zelia gattai - um chapéu para viagem

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Para Jorge, nos seus 70 anos, com amor. Para Lalu e seu Joo, com saudades. Para Alice Raillard, Anny Claude Basset, Amlia Hermano Teixeira, Antoinette Hallery, Auta Rosa Calasans Neto, Elcy Santos Freire, Glria Machado, Helosa Ramos, Lcia Victria Peltier de Queiroz, Luza Amado e Maria Clarinda Lima de Carvalho, que viram este livro nascer e crescer.

"Dona Eullia uma pessoa original!" (opinio de dona Angelina) H pouco mais de trs anos, rendendo-me afetuosa presso de meus filhos Paloma e Joo Jorge para que escrevesse as histrias de minha infncia que repetidas vezes lhes contara no correr dos anos, decidi-me a faz-lo, tendo comprovado ser muito mais fcil contar do que escrever. Conversa puxa conversa, de repente me encontrei com quase 300 pginas escritas mquina. Mostrei-as a Jorge Amado, meu marido, certa de que ele iria rir de meu atrevimento ("menina atrevida", como dizia dona Angelina, minha me, quando eu fazia qualquer coisa inesperada). Para surpresa minha, ao contrrio do que eu imaginara, Jorge aconselhou-me a reunir os originais em livro. Assim nasceu Anarquistas, Graas a Deus, editado por Alfredo Machado (Record), em novembro de 1979. A publicao desse livro deu-me muitas alegrias, pois interessou a inmeras pessoas no Brasil e no estrangeiro. A crtica foi generosa tanto aqui como em Portugal; recebi centenas de cartas que me comoveram, reencontrei amigos de infncia, ganhei amigos novos. Aos que me perguntaram quando publicaria novo volume de memrias, respondi que com Anarquistas, Graas a Deus iniciara e encerrara minha carreira literria. Era essa realmente minha inteno. Acontece que em 1981 comemorou-se o cinqentenrio da publicao do primeiro romance de Jorge, e em agosto de 1982 ele completaria 70 anos de idade. Muitas manifestaes de carinho lhe esto sendo prestadas por motivo do duplo aniversrio. Que presente poderia eu dar a meu marido em ocasio to especial? Ocorreu-me a idia de homenage-lo narrando um pouco de sua vida, sobretudo de sua infncia, reproduzindo histrias ouvidas da boca de seus pais, Coronel Joo Amado de Faria e dona Eullia Leal Amado, seu Joo e Lalu, duas pessoas extraordinrias. Achei que presente melhor no podia lhe dar do que o relato de minha convivncia com seus pais e seus irmos, num perodo extremamente fecundo de nossa vida, de 1945 a 1948. Assim nasceu este livro, no qual comecei a trabalhar em 1980 e que s agora consegui concluir, tendo sido muitas vezes interrompida pelas contingncias de nossa vida, sobrecarregada de viagens e compromissos. Escritos e revisados os originais, faltava ttulo que os encabeasse. Optei por Um Chapu para Viagem, j que o livro comea com uma viagem e termina com outra, viagens fundamentais em minha vida. Para cada uma delas ganhei um chapu, dois belos chapus que impressionaram e inquietaram Lalu, preocupada que me dessem "quentura na cabea". Em verdade, na hora de partir de So Paulo para o Rio de Janeiro e ao deixar o Rio para a Europa, em ambas as viagens tinha a cabea quente, estourando. No devido ao chapu, claro! Zlia Gattai

DEZEMBRO DE 1945 VSPERA DE VIAGEMTudo arrumado, malas prontas, o apartamento com ar de abandono. Partiramos no dia seguinte para o Rio de Janeiro. Jorge acabara de ser eleito deputado federal por So Paulo. Convocado meses antes pelo Partido Comunista, do qual era membro, foi-lhe comunicado ter sido seu nome um dos escolhidos para compor a chapa de candidatos do Partido a deputado federal por So Paulo, nas eleies marcadas para 2 de dezembro daquele ano de 1945. Jorge relutara em aceitar, no nascera para poltico profissional, a atuao parlamentar no o tentava. O que desejava era escrever sua nica vocao , viajar, ser dono de seu tempo. No conseguira, no entanto, safar-se da tarefa; os argumentos apresentados convenceram-no: seu renome de escritor ampliaria a chapa, sua popularidade arrastaria votos. Concordou em ser candidato, com uma condio: eleito, renunciaria em seguida ao mandato, cedendo a cadeira no Parlamento a seu suplente. Os dirigentes tinham razo: Jorge foi eleito com votao excelente; pessoas que no votariam em outro candidato comunista votaram no escritor. Detalhe curioso: obteve a maioria dos votos da colnia judaica, apesar de concorrer tambm a uma cadeira no Congresso Nacional um judeu ilustre, Horcio Lafer. Jorge esperava apenas chegar ao Rio para concretizar sua renncia. Em seguida partiramos para o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, em necessitadas e merecidas frias. Na viagem para o Rio faria minha estria em avio. Jorge me perguntara se estava com medo de voar e eu lhe dissera que no tinha medo de avio nem de nada; nem mesmo de enfrentar Lalu, acrescentei. Lalu era a forma carinhosa com que marido e filhos tratavam dona Eullia Leal Amado, me de Jorge. J sabia tudo a seu respeito de tanto ouvir falar; tudo e mais ainda, pois seu filho mais velho divertia-se em me assustar: Lalu fogo! dizia ele. V se preparando! Matreira, sabida como ela s! Tem sangue ndio; desconfiada e curiosa... se prepare para passar no exame... Vai te espremer, te apertar no torniquete, querer saber tudo de tua vida... Jorge me contara que, havia muitos anos, Lalu perdera a audio: V se preparando para gritar se quiser que ela te oua, mas, sobretudo, para ouvir... Minha me gosta de contar casos dos filhos, e se voc der corda ela vai longe... Tome cuidado, nunca se atreva a fazer queixas de mim ria divertido. Para dona Eullia no existe nada no mundo to perfeito quanto os trs filhos. Ela mente um pouquinho... disse e foi logo corrigindo: mente, no, inventa histrias fantsticas! Tem uma imaginao prodigiosa!

Essa fora a maneira que Jorge encontrara para me apresentar sua me e o fazia com graa, entre risadas. Confusa, eu no sabia se devia lhe dar ouvidos ou no. Do Coronel Joo Amado, o pai, as informaes eram mais alentadoras: O Coronel alegre, bastante franco, s vezes um pouco rude, diz as coisas na cara... S fala aos berros. Acostumado a gritar com os jagunos no tempo da conquista da mata, continuou por hbito e por necessidade, com o problema da surdez de mame. Boa pessoa, um grande corao. Jorge no escondia sua admirao pelos pais. Naquela ltima semana de So Paulo, ele lhes telefonara vrias vezes para o Rio, onde viviam, hspedes de um pequeno hotel na Rua Santo Amaro, o Hotel pera. Chamadas interurbanas, difceis de serem obtidas, com horas e horas de espera, requerendo um tom de voz especial, gritado e prolongado, voz de longa distncia: ... ... Chegamos no domingo... meio-dia mais ou menos... Olhe! Vou casado! J sabia?... o nome dela Zlia... .... Zlia... Olhe, diga minha me que ela vai gostar da nora... o senhor tambm, claro... diga a Joelson para ir com vocs ao aeroporto...

UM CHAPU PARA VIAGEMFanny Rechulski, secretria de Jorge, quis saber qual chapu eu usaria na viagem. Chapu? admirei-me. No cogitara disso, nem pensara usar chapu... Havia muito tempo que no possua nenhum. E voc acha que preciso chapu para viajar de avio, Fanny? Bem, preciso no ... mas cairia bem. O chapu sempre d um toque chique, d mais importncia... Teus sogros no vo esperar vocs no aeroporto? Os velhos e Joelson tambm... respondi, rindo para Fanny com malcia. Joelson, o segundo irmo de Jorge, estudante de Medicina, havia pouco estivera em So Paulo e tnhamos pilheriado, inventando um imaginrio casamento de Fanny com ele. Joelson regressara para o Rio mas a brincadeira perdurava. Fanny j trabalhava para Jorge havia algum tempo, quando eu me mudei para o apartamento que ele ocupava na Avenida So Joo, em agosto de 1945. A partir daquela data, tornara-se pblica a nossa ligao. A notcia espalhou-se rapidamente e no faltaram comentrios.

Bastante relacionada e por dentro dos disse-que-disses, em geral desfavorveis, Fanny me punha a par das ltimas novidades. A minha unio com Jorge incomodara muita gente, transformara-se num pequeno escndalo, repercutindo nos meios de esquerda e em portas de livrarias. Agora amos partir deixando para trs todos aqueles mexericos. Ao regressar do almoo, naquela tarde, Fanny trouxe uma caixa de papelo redonda, dentro dela um chapu de feltro bege. para tua viagem, combina com a saia marrom e a blusa creme que voc vai usar. Ganhei de presente de minha tia Cora, est quase novo, veja. Usei pouco, s umas duas ou trs vezes. A tia de Fanny, chapeleira famosa, cobria e enfeitava as cabeas das damas mais chiques de So Paulo e Rio. Um chapu com etiqueta "Cora" custava um dinheiro, no era para qualquer uma. Segundo Fanny, a tia ficara "podre de rica" fazendo chapus. Aquele que eu acabava de ganhar era sbrio e elegante: aba levantada de um lado, cada do outro, cobrindo a orelha direita em ligeira curva. Sem dar tempo para outras explicaes, meti o elegante "Cora" na cabea: Deixa ver se me fica bem... Segurando pela parte desabada, puxei-o para baixo. Ouvi apenas um grito assustado de Fanny: Ai! Meus dedos se enterravam na parte levemente em curva do feltro, varando-a de lado a lado. A pobre moa, coitada, estava sem jeito. Eu no lhe dera oportunidade de me fazer o histrico da preciosa prenda. Ela a havia recebido das mos da tia com a recomendao de que tivesse todo o cuidado ao coloc-lo na cabea. Uma freguesa gr-fina, que o encomendara, havia estragado o chapu, esgarando o feltro ao experiment-lo, forando os dedos na aba, sem modos, estabanadamente (como eu o fizera, certamente), e, ao v-lo inutilizado, ainda tivera a petulncia de no assumir a culpa, recusando-se a. receber e a pagar a encomenda. Muito decepcionada com o acidente, Fanny me explicou tudo. Tratei de tranqiliz-la: Pode deixar, Fanny, que eu dou um jeitinho... Aps uma passadela de ferro com um pano mido e vapor e um cerzidinho invisvel, o chapu voltou sua forma, quase perfeito. Enchapelada, chique e distinta, eu estava comme il faut para enfrentar os sogros.

ORIGENSFilha de imigrantes italianos, Angelina e Ernesto Gattai, nasci na capital de So Paulo. Descendente de anarquistas toscanos, o menino Ernesto havia chegado ao Brasil, com os pais e vrios irmos, no fim do sculo passado, integrando um grupo de revolucionrios, na clebre aventura da fundao da Colnia Ceclia, experincia anarquista em plena selva brasileira. Meus avs maternos, catlicos, vieram para o Brasil, trazendo os filhos ainda crianas, para substituir nas fazendas de caf, em So Paulo, a mo-de-obra escrava, aps a Abolio. Meu pai perdeu a me ainda menino. Permaneceu fiel aos ensinamentos recebidos na infncia: "Sou um livre-pensador", assim se definia. Quanto religio, gostava de repetir uma frase que provocava polmica e o divertia: "Somos ateus, graas a Deus!" Criada na religio catlica, mame, no entanto, no precisou "virar a casaca" para adotar as idias do marido. Ao encontr-lo, j pensava da mesma forma que ele. Angelina e Ernesto conheceram-se em So Paulo, ainda adolescentes, quase crianas, em festas proletrias, no popular bairro do Brs, onde residiam. Artistas amadores, participavam de representaes de peas de autores anarquistas, encenadas no palco do Teatro Operrio de So Paulo. Um deles, Pietro Gori, era o dolo de dona Angelina, que conhecia os textos de suas peas de memria e os repetia, na ponta da lngua, at o fim de sua vida. Operrios de profisso, mame operria txtil, papai mecnico, sem terem conseguido fazer nem mesmo o curso primrio completo, possuam, no entanto, pendores culturais, arraigado gosto pelas artes, pela literatura. No se realizaram em suas vocaes, a vida no lhes deu condies. Minha me, apaixonada por teatro, romance e poesia, vida leitora, teria sido, disso estou certa, uma intelectual, mas no pde ser. Apaixonado por automveis, entendido em mquinas e motores, meu pai fazia incrveis clculos matemticos em suas "contas de cabea", sem precisar de lpis e papel, para achar a soluo correta de um problema. Teria sido, no resta a menor dvida, um engenheiro de mo cheia; mas no pde ser. A mais nova dos cinco filhos do casal, passei minha infncia e adolescncia com meus irmos, acompanhando meus pais a festas proletrias, ouvindo conferncias polticas, recitando poemas de Castro Alves e de Guerra Junqueiro nos palcos das Classes Laboriosas e da Lega Lombarda locais de reunies de trabalhadores , sobretudo nas datas comemorativas, como o Primeiro de Maio.

Criada e educada num ambiente de mundo sem fronteiras, jamais fiz distino de raas ou de cor; aprendi a julgar os homens por seus mritos. Meus mestres, dona Angelina e seu Ernesto, no puderam dar aos filhos escolas superiores, nem diplomas de faculdade, mas, em compensao, lhes deram o interesse pela cultura, pelas questes sociais, o amor paz, justia, humanidade, buscaram abrir-lhes os olhos e o esprito para os problemas da vida.

AS TRS MOAS SE CASAMDas minhas irms, Wanda, a mais velha, casou-se aos 20 anos. Depois foi a vez de Vera, a segunda; eu fui a terceira e ltima das meninas a eleger marido. Casei-me aos 19 anos. Noivo escolhido entre vrios candidatos, esse tinha uma qualidade a mais: era tambm, como meus pais, um "livre-pensador". Mas, ainda assim, o casamento no deu certo, durou alguns anos e, como saldo positivo, ao dissolver-se a unio, coube-me a alegria de um filho, e amigos que conheci durante o tempo de casada, amigos queridos com os quais eu prolongava e aprofundava o ambiente da casa paterna: o interesse pela cultura e pela poltica. Os mesmos amigos que me ajudaram a superar a dor que me causara a perda de meu pai, em 1940.

UM FATO CORRIQUEIRO DURANTE O ESTADO NOVONo clima de insegurana do Estado Novo, a Polcia Poltica e Social de So Paulo, de posse de uma denncia, deu uma batida em casa de meus pais, em 1938. Os policiais chegaram de madrugada, alguns cercaram a casa enquanto outros a invadiam. Meu pai dormia, foi arrancado da cama. A famlia, apanhada de surpresa, perguntava-se assustada o que estava acontecendo. Com rapidez os tiras vasculhavam tudo. No deixaram gavetas no lugar, esvaziaram completamente os armrios. Os colches cortados a gilete espalhavam plumas e painas pela casa; mas a mina, procurada com sofreguido, os policiais encontraram-na debaixo do colcho de dona Angelina, no dentro dele: pastas com recortes de jornais e revistas. Alguns amarelecidos pelos anos, ainda dos tempos de Sacco e Vanzetti; outros mais recentes, reportagens ilustradas com fotografias sobre prises e expulses do Brasil de italianos antifascistas, alguns deles amigos nossos. Entre os recortes polticos havia tambm uma reportagem policial sobre "o crime da mala", j que dona Angelina conhecera pessoalmente Maria Fa, a vtima, cortada em pedacinhos pelo marido, Jos Pistone, e metida dentro de uma mala. Ocupando trs colunas em pgina de jornal, uma foto encabeava a notcia da priso e expulso, para a Itlia de Mussolini, de Oreste

Ristori, velho amigo da famlia. Os recortes, antigos e novos, pertenciam a dona Angelina, colecionados zelosamente ao longo dos anos. Ao ver suas relquias nas mos dos tiras, mame desesperou-se: "Tudo isso a meu! Meu marido nem sabia que eu guardava... Palavra de honra!" Que podia significar a palavra de honra de uma esposa aflita para os insensveis tiras, excitados, agora, com a descoberta de uma espingarda velha, sustentada por um prego, atrs de uma porta? Atarantada, mame voltava s inteis explicaes: Os senhores no esto vendo que uma Flobe de caar passarinhos? Entusiasmados, os policiais exibiam uns aos outros a aposentada espingarda de caa, marca Flaubert, dita "Flobe", na linguagem da famlia Gattai. No iam perder tempo dando ouvidos "quela pobrediaba" desejosa de salvar a pele do marido a todo custo. Aflito com o desespero da mulher, a expor-se, temeroso de que lhe acontecesse algo, em tom enrgico para ser atendido, papai pediu-lhe que no dissesse mais nada, que se calasse. O tira encarregado de vigilo, e que desde o incio da batida lhe apontava o cano do revlver, rosnou, arrogante: Cala a boca a, seu! O dia comeava a clarear quando os tiras partiram levando seu Ernesto, a espingarda, os recortes de jornais, muitos livros, entre os quais os dramas anarquistas de Pietro Gori.

CADEIA E JULGAMENTOMeu pai ficou preso mais de um ano, um longo e sofrido tempo de ansiedade e aflio, para ele e para ns. A princpio, nos primeiros 40 dias, no tivemos notcias suas, por mais que as buscssemos. Todas as investidas, todos os esforos para v-lo, saber de seu paradeiro, foram inteis. Vivamos num clima de ameaa e medo, era difcil conseguir advogado disposto a defender preso poltico. Ao aceitar a questo, o causdico arriscava-se a ser fichado e perseguido, a sofrer sanes. Estvamos nesse desespero, quando, inesperadamente, um abnegado bacharel bateu nossa porta, disposto a arriscar sua carreira. Simptico, boa conversa um pouco falante demais , nos encheu de esperanas, nem tudo estava perdido. Garantiu que tudo faria, tinha boas relaes: "Muito em breve tero o chefe em casa outra vez." Nosso entusiasmo durou pouco. Demo-nos conta em seguida de que o herico bacharel no passava de um refinado vigarista. Desaparecera carregando o dinheiro que pedira,

"indispensvel para o incio dos trabalhos". Os cartes com nome e endereos que nos dera eram falsos. Um dia fomos convocados por Luiz Apolnio, chefe dos investigadores da Delegacia de Ordem Poltica e Social. Com muita experincia e sabedoria, o chefe dos investigadores nos interrogou, a princpio com voz mansa, a prpria delicadeza, jogando verdes, apelando para o amor que dedicvamos ao nosso pai: Se contarem tudo que sabem das relaes do Gattai com tipos subversivos, de contatos dele com pessoas estranhas, ele ser posto em liberdade imediatamente. Nenhum de ns lhe respondeu. Permanecemos calados. Cansado do primeiro processo, passou para o segundo, o da violncia; aos berros ameaou-nos a todos: cadeia para os filhos e expulso do pas para os pais. Continuamos calados. Aps longo intervalo, pressionou o boto de uma campainha, sobre a mesa; deu instrues em voz baixa ao investigador que atendeu prontamente ao chamado, recebeu a ordem e saiu. No demorou muito, a porta foi aberta e por ela entrou, acompanhado de um guarda, um homem curvo, magro, de face macerada; tinha os olhos injetados, estava trmulo... Foi preciso que cestranho viesse ao nosso encontro para que o reconhecssemos. Permanecera mais de 40 dias no poro escuro e mido da delegacia, sob a lei dos policiais, a mesma de sempre: "ou confessa ou agenta as conseqncias". Ernesto Gattai no confessou nada, agentou as conseqncias. Depois desse primeiro encontro, somente meses depois viemos ter conhecimento de seu paradeiro: fora transferido para o Presdio Maria Zlia, onde aguardaria julgamento. Nessa ocasio ficamos sabendo, atravs de famlias de presos polticos, que, como ns, se comprimiam diante das grades de ferro dos portes do Presdio em dias de visitas, que no havamos sido as nicas vtimas do falso advogado. Toda uma mfia de escroques, mancomunada com policiais, dedicava-se a extorquir dinheiro das famlias de presos polticos. Uma portaria de expulso do pas estava espera de ser executada logo que o prisioneiro fosse condenado como "terrorista perigoso". A sentena no se cumpriu, no entanto: longo telegrama, vindo do Rio de Janeiro, assinado por Dr. Arago (quem seria Dr. Arago? nunca ouvramos falar antes em seu nome), comunicava famlia de Ernesto Gattai que ele fora absolvido pelo Tribunal de Segurana, por absoluta falta de provas de sua culpabilidade. Quanto portaria de expulso, fora arquivada. No havia, naquele tempo, lei que sancionasse a expulso de estrangeiros radicados no Brasil, sobretudo pais de filhos brasileiros. Dr. Arago assumira a defesa de meu pai no Tribunal, obtivera sua absolvio, felicitava-nos efusivamente, no falava em honorrios, nunca nos apresentou conta. At hoje no sei como e por que ele assumiu no Rio

a causa do preso de So Paulo. Nunca mais tivemos notcias desse advogado, generoso e solidrio, mas penso no desconhecido Dr. Arago com gratido e carinho.

BREVE NECROLGIOFraco, depauperado, a sade para sempre comprometida, meu pai no resistiu febre tifide que o acometeu, tempos depois de ter sado da priso. Morreu em 1940, aos 54 anos. No dia de seu sepultamento as casas comerciais da Alameda Santos e Avenida Rebouas, no quarteiro onde vivera durante muitos anos, cerraram as portas em sinal de luto. Centenas de pessoas acompanharam seu enterro, e na hora de baixar o caixo, desafiando os tiras que circulavam pelo cemitrio, ameaadores olheiros, surgiu um homem de aparncia modesta que, de p na beira da sepultura, pronunciou algumas palavras breves, de improviso, recordando "o dedicado companheiro, o cidado ntegro, exemplo de coerncia e de dignidade!". Desapareceu da mesma forma como havia chegado, aps o breve necrolgio. No o conhecia, no voltei a vlo. Naquela hora, a mais triste de minha vida, valeram-me os amigos; cercaram-me de carinho, ajudaram-me a vencer o desespero. A CASA DE MEUS AMIGOS APARECIDA E PAULO MENDES DE ALMEIDA A casa de Aparecida e Paulo Mendes de Almeida, situada no bairro do Paraso, acolhedora e alegre, estava sempre de portas abertas para os amigos. Alguns vinham de longe, de outros Estados, passando por l esporadicamente, a fim de um bate-papo ou, se coincidisse ser sbado ou domingo, participar das habituais tertlias com divertidos jogos de salo, comandados com graa e entusiasmo por Paulo Mendes. No faltavam tambm acaloradas discusses literrias e polticas. As visitas aos Mendes de Almeida significavam muito para mim, moa simples, de famlia modesta; penetrava no mundo da cultura, num ambiente de intelectuais renomados. Encontrava, naquela casa do Paraso, paz e calor humano. L conheci Mrio de Andrade, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Oswald de Andrade, os mestres do Modernismo, tornei-me amiga de escritores e artistas, que eu admirava distncia, como se fossem seres de outros planetas. Ao contrrio, eram gente simples, de carne e osso, com suas virtudes, suas manhas e suas fraquezas. Entre os mais assduos encontravam-se Rubem Braga, cujas crnicas me encantavam, um rapaz

quase tmido, enrustido, tranqilo, e Zora Seljan, naquela poca sua mulher, jovem bonita, campe nos jogos comandados por Paulo Mendes, os dois muito meus amigos. Vindo do Rio ou do estrangeiro, Vincius de Moraes aparecia vez ou outra com sua poesia e seu charme. Tornamonos amigos fraternos para toda a vida. De pequena estatura, tmido, Aldo Bonadei emocionava-me com suas pinturas. A seu convite, fui certa ocasio visit-lo em casa. Entre os leos que me mostrava, destacou uma natureza-morta. Com a tela na mo, encaminhou-se para o piano onde a colocou no lugar da partitura. De olhos fixos no quadro, como que magnetizado, improvisou bela melodia. Depois, meio encabulado, explicou quase se desculpando: "Algumas telas me inspiram..." Nesse dia ganhei, de Bonadei, lindo e curioso presente: dois bolsos pretos, ricamente bordados. "Bordados por mim", disse timidamente, "vo bem num vestido liso." Naquele tempo, quando os pintores ainda ganhavam muito pouco com sua arte, Bonadei costurava e bordava para viver. Um dia chegou Carlos Lacerda com a famlia: Letcia (Ziloca), sua mulher, e Srgio, o filhinho que comeava a andar. Vinham de muda para So Paulo, onde Carlos arranjara um emprego. A famlia Lacerda instalou-se a princpio em casa dos Mendes de Almeida. Com a presena do casal carioca, os fins de semana no Paraso tornaram-se ainda mais animados. Cresceram as discusses polticas. A maioria dos freqentadores era constituda por personalidades de renome, mas havia tambm jovens que se tornaram conhecidos mais tarde, como por exemplo o pintor Carlos Scliar, quase um menino, recm-chegado do Rio Grande do Sul e logo adotado por todos. "Menino prodgio", assim o apelidou Paulo, ao admirar as mltiplas e enormes telas que o adolescente pintava com pressa e entusiasmo. Entre as presenas mais assduas naquela casa acolhedora, figuravam o pintor Arnaldo Barbosa e sua mulher Use, o arquiteto Luiz Saia, Isabel e Rivadvia Mendona, Augusto Rodrigues, Suzana de Agosto, Moema Seljan. O nome de Jorge Amado, amigo de longa data do casal, era sempre citado nas conversas. Admiradora do romancista, leitora de seus livros, eu esperava ter a oportunidade de conhec-lo pessoalmente.

UM VULTO APENASUm dia, no ano de 1941, ao chegar ao porto da casa de Aparecida, encontrei-a despedindo-se de um rapaz. Ouvi-a desejar-lhe boa viagem mas, discreta, no me detive para falar-lhes; dei apenas um al, acenando com a mo, e entrei.

O jovem j devia andar longe quando Aparecida contou-me que "aquele" era Jorge Amado. "Jorge Amado?", exclamei, num misto de surpresa e frustrao. No acontecera encontrar-me com ele emoutras ocasies, quando estivera na casa de meus amigos. Punha-lhe os olhos em cima pela primeira vez e perdera a oportunidade de, ao menos, apertar-lhe a mo. Em trnsito por So Paulo, a caminho da Argentina, Jorge Amado fora despedir-se dos amigos. Embarcaria naquela mesma noite, em busca de material para uma biografia de Luiz Carlos Prestes, que se encontrava na priso desde 1936. Para escrever esse livro que iria desempenhar importante papel na luta contra a ditadura e pela anistia, via-se obrigado a sair do pas.

O ANARQUISTA RISTORI ME EMPRESTA UM LIVROEsse meu desejo de encontrar-me com Jorge Amado vinha de muitos anos, desde que lera pela primeira vez um livro seu, Cacau, por volta de 1933. O exemplar fora-me emprestado pelo velho amigo de meus pais, Oreste Ristori, o legendrio lder anarquista, cuja figura herica at hoje recordada em So Paulo. Entusiasmado com o livro e com seu autor, a quem conhecia pessoalmente, o velho Ristori, ao emprestar-me o exemplar, no poupara elogios ao jovem escritor, prevendo-lhe uma bela carreira literria. O velho no era dado a elogios fceis. Dizia o que pensava. Eu sabia disso, conhecia-o bem e o admirava. Sua opinio sobre Jorge Amado contribuiu, pois, para despertar meu interesse pelo romancista.

UM LIVRO PROIBIDOEm casa do pintor Clvis Graciano, chamado por seus amigos simplesmente Mestre, e de sua mulher Aparecida, apelidada Aparecida do Sul ou apenas Sul, como eu a chamo at hoje, para diferenci-la de Aparecida Mendes de Almeida, vi em 1942, durante a ditadura, quando tudo era proibido, um exemplar da Vida de Luiz Carlos Prestes, ei Caballero de Ia Esperanza, recmsado na Argentina, em lngua espanhola. Exemplar conseguido a duras penas pelo Mestre, pois o livro, proibidssimo, entrava clandestinamente no Brasil, era vendido no cmbio negro e sua posse dava cadeia. Nem me atrevi a pedi-lo emprestado, a fila de candidatos leitura ia longe. O assunto daquela noite foi o livro e seu autor. A opinio era unnime: Jorge Amado no poderia voltar ao Brasil to cedo. Se voltasse seria, certamente, preso. Ao escrever a biografia de Prestes, o escritor desafiara o Estado Novo, denunciara a ditadura, lanara a campanha pela anistia.

OBTENHO UM EXEMPLARAdolfo Jagle fora meu mdico. Conheci ento sua mulher, Dora, fizemos amizade, passei a freqent-los. Brasileiro, de sangue judeu, de origem alem, homem de idias progressistas, Adolfo Jagle era, como no podia deixar de ser, antinazista ferrenho. Assim como na casa dos Mendes de Almeida, na dos Jagle conheci artistas e intelectuais. Ali aprendi a amar Beethoven, Chopin, Mozart, Wagner. Alm de curtir msica popular e de ser emrita co-nhecedora de tangos argentinos, eu era entendida em peras italianas, ouvira suas rias durante toda a minha infncia atravs da tromba de um velho gramofone no qual meu pai colocava grossos e pesados discos de Enrico Caruso, para os filhos ouvirem. Na casa dos Jagle ampliei meu conhecimento e minha paixo pela msica. O casal Jagle possua possante eletrola e magnfica coleo de discos, em gravaes de grandes orquestras. No terrao coberto do apartamento, amplo de teto baixo, com poltronas, sofs e muitas almofadas, reuniam-se regularmente, s sextas-feiras, amigos e apreciadores das noitadas musicais. Nem sei quanto tempo levei antes de compreender e amar aquele gnero de msica. A princpio, no conseguia concentrar-me, no entendia nada; sinfonias e concertos baralhavamse em minha cabea, confuso danada! No entanto, sonatas melodiosas e romnticas, como, por exemplo, Sonata ao Luar e Pour Elise, no me deram trabalho, logo as adotei. Afundada numa poltrona macia, ou recostada em almofadas, na penumbra repousante daquele ambiente proposital-mente pouco iluminado, preparado para facilitar a concentrao, eu, em vez de me concentrar, freqentemente me sentia dominada, perseguida por um sono incontrolvel. Por mais que me esforasse, tentando permanecer acordada e atenta no apenas pelo interesse na msica como tambm pela vergonha de ser pilhada dormindo , muitas vezes no o conseguia. Certa noite, ao despertar assustada de um cochilo, dei de cara com o escultor Bruno Giorgi, freqentador da casa, rindo a bom rir de meu sono. Apanhada em flagrante, num encabulamento medonho, no voltei a dormir naquela noite; ouvi o resto dos concertos, at o fim de olhos abertos, sem pestanejar, mais de uma hora a fio. O pintor Rebolo Gonzlez aparecia esporadicamente. Ele tambm de vez em quando dava umas "pescadas" e freqentemente controlava a pilha dos discos separados para serem ouvidos; no disfarava seu ar de desnimo ao verificar que ainda faltavam muitos. Eu no estava s.

Entre os mais assduos a essas noitadas, havia um certo Maciel, pessoa extremamente simptica e prestativa. Maciel, ou Macielzinho para os ntimos devido sua pequena estatura, era funcionrio da Editora Nacional. Certa sexta-feira a msica foi prejudicada, o ambiente conturbado com a chegada de Macielzinho. Vinha de sobretudo negro maior que seu dono e chapu enterrado na cabea quase at os olhos. Foi assim que entrou na sala. Com ar conspirativo, sem dizer palavra, deu uma verificada em torno para certificar-se de que no havia estranhos. Abriu a aba do sobretudo e de dentro retirou um misterioso pacote que depositou sobre a mesa. Comeou a desembrulhlo cuidadosamente, sem pressa, sempre calado, fazendo suspense; sua volta, ns todos, espera de que o mistrio fosse desvendado. Finalmente Maciel retirou do papel que o envolvia um exemplar do proibido El Caballero de Ia Esperanza. Conseguira-o naquela mesma tarde, exibia a grande novidade, um brilho no olhar refletia sua satisfao, seu entusiasmo. O volume passou de mo em mo, folheado com vida curiosidade. Reptiam-se os comentrios que eu escutara dias antes em casa de Clvis Graciano, quando vira o livro pela primeira vez: " um louco!", comentavam uns; "...isso que ter coragem!", diziam outros; "nunca mais vai poder entrar no Brasil..." Macielzinho viajava pelo interior de So Paulo, colocando livros da Editora, controlando as vendas. Fora ele quem conseguira para mim alguns romances de Jorge Amado, escritor "amaldioado" pelo DIP. Impossvel encontrar exemplares de seus livros para comprar, naqueles tempos de Estado Novo. Queimados em So Paulo e na Bahia, apreendidos em todo o pas em novembro de 1937, sua venda estava proibida. Sabendo das possibilidades de Maciel, "rato de sebos", encomendara-lhe os volumes que eu no possua. Macielzinho tomara nota do meu pedido e os fora trazendo, um a um, em suas repetidas viagens. Assim consegui colocar em minha estante, ao lado de O Pas do Carnaval, Suor, Cacau, Jubiab, exemplares de Mar Morto, ABC de Castro Alves e Capites da Areia, "o mais perigoso de todos". Ainda uma vez, Macielzinho veio em meu socorro. Foi ele quem me conseguiu, dias depois, um exemplar do livro sobre a vida de Luiz Carlos Prestes. Li o volume em voz alta, traduzindo-o do espanhol, para mame. Muitas vezes ela duvidou do meu conhecimento da lngua que jamais estudara, jamais falara, a no ser cantando tangos. Achando que eu inventava, olhava-me desconfiada, mas depois de refletir chegava ' concluso de que seria mais difcil inventar tanta coisa do que conhecer a lngua estrangeira. A filha era simplesmente uma "atrevida", no havia outra explicao. Dona Angelina passou a me visitar cada vez com maior freqncia, no interesse da leitura. Juntas nos emocionamos com a figura do Cavaleiro da Esperana, cuja legenda j

conhecamos desde os tempos da Coluna e cujo longo cativeiro nos comovia profundamente. Choramos juntas, acompanhando os passos de dona Leocdia Prestes a atravessar fronteiras, a enfrentar os nazistas em busca da netinha, Anita Leocdia, nascida numa priso da Alemanha, sofrendo com Olga Benrio, mulher de Prestes, aprisionada ao mesmo tempo que o marido pela polcia de Filinto Mller, expulsa do Brasil em adiantado estado de gravidez, para morrer numa cmara de gs, na Alemanha de Hitler. A figura de Prestes comovia e empolgava milhares e milhares de brasileiros que viam nele o smbolo da resistncia ao nazismo e ditadura. Ao nascer meu filho, em agosto de 1942, seu nome j estava escolhido: Luiz Carlos. No encontrei outro melhor para lhe dar. Centenas de crianas foram registradas com o nome de Luiz Carlos naqueles anos de guerra, de medo, de lutas e de esperana, em homenagem ao prisioneiro da ditadura, isolado do mundo, incomunicvel num crcere.

DONA ANGELINA PAGA O PATODona Angelina viera passar uns dias comigo, ajudava a filha no resguardo do parto. Costumava acordar cedo. Gostava de ouvir pelo rdio o primeiro noticirio, atenta e entusiasmada com as mudanas na poltica externa do governo brasileiro que, aps a entrada dos Estados Unidos na guerra, se afastava do Eixo nazi-fascista e aproximava-se das foras aliadas. Despertei certa manh com pancadas tmidas na porta: Escuta s esta! Era mame; falava a meia-voz, pois todos dormiam ainda, mas no escondia sua indignao: Ouvi agora mesmo no rdio que um submarino alemo afundou um navio brasileiro. Parece que o navio estava cheio de soldados... A rdio repetiu, logo depois, em edio extraordinria, a notcia: o Baependi, levando a bordo o 7. Grupo de Artilharia de Dorso, fora afundado por um submarino alemo em guas brasileiras. Calculava-se em 250 o nmero de mortos. Revoltada, mame no se continha: Ma guarda, questi tedeschi farabutti! Eles querem agora se meter tambm no Brasil? Onde que a gente vai parar? Madonna mia Preocupava-se com as vtimas: Tanta mortandade, tanta juventude assassinada desse jeito... e as mes, coitadas dessas pobres mes...a essas horas... j pensou, o desespero? Um ou dois dias depois fui despertada da mesma maneira: pancadinhas leves na porta; mame aflita pedia ajuda:

Me veja, por favor, se voc entende direito essa notcia que eles esto dando. Na certa vo repetir. Eles disseram, pelo que eu entendi, que os sditos do Eixo vo ter que pagar pelo navio afundado... Mame ouvira direito. O governo brasileiro tomava urgente medida de represlia contra alemes e italianos radicados no Brasil: como primeira sano, decretava o congelamento de suas contas bancrias. Ao ficar viva, dona Angelina vendera dois automveis velhos e um pequeno terreno em So Caetano comprado por seu Ernesto havia muitos anos, para fazer favor a um amigo e juntara o dinheiro dessas vendas ao depsito de uns poucos mil-ris deixados pelo marido, na Caixa Econmica. Ao todo, uns cinco contos de ris, que lhe rendiam pequeno juro mensal, suficiente para seus modestos gastos pessoais. Ao tomar conhecimento, aps o torpedeamento do segundo navio, o Araraquara, de que o Governo retiraria uma certa porcentagem dos depsitos bancrios dos sditos, a cada navio brasileiro afundado, dona Angelina revoltou-se: Quer dizer ento que vo me tirar o msero dinheiro que tenho? Ora, essa boa! Os nazistas afundam os navios e eu, que sou contra tutti questi schifosi, tenho que pagar o pato? Tem cabimento uma coisa dessas? Me diga! dirigia-se a mim em busca de solidariedade. Bem, cabimento no tem, me. Mas... Pensara dizer a mame, talvez isso a consolasse, que muitas vezes medidas necessrias, devido s circunstncias, faziam "o inocente pagar pelo pecador". Que s o fato do governo brasileiro, que at havia pouco no escondera seus pendores pela Alemanha de Hitler, ter agora tomado medidas de represlia contra o Eixo, era motivo de regozijo. Dona Angelina compreendeu que eu ia desculpar, ou antes, justificar a medida, e exaltada interrompeu-me, no deixou que eu completasse meu pensamento: No tem mas nem meio mas, essa gente est exagerando! O que que eles esto pensando? Que todos os italianos e alemes so fascistas e nazistas? Esto ficando malucos? No auge da indignao, mame procurava explicar-me o bvio, o que eu sabia at de sobra: Fascista, eu? Eu sempre fui contra tutta questa canaglial Nazista eu? protestava inconformada. Justo eu? Faa-me o favor! No me faltava mais nada. Vou ficar sem um tosto furado. Voc vai ver, escuta o que te digo.

Nervosa, ofendida em seu amor-prprio, mame desabafava. Depois de breve pausa conjecturou, num monlogo, derrotada: E eu posso reclamar? Reclamar com quem? Con il vescovo? A cada navio torpedeado nada menos do que seis em quatro dias: depois do Baependi e do Araraquara, foram o Anbal Benvolo, o Itagiba, o Arar, o Jacyra , naufragavam com ele as modestas parcelas do reduzido capital de dona Angelina. Antes do sexto navio soobrar j no lhe restava um s nquel na Caixa. As sanes contra os sditos do Eixo continuavam; foi proibido falar alemo e italiano nas ruas, em logradouros pblicos. Mame, que jamais conseguira manter uma conversao inteiramente em portugus, baralhando-o sempre com o italiano predominante quando ela estava nervosa , andava acabrunhada, humilhada, considerava-se injustiada; confidenciou-me sentir-se como um co acuado, sem meios de se defender. Um dia algum aventurou-se a fazer uma pilhria com ela: "J imaginaram dona Angelina presa como quinta-coluna?" Enquanto todos riam do disparate, mame no achou graa. Amarrou a cara, no estava para brincadeiras de mau gosto. Revoltado contra os torpedeamentos de nossos navios pelos submarinos nazis, o povo veio s ruas protestar, exigindo que o Governo tomasse posio junto aos aliados. O medo desaparecia. Os liberais e os esquerdistas j comeavam a falar sem serem molestados. Reconhecidos quinta-colunas, at ento impunes, andavam agora arredios, de rabo entre as pernas, de asas cortadas. A revolta do povo contra o Eixo, levada s ruas, gerava abusos: firmas alems e italianas, indiscriminadamente, sofriam assaltos acompanhados de saques e de incndios, a maioria das vezes provocados por marginais e ladres que se aproveitavam da situao.

REGRESSO DO EXLIOA notcia correu de boca em boca: Jorge Amado voltara do exlio e fora preso. Soube de detalhes na casa de Paulo e Aparecida: com a declarao de guerra do Brasil ao Eixo nazifascista, os exilados que se encontravam vivendo no Uruguai e na Argentina resolveram regressar ptria, colocando-se disposio do Governo. Trazendo em sua bagagem os originais de mais um livro escrito no estrangeiro, Terras do Sem Fim, desembarcara em Porto Alegre, hospedando-se em casa de Henrique Scliar, pai do pintor Carlos Scliar. Sua estada na capital gacha foi curta. Preso pela polcia local, enviaram-no de trem para o Rio de Janeiro, acompanhado por um delegado.

No era essa a primeira priso do escritor: em 1936 fora detido no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que o pintor Santa Rosa, e em 1937, preso em Manaus, sob a suspeita de estar planejando, em companhia do antroplogo Nunes Pereira, uma revolta de ndios, fora mandado, escoltado, para o Rio, num navio. Agora permanecia encarcerado na Casa de Deteno do Rio de Janeiro, juntamente com os outros exilados que haviam retornado. Alguns meses depois nova notcia, desta vez a alegrar seus leitores, seus amigos: Jorge Amado fora posto em liberdade. Mas a polcia lhe designara a cidade de Salvador, como residncia obrigatria. Surpreendi-me ao ver, em 1943, na vitrine de uma livraria, exemplares de Terras do Sem Fim, com sugestiva capa de Clvis Graciano. Segundo o livreiro, o romance acabara de ser posto venda. Folheando o volume, encontrei logo no incio, numa pgina de rosto, carinhosa dedicatria a Aparecida e a Paulo Mendes de Almeida. Contei meus trocados, comprei dois exemplares. Faria ao casal boa surpresa naquele dia. Toquei-me para o Paraso, antegozando a satisfao de meus amigos. Cheguei atrasada: o livro ali estava sobre a mesa, mandado da Bahia pelo correio, autografado pelo autor.

JORGE VEM A SO PAULOUm ano depois os jornais anunciavam que Jorge Amado era esperado em So Paulo. Sara seu romance So Jorge dos Ilhus, e a Livraria Brasiliense, na Rua Dom Jos de Barros, ofereceria um coquetel em sua homenagem. Convidei Wanda, minha irm, e juntas nos dirigimos Brasiliense na hora marcada. Com grande dificuldade conseguimos entrar na livraria abarrotada de gente. Muitos escritores e artistas, entre eles Monteiro Lobato, meu dolo dos tempos em que Narizinho Arrebitado, Pedrinho e a boneca Emlia eram meus heris. Juntamo-nos a Sul e Clvis. Quem sabe, nesse dia, eu seria apresentada a Jorge Amado? Tudo que consegui foi v-lo distncia, nem cheguei a me aproximar do homenageado, tantas eram as pessoas que o cercavam. A impresso que me restara dele, da primeira vez que o vira, havia trs anos, era totalmente diferente da de agora. O Jorge Amado que via na Brasiliense no era to magro nem to agitado como o vulto que me ficara na lembrana. Achei-o um homem bonito e comentei com Wanda, cuja opinio no coincidia com a minha, achava-o apenas "mais ou menos"... Jorge Amado saa pela primeira vez da Bahia depois de seu confinamento. Os tempos mudavam. Viajara sem pedir permisso, no fora incomodado, embora a restrio de residncia obrigatria em Salvador ainda perdurasse. So Jorge dos Ilhus estava sendo vendido livremente, assim como Terras do Sem Fim e novas edies dos livros anteriores.

Ainda um novo romance de Jorge Amado vinha enriquecer minha coleo. Livros de um mundo cheio de interesse, o das plantaes de cacau, seus dois ltimos romances proporcionavam-me novos conhecimentos, novas emoes.

O CONGRESSOFui apresentada, finalmente, a Jorge Amado durante 1. Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em So Paulo, em janeiro de 1945. O Congresso de Escritores foi o primeiro golpe na estrutura do Estado Novo, que, desde 1937, proibira reunies desse tipo, mantendo rgida censura sobre a imprensa, os espetculos, os livros, impedindo o debate de idias, a livre expresso de pensamento. Convocado pela Associao Brasileira de Escritores (ABDE), organizao recm-fun-dada, o Congresso reuniu em So Paulo intelectuais do pas inteiro: Oswald de Andrade, Srgio Milliet, Caio Prado Jnior, Paulo Mendes de Almeida, Mrio de Andrade, Anbal Machado, Srgio Buarque de Holanda, Vincius de Moraes, Jos Lins do Rego, Aparcio Torelli o popularssimo Baro de Itarar, fundador do jornal humorstico A Manha, cuja epgrafe era: "quem no chora no mama" , Moa-cyr Werneck de Castro, Dionlio Machado, Carlos Lacerda; Dalcdio Jurandir, este representando o Estado do Par; alm de jovens que comeavam a aparecer: Paulo Mendes Campos, James Amado, Rossini Camargo Guarnieri, Alina Paim, entre outros. Jorge Amado presidia a delegao da Bahia. O Congresso transcorreu em clima de grande entusiasmo e de muita alegria entusiasmo e alegria que caracterizavam o ano de 1945, ano do fim da guerra e da ditadura do Estado Novo. Durante o Congresso, centenas de artistas, intelectuais, homens polticos e populares lotaram as dependncias do Teatro Municipal, acompanhando com muito, interesse e certa euforia os debates. As lestas sucediam-se: a intelectualidade e a sociedade paulistanas homenageavam os ilustres participantes desse 1? Congresso, convidando-os s suas casas, oferecendo-lhes lautos jantares e animados coquetis. As discusses sobre os problemas tratados em plenrio durante o dia estendiam-se noite adentro, nas alegres reunies em residncias particulares, nos restaurantes, em jantares de grandes mesas, nas boates. Aps uma semana de reunies, debates e festas, o Congresso terminou com explosiva declarao de princpios que condenava a ditadura e reclamava o restabelecimento das liberdades democrticas, a anistia aos presos polticos, inclusive a realizao de eleies. Na sesso de

encerramento, Oswald de Andrade lanou o nome do Brigadeiro Eduardo Gomes como candidato Presidncia da Repblica. Eu no tinha nada a ver com o peixe e no entanto no faltava aos debates dirios no Teatro Municipal, circulando em meio a pessoas to conhecidas e badaladas. No era escritora nem artista, no era intelectual. Poltica, quem sabe? Talvez o fosse minha moda: repudiava com veemncia o Estado Novo, o nazi-fascismo, a guerra. Tinha razes de sobra para isto. Recolhida em minha insignificncia, naquele teatro lotado, assistira, de minha obscuridade, aos discursos inflamados, cheia de entusiasmo e de esperana; esperana de que da por diante se acelerasse o fim dos sombrios e sufocantes dias de ditadura.

O DANARINOFui apresentada a Jorge no ltimo dia do Congresso. No tivera oportunidade ainda de lhe falar. No Congresso eu o via de longe, cercado de gente de belas mulheres, principalmente , falando, aplaudindo, sendo aplaudido. Ao chegar naquela noite boate Bambu, em companhia de Clvis Graciano e de Sul, para o jantar oferecido aos congressistas, j era grande a animao. Sentamo-nos junto com Isabel Mendona e o Baro de Itarar. Naquele ambiente de penumbra, em minscula pista de dana, os casais se comprimiam. Eu buscava identificar os danarinos quando, de repente, dei de olho em quem? "Vejam s", exclamei, "que p-de-valsa o Jorge Amado!" Clvis e os outros riram da minha observao. Bem nossa frente ele danava, debruado sobre os ombros de uma jovem, o rosto encoberto pelos louros e bastos cabelos da moa, arrastando-se em passos lentos. As msicas sucediam-se sem interrupo; o Baro convidou-me a danar. Dei um jeito de passar junto ao compenetrado par. O cavalheiro continuava de rosto mergulhado no cangote de sua dama. O Baro fez uma pilhria, bateu-lhe no ombro: "Acorda, rapaz!" Erguendo a cabea, Jorge sorriu. Mais tarde foi nossa mesa: "Me apresente moa, Baro!", os olhos fixos em mim. Eu que pensara dizer-lhe, na primeira oportunidade que tivesse, que o admirava muito, que era sua velha leitora, no lhe disse nada disto. Nosso dilogo foi rpido: Eu j no te conheo? perguntou-me. Eu j no te vi no Congresso? Voc esteve l, no esteve?

Se me viu foi de longe... respondi-lhe; e foi tudo. Admirei-me: por que desejara me conhecer? Teria mesmo notado minha presena no Congresso, ou estava apenas puxando conversa?

1945 ANO DE GRANDES EMOESTerminado oi? Congresso de Escritores, Jorge no voltou para a Bahia. Fixou residncia em So Paulo. Com Lila, sua filha de nove anos, e uma empregada baiana, passou a morar num apartamento mobiliado que alugara na Avenida So Joo. A aplaudida declarao de princpios do Congresso precisava, com urgncia, ser passada do papel para a ao. Instalado em So Paulo, Jorge, ao lado de outros intelectuais, buscava arregimentar o povo na luta pela democracia, organizando um grande movimento de massas de apoio s foras aliadas. Com esse objetivo os diversos grupos de esquerda realizavam passeatas e comcios a cada derrota do nazismo, a cada vitria dos aliados. Cresceu a luta pela anistia dos presos polticos, pela libertao de Prestes. Sabendo que seriam formadas comisses de trabalho, apressei-me a ir ao Comit pela Anistia, que acabava de ser instalado numa ampla loja vazia em prdio recm-construdo, na Praa da Repblica, cedida gratuitamente pelo proprietrio. Eu trabalhava, desde a entrada do Brasil na guerra, com uma comisso de senhoras, angariando fundos para o apoio s foras aliadas. Visitvamos artistas que nos davam trabalhos seus para serem vendidos ou leiloados. No media esforos em minha atuao no movimento antinazi-fascista; trabalhava convicta da justeza de minha posio, da necessidade de colaborar, seguia os ensinamentos de meu pai, buscava honrar sua memria. Depois de muita luta para conciliar as obrigaes caseiras, sobretudo as de me de filho pequeno, com o trabalho poltico, um acontecimento familiar veio facilitar a minha colaborao com o movimento antifascista, naquele momento crucial do fim da guerra, quando todos deviam se empenhar ao mximo. Vera, minha irm, viera morar comigo, trazendo com ela seu filho Fbio, ainda garoto. O marido, Paulo Lima, deixara o emprego em Santos, cidade onde tinham vivido alguns anos, para ir trabalhar no interior de Minas; to cedo no teria condies de instalar a famlia junto a ele. Com a presena de minha irm em casa, senti-me aliviada. Vera sempre fora a mais despachada das irms, "um colosso", na opinio de dona Angelina. Eu podia sair despreocupada, tudo ficaria em paz sob sua guarda, inclusive Luiz Carlos, meu filho.

MOS OBRA!O enorme recinto onde funcionava o Comit pela Anistia, na Praa da Repblica, fervilhava de gente quando me apresentei, naquela tarde, a fim de oferecer meus prstimos. Companheiras do Comit de Senhoras, entre as quais Jovina Pessoa, Fanny Blay, Iracema Rosenberg e outras, me haviam precedido, integravam um grupo de trabalho j organizado, completo. Eu buscava um dirigente com quem conversar, que me ligasse a um dos vrios grupos que estavam sendo formados. O fsico Mrio Schemberg, que eu conhecia da casa dos Jagle, responsvel pelas finanas do movimento, reconheceu-me de longe e acenou-me com gestos: Venha trabalhar no meu setor... Antes de falar com Mrio, quis dar uma palavra a Isabel, que se encontrava mais adiante. Passei por outro grupo, comandado por Jorge Amado. Voc, a... segurou-me pelo brao: voc vai trabalhar comigo no setor de divulgao... Mrio Schemberg se aproximava: A Zlia vai trabalhar no grupo de finanas, ela j tem tarimba... Fiquei sem saber o que dizer. Eu j andava farta de tanto pedir dinheiro, pra cima, pra baixo, passando rifas, angariando quadros de artistas e donativos em casas comerciais. Forava a natureza ao fazer esse trabalho, desgastava-me em dobro. Jorge resolveu a questo: A Zlia quem escolhe o que prefere fazer! Sem esperar que eu me decidisse, puxou-me pelo brao: J tenho um trabalho para voc, urgente. Venha comigo. Teria ele se recordado de mim? No me atrevi a perguntar nada. Sentia-me intimidada em sua presena. Acompanhei-o ao fundo da loja, onde uma mquina de escrever estava desocupada sobre uma velha escrivaninha. Ponha uma folha de papel na mquina que eu vou ditar uma nota para ser distribuda aos jornais ordenou o patro. O sangue subiu-me ao rosto: Eu no sei escrever mquina... confessei a custo. No sabe? Mas que moa mais intil!... Desabituada quele tipo de brincadeira, encabulei, humilhadssima. Percebendo meu desapontamento, Jorge tratou de me desanuviar:

No v pensando que no tem mais o que fazer. Temos muito trabalho pela frente! Fique aqui enquanto eu mesmo bato a nota; voc vai entreg-la depois ao setor de imprensa. Com apenas dois dedos como faz at hoje ao escrever mquina , toe, toe, toe, em trs tempos ele redigiu a nota. Depois recomendou-me: Se o Schemberg te chamar novamente, diga que j est trabalhando.

COMCIOSNaquela mesma noite integrei uma caravana que faria um comcio pela anistia, no bairro da Casa Verde, de intensa vida popular. No percurso Jorge resolveu continuar a divertir-se minha custa: No v me dizer que tambm no sabe falar em praa pblica! Claro que eu no sabia, nem nunca havia pensado em tal possibilidade. Felizmente, percebi a tempo a graa do chefe: Voc errou na escolha da ajudante. Tambm em discursos sou uma intil. Ele riu da resposta, fez uma pausa, falou srio: Voc vai conversar com o povo, no meio da massa; vai distribuir folhetos, vai explicar aos que no entendem o que anistia e por que pedimos anistia. Certo? Comcios eram realizados todas as noites, em geral em bairros populosos. Enquanto os oradores falavam, misturava-me ao povo, conversava com as pessoas usando uma linguagem simples, sem ter de lazer nenhum esforo para isso, completamente vontade, integrada e satisfeita com o novo encargo.

A PALAVRA DA MODAEncontrei o Comit em festa, todo o mundo eufrico. Fora quebrada a incomunicabilidade de Prestes, p decreto da anistia estava para ser assinado de um momento para outro. Nessa noite faramos um comcio na Lapa. Jorge veio ao meu encontro: Tenho hoje uma tarefa especial para voc. Entregou-me um papel datilografado, um poema dedicado a Anita Leocdia Prestes, da poetisa Jacinta Passos. Comeava assim: "Pequenina, doce menina / teu pai nosso, nosso

irmo e guia / ns te queremos, voltars um dia!..." Li o poema sem adivinhar o que Jorge pretendia que eu fizesse com ele, mas fui logo esclarecida: Voc vai ler esse poema, hoje, no comcio. Apanhada de surpresa, levei um susto: Eu? Voc est maluco? Voc mesma, tarefa. Rindo de minha expresso de desgosto, partiu, deixando-me ali com cara de besta, a folha de papel na mo. Por princpio, eu no discutia tarefas; "caxias" de primeira batalha, tratava de executar as ordens a tempo e hora. Por isso, noite, fazendo das tripas corao, subi ao palanque: de poema decorado, soltei a voz, botei a alma. Terminei minha declarao debaixo de aplausos, mas no tive coragem de olhar Jorge, a meu lado, a me dizer: "Muito bem!" Chegando-se mais, sussurrou-me ao ouvido: Voc vai me dizer a palavra com que devo encerrar meu discurso. Ainda perturbada, no pensei duas vezes: Democracia! Arrependi-me em seguida. Palavra mais fcil! Palavra mais repetida, mais em moda nos ltimos tempos... Devia t-lo posto prova, escolhendo algo mais difcil, como, por exemplo, paraleleppedo... Do que voc est rindo? quis saber, curioso. De nada... nada...

VITRIAS E MAIS VITRIASTodos os dias surgiam novidades. O Comit da Praa da Repblica vivia em festa, s acontecimentos polticos evoluam rapidamente, o decreto da anistia havia sido assinado, colocando em liberdade os presos polticos, alguns encarcerados desde novembro de 1935. Por toda parte o povo saudava a libertao de Luiz Carlos Prestes. No Rio de Janeiro os cariocas encontraram-se com Prestes, num comcio monstro no Estdio de Sao Janurio foi um acontecimento nunca visto antes na vida poltica do pas. Agora, estvamos organizando nova reunio de massas a ser realizada no Estdio do Pacaembu, na qual Prestes falaria ao povo de So Paulo. Queramos superar o do Rio; todo o Comit trabalhava em ritmo acelerado. Prestes seria saudado pelo General Miguel Costa, comandante-

em-chefe da Coluna Prestes, e pelo escritor Monteiro Lobato. Lobato adoeceu, no pde comparecer, mandou uma saudao gravada. Mas a grande sensao do comcio seria a presena, junto a Prestes, do grande poeta Pablo Neruda, recentemente eleito senador pelo Partido Comunista do Chile, que leria um poema em louvor do lder brasileiro. A chegada de Neruda estava prevista para da a poucos dias. Havamos festejado antes a queda de Berlim com uma passeata imensa e discursos nas escadarias da Catedral, na Praa da S. grande salo do Comit, noite, passara a ser ponto de reunio, local de atrao. L podiam ser encontrados jornalistas, escritores, pintores, artistas de teatro, poetas, mdicos, advogados, polticos de vrias tendncias. Faziam-se leiles, sorteavam-se objetos, vendiam-se bandeirinhas e escudos, elaboravam-se planos de trabalho, ensaiavam-se hinos compostos especialmente para o grande dia, namorava-se e conversava-se muito.

CONVERSA PARTICULARVez ou outra o poeta Paulo Mendes de Almeida e Aparecida davam uma circulada pelo Comit, levando seu filho ngelo. Certa noite, ao voltar de um comcio, dei de cara com Paulo. Sorriu-me com ar maroto: Clia, Clia, que haces? "Clia, Clia", era a maneira que Paulo arranjara para me designar desde que me conhecera, acrescido a partir daquela noite de "que haces?", com interrogao e tudo. Movimentando as sobrancelhas como quem pergunta "o que que h?", Paulo fazia suspense. Desembucha, rapaz! disse-lhe curiosa. Contou-me ento que Jorge almoara com ele naquele dia. E da? Da, que perguntara por mim. Mas ele no me via diariamente? Queria saber coisas a meu respeito, esclareceu Paulo Mendes; fizera-lhe mil perguntas, mostrara-se deveras interessado. Eu ouvia meu amigo, calada. J me dera conta do interesse de Jorge por mim, telefonando-me sem motivo justificado, arranjando-me tarefas onde eu ficasse a seu lado. Paulo riu: Jorge uma pessoa muito envolvente... Disso sei eu retruquei, apontando o heri mais adiante, rodeado de senhoras e senhoritas, cada qual mais charmosa, mais insinuante e oferecida. Paulo no estava a fim de me dar conselhos, mas, como amigo, recomendava que me acautelasse.

Eu assistia diariamente ao cerco das mulheres volta de Jorge, inclusive assdio por tabela: paparicavam Lila a mais no poder todas as vezes que a menina aparecia no Comit; levavam-na a passear, ofereciam-lhe bonecas, revistas, bombons e caramelos. A fama de Jorge, nesse particular, era de amedrontar; boatos s pampas sobre seus casos e aventuras... chamavamno, pelas costas, de Rasputin, Barba-Azul etc. Por essas e outras, mesmo antes da advertncia de Paulo, eu j me acautelava, reservada, de p atrs. Uma coisa, no entanto, depunha a favor de Jorge, dando-me certa confiana, fazendo-me rechaar os comentrios maldosos a seu respeito: nos inmeros percursos que fazamos de automvel, nas idas e vindas dos comcios, sentados sempre um ao lado do outro, Jorge jamais esboara um gesto, um movimento atrevido. No encostava "sem querer" a perna, nem sequer tentava um "casual" toque de cotovelo em meus seios. Tratava-me com o maior respeito. Antes de partir, Paulo Mendes perguntou por Pancetti, precisava falar com ele. O pintor passara por mim havia pouco, busquei-o ainda com os olhos na direo por onde sumira, mas j no o divisei. Paulo saiu a procur-lo. Ao ver-me s, Jorge largou o grupo de senhoras, veio ao meu encontro, queria saber o que era que Paulo estava me contando: Nada demais... No lhe dei chance de fazer outras perguntas. Tive vontade de dizer, mas no disse, que eu desejava saber o que "aquelas" que o rodeavam lhe contavam de to divertido, fazendo-o rir daquele jeito. Acabava de descobrir que estava com cimes.

NAMOROJorge escrevia diariamente uma crnica para a Folha da Manh: "Conversa Matutina". Um dia perguntou-me se eu costumava ler suas crnicas na Folha; respondi-lhe que sim. Pois no deixe de ler a de amanh. A crnica crnica ou declarao de amor? , que meus olhos devoraram logo cedo, na manh seguinte, era romntica e apaixonada. No citava nome, nem era preciso; num certo trecho dizia assim: "Eu te darei um pente pra te pentear, colar para teus ombros enfeitar, rede pra te embalar, o cu e o mar eu vou te dar..." noite, antes de partirmos para o comcio, perguntou-me se eu havia lido o que escrevera pensando em mim. Perturbada, disse-lhe que no lera ainda, que o faria antes de dormir.

Mas ao solicitar-me novamente uma palavra com a qual terminar seu discurso, disselhe: "Amor!" E o povo da Freguesia do aplaudiu quando, ao encerrar o comcio, Jorge falou "num mundo de paz, de justia e de amor!"

CAYMMI EM SO PAULOVelho amigo de Jorge, seu afilhado de casamento, Dorival Caymmi chegara a So Paulo e hospedara-se na casa do padrinho, no apartamento da Avenida So Joo. Ao aparecer aquela noite no Comit, foi uma sensao! Todo o mundo a rodear o compositor, e pedir-lhe que cantasse. Caymmi no levara o violo, limitou-se a distribuir autgrafos e charme. Na companhia de Isabel e Rivadvia Mendona, dias depois, fui a uma recepo num elegante palacete, festa oferecida aos intelectuais e artistas empenhados na organizao do comcio do Pacaembu pelo proprietrio da casa, Maurcio Goulart. Ficamos no jardim iluminado, onde, entre mesinhas e canteiros de flores, grupos se espalhavam. Logo depois Clvis e Sul, Paulo e Aparecida, juntaram-se ao nosso grupo. Fazamos comentrios, rindo alegres, quando apareceu Jorge. Vinha me buscar: Caymmi est cantando l dentro, venha ouvir. Levou-me pela mo at a sala repleta de gente. A custo conseguimos chegar junto do cantor dos mares da Bahia que, de violo em punho, brilhava com sua voz, sua graa e picardia. Ao primeiro intervalo, Jorge abaixou-se, cochichou algo ao ouvido do compadre. Dedilhando o violo, Caymmi voltou-se para meu lado, lanou-me um olhar conivente, significativo, soltou a voz. Ao meu ouvido Jorge confidenciava: Eu no sei cantar, pedi a Caymmi que cante por mim. E a msica comeou: "Acontece que eu sou baiano / acontece que ela no . Mas tem um requebrado pro lado / Minha Nossa Senhora, meu Senhor So Jos..." Agora a cano dizia: "Tem tanta mulher no mundo / s no casa quem no quer / por que que eu vim de longe / pra gostar dessa mulher?..." Jorge apertou meu brao, olhamos um para o outro; seu rosto estava srio, visivelmente emocionado. E eu? O corao decompassado... Senti que estava irremediavelmente fisgada.

"A NECESSIDADE FAZ VIRTUDES"Pablo Neruda chegara s vsperas do comcio. Ocupado com o poeta, Jorge no poderia participar dos comcios relmpagos programados para aquele sbado, vspera da grande concentrao no Estdio do Pacaembu. Escalada para realizar comcios em companhia de dois lderes universitrios, paranaenses, que falariam em lugares movimentados, eu ficara encarregada de distribuir volantes impressos, fazer convites verbais, minha tarefa habitual. O local do encontro era em frente ao Cinema Brs Politeama, no Brs, entre o final da sesso das oito horas e o incio da sesso das 10; apanharamos os espectadores que saam do cinema e os que entravam. Cheguei um pouco adiantada. A fila para a compra de ingressos era imensa. A Avenida Rangel Pestana regurgitava de jovens fazendo o habitual footing dos sbados e domingos: o bar ao lado do cinema, com mesas na calada, tinha um movimento considervel. Sozinha, eu olhava de um lado para o outro, agoniada procura de meus oradores, que no apareciam... Talvez estivessem perdidos; haviam chegado do Paran na vspera e tinham sido convocados em seguida para essa tarefa... certamente no conheciam bem a cidade... A fila se movimentava, ouviu-se o rudo das cortinas se abrindo; no havia dvida, a sesso estava terminando. Cad meus paranaenses? Aflita, sem esperana de v-los chegar a tempo de aproveitar aquele mundo de gente ali aglomerada ocasio nica! , afobei-me, tomei uma resoluo: pedi ao jovem garom que cuidava das mesas da calada que me emprestasse uma que acabava de vagar, e ao abrirem-se as portas do cinema eu j me instalara em cima da mesinha, a bater palmas, a chamar a ateno sobre mim. No peito e na raa nem sei at hoje onde fui buscar tanta coragem convidei o povo trabalhador do Brs a ir comer sua pastascita domingueira, no dia seguinte, no Estdio do Pacaembu. Que levassem a lasagna e a braciuola na marmita, que fizessem seu piquenique nas arquibancadas da festa de Prestes. Terminava de dar o meu recado quando divisei, entre a massa que me cercava e aplaudia, ainda algum que ria e me estendia a mo para que eu saltasse da mesa. Ai, que vergonha, meu Deus! Era Jorge, que, sabendo onde eu estava, dera um jeito de ir me ver... Assim que se deve fazer, moa... Meus parabns. Merece um beijo. Um beijo ainda tmido, no rosto. Doida de alegria, explicava-lhe que os oradores designados para falar no haviam aparecido, quando eles surgiram, desculpando-se pela confuso. Alis, haviam chegado na hora combinada, eu que me apressara.

O COMCIONaquele domingo, logo de manhzinha, segui para o Pacaembu com o grupo que cuidaria da ornamentao do gramado do estdio. Ainda no eram oito horas e j nos encontrvamos em plena atividade. Os pintores Di Cavalcanti e Clvis Graciano comandavam os trabalhos. Olhvamos aquele imenso estdio vazio, impressionados com sua amplitude aumentada ainda mais pela ausncia do povo , temerosos: conseguiramos ench-lo? Mas nossa dvida dissipou-se com a chegada das primeiras delegaes dos Estados, logo seguidas de outras, mais outras e ainda outras, que em pouco tempo lotaram tudo, no sobrando um nico lugar vago. As roupas coloridas, iluminadas por um sol aberto, enfeitavam, alegravam o estdio. Milhares de pessoas, que no haviam conseguido entrar por falta de lugares, permaneceram do lado de fora, ouvindo os oradores pelos alto-falantes. Do gramado, onde fiquei at o fim do comcio, podia ver Jorge nu tribuna, ao lado de Prestes e de Neruda. Delirantemente aplaudidos, Neruda declamou, Prestes falou ao povo. Desistimos de cantar o hino ensaiado para saudar a chegada de Prestes ao estdio ("Luiz Carlos Prestes, Luiz Carlos Prestes, Cavaleiro da Esperana! / Luiz Carlos Prestes, Luiz Carlos Prestes, democracia sempre avana!" a msica imitava um toque de clarim), pois ningum o ouviria, tal a gritaria e os aplausos ensurdecedores da imensa massa presente. Estava programada para aquela noite uma grande recepo em honra de Neruda e de sua mulher Delia. Eu combinara ir com Jorge. Ao chegar em casa, de volta do estdio, mais morta do que viva, ca na cama e s despertei no dia seguinte. Soube por Vera que Jorge telefonara mas no quisera que me acordasse; chamaria novamente pela manh.

COMEO DE CONVERSATomava o caf da manh quando o telefone tocou. Era Jorge, pedia que eu fosse Praa da Repblica antes do almoo; estaria l a partir das 10, minha espera, que no me demorasse, o assunto era urgente. Sa afobada, j eram quase 10. Encontrei o Comit deserto, apenas umas pessoas varriam, faziam a limpeza. Jorge veio ao meu encontro. Precisava combinar algumas coisas comigo. Haveria noite inaugurao da exposio de Jos Pancetti no Instituto dos Arquitetos. Eu deveria estar l, sem falta, com a lista de adeses ao banquete que estava sendo organizado

para Pablo e Delia. Tudo isso j fora anteriormente acertado e discutido. Aquele no podia ser, evidentemente, o assunto urgente que me arrancara de casa s pressas. Algo no fora dito. A conversa enveredou para outro rumo, comentamos o sucesso do comcio na vspera, soube que, aps o telefonema que me dera, tambm desistira da festa, fora dormir. Finalmente, Jorge convidou-me a ir com ele ao escritrio da editora que ento lhe publicava os livros, para ver o primeiro exemplar de sua nova obra, escrita na Bahia, durante o confinamento. A grfica acabara de enviar os primeiros exemplares. "Vou lamber a cria", sorriu Jorge. "Venha comigo." No txi, dei-me conta de que aquela era a primeira vez que saamos a ss, vivamos sempre com gente volta. Falou-me no livro novo: Bahia de Todos os Santos, Guia de Ruas e Mistrios, disse da satisfao que lhe causara escrever sobre sua cidade. Contei-lhe ento do primeiro romance seu que lera, emprestado por Ristori. Falei-lhe do meu interesse e do desejo de conhec-lo pessoalmente desde aquela poca. Voc conheceu Ristori? admirou-se. Lembrava-se perfeitamente da visita que fizera ao velho anarquista, em 1933; tinham ficado amigos; bebera seu famoso vinho de abacaxi. Segurou-me a mo: Eu queria ter te conhecido naquela ocasio. Certamente me casaria com voc. Seria bom, seria mais fcil... A edio do novo livro, ilustrada por Manuel Martins, estava bonita; Jorge folheou o volume, leu-me alguns trechos. Depois dedicou-me aquele primeiro exemplar: "V Bahia, moa!"

ASSUNTO URGENTEOs programas daquele dia haviam apenas comeado. Agora vamos at o Esplanada disse-me Jorge, ao mesmo tempo que dava o endereo ao chofer do txi. Vamos aonde, Jorge? Ao Hotel Esplanada. Combinei com Pablo e Delia que almoaramos l com eles. Eles querem muito te conhecer. Entrei em pnico. No Esplanada hospedavam-se prncipes, lordes e astros de Hollywood. Era o mais elegante e caro hotel de So Paulo e sempre fora tabu para mim. Olhavao de longe, inacessvel! No podia, de jeito nenhum, almoar num hotel luxuoso daqueles

ainda por cima com Pablo Neruda e Delia dei Carril, mulher elegante mal vestida como estava, de saia e blusa, sandlias baixas, cara lavada... Sara apressada de casa, no me preocupara com maquilagem nem com toaletes... Me desculpe, Jorge, no posso ir desse jeito ao Esplanada. Com um gesto rpido apontei minha modesta indumentria. Por favor, me deixe em casa! Jorge riu de meus temores: Voc est linda... assim mesmo que eu gosto de voc, simples, sem artifcios. Vamos almoar determinou, sem abrir perspectivas de nova recusa , e depois, os quatro, iremos dar uma espiada nos quadros de Pancetti, antes da inaugurao. Ele nos espera, quer que Pablo escolha um quadro. Chegamos cedo ao hotel, bem antes da hora combinada. Nos dirigimos ao bar, escolhemos um lugar discreto, Jorge pediu vinho do Porto. Sem fazer rodeios, entrou, enfim, no assunto urgente: dizendo que me amava, props-me casamento. Casamento sem juiz nem certido, pois vivamos num pas sem divrcio: as leis brasileiras no permitiam aos desquitados a legalizao de uma segunda unio. Viajaria da a dois dias com o casal Neruda, primeiro para o Rio, depois para a Bahia; ficaria ausente uns oito ou 10 dias. Levei um choque: tanto tempo assim sem v-lo? Ao voltar, desejava que eu me mudasse para seu apartamento, iniciaramos, um e outro, vida nova. Queria resolver de uma vez o problema de nosso relacionamento, que no passara t ento de um namoro platnico. Jorge repetiu que me amava e estava certo de que seramos felizes. Encontrara em mim a mulher que sempre procurara. Iramos enfrentar muitas dificuldades e incompreenses, no seria fcil, mas acreditava que acima de tudo estava o nosso amor. Tnhamos direito a buscar a felicidade e devamos faz-lo. At ento ouvira-o calada; tanta coisa linda ele havia dito... tanta coisa que eu desejava ouvir... Sentia uma espcie de tontura, no tanto pelo vinho estvamos no segundo clice como pela emoo. Sbria, teria lhe confessado que tambm o amava, mas o vinho do Porto ajudou-me a ir alm: disse-lhe, com veemncia, sem nenhum constrangimento nem censura, que meu amor por ele era enorme, fora de todas as medidas. Eu o acompanharia para onde quisesse conduzir-me, paraso ou inferno, enquanto sentisse que ele me amava.

JORGE D O BOLODi Cavalcanti, convidado por Neruda para almoar, entrou no bar acompanhado de uma morena espetacular, a ndia, modelo do artista. Sentaram-se nossa mesa.

Levantei-me para telefonar, precisava prevenir Vera de que no almoaria em casa, queria saber de meu filho. Jorge surgiu a meu lado, desejava tambm telefonar. Vou dar o bolo no Pablo disse-me ; ele j tem companhia suficiente. Vamos almoar sozinhos onde ningum nos perturbe. Neruda atendeu de seu apartamento. Depois de dizer-lhe que Di j se encontrava embaixo, Jorge desculpou-se, no podia almoar com eles: "Surgiu um problema urgente a resolver. Inadivel!" Encontrar-se-iam noite, na exposio de Pancetti. Deu-me o brao: Vamos, meu amor? perguntou-me. Vamos, meu amor respondi.

PRESENTE DE NPCIASNa exposio de Pancetti, entre os quadros expostos, havia uma natureza-morta representando a capa da primeira edio de Capites da Areia, o livro colocado sobre uma mesa e, fincada no centro da capa, de p, uma rosa vermelha. Esse quadro era uma surpresa que Pancetti preparara para o amigo. Dirigindo-se jovem encarregada das vendas, Jorge adquiriu-o. Nome do comprador? Zlia Gattai. Voltou-se para mim: Presente de casamento, moa. Voc gostou, teu! Neruda acabara de chegar, Delia veio ao nosso encontro: Es tu novia? perguntou a Jorge. No disse ele, pousando o brao em meus ombros : minha mulher.

CRAVOS VERMELHOSO movimento dos floristas, que armavam seu mercado dirio em frente ao Teatro Municipal, j havia comeado quando por ali passamos de txi, no comeo da madrugada, voltando com os Neruda de um jantar aps a exposio de Pancetti. Das camionetes ali paradas descarregavam flores de todas as cores e de todos os perfumes; grandes quantidades de molhos eram manipulados por mulheres que os colocavam em latas enormes cheias d'gua fresca, para serem vendidos pela manh. Quer parar um momento, por favor? pediu Jorge ao chofer. Desceu do carro, dirigiu-se a uma vendedora que acabava de completar um lato com cravos vermelhos:

Quero esses cravos. A vendedora, solcita, retirou um buqu da lata, sacudiu-o, estendeu-o ao fregus: Duas dzias, esto lindos! A senhora no entendeu disse-lhe Jorge. Quero todos. Pela porta aberta do txi, uma rajada de cravos vermelhos, orvaIhados, cobriu-me da cabea aos ps. Jamais Pablo esqueceu-se dessa cena. Na ltima vez que o vimos, pouco antes de sua morte, ele ainda recordava: "Ia lluvia de claveles rojos en Ia madrugada..." Quanto a mim, a lembrana dessa noite acompanhou-me sempre; ajudou-me em momentos difceis de minha vida.

DONA ANGELINA DESPEDE-SE DA FILHAHavia poucos dias, despedira-me de minha me na casa de Wanda, com quem ela vivia, desde que enviuvara. Foi pois com surpresa que a vi chegar naquela antevspera de viagem. Rosto abatido, ar dramtico, depois de beijar-me, suspirou e disse: Vim te ver mais uma vez. Nem sei como vou agentar de saudades... Perdi teu pai, agora perco voc... Mame estava acabrunhada, profundamente triste, era preciso desanuviar-lhe a cabea. Mas o que isso, me? disse-lhe com carinho. Conversa mais sem cabimento! Quem foi que lhe disse que vai me perder? O Rio de Janeiro fica a um pulinho daqui... duas horas de avio, um instantinho... Quando a senhora menos esperar... l vem ela!... sua filha chegando de surpresa. Vamos ver... suspirou dona Angelina. Tenho tido tanta palpitao, no consigo dormir direito, pensando, pensando... Pensando em que, pelo amor de Deus? Fazia-me forte, fazia-me de desentendida. Por acaso a senhora no gosta do Jorge? Imagine s como a gente se engana! E eu que at pensei que a senhora ia ficar orgulhosa de me ver casada com Jorge Amado! Notei que a palavra casada mexera com ela, mas no disse nada. No nada disso respondeu mame, temerosa de melindrar-me. Eu sempre admirei o Jorge, continuo gostando muito dele.,. No acredito nem fao caso, quando as pessoas vm me contar coisas, falar mal dele... no ligo pra essa gente ruim, gente invejosa... Eu acho ele um rapaz de valor... de muito valor! Mas sabe o que ? Eu fico pensando, imaginando que voc

vai viver longe da famlia, no meio de gente importante, de artistas, sei l... Num mundo diferente do nosso, entendeu? Pode at se esquecer de ns... No querendo me ofender, nem a Jorge, mame falava com meias palavras e eu buscava compreend-la. Estaria ela temendo que a filha viesse a sentir vergonha de suas modestas origens? Mame costumava contar histrias sobre a ingratido de certos filhos. Histrias de velhas famlias suas conhecidas que haviam feito enormes sacrifcios para educar os filhos, que, depois de formados, lhes haviam virado as costas, envergonhados dos pais, dando-lhes segundo dona Angelina, revoltada "uma bela banana". Seria isso que mame pensava de mim? No, no podia ser este o problema que a trouxera a meu apartamento. Ocorreu-me outra hiptese: quem sabe, assustava-se ao imaginar-me despreparada e sem gabarito para acompanhar um homem to importante, to famoso, sem com ele ser legalmente casada, um dia largada ao deus-dar. Tratei de tirar-lhe esse pensamento da cabea: Vou fazer tudo que puder para viver com Jorge at o fim de minha vida disselhe honestamente. E fica acertado: no dia em que houver divrcio no Brasil, vou dar de presente para a senhora a certido de nosso casamento. Ao ouvir falar em divrcio no Brasil, dona Angelina esboou um sorriso incrdulo, balanou a cabea, fez um gesto com a mo: Divrcio no Brasil? V atrs disso!... Aps uma breve pausa, mame recomeou, no havia dito tudo sobre os problemas que a atormentavam: Essa lngua do povo! Inventam cada uma!... Voc nem imagina... Sabe quem apareceu l em casa noutro dia? Diga! No esperou que eu adivinhasse: Dona Eponina! Voc se lembra dela, aquela da Alameda Santos? Claro que me lembrava de dona Eponina, a que passava tardes inteiras debruadas na janela, voz mansa e sibilada, a bisbilhotar a vida dos vizinhos. Mame prosseguia: Eu no via a cara dessa mulher desde aqueles tempos, e no que a peste apareceu noutro dia na nossa porta? No sei como conseguiu descobrir o endereo da gente, foi se bater l em Pinheiros. A princpio nem reconheci ela. Est muito mudada, envelhecida, apesar de continuar se empetecando do mesmo jeito. Nisso ela no mudou. Entrou e foi logo perguntando por voc, te elogiando que s vendo! Que voc era a menina mais linda e esperta da rua, que mais isso, que mais aquilo... e que, agora, a menina to meiga e comportada virar a cabea, dava um desgosto daqueles me viva... Mame fez um parntesis: Se ela soubesse como tenho raiva que me chamem de viva! Continuou: A eu fiquei curiosa de saber qual era esse desgosto to grande que minha filha estava me dando. Ela

ento disse, com a cara mais lavada do mundo, que era aquele que todo o mundo estava sabendo: "Ento a Zlia no fugiu com o Monteiro Lobato, velho daquele jeito?" Disse que sentia muita pena de mim, que imaginava como eu devia estar sofrendo, que estava ali por amizade, que os amigos so para essas horas... O sangue me subiu na cabea, tive vontade de mandar a cretina pro inferno com a amizade dela, mas achei melhor no discutir. Eu s disse que se tratava de uma mentira muito grande e que ela estava repetindo uma infmia. A gente conhecia Monteiro Lobato, e quem que no conhecia? Disse que tinha grande admirao pelo escritor e tambm pelo homem de coragem que ele era (mame se referia priso e condenao de Monteiro Lobato, durante a ditadura do Estado Novo, devido sua luta pelo petrleo). Quanto ao resto, de minha filha fugir a palavra fugir feria dona Angelina no fundo d'alma - com Monteiro Lobato, era pura inveno de quem no tem o que fazer... Amarrei a cara pra ver se ela ia logo embora. Imagine s! Minha filha fugir! Mulher atrevida! Ao recordar a visita da antiga vizinha, dona Angelina voltara a inflamar-se. Ainda bem que a Wanda s chegou na sala depois que a conversa j tinha mudado. Ainda bem. Se ela soubesse que a mulher estava ali s para bisbilhotar e falar mal de voc... Dio ce ne scampi e liberi! Punha ela pra fora das portas. Ao ouvir aquela histria mais doida tive vontade de rir, mas me contive. Ofendida do jeito que estava, mame no iria jamais compreender que eu pudesse achar graa em "coisas to srias"; segundo ela, estava em jogo a honra da famlia. Perguntei: E a senhora ainda se incomoda com a lngua do povo? Faa como eu, me, no ligue. Aquele no era o primeiro boato a surgir a meu respeito a respeito de Jorge tambm havia falatrios em profuso e certamente no seria o ltimo. O bom senso e a vivncia me haviam ensinado que, se eu realmente desejasse continuar meu caminho ao lado de Jorge, no devia dar ouvidos a ningum. Assim fazia, assim fao. Mais um assunto incomodava mame; de to delicado, ela hesitava mencion-lo. Por fim criou coragem: E o menino? Ela tocara num ponto nevrlgico, ferida aberta. Referia-se a Luiz Carlos, meu filho de trs anos. Quando tudo parecia estar resolvido, quando me preparava para levar a criana comigo, apresentaram-me uma lei que proibia a permanncia de meu filho a meu lado.

Luiz Carlos vai ficar por enquanto com a Vera, a senhora sabe disso. No posso fazer nada agora, me, estou de ps e mos atados... Mais uma pausa, outro suspiro fundo: E o que que os pais de Jorge vo pensar? Voc vivendo com o filho deles sem ser casada de verdade... Vo pensar o qu? Que voc no tem famlia, que uma qualquer? Essa agora era boa! O detalhe da legalidade do casamento preocupava aquela mulher liberal, aquela velha anarquista, que eu sempre vira repetindo aulas sobre as maravilhas do amor livre... Dona Angelina a se afligir com a filha solta no mundo sem ser casada legalmente, sem garantias, a enfrentar preconceitos. Sem saber o que dizer-lhe, exclamei com nfase: Viva o amor livre, dona Angelina! Mame no gostou do atrevimento da filha, improvisou um discurso, mais do que um discurso, uma aula sobre aquele tema que era de sua especialidade. Voc sabe muito bem que neste mundo capitalista em que a gente vive, mundo velhaco para as mulheres, no se pode nem pensar em amor livre. O amor livre s para os homens... pra eles nada fica mal... mas a mulher que se atreve a imitar os homens... pobre dela! Cai na boca do povo... Mame suspirou: Amor livre, s num regime anarquista... mas ainda vai demorar... no vai ser para os nossos dias, que esperana! Numa sociedade como a nossa, essa liberdade significa pouca-vergonha. ou no ? Ouvi a lio em silncio, tratei de mudar de assunto, perguntei por Wanda. Mame lembrou-se de me fazer um pedido: No v contar pra ela que eu estive aqui hoje, por favor! Vim escondida. Disse l em casa que ia visitar tia Margarida; vou quando sair daqui. Noutro dia, l em Pinheiros, no pude conversar direito com voc, me desabafar na frente de tua irm. Ela est toda do teu lado, no se pode dizer nada... Me proibiu de vir aqui, disse que eu ia me aborrecer. Mas voc me compreende, no? Se eu no viesse, acho que ia estourar. Agora so os filhos que do ordens... Sabem tudo, sabem mais do que os pais... ... suspirou com aparente resignao ...vai ver que sabem mesmo. Tomara!

O AMORMame no era a nica a temer pelo meu futuro. Alguns amigos mais prximos insinuaram que eu estava para dar um salto no escuro; ia penetrar num mundo diferente do

meu... mudana radical de vida... mulheres a cercar e a cortejar o escritor famoso... eu iria suportar? Teria estrutura para assumir? Eu compreendia perfeitamente a preocupao de meus amigos, porque antes de me decidir a embarcar na aventura (no encontrava outra palavra que definisse o que eu ia fazer), sentira-me temerosa, assustada, confusa, insegura... De repente, deixara de raciocinar; um sentimento que jamais conhecera apoderara-se de mim: o amor. Estava amando, estava apaixonada. Impossibilitada de pensar, de temer... Invadida de alegria, repleta de otimismo e de esperana, decidida a enfrentar o mundo, a derrubar obstculos, a ser feliz. No acertara no primeiro casamento, encerrara essa etapa de minha vida, livro fechado para sempre. Agora, partia para outra tentativa, disposta a no naufragar desta vez. Prometera a mim mesma no poupar esforos; seria cega, surda e muda a tudo que viesse contra o nosso amor.

ADEUS, SO PAULO!As malas fechadas, enfileiradas junto porta, davam-me a certeza de que chegara a hora de dizer adeus a So Paulo. Prometera a mim mesma no chorar. No ia estragar o entusiasmo de Jorge. As lgrimas rolariam, certamente, quando estivesse s, como acontecera aps a dolorosa despedida de mame.

PRIMEIRO VOA nica pessoa a nos acompanhar ao aeroporto foi Fanny. Gentil, levou-me uma caixa de bombons e um presentinho para que eu entregasse a Lila, que viajara havia dias para o Rio de Janeiro, onde passaria a viver com a me. Dia feio, teto baixo impedindo a decolagem, atraso de quase uma hora no embarque. Jorge preocupava-se, pensando na famlia a nos aguardar no Santos Dumont. Impaciente, o Coronel Joo Amado no era homem de esperar por ningum e tinha por hbito chegar sempre adiantado aos encontros marcados. Voc vai reconhec-los em seguida disse-me Jorge. Com minha me voc no vai se enganar: magra, cabelos lisos de ndia; meu pai, baixo, atarracado; Joelson voc j conhece.

Apenas desembarcamos, procurei, entre as pessoas que esperavam o avio, a ndia de cabelos estirados. O homem baixo l estava e a seu lado Joelson, magro e alto; cad Lalu? perguntei-me. Aquela senhora franzina, de cabelos crespos, ao lado deles no podia ser ela, no correspondia descrio. Est vendo eles? Jorge acenava com a mo para o grupo. Parece que tua me no veio... no conseguia disfarar meu desapontamento. Mas ela estava l, sim; era a mulher de cabelos crespos. Que foi isso com seu cabelo, minha me? Jorge apontava-lhe os caracis na cabea. Fiz uma permanente para a formatura de Joelson... respondeu, encabulada. Ficou uma pinia! Enquanto espervamos o txi, dona Eullia deu uma examinada completa na nora que o filho lhe trazia; mediu-me ostensivamente, dos ps cabea. Terminada a verificao, rompeu o silncio, dirigindo-me a palavra, apontando minha cabea: E ela gosta de chapu, hem! Deus me livre de usar chapu. Ave Maria! D uma quentura na cabea!...

PRIMEIROS CONTATOS NO RIOPartimos direto do Aeroporto Santos Dumont para o auditrio do Instituto de Msica, onde se realizava, naquela manh, um ato pblico durante o qual escritores e artistas receberiam as credenciais de membros do Partido Comunista. Entramos no salo superlotado, muita gente de p pelos corredores; a sesso j fora aberta, um orador ocupava a tribuna. Chamado para a mesa, Jorge nos deixou e eu fiquei, meio perdida, na companhia dos velhos. Sentia-me como um peixe fora d'gua, cercada por tanta gente estranha. Dona Eullia, a meu lado, apontava-me pessoas que lhe eram familiares: Olhe aquele ali, o Graciliano Ramos... aquela dona Helosa, mulher dele. O baixinho um pintor famoso... Olhei e reconheci Cndido Portinari. Presidindo a sesso, esse eu conhecia bem, Luiz Carlos Prestes. Ao terminar o ato, Jorge veio ao nosso encontro. Com ele, Graciliano Ramos e Helosa, que me foram apresentados. No consegui disfarar a emoo ao conhecer pessoalmente aquele grande escritor. Acotovelando-se entre o povo que nos rodeava, aproximou-se uma jovenzinha morena, pedindo a Jorge que lhe autografasse a bolsa de couro cru.

Essa Luza, minha filha, Jorge! Voc no a est reconhecendo? Jorge admirou-se de ver a menina de Graciliano to crescida. Voc est uma moa, Luza! disse-lhe enquanto autografava sua bolsinha. No saguo, nesse mesmo dia, fui apresentada a Astrojildo Pereira, escritor e um dos fundadores do Partido Comunista, a quem conhecia de nome, desde a minha infncia. Fora ele quem escrevera elogiosssimo necrolgio a meu av anarquista, Francisco Arnaldo Gattai, integrante da Colnia Ceclia. Entre os recortes de dona Angelina, guardados debaixo do colcho, encontrava-se a pgina do jornal anarquista no qual Astrojildo Pereira dedicara, em sua coluna, palavras sentidas pela morte do velho lutador, seu amigo. Mame nem iria acreditar quando eu lhe contasse que conhecera pessoalmente Astrojildo Pereira, a quem ela dedicava grande admirao. Conheci tambm naquele dia Joracy Camargo, Oscar Niemeyer, a psicanalista Rosita Pontes de Miranda, Paulo Werneck, Quirino Campofiorito, o mdico e deputado Alcedo Coutinho, Roberto Sisson, ex-oficial da Marinha, companheiro de exlio de Jorge no Uruguai, e vrios outros.

PRIMEIRO DILOGO COM LALUSamos com um grupo grande, para almoar. O Coronel Joo Amado j estava impaciente; passara, havia muito, de sua hora de comer. Fomos ao Albamar, restaurante de peixes e mariscos, localizado na parte superior do mercado situado na Praa 15. Sentada ao meu lado, dona Eullia no desgrudava os olhos de mim, olhos de raios X. Precisava descobrir quem era aquela mulher que virar a cabea do filho. Louca para puxar conversa e continuar suas sondagens: Voc no me viu em So Paulo? Pois eu estive l, tem uns cinco pra seis meses, no me lembro bem. Andei aquilo tudo... Conheci um bocado de gente. Eu fui ver Jorge fazer um discurso dentro da igreja, l de cima do altar, na Praa da S. Tinha gente de fazer medo, aplaudindo ele. Como que tu no estava l? Dona Eullia falava-me como se estivssemos a ss. Seu problema de surdez desligava-a da barulheira do restaurante. Longe das frases e exclamaes que se cruzavam de uma outra ponta da mesa, das risadas altas, continuava sua conversa mansa. Concentrava-me para entender o que ela dizia. Eu estivera na passeata monstro que se estendera da Avenida So Joo at a Praa da S, claro que estivera! Depois assistira ao comcio naquele 8 de Maio, dia da queda de Berlim. O

povo, eufrico, festejava nas ruas e nas praas o fim da guerra. Do alto das escadarias da Catedral inacabada, Jorge falara, dedo em riste, na maior emoo: "Berlim no foi conquistada, Berlim foi libertada!" Eu o ouvira e aplaudira. Estava fascinada com seu sotaque baiano, a pronunciar "Berlim", com e aberto. Gostei, pois, quando sua me fez-me recordar aquela tarde de ilimitado entusiasmo, com gosto de vitria e de amor. Soubera da passagem da me de Jorge por So Paulo, no tivera ocasio de v-la. Certamente a pobre pensei , espremida em meio quele mundo de gente, confundira as escadarias da Catedral com o altar da igreja inacabada, o teto metade feito, metade por fazer... Expliquei-lhe como pude, com gestos e gritos em seu ouvido, que havia estado no comcio mas no a vira; que era um daqueles entusiastas a quem ela se referia, aplaudindo o discurso que Jorge pronunciara no alto das escadarias, na praa com o intuito de esclarec-la, frisei bem "escadarias" e "praa". Dona Eullia percebeu a minha inteno de corrigi-la, no gostou: Ento tu no foi na vez que eu fui retrucou, categrica. No dia que eu fui, meu filho discursou l de cima do altar daquela igreja acabada... Como podia eu saber que na Bahia diz-se "acabada" a uma coisa quebrada? O dilogo tornava-se cada vez mais difcil, no somente pelo desencontro de linguagem como devido barulheira que aumentava proporo que os copos iam se esvaziando. Jorge, com um ouvido l e outro c, divertia-se com a minha confuso. Ainda assim, arrisquei explicar a dona Eullia que a Catedral no estava acabada, continuava em construo, a obra marchando lentamente, no terminava nunca! Dona Eullia fez uma cara de satisfao, riu de mim: Tu no entende portugus, menina? Acabada quer dizer destruda, lascada... Lascada? Admirei-me. L estava dona Eullia a empregar, incorretamente, outro adjetivo. Estaria se divertindo minha custa ou era assim mesmo que se dizia na Bahia? No seria eu quem iria corrigi-la novamente. Aquela igreja, onde meu filho falou no altar, est acabada pela guerra repetiu o adjetivo "acabada" numa visvel provocao. Arregalei os olhos: Que guerra, dona Eullia? Essa da, ora! Da que todo o mundo fala... que levou um tempo para terminar. Sentindo-se vitoriosa dissera a ltima palavra , Lalu resolveu ser gentil comigo: Que beleza de cidade So Paulo, hem? Cidade grande, importante mesmo!

LALU OU EULLIA?Era difcil fazer-se um diagnstico da me de Jorge primeira vista; nem primeira vista nem a longo prazo. Porm, de uma coisa fiquei certa naquele primeiro encontro: tinha diante de mim uma personalidade forte. Em sua aparente simplicidade, ela no baixava a crista, dizia o que pensava e bem entendia, no sendo de sua natureza dar o brao a torcer. Me de trs vares, acostumada a lidar com homens durante toda a vida, com os irmos e o marido, coronis das plantaes de c