xenofonte - sócrates

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  • 8/17/2019 Xenofonte - Sócrates

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    XENOFONTE

    APOLOGIA DE SÓCRATES

    Tradução de Libero Rangel de Andrade

    I

    Dentre os fatos concernentes a Sócrates, um há que me pareceu digno de

    transmitir-se à memória: sua determinação, quando submetido a julgamento, notangente a sua apologia e sua morte. Outros, é verdade, trataram do assunto e disseram

    da nobre altivez de sua linguagem, de sorte que não há questionar este ponto. Mas por

    que Sócrates preferiu a morte, eis o que não fizeram ver claramente, parecendo haver

    certa desrazão na altura de suas palavras. Porém Hermógenes, filho de Hipônico e

    amigo de Sócrates, deu a seu respeito pormenores que mostram que a altura de sua

    linguagem se acordava plenamente com a de suas idéias. Contava que, vendo-o

    discorrer sobre assuntos completamente alheios a seu processo, lhe dissera: £, — Não

    deverias, Sócrates, pensar em tua apologia?

    Ao que lhe respondeu Sócrates: Não te parece que lhe consagrei toda a minha

    vida?

    Perguntando-lhe Hermógenes de que maneira:

     — Vivendo sem cometer a menor injustiça, o que é, a meu ver, o melhor meio

    de preparar uma defesa.Tornara Hermógenes:

     — Não vês que, chocados com a defesa, fizeram os juízes de Atenas morrer

    muitos inocentes e absolveram muitos culpados cuja linguagem lhes despertara a

     piedade ou lhes lisonjeara os ouvidos?

     — Por duas vezes — dissera Sócrates — tentei preparar uma apologia, porém,

    a tanto se opôs meu demônio.

    Estranhando-lhe Hermógenes a linguagem, respondera Sócrates:

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     — Por que te espantas, se julgam os deuses mais vantajoso para mim deixar a

    vida desde já? Não sabes que, até o presente, humano algum viveu melhor que eu? É-

    me agradável ter vivido toda a minha vida na piedade e na justiça. E, experimentando

    viva admiração de mim próprio, verifiquei que os mesmos sentimentos nutriam paracomigo todos os meus amigos. Mas já agora, se for além, sei que terei forçosamente de

     pagar meu tributo à velhice. A vista se me enfraquecerá, ouvirei menos, minha

    inteligência se turbará e esquecerei mais depressa o que aprender. Se perceber a perda

    de minhas faculdades e sentir-me mal comigo mesmo, como aprazer-me da vida?

    Talvez seja por benevolência que me concede a deidade, como dom especial, terminar

    a vida não só na época mais conveniente como do modo menos penoso. Porque, sendo

    condenado hoje, certo ser-me-á permitido firmar pelo gênero de morte que os homens

    que se ocuparam desta questão consideram a mais suave, a que menos faz padecer

    tanto o monturo, como os seus amigos. Verdadeiramente digno de inveja não é morrer

    sem deixar nenhuma impressão penosa e desagradável no espírito dos assistentes, são

    de corpo, alma em paz? Razão, pois, tiveram os deuses dissuadindo-me de preparar

    minha defesa, quando todos vós acháveis que deveria por todos os meios buscar

    subterfúgios. Fizesse-o eu, e teria refugido o morrer hoje para, sem nenhum consolo,

    vir a findar atormentado de doenças ou então de velhice, para a qual vergem todas as

    enfermidades. Por Júpiter! Hermógenes, sequer cogitarei disso. E se, expondo sem

    refolhos todas as vantagens que creio haver dos deuses e dos homens, bem como a

    opinião que faço de mim mesmo, tiver pesar aos juízes, preferirei morrer a mendigar

    servilmente a vida e fazer-me outorgar uma existência mil vezes pior que a morte.

    II

    Assim resolvido, atesta Hermógenes, quando seus inimigos o acusaram de não

    reconhecer os deuses do Estado, introduzir extravagâncias demoníacas e corromper os

     jovens, Sócrates adiantou-se e disse:

     — O que mais me surpreende no acusatório de Meleto, cidadãos, é afirmar ele

    que eu não reconheça os deuses do Estado, quando todos vós, Meleto convosco, se o

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    quis, tivestes ocasião de ver-me sacrificar nas festas solenes e altares públicos. E como

     pretender que eu introduza extravagâncias demoníacas, quando digo advertir-me a voz

    de um deus do que deva fazer? Não se guiam por vozes os que tiram presságios do

    canto das aves e das palavras dos homens? Ninguém negará seja voz o trovão, e até omaior dos augúrios. Pela voz não manifesta a sacerdotisa de Pito, na trípode, a vontade

    do deus? Que esse deus possui o conhecimento do futuro e o revela a quem lhe apraz,

    eis o que digo e comigo dizem e pensam todos. Somente que a isso chamam augúrios,

    vozes, símbolos, presságios, eu lhe chamo demônio. Com esta denominação creio usar

    de linguagem mais veraz e mais piedosa que os que atribuem às aves o poder dos

    deuses. A prova de que não minto contra a divindade, ei-la: jamais, ao anunciar a bom

    número de amigos os desígnios do deus, fui apanhado em delito de impostura.

    Em ouvindo tais palavras os juízes murmuraram, uns de incrédulo, outros de

    invejoso das preferências que lhe concediam os deuses. Continuou Sócrates:

     — Ouvi mais isto, a fim de que os que o desejam tenham mais um motivo para

    não crer no favor com que me honraram as divindades. Um dia em que, em presença

    de numerosa assistência, Querefonte interrogava a meu respeito o oráculo de Delfos,

    respondeu Apoio inexistir homem mais sensato, independente, justo e sábio que eu.

    Como era de esperar, a estas palavras os juízes fizeram ouvir murmúrio maior ainda.

    Prosseguiu Sócrates: — Entretanto, cidadãos, em termos mais magníficos ainda

    se expressou o deus em relação a Licurgo, o legislador dos lacedemônios. É fama que,

    no momento em que Licurgo entrava no templo, disse-lhe a divindade: "Chamar-te-ei

    homem ou deus?" A mim não me comparou a deus, mas disse que em muito sobrepujo

    os outros homens. Não creiais levianamente o que disse a deidade: pesai bem cada

    uma de suas palavras. Sabeis de homem menos escravo dos apetites do corpo que eu?Mais independente que eu, que de ninguém recebo presentes nem salário? Quem pode-

    reis, em boa fé, considerar mais justo que um homem tão acomodado com o que tenha

    que jamais precise do alheio? Quanto à sabedoria, como pôr outro acima de mim, que

    desde que comecei a compreender a língua jamais cessei de inquirir e aprender tudo o

    que podia de bem? A prova de que meu labor não foi estéril, não a vedes na

     preferência que a meu trato dão numerosos concidadãos e estrangeiros amigos da

    virtude? Por que motivo tanta gente, saiba-me embora demasiadamente pobre para

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    retribuir, faz timbre de enviar-me presentes? Ninguém poderá dizer que lhe haja

     pedido um serviço: entanto qual o motivo de tanta gente declarar dever-me gratidão?

    Por que, durante o sítio da cidade, jeremiavam meus concidadãos sua miséria,

    enquanto eu não padecia mais privações que nos dias de maior prosperidade daRepública? Por que, quando os outros compram a altos preços, no mercado, fruo

    gratuitamente os deleites do espírito, mais puros que os seus? Se nada podeis negar do

    que acabo de dizer, como não ter eu direitos legítimos ao beneplácito dos deuses e dos

    homens? Entretanto dizes, Meleto, que assim procedendo corrompo a juventude?

    Sabemos, sem dúvida, em que consiste a corrupção. Ora, dize-me, conheces um único

     jovem tornado ímpio; de moderado, violento; de poupado, pródigo; de sóbrio, dado

    ao vinho; de trabalhador, preguiçoso ou escravo de outra qualquer má paixão?

     — Sim, por Júpiter! — disse Meleto — conheço a quem seduziste a ponto de

    depositarem mais confiança em ti que nos próprios pais!

     — Concordo — respondeu Sócrates — no que respeita à instrução, porque

    sabem que meditei profundamente essa matéria. Quando se trata da saúde, os homens

    têm mais confiança nos médicos que em seus pais. Nos congressos, prefere a

    generalidade dos atenienses ater-se aos que falam com mais sabedoria àqueles a que se

    acham unidos pelos laços do sangue. Com efeito, não escolheis para estrategos de

     preferência a vossos pais e irmãos e, por Júpiter! de preferência a vós mesmos, aqueles

    que sabem mais experimentados na arte da guerra?

     — É o uso, Sócrates — replicou Meleto — e esse uso tem sua utilidade.

     — Pois bem — ripostou Sócrates — não te parece estranho que em tudo os

    melhores sejam considerados não somente iguais como superiores aos outros,

    enquanto a mim por causa da superioridade que me concedem alguns no tocante aomaior dos bens humanos, a instrução, me carregues com uma acusação capital?

    É de crer que tanto Sócrates como aqueles de seus amigos que falaram em sua

    defesa dissessem ainda muitas outras coisas. Mas não me propus desfiar todos os

     pormenores do processo; basta-me ter feito ver que Sócrates tomara por ponto

    demonstrar que jamais fora ímpio para com os deuses nem injusto para com os

    homens, mas que longe dele pensar rebaixar-se a súplicas para escapar à morte: ao

    contrário, desde logo se persuadira haver chegado a hora de morrer. Estes sentimentos

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    melhor se patentearam ao pronunciar-se a condenação. Primeiro convidado a fixar

    a taxa da multa, declinou-o e não o permitiu aos amigos, dizendo-lhes que tal fazer

    seria confessar-se culpado. Depois, querendo seus amigos subtraí-lo à morte, recusou-

    o e, chasqueando, perguntou-lhes se conheciam fora da Ática algum lugar inacessível àmorte.

    Enfim, proferida a sentença, disse: — Cidadãos! Tanto aqueles dentre vós que

    induzistes as testemunhas a perjurarem, levantando falso testemunho contra mim,

    quanto os que vos deixastes subornar, deveis, de força, sentir-vos culpados de grande

    impiedade e injustiça. Mas eu, por que haveria de crer-me empequenecido se nada se

    comprovou do que me acoimam? Jamais ofereci sacrifícios a outras divindades que

    não Júpiter, Juno e os demais deuses. Nunca jurei senão por eles. Jamais nomeei outras

    deidades. Quanto aos jovens, seria corrompê-los, habituá-los à paciência e à

    frugalidade? Atos contra os quais a lei pronuncia a morte, como a profanação dos

    templos, o roubo com efração, a venda de homens livres, a traição à pátria, meus

     próprios acusadores não ousam dizer que os haja cometido. Surpreso, pois, pergunto a

    mim mesmo qual o crime por que me condenais à morte. Nem por morrer injustamente

    devo ter-me em menor estima: não sobre mim, mas sobre os que me condenam cairá a

    ignomínia. Demais, consolo-me com Palamedes que findou quase como eu. Até hoje

    ainda lhe cantam hinos mais magníficos que a Ulisses, que o fez perecer injustamente.

    Estou certo que tanto quanto o passado, me renderá o porvir o testemunho de que

    nunca fiz mal a ninguém, jamais tornei ninguém mais vicioso, mas servia os que

    comigo privavam ensinando-lhes sem retribuição tudo o que podia de bem.

    Após assim falar retirou-se sem que nada lhe desmentisse a linguagem: olhos,

    atitude, andar conservavam a mesma serenidade.

    III

    Reparando que os que o acompanhavam se desfaziam em lágrimas, disse-lhes:

     — Que é isto! Agora é que achais de chorar? Não sabeis há muito que no

    instante mesmo de meu nascimento pronunciara a natureza a sentença de minha

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    morte? Se morresse antes da idade, rodeado de todos os gozos, certo seria o caso de

    nos afligirmos tanto eu como os que me prezam. Mas se chego ao termo da carreira,

    quando nada senão males posso esperar, minha morte deve ser motivo de alegria para

    todos vós.Acompanhava-o certo Apolodoro, alma simples e extremamente afeiçoada a

    Sócrates, que lhe disse:

     — Não posso suportar, Sócrates, ver-te morrer injustamente.

    Então se diz que, passando-lhe de leve a mão pela cabeça, Sócrates respondeu:

     — Como! Meu caro Apolodoro então preferias ver-me morrer justamente?

    E ao mesmo tempo sorria.

    É voz ainda que, vendo passar Ânito, disse:

     — Vejam só como vai ufano aquele homem: crê ter realizado bela façanha em

    me matando, por haver-lhe eu dito certo dia que, uma vez que fora levado às primeiras

    dignidades da República, não ficava bem elevar o filho ao mister de tanoeiro.

    Miserável! Parece ignorar que, de nós dois, verdadeiro vencedor é aquele que durante

    toda a vida não cessou de praticar ações úteis e honestas. E já que Homero atribui a

    alguns de seus heróis, à hora da morte, o conhecimento antecipado do futuro.

    Â verdade, falando de si mesmo com tamanha sobranceria perante o tribunal,

    Sócrates ateou o ciúme e contiçou a disposição em que se achavam os juízes a

    condená-lo. Mas estou que, com afortunado destino, o amercearam os deuses. Deixou

    da vida a parte mais penosa e morreu a morte menos dolorosa. Ademais, pôs

     plenamente de manifesto seu vigor de ânimo. Reconhecendo ser-lhe mais vantajoso

    morrer que viver, assim como jamais quero fazer também uma predição. Fax

    tempo, encontrei-me alguns momentos com o filho de Ânito, e pareceu-me não carecerde energia de caráter. Pois predigo que não permanecerá na condição servil em que o

    colocou o  pai- Mas, por falta de guia esclarecido, será presa de alguma paixão

    vergonhosa e se esbarrocará na perversidade.

    E assim falando Sócrates não se enganou. Avezando-se ao vinho, o rapaz não

     parava de beber dia e noite e acabou incapacitado de fazer o que quer que fosse de útil

    à pátria, aos amigos e a si mesmo. Quanto a Ânito, a má educação que dera ao filho e

    sua própria ignorância tornaram, até hoje que já não vive, odiosa sua lembrança.

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    Recuara diante dos outros bens, assim não fraquejou à barba da morte e

    serenamente a recebeu e sofreu. Quando reflito na sabedoria e grandeza de alma deste

    homem, não posso deixar de acordar-lhe a memória e a esta lembrança juntar meus

    elogios. E se dentre os enamorados da virtude alguém houver que haja privado comhomem mais prestante que Sócrates, reputo-o o mais venturoso dos mortais.