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23 CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR
RESUMO
O presente trabalho aborda a problemática da inclusão de crianças com necessidades educativas especiais (NEE) no contexto da Educação Infantil. Trata-se de uma tentativa de contribuir para as reflexões a respeito da qualidade de experiências vivenciadas por esses sujeitos na escola. Ancorado em proposições da teoria histórico-cultural sobre o desenvolvimento humano e, de modo específico, sobre os casos de deficiência, o presente estudo focalizou a atividade de brincar, como espaço de criação de possibilidades para ampliar a imaginação e a sociabilidade, que sustentam também o refinamento da cognição. O objetivo foi analisar os modos como os pares e as professoras interagem com os alunos especiais nas situações de brincadeira previstas na rotina da instituição. A pesquisa foi realizada em uma escola de Educação Infantil de um município de porte médio do interior do Estado de São Paulo. Os procedimentos abrangeram a observação dos sujeitos durante a atividade de brincar e a realização de entrevistas com suas professoras. As observações foram registradas em diário de campo e as anotações foram feitas com o objetivo de permitir uma análise microgenética.A análise dos dados sugere que a instituição escolar subestima o valor desta atividade para o desenvolvimento infantil e que a atenção dada às crianças com NEE demonstra o despreparo da escola para atuar junto ao aluno especial, que, sem colaboração para transpor seus próprios recursos, não é desafiado a avançar tanto na esfera da sociabilidade como na da imaginação. A melhoria das ações pedagógicas junto a alunos incluídos na Educação Infantil depende da participação regular de profissionais que contribuam para orientar o trabalho das professoras bem como da criação de espaços de colaboração dentro da própria escola, de maneira a ampliar o conhecimento sobre as necessidades dessas crianças. Palavras- chaves: Desenvolvimento humano, necessidades educativas especiais, brincadeira.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que a Inclusão Escolar é um tema recorrente nas pesquisas atuais, que
vêm mostrando limites e possibilidades do que tem sido feito e defendido em nome de
uma Educação Inclusiva. Entretanto, considerando que a proposta inclusiva abrange
todos os níveis, nota-se uma atenção bem menor à investigação no âmbito da Educação
Infantil. Os poucos trabalhos encontrados sobre o tema geralmente estão voltados para
alguma deficiência em particular, focalizando as interações sociais ou a visão de
professores (por ex., CARNEIRO, 2010; FRANÇA, 2008; MELO e FERREIRA, 2009).
Com o intuito de contribuir para a área, este trabalho busca analisar a
experiência escolar de crianças com necessidades especiais e toma como referência as
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Beatriz Aparecida Dos Reis Turetta
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proposições da teoria histórico-cultural sobre o desenvolvimento e a educação desses
sujeitos.
Na discussão sobre o desenvolvimento em casos de deficiência, Vigotski (1997)
parte da idéia de que, a depender das condições oferecidas pelo grupo social, a
plasticidade do funcionamento humano permite à criança a compensação das
conseqüências da insuficiência biológica. Muitas das dificuldades e comportamentos
apresentados pelo sujeito não estão ligados ao comprometimento orgânico em si, mas às
suas conseqüências sociais (preconceitos, baixa expectativa, isolamento, etc.). O autor
reconhece que a deficiência tem de ser considerada, mas entende que a formação
insuficiente de funções superiores deve-se menos a complicações decorrentes do
comprometimento existente e mais às complicações secundárias ou derivadas, que
“dependem pouco da herança e, por conseguinte, dependem de determinadas condições
da educação, do ambiente social” (VIGOTSKI, 1997, p. 146). Assim, para superar os
problemas que a deficiência acarreta, é indispensável afastar as ações educativas
empobrecidas e pessimistas, que são focadas no déficit e se orientam pelas
impossibilidades, e investir num processo educativo de qualidade, que explore as
possibilidades existentes na criança, coloque desafios para seu desenvolvimento e
priorize sua participação na vida coletiva.
Além de apoiar-se nesses pressupostos, a presente pesquisa tomou como eixo do
trabalho de campo a atividade de brincar, a partir das interpretações de teóricos da
abordagem histórico-cultural, que consideram essa esfera fundamental para o
desenvolvimento infantil (ELKONIN, 1984; VYGOTSKY, 1984; LEONTIEV, 1986).
Nessa abordagem, a razão para a brincadeira ser vista como a atividade principal
da infância não está na quantidade de tempo em que a criança brinca, mas no fato de
que nessa esfera ocorrem as mais importantes mudanças do desenvolvimento psíquico
da criança, que preparam a transição de um padrão de pensamento menos elaborado
para um mais elevado, qualitativamente novo (LEONTIEV, 1986).
Na discussão sobre o brincar, Vygotsky (1984) privilegia os jogos infantis que
envolvem o plano imaginativo como o faz de conta e o jogo de papéis. Para o autor, no
início da infância, motivação e percepção estão, de certa forma, superpostas, pois a ação
da criança é geralmente motivada pelas características perceptuais dos objetos. É com a
emergência do faz-de-conta que se opera uma separação desses processos, quando uma
coisa é usada para significar outra, em ações simuladas, e o percebido subordina-se ao
significado atribuído. Esse aspecto do desenvolvimento é muito importante porque
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permite refinar o processo de significação, visto que, ao empregar um objeto como se
fosse outro, a criança realiza ações guiadas pelo significado atribuído, o que implica
uma relativa independência do perceptual-imediato, fundamental para a elevação dos
modos de pensamento.
Assim, os jogos de imaginação permitem à criança desprender-se do real, testar
possibilidades além de seu nível de desenvolvimento e ocupar espaços que lhe seriam
vetados na vida real. Por outro lado, é preciso ressaltar que esse tipo de brincadeira não
exclui o atendimento a regras do real, visto que as situações são construídas com base
nas vivências cotidianas, na re-produção de modos de agir com as coisas e de encadear
acontecimentos. Ou seja, aquilo que compõe a situação imaginada tem um necessário
vínculo com as condições de vida da criança – com o que faz, observa ou conhece em
sua experiência concreta na cultura.
Segundo Rocha (2005), essas interpretações indicam que o brincar compõe-se de
uma dupla tendência – de adesão ao real e de transgressão do real –, tanto por implicar
necessariamente o apoio nas vivências cotidianas como por propiciar que a lógica nelas
contida seja subvertida, resultando na libertação do perceptual-sensível.
Assumindo esse conjunto de proposições e entendendo que a investigação sobre
a esfera do brincar pode fornecer indícios importantes da qualidade da experiência
escolar que as instituições de Educação Infantil vêm oferecendo a alunos com
necessidades especiais, realizamos uma pesquisa de campo com o objetivo de analisar
os modos como os pares e as professoras interagem com elas nas situações de
brincadeira previstas na rotina da instituição. O interesse está mais especificamente em
configurar as possibilidades que os sujeitos têm tido para desenvolver o funcionamento
imaginativo e a sociabilidade, que sustentam também o refinamento da cognição.
CARACTERIZAÇÃO DO ESTUDO
A pesquisa foi realizada em uma escola de Educação Infantil de um município
de porte médio do interior do Estado de São Paulo. O critério de escolha dessa escola
relaciona-se ao fato de ser a que estava atendendo ao maior número de alunos com
necessidades educativas especiais (quatro) no município em 2010.
Os sujeitos foram observados durante atividades de brincadeira livre ou dirigida
em diversos locais da escola - sala de aula, pátio, solário, parque e espaços livres.
Também foram realizadas entrevistas com as professoras com o propósito de
complementar os dados da observação.
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As observações foram registradas em diário de campo e as anotações foram
feitas com o objetivo de permitir uma análise microgenética. Esse tipo de análise requer
atenção a detalhes dos acontecimentos interativos e dos diálogos estabelecidos (GÓES,
2000).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os dados indicam que, independente da rotina estabelecida pelas diferentes
professoras, as crianças têm um tempo diário destinado a brincadeiras que varia de trinta
minutos a mais de uma hora, o que é bastante razoável considerando que muitas dos
alunos permanecem na escola apenas por quatro horas. Por outro lado, o investimento
nas atividades de brincar é limitado, as condições oferecidas são precárias em termos de
recursos materiais e humanos, as circunstâncias não propiciam qualidade de interações,
além de serem poucas as possibilidades de envolvimento em jogos imaginativos.
Nos diferentes espaços da escola, as professoras são atentas às crianças no que
se refere aos cuidados com o corpo (risco de acidentes), às regras de convivência e aos
combinados com a classe como não correr, não passar em frente ao balanço, não jogar
areia no amigo, não brigar etc. De modo geral elas escolhem o local e os materiais
necessários para a brincadeira, mas não se envolvem na atividade.
As crianças brincam sozinhas de acordo com suas possibilidades e raramente são
encorajadas a experimentar situações novas. Os alunos especiais, por sua vez, além de
enfrentar as dificuldades relacionadas ao tipo de deficiência (sensorial, motora,
intelectual), precisam lidar com as diferentes formas de relação que os parceiros
estabelecem com eles, em atitudes de acolhimento, proteção, rejeição ou dominação
hostil.
A seguir são expostos os dados relativos às quatro crianças. Visto que o relato
deve ser sucinto, apenas a apresentação do primeiro sujeito inclui um episódio de
brincadeira, de maneira a ilustrar a forma de análise que deu base para os comentários
analíticos sobre cada sujeito.
Leandro
Tem 6 anos de idade e diagnóstico de cegueira. É aluno do jardim II (com 25 crianças,
de 5 a 6 anos), período da tarde.
Em dois dias da semana Leandro recebe acompanhamento na sala de recursos do
Núcleo de Educação Especial do município e tem sessão de equoterapia. Frequenta a
escola nos outros três dias, mas permanece por um tempo menor que as demais crianças
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(até as 15:00h aproximadamente) devido à falta de uma auxiliar para dividir com a
professora o acompanhamento e o cuidado de que ele necessita.
Leandro é um menino que procura e é procurado por diferentes parceiros, embora
naturalmente tenha suas preferências. A professora mostra-se muito cuidadosa com ele e
tem um constante receio de que aconteça algum acidente. Porém ela age direcionada
para a condição da cegueira e tende a ressaltar os aspectos visuais daquilo que está
envolvido nas atividades. As crianças, espelhando o comportamento da professora,
estão sempre ao redor do menino, acolhendo-o, dirigindo-o para diferentes locais e
comentando sobre o que ele não pode ver.
As brincadeiras de Leandro são ora dirigidas à percepção tátil, ora direcionadas por sua
curiosidade pelas características visuais das coisas, especialmente as cores. Essa
curiosidade é na verdade encorajada e sustentada por outros, que sempre enfatizam os
aspectos visuais dos objetos que ele toca. Mesmo quando Leandro consegue sair do
campo perceptual e dirigir a atividade para o plano imaginativo, alguém (colegas ou
professora) acaba redirecionando a brincadeira para o que lhe falta, para o perceptual,
para a falta de visão. O episódio abaixo é representativo dessa marca da experiência
escolar desse sujeito.
Leandro e o celular
Contextualização: Na sala de aula, as crianças inicialmente são colocadas em grupos para brincar. A professora chama os grupos individualmente para que escolham os brinquedos na prateleira. Leandro fica em seu grupo, mas pede um avião, que a professora traz até ele. Depois de manusear o avião e alguns outros brinquedos de seus amigos, ele recebe um celular da mão de Júlia. Júlia explica: É um celular de brinquedo. Tá vendo, os números, tem que atender
(colocando a mão de Leandro nos botões de números do celular). Leandro pega o celular de brinquedo. Júlia utiliza a própria mão para fazer de conta que também está com um celular. Júlia: Alô. Leandro: Alô.
Júlia: Quem fala?
Leandro: Quem fala? Minha mãe ta aí? Eu quero a minha mãe.
Está muito barulho na sala. Ele segura o celular com uma mão em um dos ouvidos e com a outra mão tapa o outro ouvido. Leandro: Oi mãe, tô na creche agora. Tô no telefone. Júlia diz algo não audível. Leandro passa a tatear o celular e pergunta: Esse celular é novo? Júlia fala algo bem baixinho para Leandro e pega o celular. Os dois riem. Leandro: Paula, olha aqui pra mim (chamando a atenção da professora). Esse celular é
da Vivo? Profa.: É da Vivo.
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Leandro: Ele fala?
Profa.: Não. Ele é de mentira.
Leandro: Que cor ele é? Profa.: Amarelo e branco.
Leandro: Onde é branco?
A professora se aproxima e coloca a mão de Leandro na parte que é branca e diz: Aqui é
branco. Coloca a mão de Leandro na parte que é amarela e diz: Aqui é amarelo. Coloca a mão dele em outra parte e diz: Aqui é azul.
Júlia, que permanecia observando o diálogo de Leandro com a professora, acrescenta: O
botão é rosa.
Júlia e Leandro continuam conversando sobre o telefone. Leandro volta a tatear o celular e bate com o dedo nele para escutar os sons que produz. Leandro: Aqui é branco? (mostrando uma parte do celular com o dedo). Júlia: Aqui é branco e aqui é amarelo (Júlia explica colocando a mão de Leandro nos locais referentes às cores citadas). Leandro continua brincando com o telefone.
Esse segmento interativo mostra a atenção e o acolhimento dispensados a esse
aluno. A brincadeira transcorre de forma agradável, porém a situação de faz de conta
com o telefone não tem continuidade, pois ele passa a considerar os aspectos funcionais
e visuais do brinquedo (Ele fala? - Que cor ele é?). Como indicado, essa orientação era
privilegiada em muitos momentos por colegas e professora, e parece ter sido
incorporado pelo menino, que, nesse episódio, efetua ele próprio o redirecionamento.
O conjunto das observações mostra que Leandro apresenta ganhos no plano da
sociabilidade, é querido pela turma, procura e é procurado para estabelecer parcerias.
No entanto, as possibilidades de ações imaginativas são restringidas pelo predomínio de
atenção ao perceptual, o que tende a empobrecer as brincadeiras. Parece que nessas
situações a atuação dos outros e o agir da própria criança se pautam pela suposição de
que a imaginação é menos importante que a percepção para o desenvolvimento
cognitivo.
Cristiane
Tem 4 anos de idade e diagnóstico de acondroplasia (nanismo) e macrocefalia.
É aluna do maternal II (classe de 17 crianças de 3 a 4 anos) e dos sujeitos focais ela é a
única que freqüenta a escola em tempo integral. A classe é atendida por duas
professoras, uma em cada período. Durante o semestre letivo do estudo de campo, a
professora da tarde (Paula) permaneceu regularmente, mas na parte da manhã passaram
pela sala quatro professoras, o que atrapalhou a rotina da turma.
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Uma vez por semana Cristiane recebe atendimento de fisioterapia, fonoaudiologia e
terapia ocupacional numa instituição especializada. Freqüenta a escola nos demais dias.
Devido a sua estatura menor que a dos colegas, várias pessoas a tratam como um bebê e
a chamam por seu nome no diminutivo, numa atitude que tende a subestimar sua
potencialidade. Apesar disso, ela se comporta de modo não correspondente a essa
imagem diminuída. Com a ajuda da professora Paula, que insiste em desfazer essa
imagem, Cristiane age de acordo com o esperado para sua idade e parece não se
aproveitar dos cuidados e privilégios que geralmente os outros querem conceder-lhe.
Por conta de sua estatura, certas brincadeiras no parque que lhe são vetadas pelos
adultos, que muitas vezes manifestam um cuidado restritivo demais. Quando
ocasionalmente tem oportunidade, ela demonstra que, com pouca ajuda, é capaz de
utilizar alguns brinquedos. De fato ela enfrenta dificuldades no que diz respeito aos
aspectos físicos da escola, mas algumas das barreiras poderiam ser eliminadas com
pequenos ajustes (por exemplo, o mero conserto de um brinquedo que tem escada
faltando um degrau). Assim sendo, podemos concluir que suas limitações estão mais
relacionadas a imagem que as pessoas criaram a seu respeito do que propriamente
ligadas a sua deficiência.
Na classe ela é uma criança bem situada no grupo, se envolve e é envolvida em
brincadeiras com as mais variadas crianças. Pareceu adaptar-se bem à passagem de
diversas professoras (que por vezes atrapalhou a rotina da classe). Dentre os sujeitos, ela
é a que mais se realiza jogos no plano imaginativo. Na maioria das vezes recria
situações de seu próprio cotidiano, revivendo e ressignificando as possibilidades de ser
filha, mãe, aniversariante, bicho papão etc.
Com relação a Cristiane, embora ela participe com mais frequência de jogos
imaginários não significa que a mesma tem sido contemplada com todas as
possibilidades que teria se houvesse por parte dos profissionais da escola um maior
investimento neste tipo de atividade.
Gabriel
Tem 4 de idade e diagnóstico de Síndrome de Down. É aluno do Jardim I do período da
tarde (classe com 22 crianças, de 4 a 5 anos) .
Gabriel recebe atendimentos de terapia ocupacional e fonoaudiologia em uma
Instituição Especializada no período oposto ao da sala de aula. Mesmo com essa
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compatibilidade de horário, ele esteve ausente em 67 dos 110 dias letivos do primeiro
semestre, por motivos nem sempre informados a escola.
Esse aluno enfrenta problemas de relacionamento com crianças e adultos no espaço
escolar. Tenta estabelecer parcerias com outros alunos ou ganhar a atenção da
professora, mas nem sempre consegue, por falta de disposição dos demais e talvez
também por falta de condições dele mesmo, pois possivelmente sua história de vida não
lhe permitiu construir modos de interação mais favoráveis e estratégias para o
envolvimento do outro.
A imagem que a professora faz dele é de uma criança desobediente e dependente para
tudo, o que parece impedi-la de perceber que muitas vezes Gabriel deseja simplesmente
acolhimento e/ou sua companhia, considerando que quase nunca consegue a atenção das
demais crianças. Nos momentos de brincadeira em sala ou nos demais locais da escola,
Gabriel fica perambulando em busca de algo para fazer ou de alguém com quem possa
interagir. Poucas vezes acaba conseguindo uma parceria ou encontrando um brinquedo
que lhe provoque seu interesse.
Considerando que Gabriel raramente se envolve com os brinquedos ou com as pessoas,
podemos avaliar quão raras são as oportunidades de realizar ações imaginativas.
Algumas situações observadas mostram que, apesar das relações problemáticas vividas
na classe e da falta de incentivo e crédito da professora, ele consegue adentrar o campo
da imaginação e criar momentos de faz de conta, embora as situações nem sempre se
sustentem por falta de parcerias disponíveis.
Como ocorre com outras crianças com Síndrome de Down em sua idade, Gabriel não
tinha ainda controle total dos esfíncteres; conseguia ir ao banheiro sozinho para urinar,
mas ainda não controlava as fezes. A professora, sem contar com auxiliar, tinha que
cuidar da higiene do aluno (dar banho, por vezes) e sempre externava sua irritação para
toda a classe, o que alimentava a tendência das crianças a desprezar e fazer chacota de
Gabriel.
Assim, a maioria das dificuldades enfrentadas por esse aluno não está relacionada às
características da síndrome que apresenta, mas decorre das experiências desagradáveis
que ele vivencia na escola e que têm afetado negativamente sua formação.
Ana
Tem 4 anos de idade e diagnóstico de Síndrome de Down. É aluna do Jardim I do
período da manhã (classe com 22 crianças, de 4 a 5 anos).
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Recebe atendimentos de terapia ocupacional, psicologia, pedagogia, fonoaudiologia e
hidroterapia em uma instituição especializada em horários não coincidentes com as aula.
Como ocorreu com Gabriel, ela faltou muito - 64 dias letivos. A ausência era atribuída a
problemas de saúde, geralmente respiratórios.
Nas brincadeiras Ana se envolve constantemente com jogos de faz de conta, mas não
tem liberdade para fazer escolhas. Em muitas das situações observadas, principalmente
no parque, os colegas impõem-lhe o que deve fazer – correr, subir no gira-gira ou no
balanço. Por vezes, ela reclama, chora ou até cai. Essa imposição também acontece em
relação aos papéis assumidos em situação de faz de conta; ela é sempre a bebê que
precisa ser cuidada, repreendida e corrigida pela mamãe ou por outros personagens. Em
geral não tem oportunidade de participar de ações imaginativas interessantes e
agradáveis.
Sua professora não está atenta a muitas dessas ocorrências e quase nunca interfere por
acreditar que a menina deve ser tratada como as demais crianças e agir com autonomia
para ter melhores condições de se desenvolver.
Essa “liberdade” concedida deixa Ana desamparada frente às atitudes abusivas de
colegas. Numa das observações do parque Ana ficou submetida à vontade de parceiras
durante mais de uma hora, tentou resistir e opor-se, porém não conseguiu se desprender
de brincadeiras que não desejava. Durante esse tempo, a professora permaneceu sentada
numa cadeira próxima ao parque conversando com outra professora.
APONTAMENTOS GERAIS
Dos quatro sujeitos, os dois que apresentam Síndrome de Down têm sido muito
afetados por atitudes negativas no ambiente escolar. Quanto à interação com parceiros
durante as brincadeiras, a falta de intervenção deliberada da professora e dos
profissionais intensifica o isolamento de Gabriel e a dificuldade de Ana para
desprender-se de situações indesejadas. Em decorrência dessa desatenção, Ana e
Gabriel deixam de ter oportunidades de alcançar formas melhores de convivência e não
usufruem dos avanços que o brincar pode trazer para seu desenvolvimento. É muito
provável que a baixa qualidade das condições que são oferecidas a esses dois alunos
seja um dos determinantes principais do alto índice de suas faltas à escola.
Nos casos de Cristiane e Leandro, que não apresentam deficiência intelectual,
constata-se maior acolhimento e cuidado das professoras (por vezes um cuidado
excessivo). Por outro lado, vale salientar que, para a menina, existem barreiras físicas
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que a escola poderia solucionar. Já Leandro tem poucas oportunidades de brincar em
razão de sua permanência muito curta na classe, pelo fato de que a escola não tem
recursos para atendê-lo durante o período normal.
Pode-se dizer que, em termos das condições para a inclusão, tudo vem
dependendo das professoras individualmente, de seus “méritos” e seus “defeitos”. Duas
delas se dispõem a cuidados diferenciais e encorajam as oportunidades de interação do
aluno incluído com os parceiros, ainda que tenham dificuldades para delinear formas de
atuação mais adequadas às necessidades especiais implicadas. As outras duas
demonstram pouca disposição nesse sentido.
No entanto, a atuação das professoras deve ser pensada em termos não apenas
individuais (sensibilidade, boa vontade, disposição a superar preconceitos, flexibilidade
para adaptar as práticas, etc.), mas principalmente em relação às condições que são
propiciadas a elas para uma ação pedagógica adequada às crianças incluídas.
A esse respeito, os dados tanto de entrevista como de observação mostram que
todas as professoras ressentem-se da falta de conhecimento básico sobre a deficiência
do aluno incluído e da ausência de um interlocutor profissional que ajude a refletir sobre
formas de trabalho junto a essa criança. No âmbito interno da escola, não surgem
iniciativas coletivas, sequer pequenas, e ocorrem somente breves trocas de informação
em reuniões de HTPC (que não contavam com uma coordenadora pedagógica). No
âmbito externo à escola, evidencia-se a falta de orientação dos setores especializados às
professoras e a protelação de providências para contratar auxiliares de classe para os
casos em que essa medida é indispensável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atenção dada à brincadeira na rotina da instituição revela uma subestimação
do valor dessa atividade para o desenvolvimento infantil. No caso da criança com
necessidades educacionais especiais, esse problema acentua-se, pois, sem a colaboração
para transpor seus próprios recursos, ela não é desafiada a avançar no funcionamento
imaginativo e na capacidade de abstrair e criar, superando assim os limites do
imediatamente vivenciado e percebido e elevando as formas de pensamento.
No que concerne à inclusão, estes achados vão ao encontro das análises de
autores (por exemplo, ARANHA, 2004, FERREIRA e FERREIRA, 2004) que vêm
apontando o despreparo da escola para receber o aluno especial, em virtude de
problemas que vão desde a existência de barreiras físicas até a falta de ações coletivas
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direcionadas às questões atitudinais e às necessidades de diferenciação do trabalho
pedagógico, o que resulta na responsabilização do professor, individualmente, pelo
sucesso ou não da experiência escolar.
Os achados sugerem que a melhoria das ações pedagógicas junto a alunos
incluídos na Educação Infantil depende da participação regular de profissionais que
contribuam para orientar o trabalho das professoras bem como da criação de espaços de
colaboração dentro da própria escola, de maneira a ampliar o conhecimento sobre as
necessidades dessas crianças. Claro está que tais iniciativas não garantem muitas das
mudanças desejadas, porém, sem elas, a professora continuará a atuar sozinha e a
criança será atendida de forma insatisfatória ou, mesmo, prejudicial.
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