yemonja kinandà

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Iemanja - Kiandá Marcadores: Iemanja - Kiandá comentários (0) Durante a convivência que tive em Angola com pessoas pertencentes às classes populares, foram-me contadas diversas lendas e contos tradicionais daquele país. Além de uma ou outra fábula com animais, a maior parte das narrativas que ouvi envolveu a figura mítica da sereia. As gentes do povo, em Angola, acreditam convictamente na existência de sereias, que dizem ser dotadas de poderes sobrenaturais. Em quimbundo, as sereias são chamadas ianda, no singular kianda. Cada meio aquático tem uma sereia, isto é, cada rio, cada lagoa, quase cada charco tem a sua kianda, que toma o nome do rio, lagoa ou cacimba. De certa forma, ela é a encarnação do próprio meio aquático. As histórias de sereias que ouvi mais frequentemente relatavam o aparecimento de uma sereia a um homem pobre, a quem ela revelava a existência de um tesouro. Subitamente enriquecido, o homem passava a comportar-se de modo egoísta, gastando toda a riqueza em seu proveito pessoal e não em benefício da comunidade. Como castigo, a sereia acabava por fazer desaparecer o tesouro, ficando o homem na mais completa miséria. Por vezes, o castigo era mais duro e o homem ficava para sempre encantado no fundo do rio ou da lagoa. Há histórias de sereias em que é toda a aldeia que se comporta de modo egoísta ou avarento, sendo neste caso o castigo aplicado a toda a comunidade, que fica então encantada no fundo do lago ou do rio. Há angolanos que juram mesmo, pelo «sangue de Cristo», que ouviram o som de mulheres a pilar, de cães a ladrar ou de galos a cantar vindo de uma aldeia condenada a viver para sempre no fundo da lagoa ou do rio. O mar também tem a sua sereia, como não podia deixar de ser. Em quimbundo, o mar chama-se kalunga, mas a sereia não se chama Kalunga. Este nome é aplicado a um outro ser sobrenatural, chamado Kalunga Ngombe ou Kalunga Ngumba consoante as regiões, que é o espírito que preside ao reino

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Yemanja de Angola.

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Page 1: Yemonja Kinandà

Iemanja - Kiandá Marcadores: Iemanja - Kiandá comentários (0)

Durante a convivência que tive em Angola com pessoas pertencentes às classes populares, foram-me contadas diversas lendas e contos tradicionais daquele país. Além de uma ou outra fábula com animais, a maior parte das narrativas que ouvi envolveu a figura mítica da sereia.

As gentes do povo, em Angola, acreditam convictamente na existência de sereias, que dizem ser dotadas de poderes sobrenaturais. Em quimbundo, as sereias são chamadas ianda, no singular kianda. Cada meio aquático tem uma sereia, isto é, cada rio, cada lagoa, quase cada charco tem a sua kianda, que toma o nome do rio, lagoa ou cacimba. De certa forma, ela é a encarnação do próprio meio aquático.

As histórias de sereias que ouvi mais frequentemente relatavam o aparecimento de uma sereia a um homem pobre, a quem ela revelava a existência de um tesouro. Subitamente enriquecido, o homem passava a comportar-se de modo egoísta, gastando toda a riqueza em seu proveito pessoal e não em benefício da comunidade. Como castigo, a sereia acabava por fazer desaparecer o tesouro, ficando o homem na mais completa miséria. Por vezes, o castigo era mais duro e o homem ficava para sempre encantado no fundo do rio ou da lagoa.

Há histórias de sereias em que é toda a aldeia que se comporta de modo egoísta ou avarento, sendo neste caso o castigo aplicado a toda a comunidade, que fica então encantada no fundo do lago ou do rio. Há angolanos que juram mesmo, pelo «sangue de Cristo», que ouviram o som de mulheres a pilar, de cães a ladrar ou de galos a cantar vindo de uma aldeia condenada a viver para sempre no fundo da lagoa ou do rio.

O mar também tem a sua sereia, como não podia deixar de ser. Em quimbundo, o mar chama-se kalunga, mas a sereia não se chama Kalunga. Este nome é aplicado a um outro ser sobrenatural, chamado Kalunga Ngombe ou Kalunga Ngumba consoante as regiões, que é o espírito que preside ao reino dos mortos. Por vezes, em vez de se dizer que alguém morreu (uafu) diz-se que o falecido foi levado por Kalunga (Kalunga ua mu ambata). Este nome kalunga está portanto associado a algo que é eterno, como a morte, ou imenso, como o mar. Em umbundo, Kalunga significa Deus.

A sereia do mar, por conseguinte, não tem nome próprio. Pelo menos, eu nunca o ouvi. Ela é simplesmente chamada kianda. É a Kianda por excelência, escrita com K maiúsculo, a Sereia das sereias. Quando em Angola se fala na Kianda, sem se especificar de qual delas se trata, é à sereia do mar que as pessoas se referem. Ela é a mais poderosa de

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todas as sereias, cujos caprichos os pescadores procuram aplacar com oferendas. A Kianda em Angola e Iemanjá no Brasil são uma e a mesma sereia.