Djanira, Pele, Caetano Veloso,

Gal Costa, Marta Rocha, Jorge Amado, Orlando Villas-Boas, Genaro de

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Carvalho, Zanini, Adolfo Bloch... até o presidente Medici estava lá.

Marina Montini, de Salomé, segurava a cabeça de São João Batista. O

rosto de São João Batista era, sem tirar nem pôr, o de Altamir

Galimberti, o grande amigo de Carlos, companheiro de toda a vida.Djanira era Santa Isabel, Caetano Veloso era São João com seu

carneirinho, Pele era um anjo. Dessa vez, Di Cavalcanti, Jorge Amado e

Vinicius de Moraes não foram santificados. Gal Costa, montada a

cavalo, seria Joana d'Arc? Havia outros personagens, mas me lembro

bem desses.

Os murais, que ainda precisavam de retoques, ficaram

inacabados. Ao chegar para trabalhar certa manhã, como

habitualmente fazia, Carlos Bastos encontrou a porta da capela

trancada e lacrada. Cometera a heresia de misturar aos santos,

pecadores comunistas, os mais perigosos: Jorge Amado, Vinicius de

Moraes, Di Cavalcanti, Caetano Veloso, Djanira... Ao mesmo tempo,

Carlos Bastos colocara entre eles o presidente Medici, tido e havido

como inimigo dos comunistas, presidente das perseguições, das prisões

e das torturas. Carlos não era político, de política e de seus partidos ele

nada entendia, sua única intenção fora a de retratar os amigos de sua

admiração e de seu bem-querer, sem restrições, e pessoas em evidência

na época, nada mais que isso.

A capelinha do Parque da Cidade, no Rio de Janeiro,

permaneceu lacrada de 1972 a 1997.

ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES 

A população de Salvador aumentava, a cidade sofria o problema

do menino que cresce e a roupa fica apertada; tornara-se quase

impossível o trânsito pelas ruas do centro, cada vez mais sufocado.

Fazia-se necessário abrir as comportas, estender a cidade.Homem dinâmico, voz de comando, apaixonado por sua terra,

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Antônio Carlos Magalhães, governador do Estado, arregaçou as mangas

e foi em frente: abriria vales e montes, na direção do aeroporto,

construiria avenidas, pontes e elevados nos quilômetros e quilômetros

de terras abandonadas, mato desprezado, expandiria a cidade doSalvador.

Planejou e fez: construiu o Centro Administrativo, para onde

foram transferidas as secretarias de Estado que entulhavam o centro da

cidade. Plantados em grande área de jardins gramados, ergueram-se

prédios da mais alta qualidade, onde foram instaladas a administração

do governo estadual e as repartições públicas. Antônio Carlos não fez

por menos, mandou colocar uma obra de arte em cada edifício.

Convocados para realizá-las — sem ser levado em conta o seu credo

político, amigo ou inimigo do governador  — , os grandes artistas da

Bahia lá deixaram, perpetuadas, suas pinturas e suas esculturas. Entre

outros lá estão: Carybé, Fernando Coelho, Calasans Neto, Floriano

 Teixeira, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Juarez Paraíso, Carlos

Bastos, Tati Moreno, Mário Cravo e outros. Carlos Bastos faria o mural

do plenário da Assembléia Legislativa.

OBRA DE POLÍTICO CORAJOSO 

Ainda uma vez peço licença, quero testemunhar, não poderia

deixar de falar sobre mais uma realização de Antônio Carlos Magalhãesem sua gestão anterior, como prefeito: a instalação do esgoto na cidade

do Salvador. Obra de necessidade premente, obra gigantesca e

antipática, obra de político corajoso que não tem medo de incomodar o

povo, aquela gente que gosta de ver tudo pronto e bonitinho, que exige

benefícios mas não tolera sacrificar-se para obter o resultado. Pois o

pioneiro das obras do esgoto da cidade foi ACM. Centenas de

quilômetros de ruas foram abertas, montes de terra entulharam ascalçadas, enormes manilhas de esgoto atravancaram o trânsito durante

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meses, até o trabalho estar terminado. Fazemos parte dos sacrificados e

recompensados depois, já que nossa casa da rua Alagoinhas, até a

instalação do esgoto era servida pelo detestável sistema de fossa. Ouvi

de alguém, entusiasmado com a obra do prefeito: ... se ele não tomasse essa providência, Salvador, logo, logo, ia afundar na merda...

O MURAL  

Carlos Bastos nos chamou à sua casa, pediu que levássemos

retratos. Ele recebera uma encomenda do Estado: devia realizar um

trabalho, pintaria um painel cobrindo toda uma parede do plenário da

nova Assembléia Legislativa, no Centro Administrativo de Salvador.

O croqui do trabalho estava pronto: os desenhos da procissão do

Bom Jesus dos Navegantes, que seria pintada no mural, dava bem

noção do trabalho gigantesco que o artista tinha pela frente.

A idéia de Carlos era a de colocar na barca principal da

procissão, a galeota, a que conduz a lo. de janeiro o Bom Jesus e a

Virgem, sua mãe, pelo golfo da Bahia em festa, personagens e

personalidades as mais importantes da terra. Atrás, no cortejo, nas

barcaças e nos saveiros, nas pequenas e nas grandes embarcações

enfeitadas de bandeirolas coloridas e bandeirinhas do Brasil, retrataria

ainda outras figuras conhecidas.

Nesse mural pintado sobre acrílico, em 1973, Carlos Bastos

retratou 170 pessoas. Tivemos a honra e o privilégio de aparecer na

primeira fila da galeota e a tristeza de desaparecer num incêndio em

1978, nas chamas que destruíram completamente o mural pintado

sobre material inflamável.

Em 1994, ainda por encomenda de ACM, Carlos Bastos pintou

novamente, para o mesmo local do mural incendiado, outra procissão

de Bom Jesus dos Navegantes. Figuras representativas da Bahia

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novamente ocuparam os barcos.

CASA NA PEDRA DO SAL  

Ao lado da casa de Carlos Bastos havia um terreno à venda. Me

entusiasmei, poderíamos ter uma pequena casa na praia, um bom

refúgio para trabalhar. O sossego para escrever tornava-se cada vez

mais difícil. Os últimos livros de Jorge haviam sido escritos aqui e

acolá, em casa de um e de outro e até fora do Brasil. As solicitaçõeseram cada vez maiores e Jorge, de coração mole, como bem dizia o velho

  João Amado, não conseguia negar nada a ninguém, muitas vezes

sacrificando seu trabalho para atender a pedidos,

Nos recolhemos certa vez na chácara de Dmeval Chaves, na

Boca do Rio, mas o esconderijo logo foi descoberto e adeus viola,

tivemos que levantar acampamento.

Fomos para a casa de campo de Nair e Genaro de Carvalho, naEstrada Velha do Aeroporto, Isso foi em 1969, quando Jorge escreveu

Tenda dos Milagres, 

Lugar tranqüilo, uma beleza. Na chácara do famoso tapeceiro,

 Jorge poderia trabalhar sem ter que abandonar a máquina para resolver

problemas alheios, pedidos de pessoas que o procuravam, às vezes até

desconhecidas.

Por falar nos problemas que sempre aparecem para seremresolvidos por Jorge, até de desconhecidos, peço licença para contar

uma historinha que ilustra bem:

Em certa noite de tempestade, ouvimos tocar a campainha da

porta. Quem poderia ser àquelas horas, com aquele temporal?

 Tratava-se de uma senhora de aspecto modesto, acompanhada

de uma jovem em adiantado estado de gravidez, mãe e filha, molhadas

como dois pintos: Seu Jorge Amado, foi dizendo a mãe, só o senhor vai   poder resolver o nosso problema, me desculpe ter vindo aqui a estas 

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horas mas não tinha outro jeito. Só o senhor mesmo, repetiu, vai poder 

dar socorro pra gente. Chorava e falava ao mesmo tempo, fungando e

enxugando as lágrimas e o nariz nas costas das mãos: Minha filha, como 

o senhor vê, está grávida e tem que se casar amanhã. Tudo está pronto,os móveis do quarto, as panelas, até as alianças... A  moça abriu uma

caixinha, mostrou o par de alianças, a mãe não estava mentindo. A

gente ia até fazer uma festinha, festa de gente pobre, o senhor 

compreende, eu só tenho ela... 

Para encurtar a conversa, o noivo dera o fora, sumira deixando

apenas um bilhete lacônico, não ia mais se casar.

 — 

E daí? — 

quis saber Jorge. — 

No que é que posso ajudar? —  Eu quero que o senhor me diga o que devemos fazer  —  

respondeu ela.

 Jorge refletiu e em seguida me pediu que telefonasse a Tibúrcio

Barreiros, o nosso amigo advogado, explicasse-lhe o problema. Tibúrcio

até parecia já conhecer o caso, pois estava com a solução na ponta da

língua:

 —  Não há outro remédio senão adiar o casamento — aconselhou

o experiente advogado  — , a noiva deve dar parte de doente. É só a mãe

ir ao cartório amanhã, logo cedo, e dizer que a filha não pode se

locomover. Só isso.

Ao saber que devia adiar o casamento, a noiva, que até então

não pronunciara uma única palavra, pronunciou, num quase gemido

doloroso: Adiar? Só então chorou, chorou aos soluços...

 Tibúrcio entendia da coisa. O noivo fora ameaçado por uma ex-

amásia com quem já tinha dois filhos: Vou ao cartório com as crianças e 

acabo com tudo... gritara ela.

O jeito era sumir do mapa e foi o que ele fez. Reapareceu quinze

dias depois, quando tudo voltara à calma e, então, o casamento

realizou-se na surdina e sem festa.

Se aparece gente em casa com pedidos, ou por pura curiosidade,

quando trabalhamos, há, no entanto, pessoas que adoramos receber,

mesmo tendo que interromper nosso trabalho. Foi o caso da inesperada

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visita de Clarice Lispector. Ela estava em Salvador e desejava

entrevistar Jorge para uma revista. Estávamos na chácara de Genaro e

 Jorge pediu a Aurélio que a levasse até lá.

A tarde que Clarice Lispector passou conosco foi ótima, com elabatemos grandes papos, Jorge respondeu com satisfação ao que ela

queria saber para sua reportagem. Foi a última vez que a vimos.

RUA DO L AGARTO AZUL  

O terreno ao lado da casa de Carlos Bastos me entusiasmou.

 Jorge ficou reticente mas se rendeu diante dos argumentos de Carlos e

de Altamir. Naquele ermo, Jorge ia ter paz e inspiração na rua que nem

nome tinha, rua deserta, apenas Carlos e Altamir como vizinhos.

Ficaríamos à esquerda deles, o terreno à direita pertencia a Pelé, que,

certamente, não tinha intenção de construir. A nossa frente todo um

oceano encheria nossos olhos, subiríamos nas pedreiras que, ao meio-dia, com o sol escaldante, ficavam brancas de sal.

Altamir encarregou-se de providenciar a papelada para a compra

do terreno. Jorge havia estado com Juca Chaves e se entusiasmara ao

saber que o Menestrel, nosso amigo, planejava com Yarinha comprar

um terreno em praia da Bahia e nela levantar um iglu, espécie de tenda

dos esquimós do pólo Norte, novidade pitoresca, anunciada em jornais e

revistas. Jorge achou a idéia divertida, mas um iglu não iria servir paranós, assim como não iria servir para Yara e Juca Chaves que acabaram

construindo uma bela residência em Itapuã, perto da Pedra do Sal, em

frente ao mar.

Optamos por uma casa mais modesta que a do Juca. A Sun

House anunciava casas pré-fabricadas, patente da Finlândia: A casa 

que é sucesso na cidade, na praia, no campo e na montanha. Projete você 

mesmo sua Sun House: paredes de poliuretano  rígido injetado entre laminados tipo Fórmica/Eucaplac. Esquadrias: madeira de lei, com aço 

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inox e alumínio e laminados, pisos de lajotão. Tudo isso e muito mais eu

li, decorei e repeti para entusiasmar Jorge que, como eu, pouco ou nada

entende de  poliuretano  rígido injetado. O mais importante do anúncio

eram os noventa dias apenas para a construção ficar pronta parahabitar. E, já que havíamos decidido construir a tal casa de módulos,

procuramos o arquiteto André Sá. Com ele bolamos a disposição dos

cômodos e ele armou e construiu a casa a nosso gosto.

 Tati Moreno, nosso amigo, escultor dos orixás, mestre no manejo

de peças de sucata, de ferros retorcidos, de placas laminadas, com que

levanta e dá vida a Exus, Oxóssis, Yemanjás e Omolus, nos presenteou

com uma bela escultura de material refratário ao salitre e a colocou em

nosso jardim da Pedra do Sal.

A casa estava pronta, uma gostosura, porém ainda havia um

senão: Jorge não se conformava em morar numa casa de rua sem nome

e sem número de porta. Depois de muita confabulação com Carlos

Bastos, acabaram por encontrar um nome que agradasse a todos nós e

rua do Lagarto Azul ficou sendo o nome de nossa rua. E o número da

porta? Carlos adiantou-se: Eu adoro o número 500. Pois eu gosto do 

número 1.000, disse Jorge. Até hoje, as casas vizinhas ostentam em

placas nas portas: 500 e 1.000, e o correio chega direitinho, ninguém se

atrapalha.

A BRISA DO MAR 

A brisa do mar é inimiga do trabalho. Jamais Jorge havia escrito

um livro em casa de praia. Em nossas férias, nos tempos de Maria

Farinha, em Pernambuco, bem que ele tentara escrever, mas a brisa do

mar o convidava à preguiça, a rede o atraía mais do que a máquina de

escrever.

Ao chegarmos à Pedra do Sal, Jorge levava na cabeça,amadurecido, um romance. A força da criação, desta vez, foi mais forte

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do que todas as brisas de todos os mares, a vontade de ir para a

máquina suplantou a preguiça. Fez como costuma fazer quando começa

a escrever um livro: impôs-se uma disciplina de trabalho e, diariamente,

inspirado ou não, sentava-se pela manhã, muito cedo, o papel branco aser preenchido em sua frente, e o santo baixava, como costumo dizer.

Durante o ano que passamos na Pedra do Sal, à beira-mar,

 Jorge Amado escreveu: Farda, fardão, camisola de dormir. 

Eu jamais havia escrito coisa alguma, jamais pensara escrever

um dia e, no entanto, foi na casa da Pedra do Sal que escrevi meu

primeiro livro: Anarquistas, graças a Deus. 

Sempre gostei de contar histórias, meus ouvintes eram as

crianças da casa e da vizinhança. Desde muito pequenos, João e

Paloma viviam atrás de mim: Conta, conta, conta... e eu contava coisas

vividas na minha infância, infância de uma criança viva, olho crítico

sempre atento a tudo, menina que nada perdia, nem esquecia.

Foi na ocasião da estada na Pedra do Sal que Paloma me

perguntou um dia:

 —  Por que, mãe, você não escreve as histórias da tua infância?

Até me assustei:

 —  Porque não sei escrever, minha filha — respondi.  —  Está

brincando comigo, menina? O escritor da casa é teu pai e já estamos

bem servidos.

 —  Não estou brincando, não, mãe. Você acha que não sabe

escrever porque nunca tentou... Você conta histórias tão bem... Faça

uma experiência, escreva como se estivesse falando, bem natural... por

exemplo, escreva a história do disco quebrado, o da Serenata de 

Schubert, tão divertida.

A semente estava atirada, a conversa com Paloma não me saía

da cabeça, bulira comigo e, num belo dia, estando eu sem ter o que

fazer, enquanto aguardava que Jorge me desse páginas já revisadas de

seu trabalho para que eu passasse a limpo, resolvi escrever a historinha

que Paloma me pedira. Fiz um cálculo: em três ou quatro laudas liquido

o assunto.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Comecei a escrever minha história e, no entusiasmo, as folhas

escritas aumentavam: Não é que essa danada é muito mais longa do que 

eu imaginava?, disse eu com meus botões e continuei escrevendo. Ao

chegar às quinze páginas vi que não havia ainda contado tudo.A hora do recreio terminara, Jorge me chamou, pediu-me que

consultasse a enciclopédia, precisava de um dado histórico. Minha

brincadeira ficou de lado, continuaria depois. Continuaria?

Enquanto esperávamos que o almoço fosse servido, criei

coragem e, morta de encabulamento, estendi as quinze páginas a Jorge:

Leia. Entreguei as folhas e saí da sala, conjecturando: e se ele rir? Eu

também riria. E se ele disser: Que besteira é essa? Eu calaria. E se ele

me devolver as folhas sem dizer nada? Eu choraria. Tudo isso poderia

acontecer, Jorge não ia, nunca, fazer um elogio só para me agradar, não

é de seu feitio. Ele jamais iria me expor ao ridículo. Em se tratando da

mulher e dos filhos, ele possui um sentido crítico severo, não dá colher

de chá.

  Jorge me chamou: Cadê você? Senta aqui. Sentei a seu lado,

esperando a sentença. Gostei do que você escreveu, foi dizendo, gostei 

da simplicidade da escrita. Coisa difícil de se conseguir. Afora, o que está 

aqui é apenas uma anedota, história que já conheço de ouvir você contar.

Essa anedota, assim, isolada, é muito pouco, não tem valor. Você, que foi 

menina pobre, mas teve uma infância rica de acontecimentos, criada num 

meio de imigrantes estrangeiros, de família integrante da Colônia Cecília,

de anarquistas sonhadores, que assistiu ao crescimento de São Paulo,

  poderia escrever um livro de tudo o que viveu e recorda. Quero te dar 

apenas um conselho: escreva com a mesma simplicidade com que 

escreveu estas quinze páginas, será um livro escrito com emoção, de 

dentro para fora, com o coração, ao contrário dos historiadores que 

 pesquisam e escrevem de fora para dentro. Seu livro será único. Agora,

uma coisa importante: não tente fazer literatura, nem procure palavras 

difíceis, você não é literata.   Talvez temendo me magoar ao dizer: Você 

não é literata, acrescentou ele: Eu também não sou literato. 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Deus me livre! Sorriu: Toque o bonde! Me mostre quando o livro 

estiver pronto.

A NARQUISTAS , G RAÇAS A D EUS  

Nunca pensara poder sentir tantas e tais emoções, àquela altura

de minha vida, aos sessenta e três anos de idade, como as que senti ao

escrever Anarquistas, graças a Deus. 

Sem ter uma única anotação, apenas a memória trabalhando,voltei ao passado, voltei a ser criança no convívio de meus pais e de

meus irmãos, recuperei amigos perdidos na distância do tempo e,

sobretudo, descobri minha mãe. Dona Angelina era uma pessoa

formidável e eu não lhe dera o devido valor. Seu Ernesto, meu pai, era

bem como o julgara: inteligente, humano, homem bom. A seu Ernesto

eu sempre fizera justiça.

Nas minhas lembranças cheguei mesmo a sentir o perfume dotalco de heliotrópio que mamãe usava na gente. Ai que saudades de

Maria Negra, chorei de saudades de Maria Negra, ri das graças dela.

Lembrei da beleza de Wanda, minha irmã, mais bonita do que Zezé

Leone, a miss Brasil. E Vera? Minha irmã tão despachada, prestativa,

tão boa... E Tito? Espírito crítico, generosidade camuflada... Remo,

irmão mais velho, sabia conquistar as meninas do bairro e eu o

admirava. Chorei novamente ao ver Flox, meu cachorro, meucompanheiro, atropelado e morto no meio da rua...

  Jorge só viu o livro pronto. Tive como leitores e conselheiros,

enquanto escrevia, Paloma e João Jorge, Luiza e James Amado, que

deram palpites e me encorajaram a prosseguir.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

LINA WERTMÜLLER

Ao pensarmos que poderíamos escrever tranqüilamente nossos

livros na Pedra do Sal, nos enganamos. Durante esse ano que passamoslá tivemos que interromper o trabalho, várias vezes. Uma delas foi

quando chegou à Bahia toda uma equipe de cineastas italianos. Vinham

conversar com Jorge e fazer locações para o filme Tieta do Agreste,

estrelado por Sofia Loren e dirigido por Lina Wertmüller, diretora e

roteirista dos filmes: Mimi o metalúrgico, Pasqualino Sete Belezas, Dois 

na cama numa noite de chuva, entre outros. Nessa embaixada

cinematográfica estavam o produtor Alfredo Bini, velho amigo nosso, eRenzo Rosselini, jovem simpático, filho de Roberto Rosselini.

SOFIA L OREN 

Numa de nossas estadas em Paris, Jorge foi procurado por Cario

Ponti e cedeu-lhe uma opção de Tieta do Agreste para o cinema. Para

Cario Ponti ele vendera, havia anos, os direitos de Mar morto, filme

nunca realizado.

Carlo Ponti e Sofia Loren nos receberam em seu apartamento de

Paris: Sofia está fascinada pelo personagem de Tieta, deseja muito 

conhecê-lo pessoalmente, conversar. Quer saber se essa Tieta existiu 

mesmo ou se é apenas fruto de sua imaginação, dissera Ponti ao nos

convidar à sua casa.

Fui a esse encontro munida de câmera fotográfica, não ia perder

a oportunidade.

No imenso apartamento, pouco iluminado, havia outras pessoas

além do casal. Foi nessa noite que conhecemos Lina Wertmüller.

Ao sermos apresentados a Sofia e a Lina, Jorge disse: Podem 

 falar com Zélia em italiano, ela é filha de italianos. Com tantos méritos,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

disse Lina, descubro mais este no Amado: é casado com uma italiana...

 Todos riram, menos eu, pois nunca abri mão de ser brasileira. Mas esse

não era momento para discussão; aos italianos basta o sangue italiano

para ter a nacionalidade.Entre os convidados da noite havia um cidadão muito elegante e

muito paparicado, era só: Toscan pra cá, Toscan pra lá... Esse deve ser

muito importante, pensei. Realmente era: tratava-se de Daniel Toscan

du Plantier, nada mais, nada menos que o presidente da Académie des

Arts et Techniques du Cinema, nada mais, nada menos do que o

mandachuva do mais importante prêmio do cinema francês, o César.

Sofia repetiu a Jorge o que Carlo Ponti já lhe dissera: queria

saber se o personagem Tieta fora copiado da vida real ou era ficção.

Com todo o seu charme Jorge lhe disse o que ela gostou de ouvir:

Depois que você a interpretar ela passará a ser personagem da vida real.

Rindo muito, ela chamou o marido: Senti questa, Cario. Contou que

desde a leitura do romance se pusera na pele da personagem e decidira

interpretá-la. Ela já quisera, havia anos, fazer o papel de Lívia, de Mar

morto. Ponti comprou os direitos do romance, a montagem da produção

 já andava adiantada quando Sofia engravidou do primeiro filho. Foram

obrigados a suspender tudo, adiar a filmagem. Sofia realizava o sonho

de sua vida: ter um filho e para esse filho dava prioridade. Depois tivera

outro filho, e o sonho de ser Lívia terminou. Entusiasmara-se também

por Gabriela, mas quando Ponti correu atrás dos direitos eles já haviam

sido vendidos à Metro.

Enquanto Jorge conversava com Sofia e Lina, eu só ia tirando

fotografias. Num dado momento, Toscan se aproximou de mim e disse:

Essas fotografias vão lhe render milhões... Não são para serem vendidas,

expliquei-lhe, são para um livro que estou fazendo. Não sei se ele

acreditou, muito menos acreditaria se eu lhe dissesse que jamais

recebera um tostão furado das fotos que tenho, publicadas em matérias

sobre Jorge, em revistas e jornais, em capas e contracapas de livros, no

mundo inteiro. Quando muito, por muito favor, me dão os créditos, mas

em geral ao lado da foto aparece simplesmente a palavra: arquivo. As

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

daquela noite, com Sofia Loren e Lina Wertmüller, estão no Reportagem 

incompleta. 

Carlo Ponti nos convidou a voltar no dia seguinte, Sofia desejava

nos mostrar os filhos, tomaríamos um drinque e sairíamos para jantarnum restaurante. Cario Ponti até sugeriu que a própria mulher nos

preparasse uma bela macarronada, especialidade dela, mas ficou

mesmo decidido que iríamos a um restaurante.

Nessa ocasião, nosso amigo e editor, Alfredo Machado,

encontrava-se na Europa e nos telefonou de Londres. Jorge contou-lhe

que jantaríamos naquela noite com Sofia Loren. Alfredo se

entusiasmou: Estou nessa boca, disse. Pois tome um avião e  venha,

aconselhou Jorge

Foi assim que, naquele jantar, com Sofia Loren, num charmoso

restaurante de Paris, Jorge levou um convidado: seu amigo, Alfredo

Machado, responsável pela publicação de Tieta do Agreste. 

Como toda história deve ter começo, meio e fim, não sou eu

quem vai deixar de contar o fim desta. Seu desfecho foi bastante

complicado, mas vou tentar resumi-lo a fim de explicar por que o filme

acabou não sendo feito pelos italianos. Peço, no entanto, licença para

contar tudo depois que Lina Wertmüller for embora da Bahia.

Lina e sua equipe chegavam agora à Pedra do Sal, prontos para

com Jorge irem fazer locações em Mangue Seco. Fretaram um pequeno

avião, visitariam todos os locais das filmagens. A diretora contava certo

com a companhia do escritor nessa caravana, mas ele se negou, à

última hora, a subir no aviãozinho. Foi Renato Ferraz, nosso amigo, que

tudo conhece e sabe da região, quem lhe serviu de cicerone.

Em Salvador, Lina Wertmüller entrevistou vários artistas,

contratou uma porção de gente. As filmagens deveriam começar o mais

cedo possível. Jorge negou-se a voar com a diretora, mas prontificou-se

a acompanhá-la a um candomblé, mostrar-lhe a cidade, apresentá-la a

uns e a outros.

Com a presença dos cineastas italianos na Bahia, nossas

máquinas ficaram fechadas, não pudemos escrever uma linha sequer.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Pouco depois da partida de Lina, fomos apanhados de surpresa

com a notícia dada pela televisão, em edição extraordinária: ao

desembarcar em Roma, Sofia Loren foi presa. Havia contra ela, na

Itália, um processo por sonegação de imposto, ou coisa semelhante.Sofia Loren deveria filmar umas tomadas internas, de Tieta na Cinecitá,

em Roma, antes de viajarem para a Bahia, e, mesmo ameaçada de ir

para a cadeia caso voltasse à Itália, ela resolveu arriscar. Ninguém

poderia acreditar que alguém ousasse prender a tão famosa atriz.

Enganou-se quem assim pensou, inclusive ela.

Lina Wertmüller voltara do Brasil com tudo encaminhado. Mas o

inesperado acontecera: La Loren è in galera, realidade que acabava com

o entusiasmo da realização do filme. Segundo dizia a imprensa, na

ocasião a falência do Banco Ambrosiano, que patrocinava a produção

da parte italiana do filme, fora decisiva para que o projeto não fosse

adiante, gorasse, mesmo depois da libertação da atriz.

O destino de Tieta era o de ser interpretada por uma brasileira, e

que brasileira! Sônia Braga. Do filme de Caca Diegues, Tieta, realizado

na Bahia, recentemente, feito com a maior competência e carinho, com

excelentes atores, quero destacar, com entusiasmo, os trabalhos de

Marília Pera e de Chico Anísio. E por que não contar que foi o primeiro

trabalho de minha neta Cecília, segunda filha de Paloma, como

continuísta, tendo inclusive nos dado a emoção de bater a claquete para

a cena de abertura do filme, onde seu avô Jorge, sentado num banco de

praça, lê uma página de seu livro.

ADEUS, PEDRA DO SAL 

Com as idas e vindas da equipe italiana à Pedra do Sal, nosso

esconderijo foi descoberto e começaram a aparecer visitas, começaram

os pedidos. Como se isso não bastasse, uma empresa de turismocolocou no seu roteiro a casa de praia do escritor. Diariamente, à hora

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

certa, parava em nossa porta um grande ônibus cheio de turistas, de

nacionalidades as mais variadas. Eunice, nossa empregada, ficava de

tocaia, aguardando a chegada do by day, para dar o alarme: Lá vem 

eles... Com o aviso de Eunice, nos trancávamos dentro das portas,ouvindo o rumor lá fora.

A guia da excursão fazia todo mundo saltar do ônibus e, de

microfone em punho, sapecava seu discursinho decorado: Esta é a 

residência do escritor Jorge Amado... por aí ia, contando coisas sobre o

escritor, inventando gracinhas para fazer os clientes  rirem. Eles

rodeavam a casa e chamavam: Jorge  Amado! Jorge Amado!, saia um 

 pouquinho... Turistas argentinos aos gritos de: Que salga Jorge Amado! Certa vez invadiram o jardim. Jorge me disse um dia: Não vejo a hora de 

terminar esse livro e sair daqui, voltar para nossa casa. Tenho às vezes a 

sensação de ser um foragido, um bandido me escondendo da polícia,: dia 

e noite... 

Agüentamos até o fim. Só voltamos para a casa do Rio Vermelho

de livros prontos.

CONCURSO DE BELEZA 

Hoje em dia os concursos de beleza perderam a graça. Já não

são, nem de longe, aqueles de outros tempos, da época em que as

baianas foram as maiorais. Lembro das duas Martas, a Rocha,injustiçada na hora das medidas, podia ter sido a Miss Universo, a

outra Marta, a Vasconcelos, foi vencedora nos enchendo de orgulho e

entusiasmo. Terezinha Morango, Adalgisa Colombo, Vera Fischer e

tantas outras são lindas até os dias de hoje.

Permito-me falar aqui de um concurso de Miss Bahia, do ano de

1967, quando esses concursos ainda tinham seu lugar, quando o

interesse por eles ainda era grande e quando, irresponsável, entrei degaiata numa fria e sofri as conseqüências.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

O movimento para a escolha da mais bela brasileira daquele ano

apenas iniciara. A TV Itapuã, única emissora da Bahia e, por isso

mesmo, ouvida por todo mundo, começava a movimentar-se na

pesquisa e na descoberta de beldades baianas.Diretor dos Diários Associados, o mandachuva da televisão

Odorico Tavares me convidou para dar uns palpites sobre os concursos

de beleza em geral. Mesmo não sendo expert no assunto, aceitei o

convite e fui ao estúdio à noite, para a entrevista, no horário nobre.

Entre outras coisas, me perguntaram se conhecia alguma moça bonita

para concorrer. Eu conhecia: Ana Maria Guimarães, sobrinha de Norma

Sampaio. Havia estado com ela naquela mesma tarde, em casa de

Norma, e não me cansara de apreciar a beleza da moça. Não tive

dúvidas em citar seu nome e endereço.

Ao chegar em casa, Norma já havia me telefonado várias vezes:

Menina, exclamava, entusiasmada, a televisão já está na casa da Ana 

Maria... Ana Maria teve a maior surpresa ao ver você falando no nome 

dela... está doidinha... 

Convidada, dias depois, fui à casa de Carmilton, irmão de

Norma, pai da candidata. Norma, como sempre, à frente de tudo:

Ana Maria já está inscrita e você vai ser a madrinha dela, vai 

 fazer a campanha... Levei um susto:

 —  Eu, Norma? Você está doida?

 —  Doida coisa nenhuma. Não foi você quem atirou a menina no

fogo? Agora agüente!!

 —  Eu apenas disse que ela é bonita, nada mais que isso...

 —  E você acha pouco? Não vejo motivo para se assustar... Vai

ser até divertido.

Felizmente, surgiram patrocinadores para a campanha da moça:

duas conhecidas casas comerciais, a Ipê e a Rosatex, dariam toda a

assistência à candidata, fornecendo-lhe o guarda-roupa e o que

necessitasse: acompanhante e conselheira, automóvel à disposição, em

troca da promoção das duas lojas comerciais. A mim coube, sempre sob

a batuta de Norma, dar mais umas entrevistas e levar Ana Maria à casa

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

de Genaro de Carvalho para que Nair, entendida em beleza, estudasse o

rosto da moça e lhe desse conselhos sobre a maquiagem a usar. Bem ou

mal eu cumpria a minha sina de madrinha de miss.

O dia do desfile se aproximava, a consagração seria noBalbininho. Os patrocinadores de Ana Maria encheram o estádio, por

dentro e por fora, de faixas de propaganda das duas lojas. A opinião dos

que acompanhavam o concurso era a de que não havia candidata mais

bela do que Ana Maria Guimarães. Ninguém duvidava de sua vitória.

Só não tínhamos atinado, Norma e eu, com um perigo

ameaçador: o patrocinador do concurso, era A Moda, conceituada casa

de roupas femininas de Salvador, concorrente ferrenha da Ipê e da

Rosatex. Inocentes desse detalhe que punha em risco o desfecho da

eleição, fomos ao Balbininho com bastante antecedência, o tempo

suficiente para pensar sobre o caso. Encontramos os patrocinadores de

Ana Maria furiosos. Marcos Kertzman, proprietário de A Moda, o que

bancava o concurso e pagava alto, havia mandado retirar todas as

faixas das lojas adversárias.

Sentado em nossa frente, Odorico Tavares mal nos

cumprimentou. Fiquei cismada: Odorico sempre tão efusivo, tão gentil...

A seu lado, na primeira fila, o prefeito Antônio Carlos Magalhães, o

governador Luiz Viana Filho e dona Juju, sua esposa, o general Augusto

 Tinoco e senhora, entre outros.

Entraram os componentes do júri, quase todos conhecidos

nossos, entre eles o poeta Hélio Simões. Norma se entusiasmou: Está no 

 papo, disse, Dr. Hélio é garantido, vota nela e os outros também.

Enquanto o meu entusiasmo diminuía, dando lugar ao pessimismo, o

de minha amiga pegava fogo. Já ganhou!, dizia ela.

As seis misses selecionadas na finalíssima desfilavam. Mais

linda do que nunca, Ana Maria flutuava entre as pétalas de rosas que

caíam do alto sobre ela. Isso, as pétalas de rosas, seu Marcos não

pudera evitar.

O tempo passava e nada de sair o resultado. Decisão mais 

demorada, reclamou Norma. O que é que essa gente está tramando lá 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

dentro?, disse eu, desconfiada ao ver que havia um vai-e-vem de

bilhetinhos e de recados para Odorico.

Finalmente, os alto-falantes entraram em ação, anunciavam a

decisão do júri:Ana Maria Guimarães, sexto lugar! Isso mesmo, sexto lugar!

O estádio quase veio abaixo com as vaias: Marmelada,

marmelada... 

Norma endoideceu, saiu na disparada para alcançar Odorico que

também saíra na disparada, tratando de salvar-se. Segurando-o pelo

braço, Norma esbravejou: Olhe aqui, seu Odorico, quando você escolher 

outro júri filho da puta como esse para seus concursos, me avise para 

não meter minha família nele... Tratei de levá-la para fora do estádio, ela

estava exaltada demais.

Enquanto esperávamos que Aurélio encostasse o carro,

aproximou-se de mim uma senhora do grupo dos patrocinadores da

miss derrotada, que, aos berros, foi me insultando: Você é a culpada 

dessa derrota. Ela só perdeu por sua causa, dizia gritando. Sem ação,

surpresa com tamanho disparate, ainda a ouvi esbravejar: Seu lugar era 

lá dentro e não assistindo da poltrona... Se estivesse lá dentro, ao lado 

dos juizes, teria evitado essa marmelada... Sem lhe dizer palavra, dei-lhe

as costas e fui saindo. Aurélio demorava, e Norma, que continuava

exaltada, divisou entre as pessoas que saíam pelos fundos do estádio o

poeta Hélio Simões que acabara de dar seu voto. Alcançou-o, segurou-o

pelos gorgomilos e gritou para o pobre que, atônito, não estava

entendendo nada: Quer um conselho, Dr. Hélio? Nunca mais se meta em 

concursos de beleza, porque de beleza o senhor não entende nada!... A

muito custo ele conseguiu se defender: Mas eu votei nela, dona Norma,

votei em Ana Maria... Era a mais bonita... Ele votara, sim, e outros

também haviam votado na nossa candidata. Norma conseguiu tirar

tudo a limpo: Ana Maria ficara em primeiro lugar, mas seu Marcos não

concordara nem em lhe dar o segundo.

Nesse concurso de beleza, no qual me metera de gaiata, venceu

uma casa comercial contra duas adversárias.

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HANSEN BAHIA 

A primeira vez que ele veio à Bahia, há muitos e muitos anos,

seu nome era Karl Heins Hansen. Alemão de Hamburgo, conceituado

professor de gravura em sua terra natal. O cidadão Karl Heins veio dar

com os costados na Bahia, trazendo Rosa, sua mulher e um casal de

filhos. Artista de primeira linha, todo mundo logo viu, homem de

hábitos diferentes dos nossos, Karl Heins   fez sucesso, não teve

dificuldade em relacionar-se com o que havia de melhor nas artes,

tornou-se amigo de Deus e o mundo. Comprou uma casinha rústica na

praia de Amaralina, o mar na porta, o resto um descampado. Pela porta

sempre aberta de sua casa entravam e ficavam habitando os animais

que aparecessem: cachorros, gatos, cabras, porcos e até um jegue

passou a fazer parte da família.

Encantado com a terra que escolhera, nosso herói resolveu um

dia mudar de nome, passou a chamar-se, para todos os efeitos, Hansen

Bahia.

Do artista alemão, tínhamos notícias através de amigos, de

Carybé sobretudo, que por ele tinha o maior respeito e admiração.

Carybé se divertia contando uma história que sucedera a Hansen:

caminhava ele pelas areias da praia de Amaralina quando deparou-se

com uma pedra amarela coberta de areia. Pedra grande, deveria pesar

uns dois quilos. Lavou-a no mar, ela era transparente, uma beleza!

Levou-a para casa, tirou-lhe um pedacinho, ia levar a amostra para ser

avaliada por um entendido, na cidade. Guarda essa pedra aí, disse à

Rosa, entregando-lhe o achado.

Não foi preciso examinar muito para que Mamede, o antiquado

da cidade, reconhecesse a qualidade do material que lhe fora entregue.

É âmbar, Hansen, disse-lhe o expert, coisa rara na Bahia. Se você tem 

em casa uma pedra dessas, do tamanho que você diz ter, está rico. Traga 

ela aqui para eu ver. 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

No percurso de bonde que o levaria ao ponto final de Amaralina,

Hansen achou a viagem longa, estava ansioso por chegar em casa,

contar a grande novidade a Rosa e aos meninos, fazia planos. Foi

entrando porta adentro e perguntando à mulher: —  Onde está a pedra, Rosa?

 —  Que pedra?

 —  A que eu te dei para guardar.

 —  Deve estar onde deixei, ali no chão  —  respondeu Rosa. No

lugar em que Rosa a havia deixado, ali no chão, restavam apenas

farelos do âmbar. O jegue a havia comido.

Hansen tornara-se assíduo freqüentador do Pelourinho, melhor

dito, do baixo meretrício que reinava no Centro Histórico de Salvador.

Chegava, sentava-se junto à janela do bar Flor de São Miguel, onde a

cachaçada era uma só, ficava apreciando os tipos que se misturavam,

homens e mulheres de todas as cores e matizes, ia tomando nota,

desenhando, material precioso para um álbum que faria, inclusive até o

título estava escolhido Flor de São Miguel. 

Os originais do álbum foram levados por Carybé, ao Rio, ele

queria que Jorge visse e escrevesse: Este trabalho do Hansen merece um 

texto teu, disse ele, mais uma intimação do que um pedido. Jorge se

encantou com as gravuras e o álbum de Hansen, todo feito à mão pelo

artista na sua primeira edição, teve a apresentação de Jorge Amado.

Ao chegarmos para viver na Bahia, Hansen já se havia ido,

partira com a família. Ao que soubemos, ele mudara de mulher, casara-

se com uma jovem aluna de nome Ilse, estavam morando na Abissínia.

Depois de correr mundos, de ter vivido na Etiópia, de ter sido

amigo de Haile Selassie, de ter tido hienas a gargalhar em seu jardim,

em Adís-Abeba, Hansen Bahia sentiu saudades da terra de seus

encantos. Trazendo uma grande tenda de campanha, com Ilse ao lado,

voltou para Salvador. Juntara algum dinheiro, comprou um terreno em

Patamares, armou a tenda e lá ficaram instalados até levantarem a

casa. A casa foi construída tempos depois, ampla e arejada, como

gostavam seus donos, portas abertas e franqueadas a quem chegasse,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

suas vidas passaram a ser compartilhadas com aves e animais: cães,

gatos, papagaios, macacos, inclusive um jegue.

Fomos à inauguração da casa de Ilse e Hansen, festa para a qual

eles convidaram meia Bahia, desde as prostitutas do Pelourinho àsmais elegantes damas da sociedade baiana.

Vestido de árabe, torço na cabeça, Hansen recebia os convidados

no terraço da casa. Nunca soube se era um hábito árabe ou invenção

dele, o leilão que Hansen fazia com cada senhora que chegava.

Levantava-a pela cintura, deitando-a em seguida de bumbum para cima

e começava o pregão: Quanto me dão por esse mulher? uma camelo? 

duas camelos? três camelos?... a cada camelo ele sapecava um, dois,

três tapas na bunda da dama que se debatia no ar, tentando

desvencilhar-se. Hansen ria divertido, mas os maridos não achavam

graça nenhuma na brincadeira e, quanto ao meu, tratou de me arrastar

com ele e entrar pelos fundos da casa para evitar a maluquice do

anfitrião. Carybé e Nancy nos acompanharam, aliás, muita gente nos

acompanhou.

Como esquecer a maneira como Hansen, no seu português

germânico, apresentou Ilse aos amigos?

Eu conheci Ilse no barriga do mamãe dela, Ursula, meu amiga.

Quando vi Ilse depois, ela já estava grande, era meu aluna de desenho.

Me apaixonei por Ilse, Ilse se apaixonou por mim. Meu casamento com 

Rosa, muito ruim, acabou. Tinha medo de casar com Ilse, Ilse muito novo 

 pra mim. Fui falar com minha papai: minha papai, eu quer casar com llse,

gosto muito de Ilse mas tenho medo, Ilse é muito moço pra mim. Minha 

  papai disse: meu filho, mulher velha come mais do que mulher moço.

Mulher velha fica mais doente do que mulher moço. Mulher velha gasta 

mais dinheiro no remédio do que mulher moço. Mulher velha é mais feio 

do que mulher moço. Casa com Ilse, minha filho. Ao terminar de contar a

entrevista com o velho pai e de louvar o sábio conselho, Hansen abria-

se num sorriso de satisfação: Minha papai uma poeta. 

Hoje, vinte anos após sua morte, seu nome é recordado, suas

divertidas histórias são repetidas, sua arte é louvada por toda a parte e,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

sobretudo, na Fundação Hansen Bahia, onde se encontra o acervo do

artista, em Cachoeira, cidade de encantamentos que Hansen e llse

escolheram para viver até o fim de seus dias.

 T RÊS AMIGAS FRANCESAS 

As três amigas francesas das quais desejo falar têm a ver com a

casa do Rio Vermelho e ainda mais com a nossa vida:

Misette Nadreau é citada em quase todos os meus livros. Nossa

amizade vem do tempo do exílio, na França e na Tchecoslováquia.

Desde então, Misette continua presente, nos bons e nos maus

momentos, estejamos aqui ou lá, no Brasil ou na Conchinchina.

Moradora do Rio de Janeiro, que adora de paixão, sem renegar a

sua nacionalidade francesa, Misette prefere morar no Brasil onde,

trazida por nossa amizade, vive há mais de quarenta anos, rodeada de

amigos brasileiros. Em nossa casa do Rio Vermelho temos um quarto

para nossa amiga que, quando pode, vem nos dar a alegria de sua

presença. Nossa amiga? Eu diria mesmo que, mais do que amiga, ela é

irmã, se é que irmã pode ser mais do que amiga.

Anny-Claude Basset apareceu em nossa casa do Rio Vermelho já

faz muitos anos, sou muito ruim para cálculos de tempo, mas posso

afirmar que isso se passou há mais ou menos trinta anos. Ela trazia na

mão uma carta de recomendação de Rubem Braga para Jorge e para

mim que dizia mais ou menos isto: Tratem bem a menina, ela é gente 

boa... 

Formada em literatura de língua portuguesa, na França, Anny-

Claude fizera um mestrado sobre a obra de Erico Veríssimo. Estagiara

em Portugal e, nessa ocasião, conhecera Otto Lara Resende e João

Cabral de Melo Neto. Dessa amizade resultou a sua vinda ao Brasil,

mais precisamente a Porto Alegre, onde pôde ter contato com Erico

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Veríssimo, autor de seus encantos, responsável pelo trabalho que

realizava. A moça francesa tornou-se amiga de Erico e de Mafalda,

amiga de grandes escritores brasileiros.

  Terminado o mestrado, doutora em literatura brasileira, Anny-Claude Basset não quis ser professora, optou pela profissão de

aeromoça, na Air France, teria a possibilidade de retornar muitas vezes

ao Brasil, país que a conquistara, rever seus amigos. Até aposentar-se,

Anny-Claude veio ao Brasil, constantemente, comprou apartamento no

Rio de Janeiro e divide sua vida entre Brasil e França.

Desde o dia em que apareceu em nossa casa com a cartinha de

Rubem Braga, Anny tomou-se nossa amiga. Nem vou contar aqui

histórias que tenham acontecido com ela, quis apenas falar dessa amiga

fiel, sempre presente em nossa vida, às vezes em temporadas na casa

do Rio Vermelho e na Pedra do Sal, outras vezes nos confins do mundo,

em viagens que fazemos juntos. Infelizmente as temporadas de Anny-

Claude na Bahia não são freqüentes, pois a moça adora buscar emoções

em mundos distantes e estranhos, adora fazer grandes marchas e

escalar montanhas. Por acaso, no momento ela se encontra fazendo

cooper no deserto de Gobi, na Mongólia, com Mimiche, sua irmã, outra

andarilha inveterada, de onde nos mandaram notícias.

Alice Raillard é a francesa que mais conhece o português, que

mais sabe da arte de ser amiga. Conhecedora profunda da obra de

 Jorge Amado, Alice traduziu a maior parte de seus livros. Não contente

com isso, resolveu escrever sobre ele.

Veio para a Bahia e em sua bagagem trouxe um gravadorzinho

para as entrevistas. Deixou em Paris o marido, como ela nosso grande e

querido amigo, Georges Raillard, um intelectual retado, no dizer de

 Jorge, que, entre outros trabalhos, é autor de um importante livro sobre

o pintor Miro.

Se minha estima e admiração por Alice era grande, aumentou

muito depois dessa sua temporada na Bahia. Impressionante sua

paciência e obstinação. De gravador em punho, sensível, discreta, um

senso de oportunidade incrível, ela aguardava calada que Jorge se

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dispusesse ou tivesse tempo de responder às suas perguntas. Devia

aproveitar os momentos livres dele, coisa rara. Muitas vezes Jorge até

se esforçava para atender à amiga, mas bastava sentar-se para ser

importunado, interrompido por telefonemas ou problemas que iam dosmais importantes aos mais banais. Desligando o gravador, Alice

aguardava. E nesse ligar e desligar do aparelho, passou-se um mês ou

mais. O esforço de trabalho e de paciência foi coroado de êxito: O livro

Jorge Amado, conversations avec Alice Raillard, é  um dos melhores

estudos já publicados sobre o escritor. Traduzido em várias línguas, faz

sucesso.

NOIVADO E CASAMENTO 

Nos mudamos para a Bahia por causa das crianças, quisemos

preservá-las das ameaças de uma cidade grande. Agora as crianças já

não eram crianças, criavam asas, buscavam seu rumo próprio.Não me admirei quando Paloma me contou um dia que estava

namorando o Pedro. Eu já percebera um certo clima entre os dois.

Filho do poeta Odylo Costa, filho, amigo da juventude de Jorge,

Pedro viera estudar na Bahia. Ainda bastante traumatizado com o que

sucedera a Odylinho, seu irmão mais velho, morto num assalto em

Santa Tereza ao voltar do cinema com a namorada, Pedro tornara-se

um rapaz triste, parecia ter perdido o gosto pela vida. Ele precisa mudar de ares e de ambiente, disse Odylo a Jorge que o aconselhou em seguida

a mandar o filho estudar na Bahia, onde seria nosso hóspede.

Os ares da Bahia, realmente, faziam bem ao rapaz. Os ares, a

convivência com João, Paloma e a turma deles, jovens animados,

sempre em dia com os programas festivos da cidade, participando de

tudo. Pedro aderiu à turma e foi aderindo, com o passar dos meses, aos

encantos de Paloma.

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 Jorge não gostou da notícia  —  e qual é o pai que gosta de ver

sua filha única namorando? Nesse caso ele tinha razão, Paloma era

ainda muito nova e ele desejava vê-la formada, mais madura para saber

o que realmente queria, antes de pensar em casamento. Mas quem élouco de se meter a dar conselhos a jovens apaixonados ou proibir,

como faziam os pais de antigamente? Nem pai, muito menos mãe

seriam ouvidos. O jeito foi atender ao apelo dos namorados, doidos de

pressa para oficializar o noivado.

Ao menos uma coisa agradou a Jorge. Gostou de saber que

Pedro, por iniciativa própria, após oficializar o namoro, mudara-se,

alugara um quarto onde passara a dormir todas as noites. Dormia no

quarto alugado, era bem verdade, mas logo cedo aparecia para o café da

manhã e, quando não estava no curso que fazia na Escola de

Arquitetura, era em nossa casa que podia ser encontrado.

Ao ter notícia do acontecido, Odylo achou muita graça, eu  já 

esperava por essa, teria dito. Nazareth, mãe de Pedro, da mesma forma

que nós, se preocupou, o filho era jovem demais para assumir um

compromisso tão sério. Mas também Nazareth sentiu-se impotente

diante da resolução do filho, não teve outro jeito senão abençoá-lo.

A família Costa chegou de automóvel, pais e irmãos para o

noivado de Pedro, todos hospedados na casa da rua Alagoinhas.

Amigueiro como ele só, Odylo convidou para a festa de noivado

seus amigos da Bahia, a começar por Dom Timóteo, abade do Mosteiro

de São Bento, ex-professor de Pedro no Rio, pessoa do nosso maior

bem-querer, ao governador do Estado, na época o escritor Luiz Viana

Filho, que veio com Juju, sua esposa.

  Jorge fazia questão do pedido formal, com discurso e tudo:

Afinal de contas só tenho uma filha e não faço por menos, disse.

Podíamos até vestir o fardão da Academia, pilheriou Odylo.

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Na sala repleta, o pai do noivo levantou-se e mandou verbo: com

palavras cheias de poesia, pediu a mão de Paloma para seu filho Pedro.

 Terminava perguntando:

 — 

Você dá a mão de Paloma para Pedro, Jorge? —  Bem...  —  ia respondendo Jorge, mas Odylo exigiu que ele

ficasse de pé.

 Jorge levantou-se.

 —  Bem  —  prosseguiu ele  — , antes de dar uma resposta, eu

queria consultar a pessoa mais sábia que se encontra nesta sala, minha

mãe. Minha mãe  — disse ele  — , o Odylo está pedindo a mão de Paloma

em casamento. Paloma e Pedro querem ficar noivos. O que você acha?

Sentada ao lado da cadeira vaga que fora ocupada pelo filho,

Lalu não titubeou, respondeu em seguida:

 —  Acho muito bom. Que fiquem logo noivos para acabar com

esse namoro de descaração.

Se houvera pressa para o noivado, agora havia pressa para o

casamento. Insistiram e marcaram data para daí a menos de um ano.

 JOÃO JORGE ENTRA NA DANÇA 

Como se o casamento de Paloma não bastasse, João Jorge

também inventara se casar. Filha de um amigo nosso, o português

Antônio Celestino, radicado na Bahia, Mariinha era a eleita de João Jorge.

O problema se repetia, ambos muito jovens para assumir um

compromisso tão sério. João recém-formado em sociologia, ela, ainda

cursando veterinária. Mas, como já foi dito, quem é doido de se meter a

dar conselhos a jovens apaixonados, mais doido ainda de proibir?

Nessas ocasiões, pai e mãe devem concordar sem abrir o bico para

evitar problemas maiores.

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A cabeça ardendo, precisando arejar, Jorge tratou de organizar

uma longa viagem, seria bom sair um pouco.

A L ONGA VIAGEM 

Nossa filhinha nos escapava das mãos. Ia-se embora, voltaria a

morar no Rio de Janeiro, viveria em outro ambiente familiar, se

aproximaria da família Costa, se distanciaria de nós... Seriam ciúmes

da minha Palominha o que eu sentia? Sem que me vissem, choreimuitas lágrimas. Embora nada dissesse, Jorge também andava triste.

Mas Jorge não é homem de se entregar, de se lamuriar, é homem de

ação: convidou Paloma a fazer uma viagem conosco pela Europa,

viagem de uns quatro meses, chegaríamos um mês antes do casamento.

  Jorge participaria de um congresso de escritores latino-

americanos, na Alemanha, na cidade de Düsseldorf. Como a data do

congresso ainda estava muito distante, ficaríamos circulando pelaEuropa, iríamos à Escandinávia. Em Copenhague, visitaríamos nossos

amigos Emília e Georges Ploestanu. Ele fora, durante anos, embaixador

da Romênia no Brasil, daí nossa amizade.

  Temi que Paloma fosse reagir, não querendo ficar tanto tempo

longe de Pedro, mas não, a viagem era tentadora demais. Prazerosa, ela

aceitou o convite, tinha muita vontade de conhecer a Escandinávia.

 Jorge sorriu satisfeito, ao menos por mais algum tempo a filha de seuamor estaria a seu lado.

Quanto a João, íamos cuidar de seu casamento na volta da

viagem. Ao menos ele não sairia da Bahia, teria sua própria casa mas

não o perderíamos de vista.

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CABO SAN ROQUE 

A empresa de navegação espanhola, Ybarra, tinha três navios

que faziam a linha regular entre a Bahia e Vigo com escalas em

  Tenerife, nas Ilhas Canárias e em Lisboa. Viagem de descanso,

agradável e confortável para quem não gosta de avião, a fazíamos

sempre, ora num ora noutro navio.

Ainda uma vez embarcamos no Cabo San Roque, voltaríamos no

Cabo San Vicente, com data já marcada.

Recordo que numa dessas viagens, no Monte Umbe, Jorge levou

a máquina de escrever e trabalhava no tombadilho quando dele se

aproximou um homem: Por favor, meu senhor, disse, onde é que se 

encontra a porta de saída?  Debruçou-se no tombadilho e, olhando o

mar, disse: Quero ir ao Baile... Veja que beleza! Todo mundo dançando...

Sem se perturbar, Jorge apontou-lhe Guillelmo, o barman: Pergunte a 

ele, ele sabe tudo. 

No porto de Lisboa uma ambulância aguardava o paciente,

portador de um desequilíbrio mental.

L ISBOA À VISTA 

Lá estavam, no porto, nos esperando como de hábito, vários

amigos: o escritor Ferreira de Castro, a atriz Beatriz Costa e os amigos,

editor Francisco Lyon de Castro com sua mulher, Eunice e Aríete

Soares, nossa amiga baiana que viera de Paris onde defendia uma tese,

para nos esperar e seguir viagem conosco.

Do Hotel Tivoli, onde nos hospedamos, saímos andando,

descemos a Avenida da Liberdade, subimos ladeiras, matamos

saudades dos lugares, de amigos que encontramos e da comida

portuguesa.

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À noite, com Ferreira de Castro, Lyon de Castro e Fernando de

Assis Pacheco fomos à Alfama ouvir fados. Nessa noite, no A Nau

Catarineta, deu-se um fato divertido.

Ao dar-se conta da presença dos famosos escritores na sua casade fados, a proprietária pediu ao fadista, que no momento ia cantar,

que anunciasse a presença dos dois insignes cidadãos. Desembaraçado,

o fadista nem engasgou ao anunciar com grande ênfase: Temos a honra 

e o prazer de anunciar a presença nesta casa de duas grandes 

 personalidades: o ilustre poeta brasileiro Ferreira de Castro e o escritor 

 português Jorge Amado. Ferreira de Castro riu, mas não gostou: Veja só 

o parvo...   Tentou até corrigir a parvoíce do outro, mas Jorge o

dissuadiu. Deixa pra lá, foi até divertido...

RUMO À DINAMARCA 

Num Mercedes preto, com motorista e tudo, carro alugado emLisboa, saímos numa viagem pelo norte de Portugal, atravessamos

serras e planícies, passamos a fronteira com a Espanha. Nos divertimos

constatando a diferença de caráter entre os vizinhos, tão próximos e tão

distantes na maneira de ser.

Deixávamos Portugal e antes de atravessarmos a fronteira lemos

numa parede: Um dia o sol brilhará para todos. Logo abaixo, a

intromissão de um gaiato: E nos dias de chuva?  Mal pisamos a Espanha, lemos na fachada de uma casa, em

letras garrafais: Te ódio, te ódio y te ódio!  

Em Vigo almoçamos no restaurante El Mosquito os mais

deliciosos frutos do mar. Jorge fez questão de passar com Aríete por

uma papelaria, nossa conhecida, atração e divertimento de brasileiros

que por ela passam, interessados no nome do proprietário escrito na

fachada da casa comercial: Papeteria Juan Buceta. 

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Nosso destino era Santiago de Compostela, passaríamos, a

caminho, por Pontevedra, onde tínhamos amigos. Lá encontraríamos

Manolo ou José Alberto Moreira, donos do melhor anti-quário da Bahia.

Os Moreira tinham em Pontevedra uma sucursal ou matriz, não sei, dacasa de antiguidades. Nessa cidade também viviam alguns baianos

casados com galegos. Por onde passávamos íamos encontrando

conhecidos.

Santiago de Compostela é a cidade de meus encantos. Não

víamos a hora de chegar à catedral, não queríamos perder a

impressionante cerimônia do bota fumem, quando um gigantesco

turíbulo suspenso ao alto por grossas cordas é balançado de um lado a

outro da igreja, a velocidade aumentando cada vez mais, a fumaça do

incenso se espalhando, invadindo tudo.

Havia fila para reverenciar Santiago de Compostela, cuja imagem

estava instalada no centro do altar-mor.

Paramos para ver, dentro do templo, nas suas laterais, enormes

pinturas, onde Santiago, montado a cavalo, de espada em punho,

decepa cabeças, mata os mouros que o rodeiam. Por isso o chamavam 

Santiago Mata Moros, explicava um guia de turismo a um grupo que

acompanhava.

Eu estava doida para me aproximar da imagem, no altar, ao alto,

coisa fácil pois era só subir uma escadinha atrás, que dava acesso às

costas do santo. Esperei que um grupo de turistas acabasse de subir,

fui atrás. Naquele ambiente sombrio, a proximidade com a imagem me

impressionou. Queria dar-lhe um beijinho e para completar o carinho

devia também abraçá-lo. No momento em que o abraçava e beijava-lhe

as costas, ouvi uma gargalhada, aliás, duas gargalhadas. Sem me

separar de Santiago, olhei para o lado, onde Aríete e Paloma morriam de

rir. Eu não estava ali por caçoada, nem por devoção, apenas tivera esse

ímpeto e fora adiante. Não sei se foi impressão minha ou não, senti

Santiago tremer na base, não devia estar muito preso. Nesses

momentos a gente pensa nos maiores absurdos, e eu pensei: e se a

imagem desabar sobre o altar e eu junto, grudada em suas costas?

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Atacou-me uma vontade louca de rir, sobretudo ao ver que Jorge

chegara junto à escadinha e ria com as duas. Não conseguia me soltar

do santo, atrás de mim a fila aumentava e eu ali, fingindo que chorava

de emoção, recurso instintivo, evitaria ser linchada caso descobrissem afalta de respeito, rir daquele jeito nas costas de Santiago de

Compostela. Situação tragicômica, inesquecível, nos rende boas risadas

todas as vezes que a recordamos.

Nosso destino era a França onde pararíamos uns poucos dias

em Paris, antes de prosseguirmos a viagem para a Escandinávia.

PARIS 

Em Paris demos folga a seu Noel, o motorista, ele não conhecia a

cidade e descansaria antes de reiniciarmos a viagem, rumo a

Estocolmo.

Aríete vivia na Casa do Brasil, na Cite Universitaire. Fazia, naSorbonne, um mestrado cujo tema era a praia de pescadores de Jauá

no litoral da Bahia. Tinha como orientador, em Paris, o professor

Brusse Bastide. Ela comprara um Renault 4L já bastante combalido

mas ainda muito prestativo.

No 4L de Aríete, fizemos o nosso recorrido em Paris, visitando

velhos amigos, em geral comerciantes, pessoas de nossa estima desde

os tempos do exílio.Não podíamos deixar de visitar Madame Salvage, e a

encontramos no seu posto, na portaria do Hotel Saint Michel. Ela se

revelara uma grande amiga ao nos hospedar durante todo o tempo de

nosso exílio. Não mudara nada: Ma petite Zélia! Mon cher Jorge!,

exclamou satisfeita, ao nos ver. Quase se ofendeu ao saber que

estávamos hospedados em outro hotel. Insistiu para que passássemos

para o dela, havia feito algumas reformas, teríamos mais conforto.Nossos quartos, os que habitáramos durante dois anos, estavam

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ocupados, mas isso não tinha a menor importância, ela despejaria

tranqüilamente os hóspedes que lá estavam: O quarto é de vocês,

insistiu, e não vão pagar nada, serão meus convidados. 

Preferimos ficar mesmo no Select, um hotelzinho simples, masbem melhor do que o Saint Michel.

BÉLGICA

Chegamos em Bruges num domingo pela manhã. A cidadeestava em festa, aliás, ela em si já é uma festa com seus canais

navegáveis circundando a cidade de casarões antigos, belos.

Pernoitaríamos no Hotel Portinari, o escolhemos por patriotismo,

homenagem ao nosso grande artista, e acertamos. Era um bom hotel e

bem localizado, próximo ao centro onde se concentravam figuras

gigantescas, fantasiadas, que dançavam movimentadas por uma pessoa

que se encontrava dentro. Não consigo recordar como são chamadas noBrasil essas figuras. Em Portugal as chamam de gigantones  e, em

espanhol, mascarones. 

Pelas janelas dos sobrados ao lado dos canais podia-se assistir a

concertos, os músicos vestidos a caráter, com trajes de época, tocando

instrumentos antigos, enquanto barcos enfeitados de flores deslizavam,

levando personagens caracterizados.

Chegáramos a Bruges num dia de festa, por acaso, nãoesperávamos assistir a espetáculo tão belo. Em meio a gigantones  e

mascarones, a tanta música, tivemos ainda tempo de comprar rendas,

as famosas rendas de Bruges, feitas à mão, só comparáveis às rendas

de bilro do norte do Brasil.

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HOLANDA 

Bm Amsterdã pararíamos mais tempo, havia muito a ver,

desejávamos voltar ao Museu Rembrandt e ao Museu Van Gogh,

queríamos que Paloma visse as obras dos dois gênios holandeses, na

Holanda, lá ela veria quadros que não vira em sua visita de um dia

inteiro ao Museu do Louvre.

A viagem a Amsterdã foi tranqüila e linda, passamos por campos

e campos de tulipas, verdadeiros tapetes coloridos.

Passeamos em barcos, pelos canais, vendo a parte pitoresca da

cidade, famílias inteiras, com cães, gatos e passarinhos, morando

tranqüilamente em barcos onde até jardim cultivavam.

 Tínhamos grande curiosidade de conhecer as célebres ruas das

vitrines, onde prostitutas esperam alguém que as eleja para uns

momentos de prazer.

Procurávamos que alguém nos desse uma informação, nos

indicasse o caminho, quando vimos parar um imenso by night de onde

saltaram turistas, na sua maioria senhoras idosas que pelo trajar e o

indefectível chapeuzinho indicava serem americanas. Os guias, um

homem e uma mulher, com um guarda-chuva fechado, abanando no ar,

iam à frente indicando o caminho como quem dirige uma boiada. Lá vão 

eles!, dissemos e, sem perda de tempo, colamos na excursão.

Em cada vitrine, nas ruas estreitas e movimentadas, encontrava-

se uma moça, em geral bonita. O ambiente de cada vitrine era diferente

do outro: numa, apenas uma jovem sentada numa cadeira de balanço,

decentemente vestida, com o ar mais ingênuo do mundo, lendo um

livro; noutra, a moça fazia tricô, noutra ela segurava um gatinho,

noutra, apenas fumava e daí por diante. Em toda a extensão da vitrine

havia uma cortina grossa que, à chegada de um cliente, era fechada aos

olhos dos passantes. O que fora vitrine virava uma alcova. A cortina só

voltava a ser aberta depois de tudo terminado, o ambiente novamente

arrumado, a moça composta esperando, comportada, um novo freguês.

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DINAMARCA 

Atravessamos a Alemanha e, como pretendíamos parar em

Colônia, na volta, seguimos diretos e, sempre ouvindo músicas de

Moustaki, pelo gravador de Aríete, entramos por Lubec e, costeando o

mar Bákico, chegamos a Puttgarden de onde atravessamos para a

Dinamarca num ferry-boat. 

Em Copenhague os Ploestanu nos esperavam e se puseram à

nossa disposição para o que precisássemos.Com Emília passeamos e ela nos levou a ver a famosa

Sereiazinha de Copenhague, escultura singela, homenagem da

Dinamarca ao seu escritor maior, Andersen. Nos regalamos com os

pratos romenos preparados por Emília, nas vezes que almoçamos e

 jantamos na embaixada com o casal.

Enquanto seu Noel folgava, andamos pelo centro da cidade, às

vezes pelas nossas próprias pernas, às vezes com a ajuda de Emília, quesabia tudo sobre as melhores lojas e onde fazer compras.

Diante de tanta coisa bela nas vitrines de Copenhague, Paloma

se entusiasmou, não resistiu: por que não comprar o que gostara tanto

e jamais encontraria em nenhuma outra parte? As peças e os objetos

iam fazer o maior sucesso no Brasil. Compraria o que pudesse para sua

casa, devia começar a pensar nela já que a data do casamento estava

marcada.Ao nos despedirmos da Dinamarca, indo para a Alemanha, seu

Noel teve que amarrar uma grande mala que acabáramos de adquirir,

cheia das compras de Paloma e compras nossas, no porta-bagagem em

cima do carro. Nossa mala faria companhia à de seu Noel, que desde o

início da viagem estivera lá em cima.

Depois da parada em Colônia voltaríamos a Paris onde

terminaria o contrato de aluguel do carro e lá o entregaríamos.Em Paris tomaríamos o trem noturno para Londres onde Antônio

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Olinto e Zora nos esperavam. Olinto era na ocasião adido cultural da

Embaixada do Brasil na Inglaterra. Ele e Zora nos hospedariam em seu

apartamento na Harowby Street. A data do congresso em Düsseldorf 

ainda estava distante, mais de um mês. Teríamos tempo bastante paramostrar Londres a Paloma, visitar museus, ir a teatros, fazer compras.

De Londres voltaríamos, sempre de trem, a Paris de onde, no carro de

Aríete, seguiríamos direto para Düsseldorf, a tempo de Jorge chegar

antes do início do Congresso.

COLÔNIA 

Por recomendação de seu Noel, paramos num hotel no centro da

cidade onde passaríamos a noite. Hotel simpático, cujos empregados

eram em grande parte portugueses. Ao contrário dos outros hotéis nos

quais pernoitáramos, esse não tinha garagem, apenas um pátio interno

de estacionamento onde já havia vários carros ao chegarmos.O malão das compras era tão pesado que nem tivemos coragem

de insistir para que ele fosse levado para dentro do hotel. Lugar seguro,

gente séria, garantira seu Noel,   podem deixar tranqüilamente a mala,

dissera um empregado que ajudava a levar nossas coisas pessoais para

nossos quartos. Dormimos tranqüilos, um sono só.

Nosso programa da manhã seria andar pelo centro, visitar a

famosa catedral. Isso faríamos com um amigo de Aríete, alemão deColônia, que ela conhecera em Paris.

Madrugador como sempre, Jorge saiu logo cedo do quarto, me

deixou dormindo. Nem estranhei de só vê-lo aparecer quando, com

Paloma e Aríete, tomávamos café. Jorge foi chegando e nos estendendo

uma folha de papel em branco: Vamos vê se vocês têm memória, se 

lembram das compras que fizeram em Copenhague, disse na maior

calma. Vam'bora, tomem nota aí de tudo o que trazíamos no carro, dentro e fora, insistia. Não agüentei: E loucura ou um capricho apenas? A essa 

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hora da manhã fazer uma lista de tudo? Vamos perder tempo, é muita 

coisa pra lembrar, pra que isso agora?... Enquanto eu reclamava, Aríete

e Paloma atiravam-se à tarefa, viam na proposta de Jorge apenas um

grande divertimento, faríamos a lista num abrir e fechar de olhosenquanto aguardávamos a chegada do amigo de Aríete.

Ao entregarmos a lista a Jorge, devia, certamente, faltar ainda

alguma coisa a lembrar. Eu não me convencera de que o capricho de

 Jorge fosse apenas um divertimento, continuava curiosa e, ao vê-lo com

a relação das coisas na mão, novamente perguntei:

 —  Agora me diga, por favor, pra que você quer essa lista?

 —  Pra mandar para Emília Ploestanu  — respondeu.

 —  Para Emília? Por quê?  — Cada vez eu entendia menos.

 —  Porque fomos roubados  — respondeu Jorge.

 —  Roubados?  — dissemos as três, em coro.

 —  Isso mesmo. Roubaram o malão de cima do carro,

arrombaram o vidro e levaram tudo o que estava dentro.

Ficamos as três sem ação. Paloma perdera tudo o que comprara

com tanto gosto para a sua casa... Aríete perdera a máquina fotográfica,

o gravador e as fitas; eu perdera um par de botas que deixara dentro do

carro e algumas compras pequenas, sobretudo presentes que levava

para amigos, coisas que estavam no malão.

 —  Levaram também a mala de seu Noel?  —  lembrei de

perguntar.

 —  Não. Ele não deixou a mala dele no carro...

A mim, seu Noel explicou que retirara sua mala do porta-malas

porque precisara tirar dela um pente para pentear-se. Explicação que

achamos melhor não discutir.

O pessoal do hotel não quis saber de conversa, não tinham nada

a ver com o sucedido, isentaram-se de qualquer responsabilidade.

Nunca mais vamos recuperar nossas coisas, disse Jorge. Eu não 

quero ver ninguém de cara triste, ninguém chorando, não quero,

sobretudo, que esse roubo venha estragar a nossa viagem. Vou telefonar 

aos Ploestanu, pedir à Emília que nos faça o favor de comprar tudo 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

novamente e nos enviar para Portugal. Virou-se para a filha: Você vai ter 

de volta o teu lindo faqueiro, as peças de cerâmica, os bordados... tudo. A 

Emília é uma boa amiga, ela vai conseguir comprar tudo. Não fique triste. 

Por insistência do amigo de Aríete, revoltado e encabulado com oque nos sucedera em sua cidade, fomos à polícia que também não

resolveu nada. Disseram que havia sido imprudência nossa, que os

roubos em Colônia eram freqüentes. Se um dia conseguissem pegar os

ladrões e recuperar nossas coisas, nos dariam notícias, e adeus, fim de

conversa. O ladrão não foi apanhado e nossas coisas não foram

recuperadas.

Embarcamos novamente no Mercedes depois de Jorge ter pago a

reposição do vidro quebrado. Seguíamos a longa viagem de volta, sem

música, toda hora alguém lembrando de uma coisa que não havia

entrado na lista, quando Jorge rompeu o silêncio caindo na gargalhada:

Eu estou só pensando, dizia ele, no susto dos ladrões ao pegarem a 

risadinha... Havíamos descoberto e comprado em Copenhague a

risadinha, caixinha que bastava apertá-la um pouco para que dela

saíssem gargalhadas seguidas e escandalosas, novidade na ocasião.

Essa caixa de risadas fora a única coisa que restara, desprezada dentro

do carro.

RUMO A DÜSSELDORF 

Não conhecíamos Düsseldorf. O nome para mim, no entanto, era

familiar, fazia-me recordar um filme: O vampiro de Düsseldorf,

impressionante, interpretado pelo magistral Peter Lorre, filme cujas

imagens de uma cidade sombria eu conservava na lembrança.

Depois de ter viajado dias e dias num possante Mercedes, o

frágil 4L de Aríete tornava-se bastante desconfortável, sobretudo para

mim e para Paloma, que ocupávamos o duro banco de trás, onde até aponta de uma mola que escapara do estofamento nos arranhava sempre

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

que nos distraíamos.

Viagem desconfortável, porém mais agradável, mais íntima, livre

da presença de seu Noel, com Aríete ao volante. A voz de Moustaki

retornara no gravador novo que compráramos em Paris para Aríete emsubstituição ao roubado. A viagem se tornara não somente mais íntima,

como mais engraçada. Transformamos a chateação do roubo da mala

em gozação e nos divertíamos. Jorge falara com Emília por telefone, ela

lhe garantira, encontraríamos tudo em Lisboa, antes de embarcarmos

de volta para o Brasil.

A prova de generosidade e de nobreza de caráter que Jorge nos

dera ao preocupar-se em apagar nossa tristeza e nos devolver o riso lhe

dava créditos para o futuro. Daí por diante ele poderia até implicar com

bobagens, berrar fora de hora, pegar no meu pé quando apressado, sem

que eu reclamasse, e até o absolveria de um eventual espichar de olho

sobre umas ancas a rebolar em sua frente.

DÜSSELDORF

Em Düsseldorf fazia frio e o dia era sombrio. Na sede da

organização do congresso nos informaram que os hotéis da cidade

estavam lotados e nos coubera como acomodação um gentil hotelzinho,

rodeado de jardim e bosque, a uns trinta quilômetros do centro da

cidade. Mesmo com um mapa riscado na hora numa folha de papel,tivemos dificuldade para encontrá-lo. Deixamos a bagagem no hotel e

voltamos para a cidade.

Os escritores convidados haviam chegado e fomos encontrá-los

reunidos num salão. Apenas Miguel Angel Asturias, Prêmio Nobel,

conseguira lugar em hotel da cidade. Os demais, Vargas Llosa, Gabriel

Garcia Márquez, Eduardo Portella, Josué Montello, estavam espalhados

em pequenos hotéis, distantes.Se lá fora a noite era fria e triste, dentro, no salão, onde se

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

encontravam escritores dos mais distantes países da América Latina,

reinava a euforia num clima cálido de confraternização. Que alegria te

encontrar aqui, Príncipe, disse Jorge, ao se aproximar de Eduardo

Portella, seu amigo a quem sempre chama de Príncipe. Nosso amigo dostempos de exílio, Miguel Angel Asturias, me abraçou: E tu comadrita,

que me contas? Blanca quiere ver te. 

A abertura do congresso estava marcada para o dia seguinte

pela manhã, em sessão solene, num teatro. Ficamos contentes ao saber

que houvera um equívoco, tínhamos reserva num hotel do centro.

Dormiríamos ainda aquela noite fora da cidade. Deixaríamos o

hotelzinho pela manhã ao sairmos para a solenidade.

Pela manhã, logo cedo, como de hábito, Jorge se arrumou,

tomou café sozinho, ficou à espera do ônibus que viria buscá-lo.

Combinou comigo que eu arrumaria a mala com calma e iria depois

com Aríete e Paloma. Eu não posso esperar por você. Tenho horror de 

chegar atrasado aos compromissos, você sabe disso. Claro que sabia.

Não reclamei.

Eu sempre digo e repito que a pontualidade é uma qualidade,

mas o excesso de pontualidade, a preocupação de chegar antes da hora

marcada, é um defeito. Sobre essa minha teoria eu poderia dar vários

exemplos, contando algumas histórias, mas não me alongo, fico por

aqui.

O ônibus para Düsseldorf chegou às oito e trinta e a abertura do

congresso estava marcada para as dez horas. O chofer devia ainda

apanhar umas pessoas pelo caminho.

Eu já estava pronta, a mala fechada, faltando apenas recolher a

miuçalha de última hora quando Jorge apareceu na porta do quarto:

Vou indo que já estou atrasado. Você vai com Aríete e Paloma, já avisei a 

elas. Falou e desceu rapidamente as escadas.

Desci em seguida a tempo de ainda ouvir o ronco do motor do

ônibus que acabara de partir. A moça da portaria fez um gesto

indicando com a mão o portão de saída. Pedi-lhe que mandasse buscar

a mala lá em cima e saí à procura das meninas. Não as encontrei em

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

parte alguma. Voltei à portaria e perguntei em inglês, à mesma moça,

pelas duas. Com o mesmo gesto que fizera havia pouco, acrescido de

uma bela risada, ela mostrou-me o portão de saída. Essa é obtusa

mesmo, pensei, não entende gestos e nem inglês, deve estar achandoque pergunto novamente: por Jorge e responde novamente que o ônibus

  já foi. A risada só podia ser de gozação: Ele foi e te deixou, hem!  Não

disse mas pensou, claro. Voltei ao quarto das meninas, até os colchões

das camas já não estavam.

Minha mala se encontrava na portaria e nem sombra de Aríete e

Paloma. Saí andando pelo jardim e percebi um sorriso significativo nos

lábios de cada pessoa que eu ia encontrando pela frente. A notícia de

que eu ficara esquecida, abandonada, já devia ter corrido e eu, com

razão ou não, me senti humilhada, alvo da chacota daqueles alemães

todos. Não podia me comunicar com ninguém, não tinha um único

número de telefone para chamar, ia perder a abertura do congresso, a

intervenção de Jorge... me sentia impotente.

Felizmente o tempo levantara, fazia sol e eu resolvi ler um livro,

sentada no jardim, aguardando os acontecimentos. Não consegui ler

nem uma página. Tudo estava claro para mim: Aríete e Paloma haviam

me esquecido, ido embora. O jeito era esperar.

Esperava há quase duas horas quando divisei no portão a ponta

vermelha do capo do Renault, dentro as duas, afobadíssimas: Mãe,

desculpe..., dizia Paloma.

  Todos os sentimentos, os maus sentimentos, acumulados e

remoídos durante essa interminável espera, vieram à tona.

Em nenhum momento sequer, no entanto, meti Jorge no

embrulho, não o culpei: essa sua pressa exagerada, a eterna

preocupação de chegar aos encontros antes da hora marcada, estava

convencida, era coisa hereditária, defeito congênito, sem remédio, a

herdara de João Amado de Faria, seu pai, que por sua vez herdara do

velho José Amado, avô de Jorge. Não fora, porventura, o coronel João

Amado que, certa vez, saiu do barbeiro de cara ensaboada, a barba

meio feita, meio por fazer? O diabo do barbeiro mais falava do que 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

trabalhava... perdi a paciência, explicara o Coronel. O velho José Amado

devia embarcar às oito da manhã, num trem que saía da gare perto de

sua casa, e, precavido, chegou às seis. Na estação deserta, o trem ainda

fechado, ele não teve dúvida, não ia ficar esperando de pé, forçou eabriu a janelinha de um vagão, por ela entrou e aguardou sentadinho.

Despejei minha ira toda sobre Paloma e Aríete, a meu ver as

únicas responsáveis por tudo. Exaltada, exaltação congênita,

hereditária da raça italiana, atirei contra elas o que me veio à boca,

disse o diabo: não desculpava coisa nenhuma, nunca sofrerá uma

desconsideração tamanha, uma falta de respeito tal, e daí pra mais. O

próprio vampiro de Düsseldorf, a mostrar as presas afiadas, a lançar

chispas pelas narinas e pelos olhos, não teria impressionado tanto as

duas. Até hoje elas não gostam de relembrar a cena. Nem eu. Pela

primeira vez, depois de tantos anos, toco no assunto descrevendo-a

aqui, na esperança de que assim, quem sabe, consiga esquecê-la.

Acontece que, no final das contas, Aríete e Paloma não eram tão

culpadas assim: não entenderam que deviam me esperar. Ao chegarem

ao pátio viram que Jorge já se encontrava dentro do ônibus e acharam

que eu devia estar com ele. O ônibus dava a partida e as duas não

perderam tempo, colaram em seu fundo, assim não se perderiam pelo

caminho. Ao entrarem no teatro depois de estacionar o carro, deram de

cara com Jorge que perguntou à Paloma: Cadê tua mãe? Ao saber do

mal-entendido ele se alvoroçou: Voltem imediatamente, ela deve estar 

aflita. Elas voltaram e se perderam várias vezes, só chegaram lá àquela

hora, considerando um milagre terem conseguido encontrar o caminho.

NOTURNO PARA L ONDRES 

Em Paris tomamos o noturno, com leito, para Londres. Dessa

vez Aríete não nos acompanhou. Íamos sentir falta de nossa amiga.Ao chegarmos ao apartamento dos Olinto tínhamos a sensação

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

de chegarmos em casa. Nos hospedáramos lá várias vezes. Perfeitos

anfitriões, eles nos deixavam à vontade, me sentia a própria dona da

casa: ia para a cozinha, fazia nossa comidinha costumeira, cansados

que estávamos de comer em restaurantes. Em Londres podíamosencontrar tudo que quiséssemos para os meus pratos brasileiros: desde

o arroz e feijão e a farinha de mandioca à carne-seca.

Aproveitando a estada em Londres, com uma cozinha à

disposição, dei aulas de culinária a Paloma, que estava para se casar e

não entendia nada de panelas e temperos. Eu era da teoria de meu pai,

que a moça quando casa deve saber como se virar diante de um fogão.

Se não precisar, muito bem, dizia seu Gattai, mas é sempre bom saber.

Disso eu tinha experiência, quantas vezes precisei, quantas vezes tive

que assumir o comando da cozinha?

O apartamento dos Olinto era refúgio de brasileiros. Podíamos

encontrar lá pintores, músicos, estudantes brasileiros com bolsas de

estudo ou mesmo sem bolsa, dando um duro danado... Zora tinha

sempre uma palavra de boas-vindas para cada um, lá eles se sentiam

bem.

Adido cultural da Embaixada, Olinto conseguia exposições e

concertos para uns e outros. Já estivéramos hospedados na Harowby

Street, ao mesmo tempo que Genaro e Nair, por ocasião de uma

exposição das tapeçarias de Genaro.

Agora, a surpresa de encontrar Carybé já instalado na casa dos

Olinto fora grande. Dessa vez Nancy não estava com ele. Sua estada era

rápida, o tempo de amarrar uma exposição e receber uma homenagem

do diretor de um banco de Londres que lhe oferecia um cocktail  no

próprio banco. O convite para essa honraria lá estava à nossa espera.

Ficamos intrigados:

 —  Por que isso tudo, compadre? Você é amigo do banqueiro?  —  

perguntou-lhe Jorge.

 —  Não sou amigo do banqueiro, não conheço ele, nem sei quem

é. Não sei mesmo por que isso tudo. Vai ver que é porque eu sou um

porreta  — caçoou.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

 —  Que você é um porreta todo mundo sabe, mas como é que

esse banqueiro te descobriu?

Quem botou tudo em pratos limpos foi Olinto. O tal banqueiro

era um criador de eqüinos, apaixonado por cavalos. Seu filho estiverana Bahia e comprara um quadro de Carybé e o presenteara. Na tela,

dezenas de cavalos, de todos os tamanhos e todas as cores, saltando e

correndo em todas as direções, cavalos em movimento que só Carybé

sabia pintar. O banqueiro apaixonara-se pela pintura e agora

homenageava o artista. (Um quadro de Carybé, de cavalos, encontra-se

num dos aposentos da rainha da Inglaterra, num de seus palácios.)

Querendo fazer uma surpresa a Carybé, Jorge comprou um

chapéu-coco. Vou com ele à tal homenagem, quero só ver a cara dele.

Escondeu o chapéu bem escondidinho, segredo absoluto, só botaria na

hora de sairmos. E assim foi. Já estávamos prontos quando Carybé e

  Jorge disseram ao mesmo tempo: Esperem um pouquinho. Carybé

entrou no quarto dele, Jorge no nosso. Saíram ambos de chapéu-coco.

Haviam tido a mesma idéia. Lépidos e fagueiros, lá se foram os dois,

chapéu-coco na cabeça, dois distintos ingleses.

Estavam levando, com grande estardalhaço, num teatro de

Londres, uma peça musical, Oh! Calcutá. A peça escandalizava, pois,

coisa ainda não vista em teatro para o público em geral, os artistas

ficavam nus em cena. O musical combinava com o clima londrino onde,

pelas ruas, jovens cabeludos, os revolucionários hippies, enfrentavam

preconceitos, muitos deles até então filhinhos de papai, cantavam e

tocavam, cuia estendida para receber um cent, verdadeiros mendigos

felizes, realizados.

No programa de Paloma, entre as visitas a museus, passeios no

Hyde Park, estava a ida ao teatro para assistir Oh! Calcutá. Não era

apenas o escandaloso ou a curiosidade de ver os homens pelados que a

atraíam, mas, sobretudo, a sensação de pensar na cara de Balbina, de

Maria Sampaio e de outras amigas da Bahia, quando soubessem que

ela assistira à tal peça proibida no Brasil e lhes contasse, com todos

detalhes, o que vira. Nem iam acreditar.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Entre outras coisas, Paloma tinha curiosidade de ir ao Hyde

Park, onde qualquer um podia dizer o que bem quisesse, até falar mal

da rainha podia. Era só conseguir um caixote, subir nele e deitar verbo.

 Juntava logo gente em torno e, dependendo da eloqüência e da pose doorador, a assistência aumentava ou diminuía. Para nós que vínhamos

de um país onde a liberdade de fazer críticas era proibida, tal

espetáculo era uma novidade. Outra curiosidade do Hyde Park era o

homem tatuado. Montado num caixote, um homem forte, de torço nu

exposto, exibia suas tatuagens inclusive no rosto e na cabeça,

tatuagens azuis formando desenhos, frases e datas, não deixando

espaço nem para se ver a cor da pele, coisa horrível, não gostamos.

Os CELESTINO EM L ONDRES 

Chegavam da Bahia Antônio Celestino, Cândida, sua mulher,

pais de Mariinha, noiva de João Jorge, e Gininha, a filha mais velha.

Hospedaram-se numa pensão do bairro. Traziam notícias frescas de

todo mundo. Ficamos sabendo por eles que nossos filhos, jovens

apressados, haviam marcado data para o casamento que seria realizado

um mês depois ao de Paloma. Cândida ia comprar em Londres peças de

enxoval para a filha.

Cândida não esquecera a malandragem que Carybé lhe fizera,

antes de viajarmos para a Europa; ainda uma vez puxou-lhe as orelhas,

reclamou e ele mais uma vez se divertiu.

Baiana, afeita a gentilezas de boa vizinhança, pelo São João

Cândida preparara uma perfumada canjica de milho verde e leite de

coco para nos mandar de presente. Telefonou para casa, pediu a Jorge

que mandasse Aurélio apanhar a encomenda. Explicou que havia

colocado a canjica numa fôrma de porcelana em formato de carneirinho,

peça antiga, de estimação, devia ser devolvida.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Ao atender o telefone Jorge comentou com Carybé, que se

encontrava em casa, a gentileza de Cândida, iria se regalar na hora da

ceia. Carybé ouviu calado mas deve ter pensado: quem vai se regalar é

aqui o compadre. Despediu-se e foi diretamente para a casa deCelestino. Jorge me telefonou, disse a Cândida, me pediu que apanhasse 

aqui com você um prato de pamonhas. Como vou lá agora, posso levar.

Cândida riu: Jorge não entendeu, eu não falei em pamonhas, eu falei 

canjica e até expliquei que ele pedisse à Zélia para virar na travessa e ver 

como o carneirinho sai inteirinho. Explique isso a ele, Carybé. Pegando a

encomenda, que inclusive estava coberta com um belo e recomendado

guardanapo de linho a ser devolvido, disse; É, vai ver que Jorge se 

enganou porque gosta mais de pamonha do que de canjica. Atirou a

farpa e foi direto para a casa dele onde papou a canjica toda.

Logo depois, Aurélio chegou e Cândida deu-se conta, furiosa, de

que havia sido ludibriada, caído na trama de Carybé. Indignada,

telefonou para ele que, tranqüilamente, lhe disse: Dona Cândida, adorei 

sua canjica, não lembro de ter comido outra tão boa, só acho que a 

senhora deve, na próxima vez, procurar um carneiro maior...

O H !  C ALCUTÁ ! 

Com os Celestino, Olinto e Zora, fomos ao teatro assistir Oh.'

Calcutá.   Tão ou mais entusiasmada do que Paloma era Gininha, poisouvira sobre o musical, no Brasil, os mais contraditórios comentários:

dos mais elogiosos aos mais depreciativos: o mínimo que diziam era que

se tratava de uma afronta ao pudor, uma indecência encenada...

 Teatro lotado, as meninas sentaram-se longe de nós. Adoraram e

não se preocuparam em poupar comentários enquanto assistiam ao

espetáculo e parece que, segundo Paloma depois me contou, elogiaram

ou depreciaram a plástica e os complementos dos atores. Falavamsoltas, diziam coisas, satisfeitas de não serem entendidas pelos vizinhos

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

sem nem de longe desconfiarem que, sentado atrás delas, um cidadão

baiano divertia-se mais com os comentários das duas moças do que

com o que via em cena. Por coincidência, o cidadão era Walter Baraúna,

marido de Ninita, prima de Jorge. Ao acenderem as luzes, ele deu umabatidinha no ombro de Paloma: Gostou, Paloma? Onde estão teus pais? 

Educado, felizmente, não fez comentários.

O que aconteceu com Paloma e Gininha costuma acontecer com

muitos brasileiros que se soltam a dizer besteiras quando se vêem em

terras estrangeiras sem pensar que sempre há alguém nas imediações

que entende o português.

Lembrei de contar uma historinha, elucidativa, sobre o assunto

que venho de comentar e não há quem me segure:

Estávamos em Paris, a data não importa, com Auta Rosa e

Calasans Neto, hospedados no Hotel de EAbbaye, e devíamos ir ao

aeroporto esperar Antônio Celestino, que chegava do Brasil.

Em Paris, todo mundo sabe, os táxis não apanham mais do que

três passageiros, a conta do banco traseiro. Quando se deseja um táxi

para quatro pessoas é preciso especificar, pagar mais caro, pois esses

carros pagam seguro para quatro passageiros, em caso de acidente,

quando os outros pagam só para três.

Com Cala e Auta pedimos o táxi para quatro, o que significava

termos que esperar mais tempo pois são poucos os que fazem esse

serviço. O avião de Celestino devia chegar por volta das dez horas da

noite. Fizemos um cálculo, pediríamos o táxi para as sete horas,

chegaríamos ao Charles De Gaulle por volta das oito, teríamos tempo de

sobra para jantar no restaurante do aeroporto.

O táxi foi pedido e saímos para esperá-lo na porta. O tempo

passava e nada dele chegar. Jorge começava a ficar nervoso, não

contáramos com o engarrafamento àquela hora de fim de expediente.

Enquanto Cala se encostou na porta do hotel, Jorge foi para o meio da

rua e de lá gritou: Cadê esse táxi, seu Cala.. Ele não vem e eu já estou 

morrendo de fome... Olhando para a sua esquerda, Cala divisou dois

rapazes que se aproximavam trazendo na mão um queijo redondo e

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

várias baguetes de pão. De onde estava, Cala gritou: Ó Jorge, você não 

disse que está com fome? Pois dê uma porretada na cabeça desses dois 

caras, tire o queijo e o pão deles e coma. Os rapazes, dois brasileiros,

deram uma pequena parada e disseram: Pode dar a porretada mas é  perigoso! Pela primeira vez vi Cala desconcertado.

FIM DA ESTADA EM L ONDRES 

Nesse fim de estada em Londres tivemos ainda uma surpresa;vinda do Brasil, nossa amiga Heloísa Ramos, viúva do escritor

Graciliano Ramos, acabara de chegar e trazia novidades.

Heloísa pode almoçar conosco, disse Zora, convido alguns 

brasileiros que gostarão de vê-la e ter notícias frescas da terra e ainda 

matar a saudade de uma feijoada. Vamos fazer uma feijoada, Cândida?  

Zora era vegetariana, macrobiótica, preparava a sua gororoba  —  

como a denominavam, pilheriando, Jorge e Olinto  — e às hóspedes davaa liberdade de cozinhar os venenos em seu fogão e em suas panelas. Por

isso, Nair de Carvalho e eu já havíamos sido cozinheiras em Londres, no

apartamento dos Olinto, a preparar almoços festivos.

Chegara a vez de Cândida mostrar seus dotes culinários. Nós

estávamos de partida para Paris, Aríete nos esperava com o seu 4L para

seguirmos viagem para Lisboa.

Combinamos com Celestino e Cândida nos encontrar com elesem Póvoa do Lanhoso, ao norte de Portugal, na quinta de dona Virgínia,

mãe de Celestino, onde eles passariam o resto das férias. Lá então,

combinaríamos os detalhes do casamento de João e Mariinha.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

PORTUGAL NOVAMENTE 

 Tínhamos muito tempo pela frente. A data da saída do Cabo San

Vicente de Lisboa ainda estava distante. Poderíamos, com folga,

encontrar e curtir os amigos que não pudéramos ver na ida. Se

fizéssemos a conta, seria difícil dizer se tínhamos mais amigos em

Portugal ou no Brasil.

Queríamos muito estar com Fernando Namora e Zita, com Álvaro

Salema e Elisa, com Antônio Alçada Baptista, com Forjaz Trigueiros e

Helena, Fernando Assis Pacheco e Rosarinho, José Carlos Vasconcelos e

Maria José, Raul Solnado. Iríamos, sem falta, comer no restaurante

Amadora, no Parque Meyer, onde seríamos recebidos por Mimi, Gloria e

Amadora, três velhas amigas, três queridas. Restaurante de comida

caseira feita por Amadora para fregueses certos, em geral artistas dos

teatros do Parque. Alguns amigos nossos, por exemplo, Antônio Alçada

Baptista, era freguês assíduo do pitoresco restaurantezinho.

Faríamos programas com cada amigo, almoçaríamos e

  jantaríamos juntos, bateríamos grandes papos, saberíamos das

novidades da terra, contaríamos as nossas. Teríamos tempo de ir ao

Norte conversar com Celestim. Paloma teria a oportunidade de fazer

compras. Ela encontraria em Lisboa as mais belas porcelanas e toalhas

bordadas, para seu enxoval, as juntaria às compras de Copenhague,

que já haviam chegado. Estavam à nossa espera no Hotel Tivoli,

segundo informação de Vinagre, amigo nosso, funcionário do hotel.

Emília fora formidável, comprara e remetera tudo.

 JOSÉ FRANCO 

Com Francisco Lyon de Castro e Eunice e com Beatriz Costa,fomos ao Sobreiro, nas cercanias de Lisboa, visitar a cerâmica de José

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Franco. O ceramista reproduzira num grande terreno, à volta de sua

casa, toda uma aldeia saloia: do moinho de vento à roda-d'água, uma

singela capelinha, o armazém de secos e molhados, o ferra-cavalos, o

açougue, o correio, tudo em tamanho natural, e ainda fizera um grandepresépio onde as figuras se movimentavam. As esculturas de madonas,

santos e tipos populares, que José Franco esculpia, moldadas no barro

por suas mãos de artista, eram a maior perfeição, a maior delicadeza.

Nos encantaram também as grandes peças rústicas, e não resistimos,

compramos vários gaios, azul, verde, preto... que trouxemos para a

Bahia e até hoje enfeitam a nossa casa do Rio Vermelho. Tínhamos a

tranqüilidade de comprar o que bem quiséssemos, sem nos preocupar

com o peso. Embarcaríamos tudo no navio, em Lisboa, e

desembarcaríamos tudo no porto de Salvador, a bem dizer, na porta de

casa, sem problemas. Sabedora dessa facilidade, Beatriz Costa comprou

e nos ofereceu um serviço de jantar, de barro, completo. Nesses pratos e

nessas travessas eu costumo servir a nossa comida baiana, em grandes

ocasiões.

Voltamos sempre ao Sobreiro em nossas visitas a Portugal. No

entanto, o que nos atrai já não são tanto as cerâmicas como o encontro

com nosso amigo José Franco. Homem de bem, grande artista, grande

amigo. Na porta de nossa casa, na rua Alagoinhas, temos cravada na

parede uma pequena placa, dois pequenos azulejos com dois corações

pintados, dentro de cada coração, nossos nomes: Jorge e Zélia e José e

Helena. Dona Helena, mulher de José Franco, ela também com

sensibilidade artística, foi a autora da plaquinha, pintada pouco antes

de morrer.

O AMIGO NUNO 

Nessa tarde da visita a José Franco, encontramos lá Nuno Limade Carvalho, que com Clarinda, sua mulher, fazia compras. Sem

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

esperar que nos apresentassem, Nuno se aproximou, falou com Jorge,

era seu admirador.

  Jornalista, secretário-geral do núcleo Estoril Sol, homem de

ação, executivo de primeira, pessoa simpática, inteligente, em seguidanos tornamos amigos. Amizade que perdura até hoje, amizade sempre

presente, mesmo nas longas ausências.

Aqui venho novamente pedir licença para me adiantar no tempo.

Como o Cabo San Vicente ainda demora a zarpar de Lisboa, nos

levando e ao casal Francisco Lyon de Castro, para a Bahia, eu não

queria perder o fio da meada e contar as proezas de Nuno Lima de

Carvalho.

Interessado pela Bahia, por sua música, pela comida baiana,

pelos cantores, por seus artistas plásticos, sem nunca ter visitado

Salvador, Nuno tudo sabia, aprendera bastante lendo os livros de Jorge

Amado. De nosso encontro, de nossa convivência, nos dias que se

seguiram, Nuno projetou um intercâmbio cultural com a Bahia.

Começaria com a realização de uma semana da Bahia, no Casino

Estoril. Depois faria a semana do Estoril, na Bahia. Empreitada difícil,

cheia de tropeços burocráticos, mil e um problemas a enfrentar, porém,

obstinado, levou o projeto avante. Custaram-lhe dez anos de esforço até

realizá-lo.

Plano amadurecido, Nuno Lima de Carvalho estudou e entendeu

que havia chegado a hora de concretizar seu projeto. Com Antônio

Carlos Magalhães no governo do Estado, homem dinâmico e

empreendedor, tudo ficara mais fácil, teria o apoio necessário.

Apresentado por Jorge, ele entrou em contato com o prefeito de

Salvador, na ocasião Manuel Castro, procurou Paulo Gaudenzi, o

responsável e quem mais entendia de turismo e divulgação da cidade.

Estudada a importância desse projeto de intercâmbio cultural

entre Brasil e Portugal, o plano recebeu o beneplácito do proprietário e

diretor do Casino Estoril, Dr. Manuel Telles, que o apoiou permitindo a

sua realização no Casino, na sala de visitas do turismo português,

espaço privilegiado para a realização de grandes eventos culturais, para

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a apresentação da Semana da Bahia no Estoril. Com a colaboração do

embaixador do Brasil em Portugal, Dário Castro Alves, a festa foi

realizada em 1980.

Numa grande sala foi montada uma exposição bibliográfica edocumental de Jorge Amado, com muitas centenas de capas de

traduções do autor, além de valiosa documentação, a primeira

exposição desse material a ser mostrado fora do Brasil.

Pode-se visitar, nessa semana de arte da Bahia, uma exposição

de obras de Carybé, Carlos Bastos, Mário Cravo Júnior, Jenner

Augusto, Calasans Neto e Floriano Teixeira. Pode-se ver as obras e

conhecer os artistas, lá presentes.

Responsável pelo catálogo, trabalho de alto nível, James Amado

também lá estava, porém dessa vez sem Luiza. Ela não pudera viajar,

ficara com Fernanda, sua filha, que esperava o primeiro filho por

aqueles dias. Também naqueles dias nasceria o terceiro filho de João.

Os nascimentos de João Jorge Filho, o nosso neto Jonga, e de Fábio,

neto de Luiza e James, foram celebrados ao mesmo tempo que a

inauguração da Semana da Bahia no Estoril, com direito a enorme bolo,

decorado com dois bonequinhos e dizeres de boas-vindas aos nossos

netinhos.

Os portugueses poderiam, nessa semana de 11 a 19 de fevereiro,

no espaço principal do Casino, encontrar o que havia de mais

significativo na Bahia. Poderiam ver exposições de arte popular e de

artesanato. Poderiam saborear um bom vatapá, um caruru, xinxim de

galinha, de peixe e de camarão, preparados com material da Bahia,

dezenas de quilos de camarões secos, azeite-de-dendê, castanhas de

caju, transportados de avião, servidos por belas baianas, vestidas de

bata bordada, pano da Costa e torço na cabeça, se regalariam com os

acarajés e os abarás, feitos por mestras da cozinha baiana, cozinheiras

da Casa da Gamboa, sob a batuta de dona Conceição, que lá se

encontrava dirigindo a cozinha. No palco do grande restaurante

exibiam-se todas as noites grupos folclóricos da Bahia.

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Ainda no quadro da semana da Bahia, Jorge Amado foi honrado

com uma recepção no Forte S. Julião da Barra pelo presidente da

República, general Ramalho Eanes, que o condecorou com o grau de

Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada. O secretário de Estadodo Turismo atribuiu-lhe a Medalha do Mérito Turístico.

O incansável Nuno Lima de Carvalho, à frente de tudo,

começava a pôr de pé a campanha de promoção da Semana do Estoril

na Bahia a ser realizada daí a um ano.

Uma bela medalha de bronze, comemorativa do evento, com a

efígie de Jorge Amado, foi feita pela escultora Dorita Castelo Branco.

Compareceram à inauguração dessa festa, que transformou o

Casino Estoril numa Bahia alegre e colorida, o presidente da República,

Dr. Antônio Ramalho Eanes com dona Manuela, sua esposa. Não faltou

nenhum intelectual português, pintores e escritores lá estavam, e

artistas e intelectuais baianos os receberam como donos da casa.

Nessa noite, ao cumprimentar o presidente da República,

Calasans Neto, que, por merecimentos, conquistou o direito de

pilheriar, contar as mais picantes anedotas, sem que ninguém reclame

ou se ofenda, ao contrário, diverte a todo mundo, perguntou a Ramalho

Eanes: Sabe, Presidente, qual foi a coisa que os brasileiros mais 

gostaram do senhor em sua recente visita ao Brasil!  Homem

aparentemente sisudo, que não ria em público, não sabia o que os

brasileiros haviam mais gostado dele, ficou curioso: Não, não sei... Pois 

  foi do seu sorriso, Presidente. Sem poder conter-se, Antônio Ramalho

Eanes soltou uma boa risada. Riram juntos, e desde esse dia o

presidente e Calasans tornaram-se amigos.

Outra amizade ilustre que Cala fez nessa noite foi com o

primeiro-ministro, Mário Soares. Visitando a exposição de pintura Mário

Soares bateu um grande papo com Calasans, autor do quadro de que

gostara muito e convidou-o para, quando saíssem, levá-lo a dar um giro

por Lisboa, queria mostrar-lhe algo interessante.

Na hora de ir embora, o escritor Alçada Baptista passou pela

exposição de Cala para lhe oferecer uma carona: Vamos, Calasans!,

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dou-te boléia na minha carrinha..., ao que Calasans lhe respondeu: E eu 

lá vou querer boléia na carrinha de um simples escritor, quando tenho 

carona garantida no carro de um primeiro-ministro, o próximo presidente 

da República? Seria apenas um palpite de Cala ou ele entendia mesmoda política portuguesa?

NOTA T RISTE 

Nessa noite da inauguração da Semana da Bahia, com asautoridades portuguesas, a direção do Casino e os artistas brasileiros

esperávamos a chegada do presidente da República para dar início à

inauguração.

Dário Castro Alves, embaixador do Brasil que dera grande apoio

ao evento, não conseguia esconder sua tensão, rosto transtornado...

  Jorge quis saber o que estava ocorrendo e ele não pôde conter as

lágrimas. Sua mulher, a escritora Dinah Silveira de Queiroz, estavaagonizando, no Brasil, onde se encontrava em tratamento. Ele só

esperava que o presidente Eanes inaugurasse a exposição, para sair

direto para o aeroporto, não podia sair antes, não podia quebrar o

protocolo diplomático.

Assim que o presidente chegou, Jorge chamou dona Manuela de

lado, explicou-lhe o drama do embaixador. Dona Manuela não teve

dúvidas, discretamente falou em particular ao marido, e foi assim que opresidente Eanes inaugurou em seguida a Semana da Bahia no Estoril.

Dário conseguiu tomar o avião e chegar ao Brasil a tempo de

assistir aos funerais de sua amada Dinah.

ALDEIA SUBMERSA 

Acompanhados pelo engenheiro-agrônomo João Vasconcelos,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

primo de Celestino, visitamos uma aldeia ao lado da Serra do Jerez, nos

seus últimos dias de vida. As comportas da barragem que acabavam de

construir iam ser abertas, a aldeia e quilômetros de campo ao seu redor

iam ficar submersos.Descemos com dificuldade o terreno íngreme até chegarmos à

aldeia, onde caminhões estavam sendo carregados com os últimos

pertences da população.

Aldeia mais linda, mais pitoresca, me emocionou. As casas, na

sua maioria, eram feitas de blocos de pedras, com vasos de delicadas

flores nos parapeitos das janelas. Por toda a parte, o terreno fora

aproveitado, lá estava o vinhedo, as parreiras baixas carregadas de

cachos de uvas mal despontadas que estavam sendo devoradas, com

avidez, por cabras, bodes e carneiros, diante da indiferença dos

camponeses. Deixa que comam, coitadinhos, ao menos que eles as 

aproveitem, dizia a velhinha,  já não as colheremos... 

Com um nó na garganta diante da tristeza daquelas criaturas

que se despediam de toda uma vida, eu fotografava. Olhe esse, não 

 perca..., apontava-me o engenheiro-agrônomo a porta da igrejinha. Dela

saía um homem equilibrando um caixão mortuário na cabeça, o único

da comunidade, o que servia para velórios e o acompanhamento do

funeral até a cova, quando então o cadáver era envolvido num lençol

para ser enterrado e o ataúde devolvido para o próximo ocupante. O

caixão foi colocado no caminhão ao lado de colchões, cadeiras, mesas,

tachos e mil tralhas. Até um cachorro foi embarcado nessa viagem.

Nosso entusiasmo ao chegarmos se fora, dera lugar à

melancolia, assistíamos aos últimos momentos, à agonia de um

povoado. Coração apertado, nos despedimos dessa gente da aldeia do

 Jerez, seus últimos habitantes.

PÓVOA DO LANHOSO

Nosso plano de passar alguns dias na quinta de Celestino não

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deu certo, ficamos com eles apenas um dia e uma noite. Viagem muito

longa, de Lisboa ao norte, a gente parando em Póvoa do Varzim,

querendo visitar uma das maiores joalherias de Portugal, cujo

proprietário era casado com uma baiana, Fernanda São Paulo. Comopassar por Braga, cidade encantadora, sem parar?

Os acertos com Cândida e Celestino para o casamento de nossos

filhos não foram fáceis. Havia um problema muito sério para os pais da

noiva, a ser resolvido, problema que para nós, os pais do noivo, não

existia.

Católicos praticantes, o casal Celestino não podia admitir um

casamento que não fosse na Igreja, a noiva de véu e grinalda.

Consultado sobre a realização da cerimônia na Igreja de Santa

 Tereza, no Museu de Arte Sacra do qual era diretor, Dom Clemente da

Silva Nigra se negara a oficiar a cerimônia, como não permitiria, sequer,

o casamento de um herege em sua igreja. João não queria batizar-se,

era irredutível em seus princípios.

Para nós isso não era um problema, pois tanto Jorge como eu

éramos de opinião que o casamento só no civil era suficiente e até sem

civil bastava. Tínhamos o nosso exemplo: apenas o amor nos ligava há

tantos anos. Não podíamos nos casar oficialmente, pois Jorge e eu

éramos desquitados e ainda não existia a lei do divórcio.

Por falar nesse assunto tão delicado de casamento e amigação,

eu me permitiria contar aqui um sucedido, mostrar que nem tudo o que

brilha é ouro. Quem pensa, e há muita gente que assim julga, que na

Bahia Jorge Amado manda e desmanda, tem todas as facilidades e

regalias, se engana.

Ao completarmos vinte e cinco anos de vida em comum, Jorge

achou que devíamos oficializar meu nome. Eu usava ilegalmente o

sobrenome Amado. Para quem viajava e necessitava apresentar

passaporte, às vezes era desagradável ter que dar explicações: Afinal de 

contas a senhora é Amado ou Gattai!  Encomendas postais,

recomendadas à Zélia Amado, eu não podia retirar.

Não custa nada oficializar teu nome de vez, disse Jorge, vamos 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

resolver isso em três tempos.   Tínhamos tanto o exemplo de Mindinha

Villa Lobos, que adotara oficialmente o nome do Maestro com quem

vivia há muitos anos, como também o de Nair de Carvalho que adotara,

oficialmente, o nome de Genaro.  Tibúrcio foi convocado para tratar do assunto. Vai ser fácil,

disse, principalmente já havendo precedentes. Nenhum juiz vai ter medo 

de ser o primeiro. Se foi por medo ou por qual motivo foi, não sei. A

resposta à petição foi um não redondo, o juiz, cujo nome fiz questão de

esquecer, borrar de minha mente, negou o pedido de Jorge. Soubemos

por Tibúrcio, que nos contou morto de encabulado, que houve rebuliço

no Tribunal por causa dessa negativa e até gestões foram feitas junto ao juiz, mas ele, irredutível, confirmou a sentença: Não pode e tenho dito. 

Quem resolveu o assunto foi o senador Nelson Carneiro, que,

através de seu escritório em São Paulo, encaminhou novo pedido. Numa

semana tudo foi resolvido. Viajei para São Paulo apenas para assinar os

papéis necessários. Estava autorizada a usar oficialmente o nome Zélia

Gattai Amado.

Com a promulgação da lei do divórcio, lei proposta e batalhada

por Nelson Carneiro, Jorge e eu, após trinta e dois anos do concubinato,

nos casamos oficialmente, o que nada mudou em nossa vida, a não ser

nos permitir legalizar nossos filhos que deixaram de ser filhos ilegítimos

para serem filhos legítimos.

Ao escrever Anarquistas, graças a Deus, assinei o livro com o

nome herdado de meu pai. Não queria, de forma alguma, aproveitar a

promoção de um nome famoso, não queria vender livros na rabeira de

 Jorge Amado. Se o que escrevi agradar aos leitores, pensei, que seja esse 

o único motivo para um eventual sucesso. Hoje sou conhecida como Zélia

Gattai, não desprezo o nome que ganhei pelo casamento, ao contrário, é

um nome que muito me honra e o uso sempre que preciso.

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Dois PADRES, DUAS CABEÇAS 

A seu ver, Cândida não nos pedia muito, queria apenas que, ao

voltarmos para a Bahia, convencêssemos João a se batizar. Na sua

ingenuidade ela nem desconfiava estar pedindo a coisa mais impossível.

Criamos nossos filhos na maior liberdade religiosa, eles

seguiriam o que suas cabeças e seus corações mandassem, estaríamos

sempre ao lado deles sem interferir. Pelo visto, João e Paloma ainda não

haviam abraçado nenhuma religião e não seria o pai nem a mãe que

iriam violar seus princípios de liberdade, forçando-os a fazer

concessões. João, aliás, fizera uma concessão, casaria na Igreja Católica

para não desgostar a noiva e seus pais. Porém, de jeito nenhum se

batizaria nem confessaria.

O impasse criado, Jorge deu uma sugestão: Por que não 

  procuram outro padre? Certamente encontrarão um mais liberal. Por

exemplo, Paloma ia casar-se na Igreja Católica, Dom Timóteo Amoroso

Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento, de Salvador, convidado

pelos meninos para celebrar a cerimônia, sugerira realizar um

casamento ecumênico, de um católico com uma não-católica. Mas era

difícil encontrar outro padre tão aberto, tão inteligente quanto Dom

Abade.

CASAMENTO ECUMÊNICO 

Cerimônia marcada para as onze horas da manhã, no Mosteiro

de São Bento, no Rio de Janeiro, às dez horas, em nosso apartamento

da Rodolfo Dantas, todo de branco, terno impecável, Jorge dava pressa

à filha que se vestia. Vestido simples de seda tailandesa, presente de

uma das madrinhas, Beatriz Costa, confecção de Diná, prima de Jorge.

Paloma não quisera véu nem grinalda, apenas um arranjo na cabeça,

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

desenhado pelo noivo.

Às onze em ponto Jorge ajudava a filha a saltar do carro, na

porta da igreja. Desta vez ele não conseguira chegar adiantado, desistira

de apressar a filha ao ver que a menina chorava nervosa. Osconvidados, em sua maioria, acostumados aos atrasos das noivas,

ainda não haviam chegado, pouca gente estava na igreja. A menina Ana

 Tornaghi, filha de Maria e sobrinha de Pedro, que levaria as alianças, só

chegou no fim da cerimônia. Pedro fazia hora conversando com Dom

Abade na sacristia, quando foi chamado às pressas, assim mesmo, ao

chegar ao altar a noiva lá se encontrava à sua espera.

Elegante, num vestido novo, comovida com o casamento da neta,

lá estava Lalu. Eu usava um vestido verde e chapéu de palha, trazidos

de Paris, onde comprara na companhia de Blanca Astúrias, que morava

lá e, muito expedita, sabia tudo de modas e onde encontrar o melhor e

mais barato.

Dom Abade, com sua batina branca, iniciou o ato: Realizo aqui a 

cerimônia ecumênica do casamento de um católico com uma não-católica.

Ao meu lado Lalu não gostou, cutucou meu braço. Dom Timóteo

continuou escandalizando Lalu, a cada vez que mandava Pedro

ajoelhar-se e Paloma ficar de pé ou Pedro rezar e Paloma permanecer

calada.

Em casa, ao ser indagada se gostara do casamento, Lalu

desabafou: Se gostei? Estou indignada com esse padre, disse, havia 

necessidade dele atirar na cara da menina, na frente de todo mundo, que 

ela não é católica? Mandou a pobrezinha ficar de pé, mandou que não 

rezasse pra que as pessoas pensassem que ela não sabe rezar... Eu 

estava vendo a hora dele meter a mão na cara de minha neta... Nem sei 

como tu mais Jorge tiveram paciência de assistir tudo isso, calados... 

Não entendendo nada sobre essa modernidade de casamentos

ecumênicos, Lalu fora sincera ao desabafar e não se convenceu nem

mesmo depois de ouvir a explicação do filho sobre a significação do

progresso da Igreja Católica, permitindo, democraticamente, que tal

cerimônia se realizasse. Jorge tratou de desfazer a má impressão da

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

mãe sobre Dom Timóteo... Achávamos que Lalu entendera tudo mas ela

ainda tinha uma ressalva: Está tudo muito bem, disse, no meu tempo 

não tinha dessas coisas, só não achei certo o padre dizer na frente de 

tanta gente que a menina não é católica. Roupa suja a gente lava em casa, não é, meu filho?  

Deixamos Paloma no Rio, ela ia morar no andar superior de

nosso apartamento, na Rodolfo Dantas.

A OUTRA AVÓ 

Fico pensando o que teria dito minha mãe se tivesse assistido ao

casamento da neta. Liberal, anarquista anticlerical, ela era, no entanto,

preconceituosa, tinha medo da língua do povo e, certamente, pelos

mesmos motivos de Lalu, não teria gostado da novidade ecumênica. Não 

se deve fiar nos herdeiros da Santa Inquisição; os anos passam mas o 

ranço fica. Ouvi mais de uma vez dona Angelina repetir essa frase.Mamãe nos deixara havia dois anos. O telegrama anunciando a

sua morte, enviado por meu cunhado, José Soares, marido de Wanda,

era lacônico: Dona Angelina faleceu, repentinamente, esta noite. O

enterro será às cinco horas.

Repentinamente, eu ficara sem mãe. Me atirei na cama, o corpo

morto, chorei, chorei, sem mesmo poder ouvir as palavras de consolo de

 Jorge e de meus filhos.  Jorge trabalhava no momento num livro, escrevia Tenda dos 

Milagres, não podia me acompanhar aos funerais de minha mãe.

Consegui um vôo para São Paulo e sozinha parti. Cheguei ao cemitério

do Araçá, onde o corpo estava sendo velado, a tempo de beijar a testa

gelada de mamãe e de colocar-lhe nas mãos uma rosa vermelha.

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CASAMENTO DE JOÃO 

Voltamos logo do Rio, o casamento de João estava marcado para

daí a um mês e eu não tivera tempo de providenciar nada.O impasse continuava: Dom Clemente fincara o pé, não

celebraria o casamento de um herege, filho de um ateu. Botara Jorge na

berlinda ao negar também a Igreja de Santa Tereza.

O Museu de Arte Sacra, ao qual pertencia a Igreja de Santa

  Tereza, era administrado pela Universidade Federal da Bahia. Bastou

uma palavra do reitor, Roberto Santos, para que suas portas fossem

franqueadas e bastou uma autorização do cardeal-arcebispo, DomAvelar Brandão Vilela, para que o casamento ecumênico se realizasse

sem necessidade de batismo.

Finalmente, foi escolhido o padre ideal, pessoa ótima, liberal,

estimado na Bahia, Dom Jerônimo de Sá Cavalcante, de família

cearense. Ele, inclusive, fora citado por Jorge, como personagem, num

romance.

Dom Jerônimo deu início à cerimônia, presentes o reitor e donaMaria Amélia, sua esposa, o governador do estado, Luiz Viana Filho com

dona Juju. Às tantas, Dom Jerônimo fez uma pausa e, dirigindo-se ao

noivo, disse: João, no romance Dona Flor e seus dois maridos seu pai 

deu-me a honra de fazer-me personagem. Na página 231 ele diz: "onde o 

celebrante, Dom Jerônimo, sapecou sermão dos mais eloqüentes". Eu 

queria dizer aqui, hoje, na presença de Jorge Amado, que não costumo 

sapecar sermões, costumo proferir palavras de amor... e é o que vou fazer agora ao celebrar um casamento ecumênico de uma católica com um não- 

católico. 

A gargalhada foi geral, Dom Jerônimo acabara de lavar a alma,

livrara-se daquele incômodo sapecou, que havia anos estava entalado

em sua garganta.

Felizmente, segundo a praxe, os pais da noiva ocuparam-se dos

detalhes do casamento, inclusive os da recepção. A nós coube ceder umpedaço de nosso terreno e construir uma casa para os jovens morarem.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Seríamos vizinhos, dividiríamos o mesmo jardim.

CASA VAZIA 

Nossa casa tão grande, tão movimentada com nossos filhos e

seus amigos trazendo música e entusiasmo para dentro das portas, de

repente, no espaço de um mês, ficou vazia, silenciosa. Bom motivo para

fugirmos daquela tristeza, foi Jorge aceitar o convite para um período de

três meses, como autor residente de uma universidade da Pensilvânia, aPen State University, em State College. Sairíamos um pouco da

condição de pais órfãos de filhos.

O programa que a universidade propunha era interessante.

  Jorge se reuniria uma vez por semana com alunos que estudavam

literatura brasileira nos livros de Jorge Amado. Nas reuniões semanais

entre o autor e seus leitores, haveria debates e questões apresentadas

pelos alunos, curiosidades respondidas pelo escritor. Uma intérpretefaria a tradução nesses encontros e nas palestras que ele deveria

realizar.

  Jorge respondeu a Stanley Wentraub, conhecido escritor e

diretor da universidade, aceitando o convite. Seria uma boa experiência

o contato direto com alunos e leitores, conheceríamos de perto o dia-a-

dia da vida americana, aprenderíamos bastante. Eu voltaria aos

trabalhos de dona de casa, pois teríamos um apartamento mas nãouma empregada. Ser dona de casa, arrumar e limpar, cuidar da roupa

lavada e ir para a cozinha não me assustava.

Deveríamos estar em State College em agosto, tínhamos muito

tempo pela frente, podendo nos dar ao luxo de ir de navio até Los

Angeles, onde passaríamos uns dias com Cyva e Aloysio de Oliveira que,

ao saberem de nossa viagem, nos haviam convidado a passar uns dias

na casa deles. Depois, a conselho de Alfredo Machado, doutor emroteiros americanos, tomaríamos um confortável ônibus indo até Las

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Vegas.

B RASIL M ARU  

Deixamos Lalu com Fanny e Joelson, em São Paulo. Ao lado do

filho médico ela se sentiria confortada.

  Tomamos em Santos o Brasil Maru  que nos levaria até Los

Angeles. Navio japonês, pequeno, simpático, ele tinha apenas três

cabines de primeira classe, duas das quais já se encontravam ocupadas

por passageiros embarcados na Argentina. No convés inferior havia uma

pequena piscina e, mais abaixo, uma segunda classe que ia lotada de

  japoneses de volta à sua terra, depois de muitos anos no Brasil.

Famílias inteiras com filhos nascidos em São Paulo, haviam, como nós,

embarcado em Santos.

Naquela tarde fria, tarde triste de garoa, o navio zarpou

lentamente, iria costeando as cidades do Norte.

Passávamos ao largo, em frente a Salvador, vendo ao longe as

luzinhas da cidade, quando ouvimos pelo rádio de um vizinho o

noticiário da Bahia. Teríamos entendido bem? Prestamos atenção, o

locutor falava da morte de Genaro de Carvalho, vítima de um

aneurisma. Genaro morrera no dia do meu aniversário. Passamos um

telegrama para Nair, falando de nossa imensa tristeza. Nada mais

podíamos fazer.

As distrações no navio eram poucas: concurso de arranjos

florais, roleta com pequenos brindes para os ganhadores, cerimônia do

chá, à tarde... Não tínhamos com quem bater grandes papos, as

conversas de nossos companheiros argentinos eram diferentes das

nossas. Um dos casais levava uma filmadora e marido e mulher faziam

planos de filmagens para um documentário, aproveitando em Los

Angeles em excursões de ônibus, já programadas, uma ao Grand

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Canyon, onde pretendiam esbaldar-se. Não esqueço a cena: diante de

um espelho, o camera man, em atitude de quem está filmando,

ensaiava, dizendo com voz pausada, um texto decorado: Estamos 

delante del grande canon, muy grande... muy grande... Mais interessante do que as conversas com os companheiros da

primeira classe era o convívio com os pequenos nisseis lá de baixo, uns

azougues, vivos como eles só. Jorge os convidava todos os dias para um

piquenique, comprava na cantina Coca-Cola, sanduíches, bolos, balas...

Reunia-se com os meninos lá embaixo, pois eles eram proibidos de

subir à piscina e à primeira classe. Todos eles tinham um nome japonês

e um brasileiro. Gilberto, o mais esperto, o mais sabido, em voz baixa,

tom confidencial, perguntou-me certa manhã, após um gole de Coca-

Cola e um arroto: O marido da senhora é prefeito? não é? então como ele 

compra tanta coisa pra gente?... Esse mesmo garoto um dia, levado por

mim ao nosso camarote, se encantou ao ver que até tapetes havia no

chão. Depois pegou de cima da mesinha um jornal de Santos que

compráramos ao embarcar e, ao ver o retrato de Jorge estampado nele,

se admirou. Soletrando a legenda embaixo, descobriu o nome do

generoso promotor de piqueniques e não se conteve, bateu a mão na

testa: Jorge Amado! Pooorrra!  

A freguesia para os piqueniques aumentava cada vez mais.

 Jorge, com suas compras, cada vez maiores, ia esgotando os estoques

da cantina. Os meninos traziam a mãe, o pai, o tio, as irmãs mocinhas

que animavam o convescote com músicas de Roberto Carlos cujos

discos eram tocados numa eletrolinha. Era uma graça vê-las revirando

os olhos ao ouvir a voz de seu ídolo. Essas nunca vão se conformar de 

viver longe do Brasil, profetizava Jorge.

Los ANGELES 

Depois da repousante viagem no Brasil Maru, chegamos a Los

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Angeles onde Cyva, Aloysio e um grupo de brasileiros nos esperavam.

Numa casa pré-fabricada da longa avenida de graciosas

residências, as casas exatamente iguais, rodeadas de grama e jardins

floridos, viviam Aloysio de Oliveira e Cyva Leite, fundadora do célebreQuarteto em Cy. Voz suave, afinada como um sabiá, toda delicadeza,

Cyva ali na cozinha, de dona de casa, limpava um peixe enorme que ela

mesma prepararia para nós. Perguntou-me se tínhamos roupa para

lavar: Hoje é dia da lavadeira vir... Aloysio ouviu a conversa e

desmascarou-a em seguida: Não vá na conversa dela, Zélia, aqui não é 

Brasil, não existe essa de dia de lavadeira vir... Temos máquina de lavar 

mas é Cyva quem se ocupa disso e, se você duvidar, ela é muito mulher 

de ir para o tanque e lavar a roupa de vocês, ela mesma. Vi logo que,

com a disposição de nossa amiga, não poderíamos encompridar a

estada em sua casa.

Com Cyva e Aloysio fomos à Disneylândia e passamos uma tarde

inteira nos estúdios da Universal assistindo a filmagens simuladas,

tudo novidade para nós.

Chegara a hora de partir, nossos anfitriões tinham

compromissos de trabalho, Cyva fazia dublagem em filmes da Walt

Disney e Aloysio era conselheiro musical. Já déramos muito trabalho à

nossa amiga, a nos cercar de atenções. Além do mais, tínhamos pela

frente um bom pedaço de caminho a percorrer.

Os carros do casal eram enormes, aliás, eram tão grandes

quanto os que todo mundo usava em Los Angeles, no diário. Pelas ruas

da cidade a novidade era ver-se um carro pequeno. Estranhamos, desde

o primeiro dia, um carrão estacionado no jardim, encostado à casa de

nossos hospedeiros. É do Edu Lobo, explicou Aloysio, está aí guardado 

até que um dia ele volte do Brasil. Se vocês quiserem ir a Las Vegas nele,

está às ordens, Edu não vai se incomodar, ao contrário, vai até gostar.

Agradeci, preferíamos ir de ônibus mesmo.

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L AS VEGAS 

Las Vegas era o que esperávamos ver e muito mais. O táxi que

nos pegou no ponto final do ônibus nos levou ao hotel indicado por

Alfredo Machado, reserva feita também por ele.

O chofer nos deixou diante de um prédio onde havia uma porta

fechada. Largou nossa bagagem na calçada, recebeu e partiu sem

querer muita conversa. Esse homem nos deixou em lugar errado, disse

  Jorge. Isto não tem cara de hotel. Fique aí com as malas, vou até a 

esquina, talvez a entrada seja do outro lado... Não era. Fique você agora 

com as malas aí que eu vou empurrar aquela porta e ver se alguém pode 

nos informar, disse eu.

Logo atrás da discreta porta, divisei um verdadeiro mar de

maquininhas, caça-níqueis com pessoas em torno, puxando manivelas

para a frente e para trás, os níqueis caindo nas cuias, fazendo barulho.

Na porta não havia uma única pessoa para dar informações. Não foi

preciso. Descobri, logo adiante, num cantinho, a portaria do hotel.

Apenas um balcão que não ocupava grande espaço. Nossa reserva lá

estava. Um hotel quatro estrelas, luxuoso, e não tinha, no entanto, uma

portaria decente. Nos deram, como oferta da casa, alguns vales para

 jogar. Nessa eles não me pegam, disse Jorge que tanto adora um

  joguinho de pôquer com amigos quanto detesta jogos de azar. Jamais

 joga em cassinos.

Até chegarmos ao nosso quarto fomos esbarrando com jogos de

todos os tipos e tamanhos. Descobrimos, em seguida, que no hotel não

havia um único relógio. Ninguém devia se dar conta da hora, estavam

ali para jogar, sem se preocupar com horários, sem parar. Passamos

dois dias em Las Vegas, tempo suficiente para ver tudo, inclusive para

assistirmos ao espetacular show que o cassino oferecia na hora do

 jantar.

Em Las Vegas tomamos uma excursão, o ônibus nos levaria ao

Grand Canyon e à Floresta Petrificada.

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GRAND CANYON E FLORESTA PETRIFICADA 

Para o Grand Canyon, eu nunca encontrarei um adjetivo que lhefaça justiça: grandioso? monumental? A enciclopédia, à qual pedi ajuda,

diz tratar-se das gargantas do Colorado no Arizona, sem outros

comentários.

Pensávamos tê-los perdido de vista, mas lá estavam eles os

argentinos companheiros de viagem, filmando, ele de operador, ela de

assistente. A distância dava para notar que ele filmava e falava ao

mesmo tempo. Estaria repetindo o que decorara no navio ou, diantedaquela grandeza, teria mudado o texto?

Se o Grand Canyon nos causou um grande impacto, o mesmo

não aconteceu com a Floresta Petrificada. Era a segunda que

visitávamos, uma bem diferente da outra. A primeira fora em Kuo-Ming,

no sudoeste da China, em viagem com Pablo Neruda e Matilde. Viagem

começada em Sri Lanka  — na época, Ceilão  — depois de um congresso

de escritores. De lá seguimos para a índia, depois fomos à Birmânia e,finalmente, à China, viagem e peripécias já narradas em livros

anteriores.

Na Floresta Petrificada do Colorado os enormes troncos de

pedras que um dia, há milhares de anos, haviam sido árvores, estavam

tombados, caídos no chão, enquanto as árvores petrificadas de Kuo-

Ming conservavam-se de pé, verdadeira floresta de troncos e galhos de

pedra, espetáculo único. A caminho de Nova York passaríamos pelascataratas do Niágara.

Estávamos ansiosos para chegar a Nova York onde, certamente,

encontraríamos cartas de nossos filhos, notícias da Bahia. Mirabeau

ficara de escrever sempre. Jorge dera a todos o endereço da Editora

Knopf, que publicava seus livros, para o envio das cartas ou para

qualquer emergência.

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NOVA YORK 

A nossa espera, em Nova York, estava nosso amigo e editor de

 Jorge, Alfred Knopf. No hotel, reservado por ele, encontramos uma cesta

de frutas, frutas de toda qualidade, formando uma pirâmide altíssima

com um gentil cartão de Helen e Alfred.

Ao lado da corbeille, estava o que mais ansiávamos: várias

cartas do Brasil e ainda um cassete. Na fita gravada, João mandava

notícias, fora de casa em casa, gravando mensagens de nossos amigos.

Agora, deleitados, ouvíamos João contando as novidades da

casa, falando com orgulho da gravidez de Mariinha, que nos

preparássemos para estrear de avós. Norma, Mirabeau e Carybé

contavam as novidades da terra. Havia carta de Paloma, falando de sua

vida nova, de seus estudos. A carta de Joelson dava notícias de Lalu.

Havia ainda uma cartinha de Zuca: Graças a Deus, o jardim vai bem,

não tem chovido muito, nem feito muito sol... 

ALFRED KNOPP

Alfred Knopf editara nos Estados Unidos, pela primeira vez, em

1945, um livro de Jorge Amado: The Violent Land tradução de Terras do 

sem fim. De editor ele se tornara nosso amigo.

Knopf estivera no Brasil havia pouco tempo e com ele fizemos

uma viagem de automóvel à cachoeira de Paulo Afonso, Norma, Caymmi

e Paloma, alegrando a longa viagem.

Foi em Pedra, cujo nome hoje é Delmiro Gouveia, que Antônio

Carlos Menezes, dono de uma fábrica têxtil, nos hospedou. Essa

fábrica, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso, estava instalada onde

outrora fora a famosa e moderna, para sua época, fábrica de linhas de

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Delmiro Gouveia, destruída por concorrentes estrangeiros, que atiraram

as máquinas na cachoeira. Fato histórico.

Noto que me distanciei da viagem a State College sem ao menos

pedir licença. Mas, já que me deslanchei nesse longo parêntese, medesculpo agora e vou até o fim que, aliás, não está muito longe. Talvez.

Numa espécie de gaiola, sustentada por um grosso cabo de aço,

atravessamos a cachoeira, barulho ensurdecedor, espetáculo fantástico.

No jantar ao ar livre, no jardim da fábrica, assistimos a danças

populares regionais, inclusive uma de autoflagelação: homens sem

camisa, munidos de ramos de urtiga, fazendo uma roda, cantando,

dançando e se autoflagelando, batendo com violência os ramos da erva-

de-fogo no peito e nas costas, os vergões vermelhos rompendo a pele...

Espetáculo que recebia aplausos dos curiosos que assistiam de pé, mas

que a nenhum de nós agradou.

My God!, dizia Alfred Knopf, horrorizado, ao terminar o macabro

espetáculo, quando um cidadão que nos rondava desde a nossa

chegada aproximou-se, abaixou-se e lhe disse:

 —  Fodelequê? Fodelequê?

 —  O que ele está dizendo?  — quis saber Knopf.

 Jorge também não entendera, perguntou à mulher do gerente da

fábrica que riu meio encabulada:

 —  Ele está oferecendo mulher e, para que as esposas presentes

não entendam o que diz, ele muda um pouco a palavra... não é a

primeira vez que faz isso. É um cretino  —  concluiu  — , está pensando

que nós somos burras.

Quem gostou da história foi Caymmi: Que moleque mais 

descarado!, riu a viagem toda recordando a astúcia do pilantra. Até hoje

ele não esquece e ri novamente ao lembrar o malandro de Paulo Afonso.

A mesma moça, a mulher do gerente da fábrica, nos falou de um

hábito da terra: na véspera de seu casamento, a noiva é banhada pelas

amigas com óleos perfumados. Ela mesma participara do banho de

Socorro, uma operária da fábrica:

No bacião, pelada, Socorro, ia recebendo a água perfumada e os

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óleos que as amigas lhe passavam, respondendo, deleitada, às suas

piadas maliciosas:

 — E hoje, hein, Socorro...

 — 

Cala a boca, mulher! —  Socorro, tu tá nervosa?

 —  Cala a boca, mulher!

 —  Socorro, tu tá com medo?

 —  Cala a boca, mulher!

 —  Socorro, tu vai gritar?

 —  Cala a boca, mulher!

 —  E se tu não gostar, Socorro?

 —  Cala a boca, mulher!

Segundo a simpática senhora que nos contou essa e outras

historinhas da terra, o banho das noivas dura horas e enquanto houver

perguntas ele não termina.

Nosso último passeio por Paulo Afonso foi a Piranhas, nas

margens do São Francisco, quando fizemos um belo passeio de barco.

Eu sabia, de ouvir Dadá contar, que fora em Piranhas que haviam

matado o seu amado Corisco.

O prefeito de Piranhas nos ofereceu um almoço e foi nesse

almoço que eu cometi a grande gafe: na maior das inocências perguntei

ao anfitrião, a meu lado na mesa, se o assassino de Corisco fora preso,

se ainda era vivo. Houve um silêncio de gelo, e não precisei que me

explicassem nada. Metera a pata: o tal prefeito outro não era senão o

mandante ou o próprio que matara Corisco, nunca fora esclarecido. Em

Piranhas o assunto era tabu, ninguém comentava.

De Salvador, Knopf seguiria para o Rio de Janeiro onde se

encontraria com Helen, que devia chegar do Oregon, sua terra, para

casar-se com ele. Ambos idosos, ambos viúvos, ela autora de livros, ele

seu editor, haviam tido um romance no passado. Tendo se

reencontrado, depois de muitos anos, o amor renascera, marcaram

encontro no Rio para o casamento. Alfredo Machado se encarregara dos

papéis, de tudo. A cerimônia seria celebrada na casa do advogado José

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Nabuco, grande amigo de Knopf.

Minha admiração por esse cidadão, apaixonado aos setenta e

tantos anos, aumentou ao saber que ele não iria esperar Helen à sua

chegada no aeroporto, às primeiras horas da manhã. Quero deixar Helen à vontade, não vou constrangê-la com a minha presença... Depois 

de uma viagem longa, de uma noite maldormida, na sua idade,

certamente chegará muito cansada.. Só vou me encontrar com ela depois 

que descansar, de banho tomado, toalete feita, maquiada. Pedi a Alfredo 

Machado, ele irá recebê-la. Tanta delicadeza me impressionou.

Maravilhado com tudo o que vira na longa viagem, Knopf disse

sua última palavra: Quem tem uma cachoeira como a de Paulo Afonso 

não pode invejar as cataratas do Niágara. Foi exatamente o que

pensamos, Jorge e eu, tempos depois, a caminho de Nova York, no

encontro com as famosas cataratas do Niágara, tão lindas, tão

arrumadinhas, tão bem-cuidadas... Nem se comparam com as nossas 

cachoeiras, dissemos, a de Paulo Afonso, poderosa com sua voz de 

trovão e as selvagens e grandiosa Sete Quedas do Iguaçu, únicas,

nenhuma outra pode nos causar inveja.

L AÍS E WALTER 

Além de Alfred Knopf, tínhamos encontro marcado em Nova York

com uma amiga, Laís Saldanha. Casada com o americano WalterPalmer, Laís deixara o Rio, onde tinha uma butique de luxo, fora morar

na Pensilvânia. Íamos ser quase vizinhos por três meses, motivo de

 júbilo para nós e para eles. A cidadezinha onde Laís e Walter moravam

ficava entre Washinghton e State College, nos separaria apenas uma

montanha.

A gentileza de Laís e Walter nos comovia. Em dois automóveis

eles foram a Nova York especialmente para nos oferecer um dos carrosque usaríamos enquanto estivéssemos nos Estados Unidos.

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Saí, pois, de Nova York dirigindo um Chevrolet enorme, sem

tamanho. Eu nunca pegara um carrão daqueles. Morta de medo, diante

do sofisticado painel em minha frente com mil botões e mil luzinhas,

sem conhecer as estradas americanas, dei a partida e me toquei. Seja lá o que Deus quiser. Felizmente Laís e Walter nos acompanharam no seu

carro e, comboiados na longa viagem com montanhas e curvas

fechadas, chegamos à State College sãos e salvos.

S TATE COLLEGE 

A cidade universitária, pequena e simpática, nos agradou em

seguida. Professores e alguns brasileiros aguardavam a nossa chegada,

destacando-se entre eles Gerard Moser, entusiasta da literatura

brasileira, ele mesmo falando perfeitamente o português.

Nosso apartamento era situado num edifício igual a todos os

daquele correr de prédios. Apartamento de dois quartos, uma sala ecozinha, era absolutamente idêntico, inclusive na decoração, a todos os

apartamentos do prédio. Disso tivemos uma experiência divertida.

  Todos os dias, à mesma hora, da janela aguardávamos a

chegada do carteiro. Ele descia de um carro, entrava no prédio,

separava a correspondência e a depositava cada uma a seu dono, em

seus escaninhos. Assim que o carteiro apontava, corríamos ao seu

encontro. O desejo de receber cartas, ter notícias de nossos meninos,dos amigos, era grande.

Nesse dia, o da historinha que vou contar, Jorge desceu sozinho,

eu estava ocupada na cozinha. O carteiro trouxera várias cartas e ele

tratou de abrir logo a de tarja verde e amarela com carimbo da Bahia.

Abriu a carta e foi lendo, o elevador chegou e ele continuou lendo no

elevador, a porta do elevador se abriu e ele saiu, sempre lendo,

empurrou a porta do que achou ser seu apartamento, entrou e, como dehábito, refestelou-se na poltrona, tirou os sapatos e me chamou. Quem

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atendeu ao seu chamado foi um casal de japoneses, habitantes daquele

apartamento. Jorge descera em andar errado. Ao dar-se conta do

engano, tratou de calçar os sapatos, desculpe, e se foi, sem outra

explicação. Jorge cumpria com seriedade o contrato que fizera com auniversidade. Participava e gostava dos encontros, sempre muito

animados, com alunos americanos e também assistidos por jovens

brasileiros. Com Gerard Moser, esses jovens haviam fundado o clube do

bate-papo que, como o nome indica, os reunia para grandes papos.

Sempre cercados de muito carinho, fomos algumas vezes

convidados a jantar em casa de um e de outro. Ninguém tinha

empregada, as mulheres, em geral professoras, acumulavam funções,

trabalhando muito, embora sempre ajudadas pelos maridos nos

afazeres da casa e, sobretudo, na hora de servir o jantar cabia ao

marido cortar o pernil assado, trinchar o frango, servir as bebidas.

Ajuda que jamais poderia esperar de Jorge, desajeitado, sem vocação

nem vontade de se bandear para tais misteres. Também não era tanto

assim, não quero ser injusta: Jorge arrumava a mesa e me ajudava a

tirá-la, despejava o lixo.

Morrendo de saudades de meus filhos, estranhei constatar que,

em geral, os jovens, ao chegar à puberdade, iam cuidar de suas vidas,

deixavam a tutela dos pais, iam se arrumar, morar sozinhos.

VÁRIAS VIAGENS 

Para quem sempre teve uma vida movimentada, a tranqüila

estada em State College começava a cansar. Estávamos em pleno

outono, o inverno se aproximava, já víramos tudo o que queríamos ver,

inclusive a coisa mais bela, o amarelo em todos os seus tons, do ouro ao

vermelho, das folhas caídas das árvores, formando um tapete, no

outono da Pensilvânia. Descobrimos uma feira nas aforas da cidade,onde vivia toda uma comunidade de homens e mulheres que cultivavam

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a terra, construíam suas próprias casas, faziam as próprias roupas e

em suas grandes carroças, também feitas por eles, transportavam

verduras e frutas para vender. Em nosso pequeno e frio alpendre havia

sempre melancias e melões geladinhos que comprávamos dessescamponeses.

Na companhia de Laís fomos mais de uma vez a Washington,

parando nos imensos shopping centers, em plena estrada, onde eu

comprava coisas para meu neto que estava para chegar.

De Nova York, Knopf preocupava-se conosco, Alfredo Machado

também andava inquieto, telefonava muito do Brasil e, conhecendo

como conhecia Jorge, estava achando que devíamos espairecer um

pouco e trataram, ele e Knopf, de organizar viagens para nós, que não

atrapalhassem os compromissos cpm a universidade.

Organizada pelos dois amigos, passamos um fim de semana em

Filadélfia, visitando o grande museu, tão grande e tão poderoso que um

fim de semana não foi suficiente. Voltamos ainda uma vez.

BOSTON 

  Tínhamos grande curiosidade de conhecer Boston, queríamos

ver de perto o problema racial onde, na voz geral, o poder negro era

absoluto, dominante.

Por telefone, Knopf nos disse que chegara do Brasil para nós

uma carta e um cassete. Pedimos-lhe que mandasse tudo para o hotel

em Boston, no mesmo reservado por ele.

Cidade imensa, poderosa, Boston com seus arranha-céus,

lembrou-me um pouco São Paulo. Pelas ruas circulavam enormes

cadilaques conversíveis, de cores vivas, alguns até com pinturas de

flores, todos, sem exceção, dirigidos por negros tão ou mais enfeitados

que os próprios carros.

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Prevenidos da animosidade deles contra os brancos, procuramos

ser o mais prudentes possível. Mesmo assim, ao olhar encantada, sem

nenhuma segunda intenção, para uma fila de mulheres negras de

vestidos coloridos e vistosos chapéus de abas largas que, de braçosdados, tomavam grande parte da calçada, quase fui agredida por uma

delas que me ameaçou com um guarda-chuva.

Sempre repudiamos, Jorge e eu, o preconceito racial, sabíamos,

e quem não sabe? Só não sabe quem não quer, o quanto os negros

sofreram, desde os tempos da escravidão, nas mãos dos brancos. Pela

primeira vez, no entanto, conhecíamos de perto um novo tipo de

racismo, o racismo ao contrário: o do preto sentindo-se superior ao

branco, enfrentando-o, acintoso, sem camuflagem, com evidente

espírito de revanche, de vingança. Em Boston não vimos mulatos nem

casais de preto com branca, nem branco com preta.

O CASSETE 

A carta que viera com o cassete de fita gravada, enviados por

Knopf de Nova York, era de James, dando notícias da Bahia, contando

que Lalu voltara de São Paulo, estava hospedada em sua casa,

esperando por nós. A fita gravada, ai a fita gravada!

Como ouví-la? Havíamos esquecido de levar nosso gravador,

falha imperdoável. Nessa gravação, como a da outra vez, certamente João nos faria ouvir os amigos e ele próprio falando, contando do filho

por nascer... O problema, no entanto, não era tão grave como parecera,

seria solucionado: procuraríamos na cidade uma loja que vendesse

gravadores e pediríamos que nos deixassem ouvir a fita, lá mesmo,

muito fácil.

A loja era enorme, a vitrine repleta de tudo quanto era aparelho,

um mundo. É aqui mesmo que vamos entrar, dissemos ao mesmotempo. Na movimentada loja não conseguíamos localizar uma pessoa

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que nos atendesse até que, finalmente, descobri um rapazinho de

crachá no peito e, com a voz mais suave deste mundo, num

precaríssimo inglês, pedi-lhe que nos emprestasse um gravadorzinho

para ouvir a voz de nossos filhos, tão distantes, no Brasil. Para que eleentendesse bem que falava do Brasil, mostrei-lhe o envelope tarjado de

verde e amarelo, da carta de James. Sem dizer uma única palavra, o

rapaz tomou-me o cassete da mão. Graças a Deus, ele entendeu tudo,

disse eu a Jorge, enquanto o via sumir pelos labirintos da loja. Você 

acha que ele foi buscar c gravador?, duvidou Jorge. Claro!, respondi. Ele 

levou o cassete para ver o tamanho. Estávamos nesses comentários

quando, de repente, uma altíssima e poderosa voz ecoou, saída depossantes alto-falantes distribuídos pela loja toda: E a voz de Lalu,

alarmou-se Jorge, reconhecendo a voz da mãe.

 —  Jorginho, meu filho. Como vai? E Zélia, vai bem?  —  

perguntava ela.

Após o primeiro choque, baixamos a cabeça, encabulados. Ai

meu Deus que vergonha, todo mundo ouvindo, ninguém

compreendendo o que se passava.... O rapaz não me entendera. O jeito

era ficarmos encolhidos, incógnitos num canto, calados para ouvir o

que Lalu dizia. Agora ela reclamava de João:

 —  Eles não estão entendendo nada, nem respondem... Não

estão me ouvindo...

 —  Não é pra responder não, Lalu, vá falando que eles ouvem  —  

dizia João.

Lalu voltava a falar:

 —  Olhe Jorge, por aqui vai tudo bem. Eu voltei de São Paulo,

estou na Bahia, vim esperar vocês. Quando é que tu volta, meu filho?

Ainda vão demorar muito? As saudades são grandes...

 —  Diga, Lalu, que Paloma está grávida  —  soprava-lhe João, ao

lado.

 —  Que grávida o quê, menino! Grávida! coisa nenhuma!...  —  

reclamava Lalu, ríspida. Tendo falado fora do microfone, ela julgara que

não a tivéssemos ouvido, nem percebido que ela estava contra a

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gravidez de Paloma. Ao voltar ao microfone, Lalu mudara o tom de voz,

falava com doçura:  —  Olhem, Paloma veio com uma história de

gravidez... mas não tem nada certo... não passa da vontade da moleca.

Durante um tempo sem fim, de pé, sem comentar, nem rir, comose a coisa não fosse conosco, ouvimos Carybé, Nancy, Mirabeau,

Celestino, Luiza, James, contando as novidades da Bahia, falando de

saudades.

Ao terminar a fita, gentil, o rapaz veio nos trazer o cassete:

Querem ouvir novamente? Thank you very much, agradeci e nos fomos.

Ouviríamos a gravação ainda algumas vezes, tranqüilamente, ao

voltarmos a State College.

INVERNO 

Nem bem o outono terminara, o inverno entrou dando o ar de

sua graça, dias escuros, frios, dias tristes, de vez em quando umbarrufo de neve.

De nossa janela podíamos vigiar nosso carro que, desde a nossa

chegada, ficava estacionado no pátio, bem em frente ao nosso prédio.

Não tínhamos nem por que vigiar, pois ninguém iria roubá-lo, não havia

casos de furtos de automóveis em State College. Esse Chevrolet nos

servira muito e iríamos devolvê-lo nas vésperas de nossa partida que já

se aproximava.A festa de despedida, em homenagem a Jorge, no salão nobre da

universidade, fora organizada por Stanley Wentraub, Gerard Moser e

outros professores. Muitos convidados, vindos de fora, inclusive Alfredo

Machado, Alfred Knopf com Helen, Laís e Walter entre outros, lá

estavam, naquela noite, quando, além dos discursos e das músicas

brasileiras, houve uma apresentação teatral, trecho de um romance de

 Jorge, adaptado e interpretado por alunos e professores.Por telefone, eu pedira a Alfredo Machado que levasse de Nova

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

York, onde tudo se encontra à venda, material para uma feijoada,

incluindo carne-seca, paio e farinha de mandioca.

Convidamos alunos, professores e amigos brasileiros para um

encontro de despedida em nosso apartamento. Preparei uma imensafeijoada num caldeirão emprestado e lhes ofereci um almoço brasileiro.

Até espiga de milho e coco ralei para a canjica de milho verde e as

cocadas, preta e branca, que ofereci como sobremesa. O aroma

apetitoso da feijoada invadiu o prédio todo. Da portaria ao último andar

do edifício, podia-se sentir a presença do Brasil.

Viajaríamos para Nova York, nos primeiros dias de dezembro,

onde tomaríamos um navio de volta ao Brasil. Como fora combinado,

devolveríamos o carro de Laís no dia 25 de novembro, data que não

poderíamos esquecer pois esse era o dia do aniversário de João Jorge.

Era também o thanksgiven, dia de ação de graças dos americanos.

  Jantaríamos com Laís e Walter, participaríamos de sua mesa festiva,

assistiríamos Walter trinchando o tradicional peru assado.

VIAGEM PERIGOSA 

Olhei pela janela e me assustei: nosso carro estava coberto de

neve. Deveríamos devolvê-lo naquele dia. Ao saberem que

tencionávamos descer a serra, nossos amigos se alarmaram. Rodella

Wentraub me telefonou. Não façam isso, por favor, o rádio está anunciando novas quedas de neve, pedem que ninguém viaje com esse 

tempo, as estradas se encontram escorregadias, perigosas. 

Enquanto Jorge, lá embaixo, com a ajuda de alguns vizinhos,

tirava a neve do carro, os telefonemas se sucediam, nossos amigos,

alarmadíssimos, nos pediam que adiássemos a viagem. Não dava para

adiar, nosso tempo era limitado, um adiamento iria nos causar a maior

confusão. Prevenida, eu dirigiria com prudência, iria devagar e, sempressa, chegaríamos ao nosso destino.

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

Fazendo ouvidos moucos aos apelos, saímos lentamente pela

estrada afora. Dos carros que víamos passar, o nosso era o único que

não tinha correntes antiderrapantes nos pneus e além do mais nossos

pneus estavam bastante gastos, quase carecas.Descíamos a serra, eu quase não agüentando segurar o carro.

Ele deslizava como se rolasse sobre uma pedra de gelo. De um lado

tínhamos o precipício, do outro, um barranco e uma valeta separando-o

da estrada. De repente me dei conta de que devia optar entre o

precipício e o barranco e não tive dúvidas, despenquei para dentro da

valeta cheia de neve. Os carros que vinham atrás de nós pararam e,

munidos de pás, picaretas, etc. que, prevenidos, traziam na mala do

carro, homens, mulheres e crianças puseram-se ao trabalho e depois de

muito esforço conseguiram nos colocar novamente na estrada.

À nossa busca, na raiz da serra, encontramos Laís e Walter que,

alertados e alarmados, estavam indo nos procurar.

Digo e repito sempre que mesmo nos piores momentos não me

desespero, procuro tirar dos males o lado positivo. O lado positivo que

tiramos do acidente na serra foi descobrirmos que não estávamos sós,

estávamos protegidos pela solidariedade humana. Aqueles americanos,

sem mesmo nos conhecer, interromperam sua viagem, pararam,

desceram debaixo de neve e trabalharam duro para nos dar ajuda.

Experiência essa que, em vez de nos trazer má recordação, nos traz boa

lembrança da viagem.

GREVE NO PORTO DE NOVA YORK 

Alfredo Machado nos esperava em Nova York com uma novidade:

doqueiros e estivadores do porto de Nova York estavam em greve. Nossa

viagem, com data marcada, estava suspensa. O jeito era esperar com

paciência até que tudo se normalizasse. Enquanto isso, eu fariacompras para meus netos, que agora seriam dois, pois a gravidez de

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Paloma se confirmara.

Pela primeira vez viajaríamos num navio americano, aliás, em

dois navios americanos. No primeiro, depois de fazermos uma escala na

Flórida, no porto de Fort Lauderdale, onde embarcaria muita gente,seguiríamos até o Panamá. Mudaríamos para outro navio que deveria

passar por lá, a caminho do porto de Salvador, na Bahia, dez dias

depois.

Embora o longo roteiro e os dez dias em terra fossem atrasar

nossa chegada ao Brasil, essa viagem nos entusiasmava,

desembarcaríamos na Bahia. Conheceríamos o Panamá,

atravessaríamos o canal. Teríamos tempo suficiente para conhecer a

Cidade do Panamá, lugar que, em geral, ninguém lembra de visitar,

ninguém sai de sua casa para ir lá a passeio, como sai para ir a Paris,

Londres ou Roma. Teríamos a oportunidade única de conhecer o país,

embora de passagem. No porto livre de Cristóbal, eu compraria uma

filmadora e uma câmera fotográfica.

SOMOS AVÓS 

Ainda estávamos em Nova York quando chegou a notícia tão

esperada: nascera nosso primeiro neto. João nos telefonou em seguida

ao nascimento do menino, vai se chamar Bruno, disse. Impossível

descrever a emoção que senti ao pensar que João já era pai, Jorge e eu,avós. Agora só desejava que a greve terminasse logo, não via a hora de

chegar em casa, ver meu neto.

Em Purchase, na casa de campo dos Knopf, passamos um fim de

semana. Tínhamos estado lá no verão onde tudo era verde e florido, e

agora, em pleno inverno, a paisagem mudara completamente: tudo

branco, caía neve. Tomando um bom vinho da adega dos anfitriões, nos

aquecemos recordando a viagem deles ao Brasil.Alfredo Machado, nosso informante sobre o movimento grevista,

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finalmente nos deu a boa nova; mesmo não estando completamente

resolvido o problema, o navio ia zarpar. Como os carregadores do porto

continuavam em greve, os passageiros deveriam encarregar-se de suas

bagagens, colocá-las nas cabines. Felizmente, Alfredinho, filho deAlfredo, estava estagiando em Nova York e, com seu pai e um

funcionário da editora Knopf, conseguimos embarcar tudo sem maiores

dificuldades.

INÍCIO DA VIAGEM DE VOLTA 

Viagem péssima, em mar revolto, mar de inverno, diziam, a

viagem curta tomou-se longa. Prevenida, tomei remédio contra enjôo.

Velho marinheiro, Jorge recusou o remédio, nunca precisou precaver-se

contra o mal de mar.

Naquele navio imenso, éramos os únicos a enfrentar o balanço

do barco para conseguir chegar ao salão de refeições. Nos segurávamos

em grossas correntes que atravessavam o navio e assim mesmo muitas

vezes perdemos o equilíbrio. Os demais passageiros haviam sumido,

deviam estar trancados em suas cabines. Só nos demos conta de que

eram numerosos ao chegar à Flórida.

RUMO AO PANAMÁ 

Os novos passageiros, embarcados no porto de Fort Lauderdale,

em excursão que os levaria até a Argentina, ida e volta, eram, na sua

maioria, pessoas idosas, aposentados, que, na maior animação, não

desistiam de gozar a vida.

A longa experiência nos ensinou que numa longa viagem

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marítima somente depois de muitos dias de convívio pode-se reconhecer

as pessoas. Às vezes, no último dia de viagem aparecem caras novas:

Estes embarcaram hoje, costuma pilheriar Jorge.

Nossas companheiras de viagem se pareciam muito, no modo detrajar, no modo de vestir, no cabelo crespo de permanente. Notamos

que uma das mulheres, de seus setenta anos, todos os dias colocava

um lacinho de fita colorida nos cabelos loiros, encaracolados; o lacinho

que enfeitava sua cabeça um dia era azul, noutro, vermelho, noutro,

roxo... Eu e Jorge só reparando nos coloridos enfeites da coquete. Quem

mais se divertia era ele que ao vê-la surgir, certo dia, com um laço

bicolor, me disse: Se essa burra me aparecer amanhã de laço amarelo,

sou capaz de lhe dar um bofete... Pela manhã do dia seguinte, não deu

outra, a burra surgiu toda faceira, um lacinho amarelo encarapitado no

cocuruto. Olhei para Jorge: E agora?  Sempre rindo, ele não se

atrapalhou e apontando ostensivamente o laçarote na cabeça da outra,

atrevido, gastou uma das poucas palavras que sabia em inglês dizendo:

Beautiful!  

Pouca coisa, ou nada, servia para encher nossas horas. Quando

poderíamos imaginar que uma besteira daquelas, como a dos lacinhos

coloridos, poderia nos fazer rir com tanto gosto? Nos divertiam também,

e muito, os comentários que fazíamos sobre os namoros dos velhinhos.

Sapecas todos eles, velhos e velhas, dançando, no maior assanhamento,

namorando, saindo do baile, como quem não quer nada, indo para

encontros amorosos na escuridão do tombadilho. Soubemos que alguns

namoros, nessas longas excursões, algumas vezes resultaram em

casamento. Acontecia também morrer algum velhinho, durante a

viagem, em alto-mar. O navio levava de reserva dois ou três caixões

mortuários, próprios para serem metidos no frigorífico em caso de

necessidade. Viajava, nessa excursão, uma senhora que perdera o

marido durante uma viagem anterior, havia um ano, e agora, viúva e

solta, não perdia uma dança.

Por coincidência, uma passageira que viajava com o marido

estava lendo Dona Flor e seus dois maridos, em edição americana,

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presente de uma amiga, na Flórida, onde moravam. Ao ler a lista de

passageiros ela encontrara o nome de Jorge. Aproximou-se, queria

saber se ele era ele mesmo. Seu entusiasmo, grande, aumentou ainda

mais ao descobrir na Enciclopédia Britânica, na biblioteca do navio, onome de Jorge Amado. Nos chamou, nos levou para ver. Essa senhora,

uma das passageiras mais jovens, devia ter uns cinqüenta anos, era

quem mais dançava, o marido só apreciando. Um dia ele confidenciou a

 Jorge: Ela vai esquentando o prato para eu comer depois... Ela fez tudo

para dar umas rodopiadas com Jorge, sem conseguir. Jorge não sabe

dançar e nem se esforça, o que para mim, apaixonada por dança, é uma

falha enorme.

PANAMÁ 

Viagem longa, pelo mar do Caribe até Colón, e ainda teríamos

oito horas antes de chegar ao porto de Balboa. Atravessaríamos o canaldo Panamá, comportas e mais comportas antes de atracar.

Ainda era dia claro quando iniciamos a travessia do canal.

Pudemos assistir às manobras demoradas de entradas e saídas de

navios nas eclusas, a água baixando, o navio lá embaixo esperando que

ela subisse. Apaixonante movimento de água e de navios, baixando,

subindo, seguindo em frente, lentamente, até chegar ao porto e atracar.

No hotel, simpático, no centro da cidade, deixamos nossabagagem, saímos em seguida, curiosos de conhecer a cidade. Na

portaria vimos um cartaz anunciando a estréia de um show de artistas

brasileiros.

A hora marcada, aliás, muito antes da hora marcada, lá

estávamos naquele imenso teatro ao ar livre. As cadeiras vagas ao nosso

lado em seguida foram ocupadas. O rapaz moreno que sentara ao lado

de Jorge tinha ar de brasileiro. Não só era brasileiro como baiano,soubemos depois, no intervalo do show, quando ele se apresentou. Seu

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nome era Miguel Franco, morava no Panamá com a mulher e filhos, a

família toda fora assistir ao show dos brasileiros, matar saudades.

Espetáculo bonito, entusiasmava panamenhos e americanos,

passageiros do navio que lá estavam. Ouvindo as músicas tão nossasconhecidas, as danças tão sensuais, nos sentíamos mais próximos do

Brasil.

No intervalo, Jorge viu-se rodeado de brasileiros que o

reconheceram, não sabíamos que haviam tantos vivendo no Panamá.

Encontro providencial, Miguel Franco, que se revelou amigo de

Camafeu e de Carybé, nos deu todas as dicas da cidade, o que ver e

onde ver... Soubemos por ele que a senhora do ministro da Cultura,

 Jayme Ingram, era uma pianista brasileira, Nelly Ingram.

Eu estava interessada em comprar trabalhos dos índios cunas,

as molas, trabalhos feitos com tiras de tecidos de cores variadas,

costuradas a mão, formando desenhos, verdadeiras obras de arte. Eu já

vira almofadas e até peças de vestidos, como bolsos, golas, barras, feitos

com molas. Ao desembarcar, ainda no porto, eu as vira expostas ao lado

de um índio que as vendia.

Aconselhados na portaria do hotel, fizemos uma excursão à Ilha

de San Blás, comarca indígena, onde os cunas vivem e trabalham. Seria

um experiência única, não podíamos perder tempo.

Na agência de turismo tivemos quase todas as informações: a

viagem era feita num avião de doze passageiros, trinta minutos de vôo

até a ilha. O avião saía duas vezes por semana pela manhã e voltava no

final da tarde. O entusiasmo de Jorge era tão grande que, mesmo

sabendo que devia entrar num avião pequeno, não recuou. Ao ver que a

passagem, tirada pela funcionária da empresa, era de ida e volta para o

mesmo dia, Jorge reclamou: Não quero voltar no mesmo dia de jeito 

nenhum, quero ficar lá, tenho tempo de sobra. A moça do guichê fez uma

cara admirada, todos voltam no mesmo dia, disse, mas, como não

explicou mais nada, marcamos nossa volta para dali a três dias.

Saímos num avião lotado com um grupo de turistas franceses e

um guia. Pousamos numa pista cercada de torres de controle, ao lado

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de uma espécie de quartel. Achamos que era quartel pois havia

soldados por lá. Mais adiante um restaurante, e mais nada. Cadê os 

índios?, perguntei admirada ao guia da excursão. Estávamos numa

base militar e para ver os índios devíamos ir de lancha a outra ilha.Seguimos o guia ao restaurante onde, numa sala reservada, ele

costumava dar aos excursionistas uma aula sobre os índios de San

Blás, antes de ir visitá-los. Com ares professorais, o guia contou a

história da chegada dos índios na região, pescadores de pérolas, pérolas

que, segundo ele, abundavam por lá... Essa da abundância de pérolas

no Panamá era novidade para nós, mas, se o guia afirmava com tanta

veemência, é porque devia ser verdade. Todo mundo prestando muita

atenção, faziam perguntas, ele respondia às dúvidas de alguns, à

curiosidade de todos. Bem-falante, simpático, ouvimos sua palestra

durante uma interminável meia hora.

Antes da travessia na lancha que nos levaria aos cunas o guia

tinha ainda uma tarefa a cumprir: conduziu o bando todo, e nós atrás a

segui-lo, para visitar algumas malocas. A uns cem metros do

restaurante, no meio de um pequeno bosque, as divisamos, redondas,

bonitinhas, feitas de polidos troncos de árvores e cobertura de sapé.

Construídas pela companhia de turismo à guisa de dormitórios para

hóspedes, essas malocas, estava na cara, nunca haviam sido habitadas

por índios. Nem por índios, nem por ninguém, pois o cheiro abafado do

mofo, lá dentro, dizia tudo. A cama de casal, bem arrumadinha, e os

lençóis com vestígios de bolor estavam à nossa espera, seria nessa

cama, com certeza, que devíamos passar a noite. Aqui eu não durmo,

nem morta, cochichei ao ouvido de Jorge. Vamos primeiro ver como é a 

ilha dos índios, depois a gente resolve, disse ele.

A ilha dos índios, onde eles viviam e trabalhavam, era outro

blefe, não havia nada de interessante a ver. Acostumados a essas visitas

de turistas curiosos, a lhes fazer perguntas idiotas, a lhes encher o

saco, eles nem nos deram confiança, ficaram na deles, na sua pobreza,

no seu trabalho. Quanto às molas que eu pretendia comprar, não havia

uma sequer, quanto a pérolas, nem o rastro. Os trabalhos prontos eram

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levados para a cidade, vendidos lá, e quanto às pérolas, que pérolas?

Somente agora entendíamos a surpresa da moça do guichê ao

saber que pretendíamos passar algumas noites na ilha. Na lancha, ao

voltarmos para a base, onde iríamos almoçar, já não tínhamos dúvidas,estava decidido, voltaríamos naquele dia mesmo, nem pleitearíamos a

restituição do dinheiro pago pelas três noites. Queríamos voltar mas

não conseguimos, nossos lugares no avião já estavam reservados,

seriam ocupados por dois oficiais da base. Nem adiantou insistir.

Depois de horas lutando contra mosquitos que nos atacavam,

dispostos a nos devorar, naquela maloca de lençóis úmidos, cheirando a

bolor, desistimos de dormir, saímos andando e, sentados num degrau

do restaurante fechado, passamos o resto da noite contando estrelas no

céu. Contando estrelas ou procurando nossas estrelas? Por onde

andavam elas que não nos socorriam? A minha, que dona Angelina,

minha mãe, afirmava ter nascido comigo e a de Jorge que, segundo

Lalu, era bem mais poderosa que a minha. Só em pensar que devíamos

passar ainda duas noites naquele horror, perdêramos a graça.

  Tudo aconteceu quando menos esperávamos. O dia já estava

alto quando nosso mau humor foi interrompido pelo ronco de um avião.

Um teco-teco descia, pousou na base. Vinha buscar um soldado que

sofrera um acidente, precisava de socorro.

Nossas estrelas tardaram mas não falharam. Apareceram

iluminando o sol do meio-dia, trazendo o aviãozinho que nos levaria

dali. Nesse teco-teco embarcamos de volta, aliviados, felizes da vida.

A notícia da presença de Jorge no Panamá correra e à nossa

espera, no hotel, várias mensagens, inclusive um convite do ministro da

Cultura, Jayme Ingram e senhora, nos convidando para um jantar.

Nossa estada no Panamá chegara ao fim. O jantar na casa de

Nelly e Jaime Ingram fora dos mais agradáveis. Conhecemos, nessa

noite, intelectuais e artistas panamenhos e brasileiros da Embaixada do

Brasil. Não pudemos aceitar mais nenhum convite, nosso navio já

estava chegando e partiria em seguida.

Antes de embarcar só tivemos tempo de combinar um almoço

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com Miguel Franco e sua família. Com eles estava uma senhora, leitora

de Jorge, amiga do casal. Notei que a moça falava de boca fechada e me

impressionei. Miguel me explicou que ela fazia regime para emagrecer

utilizando um método muito empregado no Panamá, método esse queos médicos diziam ser único e infalível: colocavam uma armação nos

dentes do paciente, trancando-lhe a boca, permitindo-lhe apenas a

ingestão de líquidos. Mas ela é gorda, comentei com Miguel, parece que 

a boca trancada não está adiantando... Miguel riu: E que ela toma, com 

um canudinho, todos os dias, litros de Coca-Cola. 

Há vários anos, com Telma, Miguel Franco voltou a viver na

Bahia. Amigo de Camafeu, de Carybé, nosso amigo.

Novamente atravessaríamos o canal, rumo ao Atlântico,

viajaríamos a noite inteira. Faríamos uma escala, pela manhã, em

Colón, onde o navio permaneceria algumas horas, o tempo suficiente

para que os passageiros, aproveitando a vantagem nos preços da zona

franca, pudessem fazer suas compras.

Não perdi tempo. No porto livre de Cristóbal, comprei o que

desejava: molas, as mais belas; uma câmera fotográfica com várias

lentes e uma filmadora com as quais pretendia fotografar e filmar a

cidade de Cristóbal Colón.

Infelizmente, não pude fotografar nem filmar nada, pois as

compras feitas na zona franca só eram entregues ao comprador dentro

do navio, na hora do embarque. Se não pude utilizar meus aparelhos

em terra, em compensação, durante a viagem para a Bahia, no belo e

luxuoso transatlântico, infinitamente melhor do que o primeiro,

fotografei, filmei, me esbaldei. Como não me esbaldar, com tais

companheiros de viagem? Verdadeiro buquê de velhinhos e velhinhas

sapecas, exemplo de amor à vida, provando não haver limite de idade

para aproveitá-la nem para se amar.

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CARTAGENA 

Fotografei e filmei meus velhinhos no navio, fotografei em

Cartagena, nossa primeira escala depois da saída de Colón.

Prevenidos por Carmem Balcells  —  nossa amiga e agente

literária em comum  —  de nossa passagem pela Colômbia, Mercedes e

Gabriel Garcia Márquez nos esperavam no porto de Cartagena, terra

natal de Gabriel.

Com o casal Garcia Márquez passamos o tempo todo da escala

do navio. Almoçamos na casa dos pais de Gabo, passeamos pela cidade

e pudemos constatar o prestígio, o respeito e o amor daquele povo pelo

seu escritor maior.

Personagem de vários mundos, com moradas em algumas

partes, o casal conservava um apartamento em Cartagena, para quando

pudessem aparecer. O apartamento ficava localizado em cima de uma

casa comercial, uma loja que vendia calças femininas. Paramos em

frente, na calçada, para que eu os fotografasse. Na fachada da loja, em

letras garrafais, um anúncio: Tenemos pantalones para todas las 

nalgas. Rindo, Jorge chamou a atenção do casal e Gabo jurou nunca tê-

lo notado antes.

MAIO DE 1981

Havia pouco mais de um ano, a Bahia fora festejada pelos

portugueses, artistas e homens de cultura da Bahia recebidos com

pompa e carinho, em Portugal. Era a nossa vez de retribuir:

recepcionaríamos o que de mais significativo havia na cultura

portuguesa que chegaria às terras baianas.

Sempre sob a batuta do maestro Nuno Lima de Carvalho, com o

apoio do governador Antônio Carlos Magalhães, a colaboração de Paulo

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Gaudenzi que comandava o turismo na Bahia e a do prefeito Manuel

Castro, o programa da festa do Estoril na Bahia ganhou vulto e enorme

importância.

Uma exposição histórico-documental e bibliográfica, organizadapela Junta de Investigações Científicas do Ultramar e pelo Arquivo

Histórico Ultramarino, com dezenas de documentos, códices, espécies

cartográficas e iconográficas dos séculos XVI a XIX sobre a Bahia e o

nordeste brasileiro, foi mostrada no Gabinete Português de Leitura, em

Salvador.

Uma exposição de artes plásticas, realizada no saguão do Teatro

Castro Alves, nos trouxe os artistas: Manuel Cargaleiro, Carlos Botelho,

Bartolomeu, Charters de Almeida (Conde da Bahia), Dorita Castelo

Branco, autora da medalha comemorativa com a efígie do padre Antônio

Vieira, Júlio Resende, Francisco Relógio e Maluda; com eles, os

 jornalistas Vitor Direito e Vera Lagoa. Do Sobreiro, chegou nosso amigo

  José Franco com sua mulher, artista ela também, dona Helena. José

Franco trazendo, para a exposição, suas peças de cerâmica.

A TAP, comandada na época pelo engenheiro Santos Martins,

deu contribuição fundamental para o sucesso do acontecimento. Sem a

liberação de peso para o transporte das obras de arte, do material da

culinária portuguesa e as passagens dos participantes, essa

manifestação de intercâmbio cultural entre os países irmãos não teria

sido possível.

Uma semana gastronômica portuguesa, no Hotel Othon,

ofereceu aos baianos o mais completo cardápio até hoje apresentado.

Houve a apresentação do Grupo de Folclore da TAP e uma

exposição de trajes regionais do Minho.

Verdadeira embaixada de 83 personalidades do mundo artístico

e cultural português desembarcou em Salvador. Jorge e eu fomos ao

aeroporto, o dia apenas amanhecia. Nesse vôo chegariam amigos muito

queridos: Fernando Namora que vinha para a apresentação de uma

grande exposição documental e bibliográfica de Ferreira de Castro e

pronunciar conferências. Com Namora chegava nossa amiga Zita, sua

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mulher.

  Também Amália Rodrigues, nossa querida, com sua voz

incomparável, participaria de um espetáculo no Teatro Castro Alves.

Espetáculo esse que teve um êxito estrondoso, levando para o CampoGrande milhares de pessoas.

Recebemos, naquele início de manhã, nossos amigos José

Franco e Helena e os trouxemos em nosso carro para a cidade. Franco

estava encantado, assombrado com o calor e a areia fina e alva que

cobre as encostas da estrada nas imediações do aeroporto:

 —  Disseram-me que na Bahia já é inverno...  —  comentou José

Franco.

 —  Isso mesmo  —  disse Jorge, apontando as alvas areias das

dunas  — , lá está a neve, e apenas entramos no inverno.

 —  Neve?  — assombrou-se Franco.

Em seguida, dando-se conta de que o amigo pilheriava, também

riu:

 —  Com esse sol... ela estaria derretida há muito... Franco ainda

tinha uma curiosidade a satisfazer:

 —  E cá, no inverno não faz frio, pois não?

 —  Não, na Bahia nunca faz frio...  —  dissemos. Cada vez mais

intrigado, Franco perguntou:

 —  Então, quando é que deitam as batatas?

 —  Quando der vontade  — respondeu Jorge, rindo.

 —  Então, não pode haver pobreza neste país...  —  concluiu

nosso amigo.

O rádio tocava música portuguesa. Aliás, durante uma semana

antes e outra depois do evento, o tema de fundo da programação local,

das rádios e televisões, era Portugal.

Para nós não podia haver maior alegria do que receber em nossa

casa velhos e queridos amigos e para eles fizemos um almoço:

começando pelo incansável Nuno Lima de Carvalho com sua Clarinda,

 José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, com Maria José,

sua mulher, ambos nossos queridos; Manuel Telles, que contribuiu com

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seu apoio ao sucesso da Semana da Bahia no Estoril, chegado com

Maria Emília, sua mulher, recebia os agradecimentos dos baianos e

participava de nossa festa; Santos Martins com Graciete seriam nossos

convidados de honra, não fossem todos convidados de honra as quaseduzentas pessoas que vieram almoçar em nossa casa. O etnólogo

Amadeu Costa, bom amigo, de Viana do Castelo nos trouxe duas

palmas douradas, da Festa da Agonia, e o prefeito de Cascais estavam

entre os nossos convidados, em mesas espalhadas nos terraços e

 jardins, entre tabuleiros de baianas fazendo acarajés, oferecendo abarás

e beijus de tapioca.

Mais numerosos eram os convidados brasileiros, a começar pelo

governador Antônio Carlos, o prefeito Manuel Castro, Paulo Gaudenzi,

Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, Carlos Bastos e Altamir,

 James Amado e Luiza, Mário Cravo e Lúcia, Jenner e Luísa, Floriano e

Alice, Lev Smarchewski e Quinquinha, Gilberbet Chaves e Sônia,

Mirabeau, Vitor Gradim e Grace, para citar apenas alguns nomes.

Vitor e Grace, maravilhosos anfitriões da Bahia, costumam abrir

as portas de sua casa, no Morro da Paciência, aos amigos no dia 2 de

fevereiro, festa de Yemanjá. Lá do alto, da bela residência, descortina-se

um oceano inteiro e a procissão do presente à bela sereia, no dia de sua

festa.

Em seu jardim, Grace Gradim construiu um forno onde queima

cerâmicas, peças feitas com amor por suas mãos de artista.

Na casa do Morro da Paciência refugiou-se José Franco nessa

Semana da Bahia. As peças trazidas de Portugal foram vendidas no

primeiro dia da exposição, êxito absoluto, muita gente querendo

comprar. Grace ofereceu-lhe ateliê e forno onde o ceramista do Sobreiro

criou muitas peças, novas figuras de saloios, que em seguida também

foram vendidas.

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CIDADÃO SOTEROPOLITANO 

Ainda uma vez, há uns poucos anos, festejamos aqui, em nossa

casa do Rio Vermelho, o cidadão Nuno Lima de Carvalho, responsável eidealizador da Semana da Bahia no Estoril e da Semana do Estoril na

Bahia. Aplaudimos a Câmara de Vereadores de Salvador que lhe

conferira, na ocasião, o título de Cidadão Soteropolitano ou, para quem

não conhece a palavra, cidadão da cidade do Salvador, um filho da

terra.

O presidente Mário Soares encontrava-se na Bahia e veio à

homenagem que prestávamos ao seu concidadão. Veio ele e vieram altasautoridades portuguesas e brasileiras, a começar pelo embaixador de

Portugal no Brasil, do embaixador do Brasil em Portugal e pelo

governador do estado.

Almoço sem protocolo, num dia quente de verão, todo mundo

tirou paletó e gravata, Mário Soares, pessoa mais simples e informal do

mundo, foi o primeiro a dar o exemplo.

Por falar na simplicidade de Mário Soares, ocorreu-me contarum fato sucedido em Paris e para isso peço licença e me desculpo por

interromper o que contava.

Estávamos passando uma temporada em nosso apartamento em

Paris, quando Jorge adoeceu. Nessa mesma ocasião chegava à França,

em visita oficial, o presidente Mário Soares. A cidade engalanou-se com

bandeirinhas portuguesas e pela televisão o vimos, com dona Maria de

  Jesus, desembarcar do avião pisando em tapete felpudo, vermelho,recebendo todas as honras que cabem a um estadista estrangeiro.

Recebemos um convite assinado pelo presidente Mitterrand e

senhora, para jantar no Palais de L´Elysée em homenagem ao

presidente português. Jorge estava doente, como já disse, e eu respondi

explicando o motivo de nossa ausência no jantar.

No dia seguinte, um telefonema da Embaixada Portuguesa nos

pedia agendar uma visita do presidente Mário Soares e senhora a JorgeAmado. A visita seria às seis da tarde e já às cinco o quarteirão onde

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morávamos, no quai  des Célestins e rue  St. Paul, foi interditado. De

nosso apartamento, no quinto andar, às seis horas, ouvimos a sirene do

pelotão que abria alas para o presidente que se aproximava. João Jorge,

que se encontrava conosco, desceu rapidamente para receber as ilustresvisitas no portão de entrada.

Mário Soares pediu aos membros da comitiva que os

aguardassem lá fora e, com Maria de Jesus, subiu ao nosso

apartamento.Tirou o paletó em seguida, refestelou-se numa poltrona,

livrou-se dos sapatos e, enquanto na rue St. Paul comitiva e curiosos o

aguardavam, lá em cima ele descansava os pés, batendo um papo

descontraído com o amigo.

Volto ao almoço oferecido ao mais jovem soteropolitano, Nuno

Lima de Carvalho e à sua bela Clarinda, num dia de grande calor, em

nossa casa do Rio Vermelho, quando cerca de duzentos convidados

vieram felicitá-lo e nos alegrar.

No almoço a Nuno, tivemos um convidado muito especial o

doutor Aloysio Campos da Paz, diretor e criador dos hospitais Sarah, da

Associação das Pioneiras Sociais, hospitais de primeiro mundo,

atendendo, indiscriminadamente, a pobres e ricos, sobretudo, gente

pobre que jamais poderia pagar um tratamento como o que recebe no

Sarah. A Bahia tem o privilégio de possuir um desses hospitais. Dr.

Aloysio estava de passagem por Salvador e nos deu a honra de sua

presença. Após o almoço, Jorge e José Aparecido de Oliveira, nosso

embaixador em Portugal, que são conselheiros da Associação,

acompanharam o presidente Mário Soares a uma visita ao Sarah.

Queriam mostrar ao amigo, velho lutador pela causa dos deserdados, o

que já tínhamos de bom e de positivo em nossa terra.

Mário Soares percorreu as dependências do hospital, falou com

os pacientes e, ao despedir-se, foi entrevistado pela televisão, que

desejava saber sua opinião sobre o hospital. Mais do que

impressionado, emocionado, disse jamais ter visto nada que se lhe

comparasse: É bestial! Coisa de primeiro mundo.   José Aparecido de

Oliveira aproveitou para contar o chiste que corria em Portugal: Deus 

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esteve em todos os lugares, mas antes lá esteve o doutor Mário Soares.  

Quem leu a coluna de July, em A Tarde, depois desse almoço ao

qual ela compareceu, aliás comparece sempre, é nossa amiga, ficou a

par do menu e dos convidados presentes, com a lista completa.  Terezinha Cardoso, em sua página dominical do mesmo jornal,

descreveu com imagens poéticas o que viu, estampou fotos das

personalidades presentes, instantâneos batidos por ela própria.

Mário Soares chegara acompanhado de oficiais que faziam parte

de sua comitiva. Entre eles, um simpático oficial da Marinha que,

sufocado em seu uniforme de gala, chamou-me de lado:

 —  Estou a morrer de calor, sufocado...  — me disse.  — Vejo que

estão todos em mangas de camisa...

 —  Pois não faça cerimônia  — disse-lhe  — , tire seu dólmã.

 —  Não posso, minha senhora, não tenho nada por baixo,

precisaria que me arranjasse um T-shirt. 

Da gaveta de camisetas de Jorge, escolhi uma com desenho de

Miro que entreguei ao oficial. Ao vê-lo com a camiseta, Paloma

perguntou-lhe se havia estado em Barcelona, na exposição de cerâmica

no centenário de Miro onde ela comprara uma igualzinha à dele. Não 

estive, não senhora, e creio que estou a vestir a que a senhora comprou,

 pois foi sua mãe quem ma emprestou. E era. A empregada colocara por

engano na gaveta de Jorge a camiseta de Paloma e eu, na afobação, não

reparara. Encontrei esse oficial em outras cerimônias e ele nunca

deixou de comentar a história da camiseta de Paloma que o salvou de

morrer sufocado, na Bahia, no dia da homenagem a Nuno Lima de

Carvalho.

ACERVO COBIÇADO 

A carta vinha da Universidade de Boston. Assinada por umprofessor, falava em nome da universidade, pedindo a Jorge Amado que

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recebesse uma comissão de professores que voaria para a Bahia,

especialmente para conversar com ele sobre um pedido de doação de

seu acervo para a universidade americana.

O acervo de Jorge, material precioso, composto de centenas detraduções de livros seus para cinqüenta e tantas línguas, em várias

edições; artigos do autor e sobre o autor, recortes de jornais e revistas,

teses de doutorado sobre sua obra, vindas de várias partes do mundo;

centenas de fotografias e negativos; retratos e caricaturas do escritor,

retratos de personagens dos romances vistos por artistas renomados

como, por exemplo, Dona Flor vista por Floriano Teixeira e José de

Dome, Tereza Batista vista por Calasans Neto, Gabriela vista por Di

Cavalcanti; o próprio Jorge Amado visto por Carybé, Portinari, Carlos

Scliar e Calasans Neto, sem esquecer a pintura dos admiradores

anônimos que, mesmo sendo amadores, quiseram expressar seu

carinho retratando seu autor e seus personagens.

O material, aumentando a cada dia, há mais de meio século,

invadia armários, estantes e gavetas. Nossa casa tão grande tornava-se

pequena para conter esse mundo de coisas, mas sobretudo tornava-se

cada vez mais difícil a sua catalogação, conservação e a preservação dos

livros e documentos, dos filmes e fotografias, ameaçados pela umidade e

em vias de destruição.

Os americanos da Universidade de Boston acenavam com um

departamento especializado em preservação de documentos e livros,

com salas climatizadas e pessoal qualificado na separação e na

classificação do material. Material que seria consultado pelos

estudantes da universidade. Haveria uma exposição permanente, com

vitrines, enfim, tudo que o nosso sacrificado acervo estava

necessitando.

Proposta tentadora, porém Jorge nem precisou refletir, não

podia mandar para fora do país um bem que, por direito, devia ficar no

Brasil. Recusou a proposta da Universidade de Boston.

Não tardou a surgir outra proposta. Desta vez era a USP, de São

Paulo, melhor credencial impossível, que pleiteava os arquivos de Jorge

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Amado. Os planos para o aproveitamento do imenso material estavam

prontos. O acervo ficaria em boas mãos, preservado, separado e

catalogado, exposto em ambiente climatizado, à disposição de

interessados para pesquisas e estudos. Desta vez Jorge se entusiasmou,a conversa era outra, seu acervo permaneceria no Brasil e eu senti que

ele estava propenso a mandar tudo para São Paulo.

Me alarmei. Embora paulista, não achei justo que um material

tão rico, inspirado pela Bahia, fosse embora daqui, herdado por São

Paulo. Disse a Jorge o que pensava e ele retrucou: E você prefere que 

tudo se estrague, se acabe de vez? Ele não pensava isso de mim, sabia

muito bem o que eu desejava: ver seus arquivos na Bahia, cuidados e

aproveitados pelos baianos. Porém, cético, ele não acreditava no meu

otimismo exagerado, a fazer planos, não contando com obstáculos.

Mesmo assim, ouviu minha opinião, concordou comigo e recusou a

proposta da USP: Não posso, meu acervo deve ficar na Bahia, encerrou o

assunto.

Com João e Paloma conversamos sobre a possibilidade de criar-

se uma instituição cultural que cuidasse de tudo. Ouvindo a conversa

  Jorge apenas disse: Só não quero que façam de minhas coisas um 

museu. Claro que nossa intenção era criar um centro de cultura, mas

por onde começar? Fácil era desejar, difícil executar.

A frente da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Geraldo

Machado organizou uma exposição comemorativa dos setenta anos de

 Jorge Amado e dos cinqüenta anos da publicação de seu primeiro livro,

O país do carnaval. Exposição iconográfica e biobibliográfica, no foyer

do Teatro Castro Alves. Montada por Myriam Fraga e Zilah Azevedo,

com fotografias e peças do acervo do escritor, a exposição alcançou

enorme sucesso. Logo surgiram convites para que ela fosse levada ao

Ceará, a Ilhéus, a São Paulo, na Bienal do Livro, e a Brasília.

Diante do interesse despertado por esse material, surgiu a idéia

do aproveitamento do acervo de Jorge para criar-se uma instituição

cultural que permitisse, ao mesmo tempo, catalogar, conservar o

material e garantir aos estudiosos e pesquisadores o acesso a ele.

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Pessoa de prestígio, poetisa respeitada, nossa amiga Myriam

Fraga já andara sondando sobre a possibilidade da criação de uma

Casa Jorge Amado, mas não conseguira.

Soubemos que o reitor da Universidade Federal da Bahia,Germano Tabacof, estava interessado no assunto. Com a sua

colaboração poderíamos tocar o plano avante. Com Germano Tabacof  —  

 James Amado, desejoso de ver o problema resolvido, porém cético como

o irmão  — , Myriam, Paloma, Pedro Costa, João e eu nos reunimos e

decidimos que a primeira coisa a fazer era procurar casa. Depois

iríamos atrás do dinheiro para o primeiro impulso.

Quem descobriu que o casarão do Largo do Pelourinho estava

vazio havia muito foi João Jorge. O casarão do século XIX, o mais belo

do Pelourinho, era ideal para o nosso plano. A Casa de Jorge Amado

ficaria no coração do centro histórico, fonte das histórias de seus

romances, onde circulavam seus personagens. Conseguirmos essa casa

seria ainda um milagre da Bahia.

A casa enorme era, no entanto, dividida em vários imóveis: um

deles pertencia ao Banco do Estado que já o utilizara com uma de suas

agências. Ao Baneb pertencia ainda parte do casarão vizinho, na ladeira

ao lado. Ainda um outro imóvel pertencia ao Estado.

Myriam Fraga procurou em seguida o presidente do Baneb,

Lafayette Ponde Filho, que, ao saber do plano de fazer-se uma fundação

contendo o acervo de Jorge Amado, mostrou-se sensível à iniciativa e

tomou as necessárias providências para a doação dos imóveis

pertencentes ao banco que iriam abrigar o patrimônio da nova

instituição. A outra parte do prédio pertencia ao Estado.

Na ocasião o governador era João Durval. Com o apoio de

Antônio Carlos Magalhães, falou-se com ele, que não teve dúvidas em

assinar um documento de cessão de uso, por dez anos, da casa do

Pelourinho

Mas nem tudo foi tão fácil como pode parecer. Ao visitarmos o

casarão encontramos, já pregada ao lado de fora da porta, uma placa do

Instituto Mauá. Dentro, no recinto principal, várias vitrines indicavam a

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

chegada de mudança.

Sem ter conhecimento do acerto do governador com a instituição

 Jorge Amado, dona Yeda Barradas, esposa do governador, havia cedido

a casa ao Instituto Mauá. Situação embaraçosa, não foi fácil desfazer omal-entendido, levou algum tempo até que a decisão fosse tomada a

nosso favor e a casa nos fosse entregue.

Em péssimo estado de conservação, o casarão precisava de

grandes reformas, todo o sistema de eletricidade devia ser mudado e

tudo o mais também.

Não foi difícil conseguir, através de nosso amigo Renato Martins,

um dos diretores da Odebrecht, que a poderosa construtora se

responsabilizasse pelo trabalho de restauração da casa.

 Teríamos o prédio tinindo de novo, porém sem um único tostão

furado para pôr de pé a instituição. Por intermédio de Paloma,

assessora do presidente José Sarney, consegui uma audiência com ele

no Palácio do Planalto e viajei para Brasília.

Velho amigo nosso, José Sarney ouviu tudo o que eu tinha a lhe

dizer sobre o plano. Sem fazer objeções aplaudiu a iniciativa, dando-nos

uma soma, não grande, porém suficiente para começarmos a nos

movimentar.

A 2 de julho de 1986 José Sarney e Marly ofereceram um grande

almoço no Palácio da Alvorada. Mais tarde, no Palácio do Planalto, em

presença de numerosos amigos e personalidades, foi instituída a

Fundação Casa de Jorge Amado, Germano Tabacof, presidente, Myriam

Fraga, diretora executiva. Ao mesmo tempo, o presidente da República

promulgava a lei de incentivo à cultura que passou a ser conhecida por

Lei Sarney.

Sabendo o quanto eu ficaria feliz, sensível, boa amiga, Marly me

fez uma surpresa: convidou meu filho Luiz Carlos que vive em São

Paulo e eu, rodeada pelos meus três filhos, apaguei as setenta velinhas

de um grande bolo, outra surpresa de Marly, pelo meu aniversário,

naquele dia.

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INAUGURAÇÃO DA CASA 

A 7 de março de 1987 foram inauguradas as instalações daFundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, depois de

quase um ano de sua instituição em Brasília. Jovens funcionárias da

universidade atiraram-se à tarefa de separar cartas e documentos.

Bibliotecárias recém-formadas, como Maried Carneiro e Rosane Rubim,

até hoje fiéis funcionárias da Fundação, catalogaram livros, documentos

e negativos fotográficos. Claudius Portugal, diretor-adjunto,

coordenando tudo, Adenor Gondim fotografando. Jacira Oswald foi aresponsável pelo projeto arquitetônico da reforma da casa. Ainda outras

pessoas, contratadas ou voluntárias, trabalharam para que a Fundação

começasse a funcionar.

Compareceram à festa de inauguração da Casa o presidente

 José Sarney e Marly, assim como o governador, já em fim de exercício,

  João Durval com Yeda, Antônio Carlos Magalhães com Aríete, o

governador de Brasília, José Aparecido de Oliveira com Leonor, WalterMoreira Salles, o ministro Marcos Vinícius Vilaça com Maria do Carmo,

Fernando Sabino, Aldemir Martins, Roberto Santos com Maria Amélia,

Ângelo Calmon de Sá com Aninha, Regina de Melo Leitão, Celso

Furtado, Renato Martins com Norma, Jorge Calmon, o recém-eleito

governador Waldir Pires com Yolanda, Mário Kertesz, Newton Rique com

Regina, Manuel Castro com Neusa, Edivaldo Boaventura com Solange,

Zitelmamm de Oliva com Lygia, Dmeval Chaves com Inas, Cláudio Veigacom Mary, Wilson Lins e Anita, entre tantas personalidades. Um dos

instituídores da Fundação, Edwaldo Pacote, veio do Rio para a festa e

ofereceu à Casa um belíssimo quadro do pintor Siron Franco. O último

coronel do cacau, Raymundo de Sá Barreto com Itassussê, vieram de

Ilhéus. Alfredo Machado 'com Glória chegaram do Rio de Janeiro.

Não citei aqui outros amigos da Bahia, amigos que nos

acompanham e estão presentes desde o início destas minhas memórias,como, por exemplo, Calasans Neto que pintou um enorme e magnífico

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retrato de Jorge, um velho marinheiro, do qual foram feitos cartazes;

Carybé que ofereceu para a Fundação uma escultura em placa de

concreto com figuras das três raças que formam a nossa identidade: o

índio, o negro e o branco. Colocada na parede azul da fachada, poucoacima de uma escultura de Tati Moreno, um Exu, protetor da casa.

Dom Timóteo Amoroso Anastácio e Luiz da Muriçoca, do

candomblé da Muriçoca, deram suas bênçãos: A essa casa de cultura 

que hoje abre suas portas, disse Dom Timóteo. Axé, disse Luiz da

Muriçoca, libertando uma pombinha branca que voou pela janela.

Emocionado, Jorge Amado proferiu algumas palavras de

agradecimento: ... o que desejo é que nesta Casa o sentido da vida da 

Bahia esteja presente e que isto seja o sentimento de sua existência. Que 

ao lado da pesquisa e do estudo, seja um local de encontro, de 

intercâmbio cultural entre a Bahia e outros lugares. 

 Junto à porta de entrada, uma placa de azulejos, desenhada por

Floriano Teixeira com texto de James Amado, diz:

CASA DE JORGE AMADO, NESTE LARGO DO PELOURINHO

CORAÇÃO DA BAHIA E DO BRASIL E DE SUA OBRA, FIEL À NOSSA

GENTE E AO NOSSO AMOR À LIBERDADE, TENDA DOS MILAGRES

PARA O ZELO DA CRIAÇÃO LITERÁRIA E O ESTUDO DA FICÇÃO

BAIANA E BRASILEIRA.

SEJA BEM-VINDO SE FOR DE PAZ

PODE ENTRAR

O ALMOÇO 

Do Pelourinho, terminada a cerimônia da inauguração, partiram

os convidados para nossa casa da rua Alagoinhas onde oferecíamos um

almoço.

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Convidamos cerca de trezentas pessoas, a começar pelo

presidente da República e sua comitiva, personalidades da Bahia e de

fora, artistas, instituidores da Fundação, amigos e jornalistas.

 Jorge convidara para o almoço personagens da vida baiana, nãolevando em conta se eram amigos ou inimigos, adversários políticos ou

não. Convidou a todos que quis convidar, indiscriminadamente. Não 

tenho nada com isso, disse ele ao lhe chamarem a atenção para a

confusão que poderiam dar esses encontros, cara a cara: Convido quem 

bem me parece e estou certo de que em minha casa não haverá brigas. 

As trezentas pessoas, com lugares marcados, em mesas

espalhadas pelo jardim, nos terraços e ao lado da piscina, aumentaram

para quase quatrocentas. Trabalho de Pedro Costa e Paloma,

responsáveis pela disposição das mesas e dos convidados.

Estava eu atendendo a uns e a outros, quando fui chamada à

porta. Os seguranças da guarda do presidente haviam barrado a

entrada de uma senhora que, sem saber do tal almoço, insistia em

entrar sem convite. Fui socorrê-la, tratava-se de Amália, nossa amiga de

Goiás, vinda diretamente do aeroporto, trazendo-nos mudas de

orquídeas para colocar nas árvores de nosso jardim.

Oferecemos aos convidados tira-gostos, pratos típicos e não

típicos, tais como: beiju de tapioca, acarajés e abarás servidos por

baianas, lindas. Mesmo com tanta gente a mais, o almoço deu e sobrou.

Almoço alegre e descontraído, todos, indiscriminadamente,

amigos e inimigos, alguns ferrenhos adversários políticos, riam,

esquecidos das desavenças. Ao passar por Jorge, seu xará Jorge

Calmon lhe disse ao ouvido: Só mesmo você, seu Jorge Amado, seria 

capaz de realizar tal milagre.

HÓSPEDES ESPECIAIS 

Aguardávamos a chegada de um jovem casal de chineses que

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seriam nossos hóspedes por uma semana, duas pessoas de nossa maior

estima: Ho-Ping e Ting-Li.

Conhecêramos Ho-Ping ainda bebê, na Tchecoslováquia, no

Castelo de Dobris, onde vivemos dois anos, exilados. Ho-Ping era filhode Eva Siao, fotógrafa alemã, e do poeta Emi-Siao, na ocasião

representante da China no Conselho Mundial da Paz, na

  Tchecoslováquia. Nessa ocasião, nascia Paloma e nos divertíamos

combinando um casamento de Ho-Ping o Pupsik, como era chamado

pela mãe, com a nossa Palomita.

Anos mais tarde na China, em plena Revolução Cultural, quando

eram cometidas as maiores injustiças e crimes inomináveis, Emi-Siao

foi preso e passou dezesseis anos na cadeia de onde saiu enfermo para

falecer em seguida.

 Ting-Li, esposa de Ho-Ping, era filha de Liu Chão Shi, que fora

presidente da República Popular da China e assassinado durante os

terríveis anos do domínio do Bando dos Quatro.

Filhos de traidores, proibidos, pelo regime, de estudar na China

enquanto meninos, eles só sentaram em bancos escolares quando, já

adolescentes, partiram para os Estados Unidos. Parentes que lá viviam

os chamaram responsabilizando-se por sua manutenção e estudos.

  Ting-Li e Ho-Ping conheceram-se na Universidade de Harvard,

em Cambridge, onde estudaram e se formaram. Casaram-se e

trabalham em postos de responsabilidade em grandes empresas, em

Nova York.

Chamei Eunice, nossa antiga empregada, e pedi-lhe que

preparasse o quarto de hóspedes.

 —  Desta vez você vai se atrapalhar, Eunice  —  disse-lhe  — , os

hóspedes são chineses, falam chinês.

Eunice riu:

 —  Atrapalho, nada... A senhora é que pensa. Se eles são

chineses eu vou entender o que eles falam.

 —  E você entende chinês, Eunice?  —  me assombrei com tal

revelação.

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 —  Entendo tudo. A senhora se lembra quando a dona Tisuka

andou por aqui? Pois eu entendia tudinho do que ela dizia, não perdia

uma palavra...

Eunice referia-se à consagrada diretora de cinema, TisukaIamasaki, brasileira, nissei, que fora, aqui na Bahia, assistente de

Nelson Pereira dos Santos, na filmagem de Tenda dos Milagres e vinha

muito aqui em casa.

Na estante de livros do quarto em que o casal dormia, Ting-Li

encontrou traduções de Dona Flor e seus dois maridos  em edição

americana e em chinês.

Nos intervalos dos passeios pela cidade, Ting-Li mergulhava na

leitura das duas traduções. Estávamos curiosos de saber a sua opinião

sobre a chinesa. Finalmente, ao fechar os livros, ela disse a Jorge o que

achara: As duas traduções são ótimas, apenas a chinesa é mais 

romântica. A americana é mais sensual. Ela explicou: Por exemplo, na 

versão chinesa, quando Dona Flor, depois do ebó que fez para mandar 

Vadinho embora o vê partindo, desesperada, o chama com o coração. Na 

versão americana ela o chama com a outra coisa... Fazendo-se de

desentendido, malandro, Jorge perguntou: Que outra coisa?  Ting-Li não

se apertou: Com aquilo que tem debaixo das calcinhas. E como se diz 

isso em chinês?, insistiu ele. Desta vez a moça encabulou, apenas riu.

Casal adorável, cheios de vida, voltamos a vê-los ainda algumas

vezes: na China, em Nova York e em Paris.

SÃO PAULO 

Infalivelmente, ao chegar a São Paulo, canto o início de um hino

que aprendi na distante infância: "São Paulo, terra querida, de gloriosas 

tradições, aceite de vossa filha as sinceras saudações..."  

Voltar a São Paulo sempre é motivo de satisfação para mim,embora há muito não reconheça a terra em que nasci. Minha casa na

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Alameda Santos número 8 já não existe, deu lugar a um enorme

edifício; a rua da Consolação e a avenida Rebouças, ruas dos meus

folguedos de criança, estão irreconhecíveis.

O motivo principal de minha alegria em São Paulo era revermeus irmãos, meu filho e minhas três netas: Adriana, Camila e Valéria.

Lalu costumava queixar-se das saudades do filho Joelson que

morava tão longe, em São Paulo. Eu achava graça da sua noção de

lonjura, até que, pensando bem, vejo que ela estava certa.

Falo em Lalu no passado, não toquei no assunto até agora,

porque me custa. Ainda me recuso a admitir que Lalu já não existe. Na

maior tristeza, peço licença para contar que em 1972, aos oitenta e oito

anos, Lalu nos deixou. Entrou em coma diabética, e em dois dias se foi.

Ao voltarmos do cemitério onde a deixamos, a única coisa que

me ocorreu para atenuar o sofrimento de Jorge, distender seus nervos — 

nem sei mesmo se tinha cabeça para pensar, o que fiz, certamente, foi

instintivo  — , enchi a banheira de água morna e, com um sabonete

perfumado, dei-lhe um banho, o banho que a mãe daria pela última vez

no seu filhinho.

Os AMIGOS CONFABULAM 

Ouvi muitas vezes Jorge dizer que jamais escreveria suas

memórias. Ele e seus amigos Pablo Neruda e Ilya Ehrenburgcostumavam dizer isso.

Em anos passados, no apartamento de Ehrenburg, em Moscou,

a rua Gorki número 8, os três amigos conversavam, nunca vou

esquecer. Somos homens de mil histórias, diziam, vivemos muito. Vimos 

coisas que pouca gente viu. Conhecemos povos os mais distantes.

Tivemos algumas alegrias e grandes decepções. Aprendemos a conhecer 

os homens, os falsos e os verdadeiros, a bondade e a maldade. Damos o que temos de melhor, por dias melhores. Temos compromissos com 

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Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho

nossos princípios, com nós mesmos. Nunca poderemos escrever um livro 

de memórias. 

Neruda costumava fazer apontamentos. Ehrenburg também.

  Jorge nunca fez apontamentos, sempre disse que o que não éimportante para ele não deve ser lembrado e as coisas importantes ele

guarda na cabeça, não precisa anotar.

Depois de sua morte, a filha de Ehrenburg, Irina, reuniu os

escritos do pai e publicou suas memórias em vários tomos.

Depois da morte de Neruda, Matilde, sua mulher, publicou,

como já se sabe, o livro de memórias de Pablo Neruda, Confesso que 

vivi. 

N AVEGAÇÃO DE C ABOTAGEM  

  Temos um pequeno e aconchegante apartamento em Paris.

Ainda uma vez o imperialismo americano  contribuiu para essaaquisição, pagando um adiantamento alto pelo contrato de publicação

de Tieta do Agreste. Foi a conta, o dinheiro deu certinho, nem um tostão

a mais, nem um tostão a menos. Já não precisamos ficar em hotéis

quando vamos a Paris.

É nesse apartamento, no Marais, ao lado do Sena, que

costumamos nos refugiar buscando paz para o nosso trabalho. Do

  janelão de nossa mansarda avistamos a Notre-Dame e a Torre Eiffel,podemos acenar para Georges Moustaki que do terraço de seu

apartamento, na Ile Saint Louis, nos acena. Foi nesse apartamento que

  Jorge teve o estalo, resolveu escrever, passar para o papel, os

apontamentos que trazia na cabeça, fervendo a ponto de transbordar.

Me entusiasmei:

 —  Você então resolveu? Maravilha! Vai escrever um livro de

memórias? Jorge revidou ao meu entusiasmo, bruscamente:

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 —  De jeito nenhum! Não vou escrever um livro de memórias,

não senhora. Não invente. Vou fazer um livro de apontamentos. Já

tenho até título e subtítulo.

Sentou-se à máquina, papel branco na frente, escreveu:NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM  —   Apontamentos para um livro de 

memórias que jamais escreverei. 

Paloma, Pedro e as meninas moravam em Paris. Pedro

trabalhava num escritório de arquitetura, Mariana e Cecília estudavam

lá.

Ao chegar ao nosso apartamento para brindar com o pai a

grande novidade, Paloma encontrou-o debruçado sobre a máquina, os

dois indicadores batendo com rapidez e força no teclado, como quem

está com pressa, várias anotações já escritas sobre a mesa.

Eu havia apenas começado a escrever Chão de meninos. Ia ter

que largar meu trabalho para ajudar Jorge. Paloma se ofereceu: deixa

comigo, mãe, eu passo tudo pelo computador, num instante, vou me

regalar. E pela primeira vez deixei de me deliciar batendo os originais de

 Jorge, entregando à minha filha a agradável tarefa.

 Jorge trabalhava dia e noite, as lembranças se atropelavam sem

ligar para a ordem cronológica dos fatos, numa corrida desabalada, de

quem quer chegar primeiro. As recordações apareciam inclusive

durante o sono e mesmo dormindo ele tomava notas no primeiro pedaço

de papel que encontrava à mão.

A coisa tomou tal vulto que Paloma e Pedro resolveram dar uma

ordem nos capítulos. Faziam fichas de cada assunto tratado e as iam

pregando na parede da sala. Assuntos e datas colocados em cartões de

cores diferentes davam ao quadro a idéia de um quebra-cabeça, de um 

 puzzle. Isso facilitaria muito a ordem dos capítulos, pois, ao terminar o

livro, tudo passado a limpo, Paloma faria um índice que remeteria as

pessoas citadas à página de citação.

Carmem Balcells, agente literária de Jorge, chegara de Barcelona

para falar com ele e se assombrou ao deparar-se com o estranho e

enorme quadro de fichas coloridas, presas com tachas de cores

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variadas, que cobria a parede: Não posso acreditar, disse encantada.

Nunca vi organização semelhante. Uma beleza! É único!  

Antes de sentar-se para trabalhar, todas as manhãs, Jorge

consultava o quadro e partia para novas aventuras.

FÔLEGO PARA FALAR SOBRE A DESCOBERTA DA

AMÉRICA 

O livro já andava pela metade, quando Jorge recebeu uma

proposta da Itália. Queriam uma história sobre a descoberta da

América, para um pequeno livro. O assunto do dia na ocasião eram as

comemorações dos 500 anos da Descoberta da América. A proposta que

os italianos faziam era sedutora e Jorge resolveu tomar um fôlego de

suas anotações, seria até bom, e em poucos dias escreveu: A descoberta 

da América pelos turcos.

VIAGEM PELO MAR NEGRO 

O Navegação   já passava das quinhentas páginas. O que tenho 

agora a contar é pouco, quase nada, disse Jorge. Preciso terminar e sair,

tomar um pouco de ar, estou muito cansado. Fez um cálculo de quanto

tempo ainda precisava para encerrar o trabalho. Num mês, não mais, eu 

liquido o assunto e então vamos sair por aí afora de navio, disse ele.

Convidamos Misette, ótima companhia, velha companheira de viagens,

e compramos passagens para zarparmos dentro do prazo previsto.

Faríamos uma bela excursão pelo mar Negro.

O Cunard Princess  sairia do porto de Atenas, viajaríamos pelo

mar Egeu, navegaríamos pelo mar de Mármara, atravessaríamos o

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estreito de Bósforo, antes de entrarmos no mar Negro

  Jorge deu o livro por terminado, entregou-o a Paloma para o

remate final, com o devido índice dos personagens. Mesmo tendo dado o

livro por terminado, eu senti que ele ainda não estava satisfeito. Jorgeestava precisando de um descanso depois de escrever seiscentas

páginas. Essa excursão era necessária, providencial.

Os dedos feridos das batidas nos teclados da máquina iam

cicatrizar e, ao voltar, se ainda quisesse trabalhar, já estaria em

condições.

ATENAS

Viajamos para a Grécia de avião, Jorge deixou a máquina, eu o

computador, íamos bem leves sem compromissos. Ficaríamos dois dias

em Atenas, hóspedes de nosso amigo, o embaixador do Brasil na Grécia,

Alcides da Costa Guimarães, filho. Na mansão da embaixadaencontramos ainda um querido amigo, cônsul do Brasil em Zurich,

René Aguenauer, que viera para nos ver.

Nós já conhecíamos Atenas mas assim mesmo passeamos com

nosso anfitrião e René, vendo coisas que só a gente da terra tem o

privilégio de conhecer.

Durante os passeios percebi em Jorge aquele olhar distante,

olhos de quem não está nem aí, olhar muito meu conhecido. —  Está pensando no livro? Claro que estava, pergunta óbvia.

 — Logo que embarcarmos vou fazer uma nota de um negócio que

lembrei e mandar para Paloma por fax  — respondeu-me ele.

 Jorge escreveu a nota e foi escrevendo outras e mais outras de

fatos que lhe ocorriam e que ele não queria deixar de registrar. Não

tendo máquina de escrever ele escrevia a mão e em seguida eu passava

a limpo, com letra bem legível para facilitar o trabalho de minha filha.Na pressa de escrever, sua caligrafia, verdadeira garatuja, era de tal

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maneira complicada que, por vezes, nem ele mesmo a entendia.

Cada remessa de capítulos pelo fax do navio ia acompanhado de

um bilhete de desculpas: Palé, minha filha, vá me perdoando tanto 

trabalho que te dou... Em Paris, Paloma passava tudo a limpo e devolviapara o navio as páginas para uma última revisão do pai. Quando

aconteciam novas correções feitas por ele, o que era comum, o trabalho

de ida e volta era dobrado.

O Cunard  fez rápidas escalas em várias ilhas gregas. Em

nenhuma delas Jorge desceu, absorvido no trabalho. Eu saltava com

Misette, nem via nada direito na preocupação de voltar, dar assistência

a ele.

Agora passaríamos um dia inteiro em Istambul. Com Misette

havíamos estado na Turquia e adorado.

Insisti com Jorge para que saltasse conosco, ele havia gostado

tanto de Istambul... mas não houve jeito: Vão vocês e depois me 

contem... Não adiantava insistir, ele estava ocupado demais com as

provas recém-chegadas, remetidas pela filha.

Em Istambul, Misette e eu fizemos o recorrido da cidade,

revendo coisas que tanto nos agradara. Resolvi entrar numa livraria. Da

vez anterior havíamos encontrado várias traduções de livros de Jorge,

edições piratas. Quem sabe, ainda há outras, disse a Misette. Eu

lembrava bem do logotipo da editora que publicara os livros e fui

procurá-lo na estante de traduções estrangeiras. Encontrei um livro de

 Jorge, localizei-o pela fotografia na contracapa, aliás, fotografia feita por

mim. Perguntei ao livreiro se não havia outros livros do mesmo autor e

ele mandou buscar mais um no depósito.

  Jorge fez uma pausa no trabalho para folhear as edições de

Tereza Batista e Tieta do Agreste, em língua turca.

Num bilhete, Paloma nos contou ter recebido uma chamada da

Francetelecom estranhando o envio diário de fax de 15 a 20 páginas.

Estranhavam sobretudo pelo preço excessivo de fax enviados para

navios.

A próxima escala foi no porto de Varna, na Bulgária. Nem em

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Varna Jorge saltou. Quando muito foi à amurada do navio dar uma

espiada, não viu nada.

Peço licença para não entrar em pormenores da viagem, das

festas, dos portos de escala, das graças de Misette. Aqui o cruzeiroentra apenas como detalhe, não é difícil perceber, do que foi o trabalho

de Navegação de cabotagem. 

Em Odessa Jorge resolveu descer, tinha mandado as provas

para a filha, esperava-as de volta para correções.

 — Vou desenferrujar as pernas  — disse.

Odessa, na Ucrânia, era nossa penúltima escala, antes de Ialta,

quando então regressaríamos.

Em Odessa fomos ver as impressionantes escadarias que

aparecem no filme: O encouraçado Potenkim e voltamos andando até o

navio.

Nem bem pisou no navio, Jorge lembrou de outras histórias e foi

lembrando de outras e mais outras até chegarmos a Veneza, fim de

nossa excursão.

Na véspera de nosso desembarque, acompanhando os novos

capítulos, Jorge mandou um bilhete que dizia: Palézinha, meu amor.

Aqui vai o último fax. O derradeiro. Juro pela alma de tua mãe que não 

haverá outro...

No mesmo dia, chegou um bilhete de Paloma: Paizinho, querido.

Jure pela alma de tua mãe que a minha ainda está viva...

VENEZA 

Perambulávamos beirando os canais de Veneza, sentando na

Piazza San Marco, praça de nosso encanto. Fomos parar na Basílica dei

Santi Giovanni e Paolo. Lembramos que nessa igreja havíamos assistido

às obséquias de Stravinski, espetáculo inesquecível!Os olhos de Jorge brilhavam.

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 —  O enterro de Stravinski está no livro?  — provoquei, sabia que

não estava.

 —  Vai estar  — disse ele.

PEÇO L ICENÇA AO MESTRE 

Com a devida licença do Mestre, aqui transcrevo o último

capítulo que ele escreveu embora não se encontre na página 638, a

última do livro.A nota escrita em Veneza faz parte de três funerais que o

impressionaram, se intitula KARACHI e está na página 341:

Com Aríete Soares acompanhamos em Veneza os funerais de 

Stravinski, as obséquias na Basílica dei Santi Giovanni e Paolo, oficiadas 

 por meia dúzia de padres católicos e outros tantos popes ortodoxos, uns e 

outros na pompa do ritual, a música do desvario, o incenso em labaredas,

o pássaro de fogo nos turíbulos, o coro em língua russa, coisa de ver-se e de ouvir-se. A gôndola com o esquife singra o rio dei Mendicanti no rumo 

do cemitério, a marcha fúnebre se evola da nave da Basílica, cobre os 

canais e os palácios da Sereníssima. 

Ao receber esta última e derradeira nota, Paloma mandou seu

último e derradeiro bilhete: Paizinho querido: adorei a nota, está linda 

demais! Só quero saber onde é que ficou a alma de minha mãe. Foi para 

o brejo? 

VOLTO A SÃO PAULO 

Meus irmãos já morreram. Eu sou a última e única filha de dona

Angelina e de seu Ernesto que ainda teima em viver.

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Em São Paulo tenho sobrinhos, alguns primos e meu filho Luiz

Carlos com sua família que, por viverem em São Paulo, muito longe,

segundo Lalu, e por circunstâncias da vida que nos impede, os vejo

pouco. Luiz Carlos e a família, quando podem e quando coincideestarmos aqui na época, vêm passar uns dias conosco, na Pedra do Sal

ou na casa da rua Alagoinhas. As meninas, hoje moças, lindas, já

viajaram conosco pela Europa. Adriana e Camila já se formaram e

Camila até já se casou, nos dando a honra de sermos seus padrinhos.

Valéria, a mais nova, também em breve estará formada.

Continuo tendo motivos de sobra para me entusiasmar com as

viagens a São Paulo. Além de minha família, Joelson e Fanny, como já

foi dito, moram lá há muitos anos, assim como os filhos, nossos

sobrinhos, André, Paulo e Roberto. Nem têm conta os amigos de São

Paulo, são tantos que não me atrevo a enumerá-los, a lista seria grande

demais e no fim eu acabaria esquecendo alguém, talvez dos mais

importantes, como Jô Soares e Saulo Ramos, por exemplo.

Chegamos a São Paulo naquele ano de 1993, como sempre,

tendo pela frente um programa enorme, não posso esquecer.

Devíamos fazer uma tarde de autógrafos, Jorge assinando A

descoberta da América pelos turcos, e eu, Chão de meninos. O

lançamento de nossos livros seria na mesma livraria, no mesmo dia, na

mesma hora.

Do aeroporto seguimos diretamente para a livraria onde uma fila

enorme estava à nossa espera. Assinamos sem parar durante várias

horas. Só chegamos ao hotel tarde da noite, mortos de cansaço. Ainda

teríamos em São Paulo dois dias puxadíssimos de entrevistas e

programas de televisão. A duras penas, reservamos o horário do almoço

para estar com Luiz Carlos e as meninas, pois à noite iríamos a um

grande jantar em homenagem a Jorge, oferecido pelo Rotary Club.

Depois de mais um dia esfalfante, exaustos, chegamos de volta à

Bahia. Coisa boa chegar em casa, não há nada melhor. Costumamos

dizer que o melhor de uma viagem é retornar à casa da gente. Nesse dia,

no entanto, não me senti tão aliviada, não estava satisfeita. Jorge

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viajara calado e, embora não se queixasse, percebi que ele não se sentia

bem, mas preferi atribuir isso ao seu pavor a viagens aéreas.

Não havia ninguém nos esperando em casa. João e Rízia, que

moravam conosco, ainda não haviam chegado. Apenas Jorginho, nossoneto de nove anos, filho de João e Rízia, nos recebeu. Jorge queixou-se,

sentia-se incômodo, não quis jantar, foi deitar-se. Ao vê-lo estirado na

cama, gemendo, imaginei que ele podia estar tendo um enfarto. Não

havia muito tempo, Calasans Neto tivera uma ameaça de enfarto e os

sintomas haviam sido esses que Jorge sentia agora. Fora Dr. Jadelson

Andrade quem o socorrera. Conhecêramos o médico nessa ocasião.

Corri para o telefone, chamei-o.

Ele acabava de chegar em casa, vindo do consultório. Mal tirara

o paletó quando o telefone tocou. Eu o chamava, no maior desespero.

Enquanto eu falava, na sala, Jorginho, no quarto, fazia companhia ao

avô, vendo-o se retorcer de dor. Ciente do que se passava, Jadelson

deu-me o telefone do Hospital Aliança: Chame uma ambulância com a 

maior urgência! Estou indo para aí. 

  Jorge foi salvo, não tenho dúvida, graças ao atendimento

imediato que teve. Jadelson veio da Barra ao Rio Vermelho em menos

de quinze minutos.

Debruçado sobre o paciente, examinando-o, o médico transmitia

ordens e eu as executava: telefonei para o hospital dando instruções,

providenciando um lugar na UTI, pedindo pressa à ambulância que já

estava a caminho mas custava a chegar. Mandei Jorginho descer a

ladeira, ir ao encontro dela, talvez perdida na encruzilhada, lá embaixo,

para indicar o caminho... E foi o que aconteceu. Jorginho voltou na

ambulância orientando o motorista que chegou em seguida.

Há algo que me protege em momentos difíceis. Supero o

desespero, não me entrego, conservo o sangue-frio, não perco a cabeça,

colaboro. Minha mãe diria ser a proteção da estrela que me ajuda, mas

a quem chamei naquela noite, ao ver Jorge torcendo-se em dores,

sofrendo, escapando de meus braços, vendo-me impotente diante da

morte, foi dele que lembrei, de Deus. Não parei de repetir seu nome, ai

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meu Deus! Ai meu Deus do céu!

No Hospital Aliança, hospital cinco estrelas, com a assistência

permanente de Jadelson Andrade, honra seja feita, Jorge conseguiu

sair-se dessa.Comentando com Paulo Sérgio Tourinho, dono e responsável por

esse bem aparelhado hospital, inigualável de beleza e bom gosto, com a

obra de Francisco Brenand presente a começar do piso, teto e paredes,

às esculturas espalhadas por toda a parte, até a capelinha, única,

disse-lhe do meu encanto por esse hospital: Chego até a me atrapalhar 

ao falar nele, chamando-o de hotel cinco estrelas, disse-lhe. Paulo Sérgio

riu: E preciso sempre acrescentar que são cinco estrelas para todo 

mundo, para todas as camadas sociais. Atendemos aqui pobres e ricos,

você pode constatar com seus próprios olhos, é só andar pelos corredores.

Ao projetá-lo, essa foi a intenção de meu tio, Pâmphilo de Carvalho, e a 

minha e, graças a Deus, é o que está acontecendo. Pâmphilo de Carvalho

fora colega de colégio de Jorge e veio do Rio para visitá-lo.

Depois de uma boa temporada no Hospital Aliança, refeito sem

precisar ser operado, Jorge voltou para casa.

Chega a ser monótono, mas eu gosto de repetir que dos males,

por maiores e negativos que sejam, sempre tiro um lado positivo deles.

Desta vez, do enfarto de Jorge que nos pegou de surpresa, quase me

levando ao desespero, salvamos o lado positivo: descobrimos um novo

amigo, um amigo para todas as horas, assim como devem ser os

grandes amigos. Jadelson Andrade, o médico, com sua dedicação,

competência e amor, passou a fazer parte de nossa vida. Como se ele

apenas não bastasse, trouxe-nos Tânia, sua mulher, médica ela

também, doce e adorável criatura. Com eles temos passado bons

momentos, juntos estivemos em alegres temporadas em Paris.

Peço uma licencinha para contar, pouca coisa, mas, creio, vale a

pena:

Caminhávamos, os quatro, flanando pelas ruas de Paris, e era

exatamente o dia da música. Por toda a parte encontravam-se grupos e

mesmo solistas tocando instrumentos, os mais variados. Pessoas

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caracterizadas, outras não, a gente parando aqui e ali. A Place des

Vosges, uma das mais charmosas praças de Paris, estava minada de

músicos, quando, não mais que de repente, meu coração bateu forte,

senti calor nos pés, seria a timbalada que se aproximava? A batida fortee o ritmo não me enganavam. Compenetrados, num compasso bem

marcado, os músicos, que nem brasileiros eram, apenas jovens

franceses, aficionados de nosso embalo, recém-chegados de um

aprendizado na Bahia, batiam forte no timbau, no surdão e no repique,

trazendo o Brasil até nós. Como resistir? De que jeito? Vambora dançar,

Jorge?, convidei por convidar, já certa de sua recusa. Antes que eu

insistisse, Jorge tratou de sentar-se, Tânia o acompanhou, ficaram

assistindo de camarote. Não hesitei, já que ele não dança eu danço

sozinha. Caí no samba de pé, mas não fiquei só, tive parceiro:

contagiado, ele também, pelo ritmo, Jadelson me acompanhou. Juntou

gente em volta, alguns estrangeiros até tentaram nos seguir no

requebro mas, qual! Cadê o molejo de cintura e a picardia no passo? Só

mesmo um brasileiro é capaz. Traz a coisa no sangue.

Pena que naquele tempo não havia ainda surgido a dança da 

bundinha..., pilheriei aqui em casa, relembrando aquele dia. Jorge que

ouvia calado resolveu entrar na conversa: A dança da bundinha? Nada 

me surpreenderia, Zélia é capaz de tudo... 

Dizemos sempre que temos inúmeros conhecidos, pessoas que

estimamos, mas a lista dos amigos íntimos não é tão grande assim.

Esses podem ser contados nos dedos das mãos. Pois Jadelson e Tânia

entraram nessa lista, por todos os merecimentos.

NERUDA VEM SE DESPEDIR 

  Já se passaram muitos anos e eu me recordo, como se fosse

hoje, da chegada de Matilde e Pablo Neruda à Bahia. Ele vinha sedespedir. Não disse, mas tudo indicava.

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Ainda no aeroporto, enquanto aguardávamos a bagagem, ele

assumiu um ar solene e nos disse: Não me perguntem por ninguém,

morreram todos. Somos dos raros que ainda estão vivos. Vim para 

conversar, matar saudades, ouvir uns atentos da comadrita. A notícia da chegada de Neruda à Bahia correu rápida e a

imprensa invadiu nossa casa. Vieram poetas e literatos, amigos nossos,

como, por exemplo, Ildásio Tavares, Fernando Batinga e Carlos Eduardo

da Rocha, o jovem jornalista Guido Guerra, por alcunha o Papagaio 

Devasso, certamente por não ter papas na língua, e à frente ainda um

amigo, o historiador Luiz Henrique Dias Tavares. Organizaram em

seguida um recital de poesia na Escola de Teatro. Fazer um recital

nesses dias de Bahia não estava nos planos de Pablo, ele viera nos ver,

conversar, descansar. Aceitou, no entanto, ter um encontro com

estudantes, artistas e poetas como também concordou em passar

algumas horas na sede da Ordem dos Trovadores, no Largo 2 de Julho,

onde Rodolfo Coelho Cavalcante e outros repentistas e trovadores o

saudaram numa festa popular que, verdadeiramente, o encantou.

Com sua voz pausada, Neruda declamou poemas, falou à

multidão de admiradores que lotaram as dependências da Escola de

 Teatro. Empolgou com seus versos e com suas respostas às perguntas

que lhe foram feitas após o recital, perguntas quase todas políticas, às

quais ele respondeu com a coragem que sempre lhe foi peculiar.

Em nossa casa, em reunião familiar, pouca gente, Zitelman Oliva

e Ligia, James e Luiza, Luiz Henrique com Laurita, conversamos muito,

Matilde, com sua bela voz cantou uma canção de Pablo: "Príncipe de los 

caminos, hermoso como un clavel, enbriagador como el vino, era dom 

José Miguel..," Guardei na memória apenas esse verso, nunca mais

ouvimos a canção que era belíssima.

Perguntei a Pablo se já tinha terminado o livro de memórias.

Lembrava que por todas as partes onde andáramos ele costumava, vez

ou outra, recolher-se a um canto isolado e tomar notas num caderno.

Pablo riu. Aprenda mais essa, comadre, um livro de memórias jamais 

tem fim. A vida continua. Novos fatos vão acontecendo. Um livro de 

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memórias de pessoas como nós, Jorge e eu, não pode ter fim. Nós 

vivemos a vida ardentemente. Vidas cheias de acontecimentos, bons e 

maus, sofremos as piores injustiças, desfrutamos as maiores alegrias e 

recompensas, viajamos e conhecemos esse mundo inteiro, temos amigos que nos esperam onde quer que cheguemos, aprendemos a compreender 

os homens, a perdoá-los, a amá-los, aprendemos a arrancar de nossos 

corações os maus sentimentos, não precisamos ter inveja de ninguém, ai,

a inveja! Só maltrata a quem a sente, somos amados por nossos leitores 

e até por pessoas que nunca leram uma só página nossa, mas nos 

amam... Um livro de memórias nosso, de Jorge e meu, repetiu, não pode 

ter fim. Nem nosso, nem de ninguém, riu. Não sei quando publicarei o 

meu, se é que o publicarei um dia. 

Ao dar-nos tão importante lição de vida, Pablo estava longe de

imaginar que um dia sua comadre também acabaria escrevendo livros,

livros que, inclusive, contariam suas histórias.

C ONFESSO Q UE V IVI  

Foi Matilde quem, depois da morte de Pablo, conseguindo driblar

a sanha dos perseguidores de Pablo, dos assassinos de Salvador

Allende, levou clandestinamente os originais do livro de memórias de

Pablo para a Venezuela. Com a ajuda de Miguel Otero Silva, dono de um

 jornal venezuelano, velho amigo de Neruda, compôs o livro Confesso que vivi... 

Quando o livro estava quase pronto, Matilde veio à Bahia

aconselhar-se com Jorge sobre o problema de editores estrangeiros que

desejavam publicar a tradução. Ficou apenas dois dias conosco. Em

seguida à sua partida recebemos, aqui em casa, a visita de um policial

do FBI. Tinham visto, em notícia de jornal, a foto da viúva de Neruda

em nossa casa. Queriam saber quando ela chegara. Ela esteve aqui conosco e já não está, veio legalmente, não tinha por que esconder-se,

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respondeu Jorge, secamente, ao policial. Meio sem jeito ele explicou que

a polícia estava intrigada pelo fato de Matilde Neruda não estar

registrada na lista de entrada do aeroporto. Nessa lista da polícia não

constava nenhum Neruda, apenas Matilde Urrutia.Admira-me que a polícia não saiba, disse-lhe Jorge, que nos 

 países da América Latina, ao casar-se, a esposa conserva o nome do pai 

e acrescenta, se quiser, o nome do marido. No caso de Matilde seria 

Urrutia de Neruda ou viúva de Neruda. Certamente ela não quis 

acrescentar, ao seu nome de solteira, o do marido. Depois desse

esclarecimento, não nos importunaram mais.

Aqui estou pensando em Pablo, recordando seus sábios

conselhos: Um livro de memórias não pode ter fim. 

Minha intenção era parar por aqui, já que um livro de memórias

não pode ter fim e eu já contei histórias até demais.

Abusando da paciência dos leitores, ainda uma vez, peço licença

para, em breves palavras, contar que a festa dos oitenta anos de Jorge,

na Bahia, foi das mais belas e emocionantes que eu já vi. Aniversário de

número redondo que nos trouxe amigos do Brasil inteiro e do mundo

todo.

Do Rio de Janeiro veio a família Caymmi e cantou para o velho

amigo, no palco armado no Largo do Pelourinho. E nesse palco, quantos

mais cantaram? Maria Betânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Waltinho

Queiroz, Daniela Mercury, Margareth Menezes e tantos e tantos outros

que, com o povo da Bahia lotando a grande praça, enfrentando até a

chuva que caiu de repente, sem arredar pé, entoaram numa só voz o

"Parabéns pra você..."

Aproveitando a licença pedida, vou na cola para contar que a

Fundação Casa de Jorge Amado vai de vento em popa. Já festejou seu

décimo aniversário e, sempre sob a orientação de Myriam Fraga,

Claudius Portugal e também de Germano Tabacof, ela cumpre o seu

objetivo, segue o seu destino.

Centro de cultura no coração da Bahia, num Pelourinho

restaurado, lindo, alegre, onde o povo canta e dança nas praças e

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ladeiras, a Fundação Jorge Amado edita livros, publica revista, promove

exposições, orienta estudiosos.

Num galante café-teatro recém-inaugurado, no recinto de

exposições, no andar térreo, realizam-se conferências, exibem-se filmes,apresentam-se peças de teatro e toma-se um cafezinho. Na parede, um

pôster com um texto de Jorge, texto esse escrito para o programa de

uma exposição de xícaras pintadas por artistas:

Numa xícara de café,

pode-se colocar a beleza do mundo.

Numa xícara de café,

pode-se sentir o sabor amargo

e doce da vida.

Para meu encabulamento, a direção da Casa decidiu

homenagear-me, dando ao café-teatro o meu nome.

VOLTO A NERUDA 

Assim como Neruda nos pediu: Não me perguntem por ninguém,

 já morreram todos, eu também pediria que não me perguntassem pelos

amigos que estiveram ao meu lado enquanto escrevi estas memórias. Os

amigos que me fizeram companhia, provocando riso e às vezes pranto,permitindo-me voltar a reviver o passado, morreram quase todos. Diria

apenas que a primeira a partir foi Norma e o último Carybé. A chaga

ainda está aberta.

NA CASA DO RIO VERMELHO 

Da janela de meu gabinete, onde escrevo, vejo Zuca se aproximar

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entre as árvores do jardim.

 —  Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra

hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a

Deus! Choveu muito, a senhora sabe, e as danadinhas das formigasdepois da estiada costumam aparecer... Acabei de descobrir um

formigueiro grande, ali, bem nos pés do Exu.  — Zuca apontou o Exu.  —  

  Já dei cabo delas, não sobrou nenhuma...  —  concluiu, satisfeito.

Encompridei conversa:

 — É verdade, tem chovido muito. Por isso as formigas aparecem,

não é, Zuca?

 —  Isso mesmo. Dona Zélia entende dessas coisas, entende

mesmo. Com as chuvas as danadinhas voltam...

 —  E os coqueirinhos, Zuca?

 —  Já comprei o coqueirinho que a senhora pediu, trouxe hoje,

está aí.

Eu pedira a Zuca que me conseguisse dois coqueirinhos para

plantar no lugar de dois velhos coqueiros, derrubados por um temporal.

 —  Só trouxe um? Eu pedi dois...

 —  O outro eu trago amanhã.

 — Muito bem, Zuca, então vá preparando a terra, abrindo a cova

para plantar enquanto eu fecho o computador. Vou em seguida, quero

estar lá...

 —  A senhora quer plantar hoje mesmo? — admirou-se Zuca.

 —  Sim, senhor. Hoje mesmo. Qual é o problema? Zuca coçou a

cabeça:

 —  Não pode ser amanhã, não, dona Zélia?

 —  Amanhã a gente planta o que você vai trazer. Este vai ser

plantado hoje, sem falta. Agora!  — enfatizei.

Discretamente, Zuca olhou para o céu, meneou a cabeça e, num

meio sorriso, monologou: Dona Zélia é tão interessante...

Na casa do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, outubro de 1998.

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