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Carlos Zacarias F. de Sena Júnior Edilson José Gracioli Felipe Demier Fernando Cauduro Pureza Gelson Rozentino de Almeida Igor Gomes Santos Jeffe Pinheiro Jr Kátia Rodrigues Paranhos Ricardo da Gama Rosa Costa Rodrigo Castelo Branco Rodrigo Dias Teixeira Teones França Victor de Oliveira Pinto Coelho Waldir Jose Rampinelli REVISTA REVISTA Ano 4 - Edição Nº 5 Abril 2008 - R$ 15,00 Trabalhadores e suas Organizações

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Carlos Zacarias F. de Sena Júnior

Edilson José Gracioli

Felipe Demier

Fernando Cauduro Pureza

Gelson Rozentino de Almeida

Igor Gomes Santos

Jeffe Pinheiro Jr

Kátia Rodrigues Paranhos

Ricardo da Gama Rosa Costa

Rodrigo Castelo Branco

Rodrigo Dias Teixeira

Teones França

Victor de Oliveira Pinto Coelho

Waldir Jose Rampinelli

REVISTAREVISTA

Ano 4 - Edição Nº 5Abril 2008 - R$ 15,00

Trabalhadores e suas

Organizações

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Revista História & Luta de Classes Nº 5 – Abril de 2008

SUMÁRIO

Organizadores gerais deste número: Beatriz Loner, Eurelino Coelho e Marcelo Badaró MattosComissão Editorial: Enrique Serra Padros (RS), Eurelino Coelho (BA), Francisco Dominguez (Inglaterra), Gilberto Calil (PR), Lorene Figueiredo (MG), Marcelo Badaró (RJ), Maria José Acedo del Olmo (SP), Mario Maestri (RS), Virgínia Fontes (RJ)Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (RS), Adriana Facina (UFF), Afonso Alencastro (UFSJ), Alvenir de Almeida (FAC e IDEAU-

RS), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Armando Boito (UNICAMP), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Bonamigo (UNIPAR), Carlos Zacarias (UNEB), Cláudia Trindade (FIOCRUZ), Claudira Cardoso (UFRGS), Deminan Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Eduardo Palesmo (RS), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Érika Arantes (UFF), Eurelino Coelho (UEFS), Euzébio Assunpção (Faculdade de Osório), Fabiano Faria (RS). Felipe Demier (UFF), Florence Carboni (UPF), Francisco Carvalho (UFRGS), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelson Rosentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Helen Ortiz (RS), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Isabel Gritti (URI), Joana El-Jaick Andrade (USP), João Raimundo Araújo (FFSD), Jorge Magasish (Bélgica), José Pedro Cabrera (UNOESC), Kátia Paranhos (UFU), Leonardo Bruno (UFRRJ), Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF), Lucelno Lacerda de Brito (PUCSP), Luciana Pereira Lombardo (UFF), Luciano Pimentel (UPF), Lúcio Flácio de Almeida (PUC-SP), Luis Carlos Amaro (RS), Marcelo Badaró (UFF), Maria do Carmo Brazil (UFGD), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Silva (UDESC), Nara Machado (PUCRS), Noeli Woloszyn (Universidade do Contestado), Olgário Vogt (UNISC), Paulo Esselin (UFMS), Paulo Zarth (UNIJUÍ), Pedro Paulo Funari (UNICAMP), Pedro Marinho (MAST), Renata Gonçalves (UEL), Renato Dalla Vecchia (RS), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Romualdo Oliveira (USP), Rômulo Costa Mattos (UFF), Sarah Iurkiv Ribeiro (Unioeste), Sean Purdy (USP), Selma Martins Duarte (Unioeste), Sérgio Lessa (UFAL), Setembrino dal Bosco (UPF), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (UFF), Teones Pimenta de França (FSSSL) Thaís Wenczenovicz (Unoesc), Theo Piñeiro (UFF), Valério Arcary (CEFET-SP), Valter Almeida Freitas (UNISC), Vera Barroso (FAPA), Virgínia Fontes (UFF), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UPF).

Próximos Numeros: Dossiê Imperialismo. Envio de contribuições até 30.4.2008. Dossiê Estado e Poder. Envio de contribuições até 31.7.2008.Distribuição: [email protected] - Foram impressos 1.200 exemplares em Julho de 2008Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Marcio Alexandre Fragoso Machado - Impressão: Gráfica Lider, Av. Maripá, 796 - Telefax: (45) 3254-1892 - 85.960-000 - Marechal Cândido Rondon - PR.

Apresentação 5

ARTIGOS 7

Existe uma economia moral dos trabalhadores? Apontamentos parauma história das estratégias operárias durante a Segunda Guerra Mundial 7

Marxismo e Revolução: da “Estratégia de Derrocada” à “Guerra de Posições” 15

Conluio e cadeias: Considerações sobre a direção pecebista na conjuntura do Estado Novo. 1936-1940 23

O Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948 31

O ABC dos trabalhadores no pós-1964: Os grupos de Teatro Ferramenta e Forja 39

Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização paraa história do Partido dos Trabalhadores 49

A CUT e a mobilização popular na Constituição de 1988 57

Escombros do muro de Berlim sobre o PT e a CUT 67

Memória e conflito no Partido dos Trabalhadores 75

A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000) 85

RESENHAS 83

Uma crônica para os dias de hoje 83

Título da resenha 95

Imperialismo: ele ainda existe? 97

Título da resenha 101

NORMAS PARA OS AUTORES CLASSES 103

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á ainda espaço para se escrever história social do trabalho? A classe

trabalhadora não deixou de ser um objeto de estudo relevante por ter se

perdido a expectativa em seu potencial como protagonista dos projetos e

lutas visando a transformação social? Os sindicatos não são instituições

destinadas a atuar como parte integrante do sistema do capital e os partidos

de trabalhadores não se mostraram, sem exceção, organizações cuja trajetória

inexoravelmente se distancia da sua base social original, por conta de sua

tendência à burocratização e autoritarismo ou simplesmente de sua traição?

Formuladas por interlocutores mais abertamente conservadores, mas

também por analistas e ativistas que se formaram no campo das lutas da

APRESENTAÇÃO

H

classe trabalhadora, tais perguntas nos são postas dia após dia, já faz algum tempo, seja no interior

dos movimentos sociais da classe, seja nas Universidades. Enfrentá-las é um desafio teórico necessário

para todo e qualquer projeto de construção de um conhecimento crítico e comprometido com a

transformação social.

Como não poderia deixar de ser, dada a sua explícita vocação anti-sistêmica, História & Luta de

Classes se propôs a apresentar uma contribuição a tal debate, apresentando estudos sobre a classe

trabalhadora, suas lutas e organizações, no Brasil e no mundo. Estudos que partem de posições à contra-

corrente das respostas – já lugares comuns – mais freqüentes para aquelas perguntas. Perguntas cuja

própria enunciação já demonstra o momento que atravessamos, de ofensiva do capital sobre o trabalho e

de dificuldades de produção de respostas pelos que resistem ao capital.

Trata-se de um quadro que se constrói em escala mundial. No Brasil, suas manifestações mais

recentes passam pela escalada do desemprego nos grandes centros, pelo fato de a maioria da força de

trabalho encontrar-se em empregos informais, pela diminuição no número de greves e do número de

trabalhadores(as) sindicalizados(as). Trata-se, porém, de um quadro que também possui marcas fortes das

opções ideológicas de boa parte das lideranças políticas dos movimentos da classe trabalhadora. Haja

vista, no Brasil, o processo de incorporação à ordem pelo qual passaram importantes construções das lutas

de fins dos anos 1970 e anos 1980, como a CUT, cuja conversão ao sistema do capital iniciou-se na

década de 1990, mas acelerou-se sobremaneira com o governo do ex-líder sindical Lula da Silva.

Nada disso, entretanto, significa fim de linha, ausência de alternativas ou fim da história. Pelo

contrário, como em outros momentos de refluxo das lutas, estão em curso processos de reorganização da

classe que, embora hoje ainda insipientes, demonstram que o futuro das lutas sindicais e políticas dos

trabalhadores, como sempre, continua em aberto para que esses construam sua própria história, ainda que

em condições adversas.

A classe trabalhadora,suas lutas e organizações

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Os editores deste número

Beatriz Ana Loner; Eurelino Coelho e Marcelo Badaró Mattos

O que esse número de História & Luta de

Classes demonstra é que, do lado da Universidade,

ainda existe reflexão historiográfica diversificada e

de qualidade a respeito dos trabalhadores, suas

lutas e organizações. As lutas sindicais estão aqui

presentes, como no artigo de Fernando Pureza, a

respeito das mobilizações da classe trabalhadora

em Porto Alegre na conjuntura do final do Estado

Novo. Outros artigos trataram do campo sindical

em seu passado mais recente, abordando diversos

aspectos da trajetória da Central Única dos

Trabalhadores, como o de Rodrigo Teixeira a

respeito da relação entre a CUT e o FAT e os

artigos de Teones França, a respeito do impacto da crise dos regimes do Leste Europeu

sobre diferentes correntes internas da CUT, e de Gelson Rozentino, sobre a atuação da CUT na

Assembléia Nacional Constituinte. Teones e Gelson introduzem também, ao lado da CUT, o Partido

dos Trabalhadores, abordado também por Felipe Demier, em artigo sobre as mudanças de rumo do

partido, e por Igor Gomes, que discute a disputa de memórias que se instaurou entre os militantes

do partido, a partir de sua chegada ao governo federal, em 2003. Ao tratarmos de lutas sindicais,

pensamos sempre em greves, centrais, estrutura sindical. Mas, se a consciência de classe emerge da

experiência de classe, tratada em termos culturais, na forma de valores, tradições e instituições,

papel importante pode ser desempenhado pela aproximação entre os militantes sindicais e os

“militantes culturais”, como o demonstra o artigo de Kátia Paranhos sobre os grupos teatrais do

ABC, no período de emergência do “novo sindicalismo”.

As organizações de esquerda de um passado menos próximo também estão presentes nas

reflexões aqui contidas, como no caso da análise de Carlos Zacarias sobre o PCB no período do

Estado Novo e no estudo de Victor Coelho sobre o Jornal do Povo, periódico pecebista publicado

em Belo Horizonte, no ano de 1948. A reflexão teórica, que atravessa todos os artigos, é o destaque

no estudo de Ricardo Costa, sobre a estratégia revolucionária sistematizada por Antonio Gramsci. O

número apresenta ainda quatro resenhas sobre obras relevantes, publicadas no último período e que

encontram relação com a temática geral dos artigos.

O fato de História & Luta de Classes chegar ao seu 5o. número, com as tiragens dos

números anteriores praticamente esgotadas, demonstra o fôlego da iniciativa e o interesse

demonstrado, principalmente pelos historiadores em formação, por uma publicação de História que

insiste no referencial do materialismo histórico, como ferramenta importante não apenas para

explicar o mundo, mas também para transformá-lo.

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Existe uma economia moral dos

trabalhadores Apontamentos parauma história das estratégias operárias

durante a Segunda Guerra Mundial

História & Luta de Classes - 7

1Fernando Cauduro PurezaIntrodução: uma economia moral

dos trabalhadores

importante começar esse texto alertando que a abordagem de uma “economia moral” necessita de contextualização. O uso do termo dentro da academia foi consagrado pelo artigo de Edward Thompson, “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII”. Thompson busca, ao longo de seu texto, mostrar que as relações sociais que se estabele-cem em momentos de revoltas “econômicas” não são apenas espasmos provocados pela fome, ou pela escassez. A crítica de Thompson ao economicismo das análises que vêem as revoltas contra fome como reações “naturais” pode ser vista na crítica que ele faz ao “mapa da tensão social”, de Walt Rostow:

Segundo esse diagrama, basta reunir um índice de desemprego e outro, de preços elevados dos alimentos, para poder mapear o percurso da perturbação social. Isso contém uma verdade óbvia: as pessoas protestam quando estão com fome. Numa linha de raciocínio bem semelhante, um “diagrama da tensão sexual” mostraria que o início da maturidade sexual pode ter correlação com uma freqüência mais elevada da atividade sexual. A objeção é que esse diagrama, se empregado de forma pouco inteligente, pode nos levar a concluir a investigação exatamente no ponto em que adquire interesse cultural ou sociológico sério: estando com fome (ou sendo sensuais), o que é que as pessoas fazem? Como o seu comportamento é modificado pelo costume,

“É

1 - Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.2 - THOMPSON, Edward; “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII”. IN: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional; São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 151.3 - Levi é um crítico da idéia de economia moral thompsoniana por perceber nela uma racionalidade econômica já fechada, quase que teleológica, sobre uma série de relações que visam escapar dessa racionalidade. Embora possa se discordar de Levi, a idéia de que as estratégias de ação das classes populares precisam ser entendidas dentro de sua própria racionalidade ainda parece

2pela cultura e pela razão?

A citação do historiador britânico permite que se pense que a reação a uma situação econômica (a carestia, a fome, o desemprego etc.) não é necessariamente espasmódica, mas sim, algo que depende do “costume, da cultura e da razão”. Em uma visão que se propõe crítica a de Thompson, o historiador italiano Giovanni Levi atenta para a necessidade de se buscar as estratégias em que grupos, ou pessoas, buscam “deixar marcas duradouras na realidade política que, embora não sejam suficientes para impedir as formas de dominação, conseguem condicioná-las e modifica-

3las” .

Pode se retomar que a crítica ao economicismo não é novidade no marxismo. Mesmo nomes como Lênin e Gramsci travaram debates com o que consideravam “economicismo”, ainda que dentro de perspectivas diferenciadas. Porém, no âmbito da historiografia, é exatamente nos trabalhos de Edward Thompson que esta crítica atingirá seu estágio mais profundo. A compreensão de que “a experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente” e de que a “consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e

bastante válida para a análise histórica. Ver LEVI, Giovanni; A herança imaterial – Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 44-45.4 - THOMPSON, Edward; A formação da classe operária inglesa; São Paulo; Paz e Terra, 2004, p. 10.5 - Ver THOMPSON, Edward; Lucha de clases sin clases? IN: Tradición, revuelta y conciencia de clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial; Barcelona: Grijalbo, 1984, p. 37.

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8 - Existe uma economia moral dos trabalhadores Apontamentos para uma história das estratégias operárias durante a Segunda Guerra Mundial

6 - Aqui, remeto à frase de Michelle Perrot, de que a greve “é um evento que fala e sobre o qual se fala”. PERROT, Michelle; Workers on strike. France, 1871-1890; New Haven, Yale; Univ. Press, 1987. Citado em MATTOS, Marcelo Badaró (Coord.); Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca (1945-1964); Rio de Janeiro; Ed. APERJ, 2003, p. 43. 7 - Mesmo autores como Caio Prado Jr. interpretaram que as reivindicações salariais imediatas eram relativamente fáceis de ser atendidas por decorrência da inflação pela qual o país passava. PRADO JÚNIOR, Caio; A revolução brasileira; Rio de Janeiro: Brasiliense, 1966, p. 24.8 -É importante ressaltar que mesmo essa historiografia que questionou o

formas institucionais” tornou o prefácio do livro “A formação da classe operária” um dos trechos mais

4citados em artigos acadêmicos de história no Brasil.

A proposta de se buscar uma “economia moral” dos trabalhadores mostra-se “ancorada” na importância da produção historiográfica “thompsoniana”. No entanto, é preciso contextualizar a questão. A “economia moral” – entendida como as formas de organização da consciência de classe diante das questões econômicas – não é um termo que pode ser encaixado dentro das mesmas formas em que se apresentaram as relações dos motins acarretados pela fome no século XVIII. Os casos estudados por Thompson revelam a preocupação de entender conflitos entre plebeus e patrícios diante da economia liberal crescente no contexto inglês que ameaçava os antigos costumes de regulamentação do comércio de grãos.

No entanto, esse conflito não ignora uma condição onde os plebeus ingleses não constituem precisamente uma classe “madura”. A concepção de Thompson é exatamente de que havia uma luta de classes sem classe, ou seja, o conflito existia independente da articulação de uma classe trabalhadora definida, ou para colocar de uma forma mais precisa, com a própria classe se formando e se

5articulando na luta . Mas o conceito de “economia moral” permite que as tradicionais diferenciações entre reivindicações econômicas e reivindicações políticas sejam questionadas e transportadas para a própria realidade dos trabalhadores. Mesmo uma greve de reivindicação salarial pode ser um campo fértil para o historiador aprofundar-se no que concerne às relações sociais desempenhadas pelos trabalhadores, até mesmo porque estes tendem a se

6reconhecer como trabalhadores na própria greve .

Um exemplo desse questionamento que pode ser lançado ao problematizar-se o tratamento das greves realizadas pela classe operária brasileira no período de 1945 a 1964. Muitos analistas questionaram o grau de consciência de classe, em função das reivindicações econômicas de muitas

7dessas greves , enquanto outras análises apontam uma estrutura sindical pouco afeita às mobilizações

8grevistas das categorias .

No entanto, ao aplicarmos o termo “economia moral”, diante de uma classe trabalhadora organizada e consciente, o uso do conceito exige certos cuidados. O principal deles, sem dúvida, é de que o sentido atribuído ao termo “moral” em Thompson remetia para relações pré-capitalistas estabelecidas na economia paternalista anterior. Ou seja, os motins contra a fome eram baseados nos costumes tradicionais dos plebeus ingleses. No caso brasileiro, talvez o elemento que mais chame a atenção é de que o contexto da Segunda Guerra Mundial no país foi um momento de coerção legal e da formação de um código de leis que buscava legitimar uma hegemonia de classe, mas que ao mesmo tempo passava a fazer parte das estratégias de luta da classe operária brasileira, gerando profundas transformações na própria organização política dessa

9classe . Nesta aplicação, o termo moral não remeteria diretamente a uma situação pré-capitalista anterior, mas sim a uma concepção econômica que parece estar se chocando com a superexploração do trabalho e com a vertiginosa alta do custo de vida.

Indo por esse caminho, este artigo se propõe a problematizar as “mobilizações econômicas” dos operários brasileiros no período, tentando mostrar que há um fértil campo para os historiadores investirem seus esforços para perceberem as formas de organização política dos trabalhadores que muitas vezes foram deixadas de lado por essa dicotomia entre reivindicações políticas e reivindicações econômicas. Pretendo aqui enfocar principalmente o período de 1942 até 1945, período onde, por decorrência da Segunda Guerra Mundial, da nova legislação trabalhista e da repressão política do Estado Novo aos trabalhadores, mostra-se bastante fértil para se conseguir realizar a ruptura dessa dicotomia.

Criando os “pelotões de trabalhadores”

De 1942 a 1945, o Brasil passou por uma série de transformações de ordem política, social e econômica que alteraram profundamente as formas de organização da classe operária. Em maio de 1942, o governo de Vargas criou a lei dos impostos sindicais; em agosto o governo declarou guerra aos países do Eixo, o que já era antecipado pelo discurso

caráter das greves do período está sendo revista agora diante de novas pesquisas empíricas que demonstram não apenas um maior número de greves de caráter político, mas também de intensa mobilização de trabalhadores. Para um quadro geral sobre as concepções acerca das greves do período na historiografia brasileira, ver MATTOS, Marcelo Badaró (Coord.); op. cit.,, p. 47 e 48.9 - Para uma interessante referência ao papel das leis trabalhistas como legitimadoras da hegemonia de classe, ver: SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 102.

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10 - GOMES, Ângela de Castro; A invenção do trabalhismo; São Paulo: Vértice, 1988, p. 237.11 - Idem, p. 244-245.12 - Citado em WEINSTEIN, Barbara; (Re)Formação da Classe Trabalhadora no Brasil (1920-1964); São Paulo: Cortez, 2000, p. 123.13 - FRENCH, John D.; Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2001, p. 10. Para um quadro mais geral sobre a posição dos industriais acerca da CLT no período de democratização a partir de 1945, ver: VIANNA, Luiz Werneck; Liberalismo e sindicato no Brasil; Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 254-257.

14 - PAOLI, Maria Célia; Os trabalhadores urbanos na fala dos outros. Templo, espaço e classe na história operária brasileira” IN: LOPES, José Sérgio Leite (coord.). Cultura e identidade operária: aspectos da cultura da classe trabalhadora; Rio de Janeiro: Marco Zero – UFRJ, 1987, p. 57.15 - GOMES, Ângela de Castro; Ideologia e trabalho no Estado Novo. IN: PANDOLFI, Dulce. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 61.

História & Luta de Classes - 9

de Vargas no primeiro de maio, dirigido aos trabalhadores, conclamando-os enquanto “soldados

10da produção” a uma “batalha da produção” .

Enquanto a criação do imposto sindical já anunciava o preâmbulo da legislação trabalhista a ser implementada em 1943, a “batalha da produção” marcava não apenas a entrada na guerra, mas uma série de leis excepcionais que buscavam disciplinar os trabalhadores (especialmente aqueles envolvidos nas indústrias de importância estratégica). Ângela de Castro Gomes argumenta que a pressão dos industriais fez com que o governo suprimisse uma série de direitos trabalhistas em prol do esforço de guerra; entre tais revogações as mais destacadas são a restauração da jornada de dez horas, a suspensão de férias e o fim da mobilidade do trabalho nas indústrias

11de guerra .

Essa suposta contradição permite que se compreenda que a legislação trabalhista era um projeto consolidado pelo governo Vargas; por outro lado, sua aplicação era algo que ainda estava em aberto e dependia de determinadas circunstâncias. No contexto da Segunda Guerra, não foram poucos os empresários que se aproveitaram desse distanciamento entre a lei e a sua aplicabilidade. O embaixador britânico no Brasil observou que “para um país tão afetado pela guerra como o Brasil, a arregimentação de operários têxteis determinada por

12esse decreto-lei foi muito severa. ” Mesmo para os burocratas governamentais que redigiram a legislação trabalhista de 1943, como argumenta o historiador John French, “as visionárias e mesmo utópicas promessas das leis poderiam ser toleradas precisamente porque elas nunca pretenderam ser

13'reais” .

Mas há outro âmbito da vida dos trabalhadores urbanos no período que merece atenção dentro de uma perspectiva voltada para suas experiências: o âmbito da vida cotidiana. Como afirma Maria Célia Paoli,

Quando se pensa em cotidiano popular, condições de vida e trabalho, entendimento de mundo, práticas políticas não estruturadas, parece-me que se reintroduz o simbólico no centro do trabalho das ciências sociais – o simbólico como representação e significado, em

um sentido muito próximo à designação antropológica do termo. Ao redescobrir a história concreta dos dominados, o marxismo, hoje, revalida a noção de experiência vivida das condições reais de existência, como suporte da

14reprodução e da luta de classes .

Durante a guerra, a escassez de produtos de primeira necessidade começa a atingir os trabalhadores urbanos, preocupando inclusive os setores empresariais. Além das cooperativas de consumo que muitas fábricas formavam, uma profusão de pesquisas regionais começa a ser criadas para que se pudesse compreender a alimentação e demais hábitos cotidianos dos operários, dando destaque especialmente à pesquisa do Instituto de Organização do Trabalho (IDORT) de 1942, que demonstrava “cientificamente, as precárias condições de vida dos trabalhadores brasileiros”, que gastavam a maior parte do seu salário na própria

15alimentação .

Essas pesquisas merecem especial atenção. Primeiramente, porque, como fonte, elas podem elucidar uma série de questões sobre o cotidiano dos trabalhadores urbanos das grandes capitais. Ademais, tais pesquisas revelam uma preocupação de setores empresariais e do próprio Estado com a vida dos trabalhadores que, durante o período, era tema de grandes debates.

Acerca do primeiro ponto, as pesquisas permitem uma ampla abordagem sobre os problemas mais cotidianos da classe trabalhadora. Uma pesquisa realizada pelo Departamento Estadual de Estatística do Rio Grande do Sul, em 1943, apontava que a dieta dos trabalhadores era “insuficiente” para as necessidades que eles possuíam, sugerindo um aumento no consumo de legumes e verduras, indicando um consumo prioritário de leite, pão, carne e manteiga. No entanto, um estudo mais detalhado mostra que na cidade de Porto Alegre, de 1939 a 1945, a variação de preços era mais do que emblemática dos problemas de alimentação dos trabalhadores. A carne de segunda aumentou 56% (e inclusive estaria desaparecendo do mercado), enquanto o preço do leite pasteurizado atingiu um aumento de 30%. Esses índices reforçam as informações do consulado americano da cidade, que observavam um aumento

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16 - CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 231.17 - Ver GERTZ, René; Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora UPF, 2005, p. 60-61. Ver também FORTES, Alexandre; Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: EDUCS, 2004, p. 74.18 - Entrevista com Abrelino Freitas em 12/01/96. Citado em FORTES, Alexandre; op. cit., p. 75.19 - LINHARES, Maria Yedda Leite e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; História política do abastecimento (1918-1974); Brasília; BINAGRI, 1979, p. 110.20 - OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista; São Paulo; Boitempo, 2003, p. 40-41.21 - Um exemplo notório sobre essa questão pode ser encontrado no editorial

médio de 64% nos preços de alimentos básicos do período (apenas para uma pequena comparação, basta lembrar que, na cidade de São Paulo, esse aumento

16atingira a média de 75%) . O mesmo relatório afirmava que o aumento salarial médio havia sido de

1732% .

Em entrevista realizada em 1996, o operário porto-alegrense Abrelino de Freitas revela uma situação contraditória dessa época. Por um lado, as cooperativas permitiam que os trabalhadores conseguissem o essencial para a sobrevivência, mas por outro, as famílias precisavam ser parcimoniosas se quisessem se manter sem dificuldades. Abrelino fala:

Então ele [o trabalhador] levava o leite em pó, feijão, o arroz. Ficava então a carne pra comprar, umas coisinhas assim, a verdura, que aquilo também na época era insignificante. Aquele salário que era pequeno, na época, se tornava grande pelas facilidades que tinha. De sorte que ficava tudo dependendo da organização da família. Como criava os filhos, a maneira de vestir. Não tinha também assim muito onde

18gastar, as diversões eram poucas .

O custo de vida dos trabalhadores, por outro lado, não era exatamente a preocupação central dos relatórios apresentados pelas pesquisas, mas certamente não era um dado descartável. As pesquisas serviam inclusive para tencionar o Estado acerca desta questão, exigindo sua intervenção no controle de preços – controle esse que já existia em forma de lei, através do Decreto-Lei 869 de novembro de 1938, que criava a concepção de “crime contra a economia

19popular” . Essa idéia, como revela Francisco de Oliveira, tratava da substituição dos preços do “velho mercado” pelos “preços sociais”, um projeto de acumulação e criação de um novo mercado condizente com a estrutura industrial que se ampliava

20nos anos 30 . Durante o período da entrada do Brasil na guerra, muitos setores empresariais defenderam abertamente a máxima de Mussolini: “mais canhão e

21menos manteiga” . No entanto, a necessidade de criar esse mercado possuía um caráter urgente dada à

condição de miséria dos trabalhadores diante do aumento do custo de vida.

O segundo ponto, que também exige bastante atenção dos pesquisadores, é o fato de que essas pesquisas foram criadas com o intuito de melhorar a produtividade dos trabalhadores. Barbara Weinstein lembra que a fundação do IDORT em 1931 contou com amplo apoio e participação dos industriais de São Paulo, especialmente de Roberto Simonsen, visando, como fim último, a organização racional do trabalho para atingir uma maior

22produtividade . Na busca por pensar uma nova racionalidade para o trabalho fabril e na preocupação com a vida social dos trabalhadores, o elemento central era a lucratividade do setor industrial brasileiro.

Dessa forma, as pesquisas apresentam, por um lado, alguns dados novos sobre o cotidiano da classe trabalhadora, mas também demonstram uma preocupação de industriais e do próprio Estado em manter os operários controlados diante de uma frágil

23“paz social” . Porém, elas ainda são insuficientes para pensarmos uma outra questão: a posição dos próprios trabalhadores.

A atuação dos trabalhadores

Se por um lado percebe-se uma série de discursos patronais sobre os principais processos através dos quais os trabalhadores se relacionaram diretamente com o Estado, – a legislação trabalhista e a carestia provocada pela guerra – é necessário compreender como os próprios trabalhadores passaram a perceber suas próprias experiências neste mesmo contexto.

Diante desses dois eixos que envolvem tanto as questões da produção e da reprodução do capital – a dizer, do trabalho e da vida cotidiana dos trabalhadores – a perspectiva dos trabalhadores levou, em determinadas circunstâncias, a ocasionais aproximações com o Estado Novo. Mais do que uma simetria entre Estado e operários, tratava-se de uma

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da revista Orientação Econômica e Financeira do Rio Grande do Sul de setembro de 1942. A revista, que incluía em seu corpo de colaboradores o industrial gaúcho A. J. Renner entre outros empresários e engenheiros, defendia a necessidade de sacrifícios por parte da população civil agora que o Brasil entrava em guerra contra o Eixo. Dois anos depois a revista publicaria um artigo chamado “a fixação dos preços nas fontes de produção”, criticando o lucro abusivo de industriais e de comerciantes. Ver: revista Orientação Econômica e Financeira, ano II, n. 28, 1944, p. 25-26.22 - WEINSTEIN, Barbara; op. cit., p. 86-88.23 - A frágil “paz social” é um comentário acerca do que Barbara Weinstein afirma ter sido o ano de 1943 em decorrência da aproximação dos sindicatos com os industriais. A própria análise da autora, no entanto, revela que diversos aspectos dos anos de guerra fizeram com que em 1944 já começassem a surgir diversas movimentações de comissões de fábricas e que em 1945 começam a estourar as primeiras greves. Idem, p. 122-123.

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24 - Ver GOMES, Ângela de Castro; O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito; IN: FERREIRA, Jorge (org.); O populismo e sua história. Debate a crítica. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2001, p. 45.25 - FERREIRA, Jorge; O nome e a coisa: o populismo na política brasileira.. IN: Idem, ibidem, p. 103.26 - Na constituição do próprio Estado Novo as greves se tornaram recursos anti-sociais, medida já iniciada pelo Decreto-Lei nº 6 de 18 de dezembro de 1935. Ver VIANNA, Luiz Werneck; op. cit., p. 201e 221. 27 - Em suas memórias, o militante gaúcho do PCB, Eloy Martins, lembra que a orientação do comitê central do PCB de “apertar o cinto para evitar greves” bateu de frente com a reorganização da célula dos metalúrgicos. Tendo em vista a sua própria participação na greve dos metalúrgicos de abril de 1945, na cidade de Porto Alegre, se coloca a distância entre a direção e as bases do partido. Ver MARTINS, Eloy. Um depoimento político – 55 anos de PCB; Porto Alegre; Gráfica Palotti, 1989, p. 73-75.

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“relação entre atores desiguais”, um movimento onde em certos momentos o poder político era resignificado e reutilizado pelos trabalhadores, e, em outros, era objeto da repressão que os mesmos

24sofriam diante das tentativas de se organizarem .

A idéia de uma relação que comungava “interesses comuns entre Estado e trabalhadores” pode ser útil para compreender as próprias posições do Estado Novo, mas não era algo que ecoava sobre

25todos os trabalhadores . Diante da escassez econômica e da superexploração do trabalho em diversas indústrias, muitos movimentos grevistas surgiram a partir de 1942 nas portas de fábricas, em

26comissões organizadas no próprio local de trabalho .

É válido lembrar que mesmo o PCB, a principal representação política dos trabalhadores antes da implementação do Estado Novo, desorganizado e perseguido pelo regime de Vargas, seguia a linha do “apertar os cintos” e defendia a política de que os trabalhadores deveriam contribuir para o esforço de guerra em prol da vitória contra o Eixo. Porém, diante da falta de pão e carne em suas mesas, ou das jornadas de dez horas de trabalho, a reorganização dos trabalhadores se deu muito mais pelas suas bases do que o próprio PCB esperava. Muitos de seus militantes passaram a atuar nas comissões de fábrica, e em muitos momentos, sem seguirem diretamente as orientações do partido, pressionavam as entidades patronais e organizavam movimentos grevistas por fora da própria estrutura sindical – considerada ou como apêndice do governo,

27ou atrelada aos patrões .

Não se pode tomar, no entanto, o PCB como algo esquizofrênico onde a direção e a base estavam separadas por um abismo. O caso de Eloy Martins, por exemplo, mostra a relação direta entre os militantes e os trabalhadores: o PCB não havia fechado completamente seus olhos para as demandas econômicas, e sua respectiva estratégia sindical dependia diretamente das práticas do movimento

28operário .

A própria relação dos trabalhadores com os sindicatos merece atenção destacada. Pode se dizer que em 1942 todos os sindicatos já estavam devidamente controlados pelo Estado através da estrutura sindical oficial – o que implicava em uma

29maior vigilância policial dentro dos sindicatos . No entanto, mesmo o sucesso político de Vargas (e do projeto trabalhista, expresso no crescimento eleitoral do PTB a partir de seu surgimento), “não correspondeu a uma aceitação passiva da proposta

30de subordinação sindical” . Pelo contrário, talvez a discussão estabelecida por John French de um operariado voltado para a disputa pela legislação trabalhista e pela busca incessante em torná-la realidade seja a questão central a se analisar, pois ela permite compreender uma relação onde os trabalhadores não se mostram como indivíduos passivos diante da ação de sujeitos históricos como o Estado, o partido, ou o sindicato, mas sim que lutam para dar sua própria interpretação às leis, o que Maria Célia Paoli chama de “consciência legal dos

31trabalhadores” . Como a mesma autora afirma em trabalho posterior,

E é nessa altura do drama que o Estado, através da legislação trabalhista e da legislação sindical, fez sua aparição. Uma por uma, suas leis foram modificando a organização capitalista da empresa industrial, redefinindo a luta cotidiana que se dava neste espaço. No seu conjunto, e em um processo que durou daí para frente, a fábrica emergiu no plano público, propondo-se, ao mesmo tempo, como uma área de controle do Estado e como um espaço civil de luta pelos direitos ao trabalho e à vida. Cada uma das lutas até então levadas pelos trabalhadores – a luta pelas condições de trabalho e pelo espaço coletivo de trabalho; a luta pela apropriação do tempo de trabalho; a luta pelas garantias de trabalho – foi projetada para a sociedade de modo paradigmático, explicitando e transformando, neste longo processo, a

32concepção de direitos até então vigente .

A resistência operária expressa nas comissões de fábrica, a re-interpretação das leis

28 - COSTA, Hélio da; Em busca da memória: comissão de fábrica, partido e sindicato. São Paulo; Scritta, 1995, p. 43.29 - Em uma assembléia do sindicato dos metalúrgicos de Porto Alegre o presidente do sindicato orgulhosamente fez um discurso celebrando o 12º aniversário da entidade celebrando o fato de não ter ocorrido nenhuma intervenção policial desde o Estado Novo. Na cerimônia, no entanto, estavam presentes o delegado do DOPS do Rio Grande do Sul e o representante da Justiça do Trabalho no estado. Ver: Livro de atas do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre; Ata de Assembléia do Sindicato dos Metalúrgicos – 30/05/1942, ata n. 6, p. 8.30 - MATTOS, Marcelo Badaró; Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002, p. 44.31 - FRENCH, John; op. cit., p. 72-73. Sobre “consciência legal dos trabalhadores”, ver PAOLI, Maria Célia Pinheiro Machado. Labor Law and the State in Brazil: 1930-1950. Tese de doutorado em História; Nirbeck College. University of London, 1988 citado em FRENCH, John; op. cit., p. 9-10.

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32 - PAOLI, Maria Célia; O trabalhador urbano na fala dos outros, p. 69-70.33 - WEINSTEIN, Barbara; op. cit., p. 121.34 - FORTES, Alexandre; op. cit., p. 213.35 - PAOLI, Maria Célia; op. cit., p. 89.36 - As informações subseqüentes se referem ao processo de MANOEL SANT'ANA DE SOUSA, nº 5555, maço 319, estante 29, novembro de 1943, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

37 - Ressalta-se também a importância de entender o papel das mulheres operárias que ao mesmo tempo em que trabalhavam nas fábricas, eram vistas também como donas de casa. Para um quadro geral sobre o papel da mulher nos bairros operários de Porto Alegre da era Vargas, ver FORTES, Alexandre; op. cit., p. 63-69.38 - OLIVEIRA, Francisco de; op. cit., p. 38.

trabalhistas e a reorganização sindical, no entanto, devem ser pensadas não como a forma inicial de uma luta, mas sim como conseqüência de um processo maior de enfrentamento entre trabalhadores e patrões. Se os sindicatos faziam grandes almoços com

33industriais para celebrar a “paz social” em 1943 , os trabalhadores possuíam uma série de estratégias que, antes de aceitar a “paz social” e a “união nacional”, colocavam em xeque a exploração que era sentida cada vez mais. Se em algumas fábricas os operários jogavam no chão os folhetos políticos que recebiam, isso não significava que eram arquétipos do modelo

34ideal de operário que os industriais esperavam .

Muitos são os casos encontrados de furtos e 35sabotagens nas fábricas . No entanto, no contexto da

própria década de 40 e das transformações nas relações trabalhistas, essas formas de ação direta dentro das fábricas ganhavam novos contornos. Um caso emblemático seria o do operário Manoel Sant'Ana de Sousa, que trabalhava na fábrica de

36vidros Sul Brasileira, localizada em Porto Alegre . “Seu Manoel” era um operário analfabeto, de 65 anos de idade e que no dia 15 de julho de 1943, na hora da saída da fábrica, foi surpreendido pelo gerente Fernando Daniel Targa que o acusou de furtar quatro garrafas de leite vazias. Somente a história pessoal de “seu Manoel” e as garrafas dariam assunto suficiente para um extenso estudo de caso.

No entanto, o que chama mais atenção em todo esse processo aparentemente banal, é que nos autos do inquérito que teve de responder, o seu advogado, Luiz Luz, faz uso de uma estratégia extremamente inovadora para a época: ele alega que devido à idade avançada de “seu Manoel”, o gerente tinha interesse em demiti-lo para evitar ter de pagar a aposentadoria. É de se questionar se o “seu Manoel” realmente sabia dos direitos que estavam sendo estabelecidos e da defesa que o seu advogado fazia, sendo que ele próprio era iletrado, mas o fato é que os gerentes da fábrica tinham conhecimento dessa legislação. E ainda que sua intenção realmente fosse acusar o operário de furto e com isso demiti-lo, a argumentação do advogado é voltada para demonstrar que os furtos são constantes dentro das fábricas e que “seu Manoel” havia sido apenas um bode expiatório para os interesses de seus patrões.

Processos-crimes como o de Manoel de

Sousa são fontes interessantes para percebermos as relações entre operários e patrões fora do âmbito estatístico e deslocado das organizações políticas operárias (ainda mais em um período onde fora dos sindicatos, elas não poderiam existir). Relações familiares em uma mesma comunidade, ou espaços de sociabilidade como os botequins, praças, jogos de futebol e bailes são elementos que podem trazer novas questões sobre a organização dos trabalhadores e que inclusive podem elucidar aspectos de suas

37reorganizações políticas .

Alguns processos-crime mostram que esses espaços de sociabilidade são locais de discussões, debates e até mesmo de práticas desses trabalhadores. Outras fontes, no entanto, são ainda mais reveladoras sobre as noções de “preço justo” entre os trabalhadores urbanos diante de um período de escassez de alimentos e desvalorização dos salários – contexto onde é implementado o próprio salário

38mínimo, como ressalta Francisco de Oliveira . É o caso da seção de cartas chamada “Queixas do público”, do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Durante o período de 1942 até maio de 1945 foram encontradas 38 cartas de trabalhadores enviadas para a redação do jornal exigindo cumprimento do tabelamento de preços, aumento de salários, abonos familiares e até mesmo intervenção policial no comércio porto-alegrense.

À medida que suas relações e seus costumes se tornam mais claros nessas fontes, surge a necessidade de compreender como os próprios trabalhadores se reconheciam. A atualidade da idéia de Richard Hoggart ao estudar a cultura operária inglesa na década de 1950, deve ser ressaltada:

Devemos tentar ver, para além dos hábitos, aquilo que os hábitos representam, ver através das declarações e respostas o que estas realmente significam (significado que pode ser oposto a essas próprias declarações, detectar os fatores emocionais subjacentes às frases

39idiomáticas e observâncias ritualísticas) .

Nesse sentido, as palavras de Hoggart são inspiradoras. A própria identidade dos trabalhadores estava sendo negociada nessa nova conjuntura. Mas mesmo diante de uma conjuntura onde a repressão política exigia novas formas de organização e onde a exploração do trabalho e a carestia que atingia os

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39 - HOGGART, Richard; As utilizações da cultura 1: aspectos da vida cultural da classe trabalhadora.; Lisboa; Editorial Presença, 1975, p. 17. 40 - THOMPSON, Edward; Folclore, antropologia e história social; IN: Edward Thompson; As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001, p.235.41 - As greves de 1945 em Porto Alegre possuem, todas, sem exceção, uma motivação salarial bastante acentuada. No entanto, sua construção dependeu de discursos acerca da excessiva exploração do trabalho em tempo de guerra sem uma contrapartida que lhes fosse equivalente. Mais emblemático ainda que das mais de 15 categorias em greve, nenhuma delas construiu suas greves através do seu sindicato de classe – o que gerou críticas da própria Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul. Ver: Correio do Povo, 18/04/1945: “Ponto de vista do

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operários eram elementos constitutivos de suas vidas, pode se perceber que os trabalhadores estavam presentes nesses processos de negociação.

Pode se falar de uma economia moral operária?

Volta-se, então, ao ponto de partida. Que formas as relações econômicas dos trabalhadores se interligam com suas relações políticas, sociais e culturais? De que forma eles se organizam e se reconhecem enquanto classe em uma comunidade afetada por problemas comuns? Diante de um período repressivo, quais as estratégias usadas para superar as dificuldades que iam desde a criminalização do direito de greve até a escassez de alimentos na mesa da família?

Todas essas perguntas não permitem uma resposta automática sobre uma economia moral dos trabalhadores propriamente dita. Mas elas podem indicar alguns dos caminhos onde uma investigação que permita a apreensão das relações estabelecidas entre trabalhadores e poderes locais, ou institucionais devem trilhar. No entanto, essas relações são “relações entre atores desiguais”, que, por mais que seus atores dêem diferentes significados, ainda são relações de dominação.

Certas noções como o “preço justo dos gêneros alimentícios de primeira necessidade” indicam que os trabalhadores não concordavam diretamente com a justificativa de empresários e fazendeiros sobre o aumento de preços necessário para a conjuntura da guerra. Mais do que isso, também apontam formas de se pensar a economia doméstica de uma forma diferente diante das relações de mercado capitalista que lhes eram impostas no período de intensa urbanização da cidade. Nas palavras de Edward Thompson, “a 'economia' só pode ser entendida no contexto de uma sociedade urdida assim. A vida 'pública' emerge de dentro das

40densas determinações da vida 'doméstica'” .

As greves ocorridas no início de 1945, na abertura do regime varguista, por exemplo, revelam uma intensa organização dos trabalhadores acerca de

questões que contrariavam diretamente os pressupostos da economia doméstica das famílias de

41trabalhadores . Eles se pensaram enquanto trabalhadores e se afirmaram como tal em seus discursos e em suas práticas. Mas essa intensa organização não pode ser pensada como o princípio de uma intensa luta; pelo contrário: ela é conseqüência de uma série de conflitos e tensões já existentes, que se colocam diante do cotidiano dos indivíduos. Conseqüência não como um ponto final da luta, mas sim como um momento onde ela ganha novas formas, se constrói sobre novas relações e se

42permite inclusive alterar a própria cotidianidade .

É importante ressaltar também que as dificuldades em se realizar uma história da classe

43trabalhadora já foram mais do que debatidas . No entanto, é pertinente salientar que ao fazer uma história vista “de baixo”, os historiadores se deparam com poucas fontes que conseguem dar voz aos trabalhadores. As entrevistas, as memórias, os processos-crime e a imprensa são alguns dos principais elementos que conseguem reconstruir, ainda que não de forma completa, o mosaico do cotidiano e da organização operária. Mas são escassas diante de uma série de informações “oficiais” da grande imprensa e das instituições políticas. Muitas vezes se exige um cruzamento entre as mais diversas fontes para que se consiga dar voz aos trabalhadores sem perder de vista os limites que se impõem à sua ação, assim como as estratégias que usavam para “driblar” esses limites. Enfim, se permite então questionar a dicotomia entre as interpretações que inferem uma “autonomia”, ou uma “heteronomia” na ação dos trabalhadores. Dessa forma, o grande desafio é aquele concebido por Thompson, ou seja, resgatar os operários da condescendência dos pesquisadores e mostrá-los como sujeitos ativos, detentores de experiências e construtores de sua própria história.

Mas, diante dessas dificuldades em se escrever uma história operária vista pelos próprios trabalhadores, a idéia de buscar na economia moral não pode emergir como uma abstração hermética onde se encaixem as suas experiências. Como diz Thompson,

juiz do trabalho”, p. 8.42 - A greve como forma de alterar o cotidiano, no entanto, não implica que ela mesma não tenha uma cotidianidade própria, uma regulamentação disciplinar de seus membros e das hierarquias que o movimento constrói para sua defesa. Em uma discussão semelhante, Karel Kosik afirma que a “História altera o cotidiano, mas o cotidiano determina a História”, já que tudo possui sua própria cotidianidade. Ver KOSIK, Karel; La dialéctica de lo concreto; México: Gufalbo, 1967, p.94-95.43 - Um dos textos mais clássicos sobre esse debate pode ser visto em THOMPSON, Edward. A história vista de baixo. IN: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos.

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44 - THOMPSON, Edward; Economia moral revisitada.; IN: Costumes em comum, p. 261.45 - HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. São Paulo; Paz e Terra, 2000, p. 30.

Se empregarmos a terminologia de classe, a “economia moral” então pode se referir nessa definição ao modo como as relações de classe são negociadas. Ela mostra como a hegemonia não é apenas imposta (ou contestada), mas também articulada nas relações diárias de uma comunidade, sendo mantida apenas por concessão e proteção (nos bons tempos) e, pelo menos, por gestos de amparo nos tempos

44difíceis .

Se em “tempos difíceis” os historiadores podem perceber as relações sociais que os trabalhadores construíram e/ou foram lançados, surge também um espaço para se perceber outras lutas anteriormente ignoradas pela historiografia, conflitos que consolidaram os contornos da classe trabalhadora brasileira. Faz-se necessário inclusive ponderar essa busca por conflitos anteriormente esquecidos, como as questões salariais do período democrático de 1945 a 1964 diante da situação atual do mundo do trabalho hoje. Os trabalhadores brasileiros se vêem diante de um impasse em que por um lado devem rever suas próprias organizações e movimentos, mas por outro, precisam buscar nas lutas do passado o substrato para as suas lutas atuais. Antes de receberem esse passado pronto de terceiros, como afirma o historiador Eric Hobsbawm, fica a esperança e o chamado à luta para que eles possam construir sua própria história através

45de suas experiências de vida .

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Marxismo e Revolução: da “Estratégia

de Derrocada” à “Guerra de Posições”

Ricardo da Gama Rosa Costa1

N os tempos de Marx e até a III Internacional, as grandes lideranças do movimento operário e do socialismo, quase sempre, enxergavam as crises econômicas do capitalismo como oportuni-dades para o assalto revolucionário ao poder, em razão das revoltas explosivas que provocavam nas massas depauperadas e famintas. Marx e Engels, ao analisarem as revoltas populares de 1848 na Europa, que envolveram a participação de diversos movimen-tos, basicamente, em torno de lutas libertárias nacio-nalistas, tendo sido desencadeadas pelas crises econômicas decorrentes das más colheitas nos anos precedentes, esperavam que, após a derrota inicial, uma nova crise viesse a encontrar o proletariado mais experiente e organizado para detonar a revolução, o que não veio a ocorrer. Outras crises aconteceram, mas a revolução, não, com exceção da revolta dos trabalhadores parisienses em meio à Guerra Franco-Prussiana de 1871, levando à tomada da Comuna de Paris, a qual acabou sendo massacrada pelas forças burguesas após alguns meses.

No entanto, diversos pensadores do socialis-mo continuaram a ver como próxima a derrubada do capitalismo, como conseqüência imediata das suas sucessivas crises. Declarações como as de Lafargue (“A revolução está próxima ... bastará o choque de duas nuvens para determinar a explosão humana”), Kropotkin (“Senhores, acreditem-me, a revolução social está próxima. Antes de dez anos, ela eclodirá”)

2e outros, citados por Michel Beaud , expressavam uma visão determinista da história, que acabava por reduzir ou mesmo negligenciar o papel da consciência de classe no processo de transformação social. Por outro lado, esta posição refletia uma leitura da conjun-tura internacional que ainda não era capaz de incorpo-rar as transformações operadas nas superestruturas da sociedade nos países onde se dava o pleno desenvol-vimento das relações capitalistas, em que se organiza-vam novos modos de dominação sobre os trabalhado-

1 Doutor em História pela UFF. Professor da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéa – Nova Friburgo-RJ.2 BEAUD, Michel. História do Capitalismo: de 1500 aos nossos dias. São

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res e novas relações com a classe operária, capazes de amortecer, ultrapassando a utilização pura e simples dos mecanismos de repressão, as reivindicações operárias.

Além disso, o próprio processo de aprofun-damento da concentração do capital, com a redução da concorrência em nível nacional e da sua transferên-cia para a esfera mundial, a acompanhar a expansão imperialista, cuidava de adaptar as relações econômi-cas às novas condições do capitalismo monopolista, reagrupando e realocando capitais, o que acabava proporcionando a superação e absorção das crises cíclicas, com o capitalismo demonstrando ter mais fôlego e sobrevida do que imaginavam os revolucio-nários de então. Nas novas condições do capitalismo monopolista, as crises econômicas passavam a ter efeitos nem sempre imediatos e amplamente visíveis, pois se desenvolvia um processo de superprodução crônica, de desperdício crônico das forças produtivas, como já apontava Kautsky em 1892, citado por Lincoln Secco, a indicar que tais crises não revelavam de forma tão evidente como antes a destruição das forças produtivas, pois eram “graduais e de longa

3duração” .

Engels, na Introdução de 1895 à obra de Marx As Lutas de Classes na França, também passava a reconhecer que a história havia desmentido sua expectativa e de Marx, logo após 1848, no sentido da eclosão de uma nova crise econômica mundial para que se desencadeasse a revolução. Compreendia que as relações capitalistas, em meados do século XIX, demonstraram ainda possuir grande capacidade de expansão, estando muito longe do amadurecimento necessário para a sua supressão. Segundo ele, a revolução industrial forjara uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado da grande indústria, levando a luta de classes a ampliar-se a toda a Europa, numa intensidade inédita, destarte as massas estarem divididas segundo suas nacionalidades e confusas

Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 217.3 SECCO, Lincoln. Crise e estratégia em Gramsci. In: DIAS, Edmundo Fernandes (e outros). O Outro Gramsci. São Paulo: Xamã, 1996, p. 83.

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4 ENGELS, Friedrich. Introdução. In: MARX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848-1850). São Paulo: Global Editora, 1986, p. 36.5 ANDERSON, Perry. Afinidades Seletivas. São Paulo: Boitempo Editorial,

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pelas pregações das diferentes seitas políticas.

Engels chegava à conclusão de que a luta de classes alcançara um novo patamar, que exigia uma outra forma de enfrentamento da parte do proletaria-do.

Embora esse poderoso exército do proletariado não tenha ainda podido alcançar seu objetivo, embora longe de conquistar a vitória de um só golpe decisivo, seja necessário que ele progrida lentamente de posição em posição em um combate duro, obstinado, está provado em definitivo que era impossível, em 1848, conquis-tar a transformação social por um simples ataque

4de surpresa .

Para ele, havia passado o tempo das revolu-ções executadas por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes, tendo a Comuna de Paris representado o fecho deste período, uma idéia que, mais tarde, seria igualmente abraçada por Gramsci. Era necessário, portanto, desenvolver um trabalho longo e perseverante para comprometer as massas com todo o processo de transformação social, para que compreendessem o motivo pelo qual esta-vam dando seu sangue e sua vida. Aliava a esta certeza a compreensão de que as camadas médias, na sociedade capitalista, jamais se agrupariam de modo exclusivo ao lado do proletariado. Para a nova estratégia de luta certamente contribuía a conquista do sufrágio universal, transfigurado de mero “meio de engodo” a instrumento de transformação, o que não significava renunciar à perspectiva da revolução, mas, pelo contrário, de conquistar todos os postos que estivessem ao alcance do movimento operário para que não mais ocorressem ataques sem preparação. É importante ressaltar este ponto, pois o próprio Engels indignou-se com os cortes feitos em seu texto pelos editores, temerosos da censura, no prefácio de 1895 para a edição alemã de As Lutas de Classes na França, que poderiam levar a uma visão deturpada de suas conclusões, transformando-o em um simples apolo-gista da legalidade e dos métodos constitucionais.

Perry Anderson nos fala do debate travado, em 1910, entre Kautsky e Rosa Luxemburgo, no qual o primeiro argumentava que a classe operária alemã, naquela etapa da luta contra o capital, deveria adotar a “estratégia do esgotamento”. Tal estratégia consistiria na participação em campanhas eleitorais sucessivas na Alemanha, que permitissem ao SPD (Partido Social Democrata Alemão) ocupar a maioria das cadeiras no parlamento e, desta forma, impor con-

quistas favoráveis aos trabalhadores. Kautsky atacava a proposta de Rosa, denominada por ele de “estratégia de derrocada”, pois, baseada em greves militantes de massa, seriam fadadas ao fracasso em um estado policial absolutista, que excluía qualquer possibilida-de de construir partidos ou de exercer, através das massas populares, uma influência constitucional qualquer junto ao governo. Segundo ele, a experiên-cia da Comuna de Paris já havia demonstrado que os dias da tática de derrocada estavam contados, e os fundamentos de uma nova estratégia revolucionária haviam sido lançados por Engels na sua introdução a A Luta de Classes na França.

Kautsky afirmava ainda que, na Rússia czarista, a “estratégia de derrocada” era possível de ser adotada, com o proletariado russo lançando mão de uma greve geral revolucionária em 1905, porque naquele país não havia sufrágio universal, direitos de reunião, nem liberdade de imprensa, e o governo encontrava-se isolado externa e internamente, derrotado militarmente no estrangeiro e acossado pelas revoltas camponesas em seu vasto território. Na Europa ocidental, entretanto, os operários eram mais numerosos, melhor organizados e já dispunham de liberdades civis, ao mesmo tempo em que enfrenta-vam um inimigo de classe mais poderoso, principal-mente na Alemanha, a dispor de uma forte máquina estatal, composta de exército e burocracia disciplina-dos. “Daí que as greves turbulentas de massas eram

6inapropriadas ao Ocidente” e deveria se investir em uma forma de luta capaz de ampliar os direitos e liberdades já conquistados, centralmente junto ao parlamento. Rosa combateu as idéias de Kautsky identificando-as com uma proposta essencialmente reformista, o que acabaria se confirmando, mais tarde, na prática política desenvolvida pelos social-democratas alemães.

Segundo Anderson, haveria grande seme-lhança entre as análises de Kautsky e de Gramsci sobre Ocidente x Oriente e as formulações em torno da “estratégia de derrocada”/“guerra de movimento” e “estratégia de esgotamento”/“guerra de posições”, tratando-se, para ele, de uma coincidência surpreen-dente. No entanto, não é possível deixar de registrar que, enquanto a proposta de Kautsky centrava-se numa estratégia parlamentar, Gramsci não empenha-va muitas ilusões no parlamento, apostando, isto sim, na luta revolucionária, que se daria da sociedade civil para a sociedade política. O mais importante a realçar no texto de Perry Anderson é a contextualização

2002, p. 79.6 ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 83.

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7 Ibidem, p. 78.8 LÊNIN, V.I. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1987, p. 14.

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histórica do princípio de “guerra de posição” gramsci-ano, elaborado em contraposição às orientações da Internacional Comunista durante o chamado “terceiro período”, entre 1928 e 1934, época em que vigoraram formulações ultra-esquerdistas como a do “social-fascismo”, a identificar fascismo e social-democracia, a dos “sindicatos independentes” e a do

7“assalto às ruas” . A premissa destas idéias fincava-se na previsão de uma imediata e catastrófica crise no mundo capitalista, visão que acabaria sendo, em parte, corroborada pela crise de 1929. Gramsci, no entanto, negava, em seus textos no cárcere, que o povo italiano tivesse abandonado totalmente as ilusões social-democratas ou democrático-burguesas, sendo ainda premente a realização de um trabalho político-ideológico paciente e profundo capaz de preparar as massas para a tomada do poder e a cons-trução do socialismo.

Gramsci e a construção do conceito de “guerra de posições”

Após a Revolução Socialista de 1917, na Rússia, o movimento comunista internacional viu-se, mais uma vez, envolvido na crença de que a ruptura histórica com o capitalismo era iminente e de que uma nova onda revolucionária iria varrer o mundo, estabelecendo rapidamente, na Europa e no ocidente, uma nova sociedade dirigida pelos operários. O próprio Lênin, em prefácio de 1920 à sua obra Imperialismo, fase superior do capitalismo, afirmava que “o imperialismo é o prelúdio da revolução social

8do proletariado” , numa conclusão à análise desen-volvida em seu texto, que destacava o “parasitismo e a decomposição do capitalismo” na fase imperialista, caracterizando-o, mais exatamente, “como um

9capitalismo agonizante” . Este estaria imerso na “ruína universal” engendrada pela Primeira Grande Guerra, a qual teria desencadeado uma crise revoluci-onária mundial, que terminaria de forma inevitável na revolução proletária.

Antonio Gramsci, em seus trabalhos no tempo das lutas revolucionárias em Turim (1919), quando à frente da experiência de luta operária sintetizada nos “conselhos de fábrica”, acompanhava ainda, sem grandes alterações, a perspectiva apontada por Lênin, caracterizando o quadro da vida internaci-onal marcado pelo imperialismo e pelo pós-guerra como “de um espantoso vendaval em paisagem de ruína”, que indicava o esfacelamento da sociedade capitalista, ao passo que a revolução comunista

10encontrava-se “em marcha batida” . Em sua análise, apontava que o imperialismo não era apenas resultan-te de um processo de brutal concentração capitalista, de concentração máxima da propriedade privada, mas de liquidação de qualquer tentativa de um capitalismo nacional, promovendo a morte do Estado nacional, que havia se transformado em uma esfera de influên-cia, um monopólio nas mãos de estrangeiros. O imperialismo, portanto, unificara o mundo, criando uma hierarquia que, controlando de forma autoritária as nações, provocara o desencadeamento de forças “demoníacas”, incapazes de serem controladas pela classe dirigente burguesa em cada país.

Diante deste quadro de grave crise vivido pelo capitalismo, a atualidade da revolução socialista estava igualmente colocada, para Gramsci, mas já era possível perceber, em suas palavras, a preocupação em querer se diferenciar das visões que a apontavam como uma inevitabilidade do processo histórico, como uma dedução mecânica da crise imperialista. O revolucionário italiano, ao destacar a participação dos bolcheviques na Revolução de Outubro, dizia que ela somente fora possível graças a um trabalho intenso de propaganda, esclarecimento e educação das massas, responsável pela conquista do consentimento ativo e da participação ativa da população.

A idéia de que a revolução proletária não viria como reflexo imediato das crises capitalistas, sem que, para se alcançar tal objetivo, houvesse um amplo trabalho anterior de preparação e conscientiza-ção das massas, fortaleceu-se, em Gramsci, nos anos posteriores aos revezes sofridos pelo movimento operário, tanto dentro da Itália, com o esvaziamento e a derrota da experiência dos conselhos, em 1920, quanto fora dela, com os fracassos das tentativas revolucionárias na Hungria e na Alemanha, além dos graves problemas experimentados pelos bolchevi-ques na Rússia durante o período conhecido como “comunismo de guerra”. Estas situações foram acompanhadas da ascensão do fascismo, fenômeno político surpreendente, ao fincar suas bases de sustentação social nas próprias massas, através de um discurso ideológico capaz de ganhar consciências e mobilizar para a ação. Dentro em pouco, governos reacionários se constituíram na Europa, demonstran-do que a crise econômica, longe de ter levado ao esfacelamento do capitalismo, gerara um quadro político que favorecia sua continuidade e seu revigo-ramento.

Em texto produzido anteriormente à sua

9 Idem, ibidem, p. 125.10 DIAS, Edmundo Fernandes. Gramsci em Turim: a construção do conceito de hegemonia. São Paulo: Xamã, 2000, p. 120.

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11 GRAMSCI, Antonio. La costruzione del Partito Comunista, 1923-1926. Turim: Einaudi, 1971 apud SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a Sociedade Civil. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, pp. 22-23.

12 COUTINHO, Carlos Nélson. Marxismo e Política: a dualidade de poderes e outros ensaios, São Paulo: Cortez Editora, 1994, p. 52.13 GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos – Volume 2 (1921-1926). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, pp. 183-184.

prisão, Gramsci afirmava que, nos países ocidentais, diferentemente da Rússia czarista, a classe dominante demonstrava possuir reservas políticas e organizacio-nais capazes de absorver os efeitos das crises econô-micas, as quais, “mesmo gravíssimas, não têm repercussão imediata no campo político, onde as estruturas do Estado são mais resistentes do que se

11possa imaginar” . No Ocidente, o poder de Estado passava a se apoiar, grandemente, nas camadas médias ampliadas pelo aprofundamento das relações capitalistas de produção e nos aparelhos privados de hegemonia que se firmavam na sociedade civil, ao passo que, na Rússia, o Estado absolutista excluíra de qualquer possibilidade de participação política não só as classes populares, mas também as camadas inter-mediárias. Gramsci percebia que, enquanto a vitória da revolução socialista fora possível na Rússia, através de um ataque explosivo concentrado em breve lapso de tempo, devido às características do Estado czarista, um estado composto basicamente de apare-lhos coercitivos e repressivos, nos países de capitalis-mo desenvolvido, o “assalto frontal” dificilmente obteria o mesmo sucesso diante da superestrutura ampliada e mais consistente dos Estados ocidentais. Nestas sociedades, desenvolvera-se uma realidade social marcada pela existência de uma vida parlamen-tar e de partidos políticos consolidados, graças à conquista do sufrágio universal, além de sindicatos, associações representativas dos interesses dos diversos grupos econômicos, sociais e religiosos e uma imprensa cada vez mais influente.

A presença de uma forte sociedade civil, portanto, substituía a realidade do Estado “oriental”, reduzido a uma “máquina burocrático-militar”, pelo desenvolvimento de aparelhos consensuais expressos nos parlamentos e em outras organizações políticas e sociais, capazes de envolver os organismos privados de hegemonia em políticas projetadas pela classe dominante. Um grande exemplo inserido neste contexto foi o da mobilização das nações para a Primeira Guerra Mundial, que contou com o consenti-mento ativo de amplas parcelas das populações dos países beligerantes, onde os partidos social-democratas, fortemente enraizados nas massas operárias, apoiaram a política das burguesias naciona-is, pactuadas nos Estados e nos parlamentos, em direção à guerra imperialista. Outro exemplo foi o da ascensão do fascismo, de que Gramsci foi o primeiro teórico a definir como “um movimento reacionário

12com base organizada de massas” .

O período entre 1923 e 1926 representou um momento de inflexão teórica para Gramsci, quando, então, passou a se dedicar à análise das mudanças operadas no âmbito do poder e das estratégias de luta necessárias à realidade social e política mais comple-xa das sociedades de capitalismo avançado. Em carta escrita em fevereiro de 1924 a Palmiro Togliatti e a outros camaradas do Partido Comunista Italiano, Gramsci afirmava:

Na Europa Central e Ocidental o desenvolvi-mento do capitalismo determinou não apenas a formação de amplos estratos proletários, mas também – e por isso mesmo – criou um estrato superior, a aristocracia operária, com seus anexos de burocracia e de grupos social-democratas. A determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas às ruas para o assalto revolucionário, complica-se na Europa Central e Ocidental em função de todas estas superestrutu-ras políticas, criadas pelo maior desenvolvimen-to do capitalismo; torna mais lenta e mais prudente a ação das massas e, portanto, requer do partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem mais complexas e de longo alcance do que aquelas que foram necessárias aos bolcheviques no período entre março e

13novembro de 1917.

Em conseqüência deste posicionamento, a discussão acerca das estratégias revolucionárias passava a ocupar lugar de destaque nas formulações gramscianas, tanto que, em artigo publicado no jornal do PCI, L'Unità, em julho de 1925, surgia, em “forma bruta”, a fórmula da “guerra de posições”, que seria depois lapidada nos tempos da prisão sob o fascismo. O conteúdo explicativo do conceito aparecia no texto por meio de uma referência a Lênin, o qual, segundo Gramsci, teria ensinado que, para vencer o poderoso inimigo de classe, detentor de muitos meios e reservas à sua disposição, era necessário não apenas aproveitar todas as fissuras apresentadas pelo seu bloco de forças, como também utilizar todo aliado possível, mesmo que este se apresentasse de maneira incerta, oscilante e provisória:

Todo o período pré-revolucionário se apresenta como uma atividade predominantemente tática, voltada para a aquisição pelo proletariado de novos aliados, para a desagregação do aparelho organizativo de ataque e de defesa do inimigo, para o conhecimento e o esgotamento de suas

14reservas.

Outro tema fundamental dos Cadernos, o da

18 - Marxismo e Revolução: da “Estratégia de Derrocada” à “Guerra de Posições”

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14 Idem, ibidem, p. 312.15 Idem, ibidem, pp. 390-391.

História & Luta de Classes - 19

hegemonia entendida como direção política e intelec-tual, já surgia também em textos produzidos por Gramsci ao final do período citado, dentre os quais pode-se destacar a carta por ele enviada ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética em outubro de 1926, na qual demonstrava toda a sua preocupação com a luta interna em andamento no PCUS, com a constituição do bloco de oposição formado por Trotsky, Zinoviev e Kamenev à maioria liderada por Stalin e Bukharin, envolvendo a disputa entre a continuidade ou não da NEP (Nova Política Econômica, inaugurada por Lênin em substituição ao chamado “comunismo de guerra”). Deixando clara a sua posição contrária à proposta do bloco de oposi-ção, que advogava o abandono da NEP em troca de uma política de industrialização acelerada, com base na transferência forçada de renda do campo para a cidade, Gramsci alertava estar em jogo o princípio e a prática da hegemonia do proletariado, afirmando que as relações fundamentais da aliança entre operários e camponeses, pilares do Estado operário e da revolu-ção, estavam sendo abaladas e postas em perigo em função da luta intestina no PC Soviético. E, na crítica a Trotsky e seus companheiros, declarava que o proletariado jamais se tornaria classe dominante se não superasse posturas corporativas e “sindicalistas”, nem manteria sua hegemonia e sua ditadura, caso não sacrificasse os interesses imediatos em favor dos

15interesses gerais e permanentes da classe.

Hegemonia e guerra de posições

No cárcere, o pensador italiano aprofundaria ainda mais tais reflexões, propondo que o movimento operário se debruçasse, de forma mais séria e rigoro-sa, sobre a análise das relações de força na sociedade, das relações entre estrutura e superestrutura, para poder desempenhar a ação revolucionária com êxito. Para tal, defendia que os comunistas se movessem no âmbito dos princípios formulados por Marx no Prefácio à Crítica da Economia Política, segundo o qual nenhuma formação social desaparece antes do pleno desenvolvimento de suas forças produtivas e novas relações de produção não aparecem sem que as condições para a sua existência tenham surgido no seio da antiga sociedade, do que se concluía que “nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solu-ção ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de

16aparecer e se desenvolver” .

Nesta análise das relações de força na

sociedade, Gramsci entendia ser necessário saber distinguir, no estudo da estrutura, os movimentos orgânicos, avaliados como relativamente permanen-tes, dos movimentos conjunturais, ou seja, mais episódicos, imediatos e quase acidentais. Os primei-ros eram vistos como fundamentais, pois envolviam os grandes agrupamentos sociais, e os conflitos resultantes dos embates entre as classes fundamentais podiam levar à crise orgânica, a qual poderia durar por dezenas de anos, o que significava, para Gramsci, que “se revelaram (chegaram à maturidade) contradi-

17ções insanáveis na estrutura” . Neste momento, o bloco hegemônico da classe dominante tentaria conservar e defender o status quo, ao passo que as forças antagonistas buscariam sua superação, resul-tando daí os confrontos no nível superestrutural, os quais podem provocar crises conjunturais sucessivas, até o momento da solução definitiva da luta, com a derrota do velho sistema e a afirmação do novo.

O pensador sardo cita o longo período histórico que se seguiu à Revolução Francesa (de 1789 a 1871) para exemplificar este tipo de crise, afirmando que somente com a Comuna de Paris se consolidaram totalmente as bases históricas lançadas com a Tomada da Bastilha, pois, ao mesmo tempo em que a burguesia via serem derrotados, definitivamen-te, os representantes da velha aristocracia que teima-vam em sobreviver através de um aparato jurídico-político oriundo da antiga sociedade feudal, conse-guia sufocar a tentativa de ascensão ao poder dos trabalhadores, os quais, por sua vez, representavam os “novíssimos grupos” que já consideravam ultrapassa-da a estrutura burguesa. Esta realidade era fruto de uma intensa batalha travada ao longo de mais de oitenta anos entre os grandes agrupamentos sociais franceses, com a vitória da classe burguesa a coroar todo o processo de ascensão, afirmação e consolida-ção das relações capitalistas na França, o que signifi-cou tanto a superação final de aspectos já não mais dominantes, mas recalcitrantes, da formação social anterior, o feudalismo, quanto o impedimento da afirmação de novas formas de organização da socie-dade, ainda embrionárias e experimentais, envolven-do os trabalhadores.

No estudo das relações de força em socieda-de era preciso ainda, segundo Gramsci, buscar identificar os diferentes momentos ou graus ligados, fundamentalmente, à estrutura, à relação das forças políticas e à relação das forças militares, apresentados por ele, hierarquicamente, desta forma. A análise da estrutura requer o conhecimento do grau de desenvol-

16 Idem. Cadernos do Cárcere – Volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 36.17 Idem, ibidem, p. 37.

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18 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3, p. 42.19 Idem, ibidem, p. 48.

20 Idem, ibidem, p. 43.21 SECCO, Lincoln. Op. cit., p. 85.

vimento das forças produtivas de determinada sociedade e das relações de produção, um estudo objetivo e científico das forças materiais que, relativa-mente independentes da vontade dos homens, organizam a produção e o atendimento às necessida-des construídas historicamente por tal sociedade. Este estudo permite reconhecer o terreno fundamental onde se desenvolvem a luta de classes e as disputas políticas e ideológicas na sociedade, apontando para a definição de existirem ou não as condições necessári-as e suficientes para a sua transformação, conforme indicava Marx no célebre Prefácio.

A relação das forças políticas corresponde ao grau de homogeneidade, autoconsciência e organização dos grupos sociais, cuja avaliação, por sua vez, exige o reconhecimento dos diferentes níveis de seu desenvolvimento, consoante ao maior ou menor grau de amadurecimento da consciência política coletiva dos grupos e classes sociais. Este processo abrangeria a passagem da consciência primária, econômico-corporativa, em que os grupos se organizam conforme seus interesses econômicos imediatos, forjando laços de solidariedade de acordo com a posição e a atividade profissional ocupadas na sociedade, para a consciência política propriamente dita, que supera os marcos corporativos e transforma as ideologias criadas anteriormente em “partido”. Este é o momento da hegemonia, que expressa a capacidade de um grupo social unificar em torno de seu projeto político um bloco mais amplo não homo-gêneo, marcado por contradições de classe. O grupo ou classe que lidera este bloco é hegemônico porque consegue ir além de seus interesses econômicos imediatos, para manter articuladas forças heterogêne-as, numa ação essencialmente política, que impeça a irrupção dos contrastes existentes entre elas.

Logo, a hegemonia é algo que se conquista por meio da direção política e do consenso e não apenas mediante a coerção. Pressupõe, além da ação política, a constituição de uma determinada moral, de uma concepção de mundo, numa ação que envolve questões de ordem cultural, na intenção de que seja instaurado um “acordo coletivo” através da introjeção da mensagem simbólica, produzindo consciências falantes, sujeitos que sentem a vivência ideológica como sua verdade. Portanto, além da unidade em torno de objetivos econômicos e políticos, busca-se construir, nesta hora, a unidade intelectual e moral, ultrapassando-se o plano corporativo para se atingir, numa ordem muito mais ampla, que se pretende universal na sociedade, a hegemonia do grupo social

fundamental sobre grupos afins subordinados.

Não se trata, entretanto, de idealizar a capacidade diretiva da facção dominante, confundin-do hegemonia com controle absoluto do grupo hegemônico sobre seus aliados, pois o processo não extingue os embates e conflitos resultantes dos posicionamentos e interesses específicos de cada fração de classe. Trata-se, na verdade, de “uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis ... entre os interesses do grupo fundamental

18e os interesses dos grupos subordinados” , tendo em vista, acima de tudo, a necessidade de se forjar um certo equilíbrio de compromisso a exigir sacrifícios de ordem econômico-corporativa que, por outro lado, não podem envolver o aspecto essencial da luta política, pois, segundo nosso autor, “se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da

19atividade econômica”.

Gramsci aponta também para a necessidade de se estudar a relação das forças militares, o que indica, claramente, que sua visão de hegemonia não descarta o uso da violência revolucionária no proces-so da luta pelo poder. Debruçando-se sobre o Risorgimento, movimento responsável pela unifica-ção da Itália na segunda metade do século XIX, destaca a “ausência desastrosa de uma direção

20político-militar” tanto no Partido da Ação, liderado por Garibaldi e representativo das camadas popula-res, quanto no partido moderado da monarquia piemontesa. O resultado deste processo teria sido o seu caráter inacabado: “não transforma integralmen-te as estruturas do passado e não instaura um Estado renovado que incorporaria amplas camadas sociais à

21cidadania” , porque nele nenhum grupo social foi capaz de expressar a radicalidade revolucionária dos jacobinos, na experiência clássica de revolução burguesa, terminando por fundar um compromisso entre frações da classe dominante para a manutenção da dominação.

Concluindo sua análise sobre as relações de força na sociedade, Gramsci rejeitava categoricamen-te a perspectiva do economicismo, a enxergar o momento da ruptura ou da revolução como determi-nado mecanicamente por causas imediatas ligadas ao empobrecimento ou à miséria das massas, pois o processo revolucionário exigia, essencialmente, que os conflitos fundamentais se dessem no campo da política e da ideologia, onde os grupos que travam a

20 - Marxismo e Revolução: da “Estratégia de Derrocada” à “Guerra de Posições”

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22 Idem, ibidem, p. 50. MARX, Karl. Introdução à Crítica da Economia Política. In: Os Pensadores: 23 Marx. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 52.24 Idem. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Grijalbo, volume 2, 1977, p. 3.

25 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 238.26 SECCO, Lincoln. Crise e estratégia em Gramsci. In: DIAS, Edmundo Fernandes (e outros). O Outro Gramsci. São Paulo: Xamã, 1996, p. 93.27 Idem, ibidem, p. 84.

História & Luta de Classes - 21

luta de hegemonia se enfrentam para impor à socieda-de a visão de mundo dominante. Gramsci lembra, constantemente, ser no terreno das ideologias que “os homens adquirem consciência dos conflitos que se

22verificam no mundo econômico” , tomando por base a célebre fórmula marxiana segundo a qual as formas ideológicas são as formas pelas quais “os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o

23fim”.

Gramsci também recorreu a Marx para explorar o pensamento segundo o qual “a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera

24das massas” , isto é, uma idéia só se realiza plena-mente se é apoderada pelo movimento social concreto e se transforma em ação prática. Daí a sua insistência em que nenhum projeto de transformação social cumprirá seu objetivo se não vier acoplado a uma profunda reforma intelectual e moral. Está em jogo a formação de um “bloco histórico” no qual as forças materiais (o “conteúdo” do movimento social, o conjunto das relações sociais de produção) e as ideologias (a “forma”, o conjunto complexo e contra-ditório das superestruturas) interagem, já que “as forças materiais não seriam historicamente concebí-veis sem forma e as ideologias seriam fantasias

25individuais sem as forças materiais”.

A luta de hegemonia, entretanto, se tem no nível superestrutural o espaço propício para seu desenvolvimento, não logrará êxito se encarada apenas como uma batalha no campo das idéias ou a redundar numa “guerra de posições” restrita à luta política no parlamento burguês, onde é extremamente limitada a ação do operariado, e a contestação à exploração capitalista é substituída pela discussão em torno da destinação pública da parcela tributada da mais-valia produzida no processo de reprodução do capital. Como muito bem destacado pelo historiador Lincoln Secco, a hegemonia prevê a formação de um modo de produção alternativo sob controle dos trabalhadores, o que significa dizer que ela se assenta no mundo da produção, não ficando restrita à sua dimensão cultural. O retorno aos textos de Gramsci nos tempos dos conselhos em Turim permite concluir que a hegemonia nasce da fábrica e exige a “constitu-ição de um contra-poder operário desde o nível da

26produção” .

Caberia, pois, ao partido revolucionário buscar exercer a hegemonia entre os setores sociais para quem a mudança estrutural da sociedade é

necessária, dentre os quais os trabalhadores e, em especial, a classe operária, seriam os maiores interes-sados. É preciso enfatizar a relação existente entre tais propostas de luta pelo poder e a realidade econômica e social dos tempos de Gramsci, ou seja, tempos de consolidação do capitalismo monopolista:

O mérito irrefutável de Gramsci foi realocar o termo 'hegemonia' (introduzido nos círculos socialistas pelos russos) para o contexto da especificidade do poder capitalista no Ocidente, onde as crises econômicas não abalavam tanto o Estado e a classe operária não só era dominada (passiva), mas concedia 'voluntariamente' o consentimento para a dominação burguesa,

27participando e legitimando suas instituições.

A luta de hegemonia, nas condições de uma sociedade de capitalismo avançado, com uma socie-dade civil desenvolvida, dependeria de uma estratégia de luta revolucionária de longo prazo, a prever uma preparação marcada pela perseverança e obstinação para a conquista de posições decisivas, passo a passo, isto é, a guerra de posições. Lançando mão da termi-nologia usada para definir as táticas militares adota-das pelas nações beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial, Gramsci desenvolveu a comparação entre a guerra de movimento ou manobrada e a guerra de posições, para concluir pela necessidade de aplicação desta última como a estratégia eficaz na luta revolucionária no Ocidente.

A guerra de movimento era vista por ele, naquele momento histórico, como de um “férreo determinismo economicista”, pois dependia do elemento econômico imediato para a obtenção do sucesso esperado, já que a crise funcionaria como a artilharia de campo na manobra militar fulminante, a abrir passagem na defesa das tropas inimigas, após o que, tendo desbaratado o inimigo e feito, com tal movimento surpresa, que perdesse a fé em suas próprias forças, era preciso organizar rapidamente os quadros para o ataque definitivo, criando a necessária concentração ideológica em torno do objetivo a ser alcançado. Como tal movimento exigia uma ação rápida e fulminante e um quadro de militantes alta-mente disciplinados e preparados, em tão pouco tempo, para a obtenção de uma vitória espetacular, Gramsci considerou esta tática como carregada de “um verdadeiro misticismo histórico, da expectativa

28de uma espécie de fulguração milagrosa”.

Para nosso autor, a verdade é que não se

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pode escolher, de antemão, a forma de luta desejada, a não ser que se tenha uma superioridade inquestioná-vel sobre as forças inimigas, pois o tipo de enfrenta-mento é, de fato, imposto pela correlação existente entre as forças em confronto no momento da batalha. Caberia ao movimento operário desenvolver, essenci-almente, sua capacidade organizativa no sentido de preparar a luta revolucionária rumo ao socialismo. Esta preocupação de Gramsci com a organização da classe trabalhadora na luta pelo poder não era nova e já aparecia com força nos escritos políticos anteriores à sua prisão, como já visto. O dirigente do PCI lembrava que o princípio de que o partido revolucio-nário dirigia a classe operária não deveria ser interpre-tado de modo mecânico, dando margem à idéia de que esta direção pudesse se estabelecer através de uma imposição artificial vinda de fora, numa supervalori-zação formal à função do partido como guia da classe.

A capacidade de dirigir a classe operária não decorreria do fato da autoproclamação do grupo partidário como órgão revolucionário desta classe, mas da efetiva capacidade de que, na condição de parte integrante do proletariado e respaldado pelas condições objetivas, soubesse imprimir às massas um movimento na direção desejada, a garantir, assim, o reconhecimento destas ao seu partido:

O Partido dirige a classe penetrando em todas as organizações nas quais a massa trabalhadora se agrupa e realizando nelas e através delas uma sistemática mobilização de energias segundo programa da luta de classe, bem como uma ação de conquista da maioria para as diretrizes

29comunistas.

28 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3, p. 71.29 Idem. A situação italiana e as tarefas do PCI. In: Escritos Políticos – Volume 2 (1921-1926). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, pp. 356-357.

22 - Marxismo e Revolução: da “Estratégia de Derrocada” à “Guerra de Posições”

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Conluio e cadeias: Considerações sobre

a direção pecebista na conjunturado Estado Novo. 1936-1940

Carlos Zacarias F. de Sena Júnior1

H istória e Memória do PCB

Já se disse alhures que a memória dos partidos e movimentos ditos de esquerda é freqüentemente revisitada e que é sempre reescrita a história para que se ponham nos devidos lugares personagens e fatos que ora se querem destacados, ora se querem suprimidos do espólio político destas correntes em cada conjuntura. Entretanto, se muito tem sido dito nos entreveros teórico-metodológicos que movem os estudiosos deste tema, especialmente quando o assunto gira em torno das disputas pelos legados de determinados personagens da história do movimento operário internacional, pouco avanço se tem registrado no terreno historiográfico propriamente dito. Principalmente porque, neste campo, predominam ainda, ao menos no Brasil, versões memorialísticas e jornalísticas, com suas evidentes e conhecidas vantagens e desvantagens.

Tem sido assim quando se interpreta o papel das lideranças, dos partidos e das direções, sejam nas circunstâncias em que os movimentos estiveram em ascenso, sejam nos momentos de retrocesso e/ou de vitórias da contra-revolução. Nesses casos, a história, para ter validade e se sobrepor às versões produzidas a cada instante e em conformidade com as necessidades de grupamentos políticos variados, precisa se afastar do campo minado em que perduram não apenas os discursos forjados pelos vencedores de então, como também as versões memorialísticas produzidas por leituras, por vezes, bastante distorcidas da realidade.

Na trajetória quase nonagenária do Partido Comunista Brasileiro, PCB, (chamado Partido Comunista do Brasil até 1961), talvez não se encontre quase nenhum outro momento que seja tão desconhecido como aquele que sucedeu ao fracassado levante de 1935. Naquelas circunstâncias, sem a presença de parte significativa da direção pecebista formada na 1ª Conferência Nacional do

1 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde defendeu a tese “Os impasses da estratégia: os comunistas e os dilemas da União Nacional na revolução (im)possível. 1936-1948”. Professor do curso de História do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus II, Alagoinhas.

História & Luta de Classes - 23

Partido, ocorrida em 1934, e, principalmente, sem a participação de Luiz Carlos Prestes, preso em março de 1936, um novo grupo dirigente se organizou sob condições absolutamente adversas e diante de uma repressão brutal. Tal direção teve a difícil tarefa de conduzir o Partido do momento putschista, forjado pelas tradições tenentistas dos dirigentes da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e pela linha do “terceiro período” da Internacional Comunista (IC, Komintern) de 1928, até a política de União Nacional, cujos parâmetros mais importantes haviam sido estabelecidos pela formulação de Frente Popular do VII Congresso da IC e reforçado na conjuntura da luta antifascista, levada a cabo pelo movimento comunista internacional em diversas partes do mundo.

Sobre o que foi dito acima, ainda são poucas as publicações que se situam fora do terreno estrito da memória e nem mesmo alguns textos de reputada trajetória acadêmica, como Camaradas e companheiros, de Dulce Pandolfi, cujo mote principal é discutir a história e a memória do PCB, foi adiante em refletir sobre o papel daquela direção pecebista que teve a incumbência de conduzir o Partido da tática insurrecional, ou putschista, como de fato o foi, até a linha de Frente Popular ou sua similar e ampliada adaptação à conjuntura da luta antifascista, a política de União Nacional. Com efeito, nomes como o de Lauro Reginaldo da Rocha (“Bangu”), Eduardo Ribeiro Xavier (“Abóbora”), Honório de Freitas Guimarães (“Martins”), Elias Reinaldo da Silva (“André”, “Sousa”), entre outros, são incomparavelmente menos conhecidos da grande maioria dos curiosos sobre a história do PCB do que os nomes de outros dirigentes do PCB, especialmente o do próprio Prestes, mas também o de figuras como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, que estiveram à frente do Partido nos anos 20, e mesmo Antonio Maciel Bonfim (“Miranda”), que tendo dirigido o PCB nos anos 30, também sofreu uma certa

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2 Veja-se, sobre o assunto, o trabalho de Nelson Werneck Sodré, em que o autor, ao elencar a ordem do dia definida na Conferência da Mantiqueira, informa: “Foi aprovado o trabalho do secretariado nacional provisório e confirmada a modificação na orientação do Partido a partir de 1941, corrigindo a linha direitista que predominara entre 1936 e 1940”. SODRÉ, Nélson Werneck. Contribuição à história do PCB. São Paulo: Global, 1984. p. 114-115 (grifos nossos). Sobre um período tão pouco conhecido na história do PCB, até mesmo Dulce Pandolfi pouco se referiu ao assunto. PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: História e memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.3 Doravante, chamaremos o PCB de Partido Comunista do Brasil com fidelidade ao nome que utilizava no período em questão.

24 - Conluio e cadeias: Considerações sobre a direção pecebista na conjuntura do Estado Novo. 1936-1940

reavaliação e mereceu variados pareceres da parte dos estudiosos que se debruçaram sobre a história dos comunistas brasileiros.

Obviamente que se poderia alegar que os historiadores optam sempre por abordar os assuntos e períodos em conformidade com a sua relevância e de acordo com as suas preferências que podem ser de diversas ordens. No que tange à história do PCB, contudo, ainda que proliferem alguns textos que tomam o período de 1945 a 1964 de maneira quase homogênea para se tentar apreender as razões do fracasso da estratégia democrática e de libertação nacional dos pecebistas, que desenvolveram amplamente uma política de conciliação de classes, é justamente no momento anterior, principalmente de 1936 a 1948, que se situa e se condensa a rica experiência que possibilitou ao Partido realizar a transição de gerações de dirigentes e de projetos que permitiram aos comunistas forjarem uma direção consistente que terminou sendo a última antes da derrota de 1964. Por este motivo, tanto as leituras produzidas pela memória, como alguns textos historiográficos vinculados a determinados compromissos ideológicos, contribuíram decisivamente para produzir um senso comum em que predomina a versão de que o movimento comunista brasileiro teria sido abatido em 1935 e somente reapareceria em 1943, na festejada Conferência da Mantiqueira, a 2ª Conferência Nacional do PCB.

Com efeito, para que se conheçam os caminhos que trouxeram o PCB do levante de 1935 para a defesa da Frente Popular e da democracia, sem adjetivações, conforme aparece na política praticada pelos pecebistas na conjuntura entre 1941 e 1947, seria necessário se analisar o período imediatamente anterior ao advento da legalidade do Partido Comunista do Brasil, ocorrida em 1945. Somente assim se tornará possível compreender os significados das escolhas empreendidas pelos comunistas brasileiros nas circunstâncias em que uma nova vaga revolucionária se abriu no planeta e o movimento comunista internacional foi instado a intervir decisivamente no processo que lhe abriu possibilidades até então somente colocadas na conjuntura que foi de 1917 a 1923. De outra forma, fica-se com a incômoda sensação de descontinuidade ao se debruçar sobre a trajetória política de um Partido

que, em 1935, havia pretendido derrubar Vargas e, em 1945, lhe emprestou apoio político quase que irrestrito e contra boa parte dos antigos aliados do governo getulista.

O objetivo deste artigo é tentar compreender a trajetória política da direção pecebista na conjuntura do Estado Novo, suas escolhas tático-estratégicas e as intervenções da IC nos rumos do Partido Comunista do Brasil. Neste percurso, pretende-se abordar aspectos negligenciados pela historiografia para se tentar entender o silêncio ou o apagamento da memória promovido pelos próprios comunistas que entreviram na direção que assumiu os rumos do Partido, entre 1936 e 1940, oportunismo, traição e

2capitulação . Tomaremos como ponto de partida, além de material primário conhecido no Brasil, uma documentação da Internacional Comunista ainda inédita no país depositada no Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (AHS/ICS/UL), onde constam importantes apreciações acerca dos dirigentes comunistas brasileiros que foram presos em 1940, além de informações sobre a participação brasileira no VII Congresso do Komintern e de decisões sobre as atividades do PC do Brasil, que indicam a linha de continuidade no trabalho da Internacional que pretendeu influir sempre nos destinos das organizações comunistas de todo o mundo.

A propósito da direção banguzista: o elo perdido

Entre os meses de março e abril de 1940, a polícia política do Estado Novo de Getúlio Vargas prendeu quase todos os membros da direção nacional do Partido Comunista do Brasil que havia sido recomposta em meados de 1938, inclusive os principais dirigentes do antigo e do novo Bureau Político (BP) e do Secretariado Nacional (SN) do PCB, que vinha tentando reestruturar as fileiras

3pecebistas desde o fracasso do levante de 1935 . Foram presos, na ocasião, “Bangu”, “Martins”, “Abóbora” e “André”, todos importantes membros da direção do Partido e, além deles, Domingos Pereira Marques, Sebastião Francisco, Joaquim Câmara Ferreira, Noé Gertel e cerca de cinqüenta outros comunistas, integrantes dos principais órgãos

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5 “Relatório sobre os materiais recebidos em 26 de maio de 1940 da mãe de Prestes”. Lacerda, Secreto, 03/06/1940, 3 ex. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (AHS/ICS/UL).

4 Cf. DULLES, O comunismo no Brasil, 1935-1945: repressão em meio ao cataclismo mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 202-204. Cf. KAREPOVS, Dainis. Luta subterrânea. O PCB em 1937-1938. São Paulo: HUCITEC, EDUNESP, 2003. p. 277.

História & Luta de Classes - 25

diretivos do PCB. Da direção nacional eleita na I Conferência Nacional, em 1934, e depois várias vezes reorganizada, através do processo de cooptações dos anos seguintes, em liberdade, restava apenas o operário Domingos Brás. Este, após as prisões efetuadas no Rio de Janeiro, seguiu para se refugiar e

4dirigir o que restava do Partido em São Paulo .

Sobre as prisões ocorridas no Brasil naqueles meses, informes foram dados no Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC), cuja direção estava ao encargo do búlgaro Jorge Dimitrov, a partir de relatórios produzidos pela mãe de Prestes, a senhora Leocádia Prestes, ao qual se juntavam informações sobre um outro relatório feito pelo chefe da Polícia da cidade do Rio de Janeiro, Filinto Muller, e pelo capitão Felisberto Batista Ferreira, representante da Polícia Secreta de Getúlio. De acordo com o brasileiro Fernando de Lacerda, que se encontrava em Moscou e seria o responsável pela tradução dos documentos encaminhados pela progenitora do “Cavaleiro da Esperança”, a preocupação central contida na documentação dizia respeito às “últimas detenções de comunistas e 'sobre o conluio comunista'” que, segundo a polícia brasileira, fora “a pouco descoberto”. Para Lacerda, “informações sobre a 'execução de vários provocadores pelos comunistas brasileiros', bem como a cópia [da carta] do advogado de Prestes, doutor Sobral Pinto, dirigido à mãe de Prestes”, haviam chegado às suas mãos, de maneira que traduziria, apenas, “os lugares mais importantes”, onde se tornariam evidentes os seguintes aspectos:

que a “ameaça comunista” no Brasil nunca foi tão séria como atualmente, porque os comunistas não ficaram desanimados com a derrota de 1935, mas, pelo contrário, 'eles ganharam forças e, agora no seu trabalho, recorrem aos métodos mais ousados e mais habilidosos'. Antes, eles intervinham 'abertamente como propagandistas da idéia de Moscou, enquanto que, hoje, conhecendo a reação do povo face aos métodos por eles antes empregues, atualmente escondem-se com vários tipos de disfarces'. Eles apresentam-se como 'radicais', como 'democratas' ou mesmo como 'nacionalistas' e continuam a sua causa, 'deixando confusos os responsáveis da segurança de estado'. 2) Há mais de um ano que a polícia aumentou a vigilância dos novos métodos de atividade comunista. A polícia

começou o seu trabalho com a recolha de informações e numerosas detenções, fazendo isso até ao momento atual no maior dos segredos; 'estes esforços foram coroados de êxito, porque estão presos na cadeia os principais dirigentes do Partido Comunista do Brasil'. 3) Os documentos apreendidos pela polícia mostram 'a envergadura do movimento'. Este movimento desenvolveu-se não só no Rio de Janeiro, havia também 'em muitos estados postos de propaganda, como por exemplo: em Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Estado do Rio, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul'. [...] 4) Nos interrogatórios realizados, estes documentos, bem como a descoberta das ligações de todos os focos dispersos no Brasil 'fizeram espantar até os próprios policias', porque 'se tratava de um trabalho impecável, sobre o qual nem poderiam sonhar'.

Neste sentido, Lacerda concluía que se poderia “estabelecer toda a vida do partido comunista do Brasil depois de 1935”, de maneira que foi determinado que, “depois da descoberta dos seus métodos e da prisão dos seus dirigentes”, os comunistas conseguiram reorganizar “as suas novas bases”, tendo descoberto, para isso, “uma potente forma” determinando que todos os membros do partido que se encontravam em liberdade “deviam preencher um questionário pormenorizado, onde se perguntava sobre os seus parentes, condições de vida, situação social e cultural, a sua opinião pessoal sobre os numerosos tipos de comunismo: trotskismo, stalinismo, bukharismo'”. Além disso, prosseguia o relatório dessecado por Lacerda o Partido Comunista “organizava 'cursos que, freqüentemente, tinham lugar nas cadeias onde se encontravam presos os

5seus antigos dirigentes'” .

Considerando-se como verdadeiras as informações traduzidas por Fernando de Lacerda, onde se encontram inseridos os relatórios policiais curiosamente aparecidos na imprensa, e desprezando-se, momentaneamente, o que se conhece da história do PCB no período, diferentemente do que supunha boa parte dos estudos sobre o tema, o PC brasileiro, após o levante de 1935, continuava “animado” e na ativa. Mais do que isso: encontrava-se reforçado representando uma “ameaça” ainda maior do que em 1935, pois recorrendo a “métodos mais ousados e

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7 “A marcha da revolução nacional libertadora e suas forças motrizes”, SN do PCB, s/d. CEDEM/UNESP, Fundo: IC, 495.29.96, Rolo: 05.

8 Cf. “A marcha da revolução nacional libertadora e suas forças motrizes”, Op. cit.

mais habilidosos”, confundindo as autoridades ao se “disfarçarem” de “nacionalistas”, “radicais” e “democratas”, conseguiam disseminar suas idéias na sociedade. É verdade que Lacerda não desenvolve nenhuma crítica substancial ao material recolhido pela polícia e aos informes da mãe de Prestes. Não obstante, era possível que as autoridades estivessem confusas quanto ao prosseguimento do trabalho do PCB, especialmente quanto ao fato de que os comunistas, antes críticos e adversários da “democracia burguesa” e defensores do internacionalismo proletário, agora haviam mudado o discurso, aproximando-se da democracia e do nacionalismo. Em todo caso, entre novembro de 1935, quando comunistas e aliancistas haviam levantado alguns quartéis, e abril de 1940, quando a nova direção pecebista foi presa e os relatórios chegaram ao conhecimento da IC, um longo caminho havia sido percorrido. Tanto que ao longo de 1936, o que havia restado do Comitê Central do PCB prosseguiu defendendo a idéia de que havia uma situação revolucionária no Brasil e que a eclosão de uma “nova insurreição” seria apenas uma questão de tempo.

Em dezembro de 1936, contudo, enquanto o SN do Partido, reorganizado naquele mesmo ano, encontrava-se na Bahia numa espécie de “fuga” dos centros mais atingidos pela repressão, o PCB promove sua primeira grande inflexão em relação ao que chamamos de momento putschista. Passando a advogar a tese de que o fracasso da ANL tinha relação, não com as insuficiências tático-estratégicas e programáticas do Partido, mas com a política de aliança entendida como “esquerdista” e “sectária” praticada pelos comunistas, o SN pecebista entendeu a necessidade de alterar a linha. Segundo as análises da direção banguzista, o principal erro de 1935 era o de não ter admitido a importância da burguesia nacional para a formação da Frente Popular no

6Brasil .

Diante da inflexão tática promovida pelo SN do PCB, que se encontrava na Capital da Bahia no momento em que publicou o documento “A marcha da revolução nacional libertadora e suas forças motrizes”, uma profunda luta foi travada nos “subterrâneos” do Partido pelos rumos do movimento no Brasil. Tal luta, que foi estudada por Dainis Karepovs no seu livro Luta subterrânea, girava em torno de questões variadas, como a sucessão presidencial, cujo debate foi inaugurado em meados de 1936 e encerrado em novembro de 1937, com o

golpe do Estado Novo, mas tinha como elemento central a compreensão quanto ao exercício do papel hegemônico na revolução brasileira. Desta forma, a proposição fundamental do documento citado, que havia sido escrito por “Bangu”, “Martins” e “André” enquanto estavam em Salvador, era promover a virada tática e adequar o PCB à linha de Frente Popular, exarada do VII Congresso da IC, o que seria consolidado nos anos posteriores.

Ainda sem abandonar a caracterização do governo Vargas como de “traição nacional” ou fascistizante, o citado documento do SN refletia sobre o que os comunistas entendiam como os erros da linha “esquerdista”, especialmente quanto ao fato de que o Partido, na formação da ANL, teria desprezado o potencial revolucionário da burguesia nacional. Este setor da burguesia, entendido pelos pecebistas como progressista na sua “luta contra o imperialismo”, colocava-se, portanto, no campo da revolução e da democracia contra o fascismo. Ao mesmo tempo em que procuravam reafirmar a retirada das palavras de ordem “todo poder à ANL” e “Governo Popular Nacional Revolucionário com Prestes à frente”, os banguzistas trabalhavam com a perspectiva de criação de um amplo “bloco de classes” que contemplasse os setores “revolucionários” da sociedade brasileira na luta pela libertação nacional frente ao imperialismo e ao atraso “semifeudal”, “semicolonial” e “semiescravagista” da realidade brasileira. Neste sentido, o texto apontava para um outro “erro”, que era o de se propor, de antemão, a hegemonia do proletariado na consecução das tarefas

7democráticas da revolução brasileira .

Em 1937, enquanto o governo Vargas se preparava para desfechar o golpe de misericórdia no que restava do antigo estado de direito no Brasil, os comunistas mergulharam numa crise de grandes proporções e dimensões até então inauditas. Em oposição ao grupo banguzista do Bureau Político, organizou-se, a partir do Comitê Regional (CR) de São Paulo, um Comitê Central Provisório (CCP), liderado por Hermínio Sacchetta (“Paulo”) e Heitor Ferreira Lima (“Barreto”), que defendiam a Frente Popular e a liderança da Internacional Comunista stalinizada, mas advogavam que a hegemonia no processo da revolução brasileira caberia ao proletariado e ao seu Partido e não a um “bloco de classes”, como queria o BP. Do choque destas duas posições, uma luta intensa se desenrolou no Partido ao longo de todo o ano de 1937, até que, no dia 15 de novembro, uma nota de expulsão, assinada pelos

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8 Textualmente: “O BP do PCB, pelos seus membros abaixo-assinados, resolve expulsar Paulo (Leônidas), Luiz (Amaral) e Barreto das fileiras do Partido como elementos nocivos e contra-revolucionários, segundo prova a documentação junto e pelo que cada um dos signatários da presente conhece pessoalmente das atividades fracionistas desses três elementos”. Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (CEDEM/UNESP), notação: 495.29.127, rolo: 05.9 Este episódio passou à história do PCB como uma cisão trotskista”. KAREPOVS, Luta subterrânea..., Op. cit., p. 17.10 “União Nacional pela democracia e pela paz”, 28/03/1938, BP do PCB, 2 p. datilografadas publicado em A Classe Operária, SP, nº 207, abril/1938, Fundo Hermínio Sacchetta (FHS), Pasta 33/162.

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8membros do BP, veio a público decidindo a cisão . A despeito da resolução publicada pela direção banguzista, com as assinaturas dos membros do BP, o CCP seguiu defendendo seu direito de continuar nas fileiras do Partido até que, por imposições da IC, todo o grupo de Sacchetta foi efetivamente expulso do PCB sob a acusação de exercerem atividades

9fracionistas e “trotskismo” .

Enquanto lutavam para expulsar o grupo refratário à noção de que a burguesia nacional pudesse hegemonizar o processo de revolução brasileira, o grupo banguzista seguiu a sua linha de aprofundar as relações com o que consideravam os setores da dita “burguesia progressista” no país, admitindo que até mesmo no interior do governo Vargas, considerado fascista pelos comunistas, haveria posições “democráticas” que poderiam ser disputadas pelos pecebistas. Com efeito, em março de 1938, o BP lançou o documento “União Nacional pela democracia e pela paz”, defendendo a linha de União Nacional como tática principal do Partido e considerando que a principal ameaça que pairava sobre o país era o fascismo internacional:

Diante da ameaça fascista, que pesa sobre o mundo e particularmente sobre nosso país, não é possível que as forças democráticas continuem divididas. O Partido Comunista do Brasil, apoiando a atitude do Ministério Osvaldo Aranha, declara que apoiará também qualquer medida que o Governo Federal venha a tomar para preservar nosso país da agressão nazista. Em defesa da Nação lutaremos ombro a ombro, por cima de qualquer divergência, com todas as forças nacionais, inclusive com o Sr. Getúlio Vargas, se este se dispuser, como é do seu dever,

10a se opor à investida do fascismo .

Não obstante, em 1935, após ter-se tornado um Partido com alguma influência de massas, circunstância em que pôde dirigir a ANL, o PCB era, em 1938, uma organização bastante debilitada, a despeito de poder contar com o apoio do Komintern que não interrompeu de todo as suas ligações com o partido brasileiro, como demonstra a documentação. Segundo os informes que foram dados à IC por “Abóbora”, logo depois do levante de 1935, o PCB

teria reduzido seu número de militantes para cerca de mil e quinhentos (antes do movimento aliancista seriam cinco mil). Os maiores contingentes de comunistas encontravam-se no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife, mas o PCB mostrava algum potencial também na Bahia e no Pará, onde os comunistas atuariam em células de trabalhadores e

11entre os estudantes . Já num outro balanço realizado pela Direção Nacional do PCB em 1937, e apresentado por “Martins” ao Komintern naquele mesmo ano, o quadro, ao que parecia, havia mudado um pouco, pois o Partido possuiria algo em torno de dois mil e cem militantes em todo o Brasil, sendo os Comitês Regionais de São Paulo (com mais de mil militantes), da Bahia (com cerca de duzentos e cinqüenta militantes), do Rio Grande do Sul (com algo em torno de cento e cinqüenta membros) e o do Rio de Janeiro (com cerca de cem militantes), os mais

12importantes . Embora o núcleo regional de São Paulo fosse, de longe, o mais numeroso, o crescimento substancial do Partido em alguns estados chamava a atenção, principalmente porque seria em 1938 que o PCB realizaria sua maior inflexão, já que passava a admitir que uma aliança com Vargas era possível e

13desejada .

As “folhas funestas”

Se até 1940, aos olhos da Internacional Comunista, a direção banguzista tinha gozado de bastante prestígio porque tinha sido capaz de reorganizar as fileiras do Partido e implementar a nova linha política de Frente Popular a partir de 1936/37, quando da nova onda de prisões, ocorrida em abril de 1940, o quadro se alterou substancialmente em função do medo da infiltração policial e da possibilidade da presença de elementos provocadores entre os pecebistas. A despeito de que os comunistas brasileiros tenham superado momentaneamente as adversidades e que também tenham sido capazes de restabelecer uma direção nacional apta a formular uma nova linha política nas circunstâncias em que uma guerra mundial parecia próxima e o comunismo vivia sob o império do pacto germano-soviético, quando a nova débâcle acometeu

11 Cf. KAREPOVS, Luta subterrânea..., Op. cit., p. 106, n. 106.12 “Situation de l'organisation du Parti Communiste du Brésil (Section de l'IC)”. Martins, 22/06/1937. CEDEM/UNESP, fundo: IC, 495.29.11, rolo: 04.13 No informe de “Martins” feito à IC em outubro de 1937, o dirigente brasileiro aponta a instabilidade política atravessada pelo país, com a decretação do “estado de guerra” e as dissidências que começavam a se observar nas hostes governistas. Aponta-se a formação de “frentes democráticas nacionais” em diversos Estados e o crescimento do Partido, que passava a contar com 2.500 membros em atividade. “La situation politique au Brésil”. Martins, 25/10/1937. CEDEM/UNESP, fundo: IC, 495.29.126, rolo: 04.

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14 “Relatório sobre os materiais recebidos em 26 de maio de 1940 da mãe de Prestes”, Op. cit.

16 “Ao secretário-geral do CEIC”. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. AHS/ICS/UL.

a direção pecebista o Komintern entendeu que havia sinais de que nem tudo ia bem. Enquanto o PCB aprofundava a política de aproximação com o governo Vargas, através do que entendia ser o seu setor democrático, e enquanto também defendia a neutralidade diante da guerra, abandonando momentaneamente sua política antifascista, um abismo ideológico entre o Estado Novo e o movimento comunista brasileiro novamente se abriu quando a guerra foi declarada na Europa e o país viveu sob uma nova onda de repressão, o que levou toda a direção banguzista para a cadeia.

As prisões daquele período significaram um duro golpe para o PCB, já que a direção que caiu era formada, principalmente, por mili tantes experimentados na luta política e que tinham vivido a tentativa insurrecional frustrada. Ademais, tratavam-se justamente de dirigentes e que vinham fazendo o balanço dos “erros” de 1935 e preparando o Partido para o novo momento da União Nacional. Muitos destes dirigentes, inclusive, haviam participado das discussões do VII Congresso do Komintern, como “Bangu”, “Martins”, “Abóbora” e “André”, a despeito de não terem sido delegados.

Sobre o episódio das prisões do PC brasileiro em 1940, Jorge Dimitrov, principal dirigente do CEIC, determinou uma rápida apuração da situação existente no país e do estado em que se encontrava o PCB, anotando diretivas que demonstravam seu descontentamento com a situação e a atuação dos pecebistas. Segundo Dimitrov, que ordenava a Guliaev, chefe da seção de quadros do Komintern , uma averiguação rigorosa e pormenorizada dos acontecimentos no Brasil, o fundamental seria “determinar o que da informação da polícia [descrita no início deste trabalho] teve lugar na realidade ou é capaz de ser verdade”. Para o secretário-geral da IC, seria imprescindível identificar entre os prisioneiros aqueles “que supostamente fizeram declarações na polícia”, ao que concluía: “É preciso, no futuro, ter em conta este enorme fracasso e desmoronamento da direção do

14PC do Brasil” .

A recomendação de Dimitrov anotada de próprio punho no relatório feito por Fernando de Lacerda à IC, dava conta da preocupação com os “elementos infiltrados” no PC brasileiro, mas determinava, também, uma visão que se consagraria no balanço dos pecebistas nos anos posteriores, qual seja, a idéia de que a direção comunista formada em 1936 tinha fracassado. Após a decisão do dirigente do

Komintern, todos os membros do PCB que foram presos em 1940 foram avaliados em sua biografia para que se pudessem identificar os “provocadores”. Desta maneira, é pela análise desta rica documentação, ainda inédita no Brasil, que se poderá conhecer um pouco mais da direção banguzista e reparar alguns erros de “esquecimento” da história do movimento comunista brasileiro ou aquilo que seria uma espécie de “elo perdido” entre os conhecidos fatos ocorridos em 1935 e um dos momentos mais estudados da história do Partido Comunista, a sua legalidade em 1945.

De acordo com as informações da polícia política brasileira, as prisões tinham ocorrido na véspera das comemorações do 1º de Maio, quando os órgãos de segurança encontraram uma grande quantidade de “folhas volantes funestas” assinadas pelo Comitê Regional do PCB do Rio de Janeiro. Tais folhas teriam sido confeccionadas numa tipografia clandestina que funcionava na cidade de São Mateus, estado do Rio, onde teriam sido impressas como volantes para serem distribuídos na região da Rua 7 de Setembro, Avenida Rio Branco e nos arredores da cidade. No material apreendido, apelava-se ao povo para que promovesse “demonstrações de força e à revolta contra o regime existente no Brasil”. Além disso, a polícia sublinhava que os “Extremistas queriam realizar uma reorganização eficaz das suas fileiras e da sua atividade, utilizando a situação criada pela guerra européia”, ao que os agentes da repressão assinalavam: “que as prisões são a continuação das detenções anteriores devido ao processo do PC do Brasil em 1936 e à preparação de um novo processo contra o PC do Brasil, depois da prisão da direção do partido em março e abril de 1940”.

Segundo os relatórios da Polícia interceptados pelo CEIC, os detidos teriam sido distribuídos em três grupos: o primeiro grupo, constituído por 13 pessoas, que segundo as informações, eram todas comunistas. O segundo grupo, constituído por 15 pessoas seria formado por simpatizantes da “atividade funesta” e participantes no “movimento funesto”. Já o terceiro grupo, constituído por 21 pessoas, tinha-se em conta de que não se tratavam de comunistas, “mas prestaram apoio financeiro ao partido comunista”. Este último grupo foi todo ele libertado da prisão “porque provaram que a ajuda financeira foi concedida para os membros das famílias dos presos que têm uma existência

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16 “Relatório sobre os materiais recebidos em 26 de maio de 1940 da mãe de Prestes”. Op. cit.17 O outro brasileiro que interveio no Congresso foi Fernando de Lacerda, que falou no dia 9 de agosto ao longo de 16 minutos sobre um tema parecido, mas sem o otimismo de “Marques”. “Lista de oradores no VII Congresso”.

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15miserável” .

Em torno das prisões do PCB em 1940, a Internacional Comunista organizou um farto material de informação sobre cada um dos presos, entre os quais se encontravam os dirigentes nacionais do Partido, “Bangu”, “Abóbora”, “Martins” e “André”, e mais: Elvira Copello Coloni (“Elza Fernandes” também conhecida como “Garota”), seu irmão Luiz Copello Coloni, Aldeíno Deícola dos Santos (“Tampinha”), Francisco Natividade Lira (“Cabeção”), Leôncio Basbaum, Valdevino de Oliveira (“Marques”) entre outros. O objetivo do Komintern em reunir as informações, era descobrir os motivos do fracasso do Partido no Brasil e estabelecer um perfil de cada militante com a finalidade de descobrir os “elementos provocadores” e os potenciais traidores da organização. Ao se analisar a referida documentação percebe-se, claramente, o nível da paranóia vivida pelos comunistas, pois ao conhecido caso da eliminação de “Elza Fernandes” por membros do PCB, são citados os assassinatos de Tobias Warschawski e do capitão Medeiros Nogueira, além de outros supostos traidores que estariam na mira da direção pecebista e escaparam, como Mário

16Grazzini e Antílio Medeiros .

Não obstante o estado de vigília quanto à situação no Brasil, pelo material recolhido, em que são acrescentadas informações de comunistas que residiam em Moscou, especialmente de Fernando de Lacerda, Roberto Morena e Octávio Brandão, pode-se conhecer um pouco dos meandros da atuação da direção banguzista frente IC. Com efeito, sabe-se que os únicos brasileiros que participaram do VII Congresso da Internacional Comunista como delegados foram o próprio Fernando de Lacerda e Valdevino de Oliveira, que atuava sob o codinome de “Marques”. Foi justamente “Marques” que interveio em 28 de julho de 1935, ao longo de 26 minutos, abordando a situação do país no famoso informe do qual a IC tirou as diretivas que culminaram no levante

17de 1935 . Enquanto isso, o mandato de “André”, indicado pelo PCB como delegado ao VII Congresso da IC, não foi confirmado em virtude de uma atitude, no mínimo, inusitada do dirigente brasileiro que teria riscado com um canivete na pasta de “Miranda” (também chamado de “Queirós”) a seguinte informação: “o camarada (segue-se o verdadeiro sobrenome) é delegado do PCB ao VII Congresso da IC, secretário-geral do PCB”. O episódio teria sido

descoberto pelos pecebistas que estavam em Moscou e quando foi perguntado a “André” do porquê de ter feito aquilo, ele respondeu “que foi 'uma brincadeira'”. Mas a brincadeira não ficou restrita a “André”, já que “Marques” teria posto na mala do “Miranda” “um pacote de moedas soviéticas e emblemas com os retratos de Lenin e Stálin”. Crendo-se na veracidade de tal informação, o caso, que demonstraria um tremendo descuido diante da repressão no Brasil, o que poderia ser tomado como provocação, foi narrado em detalhes no auto de informações reunidas pelo Komintern sobre “André” e, posteriormente, foi analisado na comissão do CEIC, constituída por Van-Min, Kraievski, Marcucci e Lacerda, onde teria havido gestões em favor da expulsão de “André”:

A proposta de Lacerda sobre a expulsão de Sousa do PC foi rejeitada por insistência de Kraievski. Não obstante a 'brincadeira' extremamente suspeita com a pasta de Queirós, este, quando chegou ao país, comunicou ao CEIC que Sousa [“André”] deve fazer parte da delegação do PCB ao VII Congresso da IC. A comissão de mandatos não confirmou o mandato de Sousa e não o deixou ir ao Congresso.

A conclusão do CEIC sobre o trabalho de “André” era sumária: “Não obstante Sousa [“André”], atualmente, estar preso pela polícia brasileira, a julgar pelos dados que conhecemos, pode-se supor que ele é um agente da polícia na direção do partido, embora não dispúnhamos de

18dados concretos sobre as suas provocações” .

Sobre o comportamento de “Miranda” na cadeia, o CEIC concluiu tratar-se de “provocatório” em virtude do caso “Elza Fernandes”, companheira do ex-secretário-geral do PCB. A despeito disto, “Miranda” era citado como “muito combativo” e de “grande coragem”. Além do mais, Antonio Maciel Bonfim era descrito como alguém de “muita iniciativa”, “capacidade de trabalho” e “fiel” ao Partido, já que recebia as críticas de forma saudável e “se erra, fala dos seus erros” emendando com êxito “as velhas fraquezas em relação às tendências golpistas e ao praticismo”. Além disso, era destacado que “Miranda” manifestava grande inclinação para a leitura”, além de ser estudioso e dado a discutir “as questões vitais para o partido”, o que lhe permitia saber, melhor do que o próprio CEIC, a situação do povo e do país.

AHS/ICS/UL, Doc. 54, maço 6, caixa 1. A documentação esclarece sobre a participação brasileira no Conclave do Komintern.18 “Informação sobre Elias Reinaldo da Silva”. 16.VI.1940. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. AHS/ICS/UL.

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Apesar disso, o Comitê Executivo do Komintern considerava que “Miranda” continuava a ter, até certo ponto, “uma análise ultra-otimista das forças do partido e uma fé exagerada na espontaneidade das massas e no grau da sua educação revolucionária”. Dizia-se que ele também, “tal como outros funcionários dirigentes do PC do Brasil”, não compreendia a “tática Leninista-Stalinista na revolução dos países coloniais e semicoloniais”. Não obstante, Lacerda, como responsável pela informação veiculada pelo CEIC, concluía: “Queirós [“Miranda”] possui grandes qualidades que o tornam possível transformar-se no dirigente real do partido. Ele é muito querido nas organizações de base do Rio, São Paulo e por todos os delegados das regiões”. “Queirós”, contudo, não cumpriria o papel que lhe reservava a IC para o trabalho no Brasil, já que havia sido preso e sua companheira tinha sido liquidada pelo Partido, o que provocou seu afastamento das fileiras do PCB que terminou por considerar sua atitude como

19“provocatória” .

Ainda pela análise das informações sobre os principais dirigentes pecebistas presos em 1940, percebe-se o nível de intromissão que o Partido e a IC tinham perante os seus membros. Sobre “Martins” (também chamado de “Lima”), que tinha sido casado com uma rica herdeira do “Conde de Figueiredo”, dito como “um dos maiores burgueses do Brasil”, após o falecimento de sua esposa, mãe dos seus filhos, ligou-se a uma militante do PCB, mas, “sob a influência da crítica de Queirós, apoiado por Alonso, separou-se dela”. Mais tarde, “Martins” teria pedido autorização para juntar-se a outra mulher, “mas o secretariado, por proposta de Queirós, não concordou devido à origem pequeno-burguesa dela”. Foi-lhe proposto, contudo, juntar-se à ex-mulher de Alonso, uma argentina, com quem efetivamente veio a se juntar. A conclusão, entretanto, não era das melhores para o PCB e para a IC, já que a nova esposa de “Martins” temia ser considerada uma “segunda Elza Fernandes”, de maneira que tinha procurado na polícia “defesa contra as ações terroristas dos comunistas”. A despeito disto, sobre “Martins”, que tinha sido um dos participantes no assassinato de

20“Garota”, não pesavam maiores suspeitas .

Se as informações sobre os dirigentes pecebistas recolhidas pelo Komintern davam conta

dos riscos que a organização corria quanto à presença de “provocadores” entre os dirigentes, quando se fala em “Bangu”, em que pesem as versões posteriores que o tratavam como oportunista e um dos propositores da “linha direitista” do Partido, sua fidelidade a PCB é colocada acima de qualquer suspeita pelos membros da CEIC: “Bangu é fiel ao partido. Lutou pela linha do partido. Reconhece a crítica quando erra. Luta pelo respeito pela conspiração e pela vigilância revolucionária. Elegeram-no da primeira vez secretário-geral porque viram que em Bangu não há sectarismo e intriguismo [sic], pode dirigir o partido”. Apesar dos elogios, considerava-se que “Bangu” tinha revelado uma inclinação para o “golpismo” em 1935-36, “quando a situação não era favorável a um “putsch” para a libertação dos presos políticos”. Além disso, o secretário-geral do PCB parecia que exagerava na crítica ao trabalho da ANL. Seria uma referência ao documento “A marcha da revolução nacional libertadora e suas forças motrizes”, em que a direção banguzista criticava o “sectarismo” e o “esquerdismo” da atuação do Partido diante dos setores ditos progressistas da burguesia? A resposta é, muito possivelmente, positiva, não obstante não fique claro sobre quais aspectos a crítica de “Bangu” tivesse

21sido exagerada .

Pelo sim, pelo não, o fato é que a direção banguzista conduziu o Partido Comunista até a linha de Frente Popular seguindo fielmente as orientações do Komintern. Após reagrupar as forças nacionais e expulsar o grupo divergente de São Paulo, o SN de “Bangu”, “Martins”, “André” e “Abóbora”, em meio à intensa repressão, foi capaz de fazer a ligação do PCB da “insurreição” de 1935 ao PCB da União Nacional dos anos 40. A despeito disto, o período posterior ao levante e anterior à legalidade é um dos mais desconhecidos da história do movimento comunista brasileiro. Isto porque o grupo de “Bangu” foi quase que amaldiçoado pela memória de extração comunista e por uma parte considerável da historiografia. E se as ligações do PCB com o Komintern foram interrompidas em algum momento depois de 1935, isto não ocorreu enquanto os caminhos da revolução brasileira estavam sendo refeitos, ainda que com a Frente Popular e a União Nacional. Nem, muito menos, nenhuma ligação deixou de existir enquanto uma direção maldita prosseguiu recebendo as ordens de Moscou.

19 “Informação sobre Antonio Maciel Bonfim”. 17.06.1940. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. AHS/ICS/UL. Na documentação fica claro que “Miranda” não participou do VII Congresso da IC, como crê a historiografia brasileira sobre o assunto: “Queirós, conjuntamente com Marques e Sousa, veio em 1934 a Moscou como delegado do VII Congresso da IC, mas visto que o congresso começou mais tarde, ele regressou ao país”.

20 “Informação sobre Honório do Freitas Guimarães”. 16.VI.1940. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. AHS/ICS/UL.21 “Informação sobre Bangu-Silva (verdadeiro nome de Lauro Reginaldo da Rocha). 16.VI.1940. Documentação da Internacional Comunista sobre o Partido Comunista Brasileiro, pasta 22, sem catalogação. AHS/ICS/UL.

30 - Conluio e cadeias: Considerações sobre a direção pecebista na conjuntura do Estado Novo. 1936-1940

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2Victor de Oliveira Pinto Coelho

m 3 de janeiro de 1948, em edição 3especial do Jornal do Povo , Otávio Dias Leite lembra

o centenário do Manifesto Comunista de Marx e Engels, publicado em 1848, que marcou “o início do grande e generoso século XIX, porque cronologicamente foi o inicio das transformações sociais, políticas, econômicas e científicas, que levaram a Humanidade a derrubar inúmeras bastilhas medievais, compressoras do corpo e do espírito do

4homem” .

Mas, 1948 seria um ano que marcaria a divisão do mundo em duas grandes superpotências rivais. No Brasil, a sombra trazida pela Guerra Fria que nascia se fez notar com a cassação dos mandatos dos comunistas, após a expulsão do Partido Comunista do Brasil da vida pública. Do outro lado, o estabelecimento do Bureau Comunista de Informação (Kominform) proporcionou um relacionamento mais estreito do PCB com o Partido Comunista da União Soviética. Como lembra Marco A. Coelho, um documento expedido por uma liderança estritamente ligada a Stalin, Malenkov, dizia que o mundo estava dividido em dois campos. “Interpretávamos que tal antagonismo [...] se dava também no interior de cada país em todos setores e relações sociais”. Isto endossou a radicalização política, ao estreitamento do campo de possíveis alianças. “Além disso causou a maior confusão entre nós uma análise de Stalin”, segundo a qual “'a burguesia jogou fora a bandeira da democracia e das liberdades'. De forma generalizada aplicávamos esses conceito ao Brasil, o que não deixou de reforçar as posturas esquerdistas

5em nossa orientação política” .

É este o cerne da discussão desenvolvida por Gildo Marçal Brandão a respeito das “duas almas” do

E

O e a luta1por direitos - 1948

Jornal do Povo

PCB. Durante sua história, o partido balançou entre uma postura voluntarista e radical e momentos em que as instituições democráticas foram vistas, mesmo que numa concepção utilitária e etapista, como campo privilegiado de representação de classe e luta por direitos. Tais posturas por diversas vezes coexistiram de forma tensa, como no período entre 1945 e 1950, onde houve uma certa contradição entre a linha adotada pela direção do partido e os interesses das bases. Como quando Luiz Carlos Prestes defende uma política de aliança nacional contra o espectro fascista, e pedia para os trabalhadores “apertarem os cintos” e não fazerem greves, gerando insatisfação no movimento operário. Ou na conjuntura seguinte da escalada repressiva do governo Dutra, incluindo a cassação do registro do partido, em maio de 1947, a radicalização do PCB, que não se mobiliza para se manter na legalidade – os mandatos de seus parlamentares, de acordo com um projeto de lei feito ainda em maio de 1947, são também cassados em janeiro de 1948. Neste caso, o partido assume o radicalismo no momento em que os trabalhadores lutavam por seus direitos.

De qualquer forma, não se deve desconsiderar o empenho do governo no sentido de reprimir movimentos vindos “de baixo”, que não se conformavam com o “pacto” trabalhista lançado por Vargas, cuja estrutura institucional, a legislação corporativista, seria mantida por interesse de Dutra e com sua vitória na Assembléia Constituinte de 1946. E tais contradições entre direção do partido e o movimento operário não podem nos fazer perder de

1 Este artigo constitui-se de parte do capítulo 2 de minha dissertação. Ver COELHO, Victor de Oliveira Pinto. “Nova Lima, 1948 A greve dos mineiros e o ardil anticomunista”. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, dissertação de mestrado, 2004; orientador Rodrigo P. Sá Motta.2 Bacharel e Mestre em História pela UFMG. Professor da Faculdade ASA de Brumadinho.3 Nascido em janeiro de 1947, foi o primeiro jornal comunista de Belo Horizonte, o Jornal do Povo, que seria a partir de então muito influente no

História & Luta de Classes - 31

meio operário de Minas Gerais. 4 “1948 Festivo Para Os Homens Livres”. Jornal do Povo, Belo Horizonte, 3.1.1948, p. 3.5 COELHO, Marco Antônio Tavares. Herança de um sonho: as memórias de um comunista. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 109.6 BRANDÃO, Gildo Marçal. A esquerda positiva. As duas almas do Partido Comunista – 1920/1964.. São Paulo: Hucitec, 1997.

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7 Baseei este subtítulo na chamada final do “Manifesto da Comissão de Salár ios” dos ferroviários da Rede Mineira de Viação – “TRABALHADORES DE TODA A REDE, UNI-VOS!”. Jornal do Povo, 18.5.1948 (edição extra, sobre a greve da RMV), p. 4 e 3. É óbvia, por sua vez, de onde veio a inspiração: o Manifesto Comunista de Marx e Engels.8 Ver MARANHÃO, Ricardo. Sindicatos e democratização (Brasil 1945/1950). São Paulo: Brasiliense, 1979.

32 - O Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948

vista uma contradição mais fundamental: aquela entre capital e trabalho. Enquanto a direção do partido se relacionava com o marco institucional a partir de uma meta política destinada, em última instância, a superá-lo, o movimento operário, incluindo os líderes ligados ao partido, naquela conjuntura, tomava as leis trabalhistas e direitos constitucionais como algo a ser concretizado. Como pretendemos demonstrar neste artigo, esta tensão pode ser vislumbrada na ambigüidade do discurso do Jornal do Povo, em suas edições de 1948.

7Trabalhadores de todo o Estado, uni-vos!

Além da escalada da Guerra Fria e a conseqüente cassação do registro do PCB, o ano de 1948 trazia um acúmulo no aumento do custo de vida

8que vinha de pelo menos 1943 . Entretanto, na edição especial do Jornal do Povo, mencionada acima, podemos ver que os comunistas davam mostra de que seu otimismo estava longe de ser abalado, e pareciam tirar das dificuldades a inspiração para a luta. De acordo com a matéria, o “ano que transcorre o cinqüentenário de Prestes é decisivo. Façamos tudo para que seja o ano da vitória na luta aberta contra a ditadura e o imperialismo”; e em seguida conclama a união dos trabalhadores, pois que “nenhuma resistência será possível se não compreendermos que ela tem de ser feita não por indivíduos, mas pelos grandes setores do povo, pela massa organizada – organizados os operários em sindicatos, os lavradores em Ligas e as mulheres e jovens em

9Uniões” .

Embora a matéria da capa destaque a ameaça iminente de cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, a ênfase das matérias da edição é sobre a III Conferência Sindical e a defesa das “eleições e liberdades sindicais e a regulamentação do artigo 157 da Constituição [que determina o descanso semanal

10remunerado]”, como diz uma das matérias .

Contudo, mais que reivindicativa, a postura adotada pelo PCB é a de colocar na linha de frente o princípio da luta de classes. Em 28 de janeiro, o partido lança um manifesto em que deixa claro o rompimento com a política de união nacional e proclama o retorno à via revolucionária. Isto terá reflexo no Jornal do Povo, e a defesa das eleições e

liberdades sindicais acabarão por ficar em segundo plano, diante da ênfase no confronto direto com os patrões, as autoridades e as instituições.

Em 1947, o Jornal do Povo já influenciara a 11eclosão de várias greves . Ao longo de 1948

ocorreram várias outras em todo o Estado, e as matérias do Jornal do Povo enfatizarão não a atuação dos sindicatos, mas a das comissões salariais em defesa dos trabalhadores em contraste com a atuação dos sindicatos.

Antes de analisarmos algumas das matérias do jornal, é bom termos em conta um ofício, que contém “sugestões” do Comitê Nacional do PCB ao Comitê Estadual mineiro, referentes à Campanha Pró

12Imprensa Popular do partido de 1946 . Em primeiro lugar, sintetiza as “Resoluções da III Conferência”, e lembra que: “Nela está destinado um lugar de relevo à propaganda [...] para educar politicamente o povo e elevar o nível político e edeologico (sic) do Partido”, para entusiasmar, convencer e mobilizar a massa “com uma propaganda nova, ágil, original”. Em seguida, dá a receita para que os jornalistas do partido façam jus ao desafio, sugerindo publicar os nomes e fotografias de indivíduos e organismos, “membros ou não do Partido, que se tenham destacado na Campanha, realizando assim uma proveitosa emulação”, e também a criação de “pequenas secções e 'sueltos' em quadros distribuídos pelo jornal, tratando de problemas concretos e sentidos pelo povo, como o da carne, pão, manteiga, habitação, etc., em tópicos de 15 a 30 linhas, tendo no fim um lembrete com as frases de Prestes”. Frases como “para combatermos tudo isso, precisamos de bons jornais, baratos, verdadeiros etc.”. Ou, como nas matérias do Jornal do Povo sobre os movimentos grevistas de 1948, correspondendo a essas sugestões, frases que conclamam os trabalhadores à greve e/ou à formação de comissões de salário.

Em setembro, Augusto Gilbert, embora fosse presidente da União Sindical de Belo Horizonte, conclama a fundação de uma comissão salarial pelos trabalhadores da Força e Luz de Minas Gerais. Depois de recordar que os trabalhadores haviam se reunido, organizado uma tabela salarial e se dirigiram ao Sindicato, reivindicando 500 cruzeiros de aumento. “Mas, como sempre”, diz Gilbert, “Sendo o sindicato dirigido por um grupo de indivíduos que não

9 Jornal do Povo, 3.1.1948, p. 1.10 “Só Com a Liberdade Os Sindicatos Serão Fortes”. Jornal do Povo, 3.1.1948, p. 3.11 De acordo com o relato de Marco A. T. Coelho (op. cit., p. 91-92).12 APERJ/Estados/11, arquivo da polícia política do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

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13 Jornal do Povo, 19.9.1948, p. 16 e 13. Em agosto e setembro, há matérias com o mesmo teor, sobre o movimento dos têxteis de Juiz de Fora (Jornal do Povo, 29.8.1948, p. 3 e 19.9.1948, p. 10).14 Jornal do Povo, 18.4.1948, p. 16 e 13. 15 Jornal do Povo, 18.4.1948, p. 10. A cobertura do movimento grevista na Belgo Mineira também aponta a cumplicidade entre as autoridades e os

História & Luta de Classes - 33

representa a vontade da classe e sim o Ministério do Trabalho”, o que fizeram “foi correr ao delegado do 'trabalho' e ao diretor da companhia estrangeira”, e “disseram que esse pedido de aumento era um 'plano dos comunistas'. E como não podia deixar de ser, a orientação foi dada para que se encaminhasse à 'justiça' o pedido, sob a forma de dissídio [coletivo]”. E para dar “uma aparência democrática”, de acordo com Gilbert, foi feita uma votação em que só os “destemidos elementos que não descansaram um só instante nas greves passadas” votaram contra. Estes, então, foram despedidos e os demais tiveram cortados

13os ganhos extraordinários .

Em abril de 1948, uma matéria do jornal, ao informar que o TRT julgava improcedente o dissídio coletivo dos trabalhadores da Companhia Força e Luz, de Juiz de Fora, afirma que cumpria-se o que já havia sido denunciado várias vezes pelo jornal: “o dissídio coletivo é um instrumento dos patrões, das empregadoras para executarem a política do congelamento dos salários, da carestia crescente, da

14liquidação física de nossos trabalhadores” .

Em seguida, a matéria estimula a união dos trabalhadores em torno da exigência do aumento salarial e, em caso do não atendimento por parte da empresa, a greve. Na mesma edição vem uma matéria semelhante, sobre o dissídio coletivo dos mineiros de Lafaiete, e em que a própria legitimidade da Justiça do Trabalho é posta em questão: “Dissídio e agonia – Perdem as ilusões com a justiça os mineiros de Lafaiete. Aproxima-se de um ano a demorada Justiça em julgar o dissídio coletivo dos mineiros de Lafaiete”, que “suam para enriquecer a United States Steel Corporation”, mas “estão sendo ludibriados pela justiça; toda ela manipulada pelos [...] cassadores de mandatos, inimigos jurados da classe

15operária” . Em seguida, conclama à formação de comissões para entrar em entendimento direto com a empresa, para “arrancar os 70 por cento de aumento”.

Outra reclamação sempre presente nas matérias do jornal é a dificuldade por parte dos trabalhadores de obter o descanso semanal remunerado, previsto em lei. As empresas sempre aceitam pagá-lo em troca da exigência de 100% de assiduidade. A partir disso, o jornal passa a desacreditar as leis. Em matéria de junho, por

exemplo, o jornal conclama os trabalhadores a não 16 alimentar “ilusões legalistas” , pois as leis, que

garantem as liberdades individuais e os direitos trabalhistas, limitar-se-iam ao papel.

Como não poderia deixar de ser, notícias sobre a repressão aos operários são constantes, e vão desde a expulsão de operários que assinam manifestos e distribuem boletins até a violência praticada pela polícia quando da eclosão de greves. Alguns dos relatos sobre a repressão sofrida pelos trabalhadores enfatizam a crueldade e covardia seja por parte da polícia, seja por parte dos patrões. Neste último caso, freqüentemente é enfatizada a nacionalidade estrangeira dos patrões e se faz a referência à sua ligação com o capitalismo imperialista.

Quanto às pressões que os trabalhadores sofriam no ambiente de trabalho, a repressão será destacada através da figura dos chefes de serviço, que são tidos como verdadeiros tiranos, que impõem sacrifícios e mesmo o terror entre os empregados, e que seriam um dos fatores de motivação para a maioria das greves de 1948. Este é o caso, por exemplo, do “regime de violência e desmando” do “engenheiro Mendonça”. Seu papel pode ser medido no título da matéria do Jornal do Povo: “Instalada em Divinópolis a sucursal do inferno – Transformadas as oficinas da Rede [Mineira de Viação] em campo de concentração”. O engenheiro, “de tendências ditatoriais” e apelidado de “Cadeado”, desde que foi nomeado diretor das oficinas, teria tido atitudes como a de proibir os empregados que moravam em outras cidades de visitar suas casas e famílias, chegando estes a passar até mais de cem dias sem poder fazê-

17lo . Há também as agruras causadas aos ferroviários de Lavras pelo engenheiro Aristides, “verdadeiro

18tirano” .

Contra todos esses abusos, a única solução apontada pelo jornal era a greve. E, à medida que iam ocorrendo novas delas, as anteriores (ou as simultâneas) eram evocadas como o exemplo a ser seguido. E os resultados negativos de muitas delas acabavam por serem apontados como prova de que os patrões e a Justiça estariam contra os trabalhadores, e, assim, proclamava-se a necessidade de continuar a luta. Este imperativo vinha também da evocação de uma tradição de lutas a que todo trabalhador, se quiser

patrões . Ver Jornal do Povo, 14.11.1948, p. 11.16 Jornal do Povo, 1.8.1948, p. 1 e 4.17 Joral do Povo, 18.4.1948, p. 11 (e também na edição de 7.3.1948).18 Jornal do Povo, 2.5.1948, p. 11. Há também o “gerente Rocha”, da fábrica têxtil Renascença de Belo Horizonte (Jornal do Povo, 29.81948, p. 12 e 4) e “o sr. Erwim de Tal”, que “reina na CIFER” (Jornal do Povo, 20.6.1948, p. 10).

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19 Jornal do Povo, 18.7.1948, p. 8 e 9. “As Experiências dos Últimos Movimentos Grevistas em Minas Gerais”. O artigo estaria, na íntegra, no jornal A Classe Operária.20 Jornal do Povo, 29.8.1948, p. 10.21 Jornal do Povo, ibidem. Na coluna “comentário político”, Gilbert falou sobre “A luta por aumento de salários e o espírito revolucionário da classe operária em Minas”. Jornal do Povo, 21.8.1948, p. 8.

34 - O Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948

ver consolidados seus direitos, deve seguir.

Em julho, por exemplo, veio publicado um longo artigo, de autoria de Marco Antônio T. Coelho, em que ele inicia dizendo que nos últimos meses “a classe operária em Minas tem se lançado em lutas memoráveis para derrotar a política de esfomeamento (sic) e de opressão” das classes dominantes. Dessas lutas, “somente vistas em nosso Estado nos anos de [19]34 e [19]35, os trabalhadores e em particular a sua vanguarda vêm retirando ricos e profundos ensinamentos que estão auxiliando eficazmente a educação de nosso

19proletariado para embates mais duros e vigorosos” .

Em agosto, outro artigo, não assinado, também qualifica as greves de 1948 em Minas, em especial a dos mineiros de Conselheiro Lafaiete e Congonhas do Campo, como uma contribuição a mais na história de lutas do proletariado, enriquecendo “o

20patrimônio de lutas do proletariado mineiro” . Ressaltando ainda o espírito de luta contra o imperialismo do capital financeiro americano e contra as pressões e perseguições das autoridades policiais, judiciárias e políticas, o artigo diz que “é preciso lutar por aumento de salários com os [...] métodos novos, os métodos de greve e ações de massa, tão usados pelos trabalhadores da França e da Itália e dos EE. UU” e afirma que “Desapareceu o tabú da

21passividade do operário mineiro” .

E como a greve é a forma principal de luta do trabalhador organizado em qualquer lugar do Brasil e do mundo, ela é muito mais que emulada pelo jornal: ela é posta como direito ou arma “sagrada” dos trabalhadores. Em um artigo publicado em agosto, depois de enumerar os “princípios necessários” de uma greve (organização, solidariedade, caixa de greve bem organizada e neutralização dos fura-greve), o texto prossegue dizendo que, para vencer a resistência, deve-se proceder de forma que a reação logo compreenda “que os trabalhadores não cederão, que paralisarão o serviço pela violência, se contra eles for empregada a força policial. [...] Foi isto o que ocorreu ainda há pouco em Clermont Ferrand, na França”, quando “os grevistas ergueram barricadas em torno da fábrica e se defenderam usando até mesmo os ácidos destinados ao fabrico da borracha, o que obrigou os policiais a desistirem da empreitada

22de expulsar os grevistas do local” .

Já as comissões de salário, ou comissões de fábrica, estão presentes em praticamente todas as matérias sobre movimentos grevistas ao longo do ano, e são emuladas e estimuladas. Numa reportagem sobre a situação dos ferroviários de Lavras, há uma descrição do que seria sua função: “as comissões de Oficinas” seriam “comissões formadas pelos trabalhadores, chefiadas pelos companheiros mais ativos, capaz de levar todas as reclamações da massa à Direção da Estrada e, conforme a atitude desta,

23fazer campanha pelos sagrados direitos da classe” . Sua função primordial, portanto, como a comissão de salários dos operários de Morro Velho, era a de negociar diretamente com a empresa, e é sempre colocada, pelas matérias do jornal, como a “cabeça” que irá “dirigir” os trabalhadores, constituídas pelos

trabalhadores com maior “fibra”.

De acordo com Hélio da Costa, que elaborou um trabalho sobre a atuação dessas comissões de fábrica na cidade de São Paulo, sua existência vem pelo menos dos anos de 1942 e 1943, em plena vigência do Estado Novo, quando se contrapunham tanto às instituições oficiais, como os sindicatos, como à direção do PCB, que privilegiava a Frente Única antifascista. Costa afirma que elas seriam a continuidade de uma tradição dos movimentos

24operários surgidos nos primórdios do século XX . Sua atuação no período entre 1946-1950, também em São Paulo, foi objeto de pesquisa de Ricardo Maranhão, que diz que “as 'comissões' de trabalhadores foram um elemento crucial nos conflitos de trabalho no período, funcionando muitas vezes em caráter permanente nas empresas”. Várias delas “se formavam mesmo quando não havia orientações explícitas de grupos partidários ou sindicatos”, e muitas vezes “em caráter efêmero, para pequenas reivindicações junto aos patrões”. Mas “a prática dessa atividade tendia a formar lideranças e a mantê-las permanentemente em ação, renovando-se mediante eleições irregulares nos locais de reunião. Para o movimento operário posterior a 1947, a manutenção dessa prática foi

25crucial” .

Já Yonne de Souza Grossi, em seu trabalho sobre a vida dos trabalhadores da mina de Morro Velho (MG), data o surgimento da comissão salarial dos mineiros em 1935. O “tempo a transformou em

22 Jornal do Povo, 21.8.1948, p. 2. “Greve: arma sagrada da classe operária” (título). Ver também “Sagrado o direito de greve”, Jornal do Povo, 3.10.1948, p. 10.23 Jornal do Povo, 2.5.1948, p. 11.24 COSTA, Hélio da. Em busca da memória; comissão de fábrica, partido, sindicato no pós-guerra. São Paulo: Scritta/Página Aberta, 1995.25 MARANHÃO, op. cit., p. 67.

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26 GROSSI, Y. S. Morro Velho: a extração do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 107.27 Jornal do Povo, 6.6.1948, p. 3. (grifo nosso).28 Jornal do Povo, 20.6.1948, p. 10 (grifo nosso).29 Jornal do Povo, 18.7.1948, p. 8-9.30 Jornal do Povo, 3.10.1948, p. 11 (grifo nosso).31 Analisando algumas edições do jornal Vanguarda Socialista entre dezembro de 1945 e fevereiro de 1946, Hélio da Costa mostra que em vários artigos o jornal chamou a atenção para o caráter espontâneo de muitas greves,

História & Luta de Classes - 35

tradição”, sendo “escola por onde passaram futuros 26líderes do movimento operário” . A princípio, tais

comissões não teriam o objetivo de contraporem-se aos sindicatos, que, a despeito de sua limitada autonomia, eram, de qualquer forma, o meio legal de organização da massa operária.

Somente a partir de 1946 a direção do partido decide abandonar a diretriz de “manter a ordem” e se aproximar do movimento operário, e, após a cassação do partido, em 1947, decide se unir às bases e passa a incentivar efetivamente as greves. Isso pode ser intuído a partir de matérias como a que discorre sobre “como deve prosseguir o movimento dos operários da Cia. Força e Luz Cataguazes Leopoldina”. Ela diz que os trabalhadores “já se encaminharam para a formação de sua comissão de empresa porque o movimento lhes abriu o olho sobre

27a necessidade de pedirem aumento” .

Outro exemplo eloqüente é uma passagem de uma matéria já citada sobre o sindicato dos metalúrgicos da Belgo-Mineira de Sabará. Depois de discorrer sobre o desprestígio do sindicato, diz que “os mais esclarecidos aconselham os companheiros a ajudarem a Comissão de Salários fundando na empresa boas sub-comissões de salários, apoiadas por todos, chefiados pelos trabalhadores de mais

28fibra” . Marco A. Coelho, em uma matéria escrita em julho sobre “As Experiências dos Últimos Movimentos Grevistas em Minas Gerais”, diz que “Dessas lutas [...] os trabalhadores e em particular a sua vanguarda vêm retirando ricos e profundos ensinamentos que estão auxiliando eficazmente a educação de nosso proletariado para embates mais duros e vigorosos”.

Porém, ao falar sobre a greve da Rede Mineira de Viação, lamenta que “Sem uma vanguarda esclarecida e sem uma organização ao longo da linha, a massa ferroviária dificilmente poderia conseguir mais do que obteve, isto é, a normalização do salário e a solução de outros pequenos problemas, enquanto o aumento ficou adiado”. Embora afirme que os ferroviários tenham seguido os “ensinamentos” trazidos por todas as greves – a organização e espírito de luta; a vanguarda das mulheres e a solidariedade dos comerciantes, obtida

por pressão daquelas –, enfatiza “os profundos prejuízos causados pela não existência de uma forte

29vanguarda dos ferroviários da Rede” . E, em uma matéria do jornal em outubro, sobre o desenrolar da greve da Rede, diz que, “Pela primeira vez no ano de 1948 os trabalhadores brasileiros, se bem que espontaneamente, combatiam com energia por

30reivindicações concretas” .

Se a espontaneidade do movimento operário pode ser percebida em meio ao discurso vanguardista

31do Jornal do Povo , resta refletir sobre o significado desta tensão entre a linha adotada pelo partido e a natureza reivindicativa do movimento.

Sobre espontaneidade, vanguarda e (i)legalidade

Uma matéria de setembro do Jornal do Povo, sobre a greve dos operários da Cia. Meridional de Mineração (a americana United States Steel Co.) dizia que, numa luta como a de Lafaiete, “ficar neutro é ficar ao lado dos patrões americanos. Não é possível ser neutro entre o explorador e o explorado, entre o ladrão e o roubado, entre a riqueza e a miséria, entre os imperialistas e os trabalhadores

32brasileiros” . E as edições do jornal cada vez mais incitavam os trabalhadores a se unirem em comissões de fábrica, pois “a única solução para o proletariado é a de se organizar conscientemente, criar comissões de salário, realizar amplas assembléias de classe e

33exigir, por todos os meios, o aumento de salário” . Entre tais meios, o mais incentivado é a realização de greves, oportunidade em que o jornal divulgava os manifestos das comissões salariais.

Em um deles, o “Manifesto dos 34Trabalhadores da Vale [do] Rio Doce” , depois da

afirmação de que as promoções prometidas pela empresa desde 1947 visariam a dividir e a desviar os trabalhadores da luta, proclama-se que a vitória depende da unidade e apoio “que for dado à Comissão de Salários”, e não havia outro caminho a seguir que “o de um aumento geral de salários, dentro da tabela elaborada por todos os núcleos, por ser a única compatível com o custo de vida atual. Tudo pelo aumento de salários! Tudo pela vitória”. A menção a uma tabela elaborada pelos “núcleos”

“denunciando uma visível carência nesses movimentos de uma vanguarda capaz de dirigi-los” (op. cit., p. 102).32 “Salve mineiros de Lafaiete – Vanguarda da luta contra o imperialismo”. Jornal do Povo, 19.9.1948, p. 8-9 (grifo nosso). A matéria é assinada por Ivan Pedro de Martins.33 “Cada vez mais unidos os ferroviários da Central”. Jornal do Povo, 1.8.1948, p. 10.34 Jornal do Povo, 27.6.1948, p. 16 e 10.

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35 GROSSI, op. cit: p 245.36 Jornal do Povo, 18.5.1948.37 MARANHÃO, op. cit. p. 15-16 (grifos no original).38 JAMES, Daniel e FRENCH, John D. “Pensar a América Latina – entrevista a Alexandre Fortes, Antonio L. Negro e Paulo Fontes.. In: FORTES, Alexandre

36 - O Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948

sugere um trabalho semelhante ao que era feito pelos líderes operários da mina de Morro Velho. Orlando Corrêa, então operário de Morro Velho, em sua entrevista a Yonne Grossi, relatou que fizera “uma série de cursos sobre política e economia política, em Nova Lima e São Paulo”, organizados pelo partido, “que lhe dava condições de raciocinar sobre o valor do ouro no mercado internacional, sobre a relação entre a folha de pagamento da Companhia, sua produção e quanto a empresa poderia dar de aumento, continuando a ter lucro para reproduzir o capital”. Segundo ele, havia “uma liderança organizada e uma massa organizada. Cada um conversava e debatia com o colega de seção e em cada seção da mina havia um elemento para mostrar o valor do trabalho e sua exploração”. E os líderes “levantavam os problemas, esclareciam e a retaguarda dava a cobertura, pressionava. Não se pretendia aniquilar a empresa: nós não entenderíamos fazer uma greve que a empresa não

35suportasse” .

Assim, podemos concluir que, pelo menos nos casos acima, a tática dos líderes do movimento era a elaboração de tais estudos, sua discussão com a massa dos operários e, em caso de resistência por parte da empresa, a promoção da greve, quando distribuíam manifestos justificando e tornando público(s) o(s) motivo(s) do movimento. No “Manifesto da Comissão de Salários” dos ferroviários da Rede Mineira de Viação, diz-se que já foram dirigidos “memoriais ao sr. Diretor da R.M.V., ao sr. Governador do Estado e à Câmara do Deputados Estadual, no sentido de providenciarem o mais rápido

36possível a nossa petição [aumento salarial]” .

Diferentemente de uma antiga produção sobre a trajetória do PCB em tal conjuntura, que escrevia a história a partir “de cima”, focalizando as relações entre o PCB e o Estado, ou de outra que tendeu a enfatizar a espontaneidade das bases, Ricardo Maranhão parte da perspectiva de que tal dicotomia não deve ser mantida. Tomando como inspiração Antonio Gramsci, observa que “não existe na história a 'pura' espontaneidade, e que mesmo os nos movimentos mais espontâneos existe um elemento de 'direção consciente'”, mas, tendo em vista a repressão que sempre acompanha os movimentos sociais, “a questão objetiva e necessária é, nessa perspectiva, a da canalização da

espontaneidade em organização”. Só assim movimentos econômicos – unidos estruturalmente, mas de tendência efêmera e localista – podem se tornar “um movimento político, isto é, um movimento de classe cujo objetivo é obter satisfação para seus interesses de forma geral, vale dizer, de forma que

37seja compulsória para toda a sociedade” . Já John French destaca que a “questão de se ter mais ou menos autonomia de classe vincula-se à questão de como as classes sociais existem, pois autonomia depende do balanço global de poder entre os muitos interesses conflitantes”, e que a autonomia deve vir ligada ao conceito de interesse. Este, por sua vez, se liga à questão maior sobre identidade de grupo ou de classe, e, mais que “natural” (surgindo a partir da unidade da fábrica), necessita de algo mais. “Isto envolve liderança, e liderança envolve o fato de a classe trabalhadora não ser uma massa indiferenciada de pessoas. Os líderes têm de ser capazes de descobrir qual é o interesse que unifica as pessoas o suficiente ante a estrutura que eles querem enfrentar”, e, segundo French, “isso depende do contexto mais amplo, do ambiente político. O fato de as greves ocorrerem em momentos de liberalização política e insurgência de massas, isso é

38fundamental” .

O estudo de Maranhão sobre o período entre 1946 e maio de 1947 o levou a “perceber de imediato que as relações classe-sindicato eram bastante diversificadas, e nem sempre organismos oficiais eram capazes de dirigir a 'espontaneidade' da classe nos seus locais de trabalho”, e destacar que “a canalização da espontaneidade reivindicatória só foi

39possível através das 'comissões' de base” . Foram as comissões de base que, no período posterior – escalada repressiva do governo, cassações, radicalização do partido –, possibilitaram a sobrevivência do movimento operário, em meio à ausência de canais institucionais de expressão de

40demandas . A propósito disto, Brandão reflete que, por maior que fosse a influência do PCB, “a inexistência de um partido operário legal na arena política tornava ostensivamente lento e difícil o processo de formação de uma consciência política de classe”. Para o autor, tanto no plano de partido como no da classe – no caso em questão, confluentes – “a limitação da discussão pública, a impossibilidade de apresentar em seus próprios nomes propostas, candidaturas, programas etc., tornava complicada a

et al. Na luta por direitos – estudos recentes em história social do trabalho. Campinas: Unicamp, 1999, p. 197-198.39 Idem, respectivamente p. 66 e 105.40 Idem, p. 113.41 BRANDÃO, op. cit. p. 169-170 (grifo no original).

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42 Principais jornais destacados pelo autor: “a Tribuna Popular no Rio, que, após sua fundação, em 1945, passou a vender 30 mil exemplares, quando o diário mais vendido não passava de 50 mil; Hoje, em São Paulo; O Momento, na Bahia; Folha do Povo, em Pernambuco; O Democrata, no Ceará; e a Tribuna Gaúcha no Rio Grande do Sul”. O partido possuía “duas editoras e publicava grande quantidade de livros, panfletos e opúsculos, além de possuir vários semanários, como Diretrizes, O Esteiro, e mais a velha e renascida revista A Classe Operária”. MARANHÃO, op. cit., p. 74. 43 Um exemplo é a matéria “Comissão de Solidariedade aos dispensados da Mogiana”, Jornal do Povo, 2.12.1948, p. 4.44 LOBATO, M. Z. “O perigo vermelho. Comunismo e anticomunismo na experiência operária dos trabalhadores da carne (Berisso, 1930-1943)”. In: BATALHA, C.; SILVA, F. T.; FORTES, A. (orgs.). Culturas de Classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004, p.261. 45 Opinião defendida por Lucilia Neves. Ver DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.

História & Luta de Classes - 37

identificação e a seleção de amigos e inimigos, de 41objetivos e interesses” .

Neste sentido, cabe destacar o importante papel que a imprensa operária tem ou pode ter nessa relação de forças. O próprio Maranhão destaca que a “atividade de imprensa era um fator decisivo para a afirmação do PCB e a difusão do movimento operário; o partido chegou a ter oito jornais diários

42em 1946” , e os jornais faziam não só a cobertura das greves como também promoviam campanhas de finanças para ajudar os grevistas – no caso do Jornal do Povo, houve campanha também para ajudar

43grevistas que haviam sido demitidos . Mirta Lobato, em seu estudo sobre a experiência operária dos trabalhadores da carne na Argentina, diz que os jornais, que se centravam em temas amplos como exploração e justiça de classe, ou a moral e a educação do proletariado, “deram lugar a artigos curtos e concretos nos quais se informava sobre a situação de cada seção, das demissões, os conflitos, as conquistas”. A imprensa era meio fundamental para gerar consciência de direitos e deveres “em relação ao trabalho e suas condições, não apenas entre os assalariados dos frigoríficos, mas também entre os partidos políticos, os legisladores nacionais e

44provinciais e as organizações estudantis” . Tal era, na prática, a tarefa que cumpria o Jornal do Povo, mas que a ilegalidade limitou.

Após a ilegalidade, ficaria mais difícil para o PCB competir com o ideário trabalhista, uma invenção da ditadura varguista destinada a se contrapor às lideranças autônomas do meio operário,

45em especial os comunistas . Concomitantemente à repressão ao “perigo vermelho” e ao controle dos sindicatos, o projeto do trabalhismo promoveu a consolidação da legislação trabalhista e de medidas assistencialistas, ao mesmo tempo em que procurava apagar a memória das lutas do passado feitas pelo movimento operário e com grande influência de lideranças do PCB, especialmente ao longo do

primeiro governo Vargas; e a legislação trabalhista era “compensada”, do ponto de vista do controle e disciplinarização da mão-de-obra, pela legislação corporativista, que sobreviveria também à

46redemocratização em 1945 . Assim, a referência histórica das medidas positivas adotadas pelo Estado e sua ligação com o passado histórico das lutas dos trabalhadores organizados puderam ser apropriadas

47pelo governo Vargas e seu mito da outorga , pois só um partido de esquerda legal podia fazer a mediação entre este passado e a memória do movimento

48operário, como destaca Brandão .

Podemos ver a divisão do partido em “duas almas” numa importante ambigüidade que merece ser analisada no discurso presente no Jornal do Povo, que procuramos identificar ao longo do artigo: do mesmo modo que o jornal procura deslegitimar as leis, afirmando que foram feitas para servir de instrumento legal de dominação, é no apelo à Constituição que, em alguns momentos, são justificadas as demandas que são feitas.

Destaca o jornal, em junho, que a proposta empresarial de aumento mediante recebimento do descanso semanal foi recusada pelos tecelões de Juiz

49de Fora, pois o descanso estava na Constituição . No caso da greve dos ferroviários da RMV, depois de conseguida a garantia do pagamento dos atrasados, a remoção do engenheiro chefe de Divinópolis, promoções, férias e passes, a matéria do jornal chama os trabalhadores a tocar a luta para frente, pois o trabalhador não pode “alimentar ilusões com os deputados”, quanto à aprovação do aumento salarial. Deveriam se lembrar os ferroviários “que há mais de dois anos os trabalhadores esperam o repouso semanal remunerado, a participação nos lucros, o

osalário justo determinado pelo inciso 1 do artigo 157 da Constituição Federal”, e “que não há ferroviários nem trabalhadores na Assembléia”, e sim “os fazendeiros, gananciosos comerciantes e advogados

50 da Belgo Mineira” .

46 Antigos trabalhos, especialmente o de Francisco Weffort, acusavam o PCB, devido a sua proposta de cooperação com o governo, de ter colaborado com aquela a manutenção da legislação corporativista. Luiz Werneck Vianna mostra ela na verdade ela teve a oposição do partido. Ver Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 47 Com perspectivas teóricas distintas, ver GOMES, Angela de Castro Gomes. A invenção do trabalhismo. 3a ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005; PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala; origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.48 Op. cit. p. 171. 49 Jornal do Povo, 13.6.1948, p.1050 Jornal do Povo, 23.5.1948, p.1 e 12. O artigo 157 da Constituição também foi evocado pelo jornal por ocasião do movimento dos trabalhadores da Cia. Força e Luz Cataguazes Leopoldina, quando estes aceitaram o mesmo acordo proposto aos tecelões de Juiz de Fora. Jornal do Povo, 6.6.1948, p. 3.51 Jornal do Povo, 3.10.1948, p. 10. A greve dos mineiros de Lafaiete foi uma das que se destacaram em 1948, em Minas.

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52 Jornal do Povo, 19.9.1948, p. 16 e 13. A matéria diz que, em 1947, “a pretexto de perseguir os comunistas”, o Ministério do Trabalho nomeou para a direção do sindicato três operários interventores “sem nenhuma prática de direção sindical”. 53 Ver, a propósito, as coletâneas de artigos: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história; debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, cujos artigos fazem um balanço crítico sobre o conceito de populismo e apresentam as novas reflexões sobre história do trabalho; e FORTES, Alexandre et al., op. cit. Ver também MATTOS, Marcelo Badaró

38 - O Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948

Afirma-se a importância do direito garantido pela Constituição a despeito, ou exatamente pelo fato de os políticos que dominam as instituições públicas não serem representantes do povo.

Sobre o movimento grevista na Fábrica Renascença, a matéria do jornal afirma que “A greve é arma legal, é dispositivo constitucional e não será nenhum Dutra que irá aboli-la, se existir verdadeira unidade operária”. Também defendendo o “Sagrado direito de greve”, outra matéria do jornal, sobre a condenação a seis meses de prisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de um trabalhador em São Paulo, diz que o direito de greve “foi confirmado pelo Tribunal de Apelação de Minas Gerais quando concedeu 'habeas corpus' preventivo a Orlando Bonfim Junior [advogado ligado ao PCB] e aos ex-dirigentes do Sindicato dos Mineiros de Lafaiete”. E “mais de cem grevistas”, em 1948, “afirmaram na prática o direito de greve, amplo e irrestrito, que consta até de documentos internacionais como a Ata de Chapultepec, que levam a assinatura do governo

51 do Brasil” .

O direito à livre associação foi usado pelo jornal como forma de legitimar a criação de associações paralelas – coisa que foi estimulada pelo partido, a partir de 1948, e que não surtira efeito positivo. Uma matéria anuncia que os trabalhadores de Juiz de Fora estavam “Libertos da tutela ministerial”, pois, “baseado nos artigos 141, § 12 e 159 da Constituição”, fundaram uma associação

52profissional .

Assim, longe de conformá-los numa posição politicamente inerte, os trabalhadores organizados tomarão a CLT como direitos a serem efetivados. No caso do direito à livre associação, presente na Constituição, sua importância é percebida no momento em que, ao colocá-la em prática, através da formação das comissões de salários, os trabalhadores são reprimidos pelos patrões, pela polícia e pelas autoridades. Neste sentido, a desqualificação das instituições pode se confundir com uma desconsideração pelos direitos e conquistas no âmbito das leis que são frutos das lutas dos próprios operários, incluindo as lideranças ligadas ao partido, e o trabalho de base feito com muita luta e muito custo.

Considerações finais

As reflexões de Gildo Brandão partem de uma crítica à teoria do populismo, que implicava, basicamente, tomar naquele cenário três atores fundamentais: o Estado, representante da classe dominante, portador dos instrumentos de repressão e propaganda e que promulgara direitos trabalhistas como forma de manter o controle político; as massas trabalhadoras, tidas como passivas e manipuladas pela política populista; e a vanguarda representada pelo PCB que, ao ter proposto uma política de frente nacional, teria “traído” a classe operária ao não lutar pelo rompimento radical com o status quo.

Há toda uma nova produção historiográfica que, a partir de renovadas influências teórico-conceituais e a partir de estudos de caso, vem escrevendo novos trabalhos sobre movimento operário e sindicalismo pela perspectiva dos

53trabalhadores . Estes, mesmo nos momentos mais difíceis – e isso nos serve hoje de inspiração –, não deixaram de se mobilizar e lutar para garantir e ampliar seus direitos.

(coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca; 1945-1964. Rio de Janeiro: APERJ/FAPERJ, 2003. Badaró Mattos faz, no primeiro capítulo, um balanço crítico da primeira coletânea. Ver também, do mesmo autor, O sindicalismo brasileiro após 1930. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. Não há espaço aqui para uma maior exposição, especialmente pelo fato de que há diferentes abordagens teóricas e problemas teórico-conceituais, especialmente uma certa redução do marxismo e da reflexão teórica, produzida por um enfoque culturalista.

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O ABC dos trabalhadores no

pós-1964: Os grupos de Teatro1 Ferramenta e Forja

2Kátia Rodrigues Paranhos

este texto, abordo o significado cultural e político de dois grupos de teatro – Ferramenta (1975-1978) e Forja (1979-1991) – constituídos por dirigentes sindicais, trabalhadores da base e por um ator e diretor de teatro. Enfatizo, como características fundamentais desses grupos, a importância do teatro para o denominado trabalho de enraizamento do sindicato no meio da classe trabalhadora e a tarefa cultural de libertação dos trabalhadores.

Cabe salientar inicialmente que, mesmo sob a ditadura militar e dentro de uma estrutura corporativa, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) (e não apenas ele) desempenhou o papel de “escola de cidadania operária” para uma parcela significativa dos trabalhadores do ABC paulista. Neste aspecto, teve atuação semelhante à do movimento operário organizado na Inglaterra durante os séculos XIX e XX, ao qual se atribui responsabilidade pela formação da cultura das classes trabalhadoras britânicas, porque “não era somente uma forma de luta, ele também representava para muitos de seus

3militantes uma forma de autodidatismo” .

Dentro do sindicato, dirigentes e intelectuais procuraram organizar atividades que tinham como objetivo formar os operários da base, assim como os próprios diretores. A participação ativa de intelectuais de esquerda, que ali estavam militando e também repensando discursos e práticas, enriqueceu – lembrando aqui a expressão de Williams – “todo um

4modo de vida” .

Em colaboração com intelectuais de uma tradição de esquerda, o que o movimento dos trabalhadores do ABC fez em relação ao sindicato e à cultura é algo digno de registro. Por isso, ao focalizar

N

1 Este trabalho conta com o apoio financeiro do CNPq.2 Professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia/UFU. É autora do livro Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982). Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória – Unicamp, 1999. ([email protected])3 HOBSBAWM, Eric J. A formação da cultura da classe operária britânica. In:

História & Luta de Classes - 39

esses homens, sujeitos sociais com práticas e experiências de vida e consciência distintas, o fator que prepondera é a disponibilidade para o exercício do pensamento. Os operários não são vistos como uma coisa. Seguindo os ensinamentos de Williams e

5Thompson , os trabalhadores não são apresentados como um grupo passivamente explorado, mas sim como um conjunto de pessoas capazes de criar sua própria tradição, apesar da modernização da mídia de massa e da incorporação à cultura massificada. A capacidade e a vontade de se formar mediante o contato com textos – dos jornais, das peças teatrais, dos livros e dos filmes – correspondiam ao desejo daquilo que desde cedo havia sido apartado dos trabalhadores: o conhecimento mais avançado como conseqüência da privação contínua desse benefício.

É importante esclarecer que as atividades de formação desenvolvidas pelos sindicalistas de São Bernardo – práticas vivenciadas por outros sindicatos e associações de trabalhadores em diferentes lugares no Brasil durante o século XX e noutros países desde o final do século XIX – incluíam iniciativas nos campos da comunicação, da educação e da cultura.

A respeito delas, importa destacar três questões. Primeiro, a emergência do chamado “novo sindicalismo” no ABC deve ser entendida como um entrecruzamento da política e da cultura nos anos 70 e 80. Depois, o sindicalismo do ABC não pode ser concebido como uma construção apenas dos sindicalistas, mas sim como uma operação que abrange práticas e representações de múltiplos personagens, como sindicalistas, jornalistas, advogados, militantes de diferentes organizações revolucionárias – incluindo o Partido Comunista Brasileiro (PCB) –, ex-presos políticos e artistas. Por

Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 270.4 WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Editora Nacional, 1969.5 WILLIAMS, R., op. cit., e THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3 v.

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6 Ver SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 e ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.7 Ver GARCIA, Silvana. Teatro da militância: a intenção do popular no engajamento político. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 126.8 O personagem João Ferrador representa um trabalhador de boné, escrevendo

40 - O ABC dos trabalhadores no pós-1964: Os grupos de Teatro Ferramenta e Forja

fim, no caso da literatura acadêmica sobre o movimento operário no ABC no pós-64, autores

6como Eder Sader (1988) e Ricardo Antunes (1992) , entre outros, focalizaram o “novo sindicalismo” como um movimento eminentemente político, ou seja, dentro do marco da luta política que incluía denúncia do arrocho salarial, mudanças na estrutura sindical e contrato coletivo de trabalho, melhores condições de vida e direito de greve, ao mesmo tempo em que excluía a cultura como peça também fundamental nesse jogo.

Pensando no campo da cul tura , particularmente no teatro no Brasil do pós-64, interessa salientar que, enquanto a maioria dos artistas estava profissionalmente vinculada à industria cultural, outros buscavam provisoriamente o exílio e alguns ainda tentavam uma resistência à modernização conservadora da sociedade, inclusive ao avanço da indústria cultural. Estes procuravam se articular aos chamados novos movimentos sociais que aos poucos iam se organizando, apesar da repressão, especialmente em alguns sindicatos e em comunidades de bairro, muitas vezes em atividades associadas a setores de esquerda da Igreja Católica. Em Santo André, por exemplo, foi fundado em 1968 o Grupo de Teatro da Cidade (GTC), que, junto a vários outros grupos teatrais montados na periferia paulistana – citam-se o Núcleo Expressão de Osasco, o Teatro-Circo Alegria dos Pobres, o Núcleo Independente, o Teatro União e Olho Vivo, o Grupo Ferramenta de Teatro e o Grupo de Teatro Forja –,

7constituiu o “teatro da militância” .

O teatro operário

Desde 1971, os dirigentes sindicais reservavam espaço no jornal da entidade para noticiar

oas atividades culturais. Na edição n 1 da Tribuna Metalúrgica (TM), que circulou em julho os assuntos estavam dispostos em colunas relativas aos problemas econômicos, políticos, sociais e culturais. O nome da primeira coluna cultural era Recreação e Esporte. A tônica era o futebol, com destaque para a fundação do Grêmio Esportivo Metalúrgico e para os piqueniques. Em março de 1972, estrearam a seção Bilhete do João Ferrador e a coluna Recreação,

8Cultura e Esporte , que, além de futebol e passeios, enfatizava fatos históricos, procurando explicá-los para os trabalhadores metalúrgicos.

Em 1975, a TM veiculava o artigo O teatro está perto de você, sobre o Grupo Ferramenta de Teatro, ligado à escola de madureza do sindicato, o Centro Educacional Tiradentes (CET), então coordenado pelo professor de Física, José Roberto Michelazzo, recém-saído da prisão – estava detido por conta de suas ligações com a Ala Vermelha. Cabe mencionar que era significativo o número de professores do CET vinculados a organizações clandestinas de esquerda, como Ação Popular (AP), Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), Ala Vermelha e a dissidência do PC do B.

Os alunos-operários do Centro reclamavam por uma atividade que estimulasse ainda mais a leitura de textos e livros. As atuações do Ferramenta deram resposta a esta reivindicação. O grupo se apresentou pela primeira vez em 9 de abril de 1975 no sindicato, como noticiado na TM, e em seguida, no dia 20 do mesmo mês e no mesmo lugar, participou da festa de posse da nova diretoria eleita para o triênio 75/78, quando foram realizadas diversas atividades, dentre elas um baile e show musical. E mais, encenou duas comédias escritas por Martins Pena em 1845, O caixeiro da taverna e Quem casa quer casa. A edição do jornal TM ressalta que a representação foi feita pelo grupo “formado e mantido pelo sindicato, como parte das suas atividades culturais e constituído por

9associados da entidade” .

Entre os anos de 1975 e 1978, o grupo apresentou textos teatrais de Martins Pena, Augusto Boal, Osvaldo Dragún e Ariano Suassuna. Os alunos metalúrgicos do CET – afinal, a iniciativa do grupo de teatro veio de dentro da escola –, ajudados por José Roberto Michelazzo, leram e representaram, como escreve Bertolt Brecht, em um de seus poemas,

10“passado e presente em um” . Ao iniciarem as leituras em voz alta dos textos teatrais dos séculos XIX e XX, estes leitores teatreiros do CET compuseram e recompuseram diferentes universos de acordo com as suas intenções e seus desejos. Deram, ao “passado e presente em um” de Brecht, o sinônimo de aliar a leitura (com significados novos) de textos, recheados de crítica social em um determinado contexto, à representação operária de um grupo de metalúrgicos em São Bernardo do Campo. E mais: ao apresentarem as peças, instigavam à incorporação de novos significados, à medida que a platéia operária colocava as mensagens recebidas sob a interpretação da experiência vivida ou reelaborava coletivamente as representações.

um bilhete. Outros serão criados no decorrer dos anos, como o Repórter Metalúrgico e o Sombra. Ver TM, no 1, 1971. p. 7, e no 8, 1972. p. 4-5.

o9 TM, n 28, 1975. p. 5. 10 BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. 5. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000. p.

233.

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11 Depoimento concedido à autora em 2001. No final da década de 1970, Expedito Soares trabalhava como controlador de qualidade junto à linha de montagem na fábrica da Arteb.12 BATISTA, Expedito S. Eles crescem e eu não vejo. 1977 (texto

História & Luta de Classes - 41

As questões políticas e estéticas contidas nas peças eram atualizadas pelo debate entre o grupo de teatro e a platéia no Brasil dos anos 70. Os temas abordados – teóricos e ideológicos – eram, entre outros: a estrutura moral e econômica da sociedade, os embates pelo poder e pelo capital, as pequenas negociatas, a exploração do operário, o caráter do processo da revolução, os aspectos do subdesenvolvimento, o ideal de justiça e liberdade.

Em 1977, o Grupo Ferramenta de Teatro oapresentou o Jogral 1 de Maio, com repertório que

incluía trechos da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, e a Canção do subdesenvolvido, de Chico de Assis e Carlos Lyra, e exibiu também a peça de Ariano Suassuna, O auto da compadecida. Relata o ex-aluno do CET e ex-integrante do Ferramenta, Expedito Soares Batista: “naquele ano eu resolvi escrever uma peça que tratasse dos nossos problemas. Por que não? Resolvi me afastar do grupo e me dedicar apenas a escrever o texto. Ninguém

11acreditou que fosse dar certo” .

12A peça teatral Eles crescem e eu não vejo tem como mote o retrato da vida cotidiana dos operários. O texto possibilita uma mediação, um canal de acesso, principalmente com o “clima” do dia-a-dia na fábrica e mesmo fora dela. O título foi inspirado na campanha contra a hora-extra promovida pelo sindicato. Enquanto isso, o sindicato promovia

oum debate operário sobre horas-extras (Cf. TM, n 40, 1977), procurando, portanto, construir diferentes canais de mediação com os metalúrgicos.

A imagem que Batista apresenta sobre a vida cotidiana dos operários é a de uma situação imutável. De madrugada até a noite, do início da peça ao seu final, “nada” acontece. Os seus companheiros de trabalho se limitam a reproduzir as suas relações de produção monotonamente, sem aparentar nenhuma esperança. Eles parecem conformados com o seu destino. Os operários estão aniquilados pelas horas-extras de trabalho, pela disciplina fabril, e “nada” fazem para tentar mudar o curso dos acontecimentos.

Aluno do CET em 1977, Batista, que freqüentava os cursos de cinema ministrados por Renato Tapajós no departamento cultural do sindicato e assistia às apresentações de peças em São Paulo, escreveu sobre o que falava mais de perto a sua sensibilidade, ou seja, precisamente sobre aquilo que estava impregnado de experiência vivida. Ao cruzar

essa experiência (o cotidiano fabril e doméstico) com as novas experiências na escola e no teatro, ele não era um “receptor passivo”. Era, antes, lembrando aqui a

13idéia de Davis ,“usuário” e “intérprete ativo” dos textos impressos que lia e ouvia e aos quais também ajudava “a dar forma”. Ao produzir um texto próprio, na expectativa de falar do seu universo, Batista expressava, no plano artístico, a visão dele e de um grupo de sindicalistas de São Bernardo que pregava contra a hora-extra.

Nesta perspectiva de análise, o fato de o CET ser mais do que uma escola de madureza tradicional e de abrigar um grupo de teatro colaborou para a instituição de um campo de circulação de experiências e trocas entre alunos e professores – vários incentivavam a politização e a formação daqueles para os quais dirigiam suas aulas. E este complexo processo de ensino-aprendizagem se ampliava e se fortalecia com as discussões e os debates promovidos após as apresentações do Ferramenta. A platéia subia ao palco e os seus componentes, ultrapassando os limites de meros espectadores reflexivos, passavam a integrar o elenco e construíram novas cenas, com diferentes discursos que realizavam a intertextualidade do já dramatizado. Aí então se expressava também o aprendizado do madureza.

Muitos dos textos e das atividades desenvolvidas no CET tinham um caráter de intervenção social. A peça de Batista – um esforço de fabricação da escritura –, ao relatar o cotidiano doméstico, no qual não era possível acompanhar o crescimento dos filhos, e o cotidiano da disciplina fabril, unia as vivências pessoais do autor às da platéia operária, movimentando-as. A produção do texto, ao deixar de apontar para um final fechado, permitia que o público “escrevesse” diferentes finais. Exatamente porque assistir significava articular, estabelecia-se um processo de interação dialética que implicava uma atividade mental à medida que envolvia o desenvolvimento da capacidade de organização das sensações.

O encerramento das atividades do CET, que incluíam o curso de madureza, o supletivo e o Grupo Ferramenta de Teatro, aconteceu num período de mudança na situação política e sindical no país. No final da década de 70, com a progressiva “abertura democrática”, a organização do movimento de trabalhadores passou a enfatizar a criação das

datilografado).13 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 184.

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14 URBINATTI, Tin. Pensão Liberdade: uma criação coletiva. In: GRUPO DE TEATRO FORJA DO SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO BERNARDO DO CAMPO E DIADEMA. Pensão Liberdade. São Paulo: Hucitec, 1981. p. 9.15 URBINATTI, T., op. cit. p. 10. 16 URBINATTI, T., op. cit. p. 10.

comissões de fábrica, os cursos de formação, a profissionalização de mais diretores, a expansão dos meios de comunicação e a manutenção das atividades culturais. A escola tinha esgotado sua importância de meio auxiliar do movimento, mas a classe operária insistiu em resgatar pelo menos parte dela: a atividade artístico-cultural:

Maio de 1979, um grupo de operários e filhas de operários metalúrgicos reunia-se na sede do sindicato, que há menos de dez dias estava sob intervenção. O grupo pretendia realizar um trabalho cultural a partir do sindicato, que além de ser uma opção de lazer, pudesse também contribuir no crescimento e avanço da consciência da classe operária. O teatro era arma. Formou-se assim o Grupo de Teatro Forja do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Mas não era a primeira vez que esses operários se reuniram para falar de teatro. Alguns já haviam participado do extinto Grupo

14Ferramenta também do sindicato” .

Já em fins de 1978, na preparação da campanha salarial para 1979, esse grupo de trabalhadores metalúrgicos havia se organizado para montar uma peça que pudesse ajudá-los no esclarecimento e na mobilização da categoria em torno do contrato coletivo de trabalho, que era o eixo principal da campanha. Baseado em entrevistas, o coordenador-geral Tin Urbinatti, vindo do Grupo de Teatro das Ciências Sociais da USP, escreveu um “esquete curto e grosso: O contrato, que em menos de um mês eles montaram e apresentaram no sindicato e

15nos bairros” .

Depois da greve e da intervenção, o Grupo Forja estava criado e tinha definido alguns de seus objetivos: “atuar no sindicato, nos bairros e favelas onde moram os metalúrgicos; montar peças mais elaboradas artisticamente e peças mais simples (esquetes) para auxiliar mais diretamente nas

16campanhas deflagradas pelo sindicato” .

No dia 7 de março de 1980, o informativo Suplemento lançava o personagem Sombra, que denunciava as irregularidades nas fábricas. As notícias da Ford, da Brastemp e da Volks dividiam espaço com as do Fundo de Greve – a exemplo deste chamado: “Baile para ajudar o Fundo de Greve da categoria. Compareça” – e as do teatro – “Pensão Liberdade é o nome da peça que o Grupo Forja,

formado por trabalhadores, irá apresentar domingo dia 9 às 20 horas, no auditório do sindicato.

17Compareça e traga a sua família” .

No dia seguinte à estréia, apareceu uma pessoa procurando o departamento cultural do sindicato e se identificou ao diretor como agente da Polícia Federal. Solicitava que fossem encaminhadas três cópias do texto Pensão Liberdade (escrito pelos atores-operários) àquela repartição. Aliás, é importante registrar que a peça mostra como o operário vê os seus problemas, as lutas, o seu trabalho. Narra o que é a vida do operário no dia-a-dia em uma pensão. Mostra a luta na fábrica, o desemprego, o escritório, o movimento estudantil, o sindicato, a assembléia, a greve e o piquete.

Em 1981, foram apresentados dois trabalhos: Operário em construção, baseado em poesias de Vladimir Maiakóvisky, Vinícius de Morais e Tiago de Melo, e uma peça de teatro de rua, A greve de 80 e o julgamento popular da Lei de Segurança Nacional (Suplemento, 22 jan. 1981). Essas peças eram encenadas nas ruas, nas praças, na Vila Euclides

o(Estádio 1 de Maio), ou seja, nos locais onde a diretoria cassada em 1980 – o sindicato estava sob nova intervenção federal – realizava as assembléias da campanha salarial de 1981. Sem a sua casa, sua oficina de trabalho, representada aqui pelo sindicato, os operários utilizavam o espaço do Fundo de Greve.

Com as duas peças, “o Forja cumpria seus objetivos: 1. fazer um teatro que fosse uma opção cultural, de lazer para os trabalhadores e 2. cumprir a função social do teatro de fornecer subsídios para a

18reflexão da própria vida e realidade” .

O ano de 1982 começou com o anúncio, no Suplemento, de um grande show baile com Gonzaguinha no conjunto Vera Cruz. Ainda no mês

ade janeiro, ocorreram a 1 Feira de Cultura Operária Popular e o baile de verão no sindicato ( Cf. Suplemento, 17 mar. 1982). Simultaneamente, estava sendo agilizada a campanha salarial de 1982, e o jornal mais uma vez serviu para mobilizar os trabalhadores; na edição de 3 de fevereiro daquele ano, publicava: “O Grupo Forja convida os companheiros que saibam tocar instrumento de acompanhamento de samba (batuque) para acompanhar o Grupo durante as assembléias da C. Salarial” (Suplemento, 3 fev. 1982). O robô que virou

o17 Suplemento Informativo da Tribuna Metalúrgica, 7 mar. 1980 e TM, n 56, 1980. p. 8.18 URBINATTI, Tin. Pesadelo: um processo de dramaturgia. In: GRUPO DE TEATRO FORJA DO SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO BERNARDO DO CAMPO E DIADEMA. Pesadelo. São Paulo: Hucitec, 1982. p. 15-16.

42 - O ABC dos trabalhadores no pós-1964: Os grupos de Teatro Ferramenta e Forja

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19 URBINATTI, Tin. Pesadelo: um processo de dramaturgia, op. cit. p. 78. 20 Ver O robô que virou peão. In: GRUPO DE TEATRO FORJA DO SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO BERNARDO DO CAMPO E DIADEMA. Pesadelo, op. cit. p. 77-81.

História & Luta de Classes - 43

peão foi a peça de teatro de rua que auxiliou a diretoria do sindicato nas assemb1éias da campanha – um teatro sem texto, sem palavra alguma, apenas à base de mímica e gestos.

O Grupo Forja materializou, nesse trabalho, alguns personagens como João Ferrador, o Patronildo e o Sombra, que até então eram apenas estampados nos jornais e boletins do sindicato ou nas camisetas do Fundo de Greve. Desse modo, “o trabalhador via na sua frente o João Ferrador, o Sombra, ou o Patronildo, os quais vinham cumprimentá-lo. Personagens que até então eram apenas imagens que estavam em seu pensamento, em

19sua memória, na sua cultura de peão do ABC” . Ao discutir a robotização nas fábricas, o Forja apresentava, nas cenas finais, os operários e o robô mandando o patrão para o “olho da rua”; inclusive, no início da peça, os operários levavam o “novo companheiro” para uma pescaria, colocando um

20enorme coração no peito do robô .

Também no ano de 1982 a trupe era encontrada agitando os trabalhadores com outro texto teatral (Cf. Suplemento, nº 442, out. 1982), intitulado Pesadelo, que estreou no dia 16 de outubro. Escrita e dirigida pelos operários, a peça examina o problema do desemprego em plena recessão da década de 1980.

Vale realçar que as duas peças, Pensão Liberdade e Pesadelo, focalizam, entre outros assuntos, a luta na fábrica e fora dela, o desemprego, o sindicato, a greve, o piquete, a figura do fura-greve, o arrocho salarial, a autonomia e liberdade sindical, as comissões de empresas, os delegados sindicais e o contrato coletivo de trabalho, enfim, múltiplos pontos de vista sobre realidade(s) dos trabalhadores e várias

21identidades em cena .

Merece ser frisado que o Grupo de Teatro Forja, representando a categoria metalúrgica de São Bernardo e Diadema, participou do II Festival de Teatro Amador do ABC, promovido pela Prefeitura de Santo André em outubro de 1982. Pesadelo obteve a maioria dos prêmios. Recebeu troféus por melhor espetáculo, melhor cenário, melhor ator coadjuvante e melhor atriz coadjuvante, além de medalhas de menção honrosa para Jonas Francisco dos Santos e José Carlos Barbosa (pelo trabalho de ator), para Tin Urbinatti (direção) e para os figurinos. O Suplemento fez questão de destacar que os troféus e as medalhas estavam em exposição no sindicato: “Com esse feito do Forja, a categoria metalúrgica de São Bernardo e

Diadema dá demonstração de que é capaz de produzir não só dentro da fábrica, mas também de fazer a sua cultura. A cultura do trabalhador, feita por

22ele mesmo.”

A peça Pesadelo ficou em cartaz no sindicato até dezembro daquele ano e foi retomada em janeiro de 1983, encerrando o ciclo de apresentações no mês seguinte. Assim, entre os anos de 1983 e 1984, os líderes sindicais de São Bernardo continuaram apostando todas as suas fichas nas atividades culturais, especialmente no grupo de teatro. Durante a campanha salarial de 1983, por exemplo, na tentativa de mobilizar ainda mais a categoria, o sindicato promoveu, em uma assembléia da Vila Euclides, apresentação do Forja com a peça Brasil S.A. – uma sátira do acordo com o FMI e do “gordo” (Delfim Neto) e seus “capangas” (Cf. Suplemento, nº 513, mar. 1983).

Já em 1984, o Forja exibiu duas peças de palco: Operário em construção e Pesadelo – esta no Teatro Elis Regina em São Bernardo (Cf. Suplemento,

on 669, maio 1984). As duas peças de rua Diretas volver e CIPA focalizavam temas candentes para a campanha salarial e para o próprio sindicalismo: a importância das CIPAs e das eleições diretas para presidente da república. Seguindo uma perspectiva adotada desde a criação do grupo, aliava-se à produção de esquetes mais simples, visando à campanha, a elaboração de peças artísticamente voltadas para um universo mais rico culturalmente.

No decorrer de 1985, além das múltiplas atividades culturais propostas pelo sindicato (festas, bailes, shows, ciclo de cinema e ciclo de debates), o grupo continuou apresentando O operário em construção e as peças Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, e Boi constituinte esta composta de duas danças populares brasileiras, o Boi-bumbá e a Congada Focando como tema a Constituinte, o espetáculo evidencia, por meio da evolução de suas personagens, os interesses dos trabalhadores e dos patrões na luta do dia-a-dia.

Entre 1986 e 1987, o Forja prosseguiu atuando no sindicato e em outros espaços. Nos dias 4 e 5 de abril de 1987, marcando os oito anos de atividades do grupo, foi encenada A revolução dos beatos, escrita por Dias Gomes e ambientada na década de 1920 na cidade de Juazeiro no Ceará. Trata dos milagres do Padre Cícero e interpreta como essa crença do povo no “padrim” foi utilizada para eleger

.

21 Ver PARANHOS, Kátia R. O teatro operário entra em cena: duas versões do mundo do trabalho. ArtCultura, Uberlândia, Edufu, v. 4, n. 4, 2002. p. 67-79.

o22 Suplemento Informativo da Tribuna Metalúrgica, n 450, nov. 1982. p. 1.

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políticos da época.

A partir de 1988, uma intensa programação de peças de outros teatreiros da região movimentou o já agitado cosmo de trabalho e luta operária no ABC. Ao mesmo tempo em que o departamento cultural incentivava a formação de um novo grupo de teatro do sindicato – com a dissolução do Forja, por conta das divergências entre os trabalhadores e os dirigentes – abria-se espaço para grupos como Um Certo Quadro

23Negro, Renascença, Oikosergon e Calango . Neste contexto, importa recordar o discurso das lideranças sindicais de São Bernardo:

O trabalhador, no seu cotidiano, escreve poesias, faz música, pinta, faz escultura, enfim, produz arte. Temos que captar isto como forma de resistir ao que é imposto pelos meios de comunicação burgueses. (...) É preciso priorizar a questão cultural como formadora de consciência política e que possibilite ao trabalhador entender o seu papel no processo de

24transformação .

Com um público médio de 150 pessoas nas apresentações teatrais, o departamento cultural investiu na capacidade dos trabalhadores de desenvolver arte dramática e buscou assegurar o acesso deles às manifestações culturais, bem como criar espaço para montagem e exibição.

O Forja – assim como o Ferramenta – acabou produzindo um universo de linguagens, representações, imagens, idéias e noções que eram assimiladas tanto pelas lideranças sindicais como pelos trabalhadores da base. Sem dúvida, o teatro operário impulsionou, de forma decisiva, o movimento dos trabalhadores metalúrgicos em São Bernardo em direção a uma experiência cultural significativa para o sindicalismo brasileiro. Como lembra Octavio Ianni, “a emancipação da classe operária, em termos sociais, econômicos e políticos,

25compreende também a sua emancipação cultural” .

A tentativa de manter um grupo de teatro vinculado ao sindicato não foi uma tarefa fácil. Criar as chamadas condições concretas esbarrava numa série de entraves, tais como a falta de hábito de leitura, problemas de ordem pessoal, membros do grupo que apareciam nos ensaios e/ou reuniões de ressaca, mal-dormidos ou mesmo alcoolizados, falta de disciplina, autoritarismo dos dirigentes sindicais (e mesmo do coordenador Tin Urbinatti), sem falar da dificuldade em formar platéia.

É possível afirmar que o que unia e fortalecia tanto o Ferramenta como o Forja era a presença constante de coordenadores profundamente identificados (por diferentes laços) com a questão da cultura. No caso, José Roberto Michelazzo e Tin Urbinatti levaram adiante, aos trancos e barrancos, a idéia de socializar textos teatrais entre os operários do ABC. Se o Ferramenta estava muito ligado à escola do sindicato e à montagem de peças de autores respeitáveis, por outro lado, o Forja se distinguia especialmente pela criação coletiva de textos, por atuar nas campanhas salariais (nas portas de fábricas, nas assembléias e nos bairros) e na assessoria a grupos locais, não deixando de lado a montagem de peças que interessavam diretamente ao grupo, como por exemplo, Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, e de A revolução dos beatos, de Dias Gomes. Para o Forja, era fundamental associar a escritura de textos, como uma forma de intervenção social e ficcional, ao chamado trabalho cultural de libertação dos trabalhadores. Tendo como marca registrada o entrecruzamento entre o sindicato, a militância e o universo cultural, o Forja apostou na criação e na invenção teatral.

Para Tin Urbinatti,

O objetivo era realizar um trabalho de formação, (...) de gente que conhecesse um mínimo de estética, um mínimo de dramaturgia para poder, sim, aí sim, fazer um trabalho revolucionário. De criar no meio operário, de criar nas comunidades. Desenvolver um trabalho cultural teatral artístico. O Forja contribuiu para o avanço da consciência, não só para o grupo e para as pessoas que usufruíam desse trabalho produzido mas, sobretudo, na relação dinâmica que foi de diretores recém-saídos da fábrica que nunca tiveram acesso a uma discussão temática sobre cultura, teatro e de repente tiveram que se deparar com coisas assim. Desde romper com aquele preconceito de que o teatro é uma coisa de veado, teatro é uma coisa para puta ... até encarar que o teatro pode ser feito e utilizado como auxiliar do processo revolucionário, no processo de consciência. (...) A semente plantada pelo Forja na cabeça de vários metalúrgicos, peões, diretores e peões escritores-poetas é responsável pelo grande crescimento que teve em termos humanos da diretoria do sindicato, dos caras do grupo, da categoria em si. (...)

26Quem viu, eu acho que se transformou muito .

Arte engajada

23 Ver TM entre os anos de 1988 e 1991.o24 Resoluções do 6 Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema,

São Bernardo do Campo, 1991. p. 22.

25 IANNI, Octavio. Teatro operário. In: Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p.138.26 Depoimento concedido à autora em 31-01-2001.

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27 PEIXOTO, Fernando. Quando o povo assiste e faz teatro. In: GRUPO DE TEATRO FORJA DO SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO BERNARDO DO CAMPO E DIADEMA. Pensão Liberdade, op. cit., 1981. p. 32-33.28 URBINATTI, Tin. Aos companheiros do Grupo de Teatro Forja. 19 mar. 1983. p. 3-4. (Texto datilografado)

História & Luta de Classes - 45

Fernando Peixoto, no texto Quando o povo assiste e faz teatro – a propósito da peça Pensão Liberdade encenada pelo Forja – salienta a importância do teatro popular como uma questão política, identificando o movimento teatral como “uma estética do oprimido, que exprime a ideologia da libertação”. E ele acrescenta:

Existe uma arte revolucionária, que não deixa de ser arte por assumir a tarefa prioritária de transformar a sociedade. Que, enquanto arte, sabe que sua eficácia política está na razão direta de sua riqueza artística. [...] Teatro popular é uma questão política: não pode ser compreendido fora da batalha pela democracia e

27pelo socialismo .

É de primordial importância considerar a riqueza dessa experiência por aqueles que lutaram por uma “arte operária”. Nesse sentido, em 1983, a propósito de um balanço coletivo, Tin Urbinatti enfatizava, entre outras coisas, “o trabalho incessante”:

O sacrifício, entenda-se problemas com a família, pelo tempo dedicado ao Grupo. Sem medo de errar afirmo que o Forja se constitui numa organização teatral singular no Brasil de hoje, isto é, o Forja é uma amostra do que a classe operária do Brasil é capaz de fazer. Criar. Com a experiência do Forja, posso dizer que estão sendo plantadas as condições de arte popular autêntica e revolucionária. De repente as pessoas começam a ver que os operários são capazes de fazer um teatro de bom nível. Operários que fazem arte e de que nível! (...) Como eu disse, o operário fazer arte espanta e

28encanta .

Para os atores operários:

Para se ter claro se é válido o trabalho que o Forja vem desenvolvendo, acho que é preciso analisar de várias formas esse trabalho. Por exemplo, o que acontece com as pessoas que dele participa. É talvez uma das coisas mais espantosas que já vi. O crescimento do entendimento das pessoas sobre a sua realidade. O desenvolvimento de capacidades artísticas que de outra forma passariam desapercebidas. O companheirismo do dia-a-dia, as discussões, o fazer junto coisas práticas, estudos, o lazer, enfim tudo que vai fazendo tomar forma a consciência de ser um trabalhador do lado dos trabalhadores, um artista em ... prol de uma arte conseqüente. (...) Na prática os objetivos que

tínhamos desde o começo, acompanhar as campanhas salariais com um esquete, de assessorar outros grupos que tivessem necessidade, de fazermos trabalhos mais bem elaborados, peças de palco, de colaborarmos o máximo possível na formação de consciências política e culturalmente voltadas para o trabalhador, enfim, essas coisas e outras, relacionadas com a luta pela liberdade, nós temos conseguido em certa medida. Porque o retorno dos resultados desse trabalho em geral é melhor do que esperávamos. Mas temos a consciência que é ainda pouco. É preciso mais gente fazendo isso. É preciso ainda, que mais pessoas tenham claro a importância de todas as

29manifestações culturais .

Vi com meus próprios olhos no término das cenas dezenas de amigos meus sensibilizados pelas emoções. Fiquei contente e emocionado também. No dia seguinte lá na fábrica, aí é que eu senti como o teatro muda a cabeça dos seres humanos. O pessoal não discutia, como normalmente faz, sobre o futebol, churrascada ou Sílvio Santos. Mas sim sobre os personagens

30da peça Pesadelo .

Arte e política se misturam e se contaminam, negociando continuamente a resistência e a gestão daquilo que é em relação ao que pode vir a ser, pondo em tensão o que está dentro e o que está “fora” do sistema instituído. A proposta de arte operária — encampada por muitos grupos teatrais que atuavam na periferia — ligava dois pólos: política e estética. Os trabalhadores chamavam a atenção para um outro tipo de teatro, que buscava, dentre outras coisas, o engajamento social aliado ao universo lúdico.

Na década de 1980 os metalúrgicos de São Bernardo leram e representaram de acordo com seu repertório sociocultural. Esse processo complexo se ampliava e se fortalecia com as discussões e os debates promovidos após as apresentações do Forja em seu sindicato, noutros sindicatos e em diferentes bairros no ABC. Era uma oportunidade a mais para trocar idéias sobre os textos encenados. Como já mencionado anteriormente a platéia subia no palco e se misturava com o elenco. Por sinal, ao se referir aos diferentes gêneros literários, Benoît Denis salienta que o teatro é um “lugar” importante do engajamento; é exatamente aquele que propicia as formas mais diretas que “se estabelecem como num tempo real, num tipo de imediatidade de troca, um pouco ao modo pelo qual um orador galvaniza a sua audiência

29 MORAES, Sonia. Avaliação do trabalho do Grupo de Teatro Forja. 24 jun. 1983. (Texto datilografado)30 SILVA, Darcy L. da. Avaliação do trabalho do Grupo de Teatro Forja. 24 jun. 1983. (Texto datilografado)31 DENIS, B. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru: Edusc, 2002. p. 83.

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31ou a engaja na causa que defende” .

Os atores-operários de São Bernardo, por meio das peças teatrais, fundiam diferentes expressões, imagens, metáforas, alegorias e outros elementos que, em conjunto, compunham um cenário significativo de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Esse resultado reitera a noção de que as formas e produções culturais criam-se e recriam-se na trama das relações sociais, da produção e reprodução de toda a sociedade e de suas partes constitutivas:

O trabalho do grupo tem contribuído muito para o avanço da categoria. Em primeiro lugar, porque a cultura aproxima e identifica as pessoas. Nós temos comprovado isto porque o trabalho do grupo tem trazido à tona a capacidade criativa do trabalhador. Criatividade esta que tem sido sufocada pelos meios de comunicação de massa. De repente o trabalhador começa a questionar e percebe que mesmo na sua luta do dia-a-dia, no seu trabalho ele tem que usar sua imaginação, sua capacidade criativa. Como resultado concreto do valor do trabalho do grupo, tem sido as discussões com os

32companheiros dentro da fábrica .

Como afirmou certa vez Eric Hobsbawm noutro contexto:

Apesar (...) de nossas gerações terem sofrido do capitalismo uma lavagem cerebral para acreditar que a vida é o que o dinheiro pode comprar (...). Há mesmo mais do que o desespero quanto a uma sociedade incapaz de dar a seus membros o que eles precisam, uma sociedade que força cada indivíduo ou cada grupo a cuidar de si próprio e não se importar com o resto. Já foi dito: “Dentro de cada trabalhador existe um ser humano

33tentando se libertar” .

Em um texto escrito em 1984, Tin Urbinatti procurava refletir e enumerar, ao mesmo tempo, as diversas contribuições do “trabalho cultural” do Forja. Antes de mais nada, se louvava “a percepção” da liderança sindical da necessidade de atuação no campo da cultura. A seguir enfatizava a relevância do

Simples fato de oferecer uma opção de lazer à categoria metalúrgica do ABC paulista, cujo hábito, nesse sentido, limita-se no mais das vezes a assistir televisão. (...) quando o operário metalúrgico sai da sua casa (sai da frente da televisão) e vai ao sindicato assistir uma peça do

Forja, seguramente o assunto da segunda-feira será outro. Tivemos inúmeras comprovações disso, através de relatos dos companheiros do próprio Grupo, de diretores do sindicato e também dos membros das Comissões da

34Fábrica .

Outro aspecto citado:

Apreende-se neste processo que o trabalhador pode desalienar-se em outras dimensões da vida. Ou seja, descobre-se que o operário pode vir a ser dono de sua criação, do produto do seu trabalho, não só no teatro, mas também na fábrica. Por si só esta já é uma tarefa importante, ou seja, o sindicato propiciar espaço para que os trabalhadores criem intelectualmente e para que eles se manifestem. Mas o processo é dinâmico e vai mais além, isto é, um grupo de teatro no sindicato pode atrair trabalhadores que não são mobilizados pela luta sindical propriamente dita. (...) No Forja (...) temos companheiros que nem sabiam onde era o sindicato, muito menos o seu significado. Hoje a maioria destes companheiros atua como militante sindical quer dentro da

35fábrica ou no próprio sindicato .

Enfim, há que se destacar, no caso do Grupo Forja,

Que ao criar coletivamente suas próprias peças teatrais, na realidade está se desenvolvendo uma tarefa cultural de grande importância na luta de libertação do nosso povo. Pois, com este trabalho afirma-se uma cultura, desenvolve-se uma estética, um gosto, uma forma e um jeito próprio de ser que é o de nosso povo. É um contra-ataque no plano ideológico tímido ainda, se tomarmos como parâmetro o estrago que a televisão tem realizado contra os trabalhadores. Mas o fundamental para o sindicalismo realmente comprometido com os interesses dos trabalhadores é criar condições concretas para o desenvolvimento do trabalho cultural nos

36sindicato .

Para as lideranças sindicais de São Bernardo, o empenho em desenvolver atividades culturais requeria objetivos pontuais, como “desenvolver o ser humano no seu todo, proporcionar momentos de lazer, desenvolver o intelecto, fortalecer

37a luta” . Entretanto, é preciso não esquecer que as relações entre os trabalhadores da base, os coordenadores e os diretores sindicais estavam marcadas tanto pela criatividade e liberdade como

32 ELEUTÉRIO, Sergio. Avaliação do trabalho do Grupo de Teatro Forja. 24 jun. 1983. (Texto datilografado)33 HOBSBAWM, E. J. A década de 70: sindicalismo sem sindicalistas? In: Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária, op. cit. p. 388.34 URBINATTI, Tin. Grupo de Teatro Forja: cultura e sindicalismo. 05 de abr.

1984. p. 1-5. (Texto datilografado).35 URBINATTI, Tin. Grupo de Teatro Forja: cultura e sindicalismo, op. cit.36 Idem, ibidem.

o37 1 Congresso dos Metalúrgicos do ABC. Resoluções, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 1993. p. 25.

46 - O ABC dos trabalhadores no pós-1964: Os grupos de Teatro Ferramenta e Forja

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pela tensão e pela fogueira de vaidades. Não só no teatro, mas também nas outras experiências culturais, a exemplo da TV dos Trabalhadores (TVT), a circulação dessas iniciativas propiciaram a formação de uma importante liderança no meio operário e político (para citar alguns: Luis Inácio da Silva (o Lula), Djalma Bom, Jair Meneguelli e Vicente Paulo da Silva). Essas relações evidenciam também outra questão candente para o “novo sindicalismo”: a instrumentalização da cultura pelo sindicato e posteriormente pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Todas as informações aqui reunidas compõem uma parte importante da história social e cultural dos atores-operários do ABC, um “acervo

38fundamental” nas palavras de Ianni . Mas a história continua a ser contada, em outros contextos, por outras personagens. Em abril de 2000, uma matéria na Folha de S. Paulo, com o título “MST apresenta peça em assentamento”, colocou em evidência o Grupo Teatral Vida em Arte, criado em 1998 no assentamento de Rondinha, e o espetáculo Retorno à terra. De acordo com os coordenadores do grupo, “o objetivo é utilizar o teatro como instrumento de

39reflexão e conscientização da sociedade” . A peça foi encenada por 16 agricultores que trocaram a lavoura pelo palco, repetindo o movimento dos metalúrgicos que nos anos 70 deixavam as fábricas e iam falar de trabalho, política e sociedade em outros palcos do ABC paulista.

38 IANNI, O., op. cit. p. 139.39 Folha de S. Paulo, sexta-feira, 28 abr. 2000. p. 9.

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Das lutas operárias às reformas

reacionárias: uma proposta de periodização para a história do Partido dos Trabalhadores

1Felipe Demier

partir da vitória eleitoral de Lula em 2002, observamos o surgimento de uma série de publicações que enfocam a trajetória do atual Presidente da República e de seu partido político, o Partido dos Trabalhadores (PT). Algumas dessas publicações não se encontram no campo da literatura de esquerda, encerrando um caráter meramente

2jornalístico . Outras, lançadas sob a empolgação dos momentos que rodearam o fim da era FHC, são dotadas de uma conotação apologética no que diz respeito ao percurso e trajetória de seus protagonistas. Os diferentes momentos vividos por Lula e o Partido dos Trabalhadores, de São Bernardo até Brasília – o que inclui as alterações programáticas de ambos –, são vistos como degraus que foram galgados, opções que foram acertadamente tomadas e que acabaram por possibilitar o triunfo final, a vitória nas urnas em 2002. Tal tipo de abordagem enfoca o complexo processo de desenvolvimento do PT de uma forma teleológica, tomando o sentido da “evolução” partidária realizada como natural e inquestionavelmente positivo. Sob essa ótica, o PT das greves e das lutas é visto como um adolescente rebelde e contestatório que inevitavelmente caminha para um amadurecimento responsável familiar-profissional, quando se livrará, enfim, das aventuras e inconseqüências da juventude. O olhar para a “infância” petista nessa perspectiva assemelha-se ao ato de um acadêmico ex-marxista que, ao olhar sorridente para sua antiga opção teórica e percebendo como “evoluíra” intelectualmente, a toma

A

1 Doutorando pela Universidade Federal Fluminense.2 Possivelmente o livro de Cândido Mendes, intitulado Lula: a opção mais que o voto (São Paulo: Garamond, 2003), tenha sido o primeiro trabalho publicado sobre a temática PT/Lula dotado deste tipo de perspectiva.3 Podemos citar aqui como exemplos desta visão um tanto quanto apologética de Lula e do PT duas publicações da editora da Fundação Perseu Abramo: Trajetórias: Partido dos Trabalhadores (2003). Das origens à vitória de Lula (2ª edição. São Paulo, 2002), cuja autoria é da própria editora, e PARANÁ, Denise. Lula, o filho do Brasil (São Paulo, 2002). 4 As reflexões contidas no presente artigo constituem-se em um desdobramento analítico do trabalho que organizamos em 2003 acerca do

História & Luta de Classes - 49

como pueril e rasteira, localizando-a como algo 3datado e que portanto estava fadado a desaparecer .

O presente artigo pouco se parece com estes trabalhos que se referem ao percurso do PT com uma linguagem laudatória. Sem cair numa espécie de teleologismo inverso ao dessas obras – o que significaria apenas modificar-lhe o sinal de positivo para negativo –, buscaremos justamente nas atitudes, escolhas e decisões tomadas pelo PT ao longo de sua existência elementos que nos permitam melhor compreender seu atual conteúdo. Nossa intenção é propor uma periodização para o estudo da história do Partido dos Trabalhadores a partir de marcos que consideramos capazes de delimitar certos períodos da trajetória do mais novo representante da burguesia brasileira. Dessa forma, este trabalho pretende se somar a uma série de produçeُs realizadas nos últimos anos que se debruçou sobre o PT a partir de uma perspectiva histórico-crítica, e que, portanto, se recusou a conceber a transformação do partido como fruto de uma simples “traiçمo” inesperada, tal como um raio num dia de céu azul, para usarmos as palavras

4de Marx .

1978-1980: A construção de um partido de “novo tipo”.

Ferramenta política derivada de uma ascensão do movimento operário-sindical, o PT

Partido dos Trabalhadores: DEMIER, Felipe (coord). As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2003. Como expoentes da visão marxista acerca da trajetória petista que nos referimos acima podemos mencionar os trabalhos de COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capita. Crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT, 1979-1998. (Tese de doutoramento em História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2v., 2005) e de GARCIA, Cyro. Rompendo com a lógica da diferença. (Dissertação de mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2000.).

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5 Entrevista de Marcelo Badaró Mattos in DEMIER, Felipe (Coord.). Op. cit., p. 104.6 Mattos, entretanto, afirma “que o PT exagerou na afirmação de sua novidade”. Idem. 7 É vital afirmarmos aqui que a simples adoção formal do “centralismo democrático” não confere ao partido um conteúdo revolucionário, vide o caso dos vários partidos burocráticos estalinistas que, se assumindo como partidos

50 - Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização para a história do Partido dos Trabalhadores

“surgiu com um discurso de ser um novo partido: um novo partido em relação à experiência brasileira, isto é, em relação ao PCB e às organizações de esquerda dos anos 60, e um novo partido em relação à experiência internacional. Nem partido stalinista,

5comunista típico, nem partido social-democrata” . Contudo, o que estaria por trás desta “grande

6novidade”?

Certamente, o PT representou um avanço qualitativo na história da organização política dos trabalhadores brasileiros. Enfim, um partido com significativo respaldo por parte dos setores mais conscientes das classes trabalhadoras se apresentava com uma proposta “classista”, isto é, enquanto um partido de classe, dos trabalhadores, e refratário a alianças com representantes das classes dominantes brasileiras, fossem estes “reacionários” ou mesmos “progressistas”. Desse modo, uma parcela importante da classe trabalhadora superava sua própria experiência com partidos “policlassistas”, da qual a maior expressão havia sido o apoio eleitoral das massas populares ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Vargas, Jango e Brizola no pré-1964, e rompia com o velho estratagema etapista do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que “justificava” supra-conjunturalmente uma política de conciliação de classes. Finalmente os trabalhadores tinham um partido próprio, “seu” e “sem patrões”.

Por conta dessas características, o PT recebeu, por parte da esquerda moderada e dos democratas de classe média (além da burguesia, obviamente) a pecha de “radical”. Entretanto, qual seria a real essência política do jovem Partido dos Trabalhadores encoberta pela sua aparência “radical”? Neste pequeno item apontaremos muito rapidamente como o próprio processo de conformação do PT já encerrava substantivas contradições internas que nos possibilitam melhor entender o ulterior desenvolvimento do partido de Lula e sua transformação em um sustentáculo do sistema de exploração capitalista no Brasil.

Em primeiro lugar, se tomarmos o termo “radical” no seu sentido etimológico, concluiríamos que um partido operário radical é aquele que propõe a resolução dos problemas da classe trabalhadora a partir da eliminação das “raízes” desses problemas,

isto é, a partir da superação da sociedade capitalista, o que historicamente só pode se dar por intermédio da ruptura violenta, revolucionária, com o sistema do capital. Mesmo levando em consideração todas as lutas classistas articuladas e encampadas pelo PT em sua primeira década de existência, o que certamente contrastava com as outras forças de esquerda da época, não podemos, pelo menos segundo os padrões marxistas de análise, afirmar que o Partido dos Trabalhadores nasceu como um partido revolucionário. Tanto em termos programáticos (a rejeição da estratégia da “ditadura do proletariado”) quanto em termos de organização política interna (a não adoção do “centralismo democrático” leninista) o PT diferia dos partidos revolucionários existentes ao

7longo da história .

Acreditamos que o PT tenha surgido como um partido em disputa, isto é, um partido internamente disputado por dois projetos políticos distintos e até mesmo antagônicos: um projeto reformista e um projeto revolucionário. Nesse sentido, talvez a melhor caracterização para o PT, desde sua gênese, seja a de um partido centrista, um partido que possuía internamente elementos revolucionários e não-revolucionários que almejavam seu controle político-programático; dependendo da correlação de forças entre esses elementos, diretamente relacionada com o contexto histórico em que se davam as disputas internas, o PT poderia tanto girar à esquerda como à direita. Esse embate pelos rumos do partido, presente, portanto, desde seu início, prosseguiria até que finalmente um lado saísse definitivamente vitorioso, o que acabaria por fornecer um conteúdo final à organização, como veremos mais à frente.

Em seu processo de construção, que optamos por balizar entre 1978, o início das greves operárias do ABC, e 1980, sua fundação no Colégio Sion em São Paulo, o PT conglomerava desde correntes políticas que levantavam a bandeira da supressão do Estado burguês pela via revolucionária (Convergência Socialista, Democracia Socialista, Organização Socialista Internacionalista, Movimento de Emancipação do Proletariado etc.) até lideranças sindicais e populares as quais, em pleno alvorecer do movimento de massas sob a ditadura militar, afirmavam que

Deve haver o direito de produzir e lucrar, assim

organizados pelo centralismo leninista, na verdade asfixiaram completamente a democracia partidária e reforçaram ao máximo o poder de suas direções, o que permitiu a estas impor seus posicionamentos reformistas às suas respectivas bases. Por outro lado, a história já deu inúmeras provas que só a “unidade na ação” permitida pela fórmula leninista de organização interna pode garantir vitórias revolucionárias dos trabalhadores em momentos de alta acuidade da luta de classes.

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9 Entrevista de José Maria de Almeida in DEMIER, Felipe (coord.). Op. cit., p. 28.10 Entrevista de Valério Arcary in DEMIER, Felipe (coord.). Op. cit., p. 96.

8 Entrevista de Lula ao órgão de imprensa Visão, em 3 de abril de 1978 in NÚCLEO AMPLIADO DE PROFESSORES DO PT (SÃO PAULO). Lula: entrevistas e discursos. São Paulo: s.e., 1981, p. 46.

História & Luta de Classes - 51

como deve haver o direito do trabalhador de exigir sua participação em parte desses lucros. Até em conformidade com o aumento da produção e da produtividade. Eu não sou partidário da intervenção estatal. Ela deve ser mínima, restrita apenas a setores fundamentais da nação: saúde educação, minérios, por exemplo. Minha posição é: deve haver liberdade para empreender e os empregados devem

8participar dos lucros .

Esta heterogeneidade programática presente na organização partidária desde sua constituição em fins dos anos 70 foi expressa também por José Maria de Almeida, líder sindical e fundador do PT, quando perguntado sobre quais seriam os momentos de inflexão política do partido:

Se for responder a essa pergunta com um olhar bastante rigoroso, serei obrigado a dizer que, já no congresso de fundação do PT, o partido começou a mudar. Quando reunimos um grupo de sindicalistas, de militantes de esquerda, no final da década de 1970, e discutimos a idéia de fundar o PT, nós escrevemos uma carta de princípios que estabelecia um programa para o partido, que foi divulgado ou deveria ter sido divulgado no 1º de Maio de 1980. Esse programa foi modificado no momento mesmo da fundação do partido porque não houve acordo entre os setores da Igreja Católica, os dirigentes sindicais e a intelectualidade que, naquele

9momento, afluíram à idéia do PT .

Consideramos que as diferentes feições adquiridas pelo PT em cada momento foram sempre sínteses de sua hibridez interna e estiveram dialeticamente relacionadas com as distintas fases que a luta de classes atravessou no país nas últimas duas décadas. Mesmo a esquerda revolucionária nunca tendo alcançado de fato a hegemonia dentro do aparelho partidário, em algumas determinadas situações nas quais o conflito de classes se radicalizou no país o PT foi levado à esquerda; em outros momentos, quando as lutas sociais se amainavam, a ala reformista, fortalecida pela conjuntura, conduzia o partido para a direita.

Um exemplo do primeiro caso foi o próprio processo de construção partidária. Segundo Valério Arcary, historiador e fundador do partido,

Pelas condições do ascenso, o PT no seu berço foi muito mais à esquerda do que o plano original dos seus chefes. Por quê? Porque as massas pressionavam, as massas estavam à

esquerda, e o PT só podia se construir se ocupasse esse espaço, senão a ala “autêntica” do PMDB tomava esse espaço. Em 1978/79 abriu-se uma etapa de reorganização do movimento operário e popular. Os velhos oportunistas do PCB, por inércia burocrática, ficaram onde estavam. Contudo, havia uma necessidade de representação da classe trabalhadora para além do que era o formato fechado do bipartidarismo (Arena/PMDB), que por oportunismo político – os oportunistas sabem que, às vezes, precisam girar à esquerda para não perder suas bases

10sociais – os chefes do PT souberam aproveitar .

Quanto ao segundo caso, podemos dizer que todo o futuro processo de “direitização” do PT esteve diretamente relacionado com o refluxo da lutas dos trabalhadores no plano internacional (que já vinha desde os anos 80 e que se acirrou com o fim da União Soviética) e, principalmente, no plano nacional, marcado pela implementação dos planos neoliberais e pela burocratização das entidades sindicais, com destaque para a Central Única dos Trabalhadores (CUT), grande eixo sindical do partido. Ganhando força interna durante esse período de grandes derrotas para os trabalhadores mundiais, a ala reformista do PT, já na segunda metade da década de 1990, se tornaria definitivamente vitoriosa e, mesmo que por algum tempo ainda permanecessem no partido muitos setores da esquerda combativa, a “disputa” no seu interior já se mostraria, na prática, totalmente decidida.

Com isso, não queremos afirmar que o PT, desde sua origem, já estava destinado a ser o que é agora. Possivelmente, se o destino da luta de classes no país tivesse sido outro, o PT também poderia ter sido outro. O que nos interessa aqui é deixar claro que o PT já trazia, desde o berço, certos elementos que depois se manifestariam com mais força e que acabariam por dominar totalmente o partido, definindo seu caráter. No entanto, o PT continha também elementos radicalmente transformadores, revolucionários, que, por conta do processo histórico no qual o partido esteve envolvido, perderiam força e, por fim, sairiam derrotados na pugna interna com os elementos reformistas.

Vale registrar ainda que, sendo o PT um partido dividido entre revolucionários e reformistas, ele nunca apresentou uma definição muito precisa acerca do socialismo que defendia em seu programa. Como bem lembra Marcelo Badaró Mattos, Lula, quando perguntado sobre qual seria o “socialismo

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11 Entrevista de Marcelo Badaró Mattos in DEMIER, Felipe (coord.). Op. cit., p. 113.

petista”, prontamente respondia: “o socialismo que 11os trabalhadores brasileiros vão inventar!” . Apesar

de muito bonita a afirmação (à primeira vista faz até lembrar a frase de Marx: “o socialismo será obra dos próprios trabalhadores, ou não será!”), pouco ela dizia em termos de estratégia socialista. Acreditamos que, de alguma forma, o próprio nome do partido expressava um pouco essa indecisão programática. Nele claramente se afirmava o conteúdo social do partido, um partido “dos trabalhadores”; no entanto, nada esclarecia em relação ao projeto histórico que esses trabalhadores buscariam efetivar. Possivelmente, a enorme postergação de uma discussão programática efetiva no seu interior pode tê-lo tornado mais suscetível à contra-revolução ideológica que chegaria com toda a força no Brasil e no mundo na década de 1990.

1980-1988: o partido das lutas

Portador de distintas concepções programáticas, mas unificado em torno das práticas cotidianas, o PT desempenhou na década de 1980 o papel de condutor e organizador político das lutas dos trabalhadores do país. Fiel ao seu nascedouro, o partido era alimentado e alimentava as principais mobilizações operárias do país, carregando sempre as bandeiras da independência de classe dos trabalhadores e do fim da ditadura militar (1964-1985). Diretamente responsável pela fundação, em 1983, da maior central sindical da história do país, a CUT, o PT mantinha também ligações orgânicas com a reorganização dos trabalhadores do campo, que se traduziria na criação, em 1984, do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, o MST. Depois de quase duas décadas, importantes setores das massas trabalhadoras da cidade e do campo acordavam do pesadelo iniciado em 1964. Entretanto, nessa nova fase de seus combates os trabalhadores brasileiros contavam com um instrumento político incomparavelmente superior às que possuíram na etapa populista.

No período compreendido entre 1980 e 1990 assistimos à ocorrência de 6.229 greves no

12território brasileiro , com destaque para as greves gerais de 1983, 1986, 1987 e 1989. A história do Partido dos Trabalhadores em seus primeiros dez anos está intimamente ligada a esse ascenso grevista. Seus quadros e parte significativa de sua militância estiveram presentes enquanto organizadores e dirigentes da imensa maioria dessas greves. A cada

vitória contra os patrões e o Estado crescia entre os trabalhadores a idéia de que o PT era o “seu” partido; metalúrgicos, funcionários públicos, bancários, professores, entre outras categorias, ingressavam progressivamente nas fileiras petistas.

Apoiado no movimento operário-popular, o PT participou também das disputas eleitorais desde 1982. No terreno eleitoral, uma instância sempre refratária aos partidos “classistas” (do proletariado, é claro), o PT enfrentou não só as máquinas partidárias burguesas claramente conservadoras que se constituíam a partir dos quadros políticos da ditadura, como também a concorrência dos demais partidos de esquerda, como o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, o Partido Socialista Brasileiro (PSD), de Miguel Arraes, e, depois de 1985, o PCB. Entre 1980 e 1988, o PT aumentava a cada pleito seu número de deputados estaduais e federais e conquistava celeremente o lugar de principal partido da esquerda brasileira.

Vale alertar, contudo, de que mesmo com uma ampliação gradativa dos cargos públicos ocupados por petistas, a área de interseção entre a esfera partidária e os aparatos institucionais do Estado, nesse período, se manteve bastante reduzida, não alterando substancialmente a correlação de forças entre os reformistas e os revolucionários no interior do PT. Mesmo imersas num quadro de radicalização das lutas de classes no país, as disputas programáticas ocorridas no interior do PT nesse período jamais resultaram numa vitória das propostas revolucionárias no partido. Contudo, estas últimas constituíam-se em ingredientes determinantes do conteúdo político assumido pelo PT nos anos 80, seja quando circunstancialmente conseguiam se impor em algumas decisões, seja quando sua firmeza política servia como contrapeso às posições moderadas, o que impedia um domínio por completo dos reformistas sobre o partido, permitindo que este ainda se apresentasse à classe trabalhadora como combativo e classista. Diferentemente do que ocorreria depois, a pressão burocrático-financeira oriunda do aparelho de Estado ainda não existia substancialmente como um elemento que pudesse influir nos rumos partidários.

Algumas afirmações devem ser feitas no que diz respeito à relação, na década de 1980, entre os âmbitos sindical-popular e eleitoral-institucional nos quais o PT atuou combinadamente.

Por mais que entre os defensores de uma

12 Fonte: MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura,1998., p. 241.

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13 FONTES, Virgínia. “A política e a arte da desqualificação” in ____. Reflexões im-pertinentes. História e capitalismo contemporâneo. Rio de

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feição reformista para o PT existissem aqueles mais suscetíveis às pressões do Estado capitalista (que se manifestam especialmente nos processos eleitorais), durante quase toda a década de 1980 o partido manteve seu eixo eleitoral-parlamentar subordinado à sua atuação no movimento operário-popular. Isso significa dizer que a participação do PT nos processos eleitorais se realizava como uma forma de expressão, na esfera institucional, das demandas do movimento popular organizado. As políticas defendidas pelos candidatos petistas possuíam um forte lastro com as propostas defendidas pelos setores mais conscientes da classe trabalhadora. A prática política do PT se ancorava, portanto, na atuação de seus militantes junto aos trabalhadores, que naquele momento avançavam qualitativamente em sua organização sindical e política. Assim, os cargos públicos obtidos pelos candidatos do partido eram encarados como mandatos pertencentes aos setores populares que organizadamente haviam construído as candidaturas de suas lideranças sociais e políticas. Diferentemente do que ocorreria depois, os organismos de base do partido gozavam de um relativo controle sobre os parlamentares eleitos, o que diminuía consideravelmente as chances de que estes últimos se “autonomizassem” das bandeiras políticas com as quais haviam se eleito e adotassem impunemente as práticas de congraçamento que imperavam (e imperam) no Congresso Nacional.

Outro aspecto a ser destacado é o papel desempenhado pela prática petista no espectro político nacional. Por conta de seu vínculo declarado com uma classe social (os trabalhadores), de sua proposta política de transformação das estruturas sócio-econômicas do país e da subordinação de seus parlamentares aos organismos partidários de base, o PT se apresentava à grande parte da população como exemplo de uma nova forma de fazer política, que contrastava com os métodos tradicionais de que lançavam mão as elites nacionais desde os tempos pré-diluvianos (acordos por cima, conciliação, cor rupção , c l ien te l i smo, personal i smo, “tecnificação” das questões sociais, negação dos vínculos de classe de seus partidos etc.). Como observou Virgínia Fontes, o maior desafio do PT “consistia na negação da política existente e em sua

13requalificação como atividade legítima” . Segundo a historiadora,

O novo partido procurava uma forma de ser que o capacitasse a instaurar-se como crítica efetiva do conjunto do sistema partidário brasileiro, de

seus traços elitistas, autoritários, corrompidos, distantes das questões efetivas dos setores populares e, sobretudo, negadores de seus vínculos de classe. Para isso, precisava apontar saídas não apenas através de palavras de ordem, mas como prática real, uma outra forma –

14requalificada – de atuação política .

Por conta disso, o Partido dos Trabalhadores

suscitava não apenas a raiva e os impropérios dos demais partidos e da grande imprensa, mas os impelia, num primeiro momento, a defender abertamente o que denunciavam como desvio entre as instituições e as práticas vigentes, desvio que agora seria apregoado como se constituísse a norma e a lógica mesmas dessas instituições. A defesa da realização dos procedimentos que desqualificavam os processos parlamentares ocorria através de uma torção argumentativa peculiar, admitindo-se que, embora lamentável, este era o comportamento possível e, assim, deveria ser encarado como... necessário. Defender tais práticas – acordos pelo alto, acertos de última hora, acomodações através da oferta de cargos -

15equivaleria a defender a... democracia .

Ironicamente, os argumentos espúrios que constituíam as críticas ao PT proferidas pelos ideólogos da burguesia em tempos nem tão remotos assim são atualmente repetidos pelos dirigentes palacianos do partido quando questionados sobre o abandono de suas concepções políticas pretéritas.

Por fim, o que nos interessa deixar claro neste item é que entre 1980 e 1988 o PT manteve-se como um partido vinculado à classe trabalhadora e refratário às práticas políticas burguesas. Nesse período da história do partido, seu comprometimento com as lutas sociais organizadas esteve sempre em primeiro lugar, deixando em segundo plano a participação institucional-eleitoral. Mesmo com uma primazia já mais acentuada dos setores reformistas sobre o aparato partidário, o PT, imerso num contexto de radicalização das lutas operárias e populares, expressou uma continuidade em relação ao seu processo de fundação, tanto no que diz respeito à manutenção de um caráter classista e combativo, quanto na persistência de significativos antagonismos entre os dois projetos programáticos contidos em seu interior. Talvez, paradoxalmente, as lutas nas quais o partido esteve envolvido em sua primeira década de existência tenham contribuído para postergar ainda mais seu debate programático interno. Contudo, a nova situação política na qual o PT estaria inserido no

Janeiro: Bom Texto, 2005, p. 287. Grifo da autora.14 Idem.15 Idem, p. 291.

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16 A única capital governada pelo PT anteriormente havia sido Fortaleza (CE), quando Maria Luiza Fontenelle, em 1985, foi eleita prefeita.17 Entrevista de César Benjamin in DEMIER, Felipe. Op. cit., p. 12.

período imediatamente posterior terminaria por estabelecer, finalmente, a vitória de um desses projetos sobre seu antípoda e, consequentemente, conferir uma feição política definitiva ao partido. Vejamos isso agora.

1988-1992: a inflexão

É no período da história do PT compreendido entre 1988 e 1992 que, segundo acreditamos, devem ser buscadas as explicações para as profundas transformações vividas pelo partido e, consequentemente, para se entender o significado histórico e a natureza política do governo Lula.

O ano de 1988 é, sem dúvida, um divisor de águas na história do Partido dos Trabalhadores: marca sua entrada substancial no Estado burguês. Mencionamos que desde 1982 o PT vinha participando dos processos eleitorais sem que seu perfil combativo tenha sido substancialmente alterado. Como dissemos, mesmo com um gradativo aumento de suas cadeiras no parlamento, o PT manteve seu eixo eleitoral subordinado às lutas populares que participava e dirigia. A presença do partido em cargos executivos era ínfima, resumindo-se ao comando de pequenas prefeituras.

As eleições municipais de 1988 começariam a alterar significativamente esse quadro. Além de aumentar em seis vezes o número de vereadores eleitos em 1982, o PT elegeu seus candidatos em 36 prefeituras. Contudo, pela primeira vez, o PT conquistava prefeituras de peso e visibilidade nacional, como as de Porto Alegre (RS), Vitória (ES)

16e São Paulo (SP), a maior cidade da América do Sul . Ampliavam-se consideravelmente as áreas de fronteiras do partido com o Estado burguês. Ocupando postos executivos, PT experimentava agora o papel de administrador das instituições republicanas brasileiras, e via-se imerso em estruturas historicamente consolidadas por negociatas, corrupção e outras práticas de governo do capitalismo. Por detrás do sonho dos reformistas do PT de implementar uma “outra forma de governar” (o modo petista de governar), iniciava-se, de forma localizada, a experiência do PT como gerente do capitalismo brasileiro, posição que hoje o partido ocupa em âmbito nacional. Consideramos que o aumento significativo das zonas de interseção entre o PT e o Estado brasileiro se constituiu no principal fator da degeneração partidária. Iniciada

substancialmente nas eleições municipais de 1988, a ocupação de postos e cargos públicos pelos dirigentes petistas estendeu-se em nível estadual ao longo da década seguinte, aumentando a dependência material do partido perante o Estado brasileiro. A administração de recursos financeiros do Estado por parte de dirigentes petistas, em grande parte adeptos de concepções não-revolucionárias, criou as condições propícias à formação de uma camarilha burocrática. Centenas, e depois milhares de militantes, foram afastados de seus locais de atuação (fábricas, escolas, bancos, hospitais etc.) e absorvidos por gabinetes parlamentares e secretarias públicas. Reuniões e acordos com empresários e banqueiros tornaram-se suas novas tarefas. Surgiu, como declarou César Benjamin, um contexto “muito favorável à burocratização, cuja lógica capturou milhares de quadros: parlamentares, prefeitos, assessores, ou pessoas desejosas de vir a ser

17parlamentares, prefeitos e assessores” .

O aumento de arrecadação do partido, acarretado pela sua imbricação com as instituições estatais (contribuição dos parlamentares, doações burguesas etc.), ao mesmo tempo em que proporcionava uma extensão e maior eficácia das tarefas cotidianas da militância, deixava muito claro de onde provinham os recursos que permitiam esse salto organizativo. Os reformistas do PT, que sempre tiveram a faca na mão, tinham agora também o queijo, do qual poderiam fazer uso das fatias para cooptar parcela substantiva dos militantes. Na disputa entre revolucionários e reformistas no interior do PT, os últimos começaram a adquirir, a partir de 1988, as condições materiais que lhes proporcionariam, em breve, a vitória final. Colhiam os frutos, sozinhos e a seu modo, dos faustos eleitorais construídos por toda a militância no dia-a-dia junto à classe trabalhadora.

Somaram-se a essa inserção do partido no aparato estatal brasileiro, outros aspectos que contribuíram para a inflexão política sofrida pelo PT no período em questão. Não poderemos, por razões de espaço, discuti-los; contudo, consideramos necessário ao menos mencioná-los.

O processo de burocratização da CUT, acentuado fortemente após a Constituição de 1988 que manteve uma série de elementos da estrutura sindical corporativista (em especial, o imposto sindical), deve ser visto, dada a relação orgânica entre esta central e o PT, como um aspecto decisivo para a “direitização” do partido. O refluxo que viveria o

54 - Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização para a história do Partido dos Trabalhadores

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18 Entrevista de Zé Maria in DEMIER, Felipe. Op. cit., p. 29.

História & Luta de Classes - 55

movimento sindical brasileiro na década de 1990 aceleraria a degeneração da CUT e, por conseqüência, do Partido dos Trabalhadores. Contudo, é importante aqui não cairmos num duplo raciocínio mecanicista, no qual um momento de refluxo das lutas operárias é visto como algo que necessariamente conduz a uma burocratização das entidades sindicais que, por sua vez, leva invariavelmente os partidos de esquerda vinculados a essas entidades ao abandono de suas posições anteriores. Tais caminhos, apesar de serem trilhados na maioria das vezes, não podem ser tomados como os únicos possíveis, sob o risco de praticamente se eliminar o papel dos sujeitos políticos nos processos sociais. Os dirigentes da CUT e do PT não podem ser poupados de críticas pelo fato de que suas posturas são passíveis de serem compreendidas historicamente, tal como, por exemplo, o estalinismo não pode ser absolvido pelo isolamento que se abateu sobre a Revolução de Outubro com a derrota da revolução na Europa.

Outro elemento importante a ser destacado é a derrota eleitoral de Lula em 1989. Grande parte dos dirigentes petistas chegou à conclusão de que seria necessário um abrandamento do programa petista acoplado a uma extensão dos limites das alianças eleitorais para que glórias fossem obtidas nos escrutínios. De fato, estavam certos. Mas a questão central é: podem as eleições resolver os problemas dos trabalhadores? De nossa parte, pensamos que história mundial do século XX e as incessantes derrubadas de presidentes eleitos na América Latina nesse início de século podem responder sem dificuldade a essa questão.

Por fim, o desmoronamento dos regimes políticos do leste europeu e o fim da União Soviética vieram dar uma contribuição ideológica crucial para o recuo programático do partido. José Maria de Almeida nos lembra que com o fim do “socialismo real” muitos quadros petistas “assimilaram o conceito, difundido pelos defensores do neoliberalismo, de que não foi o estalinismo que caiu,

18e sim o socialismo como um todo” . O que restaria agora para a esquerda, segundo a direção petista, era conseguir melhorias para os trabalhadores dentro do capitalismo, tomado agora pelos chefes do PT como a única forma possível de organização social da espécie humana. É importante aqui também combatermos o raciocínio mecaniscista. Outros balanços poderiam ter sido feitos (como o foram por parte de várias correntes do partido) em relação ao fim da União Soviética, e não somente os produzidos pela maioria dos dirigentes sindicais, políticos e intelectuais do PT.

Se não tomarmos a parte pelo todo – mesmo que a parte em questão seja demasiado grande – não podemos dizer que, historicamente, a derrocada da União Soviética foi sinônimo de abandono do marxismo por parte de todos os marxistas. Nesse sentido, a existência de posições não-revolucionárias no PT desde seu nascedouro e o fato de que estas sempre foram majoritárias nas instâncias decisórias do partido nos ajudam a entender os posicionamentos políticos adotados por grande parte dos dirigentes petistas quando se viram confrontados com determinadas situações históricas. Em 1991, em seu primeiro congresso (!), o PT condenou a chamada “ditadura do proletariado” associando-a ao estalinismo (mas não teriam sido os estalinistas justamente os coveiros da ditadura do proletariado?), e começaram a ganhar cada vez mais força as teses eurocomunistas da “democracia como valor universal”, que seriam utilizadas pelos Genoínos da vida mais do que pimenta nas receitas baianas.

E m 1 9 9 2 , e s s e “ n o v o P T ” , j á significativamente adulterado em relação ao seu conteúdo original, enfrentaria seu primeiro grande teste político. Quando as massas juvenis saíram às ruas para derrubar Fernando Collor de Mello, e quando sua queda era quase inevitável, a direção petista encarregou-se de se mostrar como alicerce da institucionalidade defendendo a posse do Vice-Presidente Itamar Franco, apresentando assim limites claros ao movimento contestatório. Não satisfeitos, Dirceu e cia. não hesitaram em expulsar a Convergência Socialista (CS) devido ao “grave crime” cometido pela corrente: defender o “Fora Collor” quando a direção do PT ainda não havia aderido a esta bandeira. Em termos históricos (no que se refere à história do Partido dos Trabalhadores), tal expulsão significou o início de um processo de exclusão dos setores militantes que não mais poderiam ser tolerados por um PT que se tornava a cada dia mais adaptado à ordem do capital. Esse processo de expurgo teria fim pouco mais de dez anos depois com a expulsão dos “radicais”, desta vez pelo também “grave crime” de terem votado contra a reforma neoliberal da Previdência levada a cabo pelo governo Lula em 2003. No meio do caminho (isto é, entre 1992-2003), muitas correntes e elementos da esquerda partidária adaptaram-se também ao aparato estatal e subordinaram-se à camarilha dirigente do partido, enquanto outras dele se afastaram.

Consideramos, portanto, que o período compreendido entre 1988 e 1992 foi fundamental para a “evolução” do Partido dos Trabalhadores. O caráter “centrista” que caracterizava o PT na sua fase

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19 Naturalmente, consideramos que o marco temporal que propusemos acima enquanto momento decisivo da mutação petista (1988-1992) pode ser, sem grandes conseqüências analíticas e políticas, um pouco estendido tanto para trás quanto, principalmente, para frente. Todavia, consideramos bastante problemáticas interpretações como as de João Machado, para quem “até o fim de 2001, o PT continuou a ser um partido socialista, e sua evolução negativa não foi suficiente para transformá-lo sequer num partido

inicial ruiu, e o partido guinou definitivamente à direita. O setor reformista finalmente venceu o jogo, e o PT se tornou, a partir de então, um partido que

19podemos definir como social-democrata .

1992–2002: Um partido social-democrata periférico em tempos de crise

Muitos eventos poderiam ser utilizados aqui para ilustrarmos o processo de aceleração da degeneração do PT desde a segunda metade da década de 1990 até a eleição de Lula, em 2002. Todavia, nos limitaremos a expor muito sucintamente nossa interpretação sobre as transformações vividas pelo partido durante este balizamento temporal.

Ao se tornar social-democrata nos anos iniciais da década de 1990, o PT arcaria como o “ônus”, ou melhor, com as conseqüências de sua opção política. Em primeiro lugar, o PT foi forçado a se deparar com os limites impostos ao reformismo social-democrata nas regiões periféricas do globo. Por conta da natureza dependente do capitalismo brasileiro (de sua subordinação completa ao imperialismo), as possibilidades de reformas por dentro da ordem capitalista que atendam a alguns interesses dos trabalhadores são muito reduzidas. Mesmo em períodos de maior autonomia da periferia face ao imperialismo, como entre as décadas de 1930 e 1970, as conquistas da classe trabalhadora latino-americana não passaram de migalhas se comparadas ao Welfare State europeu. Em segundo lugar, além de estar localizado na periferia do sistema, o PT adquiriu a feição social-democrata em um momento no qual o capitalismo vivia (e vive) uma grave crise, que fez (faz) com que os Estados burgueses de todo o mundo, muitas vezes dirigidos pelas sociais-democracias, não só não tenham mais como “conceder” nada aos trabalhadores, como se vêem obrigados a retirar destes últimos suas conquistas históricas. O PT tornou-se social-democrata quando a própria social-democracia européia, paradoxalmente, já não era mais social-democrata, no sentido histórico do termo.

São por esses motivos, segundo acreditamos, que o PT saltou de “seu projeto original, que era socialista – embora esse socialismo fosse difuso, mal definido – para a linha que hoje tem a social-democracia da terceira via do Tony Blair, sem

ter passado pela fase do Welfare State, calcado em ”20 políticas públicas redistributivas São também por

esses motivos que nos consideramos autorizados a supor que o conteúdo político do governo Lula seja, de alguma forma, resultado de um momento histórico no qual o reformismo já não é apenas um “reformismo sem reformas”, mas precisamente um reformismo que se vê obrigado a realizar “contra-

21reformas” .

Nesse sentido, por mais revolta que possa causar o fato de ser um partido oriundo das lutas operárias e populares o articulador direto dos ataques assestados nos últimos cinco anos contra a classe trabalhadora, o fenômeno da “traição” petista não pode ser tomado por nós como uma enorme surpresa histórica, quase inexplicável. Todas as realizações políticas do governo Lula assim como as já agendadas por este para seus anos finais devem ser encaradas como resultantes de um processo iniciado ao final da década de 1980 de adaptação do Partido dos Trabalhadores ao Estado burguês e suas instituições. Em tal processo, houve, indubitavelmente, um enorme menosprezo por parcela significativa da militância petista, inclusive por setores da esquerda partidária, da força de cooptação exercida pela democracia burguesa sobre as organizações políticas dos trabalhadores. Caso a nova vanguarda sindical e política que desponta atualmente no país ouse, mais uma vez, subestimar os encantos da democracia do capital, não há nenhuma razão para crermos que a história petista não se repetirá, ainda que como farsa.

social-democrata”. (MACHADO, João. “A crise de 2005 e a social-liberalização do Partido dos Trabalhadores” in Outubro nº. 13. São Paulo, 2005, p. 109. Grifos do autor.). 20 Entrevista de Marcelo Badaró Mattos in DEMIER, Felipe. Op. cit., p. 105.21 Devo esta avaliação do reformismo atual a Valério Arcary. Ver entrevista de Arcary in DEMIER, Felipe. Op. cit., p. 106-109.

56 - Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização para a história do Partido dos Trabalhadores

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A CUT e a mobilização popular

na Constituição de 19881Gelsom Rozentino de Almeida

O processo de elaboração da nova Constituição brasileira representou o grande momento da disputa de hegemonia, através do confronto de um projeto liberal (anti-popular) e um

2projeto popular liderado pela CUT e o PT . O PT aglutinou as propostas que defendiam direitos e conquistas sociais e tornou-se a direção dos setores populares e da oposição no Congresso Constituinte. A CUT não se limitou à defesa de interesses corporativos ou sindicais. A sua atuação foi pautada por quatro eixos principais: 1) direitos políticos e sociais; 2) direitos trabalhistas; 3) política econômica (proposta para o Estado); 4) reforma agrária. De forma coerente com sua proposta de criação, a CUT procurava aproximar trabalhadores urbanos e rurais mantendo todo o tempo o tema da reforma agrária na agenda política, assim como especificava uma série de itens para a Constituição incorporando as reivindicações de diversificados movimentos sociais.

A atuação do PT na Constituinte levava adiante e aprofundava as questões da CUT. No entanto, o PT não logrou uma vitória expressiva na Constituinte. Melhor dizendo, ainda que tenha conseguido uma série de conquistas tanto em termos políticos quanto sociais, tais vitórias estavam muito aquém das propostas apresentadas. Essa duplicidade – conquista ou derrota? – e a ambigüidade de sua avaliação ficam evidenciadas pelo debate interno ao PT no momento imediatamente posterior à Constituinte e que se explicita na decisão de não assinar o texto final.

Em que pese a ambivalência do PT frente à nova Constituição, o papel da aliança PT-CUT estava claramente afirmado. Definia-se um projeto nacional capaz de envolver amplos setores sindicalizados, movimentos sociais de cunho popular – como o MST – movimentos sociais de cunho urbano – como associações de moradores, ecologia, direitos humanos, negros, mulheres, homossexuais, etc. Tanto o PT como a CUT se definiam não só como

1 Professor Adjunto do DCH?UERJ;2 Para uma analise mais abrangente desse processo ver: ALMEIDA, Gelsom Rozentino de. História de uma década quase perdida: 1979-1989. Tese de Doutorado, Niterói: ICHF/UFF, 2000.

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representantes legítimos de amplas massas populares, como crescentemente eram assim reconhecidos.

A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte era uma reivindicação defendida desde o final dos anos setenta por grande parte da oposição à ditadura militar, sobretudo o MDB/PMDB e o PCB. No entanto, para o “novo sindicalismo” e o PT, a questão da Constituinte não era vista como prioritária, pois deveria ser antecedida de um conjunto de medidas que democratizassem a participação política dos movimentos sindical e populares. Para o PT, a realização de uma Assembléia Nacional Constituinte só passaria a receber um maior destaque no debate interno a partir da campanha pelas eleições diretas para presidente. Entretanto, só se tornaria parte efetiva de um programa político para o partido após a derrota da Emenda Dante de Oliveira. Essa postura se justificava, do ponto de vista do PT, por se considerar que a elaboração de uma nova Constituição sem um novo presidente eleito diretamente, sem a revogação dos “entulhos autoritários”, só serviria para manter e legitimar a dominação da burguesia sobre os trabalhadores. A CUT, criada em 1983, compartilharia e reforçaria essa posição, participando de fóruns populares em defesa da Constituinte. Contudo, reafirmando a necessidade de revogação da Lei de Segurança Nacional, da tutela do Estado sobre a estrutura sindical, direito irrestrito de greve, voto universal, etc.

Para a CUT es tes p ressupos tos representariam a garantia de liberdade, de democracia e de soberania, sobre a qual não poderia se impor outro poder. A perspectiva de uma Constituinte não poderia significar o adiamento da luta pelas reivindicações imediatas, ou a formação de um “pacto”. A Reforma Agrária, a recomposição do valor dos salários, a redução da jornada sem redução de salários, trimestralidade, a estabilidade no emprego e o salário-desemprego, o direito irrestrito de greve, a liberdade e a autonomia sindical, eram bandeiras inadiáveis e inegociáveis.

Na medida em que a satisfação dos anseios

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58 - A CUT e a mobilização popular na Constituição de 1988

juntamente com a mobilização pela Constituinte, a CUT incentivaria a mobilização e organização dos trabalhadores nos sindicatos, nas comissões de fábricas e de empresas, nos bairros operários e nas comunidades rurais, em defesa de suas reivindicações através das campanhas salariais, das lutas pela terra, da Campanha Nacional de Luta.

No dia seguinte ao falecimento de Tancredo Neves, a Executiva Nacional da CUT divulgou uma nota onde externava suas condolências à família, mas, ao mesmo tempo, se posicionava diante do novo quadro político. Destacavam-se duas exigências fundamentais, e interligadas, que eram o estabelecimento de Eleições Diretas e de uma Assembléia Nacional Constituinte.

A concessão de poderes constituintes ao Congresso, que seria eleito em 15 de novembro de 1986, impôs sérias limitações aos projetos populares de formação de uma Assembléia Nacional autônoma e específica para a elaboração da nova carta constitucional. A “Nova República” indicava um caminho ainda mais conservador ao anunciar em maio de 1985 a formação de uma “comissão de notáveis” (a “Comissão Afonso Arinos”) responsável por um anteprojeto de Constituição, vinculando as discussões aos interesses do governo e convivendo com a legislação da ditadura em vigor.

Em oposição à esta proposta a CUT reafirmava a defesa de ampla liberdade de organização e expressão política, fim das leis anti-greve, a extensão de direitos, a implantação da Convenção 87 da OIT, fim da Lei de Segurança Nacional, controle financeiro de campanha, exclusividade de função para a Constituinte, etc. Por isto, a Direção Nacional da CUT repudiou a “Comissão de notáveis”, e referendou o apoio ao projeto do deputado Djalma Bom, PT/SP, que convocava a Constituinte para março de 1986, exclusivamente para elaborar e votar uma Constituição e assegurar a revogação dos ''entulhos autoritários''. Além disto, a DN/CUT aprovou posição favorável à que pudessem concorrer candidatos chamados de “avulsos”, ou seja, candidatos não vinculados aos partidos existentes e indicados pelo movimento popular ou sindical.

A DN/CUT decidiu também apoiar as ativi-dades que visassem exigir uma Constituinte efetivamente livre e democrática, tendo integrado a caravana do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte que esteve em Brasília dia 20 de agosto de 1985. O Presidente Sarney recusou-se a receber

uma comissão do Plenário, tendo mandado um recado para o jurista Gofredo Telles Júnior de que o receberia, exclusivamente. A comissão do Plenário, que representava 130 entidades, incluindo a OAB e a CUT, recusou-se a aceitar tal discriminação.

O que pretenderia a CUT? Seu principal objetivo, no caso de conseguir colocar em prática tais propostas, seria obter o rompimento dos mecanismos do poder dominante que controlaram todos os processos Constituintes ocorridos no Brasil. Dessa forma, a central buscava assegurar que na nova Constituição fossem garantidos alguns direitos básicos dos trabalhadores. Somente assim os trabalhadores poderiam impedir que a Constituição fosse mais um “instrumento de legitimação da do-minação do grande capital nacional dos latifundiários e do capital internacional”.

Representantes de sete estados (RJ, RS, SP, ES, PR, SC, RO) do Plenário Pró-Participação Popular e a CUT, CNBB, Comissão Nacional da Pastoral Operária, Federação Nacional dos Arquitetos, Comissão de Justiça e Paz se reuniram em São Paulo, em 14 de setembro de 1985, para discutir a continuidade da luta pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte efetivamente democrática e soberana. Decidiram fazer uma caravana a Brasília no dia da votação da Emenda Sarney (em outubro) e vigílias nas cidades. A reunião definiu uma série de formas de luta como o envio de aerogramas ao presidente Sarney e aos líderes do Congresso, assim como plebiscitos populares contrapondo a Emenda Sarney às reivindicações dos trabalhadores, posições defendidas pelo movimento dos trabalhadores.

A Plenária Nacional da CUT em São Bernardo do Campo (SP) de 13 a 15 de dezembro de 1985 aprovou um plano de trabalho para nortear a campanha contra o modelo do Congresso Constituinte, visando garantir a participação popular no processo, decidindo ainda retomar a luta pelas eleições diretas para presidente. A posição da CUT coincidia com vários setores da sociedade civil brasi-leira, como a CNBB, defendendo: a convocação de uma assembléia exclusiva para a Constituinte; a revogação de toda a legislação autoritária; a revogação da Lei de Segurança Nacional; garantias de liberdade de expressão e organização política e partidária; ampla liberdade de organização sindical com a ratificação da Convenção 87 da OIT c a revogação do titulo V da CLT; a revogação da lei de greve, garantindo-se o irrestrito direito de greve; a liberdade de voto, extinguindo-se as restrições que

3im-pediam o voto dos marinheiros, cabos e soldados .3 CUT, Boletim Nacional, no. 6, Dezembro de 1985.

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História & Luta de Classes - 59

De acordo com essa posição, somente a garantia da participação popular contribuiria para a concretização de um autêntico avanço e a realização de mudanças efetivas nas condições de vida da população e na construção de uma democracia de fato no Brasil. Este posicionamento chegou até a comissão técnica que estudava o projeto de lei do presidente Sarney, onde o depoimento da CUT, através de Jair Meneguelli, somou-se ao de centenas de entidades, sindicatos, organismos populares, OAB, setores da Igreja. Estas reivindicações foram ignoradas e o Congresso, através da pressão e articulação da Aliança Democrática, aprovou no final da legislatura, um congresso com poderes constituintes não exclusivos e sem a revogação da legislação autoritária ainda em vigor. Para a CUT e o PT, usar a fórmula de Congresso Constituinte seria intrinsecamente antipopular e visaria a consolidação do novo bloco de alianças, de caráter conservador, instalado no governo.

A defesa desse posicionamento exigiria a pressão organizada de todo o movimento popular, dos trabalhadores, a partir dos locais de trabalho, dos bairros, das manifestações de rua, das grandes mobilizações, de greves e outras formas de luta. Avaliava-se que apenas esta força garantiria a viabilidade dessas propostas, pois seriam grandes as dificuldades e empecilhos à participação popular, devido ao caráter e à forma de convocação da Constituinte. Tinha-se consciência de que se enfrentava uma recomposição das forças que durante anos sustentaram a ditadura e que, ditos de oposição ao final do regime militar, seriam os principais responsáveis pelo processo de transição.

A Secretaria de Política Sindical, assessorada por uma comissão de advogados, foi

incumbida de sistematizar as propostas da CUT para a nova Constituição, com ênfase na questão dos direitos dos trabalhadores, tendo como referência as resoluções do II CONCUT, propostas de grupos de trabalho e comissões técnicas

da própria secretaria envolvendo questões como saúde, novas tecnologias, mulher, educação, direitos dos trabalhadores, sendo consultadas resoluções de congressos de diferentes categorias e anteprojetos constitucionais de partidos e movimentos populares.

Apesar do posicionamento oficial como um instituição apartidária, a CUT possuía relações bastante estreitas com o PT. Grande parte de seus dirigentes (e também de seus militantes) eram filiados, ou mesmo ocupavam cargos de direção no

partido. Os projetos de lei e o posicionamento da central eram apresentados e defendidos de forma quase exclusiva por parlamentares do PT. Sindicalistas ligados à CUT eleitos para o Congresso Nacional, como o presidente da CUT Jair Meneguelli (SP), Djalma Bom (SP), Paulo Paim (RS), Olívio Dutra (RS), Carlos Santana (RJ), etc., foram eleitos pelo PT.

Dentre essa bancada, o papel de maior destaque e sua liderança coube à Luís Inácio da Silva, ou Lula, eleito deputado federal-constituinte em 1986 com cerca de 650 mil votos por São Paulo, o deputado mais votado do Brasil. Para Lula, o PT, apesar de possuir apenas 16 deputados, poderia e deveria liderar as mobilizações dos movimentos populares e sua representação no Congresso. Agindo de forma articulada com o PCB, PC do B, PDT e PSB – totalizando 52 deputados - buscava o PT a ampliação dos votos ponto-a-ponto conforme a apresentação das questões, considerando que vários deputados de outros partidos (sobretudo do PMDB) teriam se comprometido com bandeiras populares durante o processo eleitoral.

Todavia, apenas a postura do PT não era considerada suficiente para se obter vitórias no campo democrático. Tratava-se de evidenciar as derrotas até então impostas aos setores populares e ao próprio PT, de forma a assegurar uma participação qualitativa, apesar do pequeno número de constituintes comprometidos com tais reivindicações. Para tanto, buscava-se estabelecer mecanismos eficientes de mobilização popular e de pressão durante os trabalhos do Congresso Constituinte.

A organização de entidades ligadas aos movimentos populares seria articulada através de uma Coordenação Nacional, objetivando a divulgação e ampliação das iniciativas existentes sobre questões como reforma agrária, direito dos trabalhadores, soberania nacional, liberdades políticas e individuais e autonomia sindical, entre outras. Participaram dessa iniciativa representantes da CUT, PT, CGT, PCdoB, ABI, MST, União das Nações Indígenas, Comissão Nacional das Associações de Moradores, Movimento dos Favelados, Comissão Pastoral da Terra, Articulação Nacional do Solo Urbano, Plenário Pró-Participação na Constituinte, Confederação dos Aposentados e Fórum Sindical.

A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em 01 de fevereiro de 1987 e, na praça em frente ao Congresso Nacional, ocorreu uma manifestação com cerca de 15 mil pessoas convocadas pela CUT, CGT e movimentos populares

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em misto de festa e reivindicação. Com a desqualificação do que seria o anteprojeto inicial, surgiram muitas dificuldades para a criação da nova Carta. Foram criadas 8 comissões temáticas, com 63 membros e 63 suplentes, e 3 subcomissões para cada comissão (24 subcomissões), que eram: 1 – Soberania, direitos do homem e da mulher; 2 – Organização de poderes e sistema de governo; 3 – Organização do Estado; 4 – Organização eleitoral, partidária e garantia das instituições; 5 – Sistema tributário, orçamento e finanças; 6 – Ordem econômica; 7 – Ordem social; 8 – Família, educação, cultura e esportes, ciência e tecnologia e

ºcomunicação. As propostas e debates decisivos do 1 turno de votação foram centralizados na Comissão de Sistematização, com 49 membros e 49 suplentes, presidida pelo Senador Afonso Arinos (PFL-RJ) um dos fundadores da UDN, participante das conspirações contra Getúlio Vargas e um dos articuladores do golpe militar de 1964 – além de ter liderado a comissão encarregada de redigir o anteprojeto e que recebia o seu nome. Arinos e o relator deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM) tinham como principal tarefa apresentar um anteprojeto baseado nos subsídios das comissões temáticas e subcomissões. Os constituintes tiveram 30 dias para apresentar propostas, bem como as de iniciativa popular. As que obtiveram maior destaque foram a proposta popular para reforma agrária, assinada por mais de 1 milhão de pessoas, e a de estabilidade no emprego, com 500 mil assinaturas. Devido à pluralidade e fragmentação de interesses, princípios, tendências e valores, à enorme e diferenciada quantidade de leis e projetos, as comissões temáticas e subcomissões somente apresentaram seus relatórios em 25 de maio. Em 9 de julho ficou pronta a primeira versão do projeto da Comissão de Sistematização e, após mais quatro versões, foi entregue a Ulysses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, em 18 de setembro. Em 3 de dezembro o regimento interno é modificado sob a pressão conservadora do “Centrão”, com o substitutivo Cardoso Alves aprovado com 290 votos.

Findo o processo inicial de propostas e emendas nas comissões temáticas, o texto iria para a Comissão de Sistematização, onde ficaria por 30 dias, após o que seria publicado e distribuído em forma de projeto, com os devidos ajustes, e apresentado à Constituinte. Teria início, então, a etapa das Emendas de Plenário e das Emendas Populares (com o mínimo

de 30 mil assinaturas), tudo num prazo de 30 dias. Emendado, o texto retornaria à Comissão de Sistematização, que teria 25 dias para elaborar parecer sobre as emendas, após os quais seria submetido à primeira votação geral. Uma vez votado, o texto da nova Constituição seria redigido, para o segundo turno de discussão e votação, pela poderosa Comissão de Sistematização. O percurso mais importante do texto constitucional seria concluído praticamente na primeira votação, quando a participação popular deveria ser mais intensa. Atentava-se que grande parte dos presidentes e relatores das subcomissões era formada por políticos de direita, comprometidos com interesses contrários aos dos trabalhadores.

Assim, a relatoria da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais ficou com Darcy Pozza (PDS-RS), que votou contra as eleições diretas e apoiou Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Conservador, combatia o “excesso” de liberdade que a esquerda teria no país. Favorável à privatização, defendia a abertura aos investimentos estrangeiros e, no tocante à divida externa, queria um acordo com o FMI. Além disso, era vinculado ao latifúndio e absolutamente contrário à reforma agrária. A presidência da importante Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado e da Atividade Econô-mica ficou com Antonio Delfim Netto (Dep. Fed. - PDS/SP). Apenas para relembrar: Delfim serviu os ditadores militares durante 17 anos, tendo ocupado as pastas da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), Agricultura e Planejamento (governo Figueiredo). Aliado de Maluf, sua campanha eleitoral foi financiada por empresários, pecuaristas, industriais brasileiros e dirigentes de multinacionais. Delfim, através do CEDES, teria sido o responsável pela “caixinha” para o financiamento da campanha de vários outros parlamentares, cerca de quarenta deputados federais e senadores, do PDS, PFL, PMDB

4e PDC . O presidente da Subcomissão de Política Agrícola e Reforma Agrária era Edison Lobão (PFL-MA), ex-Arena/PDS, rnalufista, defensor ardoroso do regime militar. Votou contra as diretas e defendia interesses do setor agrário, num dos estados em que a violência contra os trabalhadores rurais era das mais gritantes. Na Subcomissão de Tributos estava Benito Gama (PFL-BA), leal colaborador de Antônio Carlos Magalhães. Conservador, foi acusado de corrupção, devido a iniciativas pouco ortodoxas que teria tomado quando ocupou as secretarias de Transportes e da

5Fazenda da Bahia . O relator dessa Subcomissão era

4 DREIFUSS, René A., O Jogo da Direita, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 50-51. Esta obra não obteve ainda o devido reconhecimento ao mérito de sua pesquisa e de se constituir na melhor análise da organização empresarial e seus representantes no processo político da constituinte.5 CUT, Boletim Nacional, no. 15, setembro de 1987.

60 - A CUT e a mobilização popular na Constituição de 1988

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6 CUT, Boletim Nacional, no. 12, entrevista com Vicente Paulo da Silva, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP7 O que se tentaria viabilizar, muitos anos depois no Governo Lula, através do Fórum Nacional do Trabalho.

História & Luta de Classes - 61

Fernando Bezerra Coelho (PMDB-PE), que rompeu com o ramo rural da oligarquia Coelho, de Pernambuco, e era ligado a Marco Maciel com quem formou o PFL. Já a Subcomissão de Orçamentos tinha como presidente o malufista-delfinista João Alves, ex-Arena/PDS, que se absteve de votar a emenda das Diretas, não votou no Colégio Eleitoral e foi apontado como o principal responsável pelo esquema de corrupção existente por anos na Comissão de Orçamento da Câmara, sendo cassado pelo Congresso Nacional em 1993. O relator dessa subcomissão José Luiz Maia, teve um passado como militante de esquerda, mas tornou-se conservador, industrial e pecuarista.

O capítulo referente aos Direitos dos Trabalhadores na Constituinte seria fundamental para a CUT. Questões sobre o salário mínimo, jornada de trabalho, Lei de Greve, liberdade e autonomia sindical foram os pontos onde a central balizou sua luta, considerando-os vitais para construir modernas relações de trabalho no país. As propostas da CUT eram claras e simples. A primeira delas, salário míni-mo unificado nacionalmente, capaz de satisfazer efetivamente as necessidades normais do trabalhador e de sua família. Para a determinação do valor do salário mínimo deveriam ser consideradas as despesas com alimentação, habitação, educação, vestuário, transporte, higiene, saúde e lazer, ou seja, a fixação do mínimo deveria acompanhar o le-vantamento mensal do custo de vida realizado pelo DIEESE, Fundação Getúlio Vargas e IBGE. E mais: sempre que o custo de vida registrasse elevação de 5%, automaticamente o mínimo deveria ser reajustado.

Outro tema importante seria a jornada de trabalho. Para Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo na década de 1980, presidente nacional da CUT nos anos 90 e atualmente deputado federal do PT/SP, “não é justo que os trabalhadores sacrifiquem seu lazer, suas horas de descanso, em função de uma jornada de trabalho massacrante: A Constituinte precisa delimitar a jornada de trabalho em 40 horas”, afirmava o sindicalista. E justificava: a redução da jornada propiciaria a criação de novos empregos e o trabalhador teria mais tempo para sua família. Com relação à liberdade e autonomia sindical, defendida pela CUT e pelos setores mais avançados do sindicalismo brasileiro, Vicentinho seria contundente: sem a imediata ratificação da

Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) qualquer legislação trabalhista ficaria capenga. A Convenção 87 garantiria ao trabalhador a redação dos estatutos e regulamentos do seu sindicato: a eleição livre de dirigentes, delegados sindicais e representantes nos organismos de base; e a formulação e condução da ação sindical, daí sua

6importância .

A ratificação da Convenção 87 implicaria a revogação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com reflexos imediatos sobre as relações do trabalho instituídas pela CLT, que, desde sua adoção, só teriam causado prejuízos ao trabalhador: intervenções nos sindicatos, cassações de mandatos dos diretores, restrições ao direito de greve, dificuldades nas negociações coletivas e arrocho salarial. Vicentinho observaria que a ratificação da Convenção 87 acabaria não apenas com a CLT, mas com toda a legislação trabalhista autoritária, abrindo caminho para a elaboração de um Código de Trabalho que ampliasse o espaço de liberdade dos

7trabalhadores e de suas organizações .

As classes dominantes procuravam apre-sentar a Assembléia Nacional Constituinte como uma instituição neutra, na qual os “representantes do povo” estariam acima das classes e teriam como missão elaborar uma Constituição que respeitasse igualmente os interesses de “todo o povo”. Retirando do povo sua soberania e seu poder originário, pois “todo o poder emana do povo”, o Congresso Constituinte era apresentado utopicamente, mistificado, como conferindo o mesmo peso e o mesmo valor a todas as classes, da burguesia aos operários, aos trabalhadores do campo e aos excluídos (os miseráveis da terra, dos indígenas aos favelados).

A CUT, procurando desmascarar essa farsa, denunciava os investimentos que as diferentes frações da classe burguesa fizeram nas campanhas eleitorais para conquistar uma maioria imbatível no Congresso Nacional; identificava as alianças dessas frações de classe, através dos seus partidos e do governo, para conquistar a qualquer preço o controle do processo constituinte, e divulgava as soluções que se procurava impor à Nação nas Comissões Temáticas e na Comissão de Sistematização. Os grupos dominantes, além de suas amplas maiorias nas Comissões Temáticas, mobilizaram todas as formas de pressão e de agressão para fazer uma Constituição que contemplasse os interesses e os alvos políticos da

8burguesia .

8 A melhor análise sobre a articulação da burguesia para a eleição de representantes para o Congresso Constituinte é: DREYFUSS, René Armand, O Jogo da Direita, Petrópolis, Vozes, 1989

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09 CUT, Boletim Nacional, no. 15, setembro de 1987. 10 CUT, Boletim Nacional, no. 15, setembro de 1987.

Nas vésperas da entrega do substitutivo do relator da Comissão de Sistematização, Bernardo Cabral, ao Congresso Constituinte, sob suas promessas de garantir a estabilidade no emprego, redução da jornada de trabalho e aposentadoria por tempo de serviço, os trabalhadores aguardavam que as 122 propostas de emendas populares à Constituição, entregues num conturbado ato solene na rampa do Palácio do Planalto, dia 12 de agosto, fossem observadas.

Foram mais de 15 milhões de assinaturas recolhidas, o que representava 25% do total de cidadãos brasileiros com direito a voto, que somavam cerca de 69 milhões em 1987. As propostas de emendas de iniciativa popular e subscritas pela CUT, junto com outras entidades (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Comissão Pastoral da Terra, Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, Federação Nacional dos Jornalistas, Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, Sindicato dos Metalúrgicos de São Ber-nardo do Campo, Partido dos Trabalhadores e a Central Geral dos Trabalhadores — CGT), foram as mais procuradas, somando 1.708.598 assinaturas. As duas propostas de emenda sobre os “Direitos dos Trabalhadores” subscritas pela CUT, receberam 630.714 e 272.624 assinaturas. Já as duas emendas a favor da reforma agrária conseguiram juntas, 1,2 milhão de assinaturas. Outras propostas que atraíram bastante as atenções populares foram as de “Ordem Econômica e Social'', ''Diretas - Já'' e ''De-mocratização dos Meios de Comunicação”. Merecem destaque, ainda, propostas que, se incluídas no texto da Constituição assegurariam direitos fundamentais como a preservação do “Monopólio Estatal do Petróleo'', “Direito das Mulheres'', ''Participação

9Popular'' e ''Ensino Público e Gratuito'' .

Em 24 de setembro de 1987 se iniciaria uma fase decisiva para os trabalhos do Congresso Constituinte. Foi o começo da votação do projeto de Constituição, conhecido então como Substitutivo Bernardo Cabral, na poderosa Comissão de Sistematização. Formada por 92 constituintes, eram necessários 47 votos para qualquer inclusão ou supressão no texto. Os parlamentares ligados ao movimento sindical e popular somavam entre 20 e 30 votos, variando conforme o tema. Assim, era menos difícil conseguir a diferença necessária de votos nessa comissão através de pressão do que na fase seguinte. No plenário, qualquer alteração precisaria de possuir 50% dos votos mais um, isto é, 281 constituintes.

Uma das manifestações da forma de pressão

proposta pela CUT foi o encontro de sindicalistas de 10 Estados, representando 40 entidades, entre as quais a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), a Confederação de Professores do Brasil (CPB) e Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais (FENAJ), reuniram-se no dia 15 de setembro com o relator da Comissão de Sistematização da Constituinte, deputado Bernardo Cabral, para apresentar, formalmente, as exigências e reivindicações que a classe trabalhadora quer garantidas na Constituição. O encontro foi uma iniciativa da CUT e contou com o apoio decisivo da bancada do PT, liderada pelo deputado Lula, que em carta dirigida aos sindicatos, a 2 de setembro, alertava:

Este projeto (apresentado pelo relator Bernardo Cabra!) retira a maioria das conquistas dos trabalhadores que tinham sido contempladas nas fases anteriores da Constituinte. E o caso, por exemplo, da estabilidade no emprego e da redução da jornada de trabalho. Mas o pior de tudo neste novo projeto é que ele não se limita a não atender as reivindicações dos trabalhadores, chega a suprimir até mesmo direitos já

10adquiridos' .

Falando no Congresso Nacional, em nome dos sindicalistas, Jair Meneguelli, presidente da CUT, reclamou da não inclusão no substitutivo da estabilidade no emprego, da aposentadoria sem limite de idade, da jornada de 40 horas semanais e de reforma agrária, entre outros itens, destacando que as emendas que tratavam desses direitos haviam recebido o maior número entre as 15 milhões de assinaturas nas emendas populares. Após destacar que o país vivia um momento crítico, que dispensava discursos, Cabral prometeu aos lideres sindicais na ocasião a inclusão, em seu relatório, dos seguintes itens: 1) aposentadoria por tempo de serviço, sem limitação de idade; 2) estabilidade no emprego, provavelmente após 90 dias de experiência; 3) direito de greve; 4) ensino gratuito, além de l8% de verbas da União e 25% de Estados e municípios para a Educação. Questões polêmicas como a reforma agrária ficaram para serem decididas em votação plenária. A redução da jornada ficaria para uma tentativa de solução consensual, junto aos empresários.

O encontro representou um avanço, na medida em que os trabalhadores foram ouvidos e arrancaram, pelo menos, promessas do relator. Mas, conforme destacaram Meneguelli e Lula, ainda

62 - A CUT e a mobilização popular na Constituição de 1988

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permanente.

Eleger uma Coordenação Nacional integrada pelas entidades que compuseram a mesa desta Plenária: CGT, CUT, Contag, Conam, Andes, CPB, Fenaj, UNE, CTBC, CNTI, Contcop, e de uma Secretaria Executiva composta pelos representantes da CGT, CUT, Contag, Conam, Inesc e Diap. (...)

Propor a organização de comitês em cada Estado e nas principais cidades e municípios, constituídos à semelhança da Coordenação N a c i o n a l , p a r a a r t i c u l a r a l u t a localizadamente.

Organizar formas de lutas concretas e imediatas como manifestações, atos públicos, painéis, pichações, enterros simbólicos, denunciando nome a nome os parlamentares que votaram contra os interesses populares. A Plenária marcou o dia 17 de dezembro como Dia Nacional de Denúncia, através de pichações e

12panfletagens .

COMPOSIÇÃO DA COMISSÃO DE SISTEMATIZAÇÃO

VOTOS DA COMISSÃO DE SISTEMATIZAÇÃOCAPÍTULO II – DIREITOS DOS

TRABALHADORES

História & Luta de Classes - 63

garantir os direitos dos trabalhadores, em um plenário majoritariamente de direita.

No dia 03 de dezembro de 1987 a CUT e mais de duas centenas de entidades sindicais e populares reuniram-se em Brasília na “Plenária Nacional de Entidades Sindicais, Populares e Democráticas”, defendendo as escassas conquistas, como a garantia no emprego, a licença remunerada para gestante e a (mini) reforma agrária. Denunciavam o golpe do “Centrão”, promovendo a alteração do regimento interno com o voto de 280 constituintes, numa intensa mobilização onde não faltaram “jatinhos” para o transporte dos parlamentares, com o patrocínio de entidades como União Democrática Ruralista (UDR), União Brasileira de Empresários (UB), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), Câmara de Estudos e Debates Econômicos e Sociais (CEDES), Instituto Liberal, Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Associação Brasileira de

11Defesa da Democracia (ABDD), etc . As entidades reunidas na “Plenária” lembravam que aqueles que representavam os interesses de empresários e grandes proprietários rurais, possuíam a maioria dos votos, mas não eram de “centro” e sim de direita, e não contavam com o apoio da maioria do povo brasileiro. Símbolo dessa sessão é a foto do líder do PFL, deputado federal José Lourenço (PFL-BA), fazendo um gesto obsceno para as galerias (onde estavam os representantes dos movimentos populares). Este gesto, mais do que um ato impensado, simbolizaria o escárnio da classe dominante contra os trabalhadores brasileiros.

A Plenária Nacional de Entidades Sindicais, Democráticas e Populares lançou, na noite do mesmo dia 03/12/87, uma declaração contra as mudanças no Regimento Interno e a ação anti-democrática do “Centrão”. Após a análise dos acontecimentos, decidiram:

a) Constituir uma Frente Nacional de Entidades Sindicais e Populares em defesa dos direitos do povo na Constituição, aberta à participação de todos os setores dispostos a levarem adiante esta luta.

Declarar, imediatamente, estado de alerta nacional, recomendando ao movimento sindical que se declare em assembléia

11 Ver:DREIFUSS, René A., O Jogo da Direita, Petrópolis: Vozes, 1989.MICHILES, Carlos (et al.), Cidadão constituinte: a saga das emendas populares, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.12 Declaração da Plenária Nacional de Entidades Sindicais, Democráticas e

Populares, in: CUT, Boletim Nacional, no. 17, dezembro de 1987. Assinam o documento: CGT, CUT, Contag, Conam, Andes, CPI3, Fenaj, UNL, CTBC, CNTI, Contcop. Além de 28 federações, 47 entidades populares, 51 associações profissionais, 177 sindicatos, 11 entidades da sociedade civil, de 19 estados brasileiros.

5022060303020101010101

PartidosPMDB

PFLPDSPDTPTBPT

PCBPcdoBPSBPL

PDCTOTAL 93

Titulares301204020101010101010155

Suplentes8034100504030202020202148

Total

VOTOS

SIM

NÃO

ABSTEN.

TOTAL

38

53

02

93

LULA

35

58

00

93

CABRALI

36

48

09

93

EMPRES.

40

50

03

93

40H.

05

79

09

93

EST. SIND.

59

18

16

93

UNIDICID.

Fonte: CUT, Boletim Nacional, no. 16, outubro/novembro de 1987.

Fonte: CUT, Boletim Nacional, no. 16, outubro/novembro de 1987.

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Para o Capítulo II dos Direitos dos Trabalhadores, considerado crucial para os interesses da classe trabalhadora, pois incluía direito de greve, estabilidade de emprego, jornada de trabalho de 40 horas semanais e autonomia sindical perante o Estado, foram votados os seguintes projetos: “Lula” – o texto apresentado pelo deputado federal Luís Ignácio Lula da Silva (PT-SP) representava as propostas gerais da CUT e CGT, em emenda popular com cerca de 700 mil assinaturas; “Cabral 1” – texto do deputado federal Almir Pazzianotto (PMDB-SP) apoiado pela liderança do PMDB, que adiava a garantia de emprego para lei ordinária; “Empresários” – emenda que estabelecia a indenização no lugar da garantia no emprego, encaminhada através do deputado federal Darcy Pozza (PDS-RS) e da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS); “40 horas” – emenda do deputado federal Brandão Monteiro (PDT-RJ), estabelecia o limite da jornada de trabalho em 40 horas semanais; “Unicidade” – texto defendido por todas as correntes políticas que mantinha a unicidade sindical – e sua vinculação ao Estado – sendo a oposição formada apenas pela CUT e o PT, que defendiam a autonomia sindical e o pluralismo.

A bancada da esquerda nessa comissão era muito reduzida. Considerando como base os membros do PT, PDT, PCB, PC do B e PSB, somava 08 titulares e 06 suplentes, totalizando14 parlamentares. O melhor momento, traduzido em número de votos, ocorreu na votação do texto de “Lula” e na das “40 horas”, com 38 e 40 votos dentre o universo de 93 votantes. Já o momento de pior desempenho do PT ocorreu na defesa de uma nova estrutura sindical: na questão da unicidade, os deputados do PT tiveram a companhia do voto de alguns colegas do PFL e do PMDB (18 votos); já quanto à autonomia, o texto defendido pelo PT obteve apenas os votos de seus representantes (02) e os do PDT (03), totalizando 05 votos.

Pode-se concluir que, além dos partidos supracitados, a bancada de esquerda conseguia aglutinar alguns parlamentares do PMDB em votações pontuais, cerca de 23 membros da comissão de sistematização mais ou menos afinados em torno de alguns princípios. Parlamentares do PMDB, como Miro Teixeira (RJ), Artur da Távola (RJ), Nelson Jobim (RS), Aécio Neves (MG), Cristina Tavares (PE), Mário Covas (SP), entre outros.

Um dos mais sagazes críticos da realidade

brasileira, o deputado-constituinte e sociólogo Florestan Fernandes (PT-SP), intelectual-orgânico ligado à tendência petista Democracia Socialista, analisava prospectivamente em 1987 o papel dos trabalhadores na Constituinte. Para ele, os trabalhadores deveriam pôr de lado as ''ilusões constitucionais'', disseminadas pelos meios de comunicação e impostas como parte da ideologia da classe dominante. Primeiro, os trabalhadores precisariam encarar a Constituição como ela é: ela organiza, sanciona e legitima a distribuição da riqueza e do poder na sociedade capitalista, não “igualmente” para todo o povo, mas seguindo o modelo de desigualdade econômica, cultural e de dominação de classe que impera na sociedade civil. Segundo, os trabalhadores precisariam encarar a própria “Assembléia Nacional Constituinte" como um campo no qual proletários e burgueses se enfrentariam como classes antagônicas e irreconciliáveis. Na Constituinte a sociedade civil apareceria de cabeça para baixo, invertida. A minoria dominante, graças aos artifícios da democracia burguesa e dos mecanismos eleitorais, torna-se maioria parlamentar. A maioria social surgiria ali como uma minoria parlamentar, graças aos partidos políticos proletários e aos setores dissidentes da burguesia, que constituem a sua esquerda e se aliam de modo oscilante àqueles

13partidos (o PT, o PDT, o PS, o PC do B e o PCB) .

Os embates constitucionais desenrolavam-se, nesse sentido, no âmago das lutas políticas das classes trabalhadoras com a grande burguesia nacional e estrangeira. As aparências superficiais demonstrariam apenas o interesse de começar e terminar em um “melhorismo” econômico e em um “mudancismo” democrático. Florestan alertava que, se tudo permanecesse igual, salvo certas alterações para satisfazer aos anseios de “participação popular” das classes trabalhadoras, a Constituição poderia passsar por “democrática” e ''satisfazer a todos”, dando a falsa impressão de que “todos” foram

14vitoriosos .

Antes mesmo da promulgação da Carta, a reação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) ficara expressa no título de uma publicação sua: "Transformar em Carvão a Constituição". O MST explicitava a sua derrota para a articulação dos grupos conservadores que imprimiram no texto constitucional um retrocesso do encaminhamento da questão agrária. A "CUT Pela Base" - uma tendência interna da CUT formada por militantes sindicais ligados as correntes petistas

13 FERNANDES, Florestan, “Burguesia usa poder econômico para controlar o processo constituinte”, in: Boletim Nacional da CUT, no. 14, julho/agosto de 1987. 14 Idem, ibidem.

64 - A CUT e a mobilização popular na Constituição de 1988

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Democracia Socialista, Vertente Socialista, PRC, e outras - defendia no III CONCUT (BH - 1988) esta mesma palavra-de-ordem, que mesmo não sendo assumida pela direção (composta em sua maioria pela Articulação Sindical), resultou na aprovação em plenário da proposta de rejeição da nova Carta. Percebe-se assim a relação de correntes políticas presentes tanto no PT como na CUT e sua relação com o MST. Esse intenso debate sobre a aprovação ou não da nova Constituição suscitava o posicionamento sobre o compromisso com a lei e a ordem institucional ou a sua negativa e a denúncia de seu caráter conservador, nos três principais representantes políticos do campo popular-democrático no Brasil.

História & Luta de Classes - 65

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Escombros do muro de Berlim

sobre o PT e a CUT1Teones França

desse conjunto de sindicalistas, que seguiam ainda no final da década de 1980 tratando o socialismo de maneira positiva.

E n t r e t a n t o , a p ó s 1 9 8 9 , c o m o recrudescimento dos fatos na Europa oriental, os documentos cutistas procuram diferenciar a posição defendida pelos sindicalistas brasileiros daquilo que ruía no velho continente. Nesse sentido é interessante analisar as teses das correntes internas da CUT, apresentadas ao 4º Congresso dessa Central, em 1991, pois praticamente todas – dezoito ao todo – entendiam que o que aconteceu na Europa não indicava o fim do socialismo, mas sim da sua faceta mais autoritária e burocrática implantada pelo stalinismo.

Como sabemos que desde sempre uma das principais características dessa Central Sindical era a divergência entre suas correntes internas, como explicar o quase consenso sobre o socialismo real e a superficialidade nas análises sobre o fim desse modelo?

Seria muito difícil encontrarmos a resposta para essa questão estudando apenas os textos escritos pelos sindicalistas das diversas correntes que faziam parte da CUT naquele momento. Por isso resolvi verificar também documentos dos agrupamentos políticos-partidários que compunham as correntes sindicais cutistas e concluí que nestes, as análises sobre os acontecimentos do leste europeu eram muito mais densas, permitindo identificar diferenciações entre os grupos até então não observadas.

Neste artigo irei me ater apenas a duas dessas correntes: a Articulação, corrente majoritária tanto na direção do PT quanto na da CUT; e a Convergência Socialista, que era uma corrente minoritária nessa Central no início dos anos 1990, ferrenha opositora da Articulação e que também integrava o PT até 1992.

A o longo dos anos 1990 muito se falou nas ciências sociais brasileiras sobre a crise do que se convencionou chamar de novo sindicalismo. Dentre as possíveis causas que teriam influenciado nessa crise, comumente ressaltava-se o fim do socialismo real no leste europeu a partir do início daquela década. O presente artigo preocupa-se em revisitar esse tema, à luz de uma análise mais detida sobre o ponto de vista de correntes que compunham naquele momento a Central Única dos Trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores – Articulação e Convergência Socialista – perspectivando, com isso, contribuir de alguma forma para o debate recente acerca dos problemas vivenciados pelos movimentos sociais em nosso país.

Desde o seu nascimento, em 1984, os encontros cutistas foram permeados por discursos favoráveis ao socialismo. No entanto, é no seu 2º congresso, em 1986, que em suas resoluções percebemos uma defesa mais enfática desse sistema:

A democracia que queremos é a democracia sem miséria, é a democracia de terra e trabalho para todos, a democracia de uma sociedade igualitária, sem explorados e exploradores. Uma sociedade socialista. (...) O compromisso histórico da CUT: impulsionar a luta sindical dos trabalhadores, na perspectiva de construir uma sociedade socialista. (...) A alternativa dos

2trabalhadores para a sociedade é o socialismo...

Os componentes dessa Central Sindical demonstravam também que mesmo antes da queda do muro de Berlim, em 1989, percebiam as alterações que ocorriam nos países do socialismo real. Em 1988 era consenso no interior dessa instituição que seria de grande importância “acompanhar as mudanças que hoje se verificam nos países do bloco socialista, e que poderão trazer novas contribuições para a

3construção do socialismo” . As, até então, recentes medidas tomadas por Mikhail Gorbatchev na antiga União Soviética, que geraram alvoroço na imprensa mundial, não passavam, assim, incólumes aos olhos

1 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense.2 Resoluções do 2º Congresso Nacional da CUT, 1986. pp. 6-8.3 Resoluções do 3º Congresso Nacional da CUT, 1988. p. 7.

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4 Uma proposta democrática, de massas e socialista para o PT, 1986. p. 1.

68 - “Escombros do muro de Berlim sobre o PT e a CUT

Todos os documentos pesquisados eram de domínio público, pois acredito que o que mais nos interessa nesse momento é justamente a posição que esses grupos expressavam publicamente. De antemão, saliento que não é intenção deste texto apresentar a minha opinião quanto a essas questões, mas tão somente analisar as posições dos agrupamentos políticos estudados. Por outro lado, admito que apesar de adotarem a mesma denominação os agrupamentos sindicais não são a mesma coisa que os agrupamentos partidários, mas isso não prejudica os objetivos traçados neste texto.

Articulação

Ao contrário das outras correntes políticas, integrantes da Articulação, aparentemente, não se preocupavam com uma homogeneidade quanto ao discurso público sobre posições acerca do marxismo e do socialismo. Por isso, é possível verificar membros que se reivindicavam desse agrupamento com opiniões nem sempre convergentes, sem a preocupação – exceto nas teses apresentadas aos encontros do PT e da CUT – de expor seus pensamentos como frutos de elaborações coletivas. Entretanto, tal fato não nos impede de estabelecer uma coerência nessas posições e extrairmos uma síntese da visão dessa corrente acerca das temáticas analisadas.

No 4º Encontro Nacional do PT, em 1986, o documento aprovado, que havia sido defendido pela Articulação, apresentava a construção do socialismo como orientação da prática partidária. Cabe lembrar que este foi também o ano em que se realizou o 2º Congresso da CUT, encontro este em que – como já salientei – transparecem os indícios mais nítidos de defesa do socialismo por esta Central. No texto petista encontramos trechos como o que segue abaixo:

A superação definitiva da exploração e da opressão sobre o povo brasileiro não se dará com simples reformas superficiais e paliativas, mas sim com a ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de uma sociedade sem classes, igualitária, que, por meio da socialização dos principais meios de produção, vise a abundância material para atender às necessidades materiais, sociais e culturais de todos e de cada um de seus membros, ou seja, a construção do socialismo. E embora não esteja colocada, para o conjunto da classe trabalhadora, a consciência dessa necessidade, é possível af i rmar que o es tágio do

desenvolvimento do capitalismo (...) já apresentam as condições necessárias para as lutas que (...) ampliem o espaço democrático (...) na direção da construção de uma sociedade

4socialista .

A análise tem como centro defender a necessidade de uma sociedade socialista, onde a partir da socialização dos meios de produção, produza-se uma abundância material que erradique a fome e os problemas sociais do país. No entanto, se por um lado não haveria ainda as condições subjetivas – o problema da consciência – para se alcançar tal sociedade naquele momento, por outro, os aspectos objetivos – o desenvolvimento do capitalismo – permitia acumular forças na ampliação “dos espaços democráticos” que colocariam a sociedade rumo ao socialismo.

A defesa do socialismo está presente nessas afirmações, mas já se faz a alusão que ele será alcançado a partir da ampliação da democracia no interior da sociedade. Para compreender melhor isso não podemos esquecer que o momento da construção desse texto coincidia com o fim da ditadura militar em nosso país e que era uma marca também nos documentos da CUT a defesa enfática da democracia.

Em 1989, ano da derrubada do muro na Alemanha, o programa de governo do candidato do PT à presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva – intitulado Projeto democrático popular –, embora defendesse o socialismo, indicava novos traços na análise de conjuntura da corrente majoritária desse partido:

Por meio de um processo simultâneo de acúmulo de forças, enfrentamentos e conquistas dos trabalhadores criaremos as condições para dar início às transformações socialistas no Brasil. (...) A implementação de um programa democrático e popular só pode ocorrer com a revolução socialista (...) o socialismo ou é obra dos trabalhadores ou jamais será socialismo. Por isso, estamos dispostos a disputar em todos os campos da hegemonia na sociedade e chegar ao socialismo pela ação e pela vontade das maiorias. Pelo desejo do povo e dos

5trabalhadores .

A influência do referencial teórico gramsciano é bastante perceptível no trecho acima e isso não é mera coincidência, pois na passagem da década de 1980 para a seguinte as idéias do marxista italiano ganharão espaço nos setores mais intelectualizados vinculados aos trabalhadores brasileiros.

5 “Diretrizes para a elaboração do programa de governo”. In: PT. Resoluções de encontros e congressos. S.P.: Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 401-402.

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6 Tese da Articulação Sindical. 6º Congresso Estadual da CUT/RJ, 1990.7 Por um Brasil democrático e popular. Tese da Articulação ao 1º Congresso do

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No entanto, a idéia de “disputar em todos os campos da hegemonia na sociedade” para se chegar ao socialismo pela vontade das maiorias, demonstra que esse referencial é utilizado de forma singular pelo setor majoritário da CUT e do PT para justificar a tese desse grupo naquele momento que advogava a possibilidade de chegada ao poder dos trabalhadores a partir de conquistas eleitorais que abririam caminho progressivamente no estado burguês. A meu ver, uma leitura imprópria dos conceitos gramscianos de guerra de posição e hegemonia, porque termina por desconsiderar, ao contrário de Gramsci, o conflito entre as classes e o fato de que a disputa hegemônica se dá no seio da sociedade civil e não na sociedade política.

Por outro lado, a mesma passagem do trecho, que foi destacada no parágrafo anterior, indica também o início da influência dos acontecimentos do leste europeu – e da Praça Tian Amen, na China – sobre essa corrente e, assim, aos governos das minorias no socialismo real, se contrapunha o “socialismo pela ação e pela vontade das maiorias”. Da mesma forma, a denominação democrático e popular fazia sentido como oposição ao autoritarismo burocrático stalinista.

Não é descabido incluir em nossa avaliação a seguinte lógica: por mais que a débâcle dos regimes que havia na Europa oriental já influenciasse em meados de 1989 a análise desse grupo sobre a realidade mundial e sobre a sociedade que objetivavam alcançar, a campanha ideológica da burguesia contra o socialismo ainda não tinha naquele momento o peso que alcançaria meses seguintes, o que fazia com que o socialismo continuasse a ser elemento importante como aglutinador das esquerdas e diferenciasse estas dos grupos considerados conservadores.

Em 1990, num encontro da CUT, a Articulação apresentava de maneira mais precisa a caracterização que fazia dos governos do leste europeu e afirmava que enxergava “nos regimes burocráticos [da Europa oriental], apesar de todas as tendências de retorno ao capitalismo, o colapso do sistema de partido único, de falta de democracia, de participação dos trabalhadores nas decisões, da ilusão estalinista de construção do socialismo num só

6país...” .

Características até então praticamente consensuais no conjunto dos sindicalistas brasileiros. Mas o que mais impressiona é a associação, apesar de

bastante superficial, à tese trotskista que identificava como equivocada a defesa que fazia Stalin da possibilidade do socialismo vingar em um único país.

Um ano mais tarde, porém, esse agrupamento no interior do PT não enxergava mais as principais características daqueles governos como conseqüências do período stalinista e avançava suas críticas a Lênin:

O colapso dos regimes do leste europeu, a crise da URSS e dos demais países que compunham o bloco do chamado 'campo socialista' não se constituiu apenas no crepúsculo do stalinismo, da burocracia e do totalitarismo travestido de socialista. Num certo sentido, o que se está vendo é o desmantelamento de grande parte daquilo que o movimento socialista mundial construiu desde a Revolução Russa de outubro

7de 1917 .

Mais do que o fim do stalinismo, a crise do socialismo real passava a expressar para essa corrente o esfacelamento do acúmulo construído nesse campo a partir de outubro de 1917, ou seja, iguala-se toda a experiência construída no mundo pelos socialistas ao longo do sécu lo XX. Ao ev i t a r, s em constrangimentos, a diferenciação entre Lênin e Stalin, a Articulação se afastava não apenas do socialismo adjetivado de stalinista, mas de qualquer tipo de socialismo que se associasse a Marx e a Lênin.

Entretanto, essa corrente passava a apresentar uma proposta alternativa de socialismo que buscava afastar o grupo e o PT de qualquer pedaço do muro derrubado no leste europeu. Em 1991, seis anos após o final do regime ditatorial no Brasil e com o socialismo real devidamente enterrado, a Articulação defendia a seguinte tese no congresso petista:

A prática e a teoria do PT sempre rejeitaram como modelo para o Brasil os sistemas políticos organizados sobre a base do regime de partido único, dos sindicatos como engrenagens do Estado, da estatização forçada e irrestrita da atividade econômica (...) tudo aquilo, enfim, que ficou conhecido como a ditadura do proletariado. (...) [O projeto proposto de socialismo] prevê, portanto, a existência de um Estado de direito no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas (...); onde os mecanismos de democracia representativa, libertos da coação do capital, devem ser conjugados com formas de participação direta do cidadão nas decisões econômicas, políticas e

8sociais .

PT, 1991. p. 3.8 Idem. pp. 8 e 12.

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Novamente percebemos a intenção de se afastar da crise do leste europeu, afirmando que tudo o que havia por lá nunca foi defendido pela corrente ou mesmo pelo partido. No entanto, a preocupação em também se afastar do referencial teórico de Marx acaba por associar um de seus principais conceitos – a ditadura do proletariado – a aspectos existentes nos

9regimes do socialismo real . É possível que esta associação tenha sido ocasionada por mera confusão

10teórica , mas a verdade é que em muito se assemelhava às análises apresentadas naquele período pela grande imprensa em sua campanha ideológica da mor te do soc ia l i smo e , conseqüentemente, das idéias de Marx.

Outro aspecto que merece ser destacado é que a democracia proposta pela Articulação no congresso petista, longe de qualquer princípio socialista, está bastante próxima da ideologia liberal tal qual como a conhecemos no pensamento clássico. Podemos verificar isso no clamor pelo Estado de direito, pela democracia representativa e pela alternância de poder.

A distância entre as afirmações dessa corrente em 1986 e as de cinco anos depois pode se explicar pelo fato do PT governar cidades brasileiras importantes no início dos anos noventa, além de ter a possibilidade concreta de chegar à presidência da República nas eleições de 1994, o que fazia com que a direção desse partido nutrisse a preocupação de apresentá-lo como um bom administrador do Estado capitalista.

Lula, um dos principais expoentes dessa corrente, apontava algumas pistas nessa direção:

É chegado o momento de as correntes pararem de tentar impor esta ou aquela visão de socialismo e pensarem como deve ser o socialismo do PT, um partido que governa cidades importantes, que tem chance de governar estados importantes, que pode ganhar a Presidência da República.

Na mesma entrevista, Lula suscita que o PT até poderia seguir falando em socialismo, mas isso não seria um projeto para o presente e, portanto, ter um projeto para o imediato – para a possibilidade iminente de administrar governos e até o país – era o

que importava:

A minha opinião é que nesse congresso [do PT, em 1991] nós devemos ser muito mais pragmáticos do que fomos até agora, pois o PT tem a perspectiva de chegar ao governo em 1994. (...) O PT vai ter que deixar de só formular propostas para um futuro muito distante e

11apresentar soluções para o presente .

Dessa forma, é nítida a mudança ocorrida na posição desse grupo a respeito do socialismo a partir dos acontecimentos do leste europeu que tiveram início em fins da década de oitenta e sua busca por chegar ao poder, em nome dos trabalhadores, pela via eleitoral. É claro que, além do fim do socialismo real podemos citar outros elementos influenciadores desse projeto, como a redemocratização da sociedade brasileira e a conquista de diversas prefeituras no país pelo PT, mas inegavelmente a diminuição na ênfase de afirmações em prol do socialismo deve-se muito aos ventos que sopravam a partir da Europa oriental.

Convergência Socialista (CS)

O agrupamento partidário dessa corrente que se encontrava no interior do PT editava, no período em questão, um jornal semanal, o que fez com que a pesquisa sobre as posições da CS se detivesse sobre um material bem mais farto que o encontrado sobre a Articulação. Podemos supor que isso se devia ao fato da Articulação ser o grupo majoritário no interior do PT e as posições daquela ser em grande medida as mesmas deste.

No congresso da CUT de 1991 a Convergência apresentava o seu ponto de vista a respeito do tipo de regime que ruía naquele momento no leste da Europa, assim como indicava o principal responsável pelos problemas gerados aos trabalhadores por aqueles governos:

Os acontecimentos que abalaram o Leste Europeu durante todo o ano de 1989 significaram um enorme avanço revolucionário. As massas trabalhadoras do Leste levantaram-se contra a opressão das ditaduras burocráticas que governavam sob a mais feroz repressão. Ao mesmo tempo, mobilizaram-se contra a deterioração de suas condições de vida, provocadas pela política desastrosa do

9 De acordo com a leitura que podemos fazer de apenas algumas obras de Marx (Crítica ao Programa de Gotha), Engels (Anti-Dühring) e mesmo de Lênin (O Estado e a Revolução), a ditadura do proletariado deveria corresponder a um Estado democrático, mas apenas para o proletariado e os que não possuíam nenhum tipo de propriedade; em contrapartida, deveria ser um Estado ditatorial apenas para a burguesia e os outros setores igualmente minoritários na sociedade e que outrora representavam a classe dominante. Ora, definitivamente, não era isso que havia no leste europeu até inícios dos anos 1990. Ademais, para Marx, a ditadura do proletariado (ou o Estado controlado

pelos trabalhadores) só seria necessário até o momento de se alcançar a “segunda fase do comunismo”, momento da real democracia, onde existiria a plena liberdade e o trabalho não seria mais escravizador e sim bem-feitor de coisas úteis para o conjunto da sociedade.10 Numa reportagem da Revista Exame, de 21 de agosto de 1991, líamos que Vicentinho e Meneguelli – ambos, naquele momento, membros da Articulação e que foram presidentes da CUT ao longo dos anos 1990 – nunca haviam lido um livro marxista até então.11 Lula, em entrevista à Revista Teoria e Debate. Nº 13, 1991. p. 10.

70 - “Escombros do muro de Berlim sobre o PT e a CUT

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12 Caderno de Teses do 4º Congresso da CUT, 1991. p. 37.13 Jornal da Convergência Socialista. 1, 1989. p. 11.14 Jornal da CS. 19, 1991. p. 11.

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stalinismo de querer construir o 'socialismo em um só país' (...) Ao contrário do que a propaganda do imperialismo tanto falou, com a derrubada das ditaduras burocráticas do Leste, o socialismo não acabou. O que acabou foi a

12grotesca caricatura de socialismo...

A CS acreditava que a responsabilidade total pelo que ocorria no leste da Europa era do stalinismo, que havia instalado burocracias predadoras no controle do Estado a partir da equivocada política do socialismo em um só país. Por outro lado, entendia que o socialismo permanecia vivo, pois o que estava ruindo naquela região era apenas a sua “grotesca caricatura”.

Seguindo a tradição trotskista, essa corrente caracterizava os países da Europa oriental como “Estados operários burocratizados” e, portanto, seria um equívoco considerá-los como socialistas, apesar de terem conseguido efetivamente expropriar a burguesia, processo que lhes possibilitou um grande crescimento econômico.

A crítica a Stalin era uma constante nos documentos da Convergência quando analisava a crise do socialismo real, responsabilizando o sucessor de Lênin no governo soviético pelo fim da democracia no decorrer da década de 1920 naquele país e pela falência econômica que começa a se verificar de forma mais nítida a partir da década de oitenta.

Ao criticar o que chamava de “imprensa burguesa” pelo fato desta considerar as eleições de 1989 na União Soviética como as primeiras em que prevaleceu a democracia nos mais de setenta anos da história desse país, a CS expressava um pouco mais da sua visão sobre o que havia na Europa oriental até então. Considerava que o Jornal do Brasil mentia duas vezes na sua análise sobre essas eleições porque não havia democracia naquele pleito – pois muitos líderes políticos estavam presos e impedidos de participar do processo eleitoral e o único partido legal era o PC –, e também porque nos primeiros anos posteriores à revolução russa realizaram-se eleições “realmente democráticas e foi possível estabelecer a mais ampla democracia que jamais existiu no mundo”. Nas origens da URSS

O Estado era formado por uma organização completamente nova, os sovietes, eleitos de baixo para cima nas fábricas, quartéis e no campo. Todos os representantes dos sovietes podiam ser eleitos e revogados a qualquer

momento – o que acontecia muitas vezes. Havia a mais ampla liberdade de expressão, e eram legais todos os partidos que fossem aprovados

13pelos sovietes .

Dessa forma, esse grupo político considerava que existiu democracia socialista logo após a revolução de outubro, apesar dos problemas econômicos gerados pela guerra civil e das maiores exigências que esta impunha aos principais líderes bolcheviques. A ascensão de Stalin ao poder teria iniciado os expurgos àqueles que se opunham às suas medidas e iniciado a burocratização do partido e, com isso, começou a matar a democracia. Entretanto, não aparece em nenhum documento pesquisado dessa corrente a menção à destituição da Assembléia Constituinte que fora eleita logo após a revolução em 1917, o que poderia representar uma mácula nessa tão propalada democracia dos primeiros anos da Rússia revolucionária.

Para explicar melhor o fracasso da tese que advogava a idéia do socialismo vingar em um único país, a CS recorria aos ensinamentos de Leon Trotsky:

Durante décadas, os teóricos do chamado 'socialismo em um só país', desde Stalin a Krushov e Brejnev, afirmavam que a economia socialista ia se impor no mundo através de um processo de concorrência pacífica. (...) Trotsky, na verdade, sempre disse o contrário. Para ele, o socialismo só seria irreversível em uma etapa muito avançada do seu desenvolvimento, quando as forças produtivas tivessem superado de longe as do capitalismo. Mas isso só poderia ocorrer com a vitória da revolução mundial, e não por um processo de 'concorrência'. Enquanto ela não ocorresse, só haveria uma economia mundial (...) dominad[a] pelo

14imperialismo .

O tom que observamos no trecho acima é o de cumprimento de um prognóstico elaborado há mais de cinqüenta anos, a saber, se a teoria do socialismo em um só país se saísse vitoriosa levaria a União Soviética para o caminho do capitalismo porque a economia mundial era hegemonizada por esse sistema.

Ainda seguindo os escritos trotskistas, a corrente acreditava que a partir de 1989 teria tido início, nos países do socialismo real, o processo de “revolução política”. Seguindo a tese encontrada n'A revolução traída, de Trotsky, a Convergência acreditava que, ao contrário da revolução de outubro de 1917, essa nova revolução não mudaria o caráter do Estado soviético, que já era operário, mas mudaria o regime político, pois se tratava da substituição pela via revolucionária da gestão arbitrária da burocracia

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15 Jornal da CS. 16, 1991. p. 11.16 Jornal da CS. 17, 1991. p. 10.

pela democracia da gestão dos trabalhadores.

Um dos principais dirigentes da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT) – que reivindicava a IV Internacional fundada por Trotsky e à qual a CS se afiliava –, Nahuel Moreno, defendia a idéia de que o mais provável seria a revolução política ocorrer em duas fases – tal qual a revolução de outubro: a fase que ele chamou de “fevereiro” que uniria todo o povo contra o governo da burocracia, seria dirigida por correntes pequeno-burguesas restauracionistas (do capitalismo) e permitiria o surgimento “de organismos de duplo poder, como comitês de fábrica, conselhos ou sindicatos independentes”; e a fase que recebeu o nome de “outubro” que seria dirigida por um partido revolucionário e, portanto, seria um processo “consciente” e que construiria o “socialismo com democracia”. Diante disso a CS concluía que “os acontecimentos recentes do Leste europeu mostraram que a análise de Moreno era essencialmente correta” já que lá havia ocorrido exatamente o que ele considerava como primeira fase da revolução política, exceto quanto ao fato de não ter se confirmado o surgimento imediato de organismo de

15duplo poder .

Quando as manifestações que haviam tido início na China e na Alemanha chegaram à URSS, a Convergência passou a considerar que este país era o centro do processo revolucionário mundial, porque:

Os 131 milhões de assalariados nas empresas estatais soviéticas são os descendentes diretos da classe operária que protagonizou a primeira revolução socialista da história (...) derrotou militarmente o exército nazista (...) é também um dos operariados mais cultos do mundo. Pela tradição de seus trabalhadores e pela extensão e local ização geográf ica do país , os acontecimentos na União Soviética têm influência decisiva sobre (...) toda situação mundial. Por isso, o mundo já não é o mesmo desde que esse gigante, o proletariado soviético,

16voltou a lutar .

O fato do proletariado soviético se pôr em movimento e possuir laços de hereditariedade com a geração de trabalhadores que protagonizou a revolução de outubro e derrotou os nazistas na segunda guerra fazia da URSS o centro da revolução mundial no início dos anos noventa. Chama a atenção nessa lógica a secundarização do prognóstico originalmente feito por Marx de que o centro mundial da revolução socialista estaria nos países mais

desenvolvidos do capitalismo, prognóstico este que também era aceito por Trotsky – como indica a citação feita acima – quando defendia que a vitória do socialismo no mundo seria irreversível apenas quando as forças produtivas desse sistema tiverem superado as da economia mundial comandada pelo capitalismo.

Diante do que já foi exposto não é difícil concluirmos que, para esse agrupamento político, com a débâcle do socialismo real o trotskismo estaria em franca ascensão mundial já que era a única concepção ideológica no início da década de 1990 a obter o privilégio de afirmar que a crise desse regime corroborava teses que defendia há mais de cinqüenta anos. Os trotskistas da CS enxergavam a força da contra-revolução – que atrasava a consciência dos trabalhadores e dificultava a chegada destes ao poder – sustentada por dois pilares: a burocracia stalinista e o imperialismo capitalista. Se um desses pilares havia desmoronado é óbvio que o caminho para a revolução teria ficado muito mais fácil de ser trilhado.

Podemos identificar essa lógica em alguns documentos dessa corrente daquele momento. Indagado sobre um possível fortalecimento de uma conjuntura defensiva para o socialismo em nível mundial a partir da crise no leste europeu, Valério Arcary – um dos principais dirigentes da CS no período em questão – respondia que:

Nunca a situação mundial foi tão favorável à luta pelo socialismo no nosso século. Vou fazer uma afirmação mais chocante: nunca o Leste foi tão favorável ao socialismo! Porque as massas estão em movimento, e um elemento fundamental da ideologia marxista é acreditar profundamente que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. (...) As massas [na Europa oriental] querem o capitalismo? Não. (...) As massas querem melhores condições de

17vida .

Desde 1989 era possível encontrarmos, nos documentos dessa corrente, essa crença de que o mundo estava mais favorável ao socialismo e às posições trotskistas. Num artigo desse ano, que se intitulava “É a hora do trotskismo”, onde analisava os acontecimentos na Praça Tian Amen chinesa, o dirigente da Liga Internacional dos Trabalhadores, Alberto Franceschi afirmava:

Há 60 anos esperamos o que agora estamos assistindo, como um grande espetáculo de lutas pela emancipação dos trabalhadores. É o programa de Trotsky (...) que surge dos gritos de

17 Revista Teoria e Debate. Nº 10, maio de 1990. p. 56.18 Jornal da CS. 20 a 26 de julho de 1989. p. 8.

72 - “Escombros do muro de Berlim sobre o PT e a CUT

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19 Jornal da CS. 22, 1989. p. 7.

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combate das multidões do Leste. Vivemos a hora do trotskismo e a LIT se propõe a tornar

18consciente e organizar esse combate .

Observa-se, assim, que para a Convergência as manifestações que puseram fim aos regimes de partido único na Europa eram extremamente positivas sob a ótica da luta da classe trabalhadora mundial para construir um sistema socialista no qual pudesse ter o poder em suas mãos de forma categórica. No entanto, um aspecto daquelas manifestações era visto negativamente, elas não possuíam a direção de um partido revolucionário, nos moldes da revolução de outubro na Rússia e, logo, eram adjetivadas por esse grupo como sendo “inconscientes”. A LIT, por sua vez, se considerava pronta para assumir a direção desse processo.

Ao olharmos no retrovisor da história é possível considerarmos que a história foi implacável com a análise e os prognósticos realizados pela CS a partir daqueles acontecimentos na virada da década de oitenta, em especial porque não vivenciamos a seguir “a hora do trotskismo”. Com isso percebemos que mesmo esse grupo, que reivindicava as manifestações na China e na Europa oriental como positivas e início da revolução política prognosticada por Trotsky, sofreu as conseqüências negativas desse processo e não se pode dizer que foi feliz nas caracterizações que realizou.

É importante destacar ainda que tipo de socialismo essa corrente passava a defender diante de toda a campanha realizada pela mídia a respeito da morte desse sistema. Numa análise sobre o massacre realizado na Praça da Paz Celestial chinesa afirmava-se que o que o povo chinês, em sua luta, estava pedindo o “socialismo com democracia” e era justamente “este socialismo com democracia, que existiu nos primeiros anos da União Soviética, que

19é[ra] reivindicado pela Quarta Internacional...” .

Novamente há a diferenciação entre o período em que Lênin estava no poder, onde teria existido um socialismo democrático, e o momento posterior, quando Stalin já havia assumido e vai gradativamente destruindo o viés democrático que havia nesse sistema. Entretanto, é forçada a defesa de um socialismo com democracia para quem reivindica o leninismo, pois para o líder da revolução russa a verdadeira democracia só seria alcançada no comunismo – ou naquilo que Marx chamou de segunda fase do comunismo –, quando o Estado já não seria mais necessário e, logo, também não, a ditadura de uma classe sobre outra.

É possível que a adjetivação com democracia após a palavra socialismo tivesse como intuito diferenciar a posição da CS do socialismo realmente existente stalinista, mas é inegável que ela contradiz a própria ideologia defendida pelo grupo, no caso, o leninismo.

Considerações finais

Inicialmente pode-se dizer que as duas correntes aqui analisadas apresentavam concepções de socialismo que se distanciava, em maior ou menor grau, daquilo que comumente chamamos de marxismo clássico, ou seja, os escritos de Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci.

Tal fato pode ser associado à mera confusão teórica ou mesmo – mais no caso da Articulação – a convicções ideológicas pouco arraigadas. Na realidade, creio que o fim dos regimes que vigoravam no leste europeu até o início dos anos noventa não causou uma crise de consciência nas lideranças que compunham o novo sindicalismo, mas tão somente deixou nítida a confusão teórica que pairava sobre o conjunto dos movimentos sociais brasileiros e provavelmente indicou para muitos que suas certezas teóricas se assentavam sobre bases pouco sólidas.

Mas, concretamente, foi a Articulação que apresentou análises mais superficiais e, em dados momentos, confusas se tomarmos como parâmetro o referencial marxista. Ao adentrar a década de noventa tornou-se nítida a sua aproximação da concepção liberal, o que, sem dúvida, pode ter influenciado bastante no pragmatismo verificado na ação cutista desde então.

A própria CS indicava essa lógica quando afirmava em um texto de 1993 que “a crise do socialismo, aberta com a queda dos regimes stalinistas no Leste europeu e na ex-URSS, só fez com que a Articulação acelerasse seu curso no rumo das teses da social-democracia e impusesse essas teses à

20CUT” .

No entanto, é inegável que todos os grupos sofreram um enorme choque com todo aquele processo e nenhum saiu ileso ou contabilizando um saldo positivo. Dessa forma, a influência política desse choque na CUT foi claramente sentida.

e em 1986 era possível encontrar em muitas páginas das resoluções congressuais dessa Central

20 Textos para a 6ª Plenária Nacional da CUT, 1993. p.59.21 Texto da Direção Nacional ao 6º Congresso da CUT, 1997. p. 16.

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menções ao socialismo, ao longo dos anos noventa isso diminui gradativamente. No texto da Direção Nacional ao 6º Congresso, em 1997, talvez a única referência ao socialismo seja na seguinte passagem: a CUT “foi fundada a partir dessa compreensão ampla (...) e participa, junto com os setores explorados e a maioria da população, da construção de uma nova sociedade, justa, fraterna e igualitária: uma

21sociedade democrática e socialista” .

Diante do passado da CUT que conhecemos, sua trajetória de lutas ao longo da década de oitenta – privilegiando o enfrentamento com o Estado e o capital – e a mudança dessa postura na década seguinte, podemos concluir que tais citações ao socialismo não apenas se distanciam daquilo que realmente representa esse sistema em seu sentido original, como expressam muito mais uma saudação ritual do que princípios orientadores de sua ação sindical.

Finalmente, resta destacar que a análise aqui realizada teve como ponto de partida a documentação sindical, mas fez-se necessário buscar nos documentos partidários dos agrupamentos políticos reflexões mais consistentes sobre a crise do socialismo real. Acredito que isso demonstrava – ou demonstra – o fato dessas correntes entenderem que documentos sindicais devessem ser mais superficiais, sendo, portanto, desnecessárias análises mais detidas no âmbito teórico. Assim, nessa ótica, os sindicatos teriam por objetivo simplesmente dar respostas imediatas à opressão imposta pelo Estado e pelo capital à sua categoria profissional específica, visão esta que termina por afastar ainda mais o sindicalismo da luta socialista.

74 - “Escombros do muro de Berlim sobre o PT e a CUT

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1Igor Gomes Santos

autor discutiu como o processo de construção social da memória desenrola-se por fortes disputas, que visam à consolidação de certa memória (memória oficial) em detrimento de outras, as quais ele chama de “memórias clandestinas”. Estas, por sua vez, ressurgem em busca do seu lugar histórico em momentos onde a conjuntura se mostra favorável.

A memória nacional, construída por “agentes sociais hegemônicos”, encarregados, segundo Pollack, da disciplina, do silêncio e da uniformização da memória, resulta de um processo de “organização da memória”. Essa memória é vivenciada pelos sujeitos como “memória coletiva”, enquanto, para o autor, ela é uma “memória enquadrada”. O enquadramento se dá pela necessidade de transmitir a memória hegemônica e evitar a perda de coesão dos grupos e instituições onde a reprodução da memória oficial se tornou baliza identitária e de poder.

O “Mito Fundador”: Historiografia, memória e conflito sobre a fundação do Partido dos

Trabalhadores

A década de 1980 começou no Brasil com uma onda de greves e novas lutas sociais por redemocratização. Foi uma década de crise de hegemonia do bloco político econômico (capital internacional monopolista, militares e empresários brasileiros) que dirigiu os rumos da nação depois do

4Golpe Militar de 1964 .

O PT surgiu e se consolidou como um acúmulo de força política dos principais impulsos de contestação da ordem deste período: nos movimentos sociais, Pastorais da Igreja Católica, sindicalistas “autênticos” e das oposições sindicais, imprensa alternativa, militantes de organizações clandestinas,

DA chegada do PT ao governo do Brasil em 2002 trouxe novas contradições às disputas internas do partido. As coligações feitas com os partidos de direita, como o PL, PTB, PP, etc., para disputar as eleições e governar com maioria, somadas a um grande apelo à governabilidade, têm levado o PT a governar nos marcos da hegemonia neoliberal que se consolidou no país da segunda metade dos anos 1990 em diante.

Nas capas de jornais, revistas e TV, dos últimos meses de 2004 até meados de 2005, não se falava de outra coisa a não ser da descoberta da participação de petistas históricos, que faziam parte ou não do governo, em processos de “caixa dois” e fraudes fiscais nas campanhas eleitorais para a Presidência da República de 2002. Sem falar de um esquema de compra de votos de parlamentares, que recebeu a alcunha de “mensalão”. Ainda que tardiamente, um pedido de desculpas à Nação trouxe, no rastro, uma proposta de “refundação” do Partido. Pela “esquerda” do Partido, falava-se em buscar “o PT das origens”.

Este texto procura debater as “disputas de memória” produzidas pelos petistas ante as acusações de corrupção no PT e no governo federal. O que se quer dizer com “a volta do PT das origens”? O que significa “refundar”? O que esses dois sujeitos coletivos, “esquerda petista” e “campo majoritário”, pretendiam ressignificar em busca dessa memória? Qual a legitimidade dessa volta às origens? Para responder a essas perguntas foi necessário percorrer o contexto de fundação do PT na década de 1980, suas disputas, cisões e frações, para entender a que origens tentam remontar suas disputas de memória.

Utilizamos como arcabouço teórico-metodológico a leitura de dois textos do sociólogo

2Michael Pollak: Memória, Esquecimento, Silêncio e 3Memória e Identidade Social . Nesses trabalhos, o

Memória e conflito no Partido

dos Trabalhadores

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do LABELU (Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais – UEFS).2 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento silêncio. Estudos Históricos, vol. 02, n. 03, 1989, p 03-15.

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Introdução

3 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 05, n. 10, 1992, p. 200-212. 4 FONTES, Virgínia & MENDONÇA, Sônia Regina. História do Brasil Recente – (1964-1992). São Paulo: Ática, 1994.

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76 - Memória e conflito no Partido dos Trabalhadores

parlamentares de oposição, trabalhadores rurais, Associações de Moradores, dos movimentos operários, movimentos negros, de mulheres, de estudantes, etc.

O partido cresceu e ganhou força nos movimentos populares e no parlamento. Chegou a disputar uma eleição para a Presidência da República em que o seu candidato, Luís Inácio da Silva, o sindicalista Lula, uma das principais lideranças da fundação do PT, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989. Nesta eleição, Lula perdeu por apenas 6% de diferença dos votos para o

5então “caçador de marajás”, Fernando Collor . Manteve durante todas as outras eleições que sucederam – 1994 e1998 –, uma margem estável de votação, entre os 25% a 30% de votos contabilizados

6da população brasileira .

Existe uma grande quantidade de trabalhos acadêmicos que discutem o PT. A maioria destaca o processo de formação do partido como um marco divisor dentro do campo das instituições da esquerda brasileira e da cena política do Brasil. Essa literatura destaca algumas características do PT, como sua fundação de base operária, principalmente sindical, a influência dos católicos ligados à Teologia da Libertação, intelectuais e militantes de organizações clandestinas. O ABCD paulista é, territorialmente, o local de nascimento do PT devido às greves “espontâneas” que lá surgiram.

Não há como discordar, genericamente, dessas proposições. Sem dúvida, o ABCD paulista, principalmente São Bernardo, foi onde se deu os primeiros impulsos de articulação e formação do PT. Aqueles sujeitos, citados acima, realmente foram setores de muito peso na fundação do PT. Mas é pertinente fazermos algumas perguntas: Para a formação do PT e dos demais partidos que estavam se formando nessa época, as novas leis eleitorais não previam a consolidação do partido em certa quantidade de estados e municípios? Com certa margem de votos nos pleitos eleitorais de 1982, em todo o Brasil? Como pôde, portanto, o PT ter tido como local de sua formação uma única região de um estado? Podia o PT chegar a ser um partido legalmente reconhecido sem a participação da militância de outros estados e municípios, com formações específicas?

Marcelo Badaró, no livro Novos e velhos

7Sindicalismos , discutiu as interpretações dos pesquisadores do sindicalismo num período em que o movimento sindical entrava em uma nova fase da sua história, marcado pela emergência daquilo que ficou conhecido por “novo sindicalismo” enquanto corrente hegemônica. O autor observou como a produção universitária da época influenciou e era mutuamente influenciada pelos acontecimentos da luta sindical, valorizando aspectos que consolidavam certa visão do “novo” em relação ao “velho”, alimentando distinções não tão claras nas práticas dos sindicalistas “autênticos” (novo-sindicalismo) e dos “pelegos” (velho sindicalismo) em períodos brevemente anteriores. Nas palavras dele:

Vou, porém, além de uma análise da literatura especializada como “fonte secundária”, pois discuto neste capítulo, os nexos entre a produção acadêmica sobre o sindicalismo e os discursos e práticas das lideranças sindicais identificadas como novas, analisando para tanto, algumas passagens significativas das falas dos novos

8sindicalistas nos anos 1978-80 .

Questões como essas nos levaram a refletir, com base em Pollak, que o trabalho de “enquadramento da memória” se alimenta do material fornecido pela história, pois “o trabalho de organização da memória, deve fazer com que a

9'simples montagem' ideológica se torne arbitrária” . Para isso, o papel de intelectuais e acadêmicos – intelectuais orgânicos, no dizer de Polack – deveria ser o de travestir a violência simbólica, incutida na homogeneização da memória, em discurso científico, ou seja, universalizável a todos e com todas as auras de verdade.

Os trabalhos mais conhecidos sobre o PT centraram suas análises nos acontecimentos da região do ABCD paulista. Estabeleceram um modelo fixo de construção do partido que contradiz a fundação do PT de diversas localidades do Brasil. O modelo constrói uma homogeneidade onde não existe, universaliza ou generaliza a história dos primeiros impulsos de construção do PT como história nacional. Descuida das especificidades de cada região e privilegia alguns sujeitos políticos em detrimento de outros, respaldando como verdade apenas o que aconteceu no centro da economia capitalista do País.

Como explicar o surgimento do PT do 10 11Pará, da Paraíba , da Bahia, de Feira de Santana

5 POMAR, Wladmir. Quase Lá – Lula o susto das Elites. São Paulo: Editora Brasil Urgente, 1990, pp. 105.6 PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções de Encontro e Congressos do Partido dos Trabalhadores. 1979 – 1998. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.7 BADARÓ, Marcelo. Novos e Velhos Sindicalismos: Rio de Janeiro (1955/1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998, Cap. 1 - 2.

8 Idem. Ibidem, p. 15.9 POLLAK, Michael. Op.cit. 1989, p. 07.10 PETIT, Pere. A Esperança Equilibrista: a trajetória do PT no Pará. São Paulo: NAEA: Boitempo, 1996.11 GIOVANI, Paulo. O Partido dos Trabalhadores e a Política: Construção e Trajetória do Partido no Estado – 1980-2000. João Pessoa: Anais eletrônicos da ANPUH, 2003.

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12(BA) , à luz do mito? Quem tentar procurar operários no PT do Pará se decepcionará – ou não –, pois irá se defrontar com a construção do partido através das lutas dos camponeses, seringueiros, índios, além de uma forte participação de aparelhos privados da sociedade civil, como a FASE (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional), IPAR (Instituto de Pastoral Regional), onde militavam vários sujeitos vinculados a organizações clandestinas, principalmente Maoístas. No Acre, de sociedade amplamente rural, o PT local foi o primeiro a se legalizar na Justiça Eleitoral, devido a um forte trabalho de padres e freiras. Em Feira de Santana, o mesmo se deu: operários mesmo, somente Seu Arnaldo, ferroviário, e Ovídio Gonçalves, soldador; de resto, muitos estudantes universitários, alguns profissionais liberais e muitas organizações clandestinas, além de não contarem com o apoio da cúpula católica. Isso só para citar alguns casos “anômalos” que contrariam o mito fundacional.

Como no trabalho de Badaró apontado acima, essa historiografia, que chamo de “historiografia do mito fundador” ou “historiografia do petismo autêntico”, reforça uma hierarquia vivida na realidade das disputas internas do Partido – algumas ingenuamente, outras nem tanto – referendando um petismo de primeira linha: “o petismo autêntico”, que, na interpretação de Eurelino

13Coelho , se alimentou da força de um “mito fundador” Aos “fundadores” coube, e ainda cabe, a sabedoria e o poder de distinguir o que é autenticamente petista daquilo que é intruso, “alienígena” aos trabalhadores do partido. Estes “autênticos”, vinculados ao “grupo do Lula”, em sua maioria de origens sindicais, souberam capitalizar sua imagem à do partido com muita maestria.

A “historiografia do mito fundador” apresenta a criação do PT como vontade de alguns sujeitos. Na verdade, um discurso ideológico assentado, como já foi dito, na autoridade obtida por aqueles que “decidiram criar o partido”. Vejamos:

Por isso, se sentiram traídos [os empresários] quando o metalúrgico Lula, que não queria nada com a política, descobriu que sem fazer política os trabalhadores jamais conseguiriam algo consistente – e resolveu fundar um partido,

.

14ainda mais um partido de trabalhadores .

Para o “mito fundador”, a construção do PT cabia à pura subjetividade de alguns homens, às suas descobertas da política como um rompante. Neste sentido, a bibliografia que discute as grandes greves de fins da década de 1970 e início de 1980 como lutas

15espontâneas , ganha sentido político para o mito, pois não só desprivilegia o aprendizado das lutas da classe trabalhadora dos períodos anteriores à construção do PT, como também silencia a respeito da atividade da militância clandestina que se fazia presente durante todo o período. É sabido, pois, que já havia um debate na esquerda brasileira sobre a necessidade de construção de um grande partido de

16massas . Essas esquerdas estavam atuando nos movimentos, nas igrejas e nos sindicatos, fizeram parte do crescimento das lutas de classes nas décadas de 1970 e 1980, mantiveram uma imprensa clandestina e/ou alternativa muito útil para o desenrolar das informações e à solidariedade de classe dos trabalhadores. As “oposições sindicais” foram mostras vivas da força que tinham estas esquerdas.

Não é certo, a não ser pelo mito, afirmar que a construção do PT foi fruto da vontade de Lula, ou mesmo de um grupo de sindicalistas, como aponta a “Carta de Princípios” do PT ou o discurso de Lula em

17 181981 . No seu livro, Isabel Oliveira ressalta o debate sobre a formação do PT no meio sindical de São Paulo e traz informações que nos permitem criticar, historicamente, a memória de Wladimir Pomar, citado anteriormente. Ela nos informa que

A decisão de criar um partido de trabalhadores foi sendo tomada gradualmente, à medida que se intensificava a polarização do imaginário político da liderança do “novo sindicalismo”. A escolha do partido como instituição adequada para expressão política decorria da relevância que assumiram, no período, as eleições congressuais, e a opção feita pela forma legal de

19luta .

Ainda segundo Oliveira e o próprio livro de Resoluções do PT, a proposta ou marco fundamental de fundação e propaganda do PT, contrariando a informação dada por Pomar, foi o dia 24 de janeiro de 1979, no XI Congresso de Metalúrgicos, realizado em

12 SANTOS, Igor Gomes. Na contramão do Sentido: Origens e trajetória do PT de Feira de Santana (BA). 1979-2000. Dissertação de Mestrado. Niterói-RJ: UFF, 2007.13 COELHO, Eurelino. Uma Esquerda para o Capital. Tese de Doutorado. Niterói/ RJ: IFCH/UFF, 2005.14 POMAR, Wladmir. Op.cit, p. 32, Grifos meus.15 Por exemplo: ANTUNES, Ricardo. O Novo Sindicalismo. São Paulo: Brasil Urgente, 199116 AARÃO, D. Ditadura e Sociedade: as reconstruções da Memória. In:

AARÃO, Daniel, MOTA, Rodrigo P. S. e RIDENTI, Marcelo. O golpe 40 anos depois. Bauru – SP: EDUSC, 2005. PONT, Raul. Da crítica ao populismo à construção do PT: Seriema, 1985.17 PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções de Encontro e Congressos do Partido dos Trabalhadores. 1979 – 199... Op. Cit, p. 65-73 e 105-114.l18 OLIVEIRA, Isabel Ribeiro. Trabalho e Política: as origens do Partido dos Trabalhadores. Petrópolis – RJ: Vozes, 1988.19 Idem. Ibidem, p. 118.

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Lins. Neste Congresso, o Presidente do Sindicato de Santo André, Benedito Marcílio, lançou a proposta que fora aprovada na plenária.

Em poucas palavras, sua proposta era caracterizar o PT como um partido de classe, aberto a todos os trabalhadores e assalariados, excluindo-se apenas os empregadores. Sua missão seria a de levar a classe trabalhadora à

20sua independência política .

Depois da Carta de Lins, ficou decidido que uma comissão faria uma carta de princípios. É claro, havia muitos impasses ideológicos, estratégicos e táticos naquele momento: negociações com parlamentares do MDB, a questão do socialismo, se o partido deveria ser um partido de sindicalistas, etc.

A resolução deste impasse veio na forma de uma carta de princípios que acendeu os debates novamente dentro da formação do Partido. A carta de princípios lançada por sindicalistas “radicais”, no dizer registrado em Oliveira, contrariava algumas posições do grupo que se constituiria no futuro como os “autênticos”, que rapidamente voltaram a acompanhar mais de perto as atividades do movimento pró-PT.

Acendia-se a luta que marcaria toda a trajetória do PT: a disputa pelos rumos do partido entre as organizações clandestinas (e hoje entre as tendências) que fundaram o PT e os “petistas autênticos”. De certa forma, podemos achar nessa disputa pelas características da formação do partido o amanhecer deste conflito.

João Paulo Pires Vasconcelos afirmava que a publicação do documento violava um acordo segundo o qual se deveria discutir a proposta do partido com as bases sindicais, antes de se fazer qualquer coisa com re lação a sua implementação. Ele acusava o “Grupo dos Quatro” de vanguardismo, não só por causa de sua ação de esvaziamento preventivo, mas também, porque muitos dos seus membros pertenciam a partidos clandestinos

21trotskistas ou eram deles simpatizantes .

A partir daí surgiram alguns ataques às vacilações dos sindicalistas, principalmente na figura de Lula, considerado um grande líder operário, no empenho em fundar o Partido. E por outro lado, as críticas às “esquerdas”, feitas principalmente por Lula, vinham do entendimento de que “as esquerdas” queriam impor um ritmo teórico e político nas manifestações de massa para formar o Partido dos

Trabalhadores, estabelecendo verdades e princípios esquematizados em teorias revolucionárias que estariam para além do trabalhador. Vemos neste conflito a necessidade de Wladmir Pomar adiar para outubro de 1979 o anúncio e o vínculo da “estrela de Lula” com o PT, desprivilegiar ou desmemoriar a atuação importante, e às vezes até central, que tomaram as esquerdas no início da construção do PT.

Uma das características do mito apoiava-se num certo anticomunismo. Vinculava a imagem dos partidos de vanguarda a autoritarismo e imposição de doutrinas. Gerava um forte sentimento de representatividade dos trabalhadores manuais, que se expressavam através dos sindicalistas operários vinculados a Lula, guardiões da fala e do lugar operário no partido. Garantia de que os de baixo teriam lugar frente ao “dialeto” que os militantes das organizações revolucionárias traziam de fora. Vale a pena observar as duas citações abaixo para deixar claro como esse processo de diferenciação política se fortaleceu em uma autoridade autoproclamada de fundador, de “petista autêntico”:

Interessa-nos que os companheiros não queiram fazer de nosso partido massa de manobra de suas propostas. Não aceitaremos, jamais, que os interesses dessas tendências se sobreponham, dentro do PT, aos interesses do Partido. Denunciaremos quantas vezes for preciso, certos desvios a que todos nós estamos sujeitos, como o economicismo, que pretende restringir a luta dos trabalhadores às conquistas imediatas de sua sobrevivência; o politicismo que de cima para baixo quer impor o seu dialeto ideológico aos nossos militantes, como se o discurso revolucionário fosse sinônimo de prática revolucionária; o colonialismo daqueles que se autodenominam vanguarda do proletariado sem que os trabalhadores sequer o conheçam; o esquerdismo, que exige do partido declarações ou posições que não se coadunam com seu caráter legal e a sua natureza popular; o voluntarismo dos que querem caminhar mais rápido que o movimento social; o eleitoralismo dos que desejam reduzir o PT a um trampolim de cargos eletivos e de projeções políticas; o burocratismo dos que nos criticam por ir as portas de fábrica e querem um partido bem organizado, mas sem bases populares; o oportunismo dos que só põem um pé dentro do PT e mantém o outro pronto a correr quando sentem que suas intenções não são aceitas pelos

22trabalhadores .

Eu só não permito, enquanto puder evitar,

20 Idem. Ibidem, p. 122.21 KECK, Margaret E. A Lógica da Diferença: o Partido dos Trabalhadores na

construção da Democracia Brasileira. São Paulo: Ática, 1991, p. 84.22 PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções... Op. Cit, p. 112.

78 - Memória e conflito no Partido dos Trabalhadores

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História & Luta de Classes - 79

enquanto puder berrar, que ninguém use a classe trabalhadora como massa de manobra. Esse negócio de pregar a revolução na língua e depois está com o bolso cheio de dinheiro não dá. Cara que prega a revolução aqui e dorme em Ipanema, dorme no Morumbi. Vai tomar no cu, porra! Ou esta putada respeita a classe trabalhadora, com o valor que ela tem, com o que ela é, ou realmente vamos para o pau, pra valer mesmo. Hoje tenho uma convivência melhor com esses grupos. Tem alguns deles dentro do PT trabalhando na linha do partido e não tenho dúvidas de que na hora em que algum mijar fora do penico vai me ter

23como inimigo .

Pode-se notar nas duas citações de Lula a estratégia na luta pela condução do Partido. 1) Tendências são os outros, enquanto que os legítimos fundadores, no caso os “petistas autênticos”, são o PT; 2) Lula e seu grupo, mesmo reconhecendo a participação desses grupos na construção do Partido – na verdade, precisavam deles para fundar o Partido nacionalmente, onde não tinham forças –, determinavam que os pressupostos desses eram grupos incompatíveis com a classe trabalhadora, até mesmo porque estes deviam ter meios de vida mais satisfatórias que a dos operários; 3) O processo de disputas de projetos políticos junto às diversas posições existentes no movimento dos trabalhadores foi descartado. Nem sequer é aventada a possibilidade da classe optar por um programa alternativo ao “petismo autêntico”.

A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e as instituições que compõe uma sociedade para definir seus lugares respectivos, sua complementaridade, mas também as posições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum (...) Isto significa fornecer um quadro de referência e de pontos de

24referências .

A fala emana de uma autoridade “incontestável”, a da matriz fundamental da memória. Lutadores e lutadoras sociais, criadores do PT tanto quanto qualquer outro militante, devido às suas associações a algum tipo de tradição teórica-revolucionária, tal qual o trotskismo ou o leninismo, tiveram sua memória, em função da disputa política interna, apagadas ou escamoteadas. No dizer de Polack, tiveram suas memórias transformadas em clandestinas. Ficaram para a posterioridade como

25aqueles que se “abrigaram” dentro do Partido , “acolhidos” pelos “autênticos”, de tão democráticos

que estes eram.

Muitas vezes se acirraram velhos preconceitos, típicos de uma sociedade na qual uma das fundamentais cisões entre grupos sociais é a divisão social do trabalho. A separação entre nós – peões, torneiros mecânicos, sindicalistas, os de macacão – e eles – intelectuais, marxistas, teóricos, vanguardistas – muitas vezes operou pela recusa, “espontânea”, de que no espaço do trabalhador, no caso, o Partido dos Trabalhadores, o conhecimento viesse a servir como fonte de opressão, através da “imposição” de algum tipo de “dialeto” que intelectualizasse a política e a tirasse do terreno do aprendizado “espontâneo” do trabalhador.

Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a construção do PT já sabiam disso muito antes de sequer terem a idéia da necessidade do Partido. E, por isso, sabemos também que é falso dizer que os trabalhadores, em sua espontaneidade, não são capazes de passar ao plano da luta dos partidos (...). Do mesmo modo, sabemos que é falso dizer que os trabalhadores brasileiros, deixados a sua própria sorte, se desviarão do rumo de uma

26sociedade justa, livre e igualitária .

Algumas cenas do filme Peões, onde alguns trabalhadores falam com emoção de Lula, chegando mesmo a relacioná-lo com a figura de um pai, mesmo sendo alguns desses trabalhadores mais velhos, é compreendido neste trabalho como parte representativa da funcionalidade prática do “mito fundador”. O “petismo autêntico” criou um discurso de proteção do trabalhador ao que foi estabelecido como “de fora” do trabalhador, assim, a maior representatividade da organização dos trabalhadores, o PT, deveria ser protegido dos elementos externos. A infalibilidade do mito consistia no aspecto da autoridade do pai fundador, do protetor.

As disputas da memória em momentos de crise

Após a ressaca da derrota eleitoral de 1989, o PT passaria por significativas transformações. A avaliação das eleições consolidou uma reflexão de que a derrota eleitoral da Frente Brasil Popular, encabeçada por Lula, se deveu aos votos dos “descamisados”. Em entrevista para André Singer, publicada num livro intitulado Sem Medo de Ser Feliz. Cenas de Campanha, Lula ressalta o papel dos setores desorganizados e das camadas de “mais baixa

23 MOREL, Mário. Lula o metalúrgico – Anatomia de uma liderança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 146.24 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1989, p. 07.

25 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Prefácio de KECK, Margaret. Op. Cit, p. 05.26 PARTIDO DOS TRABALHADORES. Op. Cit, p. 114, grifos meus.

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renda” na sua derrota. Segundo ele, estes tinham optado por Collor e o PT precisava repensar o partido e o seu discurso para atingir esta camada da

27população . Confessava também que a postura petista em defesa do socialismo era um problema, já que era constantemente utilizado para afirmar que o PT tiraria e repartiria os bens das pessoas, acabaria com a Igreja Católica, implantaria uma ditadura, etc. O momento eleitoral também foi de crise e desmoronamento dos países pós-capitalistas do leste Europeu, o que contribuía, segundo Lula e os seus entrevistadores, na efetivação de uma campanha ideológica contra o PT.

O Brasil conhece, ainda que mal personificada na figura bonapartista de Collor de Mello, suas primeiras relações econômicas com a ortodoxia neoliberal durante a década de 1990. Collor provocou uma brusca abertura de mercado, inserindo a burguesia brasileira numa competição acirrada com os mercados internacionais. Logo os partidos políticos da burguesia se voltaram contra ele. Com ajuda de seu irmão, Pedro Collor de Mello, chegaram à imprensa as falcatruas realizadas por Collor na “Casa da Dinda”. Os “caras pintadas” terminaram o processo de desgaste do Presidente, que culminou no impedimento do seu mandato de Presidente da República.

No mandato do sucessor de Collor, Itamar Franco, preparou-se um plano econômico que colocaria o Brasil definitivamente dentro das economias que seguiam o modelo neoliberal. O Plano Real tinha todos os ingredientes: austeridade fiscal, predomínio do mercado ante as necessidades sociais, um ataque feroz aos direitos trabalhistas, privatizações, flexibilizações, maior liberdade cambial para troca, venda e compra de emissões monetárias e, principalmente, desemprego em massa. O pai do Real, Fernando Henrique Cardoso (FHC), passou a receber uma exposição sistemática na mídia – parecia um primeiro ministro e Itamar Franco o monarca que não governava. FHC foi eleito presidente da República em 1994 e continuou a tocar seu plano de maneira mais agressiva.

O aumento da competição entre os trabalhadores, por conta da brusca diminuição de empregos formais, das flexibilizações, terceirizações, etc., diminuiu progressivamente a organização dos mundos do trabalho. O baixo poder de combatividade dos trabalhadores culminou no enfraquecimento das organizações que têm como eixo central da sua

organização a luta dos trabalhadores. As lutas políticas dos trabalhadores diminuíram na proporção

28inversa à do “risco proletário do desemprego” .

O PT foi uma dessas organizações que sofreu os impactos do desmonte neoliberal. Muitas das suas lideranças centrais passaram a buscar saídas eleitorais para o refluxo que certamente se abateria sobre os mandatos e possibilidades eleitorais que se reivindicavam como dos trabalhadores. Os trabalhadores organizados, naquele momento, já não ofereciam a estes políticos os espaços de confraternização e contato, como greves em locais de trabalho, grandes assembléias, greves gerais e manifestações, de onde ganhavam seus votos e a confiança do trabalhador em luta. A classe trabalhadora encontrava-se consumida nas disputas pelo mercado de trabalho. Sem falar do grande alcance popular que FHC obteve entre os trabalhadores por ter posto fim à inflação, uma antiga bandeira política das esquerdas no Brasil.

O resgate do emprego, a “inclusão” dos “excluídos”, os descamisados, os parias do modelo neoliberal, passaram a ser, desde metade da década de 1990, o grande nicho político do Partido dos Trabalhadores. O partido enveredaria por uma lógica desenvolvimentista e conclamava, para esta tarefa, novos aliados da burguesia e dos seus partidos.

Junto a estes acontecimentos, militantes, parlamentares e políticos do PT passaram a atacar publicamente o marxismo, o socialismo e a louvar certo projeto civilizatório do mercado. Durante este período se formou o agrupamento intitulado de “Campo Majoritário” no PT. Imbuído de retomar a Direção Executiva do partido, perdida em 1994 para a esquerda petista, setores diversos do partido unificaram-se e formaram um bloco de maioria sem definição ideológica, com programas diversos, mas coeso no sentido de domesticação das esquerdas petistas e do pragmatismo eleitoral. Este “Campo” possuía em seus quadros a maioria dos prefeitos, governadores e parlamentares petista, todos em franco processo de mudanças em suas visões de mundo.

Esta “esquerda para o capital” chegaria às eleições de 2002 e à eleição de Lula com o discurso da promoção do “espetáculo do desenvolvimento”, ainda que o desenvolvimento estivesse deveras amarrado pela hegemonia da “carta ao povo

29brasileiro” . Mas, antes, o Brasil conheceu um outro

27 SINGER, André. Sem Medo de Ser Feliz. Cenas de Campanha. São Paulo: Scritta Oficina Editorial, 1990, p. 98-99.28 FONTES, Virgínia. Interrogações sobre o capitalismo na atualidade: trabalho e capital, economia e política. Texto apresentado no III Colóquio

Internacional Marx e Engels, 2003, p. 19.29 Material elaborado para a campanha presidencial de 2002, não aprovado em instâncias do Partido dos Trabalhadores, caracterizado por uma grande influência dos pressupostos neoliberais.

80 - Memória e conflito no Partido dos Trabalhadores

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História & Luta de Classes - 81

espetáculo: um show de acusações de corrupção, que vão desde um, assim chamado, “mensalão” até acusações de participação em esquemas de caixa dois. Os personagens deste espetáculo não paravam de sair de trás das cortinas, alguns destes eram personagens novos para os militantes do Partido dos Trabalhadores, outros já eram velhos conhecidos. O PT já não era mais o mesmo. Do mais desinformado dos brasileiros até o mais otimista (ou ingênuo) dos militantes petistas, todos reconheciam isso. Que fazer?

A idéia de refundar ou voltar às origens do partido, em um momento de absoluta hegemonia burguesa nas entranhas do Partido dos Trabalhadores – nos valores, nas tradições, na ideologia e no projeto político social –, se sustentaria apenas na autoridade da memória, na autoridade do “mito fundador”?

O “mito fundador” estruturou-se na memória nacional e alcançou o posto de historiografia, respaldando nacionalmente posições e discursos acerca do partido. Calou ou simplesmente não cedeu espaços a outros discursos ideológicos. O mito, todas as vezes que foi resgatado, principalmente em períodos de turbulência interna, serviu como arbítrio geral para balizar posições petistas das “não petistas”, melhor dizendo, serviu para centralizar as condutas políticas dentro do PT daquilo que não estavam de acordo com os “autênticos”. Durante os acontecimentos do “mensalão”, o “PT das origens” foi reivindicado pela “esquerda petista”, isto é, utilizaram a mesma tática usada no passado pelos seus rivais partidários. Mesmos aqueles que viam no Partido um esgotamento histórico dos seus propósitos ainda planejavam uma disputa da “simbologia do

30petismo” que havia e há na sociedade .

O grande problema enfrentado por estes lutadores sociais foi o de responder: a quem estava vinculada essa simbologia do petismo? A dificuldade consistia em retirar do “grupo do Lula/ Articulação 113/ Articulação U.L.” – parte poderosa do Campo majoritário – essa simbologia, construída e galvanizada durante anos, inclusive por grande parte das organizações e das tendências de esquerda do

31 32PT . Aí estaria um momento de verdade da crise .

A tarefa constituía, de forma mais explícita, em tirar proveito político da memória que há do PT da época da sua fundação, sua combatividade, seu apelo à seriedade na gestão pública, etc. Porém, a principal

dificuldade tem sido a de reafirmar essa memória, da qual sem sombras de dúvida fizeram parte, mesmo que clandestinizada, sem propagandear ou reforçar o “mito fundador”, pois, dessa “esquerda petista” quase não se produziu ou se construiu uma memória vinculada ao PT. Só recentemente elas surgiram para o “grande público”, como parte da politização de um projeto alternativo interno ao PT, quando antes apenas ganhavam as manchetes na imprensa para demonstração pública de que no PT ninguém se entendia.

Cientes do seu significado, estes “petistas autênticos”, alguns acusados de envolvimento no esquema de recepção de dinheiro, de “mensalão”, de caixa dois, etc., saíram às pressas propondo uma “refundação” do Partido. O jogo semântico tem uma importância vital para o que estamos querendo demonstrar nesse breve escopo. “Refundar o PT” fazia uma referência ao passado, mas não necessariamente significava uma volta do PT às suas origens: classista, socialista e, principalmente, centrado no princípio da independência de classe. Essa proposta flerta com essa possibilidade, afinal uma boa parte das pessoas que são identificadas com a fundação do partido – aquelas do “mito fundador” – estão a enfatizar esse discurso. Estes mesmos são, pois, os mais identificados como originários da fundação. Dessa forma, o “mito fundador” é novamente resgatado, porém, não pôde se potencializar no máximo o que ele oferecia, ou o sentido que a esquerda propunha a ele.

A esquerda petista, alijada na memória nacional das honras da fundação do partido, tomou para si a bandeira das “origens do PT” e tentou ocupar o espaço outrora dos legítimos representantes do “petismo autêntico”, mas sem possuir vínculos com a memória nacional para se legitimarem como representantes deste legado. A volta do “PT das origens”, mesmo sem querer, projetava um “Lula das origens”, uma “Articulação dos 113 das origens”, revelando a fragilidade implícita durante toda a década de 1990 das esquerdas petistas em propor um novo PT, ou uma nova opção para além do PT.

Velhos petistas da base ainda esperam que as origens do PT apareçam em algum rompante súbito do Presidente da República, e é dessa forma que o discurso do “complô das elites” ganhou ares de luta de classe e de “PT das origens” para milhares de trabalhadores, petistas ou não, pois, assim como o

30 Livro de resoluções da APS (Ação Popular Socialista), tendência interna do PT. 2003.31 Ao trabalhar com as fontes eleitorais, prospectos, adesivos, cartazes, etc., é comum a foto do candidato, mesmo sendo ele de organizações de esquerda, ao lado de Lula, utilizando da simbologia construída historicamente em torno de

Lula, ao mesmo tempo em que a reforçava, como nesses tipos de atitudes eleitorais. 32 “Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado”. POLLAK, Michael. Op. Cit. 1989, p. 06.

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partido, a origem do presidente também é operária. Mas, se formos pensar bem, o ex-metalúrgico, hoje Presidente, não deve entrar em uma fábrica para trabalhar há no mínimo duas décadas. Porém, a ênfase dada a essa questão dá a impressão de que Lula saiu da linha de montagem ontem. A construção/fabricação desta identidade de classe, de tipo economicista, afirma-se/reafirma-se como alternativa na manutenção de alguma espécie de identidade de classe com os trabalhadores brasileiros, haja vista a

33experiência do ex-operário Lula e, assim como ele, a de tantos outros dirigentes petistas, ex-operários, ex-guerrilheiros, não se aparentarem, nem de longe, com a de um trabalhador metalúrgico dos dias de hoje. Na falta de aspectos hodiernos para relacionar o presidente à classe trabalhadora, como uma política da classe, a memória tenta se impor à política e o “mito fundador” se vincula ao projeto antagônico ao da fundação desta mesma memória. Igualmente fizeram alguns seguidores de Fernando Henrique, relacionando-o ao seu passado de tradição no campo da esquerda, ou da oposição democrática.

A origem proletária choca-se com as novas condições do PT hoje. Este constitui um corpo sólido de parlamentares, prefeituras, governo e presidência da república, um aparato institucional gigantesco, uma fundação – a Perseu Abramo –, um largo leque de empresários como aliados, milhões e milhões em dívidas contraídas para as mega campanhas eleitorais realizadas com marqueteiros e agências de comunicação, optando assim, pelas mesmas estratégias eleitorais da burguesia, ao invés da velha criatividade proletária desenvolvida na campanha de 1989, financiada, realizada e elaborada por

34trabalhadores .

Memória e pragmatismo político

Percebe-se a dificuldade em “refundar” o partido – ainda que nem para os petistas essa refundação tenha sido clara – quando da dificuldade de traduzir essa memória para uma linguagem do PT/governo. Surgem, assim, novos valores que são apontados como valores políticos da época da fundação, tais quais: “O PT como partido do reformismo radical”; “valores humanísticos e civilizatórios que estão na sua origem”; “um partido identificado pela inclusão social, pela distribuição de

renda e pela constituição da cidadania”; ou como um partido “que aceitou as premissas do jogo político

35democrático até as últimas conseqüências” .

Toda organização política, por exemplo – sindicato, partido, etc. -, veicula seu próprio passado à imagem que a forjou para si mesmo. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob o risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e do

36grupo .

A confusão acerca da funcionalidade da memória de fundação é tamanha que papéis foram/são trocados indiscriminadamente, ao ponto de Carlos Nelson Coutinho, dissidente do PT, – que não é nenhum extremista de esquerda – mencionar o ex-presidente do PT para denunciar que a ressignificação da memória, operada por José Genoíno, confundia-se ao sabor de suas intenções políticas.

Quando fazia parte da extrema esquerda do PT, que combatia a idéia de democracia como valor universal e entendia a revolução socialista no Brasil como algo semelhante à tomada de poder do Palácio de Inverno, Genoíno certamente defendia os interesses da minoria do interior do partido e teve estes direitos respeitados. Ninguém nunca pensou em expulsá-lo, nem a ele nem ao partidinho ao qual pertencia. Agora, porém, que chegou ao palácio do planalto, tornou-se o algoz de seus companheiros dissidentes e minoritários. Essa drástica conversão de Genoíno é o emblema da trajetória

37do PT .

Mais do que a trajetória do PT, esta citação assinala a trajetória do uso da memória do PT para os fins de determinados políticos, principalmente aqueles que aderiram ao campo majoritário. O que o PT já foi um dia para Genoíno, não é mais. Sintomaticamente, a sua concepção a respeito do PT e o sentido atribuído por ele à fundação do partido também mudaram, juntamente com a sua prática política. Enveredou por uma linguagem generalizante para atribuir ao governo petista e aos rumos atuais do PT a linha de continuidade do sentido histórico de sua fundação, mesmo que ele tenha estado durante uma década na contramão do que defende hoje, como informou Coutinho.

33 No sentido que Thompson dá ao termo, do sentir e dar respostas cotidianas a determinadas relações sociais e de produção como formas de expressão comum de uma vivência material e cultural.34 Essa atividade de comunicação ganhou o nome de “Rede Povo”. A mesma, parodiava a Rede Globo e o seu velho e reconhecido “plim-plim”. Fitas VHS dos programas eleitorais das campanhas do PT de 1989. Em todos os cartazes da campanha de 1989 havia um recado direcionado ao trabalhador que pedia

colaboração financeira para a campanha. Trata-se de uma diferença real da relação estratégica do PT com a classe trabalhadora.35GENOÍNO, José. A Esquerda e as Reformas. In: Folha de São Paulo, 07/06/2003.36 POLLAK, Michael. Op. Cit. 1989, p. 08.37 COUTINHO, Carlos Nelson. Respostas de Carlos Nelson Coutinho ao Jornal do Brasil. In. Sitio do PSOL. www.psol.org.br. S/D.

82 - Memória e conflito no Partido dos Trabalhadores

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História & Luta de Classes - 83

38 MARX, Karl. O dezoito Brumário de Luís Bonaparte. GIANNOTI, J. A. (org.). In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 320.

O “petismo autêntico”, como já foi dito, serviu como forma de enquadramento do que é e não é petista. Assim, atitudes como a dos deputados Babá, Luciana Genro, Paulo Fontes e da senadora Heloisa Helena, ao contrariarem os interesses da cúpula partidária “autêntica”, são transformadas frente aos trabalhadores como radicais irresponsáveis, sem preocupação com a governabilidade realizada em prol do trabalhador.

O velho argumento da exterioridade do discurso revolucionário dos vanguardistas em relação aos trabalhadores voltou com peso maior e mais coercitivo. Como não lembrar do ex-presidente do partido, José Genoíno, quando bradava na mídia os resultados, para ele positivos, de uma enquete produzida pelo PT sobre as expulsões dos “radicais”? Esta pesquisa revelava, para contento do mesmo, uma ampla aprovação à expulsão dos parlamentares “radicais”, mostrando que os artifícios da memória do “mito fundador”, que era senão o da exclusão de projetos políticos revolucionários ou radicais, tinha efeitos mais poderosos do que se podia prever. Estavam dispostos a expulsar, com apoio da base partidária, os poucos que levantavam voz pública no partido em defesa de um projeto pós-neoliberal, que, como argumentava a própria esquerda, foi o sentimento que levou Lula a vencer o PSDB nas eleições. A força do mito provocou contradições como esta.

Podemos perceber que o argumento contra um setor do PT não mudou muito. O mesmo motivo e nomenclatura que Oliveira mostrou contra a suposta “precipitação” da formação do PT, expressa na “Carta de Princípios”, relatada algumas páginas anteriores, apareceu novamente de maneira pejorativa para denominar os dissidentes do PT durante o governo Lula: os “radicais”.

Conclusão?

Para ser mais explícito, tentamos demonstrar os limites que implicaram para a esquerda petista uma disputa tardia em torno da memória de fundação do Partido dos Trabalhadores, problematizando as possibilidades contraditórias de certa maneira de recorrer à memória de fundação do PT, com o intuito de fortalecer um vínculo programático à esquerda. A “esquerda petista”, assim, corre o risco, se bem que pode ser um cálculo, de “jogar água no moinho” do “petismo autêntico”

(Campo majoritário e seus agregados).

Esse debate ganha relevância no momento em que a esquerda se vê diante de uma nova fase, onde será preciso repensar toda a herança de uma tradição e criar novas representações e projetos. Contudo, há sempre um risco, pois

A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se e às coisas, em criar algo que jamais existiu, (...) os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhe emprestado o nomes, os gritos de guerras e as roupagens, a fim de apresentar-se nesta linguagem emprestada (...) De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para a sua língua natal; mas, só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá

38produzir livremente nela .

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A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000)

Rodrigo Dias Teixeira1

burguesa nas eleições de 1989 concebe o ajuste neoliberal como estratégia para a saída da crise do Estado e do Capitalismo no Brasil.

Assim, “é possível dizer que, a partir do governo Collor, com sua orientação política neoliberal, tende a ocorrer um novo aprofundamento do processo de integração do Brasil no cenário capitalista mundial, já em avançado estágio de globalização produtiva. Ocorre um novo salto qualitativo no processo de inovações produtivas no

4país.” A política econômica neoliberal de Collor e seus choques recessivos impulsionaram as empresas a promover profundas modificações no interior da estrutura do processo de trabalho.

Foi este novo panorama que a CUT enfrentou no início da década de 1990. Não apenas o seu candidato, Lula, tinha sido derrotado na primeira disputa direta a presidente do período pós-ditadura; o candidato vencedor construiu através da atuação governamental uma política que tinha como objetivo debilitar o movimento sindical, o qual começava a ter dificuldades com o aumento do desemprego e do controle patronal no processo de trabalho.

Em setembro de 1991 realizou-se o IV Congresso da CUT, fórum máximo de deliberação da entidade, que contou com a participação de 1.554 delegados, provenientes de 1.679 entidades. Destes, 17% foram eleitos diretamente pelas bases, e 83% pelas direções dos sindicatos. Um dos aspectos mais marcantes deste congresso foi a luta interna pelo controle do poder da Central. Esta luta política, em muitos momentos era mascarada pelo setor majoritário como “questões administrativas”, que envolviam a mudança dos estatutos, a mudança na eleição dos delegados e a questão da chamada proporcionalidade “qualificada”. A eclosão de tantas divergências dividiu o Congresso em dois blocos fundamentais: de um lado, a “Articulação Sindical”, em aliança com a “Nova Esquerda”, a “Vertente

E ste artigo parte de um estudo que tem o objetivo de corresponder às angústias e mudanças de uma nova conjuntura política, a qual fecha um ciclo dentro da organização dos movimentos sociais no Brasil. Se no período de transição pós-ditadura o sindicalismo demonstrava força e capacidade de mobilização, na década de 1990 a avalanche neoliberal gerou importantes modificações no interior do mundo do trabalho, debilitando as entidades das classes subalternas.

Ao invés de perceber meramente a influência do processo de reestruturação produtiva no interior da Central Única dos Trabalhadores (CUT), este estudo busca contribuir também para outro enfoque de análise: em que medida a mudança de atuação da CUT viabilizou a reestruturação produtiva no Brasil, tanto do ponto de vista ideológico quanto político? Ou seja, partir dos aparelhos privados de hegemonia, da Sociedade Civil, para chegar ao Estado no sentido amplo, percebendo

2seus conflitos e mudanças de rota .

O período no qual a CUT manteve-se claramente classista e de massas, que vai desde a formação da comissão pró-CUT, em 1981, até período regido pelo III CONCUT(setembro de 1988 - Setembro 1991), não se encontra no âmbito deste

3artigo . Nesse sentido, priorizamos a década de 1990 em nosso recorte cronológico.

A conversão da CUT: do classismo ao pacto social (1990-1994)

No período pós-Constituição, na ausência inicial de um candidato unificado das classes dominantes, a possibilidade de ascensão de um governo popular representada pela candidatura de Lula da Silva, do PT, contribuiu para o acirramento na correlação de forças. Entretanto, com a posterior unidade em torno da candidatura Collor, a vitória

1 Mestrando em História Social da UFF. Este texto é uma adaptação da monografia “A Conversão da CUT e a relação com o FAT (1980-2000)”, com mudanças no enfoque e recorte cronológico. Bolsista da CAPES.2 Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3 - (Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

História & Luta de Classes - 85

4 Giovanni Alves. Nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – o Brasil nos anos noventa. IN: TEIXEIRA, Francisco J. S.(org.) Neoliberalismo e reestruturação produtiva : as novas determinações do mundo do trabalho. SP: Cortez, 1998.

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5 Elaboração própria. Fonte: CUT. Resoluções dos Congressos da CUT.

86 - A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000)

Socialista” e a “Unidade Sindical”, e do outro lado as outras tendências, como o “CUT pela base”, “Corrente Sindical Classista”, “Convergência Socialista”, “Força Socialista” e outros pequenos grupos. Os campos sindicais nos quais participavam o PC do B e o PCB, antes presentes na CGT, a partir deste IV CONCUT iniciaram a sua participação na Central.

O IV CONCUT foi um grande marco para definição dos caminhos que a CUT trilhou na década de 1990. Este foi o primeiro Congresso no qual o efeito “Funil”, aprovado no III CONCUT foi testado na prática. O que ocorreu foi uma grande diminuição da participação da Base nas definições da CUT, como podemos perceber no quadro abaixo:

Quadro 1 – Evolução da participação dos 5delegados nos CONCUT´s

Com este novo panorama, o Congresso aprovou, por uma pequena maioria de 21 votos, ou 1,35%, o fim da autonomia da CUT perante as Centrais Sindicais Internacionais, abrindo espaço para a filiação da CUT a CISOL na 5ª Plenária Nacional da CUT, em 1992.

A segunda grande votação foi sobre a proporcionalidade qualificada. A oposição desejava um sistema mais democrático, no qual houvesse “revezamento” na escolha dos cargos para a direção da Central. Pelos estatutos vigentes, a chapa vencedora tinha o direito a preencher todos os cargos de acordo com o número de representantes eleitos, sendo os outros posteriormente preenchidos pela chapa perdedora. Se a proporcionalidade qualificada funcionasse, a direção espelharia melhor o equilíbrio do Congresso, pois a chapa vencedora ficaria com a Presidência, a chapa de oposição com a vice-presidência, e assim sucessivamente.

Nesta votação, na primeira contagem houve empate. Realizou-se, então, uma recontagem com a presença de fiscais atentos, dos dois lados e a proposta da oposição foi vencedora: 742 votos favoráveis e 741 contrários. Entretanto, no domingo, reiniciados os

trabalhos, a direção do congresso opta por anular a votação sobre a proporcionalidade porque um dos votos em separado seria “repetido”. Após a notícia da anulação, o congresso ficou paralisado por mais de quatro horas, período no qual os dois blocos existentes na Central tiveram conflitos sérios, inclusive físicos. O tempo foi passando, e chega uma nova informação da mesa diretora dos trabalhos, avisando que o prazo para a inscrição das chapas havia sido encerrado e com apenas uma chapa inscrita, a da “Articulação Sindical”, passando-se assim para votação. A situação, que já era complicada, piorou ainda mais. Após uma forte pressão da oposição, foi dado um pequeno prazo para que outras chapas se inscrevessem. Dessa forma encerrou-se a polêmica sobre a votação da proporcionalidade, com a manutenção do estatuto da CUT, passando por cima da deliberação do Congresso que aprovara a “proporcionalidade qualificada”6.

Apenas duas chapas se inscreveram para participar do processo eleitoral neste congresso. A chapa 1, encabeçada por Jair Meneguelli, da Articulação Sindical e seus aliados, com 52,16%, e a chapa 2, liderada por Durval de Carvalho, da CUT pela Base, em conjunto com os outros setores da oposição, com 47,84%.

Neste Congresso ocorreu a reeleição de Jorge Lorenzetti para a Secretaria Nacional de Formação. Neste mesmo ano, o plano de Trabalho da Secretaria Nacional de Formação propõe a manutenção de grande parte do conteúdo para o curso de Concepção, Estrutura e Prática Sindical (CEPS), naquele período visto como o “carro chefe” da formação cutista.

Após a vitória do setor majoritário, assim o Secretário Geral da Central reeleito, Gilmar Carneiro, avaliou o IV CONCUT:“Em 1983, no Congresso de fundação da CUT tiramos fora a direita. Neste IV

7CONCUT nos livramos da esquerda .”

Logo após o Congresso, em 13 de dezembro de 1991, em São Bernardo do Campo, ocorreu a “Vigília contra a Recessão”, cujo lema era “Vamos acender a chama da dignidade e da produção”. No palanque, lado a lado, trabalhadores, empresários e políticos ligados aos setores burgueses: entre os presentes, estavam Mário Amato, presidente da Federação do Comércio, e Emerson Kapaz, representante da PNBE, além de representantes da FIESP e outros empresários. Este seria o pontapé para um novo pacto da CUT com os setores empresárias para resgatar o “desenvolvimento econômico” do país, já que, dois meses após, Vicentinho estava trabalhando pela criação das câmaras setoriais.

Base

65,9% 34,1%

70,51% 29,49%

51% 49%

17% 83%

I CONCUT

II CONCUT

III CONCUT

IV CONCUT

Direção

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6 NETO, Sebastião e GIANNOTTI, Vito (orgs). Para Onde Vai a CUT?. São Paulo, Página Aberta, 1993.7 Jornal da Tarde. 12.9.91 NETO, Sebastião e GIANNOTTI, Vito (orgs). Para

História & Luta de Classes - 87

As câmaras setoriais foram apresentadas pelo setor dirigente da CUT como a ferramenta que salvaria o Brasil da crise, uma alternativa estratégica para o conjunto do sindicalismo da década de 1990. Dessa forma, o setor dirigente da CUT, logo após o IV CONCUT, propõe como solução para o processo de reestruturação produtiva a construção de um grande pacto entre empresários, trabalhadores e governo. Das 26 câmaras setoriais existentes, a CUT participava em 14.

Em 1992 a inércia da CUT frente a crise do governo Collor e sua incapacidade de organizar manifestações sindicais para pressionar a saída do presidente, refletiam bem a mudança de postura da Central, e seu gradativo distanciamento das bases. A atuação da Central acabou por não impor uma dinâmica mais enfática e organizada ao movimento “Fora Collor”. O quadro de recessão econômica com desemprego e arrocho salarial colocaram os trabalhadores na defensiva, agravada pela postura vacilante e conciliadora da CUT.

Em março de 1993, após o impeachment de Collor e a manutenção do vice Itamar, a reunião da Direção Nacional aprovava uma política em relação ao Governo: nem ser oposição, nem situação. Além disso, mantinha em sua forma de atuação a participação nos espaços de pacto social, imprimindo uma postura cada vez mais conciliadora com a ordem vigente. Um exemplo desta postura foi a proposta de “negociação ampla” do governo Itamar Franco, em julho de 1993.

E em 5 de abril de 1993, não mais de duzentas pessoas compareceram ao ato público, convocado pela CUT, na cidade do Rio de Janeiro, para protestar contra a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), demonstrando que a Central já não conseguia mobilizar como antes. Estava em curso, portanto, uma conjuntura mais desfavorável, com forte queda das greves:

8Quadro 2 - Greves no Brasil (1989-1993)

Se até 1989 podíamos avaliar o período enquanto de crescimento do movimento sindical e de resistência, após 1989 temos uma queda da sua força política, e de forma correlacionada, a viabilização na prática do projeto neoliberal pelas classes dominantes.

Em 19 de maio de 1993, Fernando Henrique Cardoso foi escolhido enquanto Ministro da Fazenda do Governo Itamar, e em 24 de fevereiro de 1994, o governo anunciava o Plano Real. O ministro FHC transformou-se, através do Plano, em figura de apoio popular, com uma forte atuação midiática por trás. Com o “sucesso” do plano e o respaldo político generalizado, nas eleições de 3 de outubro de 1994, FHC foi eleito presidente da República no primeiro turno, com quase 55% dos votos válidos, enquanto o segundo colocado, Lula da Silva do PT, apoiado pela CUT e a grande maioria dos movimentos sociais do país, atingiu 37% dos votos.

O V CONCUT ocorreu numa perspectiva de comemoração dos 10 anos da Central (1983-1993), e a partir deste marco fazia um balanço do período. Cada vez mais na Central, e este V CONCUT fez parte desta perspectiva, ganhava força a idéia de que os primeiros dez anos foram marcados por uma política reativa da CUT, e que para enfrentar a nova conjuntura, o importante não seria apenas questionar as políticas neoliberais do governo, mas “sugerir alternativas”.

O que estava colocado, entretanto, não era apenas a construção de planos alternativos ao neoliberalismo. A política da maioria da Direção da CUT era conceber um novo consenso no interior da Central que legitimasse sua política de participação nos fóruns tripartites. E sua atuação nesses espaços mantinha uma postura subordinada a política das classes dominantes, pois via o ajuste neoliberal e suas conseqüências, como a reestruturação produtiva,

9como algo inexorável . Como expressão da atuação baseada nos espaços de pacto-social, em junho de 1994 a CUT participava de 16 conselhos tripartites organizados pelo Governo Federal.

No V CONCUT foi eleito para presidência da CUT Vicente de Paulo da Silva, o “Vicentinho”, além de uma nova Secretaria Nacional de Formação, tendo agora a frente Mônica Valente, psicóloga e militante do Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Público de Saúde do Estado de São Paulo. É o fim da participação de Jorge Lorenzetti a frente da SNF, na

Ano

1989

1990

1991

1992

1993

Nº de Greves

3.943

2.357

1.399

554

653

Indice = 100

100

59,77

35,48

14,05

16,56Onde Vai a CUT?. São Paulo, Página Aberta, 1993. pág. 548 MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 2002. Elaboração Própria9 CUT. Resoluções do V Congresso Nacional da CUT

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10 CUT – Resoluções do V CONCUT11 CUT – Resoluções do V CONCUT12 CUT – 7ª Plenária Nacional. 199513 Os Fóruns tripartites são espaços de deliberação nos quais participam representantes dos trabalhadores, empresários e governo. 14 O Fundo PIS-PASEP é resultante da unificação dos fundos constituídos com recursos do Programa de Integração Social - PIS e do Programa de Formação

qual esteve durante 8 anos (1986-1994).

O V CONCUT deliberou no que tange a 10“Política Nacional de Formação da CUT ” uma nova

estrutura de organização, como também o esquecimento da referência a uma formação classista e anticapitalista. O texto faz diversas referências ao “projeto sindical cutista”, oriundo de um espaço de “reflexão e capacitação crítica”. Nesse momento foram deixados de lado os princípios do estatuto da CUT, a qual deveria ser classista e anticapitalista, para nortear a formação no “projeto sindical cutista”. O eixo político que norteou a consolidação das mudanças de rumo da formação político-sindical da CUT foi a substituição da luta classista pelo exercício da cidadania.

No mesmo V CONCUT, temos uma deliberação sobre a “Formação Profissional”. Nela, ao mesmo tempo em que a CUT colocou-se na defesa de uma Formação Profissional financiada e executada pelo Estado, não condenou diretamente que sindicatos de sua base realizassem cursos de

11formação profissional . É importante destacar que muitos sindicatos que realizavam estes cursos tinham seu aparato burocrático vinculado às políticas corporativistas, tanto da Era Vargas quanto da Ditadura Militar. Muito do “novo sindicalismo” ainda convivia com o “velho”.

A CUT conciliadora e a execução da formação profissional através de recursos do FAT (1994-

2000)

Entre 1994-1995 crescia nos fóruns da CUT o debate sobre a Formação Profissional, até que em agosto de 1995, na 7ª Plenária Nacional, a mudança de rumos foi consolidada.

A 7ª Plenária teve no ponto “Formação Profissional” um dos seus textos de deliberação mais elaborados. Nele a CUT já não diferenciava Formação Profissional de requalificação profissional, utilizando os termos enquanto sinônimos. Outro aspecto importante foi a defesa da realização cursos de Formação Profissional como forma de aproximação da Central com os segmentos desempregados da sociedade.

Nesta mesma plenária, a CUT deliberou

“organizar através da Secretaria de Políticas Sociais, Secretaria de Formação e Secretaria de Política Sindical, um plano de trabalho para implementar a política de Formação Profissional da CUT na estrutura da Central (Escolas de Formação,

12estrutura vertical etc.)” .

Esta deliberação forçou o aumento da relação da CUT com a institucionalidade, em especial

13na participação nos fóruns tripartites . O mais importante destes é o CODEFAT, Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador.

O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) foi criado em 1990 pela Lei 7998/90 que regulamenta o artigo 239 da Constituição de 1988, em pleno governo Collor. Trata-se de um fundo contábil, vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência Social(MTPS), formado com recursos provenientes

14do PIS/PASEP destinados ao custeio do Programa do Seguro Desemprego, ao pagamento do Abono Salarial e financiamento de programas de desenvolvimento econômico e requalificação profissional. Para se ter uma idéia da grandiosidade deste fundo, em 2000, o FAT totalizava, aproximadamente, sessenta bilhões de reais, constituindo-se como o maior fundo público não orçamentário do país e um dos maiores do mundo. Para efeito de comparação, podemos lembrar que no mesmo ano o total de empréstimos cedidos pelo Banco Mundial chegou a 26,7 Bilhões de Reais, ou

15seja, menos da metade dos recursos do FAT .

Em conjunto com a criação do Fundo, foi instituído seu Conselho Deliberativo, o CODEFAT. A CUT inicia sua participação no CODEFAT em 26 de Julho de 1990, sendo seu representante Antonio Carlos de Andrade, naquele momento Secretário de Política Social da Central, e membro da Federação Nacional das Associações de Servidores da Previdência Social (FENASPS). Dos recursos do FAT, 60% são destinados ao Sistema Público de Emprego – SPE, e 40% são aplicados no BNDES. Excetuam-se do domínio do CODEFAT os 40% destinados ao BNDES, apesar deste ter que prestar contas ao Conselho. Ou seja, o CODEFAT não tem interferência sobre as verbas do FAT aplicadas diretamente no BNDES.

No geral, a participação da CUT no CODEFAT no primeiro período (1990-1994) é sem

do Patrimônio do Servidor Público - PASEP. São mantidos pelas pessoas jurídicas - com exceção das micro e pequenas empresas, que são obrigadas a contribuir com uma alíquota variável (de 0,65% a 1,65%) sobre o total das receitas. 1 5 A n n u a l R e p o r t 2 0 0 0 – T h e W o r l d B a n k http://www.worldbank.org/html/extpb/annrep2000/content.htm

88 - A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000)

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Sistema S é o nome pelo qual ficou convencionado de se chamar ao conjunto de onze contribuições de interesse de categorias profissionais. Dentre as mais conhecidas estão o Senai, Sesi, Senac, Sesc e Sebrae.AFFONSO, Cláudia. A CUT Conselheira: Tripartismo e Formação Profissional. Concepções e práticas sindicais nos anos 90. [Tese da UFF]. Niterói, RJ : : s.n., , 2001.pg 92 CUT – 7ª Plenária Nacional. 1995BOITO, Armando. Política Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. São Paulo,

História & Luta de Classes - 89

grande entusiasmo, mantendo seus princípios de “disputa das concepções e dos recursos públicos”, como também reivindicando um maior controle sobre

16o Sistema “S” . Esta atuação modifica seus rumos a partir da Resolução 80 do CODEFAT, em 1994, que institui as Comissões Municipais e Estaduais de Trabalho e Emprego, com o objetivo de transferir ao poder local as decisões dos recursos do FAT e sua fiscalização, na perspectiva do Programa de Geração

17de Renda (PROGER), criado no mesmo ano . Estas comissões reproduziam a estrutura do CODEFAT em âmbito Estadual e Municipal.

As Comissões Municipais e Estaduais de Trabalho e Emprego aumentaram a estrutura institucional do FAT, o qual deixou de ter uma deliberação centralizada dos seus recursos por meio do CODEFAT. Na 7ª Plenária Nacional, a Central deliberou que as CUTs Estaduais deveriam “(...)tomar todas as iniciativas necessárias para a constituição das Comissões Tripartites Estaduais de

18Emprego nos seus estados” .

Nesse sentido, a partir de 1994 a CUT organizou grande parte da sua estrutura, como as CUTS Estaduais e Secretarias de Formação Estaduais, para participação em Comissões Tripartites vinculadas ao FAT. É necessário relembrar que esta política inseriu-se no contexto do V CONCUT, no qual a Central ratificou uma posição de complacência com a realização da Formação Profissional por seus sindicatos filiados, que agora, através das Comissões Municipais de Trabalho e Emprego, podiam disputar livremente os recursos do FAT.

No plano conjuntural, no ano de 1995 ocorreu a posse de FHC enquanto Presidente da República. Para além da política econômica baseada no Plano Real, que previa corte de gastos públicos, endividamento externo e juros altos como mecanismos de atração de capitais, o processo de privatização no governo FHC foi um dos pilares centrais do ajuste neoliberal no Brasil. A privatização foi uma política de Estado, na qual foram utilizados seus aparelhos para viabilizar a incorporação do patrimônio das empresas públicas pelos grandes bancos e grupos empresariais.

Como resposta a este processo, em 1995

ocorreram manifestações importantes contra as contra-reformas constitucionais. Em abril de 1995, a CUT-SP reuniu, na Praça da República, 15 mil manifestantes no Dia Nacional de Lutas Contra as Reformas Constitucionais.

Porém, dois dias depois da greve geral dos funcionários públicos federais contra as privatizações (realizada no dia 3 de maio), a Direção Nacional da Central decidiu, por iniciativa da corrente “Articulação Sindical”, abrir negociações com o governo em torno das contra-reformas

19constitucionais . Dos 90 sindicalistas presentes na reunião, 55 votaram a favor, 28 contra, e 7 abstiveram-se. Foi esta postura de conciliação de classes que fundamentou a ida de Vicentinho para negociar com o governo FHC, no ano seguinte, a Contra-Reforma da Previdência.

Em fevereiro de 1996, chegou a ser assinado entre o Governo e a direção da CUT um acordo sobre a Contra-Reforma da Previdência, o qual só retirava direitos dos trabalhadores e contrariava pontos básicos da plataforma cutista sobre a matéria, como a substituição do tempo de serviço pelo tempo de contribuição na contagem para a aposentadoria. Todos os partidos de esquerda, como o PT, e alguns outros partidos de proveniência trabalhista, anunciaram publicamente que votariam contra a

20proposta oriunda do acordo . Vendo-se politicamente isolado e abandonado pelo seu próprio partido, o presidente da CUT, Vicentinho, apenas 24 horas antes da votação do projeto enviado a Câmara, rejeitou o acordo.

Nesse sentido, podemos afirmar que a gestão de Vicentinho corresponde a uma fase de inflexão ainda maior da CUT em direção a uma concepção de sindicalismo conciliador, baseado na disputa de propostas e recursos nos conselhos tripartites.

No ano de 1996 foi organizado aquilo que se transformou na matriz da nova vertente de atuação no âmbito da política de formação da CUT, o curso de formação de dirigentes “Ação sindical sobre emprego, o trabalho e a educação do trabalhador”, realizado pela Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), em intercâmbio com os metalúrgicos da Suécia e parceria com as Escolas

Xamã, 1999.pág. 179 Este episódio foi uma das demonstrações que o processo de conversão da CUT aconteceu de forma diferente do ocorrido com o PT; inclusive o processo de degeneração da Central realizou-se antes, e de forma mais “prolongada”. Sobre as mudanças ocorridas nos grupos dirigentes do PT, ver COELHO, Eurelino. Uma Esquerda Para O Capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Tese de doutoramento. Programa de Pós Graduação em História, UFF, 2005.

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AFFONSO, Cláudia. A CUT Conselheira: Tripartismo e Formação Profissional. Concepções e práticas sindicais nos anos 90..pág CUT/Escola Sindical São Paulo. “A crise brasileira no final do século XX: perspectivas para o movimento sindical”. Série Debates e reflexões n° 6.1999. Retirado de AFFONSO, Cláudia. op. cit., pág 192. “Na atual conjuntura, a pura e simples negação das reformas propostas pelas

21Sindicais SP, 7 de Outubro e Sul . O projeto, construído no interior do programa “Integrar”, partia da referência de uma nova concepção de formação na CUT, que devia superar “a visão ilustrada da formação sindical, calcada na transmissão de

22ideologias” . Seu objetivo era associar formação profissional com certificação de 1º grau; rapidamente o projeto se irradiou por várias partes do Brasil, o que nos faz considerar este como sendo parte das primeiras atividades de formação profissional que foram desenvolvidas pela própria CUT.

Em 1997 ocorreu o VI CONCUT, com a presença de 2.140 delegados, representando 19.451.589 trabalhadores. Desde o IV CONCUT, a Central não divulgava mais, nos números do Congresso, a relação entre os delegados da Base e da direção dos sindicatos. Uma das modificações importantes foi que, ao contrário dos outros Congressos, nos quais existia um caderno de teses por cada tendência, neste VI CONCUT esta tradição foi substituída por uma tese única da Direção Nacional da CUT.

As deliberações deste Congresso deram outro tom à construção de um novo consenso no interior da Central, que possibilitasse a mudança de rumos imprimida pela “Articulação Sindical”. Para o setor majoritário, a manutenção da visão “meramente de resistência”, típica da década de 1980, e identificada com as correntes de oposição, não seria apenas um equívoco, mas uma postura

23conservadora .

Sobre a reestruturação produtiva, a CUT não mais colocava-se contra o processo. A central devia lutar então por uma “reestruturação com justiça social”: o importante era negociar o ritmo e a forma da reestruturação produtiva, não questionando os seus objetivos estratégicos e seu conteúdo de classe. A CUT defendia a importância da “modernização tecnológica” das indústrias como forma de superação do desemprego, aplicando enquanto sua a estratégia das classes dominantes, sendo dirigida intelectual e moralmente pela burguesia.

Dessa forma, a perspectiva sindical-instrumental da formação da CUT deixou de priorizar a organização dos sindicatos e das lutas em direção a construção de subsídios para a ação institucional dos dirigentes, consolidando a atuação da CUT enquanto

executora de atividades de Formação Profissional, seja na qualificação de formadores, ou mesmo na realização de projetos. E sobre a forma de viabilização do financiamento destas atividades, a deliberação também era muito clara: construir uma política de disputa de recursos provenientes do FAT.

O VI CONCUT selou o término da transição da CUT, de um sindicalismo classista e combativo, para um sindicalismo conciliador e pelego, de uma postura de resistência e busca de alternativas estratégicas, para a disputa de propostas no campo institucional como prioridade. Neste Congresso foi eleito um novo Secretário para a SNF, Altemir Tortelli, membro da Fetraf-Sul – Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar, como também a reeleição de Vicentinho para a Presidência da CUT.

No 12º Encontro Nacional de Formação, realizado em Novembro de 1997, o tema mais discutido, alvo de uma polêmica aberta e demarcada, foi a Formação Profissional. Entretanto, apesar das grandes divergências, a CUT já havia buscado recursos do FAT para a realização de atividades de Formação Profissional, antes mesmo das deliberações deste 12º ENAFOR. Segundo Mônica Valente, ex-Secretária da SNF, o “projeto da CUT foi apresentado no início do ano (1997), foi aprovado

24em agosto e o dinheiro chegou em outubro.” Este novo projeto tinha como referência de Formação Profissional as atividades realizadas pelo “Integrar”, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos, assim afirmou Altemir Tortelli no Encontro, já empossado

25como novo Secretário da SNF . Foi proposto ao CODEFAT enquanto “Programa Integral de Capacitação de Conselheiros das Comissões Estaduais e Municipais de Trabalho, Emprego e Renda e de Formação de Formadores em Educação Profissional”.

O Integral corresponde ao Convênio MTb/Sefor/Codefat 0011/97 CUT. A Capacitação de Conselheiros ofereceu mil vagas em 1998 e mil vagas em 1999. Nos dois casos a estrutura foi modular, combinando oficinas, seminários e módulos de formação à distância. No que tange à Formação de Formadores em Educação Profissional, foram oferecidas 500 vagas em 1998 e 500 vagas em 1999, para o curso de 120 horas, organizado em 3 módulos.

elites, equivale a uma posição conservadora, de manter o status quo, herdado dos militares (...)” CUT. IV Congresso Nacional da CUT - 1997 Entrevista de Mônica Valente. Retirado de TUMOLO, Paulo Sergio. Da Contestação à Conformação – A Formação Sindical da CUT e a Reestruturação Capitalista. São Paulo, Ed Unicamp, 2001, pág 230 Idem, ibidem

90 - A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000)

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História & Luta de Classes - 91

Esta foi a primeira parceria nacional da CUT com o FAT, coordenada pela Secretaria Nacional de Formação através de sete escolas orgânicas e das CUT Estaduais. A construção do Programa Integral através de um convênio de âmbito nacional com o FAT revelava uma relação cada vez mais orgânica com a institucionalidade. Como exemplo dessa política, temos a atuação do Presidente do CODEFAT no final de 1997, Delúbio Soares de Castro, representante da CUT no Conselho, que sugeriu o aumento das verbas do FAT de cerca de 360 milhões

26de reais para 1 bilhão de reais , já que assim a CUT poderia disputar um montante maior de recursos.

Em 1998 ocorreram novamente eleições, na qual a burguesia repetiu o que fizera na eleição de 1994: unificou-se em torno da candidatura de Fernando Henrique Cardoso para derrotar Lula e “exorcizar” a possibilidade de um candidato mais à esquerda no poder. Mas, passada a eleição, começavam a surgir indícios de que o período pós-eleitoral seria diferente do anterior.

O ajuste neoliberal, em um primeiro período, procurou obter uma base de apoio proveniente das classes subalternas, dirigindo as críticas existentes ao aparelho do Estado e a falta de políticas públicas em prol do projeto de contra-reformas. Em um segundo momento, entretanto, se os trabalhadores não ofereciam uma ampla resistência ao neoliberalismo (em certa medida devido à mudança de atuação de grande parte de suas entidades de classe, e de um “consenso” construído de que a privatização “visava” liberar recursos para as áreas de saúde e educação e para diminuir a dívida externa), começavam a perceber na prática os seus efeitos, questionando seus condutores. Além disso, o forte crescimento do desemprego e do trabalho informal gerados por esta política também aumentou o descontentamento existente.

Neste “mar de insatisfação” a Executiva Nacional da CUT aprovou, no final de 1998, uma iniciativa pioneira: a criação da Central de Atendimento Integrado ao Trabalhador, com o objetivo de transformá-la em experiência-piloto de desenvolvimento “do espaço público não estatal”, executando assim um programa específico de intermediação de mão-de-obra.

No ano de 1999 ocorreu a 9ª Plenária Nacional da CUT. Nas deliberações sobre a “Formação Profissional”, elegeu-se como principal tarefa a centralização das atividades e recursos nesta área, como também a construção de “espaços

públicos não-estatais” organizados pela sociedade civil para execução das atividades formação profissional, na perspectiva de “disputa de hegemonia” da sociedade: “a construção de espaços públicos não estatais é convergente com os princípios que sempre nortearam a ação da Central e de todo o campo democrático-popular no processo constituinte de 88, ancorados na crítica da natureza privatista do

27Estado brasileiro.”

Também em 1999, a CUT firmou, em âmbito nacional, um convênio único com o MTE/Sefor, por meio do Projeto Nacional de Qualificação Profissional – CUT Brasil, que envolveu sete programas de educação, formação profissional e desenvolvimento solidário, o “Integração”. Para este p r o j e t o f o i d i s p o n i b i l i z a d o p e l o FAT R$21.000.000,00 (vinte e um milhões de reais), o que representava 70% dos gastos totais da CUT no ano em questão.

No ano de 2000 realizou-se o VII Congresso Nacional da CUT, o VII CONCUT. Neste Congresso, a Central via como principal alternativa ao desemprego existente no país a construção da “economia solidária”, através de cooperativas, como “políticas alternativas de mercado”.

A perspectiva da CUT era a construção de um “projeto alternativo de Sistema Público de Emprego”, no qual a Central devia ser protagonista na efetivação de uma nova agenda política, formalizando ações e propostas na área. Este projeto alternativo deveria ser composto por três dimensões primordiais: 1) envolvimento direto das entidades sindicais na gestão de políticas de emprego, trabalho e renda; 2) oferta articulada dos programas de seguro-desemprego, intermediação de mão-de-obra, educação e requalificação profissional, microcrédito, incubadoras de empresas e cooperativas de produção. 3) construir iniciativas de espaços públicos não estatais com a execução das políticas estatais de

28empregos dos municípios e dos governos estaduais .

Foi radicalizada, portanto, a concepção de que a CUT deveria construir espaços “públicos não estatais”, baseados no protagonismo da “sociedade civil” para dividir a responsabilidade com o Estado na formulação e execução do Sistema Público de Emprego. A CUT seria então mais eficaz e democrática para a realização de políticas públicas na área de trabalho, emprego e renda, cabendo ao Estado o financiamento destas atividades através do FAT. Neste mesmo VII CONCUT Altemir Tortelli é reeleito para a Secretaria Nacional de Formação, o

Folha de São Paulo. 17/05/98. Retirado de idem, ibidem, pág 199 CUT – Deliberações da 9ª Plenária Nacional

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qual gerenciou uma estrutura nunca antes vista no âmbito da Central para a Formação Profissional. No ano de 2000 o FAT destinou a CUT um montante de R$35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de reais) para a realização de atividades na área de formação profissional, baseadas no Plano Nacional de Qualificação da CUT e do projeto “Integração”. E como executor destas políticas, João Felício, da APEOESP-Sindicato dos Professores – SP, foi eleito presidente da CUT.

Conclusão

Podemos avaliar, portanto, que as transformações ocorridas na CUT, indo em direção a execução de cursos de Formação Profissional, teve a influência de alguns fatores, como: 1)Participação nos fóruns tripartites vinculados ao FAT, como o CODEFAT e as Comissões Estaduais e Municipais de Emprego. 2)Abertura da possibilidade de execução de atividades na área de formação profissional. 3) A perspectiva da democratização do Estado através da criação de espaços “públicos não estatais”. 4) A manutenção da participação da “Articulação Sindical” na Secretaria Nacional de Formação durante 14 anos (1986-2000).

Desde o V CONCUT, em 1994, no qual as atividades de formação profissional nos sindicatos filiados a CUT deviam ser “avaliadas enquanto experiências”, passando pela realização do “Integrar” pela Confederação Nacional dos Metalúrgicos em 1996, pelo “Integral” construído pelo CUT em 1997/1998, até consolidar-se no programa “Integração” em 1999, a Central foi progressivamente aumentado sua participação na execução de cursos de Formação Profissional. Além da mudança de concepção, na qual um dos centros de atuação para superação do desemprego torna-se a requalificação profissional do trabalhador, a CUT tende a atrelar-se ao Estado, pois é a partir dos recursos provenientes do FAT, em sua grande maioria, que os cursos de formação profissional são realizados. Este atrelamento aumenta ano após ano, como podemos ver na seguinte tabela:

Quadro 3 – Progressão dos recursos provenientes 29do FAT para CUT (1998-2000)

Ocorreu um crescimento de mais de 335% no recebimento de recursos pela CUT através do FAT num período de apenas 3 anos.

Ou seja, a CUT, em consonância com sua diretriz de “Central Cidadã” consolidou no final da primeira metade da década 1990, a busca pela construção de espaços “públicos não estatais”, os quais em geral são articulações de entidades da sociedade civil com financiamentos estatais. Já que o Estado, por si só, era neoliberal e privatista, a própria CUT, enquanto representante legítima da sociedade civil poderia realizar políticas públicas na área de emprego, visando à ampliação da atuação estatal e sua democratização. A Central deixou de prioritariamente cobrar a execução de políticas públicas pelo Estado para ver-se enquanto melhor realizadora das mesmas políticas, lutando pela ampliação de recursos estatais na área de intermediação de mão de obra e requalificação profissional.

Existiu uma tendência geral da CUT caminhar em direção aos espaços formais e institucionais, enquanto o mundo do trabalho tornava-se cada vez mais “ilegal” e informal, pois o avanço das classes dominantes criava um novo “código real”, que desprezava o “código legal” na medida em que este garantia conquistas aos trabalhadores.

Retirado de “Prestando Contas – Balancete da Tesouraria Nacional da CUT – Agosto de 1999” e “ENAFOR – 2000”. Elaboração Própria Soma do total de Recursos da CUT Nacional (R$3.000.000,00) e da Confederação Nacional dos Metalúrgicos – CUT (R$5.000.000,00)

Quantidade de Recursosdo FAT para a CUT Índice = 100Ano

1998 R$ 8.000.000,00* 100

1999 R$ 21.000.000,00 262,2

2000 R$ 35.000.000,00 437,5

92 - A conversão da CUT e a relação com o FAT (1990-2000)

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Uma crônica para os dias de hoje

1Jefte Pinheiro Jr

s coisas do nosso tempo modificam-se às vezes muito depressa, mostrando a nós, de forma direta e arrasadora, enormes adversidades. A realidade apresenta-nos problemas incontornáveis ao incauto olhar, que exigem de nossa parte esforços aparentemente inalcançáveis para superar. Isto vale especialmente para os militantes de esquerda e os revolucionários, que precisam compreender com profundidade as velozes variações da conjuntura, com implicações sobre suas infindas diferenças internas.

É disso que trata a crônica que resenhamos. Chamamos assim porque o mesmo é feito pelo autor, que batizou o sub-título do livro como uma “Crônica da Segunda Internacional”. A essa altura, decerto, o leitor já percebeu que o inconcluso raciocínio do parágrafo anterior não resistiria a um mínimo de racionalidade. É justamente isso que queremos acentuar: o movimento socialista já passou por dificuldades e crises de dimensões semelhantes às mais recentes, sendo indispensável o estudo dos caminhos percorridos por quem nos antecedeu como forma de lobrigar opções nas ocasionais trevas contemporâneas.

Ronald Rocha, militante e pesquisador das ciências humanas, se dispôs, à luz de um importante material reunido e tempo dedicado ao estudo, a visitar a trajetória da Segunda Internacional. Percorreu este caminho não com a preocupação técnico-acadêmica costumeira de construir uma obra histórica como fazemos nos centros de pós-graduação. Preferiu o caminho da crônica, de olhar para este objeto explicitamente preocupado com os dilemas contemporâneos, sobretudo por sua flagrante similitude com nossa realidade hodierna em uma série de aspectos. Advertimos logo que esta escolha não significou, de maneira nenhuma, negligência científica, sendo um trabalho capaz de se posicionar teoricamente de maneira clara. Trata-se, portanto, sem mediações, da crônica de um socialista sobre a Segunda Internacional. Essas características fazem da

obra mencionada um trabalho instigante e de leitura fácil.Duas dimensões da realidade visitada por Ronald despertam destacado interesse: a primeira delas é a gravidade dos tempos em que a Segunda Internacional atuou. Não bastasse a construção dos grandes impérios financeiros do capitalismo moderno, e a conseqüente dominação imposta às nações mais pobres, os debates do movimento socialista internacional percorreram a crise em cujo ápice estava a Primeira Guerra Mundial, uma das maiores tragédias da história humana. Em segundo lugar, está o fato de que as diferentes correntes ideológicas presentes nos embates políticos daquela época formam, no fundamental, a base de quase todos os grupos auto-intitulados socialistas no mundo de hoje.

A Segunda Internacional é considerada, pelo livro, fruto do esforço continuado de Marx, Engels (este último principalmente, após a morte do primeiro em 1883) e alguns poucos militantes menos conhecidos em organizar supra-nacionalmente os primeiros movimentos proletários. Nasce, porém, da tragédia da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), que em sua breve vida esteve mergulhada em disputas e desavenças (tanto teóricas como na ação política) que impediram seu desenvolvimento. O pluralismo ideológico da Primeira Internacional incluía marxistas, anarquistas, democratas radicais, positivistas, entre outras tendências captadas pelo autor.

Dessa maneira, concluía-se que a nova experiência, para ser melhor sucedida deveria estar acompanhada de uma definição mais precisa de seu caráter político – o que foi tentado, mas apenas parcialmente alcançado. Afinal, olhando para a realidade da segunda metade do século XIX: “O certo é que Marx – apesar de muito respeitado moral e intelectualmente – era francamente minoritário nesse carrossel democrático e proletário.” (p. 37) Assim, a nova organização nascia ainda muito ampla e não

A

Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

História & Luta de Classes - 93

Resenha do livro ROCHA, Ronald. O movimento socialista no limiar dos impérios financeiros. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2006.

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94 - Uma crônica para os dias de hoje

pode ser entendida como um bloco homogêneo dominado pelas forças revolucionárias, mesmo porque as disparidades se ramificavam por dentro dos que defendiam a idéia de ruptura.

O movimento mais curioso tratado pelo livro, e que debate abertamente a política deste século XXI, é o da gestação e consolidação de um campo, alcunhado pelo autor de social-liberal. Animados pela derrota do levante na Rússia de 1905, os críticos da doutrina marxista se deixaram levar pela maré nacionalista da era de expansão do imperialismo, que posicionou o mundo às portas da I Guerra Mundial. Aliás, é a própria proximidade do conflito armado que fez nascer na esquerda revolucionária a palavra de ordem de “guerra à guerra”, vitoriosa nas primeiras reuniões do Birô Internacional em 1912, mas que se dissolveu em anos seguintes.

A expansão, nesse contexto, das versões social-democratas, reformistas e adaptacionistas trouxeram consigo a desarticulação do combate socialista à guerra mundial. O internacionalismo proletário fora substituído pelo chauvinismo burguês de importantes lideranças, como Bernstein, Adler e Guesde. A esquerda, sustentada por Rosa Luxemburg, Bebel e pensadores russos, entre os quais Lênin, ainda tentou articular a resistência internacional à disputa militar burguesa, mas fracassou diante da hegemonia do nacionalismo burguês. Restou o desabafo de Rosa diante da prostração da II Internacional: “Proletários de todos os países, uni-vos em tempos de paz e degolai-vos uns aos outros em tempo de guerra!” (p. 151).

A situação política do Brasil claramente não está inserida num contexto de corrida armamentista ou de conflito bélico. Há, todavia, grande expansão de trabalhos acadêmicos empenhados em descortinar as razões do recente transfúgio, ou transformismo, de segmentos da esquerda brasileira em direção a ideologias burguesas ou defensoras de alterações minimalistas na ordem do capital. Que peso tem, nesses processos, as determinações materiais da conjuntura? É para investigar dúvidas desse caráter que propomos a leitura do livro de Ronald, a partir de u m a c o n c e p ç ã o h i s t ó r i c a q u e a f a s t a , simultaneamente, o acaso e a inevitabilidade, e aponta como eixo dessas questões o embate político das classes sociais.

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Lutas, vitórias e derrotas doprojeto nacional-desenvolmentista brasileiro

1Rodrigo Castelo Branco

difícil imaginarmos, hoje, em tempos de apatia política, conversões ideológicas à direita e transformismo de antigas lideranças sindicais e políticas progressistas do Brasil que, nestas paragens tupiniquins, um dia ousamos construir um projeto de nação autônoma e soberana.

Até mais ou menos o término da Segunda Guerra Mundial, era corrente a defesa de idéias contrárias a uma inserção soberana e autônoma do Brasil na divisão internacional do trabalho. Enquanto teses racistas pregavam a (suposta) incapacidade laboral do povo brasileiro para o trabalho industrial, definida segundo critérios determinados pela “ciência” evolucionista européia, setores econômicos e políticos ligados às atividades primárias asseveravam a vocação agrária do país, baseada na teoria das vantagens comparativas das trocas internacionais.

No período que vai do final da Segunda Guerra até o golpe civil-militar de 1964, um grupo substantivo e heterogêneo de intelectuais e políticos delineou uma ideologia que mais tarde ficaria marcada pelo nome de desenvolvimentismo. Basicamente, os ideólogos ativos do nacional-desenvolvimentismo contrapunham-se à condição periférica que o Brasil ocupava no mercado mundial, tanto por força de pressões externas quanto do conservadorismo das classes dominantes nacionais.

Travava-se, desta forma, grandes batalhas ideológicas com forte impacto na política nacional, grosso modo, dividida por duas linhas de trincheiras: de um lado da contenda, tínhamos os agraristas e os conservadores, defendendo a inserção dependente e subordinada do Brasil no mercado mundial; de outro, os nacional-desenvolvimentistas postulavam a

É

Doutorando da Escola de Serviço Social/UFRJ, Membro do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA) José Ricardo Tauile do Instituto de Economia da UFRJ, Professor do UniFOA.

História & Luta de Classes - 95

Resenha do livro MUNTEAL, Oswaldo, VANTAPANE, Jacqueline & FREIXO, Adriano (orgs). O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Rio de Janeiro: Contraponto / Editora PUC-Rio, 2006. 250p.

“A covardia mental e moral no Brasil não permite

movimentos de independência; ela só quer

acompanhadores de procissão, que só visam

lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós,

campo para as grandes batalhas de espírito e

inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos.”

(Lima Barreto)

soberania nacional, a industrialização, a revolução democrática-burguesa e o Estado como agente público do planejamento, do desenvolvimento e do bem-estar social.

O livro O Brasil de João Goulart: um projeto de nação, organizado por Oswaldo Munteal, Jacqueline Ventapane e Adriano de Freixo, e lançado em bela e cuidadosa edição conjunta da Editora da PUC-Rio e da Contraponto, é uma boa tentativa de iluminar um dos breves períodos da vida política brasileira quando vigoraram regras institucionais democráticas, conquanto não se esqueça das tentativas de golpe a presidentes eleitos e conspirações de toda sorte contra Getúlio Vargas, que culminou no seu suicídio, e contra o governo progressista de Jango, que terminou no golpe civil-militar de 1964.

O livro reúne na sua maior parte, artigos escritos no calor daquelas batalhas por personagens ativas e engajadas na promoção do nacional-desenvolvimentismo no Brasil. Figuram valiosas contribuições de membros e simpatizantes do extinto Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),

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96 - Título da resenha

como Álvaro Vieira Pinto, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Nelson Werneck Sodré e Roland Corbisier, além de um texto de Theotônio dos Santos sobre o modelo econômico da ditadura civil-militar, pelo qual o Brasil entrou na era do capitalismo monopolista e financeiro.

Outro ponto alto do livro, digno de nota, é a reprodução integral do histórico comício de Jango na Central do Brasil no dia 13 de março de 1964, assim como de documentos do governo brasileiro, como o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social formulado por Furtado, e as diretrizes da política externa independente brasileira, escritas e proferidas por San Tiago Dantas. O posfácio é assinado por César Benjamin, que faz um resgate histórico das correntes do pensamento social brasileiro que procuraram decifrar o enigma da esfinge brasileira, sempre disposta a devorar aqueles que tentaram entender o processo da sua formação (social, política, econômica, cultural).

A única ressalva que pode ser levantada aos textos selecionados é o artigo do professor Darcy Ribeiro, escrito em 1994. O artigo narra a história política do Brasil considerando que o devir histórico tenha uma trajetória determinada pela ação de grandes homens – no caso particular, Vargas, Jango e Brizola –, perspectiva superada desde os materialistas franceses do século XVIII, Karl Marx no século XIX e, mais recentemente, no XX, pela Escola dos Annales (Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel e outros).

Para concluir, lembramos que uma bibliografia razoavelmente consolidada na nossa tradição intelectual crítica já apontou lacunas nas formulações teóricas – por exemplo, conceber o Estado como uma instituição política da vontade geral – e certos erros de análise conjuntural dos antigos nacional-desenvolvimentistas, assim como a inviabilidade de suas estratégias políticas. Estas se fundamentaram, basicamente, na conciliação dos interesses de classe e na aposta da “burguesia nacional” como líder hegemônica do bloco de poder da revolução democrática-burguesa, em um período que o capital financeiro e as empresas multinacionais já sinalizam que o comando da economia se deslocava para outros centros de poder e tomadas de decisão que não o empresariado nacional.

Não adianta olhar o passado com ares nostálgicos ou, pior, romantizá-lo, tendo-o como uma era idílica que deve ser resgatada. Apesar da alta dose de coragem política e honestidade intelectual, algo raro hoje na intelligentsia brasileira, encontrada nos ideólogos do nacional-desenvolvimentismo, além é claro, da originalidade das suas interpretações da realidade brasileira e virtudes teóricas que fizeram

avançar a cultura nacional, é preciso estabelecer um diálogo crítico com esta tradição, sob pena de sucumbirmos a uma fraseologia sem sentido para os enormes desafios impostos à civilização brasileira na atual fase financeirizada e mundializada do capitalismo. Será, como diz Caio Prado Júnior, “de um debate neste nível e categoria que surgirá afinal, em termos acertados e fecundos, a teoria que necessitamos, e necessita o Brasil, para que se estimule e se leve a bom fim a marcha dos acontecimentos no sentido revolucionário que almejamos”

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Imperialismo: ele ainda existe?

1Waldir José Rampinelli

debate sobre o imperialismo e a luta de classes, abandonado por uma parte da esquerda e desterrado pela maioria dos pós-modernos, sempre esteve presente na vida dos povos latino-americanos. Na América Central, no Caribe e no México, onde o imperialismo se manifestou de forma mais atuante e visível, os movimentos revolucionários não apenas tomaram em armas, mas também apresentaram um projeto nacional para se contrapor ao Estado imperial. Essa luta começou no final do século XIX e início do XX, com José Martí, em Cuba, que denunciou a ideologia colonizadora do pan-americanismo; passou por Emiliano Zapata e Francisco Villa, que expropriaram terras de estadunidenses em território mexicano para fazer suas reformas agrárias durante a Revolução de 1910; continuou com Augusto C. Sandino, que lutou contra a ocupação estrangeira para construir um Estado nacional na Nicarágua; e chegou a Che Guevara, que defendeu a tese da criação do segundo e do terceiro Vietnã para derrotar militarmente o imperialismo.

Hoje, líderes nacionalistas de esquerda começam a ganhar as eleições em vários países da América Latina, fazendo-o sobre os escombros das políticas neoliberais aplicadas a partir de meados dos anos 1970. Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e a própria Argentina são os exemplos mais conhecidos. Todos estes governos têm implementado, em menor ou maior grau, um projeto nacional de esquerda que se opõe frontalmente ao imperialismo. O Documento de Santa Fé II (1988), que orientou a política externa do Departamento de Estado estadunidense, afirmava que “o matrimônio do comunismo com o nacionalismo, na América Latina, representava o maior perigo para a região e para os interesses dos Estados Unidos”.

Acaba de ser lançado, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, o livro do cientista político estadunidense James Petras sob o título Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo. O autor analisa temas como a base econômica do poder imperial, o realinhamento de governos latino-americanos a Washington, a ALCA e

O

Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina

História & Luta de Classes - 97

Resenha do Livro: PETRAS, James. Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo.Tradução de Eleonora Frenkel Barretto. Florianópolis: Editora da UFSC, 2007, 206 p. (Coleção Relações Internacionais e Estado Nacional – RIEN)

sua pedagogia para a opressão, a conexão EUA-Iraque-Israel e o sionismo, as políticas antiimperialistas com suas diversas formas de luta e, por último, o grande debate revisitado capitalismo versus socialismo.

Para Petras, as empresas multinacionais são um dos eixos que fundamentam o poder econômico do imperialismo. Os EUA continuam sendo dominantes em termos absolutos e relativos: contam com 227 (45%) das 500 multinacionais mais importantes, seguidos pela Europa Ocidental, com 141 (28%), e Ásia, com 92 (18%). Esses três blocos regionais controlam 91% das principais multinacionais do mundo (p. 12). A dita globalização, para o autor, pode ser entendida em seu sentido mais amplo como o poder derivado de tais empresas com sede nos três blocos citados, o que lhes permite movimentar capitais e controlar o comércio, o crédito e o financiamento.

Cabe ressaltar que as multinacionais estadunidenses ocupam os primeiros lugares na lista das indústrias militares relacionadas com a guerra e a construção de seu império. Isso significa que a corrida armamentista vem potencializando sua expansão industrial nas últimas seis décadas, permitindo aos EUA sair da grande depressão dos anos 1930, em detrimento das atividades industriais. Fred Halliday denominou “triângulo de ferro” à conexão entre o Congresso, o Pentágono e o complexo industrial-militar destinado a aumentar os gastos com a defesa.

Os EUA e a Europa são dois Estados imperiais que se diferenciam apenas no método de dominação e exploração. Enquanto o imperialismo europeu adota uma estratégia diplomática de “comércio-investimento-mercado”, os EUA utilizam a via colonial militarista; enquanto Bruxelas propõe um estilo de controle multilateral, consultivo e de cooperação, Washington lança mão da ação unilateral e do monopólio do poder; enquanto a Europa busca estabelecer uma cooperação com as elites dos países árabes e com Israel, Washington – influenciado pelos sionistas – prioriza uma relação apenas com Tel Aviv.

Ao analisar a Área de Livre Comércio das

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Américas (ALCA), Petras mostra que esta organização “proporciona ao imperialismo estadunidense um amparo legal e de tomada de decisões para determinar o comércio, os investimentos, as políticas sobre a propriedade e a legislação trabalhista, bem como a natureza, o gasto, a forma e o conteúdo dos sistemas de saúde e educação” (p. 71). Isso estabelece um novo sistema político, assim como a base legal para o controle de toda a estrutura socioeconômica da América Latina.

Petras também discute o uso da educação pela ALCA como um mecanismo de transição do neoliberalismo ao colonialismo. O exemplo mais visível é a interferência do Banco Mundial em favor de um maior profissionalismo, e contra a ideologia, nos programas educacionais. Na verdade, o que o Banco Mundial promove é uma ideologia pró-imperial que prepara tecnocratas para servirem as empresas multinacionais em oposição a toda idéia nacionalista.

O tema central do livro, no entanto, é o relato feito por James Petras e Robin Eastman-Abaya sobre a conexão EUA-Iraque-Israel e o sionismo. Os analistas de política internacional costumam afirmar que o apoio estratégico-militar de Washington a Tel Aviv é fundamental na manutenção de um Estado forte, belicoso e expansionista. A doutrina Nixon-Kissinger, ao reconhecer que os EUA “não poderiam mais fazer o papel de policial do mundo” e que, portanto, “esperariam que outras nações fornecessem mais guardas para a ronda de sua própria vizinhança”, atribuiu a Israel, bem como a outros países, entre eles o próprio Brasil, a função de atores regionais. Dentro desta perspectiva estratégica, tanto Israel como o Brasil desempenharam uma função subimperialista em suas áreas de influência. Hoje, porém, segundo Petras e Eastaman-Abaya, é Israel que, por meio de sionistas estadunidenses importantes, detém o poder dentro dos EUA. A Casa Branca chega a adotar políticas altamente prejudiciais aos seus interesses, somente com o intuito de beneficiar a Tel Aviv. Um exemplo é a guerra contra o Iraque, cujo principal beneficiário é o Estado de Israel, já que conseguiu a destruição de seu inimigo árabe mais forte no Oriente Médio, ou seja, o regime que dava apoio à resistência palestina.

Poucos são os analistas políticos que mostram “a excessiva influência” que os governos israelenses exercem sobre os EUA, por meio de poderosos grupos de pressão e indivíduos sionistas nos setores estratégicos de sua economia, como também no Poder Executivo, no Congresso, nos partidos políticos, na mídia e no sistema financeiro. Os mais conhecidos sionistas, segundo Petras e Eastaman-Abaya, são Alan Greenspan (ex-diretor do Banco Central), Paul Wolfowitz (ex-diretor do Banco Mundial), Richard Perle (Defense Policy Board), Douglas Feith (secretário de Defesa Adjunto), David Frum (redator dos discursos de Bush), Elliot Abrams

(encarregado da Política para o Oriente Médio) e tantos outros. Petras e Eastman-Abaya analisam, então, vários casos pontuais em que os interesses dos EUA foram prejudicados para favorecer Israel (p. 115-120). O mais recente, e de uma enorme gravidade, diz respeito às Torres Gêmeas, já que os investigadores federais estadunidenses têm razões para acreditar que o serviço de inteligência israelense sabia do ataque de 11 de Setembro e não comunicou Washington porque a Tel Aviv interessava a guerra como justificativa para destruir seus inimigos árabes. Para ambos os autores, esta influência exercida por Israel está baseada na diáspora e nas redes judaicas muito bem estruturadas, que têm acesso direto aos centros de poder e propaganda do país imperial mais poderoso do mundo. A relação EUA-Israel é a primeira da história moderna na qual um país acoberta crimes praticados por terceiros contra si próprio.

Imperialismo e luta de classes também analisa as políticas antiimperialistas e sua forma de resistência ao longo do tempo. Se no período da Guerra Fria os movimentos antiimperialistas eram rotulados de conflitos entre blocos (socialismo versus capitalismo ou Terceiro Mundo contra Primeiro Mundo), hoje eles têm uma conotação de exploração de classes. Além disso, a política econômica imposta pelas autodenominadas instituições financeiras internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento) contribuiu decisivamente para a transformação da estrutura de classe. A execução seletiva da política de “livre comércio” tem sido determinante na reestruturação da estrutura de classes urbana e rural. Isso torna a luta mais ampla e profunda.

Petras mostra como o imperialismo causou grandes problemas no campo, tais como o enfraquecimento de pequenos e médios produtores agrícolas pela política de “livre comércio” que permite a afluência massiva das exportações agrícolas estadunidenses subsidiadas; a concentração da propriedade, assim como o deslocamento de agricultores de subsistência e sem terra, por meio de empréstimos e ajuda a empresas agro-exportadoras que se especializaram na produção de produtos de exportação, como soja, café e suco de laranja; o aumento da polarização por extinguir as restrições sobre a propriedade estrangeira e acabar com a propriedade comunal da terra, estimulando a estratificação interna; e, finalmente, a queda de preços para produtores locais (p. 175-176).

Não se pode esquecer que o imperialismo também transformou a natureza do Estado por meio da intervenção militar, da chantagem econômica, dos golpes de Estado e dos processos eleitorais corruptos, ou seja, a manipulação de eleições com a ajuda dos meios de comunicação de massa.

O Iraque, juntamente com a América Latina,

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descontentamentos populares com a pilhagem do imperialismo e, concomitantemente, com a queda no nível de vida das pessoas. Os atores deste movimento são, em sua grande maioria, trabalhadores pobres urbanos e rurais, estudantes de classe média baixa, professores, religiosos, movimentos sociais radicais, grupos indígenas e organizações guerrilheiras e estão baseados nos impactos negativos diretos sobre o nível de vida, empregos, produção agrícola e controle da política econômica.

James Petras finaliza seu livro analisando o grande debate que permeou todo o século XX e continua presente nos dias de hoje: capitalismo versus socialismo. O autor mostra que as decisões econômicas, assim como as propriedades nacionais, eram de domínio público no socialismo. Com o colapso deste sistema, as empresas multinacionais estadunidenses e européias se apropriaram de todas as riquezas dos ex-países comunistas. Isso tem gerado desemprego em massa, emprego temporário e uma grande emigração para outras partes do mundo.

Na Polônia, os antigos estaleiros de Gdansk (onde nasceu o Sindicato Solidariedade) foram fechados e agora são uma peça de museu. Na Rússia, a economia foi privatizada e oito oligarcas multimilionários enviaram para os bancos de Nova York, Tel Aviv, Londres e Suíça mais de duzentos bilhões de dólares. Os principais beneficiários do fim da URSS foram os antigos burocratas soviéticos, os chefões da máfia, os bancos estadunidenses e israelenses, os especuladores imobiliários europeus, os construtores do império de Washington, os militaristas e as empresas multinacionais.

Por fim, Petras compara o agora socialismo cubano com os novos países capitalistas surgidos no Leste europeu e Ásia meridional e chega a conclusões, com base em dados econômicos, de que o “socialismo reformado” de Cuba, apesar do embargo imposto à Ilha pelos EUA e da crise dos anos 1990, é superior, no índice de desenvolvimento humano, aos países que transitaram para o capitalismo com o fim da União Soviética.

Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo é um livro polêmico, atual e instigante, que por certo deverá suscitar muitos debates e, por que não dizer, paixões também.

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Crítica ao reducionismo analítico subjacente a teses sobre o fim da centralidade do trabalho

1Edilson José Graciolli

Política das classes dominantes ou conjunto “objetivo” de inovações tecnológicas e nas formas de gestão da força de trabalho? Como esse debate tem sido abordado por autores que se inserem na sociologia do trabalho? Esta é, no fundamental, a problemática enfrentada por Henrique Amorim em seu livro Teoria social e reducionismo analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho.

Estruturado em duas partes, com dois capítulos em cada uma delas, o livro realiza, inicialmente, um criterioso balanço sobre as análises que se pautaram por um determinismo acerca das condições objetivas e, de outra parte, as que enfatizaram a subjetividade operária, buscando apreender a trajetória e os pressupostos das teorias que puseram em questão o lugar central do trabalho no capitalismo e, portanto, a impertinência de se assumir essa relação social como estruturante das teorias sociológicas. Autores como Gorz, Habermas, Kurz, Mandel, Lukács, Gramsci Braverman, Thompson são analisados em suas formulações, interlocuções e tensões quanto ao tema destacado. Evidencia-se, aqui, como, historicamente, o pensamento liberal “... supôs – e necessitou da – tese do fim da história”. Esse é, em termos gerais, o conteúdo do primeiro capítulo.

O segundo capítulo (Da sociologia da anomia à sociologia da alienação) volta-se para uma comparação entre as origens da sociologia do trabalho, no início do século XX, e as teses contemporâneas acerca da perda da centralidade do trabalho. A sociologia durkheimiana é posta sob a luz da crítica essencial, qual seja, a de que não apreendeu a integração ensejada pela divisão social do trabalho como dotada de ineliminável dimensão compulsória. Dessa perspectiva crítica, parte-se para uma cuidadosa análise sobre o taylorismo, dissecando-o

O

Professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); [email protected]

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Resenha do Livro:AMORIM, Henrique José Domiciano. Teoria social e reducionismo analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006. 175 p.

em sua dinâmica fundamental, que nada possuía de “racionalidade desinteressada”. A sociologia do trabalho apresentava, então, uma clara perspectiva de ser uma ciência para a empresa, e não apenas da empresa. Ponto alto do capítulo é o tratamento dado ao espaço que o determinismo tecnológico (primado das forças produtivas e da ciência) teve na sociologia do trabalho. Algumas das principais idéias presentes na obra de Mallet são preliminarmente enfrentadas.

A segunda parte se dedica ao estudo do que se apresenta, segundo Amorim, como as “expressões concretas do reducionismo analítico”, o determinismo tecnológico e o humanismo científico.

No terceiro capítulo, são examinados os pressupostos teóricos de André Gorz e Serge Mallet do que produziram nos anos 1960 e 1970, cujo eixo foi a avaliação segundo a qual, em virtude da introdução de novas técnicas de produção, teria havido uma redefinição do papel dos trabalhadores no processo capitalista de produção, “determinando” uma alteração na noção de trabalho. De acordo com Amorim, “em linhas gerais, Gorz e Mallet condicionaram a força política do movimento operário (leia-se sua capacidade de organização sindical e/ou partidária) à sua qualificação profissional”, explicitando, ambos, uma concepção determinista. Nesse momento, o autor adensa sua análise, ao sustentar que esse reducionismo significa uma assimilação acrítica (positiva) do elemento técnico das transformações no processo produtivo, como se estas não fossem o que são: expressão da política na produção.

No último capítulo, a idéia central é a de que, conforme o próprio título sugere, a matriz teórica do

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trabalho é a afirmação de que há um primado das forças produtivas. Essa suposta primazia das forças produtivas é desvelada como algo que, em larga medida, deita raízes em teses bastante antigas do que se convencionou chamar sociologia do trabalho, ao menos nas suas correntes que, a rigor, se constituíram para a empresa.

A conclusão de Amorim quanto ao sentido último da tese de Gorz segundo a qual “... o reino da liberdade não pode ser alcançado através do trabalho, já que ele (o reino da liberdade) estaria fora da esfera da produção estrito senso” é contundente: insere-se não na perspectiva da classe trabalhadora, mas na do desenvolvimento das forças produtivas. Sua, a de Gorz, obra mais recente traduz para tempo livre vivenciado de forma heterônoma o que, antes, foi tratado como apreensão positiva do elemento técnico, evidenciando uma linha de continuidade.

Livro instigante, competente, agudo e polêmico, Teoria social e reducionismo analítico traz à inteligência do leitor o desafio de ir além das aparências e modismos acadêmicos, contrapondo, a rigor, análises densas como as referenciadas em Marx, Gramsci e Braverman, a outras que se assentam em reducionismo tecnológico e se orientam por reformismo político, formas de ser das concepções que têm predominado no espectro intelectual e midiático no atual estágio da luta de classes.

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6. Resenhas, com um máximo de 15.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do

texto), obedecendo à seguinte formatação:7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página

citada. Ex.: CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.

7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.

7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.

8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.

Próximos Dossiês:Número 6 - Imperialismo: teoria, experiência, história e características contemporâneas.

Prazo para encaminhamento de contribuições: 30 de abril de 2008Número 7 – Estado e Poder. Prazo para encaminhamento de contribuições: 31 de julho de

2008.Número 8 – Questão Agrária. Prazo a ser definido.Número 9 – Teoria da História. Prazo a ser definido.

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NESTA EDIÇÃO

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ISSN 1808-09X

7 7 1 8 0 8 0 9 1 0 0 2

Existe uma economia moral dos trabalhadores? Apontamentos parauma história das estratégias operárias durante a Segunda Guerra MundialFernando Cauduro Pureza

Ricardo da Gama Rosa CostaMarxismo e Revolução: da “Estratégia de Derrocada” à “Guerra de Posições”

Carlos Zacarias F. de Sena Júnior

Conluio e cadeias: Considerações sobre a direção pecebista na conjuntura do Estado Novo. 1936-1940

Victor de Oliveira Pinto CoelhoO Jornal do Povo e a luta por direitos - 1948

Kátia Rodrigues ParanhosO ABC dos trabalhadores no pós-1964: Os grupos de Teatro Ferramenta e Forja

Felipe Demier

Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização paraa história do Partido dos Trabalhadores

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Waldir José RampinelliImperialismo: ele ainda existe?

Edilson José GraciolliCrítica ao reducionismo analítico subjacente a teses sobre o fim da centralidade do trabalho

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