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GRUPO EDUCACIONAL UNINTER CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINI JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE Curitiba

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GRUPO EDUCACIONAL UNINTER

CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINI

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE

Curitiba

2017

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CRISTINA FURUTA DE MORAES TONTINI

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito do Grupo Educacional Uninter como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.

Área de concentração: História do Direito e Jurisdição

Orientador: Prof. André Peixoto de Souza

Curitiba

2017

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, os maiores amores da minha vida a quem eu dedico todas as minhas vitórias.

A minha filha Yasmin, pela compreensão e carinho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Grupo Educacional Uninter pela concessão da

gratuidade do curso de Pós-graduação Strictu Sensu em Direito o que possibilitou o

meu ingresso nesta jornada.

Agradeço ao meu orientador André Peixoto de Souza pela paciência,

cooperação e disponibilidade em me assessorar no decorrer do desenvolvimento

deste trabalho.

Agradeço ao professor Luiz Fernando Coelho por também ter me auxiliado e

pela disponibilização da bibliografia que tornou modelo para esta pesquisa e a todos

os professores que desta jornada participaram, transmitindo o conhecimento

necessário que muitas vezes esclareciam, e em outros, instigavam, colaborando

sempre para nossa evolução.

Agradeço aos colegas de mestrado que compartilharam comigo esses

momentos de aprendizado.

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“A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.”HANNAH ARENDT

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RESUMO

As transições democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio a

vários estudos sobre a democratização. No campo político, essas teorias

enfatizaram os processos transicionais a partir da atuação dos agentes políticos

relevantes. Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano.

Ao mesmo tempo, no campo jurídico, era formulado uma outra perspectiva de

análise, inserindo no centro da discussão a formulação de mecanismos que

possibilitassem a transição de regimes não autoritários para regimes democráticos

que pudessem proporcionar uma transição com justiça. Estes mecanismos serviram

de paradigma para a justiça de transição brasileira, movendo esforços para a sua

efetivação. Diante desta intensa atividade surgiram várias discussões com

entendimentos antagônicos exigindo a elaboração de teorias jurídicas, doutrinários e

de decisões políticas. Neste circunstancia fez-se necessário á busca por caminhos

viáveis dentro da realidade brasileira. Diante das antinomias surgidas aflora a

proposta elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho como via possível de

interpretação: o principio in dubio pro humanitate.

Palavras-chave: transições democráticas, democratização, justiça de transição,

antinomias, principio in dubio pro humanitate.

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ABSTRACT

The democratic transitions that occurred in late 1980s

initiated several studies on democratization. In the political field, these theories

emphasized the transitional processes from the performance of the relevant political

agents. Thus, other fields like the social, were pushed it aside. At the same time, in

the juridical field, another perspective of analysis was formulated, inserting in the

center of the discussion the formulation of mechanisms that would allow the

transition from no-authoritarian regimes to democratic regimes that could provide a

transition with justice. These mechanisms served as a paradigm for the transitional

justice in Brazil, moving efforts towards its implementation. Faced with this intense

activity, several discussions arose with antagonistic understandings requiring the

elaboration of legal, doctrinal, and political decision theories. In this circumstance it

became necessary to search for viable paths within the Brazilian reality. Faced with

the antinomies that arise, the proposal developed by Professor Luiz Fernando

Coelho emerges as a possible interpretation: the principle in dubio pro humanitate.

Key words: democratic transitions, democratization, transitional justice, antinomies,

principle in dubio pro humanitate.

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LISTA DE SIGLAS

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

ADCT - Ato de Disposições Constitucionais Transitórias

CNV - Comissão Nacional da Verdade

CISA - Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica

CEMDP - Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

CIE - Centro de Informações do Exército

CONADEP - La Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas

CORTEIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

DOI - Destacamento de Operações de Informações

MRE - Ministério das Relações Exteriores

ONU - Organização das Nações Unidas

OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

PSOL - Partido Socialismo e Liberdade

PIC - Pelotão de Investigações Criminais

PTB - Partido Trabalhista Brasileiro

STF - Supremo Tribunal Federal

SUMÁRIO

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PARTE I – TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA 15

1 IMPLICAÇÕES DO REGIME NÃO DEMOCRÁTICO PARA A DEMOCRACIA

16

1.1 REGIMES TOTALITARIOS: O TOTALISTAMOS E O DOMINIO

REAL

16

1.2 REGIMES AUTORITÁRIOS: UMA SINTESE DA EXPERIENCIA

BRASILEIRA

18

1.3 IMPLICAÇÕES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSIÇÃO 22

2 REGIME DEMOCRÁTICO 24

2.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER

E DAHL

25

2.2 INFLUÊNCIA DAS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NA

TRANSIÇÃO

30

3 TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA 32

3.1 LIBERALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO 33

3.1.1 Ondas democráticas 34

3.1.2 Transição por transformação, substituição e “transplacement” 36

PARTE II – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO LATO SENSU 45

1 CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO 45

1.1 GENEALOGIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 48

1.1.1 Primeira fase: Justiça Pós-guerra (1945) 49

1.1.2 Segunda fase: Justiça Pós-guerra Fria 51

1.1.3 Terceira fase: A justiça “estável” 53

1.2 PILARES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 54

1.3 TIPOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 62

PARTE III – OS CAMINHOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL 66

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1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO EM SENTIDO ESTRITO 66

1.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTIÇA CERCEADA 68

1.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS

POLÍTICOS

72

1.3 INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIAÇÃO DA COMISSÃO

ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS

73

1.4 ELABORAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS

HUMANOS

77

1.5 EIXO DA REPARAÇÃO: COMISSÃO DA ANISTIA 81

2 ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS

83

2.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008 86

2.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE

DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS.

94

2.3 UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE AS DECISÕES DO STF E DA

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS?

102

3 CRIAÇÃO DE COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE PARA APURAÇÃO DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS

108

3.1 ARGENTINA: LA COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA

DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP)

110

3.2 OUTRAS COMISSÕES 112

3.3 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NO

BRASIL E SUA ATUAÇÃO

116

3.3.1 Obstáculos à atuação da Comissão Nacional da Verdade 123

4 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO: ADPF 320 125

PARTE IV – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE

128

1 OLHANDO A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO DE “BAIXO PARA CIMA” 131

2 ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

133

3 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS 136

4 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO 136

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HUMANITATE CONCLUSÃO 143

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INTRODUÇÃO

As transições democráticas ocorridas no final da década de 1980 deram inicio

a vários estudos sobre a democratização. No campo político, essas teorias

enfatizaram os processos transicionais a partir da atuação dos agentes políticos

relevantes. Buscando uma sistematização dos processos de democratização, estes

estudos analisaram a transição exclusivamente em sua acepção temporal

elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias

dos atores relevantes e na atuação das elites políticas.

Assim, outros campos como o social, ficaram para em segundo plano. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimensão moral dos reclamos por justiça das vítimas foi relativizada sendo mais importante conseguir efetivar a

transição e consolidação democrática do que abrir questões que fizessem com que

o regime militar recuasse na sua decisão de abertura política. A presença da cautela

e da prudência se justificava pelo medo de que, caso a transição não ocorresse, um

pior cenário de regressão autoritária poderia surgir.

A análise desses conceitos é importante para que possamos entender como

se deram essas transições, quais as implicações do regime anterior no processo de

transição, e para que possamos extrair conceitos sobre o desenvolvimento da teoria

da democracia, essencial para a compreensão do desenvolvimento de outro campo

nos estudos sobre transição a ser desenvolvida na segunda parte deste trabalho.

Assim na Parte I buscamos realizar uma análise descritiva dos processos

transicionais na perspectiva política verificando o seu desenvolvimento e a sua

relação com as demandas por justiça que foram surgindo no desenvolvimento de

outra perspectiva sobre essas transições.

Ao mesmo tempo, no campo jurídico foi inserindo no centro da discussão a

formulação de mecanismos que possibilitassem a transição de regimes não

autoritários para regimes democráticos que pudessem proporcionar uma transição

com justiça.

Esta construção metodológica relacionada à necessidade de respostas a

problemas concretos, desenvolvemos na Parte II deste trabalho, utilizando-se da

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proposta elaborada por Ruti Teitel (2011). Nesta perspectiva então, a justiça de

transição indica uma atividade focada na superação de legados de abusos dos

direitos humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma social severo,

incluindo genocídio ou guerra civil, a fim de construir um processo mais democrático,

justo e um futuro pacífico desenvolvendo medidas a serem apreendidas como o

resgate a memória e a verdade, efetivação da justiça, reparação das vítimas e

reforma das instituições repressoras.

Estes mecanismos serviram de paradigma para a justiça de transição

brasileira, movendo esforços para a sua efetivação. No Brasil, a busca pela

efetivação destes mecanismos foi e continua sendo intensa. Desde a implantação do

silêncio marcado pela aprovação da Lei de Anistia de 1979, diversas disputadas

contra esta imposição já foram realizadas. Vítimas e seus familiares, Organizações

de Direitos Humanos e a sociedade não medem esforços para que este período da

história não caia no esquecimento.

Na parte III deste trabalho, desenvolvemos os caminhos que a justiça

transicional vem percorrendo desde a aprovação da Lei de Anistia de 1979, onde

uma cultura do silencio sobre os fatos da ditadura foram implantadas, até o

momento atual, onde se rediscute a não realização do Controle de

Convencionalidade pelo Supremo Tribunal Federal na ação de Arguição de

Descumprimento Fundamental n° 153.

Diante desta intensa atividade surgiram várias discussões com entendimentos

antagônicos passaram a exigir da doutrina a elaboração de teorias jurídicas que

tornassem possível o encontro de caminhos viáveis dentro da realidade brasileira.

Diante das antinomias surgidas aflora a proposta elaborada pelo professor Luiz

Fernando Coelho como via possível de interpretação: o principio in dubio pro

humanitate que será desenvolvida na Parte IV deste trabalho.

Neste sentido, propõe-se uma análise zetética e crítica da Justiça de

Transição, utilizando da hermenêutica para solucionar a antinomia então presente

no nosso ordenamento jurídico brasileiro. Assim, ao invés realizar a análise sob uma

perspectiva restrita e dogmática, propõe-se resolvê-la pela aplicação da Teoria Geral

do Direito. Este critério hermenêutico favorece a análise das violações sistemáticas

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contra os direitos humanos estabelecendo que o terrorismo de Estado e a crueldade

contra o povo devem motivar a reação dos governos democráticos.

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PARTE I - TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

Este capítulo pretende realizar uma abordagem descritiva dos estudos

elaborados sobre os processos de transição e consolidação democrática na América

Latina a partir de uma abordagem política. No fim dos anos 1980 a América Latina

passou a vivenciar vários processos de restauração democrática. Bolívia (1982),

Argentina (1983), Uruguai (1985), Brasil (1985) e Chile (1990), deixaram de ser

governados por ditaduras e passaram a adotar procedimentos democráticos para a

escolha de seus governantes.

Estes processos de transição deram ensejo à elaboração de várias teses

sobre a construção democrática, em especial, a transitologia e a consolidologia.

Buscando uma sistematização dos processos de democratização, estes

estudos analisaram a transição exclusivamente em sua acepção temporal

elaborando modelos excessivamente abstratos e formalistas focados nas estratégias

dos atores relevantes e na atuação das elites políticas. Neste sentido, outras

questões como as econômicas, sociais e culturais acabaram ficando em segundo

plano.

A análise desses conceitos, porém, é importante para que possamos

entender como se deram essas transições, quais as implicações do regime anterior

no processo de transição, e para que possamos extrair conceitos sobre o

desenvolvimento da teoria da democracia, essencial para a compreensão do

desenvolvimento de outro campo nos estudos sobre transição a ser desenvolvida no

capitulo 2.

Deste modo, este capítulo aborda sobre os pressupostos mínimos para a

compreensão sobre as transições políticas, trazendo primeiramente a leitura da

política para que depois possamos desenvolver a leitura do direito, a justiça de

transição, que surge no mesmo contexto, mas, como produto de uma demanda pela

mudança do entendimento da relação entre direito e justiça.

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1 IMPLICAÇÕES DO REGIME NÃO DEMOCRÁTICO PARA A DEMOCRACIA

Nesta sessão iremos desenvolver a abordagem sobre dois principais regimes

não democráticos ocorridos no século XX, o totalitarismo e o autoritarismo. Objetiva-

se a partir desta análise extrair suas principais características e suas implicações

para a transição democrática.

1.1 REGIMES TOTALITÁRIOS: O TOTALITARISMO E O DOMÍNIO TOTAL

A análise da obra “As origens do totalitarismo” de Hannah Arendt é essencial

para esclarecer sobre a experiência totalitária que eclodiu na Europa do século XX

lançando desafios para a frágil democracia do século XXI, tornando possível a

reflexão das condições para a ação política, a partir de uma ordenação social alheia

à política, no qual o terror e a ideologia tomaram lugar.

O totalitarismo se desenvolveu através da evolução do antissemitismo para o

racismo, e do marxismo para o despotismo, sendo um regime que “pode destruir não

só o mundo ocidental, mas toda a civilização humana” (ARENDT,2012, p.147)

O surgimento deste regime não-democrático começou da derrota da

Alemanha na Primeira Guerra Mundial onde grandes potências europeias assinaram

o Tratado de Versalhes (1919) pretendendo devolver a paz à Europa. Neste,

impuseram penalidades excessivamente penosas à Alemanha como, a perda de seu

território, o enfraquecimento de seu potencial bélico, além do pagamento de altas

indenizações. Tais penalidades somadas à crise economia que assolou o país

trouxeram um forte sentimento nacionalista no qual o movimento nazista explorou

para ascender ao poder. Quando da hegemonia do regime nazista na Alemanha o

poder do Estado não estava limitado à esfera pública, este passou a penetrar em

todo o tecido social, “destruindo todas as tradições sociais, legais e políticas do país”

(ARENDT, 2012, p.391).

A descoberta das atrocidades nazistas nos campos de concentração

trouxeram reflexões sobre o surgimento de estruturas de poder voltadas para a

dominação total sendo este, um fenômeno novo que se diferenciou essencialmente

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de outras formas de opressão política, como o despotismo, a tirania e a ditadura

(ARENDT, 2012). O totalitarismo instaurou um novo regime baseado na ideologia e

no terror, na busca de destruir toda e qualquer forma de poder, de eliminar o

pluralismo político, social ou econômico em nome do domínio total. O domínio

totalitário não se contenta apenas com o isolamento dos homens e das suas

capacidades políticas, “destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na

experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e

desesperadas experiências que o homem pode ter” (ARENDT, 2012, p.406), isto é,

promove esforços para controlar e regular todos os aspectos da vida pública e

privada ancorando-se no uso da propaganda massiva para reforçar seu modelo

ideológico.

É um regime que se instala em grande escala, com grandes massas

supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de

despovoamento. As massas são compostas por “pessoas neutras e politicamente

indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto”

(ARENDT, 2012, p. 280) sendo essenciais para o sucesso totalitário.  Essa

experiência não aconteceu como efeito da loucura de poucos, chegou ao poder em

uma sociedade onde o sentimento de xenofobia e o antissemitismo1, estavam

fortemente presentes. Não havia diferenças étnicas e de classe para instaurar o

processo de exclusão e domínio de pessoas consideradas de raças inferiores.

Além destes fatores o totalitarismo ao utilizar dos movimentos de massa tem

a forte capacidade de transformar, a qualquer momento, o indivíduo em algo

supérfluo e descartável, representando “uma contestação frontal à ideia do valor da

pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica” (LAFER,

1997, p.57). Há um centro de poder monista, ideologia exclusiva, autônoma, com a

qual o grupo dominante ou o líder são a alma da nação. A participação popular é

encorajada, exigida e compensada, desta forma a autora afirma, “no cinturão de

ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos, aquele Um, que

invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da

natureza” (ARENDT, 2012, p.397).

1 Nesse sentido, trazendo para a atualidade, leia-se que qualquer tipo de descriminação pode gerar novas

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Todas as leis são lei do movimento, ou seja, é a lei imposta através do terror

porque “pressionando os homens uns contra os outros, o terror total destrói o

espaço entre eles” (ARENDT, 2012, p.396).

Portanto o regime totalitário possui as seguintes características:

I. No totalitário não há pluralismo econômico, social ou político significativos;

II. Há a imposição de uma ideologia que articula uma utopia alcançável;

III. A vida privada é fortemente criticada. A mobilização extensiva ocorre em

torno de um vasto rol de organizações compulsórias organizadas pelo regime.

I. A liderança totalitária governa sem limites definidos e com grande

imprevisibilidade para os membros e não-membros dessa liderança

(LINZ;STEPAN, 1999)

1.2 REGIMES AUTORITÁRIOS: UMA SINTESE DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

O regime autoritário, por sua vez, é um regime político onde há a falta de

democracia, mas ainda resta um mínimo pluralismo. O pluralismo ao qual nos

referimos é a existência de um complexo corpo societário formado pela diversidade

de partido e movimentos políticos, organizações sociais e formações autônomas de

poder (WOLKMER, 2001). Os regimes autoritários são sistemas políticos no qual um

líder ou, ocasionalmente, um pequeno grupo exerce o poder dentro de limites

formalmente mal definidos, mas realidade, bem previsíveis (LINZ, 1979).

Portanto se associa com governos excessivamente centralizadores que

estabelecem um regime de exceção decorrente de golpes de Estado no qual a

mobilização política é fortemente repreendida e o pluralismo existente é limitado na

medida em que o seu exercício só ocorre através de aparelhamentos autorizados.

Há o esforço em se criar a apatia política e a obediência passiva da sociedade em

relação às questões públicas, e geralmente tais medidas são asseguradas através a

imposição da força militar.

A América Latina foi controlada por regimes militares entre os anos de 1960

e 1970. O fim da Segunda Guerra Mundial significou a divisão do mundo em dois

blocos dominantes: Estados Unidos e União Soviética. A diferença ideológica entre

estas duas superpotências resultou na criação de mecanismos dos dois lados para

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combater a expansão de suas influências. O acirramento da Guerra Fria ocasionou

a criação da Doutrina da Segurança Nacional pelos Estados Unidos no qual orientou

as suas ações perante as “ameaças comunistas”. A divisão geopolítica que a Guerra

Fria ocasionou interferiu veemente na política de vários países, principalmente na

América Latina, que foi dominada por sucessivos golpes de Estado e instauração de

regimes autoritários. O mundo ficou dividido entre o capitalismo e o comunismo.

Neste contexto o Brasil visando o desenvolvimento econômico do país firmou

aliança com os Estados Unidos absorvendo a ideologia proposta de combate ao

comunismo. Isto gerou um grande movimento tanto das elites, quanto da própria

sociedade civil, para salvar o país da “subversão”. Neste período, o Brasil

permaneceu na órbita da diplomacia norte-americana, assim como o restante dos

países latino-americanos,

Os países da região que haviam participado com tropas na Segunda Guerra Mundial, como o Brasil, lutaram como aliados dos Estados Unidos e sob seu comando militar, iniciando aí uma cooperação operacional que avançaria nas décadas seguintes, gerando unidade de doutrinas, treinamento conjunto na formação de quadros e estreita identidade ideológica em política e diplomacia, como, por exemplo, a criação do bloco dos países não-alinhados, a partir de 1955, o cisma sino-soviético dos anos 1960 e a resistência de Charles De Gaulle a uma liderança absoluta dos Estados Unidos ao longo do período (BRASIL. COMISSÃO ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p.19).

O Paraguai (1954), Brasil (1964), Chile e Uruguai (1973) e na Argentina

(1976) tornaram-se regimes autoritários. A Doutrina de Segurança Nacional2 passou

a vigorar nesses países pautando-se no combate a figura do inimigo público interno

no qual os militares eram os únicos que estariam aptos devolver o terreno de

tranquilidade que os subversivos haviam inquietado. Segundo Condato (2005) o

regime autoritário no Brasil durou 25 anos (1964 – 1989) passando por seis

governos e pode ser divida em cinco fases.

A primeira fase foi a constituição do regime militar nos governos Castello

Branco, e Costa e Silva entre março de 1964 e dezembro de 1968. O ato

institucional n°1, de 9 de abril de 1964, lançou a ditadura militar que derrubou o

governo democrático de João Goulart. A organização política do país foi abalada

pelo “movimento revolucionário”, que se investindo de Poder Constituinte legitimou-

se por si mesma. Expurgos políticos, militares e administrativos começaram a

2 No Brasil foram decretadas três versões da Lei de Segurança Nacional: Decreto Lei 314/1967, Decreto Lei 510/1969 e Decreto Lei 898/1969.

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ocorrer no país3. Em outubro de 1965, o governo promulgou o Ato Institucional n°2

prevendo outras medidas de exceção, dissolvendo todos os partidos políticos e

estabelecendo eleições indiretas para Presidente da República e Governadores. Em

1966 o Congresso Nacional foi convocado para votar e promulgar o projeto

constitucional que revogava a Constituição de 1946. Em 1967, a nova Constituição

foi promulgada dando amplos poderes ao Presidente da República, que a partir de

então passou a editar todas as normas em forma de atos institucionais (AI).

Em 1968, iniciaram os “anos de chumbo” através do AI-5. O Presidente da

República passou a ter poderes para suspender os direitos políticos de qualquer

cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e

municipais. As garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e

estabilidade foram suspensos. O habeas corpus também foi suspenso, retirando dos

perseguidos políticos seus meios de defesa4. Ademais, o AI-5 excluiu da apreciação

judicial todos os atos alcançados por ele e por seus atos complementares.

A segunda fase foi a consolidação do regime militar no Governo Medici entre

1969 e 1974. O aparato repressivo se institucionalizou e as violações sistemáticas

de direitos humanos tornaram-se prática comum do Estado. Incontáveis casos de

tortura, homicídios, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, incinerações

de corpos, prisões arbitrárias se intensificaram em toda a América Latina. A política

de Estado se voltou a eliminação dos seus opositores5. Os principais setores da

sociedade civil como sindicatos, organizações profissionais, igrejas e partidos

começaram a estar sob vigilância constante. A repressão política foi exercida

3 No dia 10 de abril, foi divulgada a primeira lista de cassados, que já indicava o largo espectro de personalidades e instituições visadas pelos militares. Continha 102 nomes, entre os quais 40 congressistas, militares, governadores, sindicalistas, diplomatas e os ministros mais progressistas de Jango. As cassações atingiram o PTB em cheio: 19 dos 40 deputados que perderam seus mandatos pertenciam à sigla trabalhista (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.98). 4 A partir de então, como não havia mais o instrumento de Habeas Corpus, os advogados passaram comunicar as prisões arbitrárias por meio de petições simples, no qual conseguiam oficializar o reconhecimento por parte dos militares de que o preso estava sobre a sua tutela. Desta forma conseguiam garantir que o preso não seria morto ou que ele desaparecesse. O que era muito comum. 5 “Com Médici, o regime ditatorial-militar brasileiro atingiu sua forma plena. Criara-se uma arquitetura legal que permitia o controle dos rudimentos de atividade política tolerada. Aperfeiçoara-se um sistema repressor complexo, que permeava as estruturas administrativas dos poderes públicos e exercia uma vigilância permanente sobre as principais instituições da sociedade civil: sindicatos, organizações profissionais, igrejas, partidos. Erigiu-se também uma burocracia de censura que intimidava ou proibia manifestações de opiniões e de expressões culturais identificadas como hostis ao sistema. Sobretudo, em suas práticas repressivas, fazia uso de maneira sistemática e sem limites dos meios mais violentos, como a tortura e o assassinato”. (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014 p. 102).

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através de uma combinação de instituições distintas como as Forças Armadas,

Polícia Civil, Polícia Militar, inclusive, civis que financiavam, ou apoiavam as ações

repressivas.

A repressão não ficava restrita a apenas o âmbito interno. Segundo relatório

da Comissão Nacional da Verdade (CNV) o Estado brasileiro participou de graves

violações de direitos humanos no exterior.

A ditadura não se preocupava apenas com seus opositores no Brasil: o inimigo interno não podia ser descuidado, mesmo quando fora do território nacional. Potencialmente, incluíam-se nessa categoria não só os que foram afastados da política pelo Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964, ou identificados pelos órgãos da repressão ao longo dos anos seguintes, mas também todos aqueles que deixavam o país por discordarem da ditadura. Suspeitos, precisavam ser vigiados (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.176).

Perante os organismos internacionais o Ministério das Relações Exteriores

(MRE) articulou a cobertura e a dissimulação negando sistematicamente a

ocorrência desses crimes.

A terceira fase foi a transformação do regime militar no governo Geisel entre

1974 e 1979. O golpe de 1964 completava dez anos no momento em que Geisel

assumiu a Presidência da República promovendo o debate da oposição quanto a

prolongada intervenção militar e a necessidade do retorno da democracia no país.

Neste contexto foi iniciada a liberalização controlada que pretendia realizar o retorno

à democracia de forma “lenta, gradual e segura”. Em 1978 a aprovação da emenda

constitucional n°11 aboliu o AI-5 “extinguindo a autoridade do presidente para

colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares ou privar os cidadãos dos

seus direitos políticos” (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014,

p.106). O habeas corpus foi restabelecido e as penas da Lei de Segurança Nacional

tornaram-se mais brandas. A distensão pelo governo Geisel permitiu a suspensão

da censura prévia, os resultados eleitorais foram permitidos, os protestos dos

empresários contra o modelo econômico foram admitidos.

A quarta fase foi a desagregação do regime militar no governo Figueiredo

entre 1979 e 1985. O governo manteve o projeto de distensão iniciado no governo

Geisel. Em 1979 a Lei de Anistia – L.6.683/1979 – foi aprovada concedendo anistia

a todos aqueles que no período entre 1961 e 1979 havia cometido crimes políticos.

Neste momento havia forte movimentação para a aprovação da emenda “Dante de

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Oliveira” que estabelecia as eleições diretas para presidente em 1985, com forte

atuação do movimento “Diretas já”. Apesar da ampla concordância da população

esta emenda não foi aprovada pela Câmara dos Deputados, sendo promovida em

1985 a eleição indireta para presidente entre os candidatos Tancredo Neves e Paulo

Maluf. E a quinta e ultima fase foi à transição do regime militar para um regime

liberal-democrático. Após a queda do regime e o inicio da abertura política,

processos de transição para o regime democrático começaram a ocorrer. Porém,

muitas destas transições partiram dos próprios regimes autoritários ocasionando

grande insatisfação dos movimentos de direitos humanos e das vítimas que se

sentiram injustiçadas com a impunidade dos agentes de Estado, o qual será objeto

de discussão do próximo capítulo sobre Justiça de Transição.

Em suma, as principais características do regime autoritário foram:

II. Sistema político com pluralismo político limitado e não responsável.

III. Costuma ter algum lugar para uma semi-oposição;

IV. É um sistema político sem ideologia complexa ou idealizadora;

V. Não há mobilização política, salvo em alguns momentos do seu

desenvolvimento;

VI. É um sistema político onde os lideres ou um pequeno grupo exerce o poder

dentro de limites formalmente mal definidos, mas com normas bastante

previsíveis (LINZ;STEPAN, 1999)

1.3 IMPLICAÇÕES DO REGIME ANTERIOR PARA A TRANSIÇÃO

As características do regime não-democrático possui um ampla implicação no

processo de transição e consolidação democrática. Dentre estas cabe ressaltar duas

implicações quanto às vias para a transição democrática (LINZ;STEPAN, 1999).

A primeira implicação ocorre quanto ao estabelecimento de reformas e

rupturas pactuadas. Para que ocorram os pactos é necessário que haja a abertura

política do regime não-democrático para dialogar com a oposição democrática. No

caso do autoritarismo a reforma pactuada é possível entre os moderados do regime

e a oposição democrática moderada, enquanto no regime totalitário não há espaço

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para uma oposição democrática organizada, portanto, a realização de pactos não é

possível

A segunda implicação decorre da influência da hierarquia militar no poder. No

autoritarismo, se o regime for governado por uma hierarquia militar e os militares

enquanto instituição se sinta ameaçados, interna ou externamente, pode haver

pressão para que estes deixem o poder, substituindo-se por um governo civil

estabelecido por meio de eleições. Caso o regime não-democrático for liderado por

militares não-hierárquicos a imposição do controle civil democrático torna-se mais

fácil, podendo acarretar em julgamentos. No regime totalitário não é possível que a

hierarquia abra mão do poder porque a primazia do partido e o papel ilimitado dos

líderes torna impossível o governo de uma hierarquia militar.

Em relação às tarefas mínimas para completar a transição e consolidação

democrática Linz e Stepan (1999) estabelecem cinco condições necessárias: 1. A

existência de um Estado de direito e liberdade da sociedade civil; 2. Autonomia da

sociedade política; 3. A existência de normas constitucionais que aloquem o poder

de forma democrática; 4. Uma burocracia estatal aceitável e utilizável pelo governo

democrático e ; 5. A existência de uma autonomia suficiente para a economia e para

os atores econômicos, para assegurar o pluralismo na sociedade civil, na sociedade

política e na sociedade econômica.

Como no totalitarismo inexiste o estado de direito e grande parte do aparato

legal serve como instrumento para o movimento do partido e as liberdades civis são

mínimas, deve haver o afastamento de todo o sistema totalitário para que haja o

recomeço de um novo regime. Neste sentido as liberdades civis devem ser

legalizadas, desenvolvidas e protegidas, a posição de domínio do partido em todas

as áreas da sociedade e sua situação e recursos privilegiados devem ser

desmontados, deve haver a elaboração de uma nova constituição haja vista que a

constituição do regime totalitário não foi projetada para uma sociedade democrática,

há a necessidade da criação de uma burocracia não-politizada e o desenvolvimento

de uma reforma fundamental da economia.

No autoritarismo há uma tradição do estado de direito e de sociedade civil,

porém estas se encontram apenas na ideia de estado de direito formal. Dessa

forma, as liberdades civis devem ser ampliadas e protegidas de fato, a livre

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competição entre partidos deve ser criada, a constituição deve ser restituída,

emendada ou revogada, a burocracia existente pode ser reformada havendo alguns

expurgos entre os burocratas, e a economia pode, ou não, ser reformada. Em outras

palavras, um regime autoritário em seu estado tardio necessita ter “uma sociedade

civil forte, uma cultura legalista que propicie o constitucionalismo e o estado de

direito, uma burocracia estatal eficiente, que opere dentro das normas profissionais,

e uma sociedade econômica razoavelmente institucionalizada” (LINZ;STEPAN,

1999, p. 77). Para O’Donnell (1988, p.83) “a dinâmica da transição de um regime

autoritário não se resume a meras disposições, cálculos ou pactos das lideranças”.

Podemos verificar, portanto, que a depender do regime não-democrático

institucionalizado o processo de transição e consolidação democrática resulta em

implicações e exige tarefas mínimas distintas. Para a justiça de transição – que será

objeto de estudo no segundo capítulo – tais contextos políticos influenciam na

escolha das medidas que devem ser tomadas pelo novo governo a respeito dos

acontecimentos relacionados ao regime anterior.

2 REGIME DEMOCRÁTICO

Contemporaneamente apesar de haver o consenso sobre a validade e

legitimidade da democracia em detrimento de outros regimes não democráticos, o

significado do que esta representa ainda encontra-se em debate. A crise da

representação política nos países de democracia consolidada e o resultado da

falência dos regimes autoritários no Leste Europeu, Ásia e América Latina geraram

incertezas quanto às possibilidades de consolidações democráticas (GAMA, 2009)

incentivando a produção de inúmeros estudos sobre a sua representação. Desta

maneira, para que possamos abordar sobre as transições democráticas é

necessário delimitar a definição de democracia que iremos utilizar neste trabalho.

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2.1 CONCEITO OPERACIONAL DE DEMOCRACIA: SCHUMPETER E DAHL

A concepção minimalista de Joseph Schumpeter (1961) para determinar o

conceito de democracia real tornou-se o modelo hegemônico que influenciou e deu

ensejo a outros estudos no mesmo campo. Este autor desenvolve sua teoria a partir

de uma forte crítica a teoria clássica da democracia. A doutrina liberal clássica do

século XVIII define a democracia como o “arranjo institucional para se chegar a certas decisões políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER, 1961, p.300), ou seja, pressupõe a

existência de indivíduos plenamente conscientes, com forte interesse pela política, e

que desejam participar ativamente do controle dos negócios públicos orientados pela

busca do bem comum.

Para o autor, o conceito clássico de democracia encontra várias barreiras práticas para efetivá-la. Em primeiro lugar, não há “um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou possa aceitar por força de argumentação racional”, isso porque o conceito de bem comum pode resultar em inúmeras interpretações dependendo do contexto em que o indivíduo está inserido, fato que os “domínios da lógica” são incapazes de prever. Em segundo lugar, mesmo que o bem comum pudesse ser definido este não conseguiria trazer “soluções igualmente definidas para os casos individuais” restando sempre um espaço para novas divergências. Em terceiro lugar, tentar determinar a “vontade do povo” é algo difícil de ser alcançado “pois esse conceito pressupõe um bem inequivocamente determinado e compreendido por todos”, ainda esta vontade pode ser artificialmente fabricada durante os processos políticos (SCHUMPETER, 1961, p. 301-303).

Deste modo Schumpeter (1961) elabora a teoria minimalista da democracia trazendo uma percepção da política instrumental e elitista “marcadamente influenciada pelas teorias sociológicas de Max Weber sobre a racionalidade e o desenvolvimento da sociedade capitalista ocidental” (GAMA, 2009, p. 2), pois, em uma sociedade complexa como a

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que vivemos não há espaço para a participação democrática da forma como exige a teoria clássica. Assim como Schumpeter (1961), Norberto Bobbio

(2000) também entende que ninguém tem condições de definir precisamente o

interesse comum ou coletivo, a não ser confundindo interesses grupais ou

particulares com o interesse de todos.

Tratando sobre a “natureza humana na política” o autor explica que na

segunda metade do século XIX gradualmente a ideia de unidade homogênea da

personalidade humana começou a desaparecer. O estudo da “psicologia das

massas” realizada pelo sociólogo francês Gustave Le Bon6, em 1886, desconstruiu

as teorias da natureza do homem que sustentavam o modelo clássico de

democracia (SCHUMPETER, 1961, p. 307) passando a afirmar que quando um

indivíduo é inserido nas multidões adquire um sentimento de poder invencível de tal

maneira que a sua atividade consciente acaba sendo substituída pela ação

inconsciente das multidões, isto é, as pessoas quando inseridas em massas não

conseguem elaborar um pensamento racional, deixando fluir os seus instintos

primitivos gerando um lapso dos freios morais.

Todos os parlamentos, todos os comitês, todos os conselhos de guerra formados de generais sexagenários revelam, por menor que seja o grau, alguns dos aspectos que surgem tão claramente no caso da ralé7, e, em particular, menor senso de responsabilidade, grau mais baixo de energia mental e maior sensibilidade a influências não-lógicas. Ademais, esses fenômenos não estão limitados à multidão no sentido de aglomeração física de numerosas pessoas. Leitores de jornal, audiências de rádio, membros de partidos políticos, mesmo quando não fisicamente reunidos, podem ser facilmente transformados psicologicamente em multidão e levados a um estado de frenesi, no qual qualquer tentativa de se apresentar um argumento racional desperta apenas instintos animais (SCHUMPETER, 1961, p.308).

O comportamento das pessoas inseridas nessas grandes massas torna-se

imprevisível. Partindo dessa premissa, de que existem vícios da natureza humana,

Schumpeter (1961) se afasta da concepção clássica para filiar-se a Teoria das elites

6 Ver: Le Bon, Gustave. Psicologia das Multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 7 “O aparecimento dessa ralé foi observado desde o início do Capitalismo e seu crescimento foi registrado por diversos estudiosos. Mas o que os estudiosos não viam, por estarem preocupados com o fenômeno em si, era que a ralé não podia ser identificada com o aumento da classe trabalhadora industrial nem com o povo em geral, pois a mesma era um refugo de todas as classes. Contudo, a ralé não é apenas o refugo, mas também o subproduto da sociedade burguesa, gerado pela sua normalidade e inseparável de si mesma. Em alguns círculos, esta ralé chega a ser elogiada, seu modo de vida transformado em matéria-prima para a literatura, o cinema e o teatro. O cinismo e a descrença dessa ralé são características importantes na construção de algumas experiências totalitárias. [...] o Capitalismo, além de produzir capital excedente, produz homens excedentes. Daí surge a noção de associação entre o capital e a ralé. Associação que é a base material do Imperialismo”. (BARBOSA, 2009, p. 163-164).

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– pensamento fundado por Gaetano Mosca, Vifredo Pareto e Robert Michels –

definindo a democracia de forma estritamente procedimental. O processo

democrático é, portanto, “um método político, isto é, um certo tipo de arranjo

institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa)”

(SCHUMPETER, 1961, p.291), ou seja, um conjunto de regras que estabelecem

como devem ser escolhidos aqueles que irão realizar as decisões políticas. Na

mesma linha Bobbio (1997, p.65) afirma que “o que distingue um sistema

democrático dos sistemas não democráticos é um conjunto de regras do jogo”.

A concepção schumpeteriana desarticula o protagonismo no povo para

demonstrar que nas sociedades modernas o papel central da participação e da

tomada de decisões por parte destes é empiricamente irrealista, uma vez que é

evidente que “o povo, como povo, não pode jamais governar ou dirigir realmente”

(SCHUMPETER, 1961, p.296).

Logo, a democracia é o “governo dos políticos” (SCHUMPETER, 1961, p.

339). Este repúdio a participação advém da impossibilidade de ampla participação

política na crescente complexidade das sociedades modernas, e ainda, da reflexão

de que as pessoas comuns além de não possuírem interesses por assuntos

políticos, ao serem inseridos na grande política, tornam-se irracionais,

irresponsáveis e de fácil manipulação (QUADROS, 2015), podendo ser facilmente

influenciados pela propaganda política, por exemplo. Cabe às elites, portadoras de

racionalidade política, a tomada de decisões e ao povo incumbe uma participação

passiva.

Deste modo o autor toma uma preocupação procedimental com as regras de

tomada de decisões elevando-a a um método para a constituição de governos. Toda

ação política deve se pautar em estratégias de maximização do voto, definindo a

competência política daqueles que irão governar da maior, ou menor, capacidade de

atender às expectativas dos eleitores e capturar adeptos (HOLLANDA, 2011). Em

outras palavras, a democracia se torna uma grande disputa entre os concorrentes ao

cargo político para arrecadar o maior número de votos e assim adquirir o poder por

meio do processo eleitoral.

Deste modo se estabelece alguns critérios importantes para que haja o

efetivo funcionamento da democracia: 1) A liderança política deve ser dotada de alta

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qualidade e possuir a vocação para a atividade política; 2) Devem observar as

limitações do domínio real nas decisões políticas; 3) Deve possuir um corpo técnico-

burocrático eficiente; 4) Deve haver o autocontrole democrático e as normas devem

ser respeitadas;

A contribuição deste autor para a teoria da democracia foi de suma

importância, pois afastou a incompatibilidade entre elites e democracia defendendo

que a existência de indivíduos vocacionados para a complexa vida política é

essencial no processo democrático. Sua análise propôs que a democracia está

subordinada a situações concretas ligadas aos resultados, e não ao ideal

democrático (QUADROS, 2015). A vontade da maioria (e não da vontade do povo) é

determinante para a escolha dos representantes considerados mais capacitados

para elaborar um plano de governo que atenda a expectativas, porém, a sua

participação direta na vida política não é necessária e nem viável. Afirma o autor que

as pessoas possuem uma grande capacidade para resolver as questões do

cotidiano, mas, quando encarregadas de temas públicos estas apresentam pouco

senso de realidade analisando e argumentando o problema público de forma infantil.

Esse reduzido senso de realidade explica não apenas a existência de um reduzido senso de responsabilidade, mas também a ausência de uma vontade eficaz. O indivíduo fala, deseja, sonha, resmunga. E, principalmente, sente simpatias e antipatias. Mas, ordinariamente, esses sentimentos não chegam a ser aquilo que chamamos de vontade, o correspondente psíquico da ação responsável e intencional. De fato, o cidadão privado que medita sobre a situação nacional não encontra campo de ação para sua vontade nem tarefa em que ela possa se desenvolver. Ele é membro de um comitê incapaz de funcionar — o comitê formado por toda a nação — e é por isso mesmo que emprega menos esforço disciplinado para dominar um problema político do que gasta numa partida de bridge.(SCHUMPETER, 1961, p. 312).

Assim, entende que o êxito democrático decorre da qualidade existente

entre aqueles que se dispõem à participação ativa, ou seja, a existência de

profissionais altamente qualificados para a tomada de decisões.

A partir da concepção de democracia como método político, Robert Dahl

(2005) encontrou o quadro referencial para a elaboração da sua teoria. Neste

sentido Dahl (2005, p.11) trata “do problema da democratização, definindo-a como

um processo de progressiva ampliação de competição e da participação politica”,

trazendo critérios para a classificação dos regimes políticos. Denominando a forma e

o modo como funcionam os regimes democráticos de “poliarquia”, tendo em vista

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que para este “nenhum grande sistema no mundo real é plenamente democratizado”

(DAHL, 2005, p. 31) afirmou que a democracia seria um ideal enquanto a poliarquia

corresponderia ao regime democrático que realmente existe.

Um dos elementos presentes em democracias de grande escala como a que

temos atualmente seria a representatividade. Deste modo além da capacidade da

elite em competir pelo voto popular, o governo deve ser responsivo as preferências

dos seus cidadãos, e estes últimos, devem ter oportunidades plenas de formular,

expressar e de ter igualmente suas preferências consideradas pelo governo.

Para que isso seja possível devem existir diversos grupos políticos e sociais

que algumas vezes cooperam, e em outras se combatem, mas que de certo modo

se equilibram e representam a pressão da base. Em outras palavras, deve existir o

pluralismo societal, onde nenhum grupo social possui privilégio sobre os recursos de

poder. Deste modo, o autor não se atém a apenas entender como o sistema

democrático funciona, mas sim, busca promover a democracia através da análise

das condições que aumentam ou diminuem as chances de democratização, e dos

fatores que aumentam ou diminuem as chances de contestação pública num regime

fortemente inclusivo.

A democratização é formada por pelo menos duas dimensões, a

contestação pública e direito de participação. Assim, quanto maior as oportunidades

de expressar, organizar e representar preferências políticas, maior será a variedade

de interesses passíveis de representação, pois a multiplicidade de centros de poder

complementam a presença de minorias concorrentes ligados por um acordo mínimo

sobre as regras do jogo. Uma democracia representativa existe quando constatamos

oito garantias institucionais que tornam possível medir o grau de democratização

dos regimes políticos: 1) Liberdade de formar e aderir a organizações; 2) Liberdade

de expressão; 3) Direito ao voto; 4) Direito de líderes políticos disputarem apoio; 5)

Fontes alternativas de informação; 6) Elegibilidade para cargos políticos; 7) Eleições

livres e idôneas; 8) Relação de dependência entre as ações de governo e as

eleições ou outras formas de manifestações de preferência da população (DAHL,

2005, p.27).

Podemos deste modo, perceber que apesar de Schumpeter e Dahl

compreenderem a democracia como método político, o primeiro reduz a concepção

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de democracia restringindo-a a disputa entre grupos políticos no poder, enquanto o

segundo busca promover a democracia, a partir do conceito de poliarquia, como

mecanismo de avaliação empírica de modelos de governo no qual convivem vários

centros de poder. Em outras palavras, se para Schumpeter a democracia é aquela

em que as elites competem pela adesão e condução das massas, onde a

participação do governado fica restrita à escolha de seus governantes. Para Dahl

“as poliarquias podem ser pensadas então como regimes relativamente, mas incompletamente, democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública” (DAHL, 2005, p.31)

A definição de poliarquia no qual a democratização consiste em um

processo de progressiva ampliação de contestação, participação política, existência

de uma livre competição pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis

fundamentais, apesar de ser uma visão minimalista sobre o que seria um regime

democrático se tornou referência para as discussões sobre transição de regimes

políticos.

2.2 INFLUÊNCIA DAS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NA TRANSIÇÃO

Analisando as democracias da América do Sul Stepan (1988) complementa

a abordagem de Schumpeter e Dahl inserindo a questão das relações civis-militares.

Deste modo desenvolve um esquema analítico que possibilita verificar a influência

dos militares em qualquer regime e a segurança do processo democrático a partir

das prerrogativas militares e do nível de contestação militar às ordens civis.

As prerrogativas militares referem-se aos espaços sobre os quais, existindo

ou não contestação, os militares como instituição pressupõem ter o direito de

exercer um controle efetivo considerando-se no direito de controlar ou mesmo de

estruturar as relações entre o Estado e a sociedade (STEPAN, 1988). Através da

proposição das prerrogativas o autor buscou formular um modelo analítico para

verificar essas relações classificando-as em prerrogativas militares baixa, moderada

e alta intensidade. Nesse sentido quanto maior for a tutela militar sobre o poder

político, maiores são as prerrogativas militares e menor será o controle democrático.

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Altas prerrogativas implicam na inexistência de facto, assim como de jure, de

controle civil democrático sobre os militares (ZAVERUCHA, 1998). Deste modo as

sociedades com baixas prerrogativas e um baixo nível de contestação militar podem

ser consideradas democracias,

Portanto, o que se espera de um país democrático é a erradicação de tais prerrogativas, caso se queira estabelecer um controle civil democrático sobre os militares, e, consequentemente, um regime democrático. Até porque altas prerrogativas militares se correlacionam com alto grau de autonomia castrense, no sentido dos militares serem capazes de impor, frequentemente, seus interesses aos civis via canais legais ou quando ocorram resistências (ZAVERUCHA, 1998, p.2).

Jelin e Hershberg (2006) comparando às experiências democráticas da

Argentina e do Brasil afirmam que a Argentina possuía prerrogativas baixas e alta

contestação no Governo Alfosín, passando para prerrogativas e contestações baixas

na administração Menem. No Brasil durante o governo Sarney as prerrogativas eram

altas e havia uma media contestação militar. Já nas administrações de Collor e

Itamar Franco as prerrogativas passaram a ser médias e contestação militar atingiu

um baixo nível. Porém verifica-se que mesmo com o processo de redemocratização

as prerrogativas militares continuaram sendo mantidas8.

Deste modo a baixa contestação militar não significa que estes não possuam

participação nos processos de decisão política. Conforme afirma Zaverucha (1998,

p.33) “a democracia brasileira é tão conservadora com os interesses castrenses que

os militares não se sentem impulsionados a contestarem os governos civis”. Esta

questão explica a abertura política “lenta, gradual e segura” imposta pelo regime

militar brasileiro em oposição à transição “ampla, geral e irrestrita” movida pela

sociedade. Nesse sentido Stepan (1988) afirma que o que ocorreu foi mais para uma

8 Zaverucha identifica 17 prerrogativas:1- Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem; 2. Militares controlam principais agencias de inteligência; 3. Militares na ativa ou da reserva participam do gabinete governamental; 4. Inexistência do Ministério da Defesa (Em 1999 foi criado no Brasil o Ministério da Defesa, para muitos um avanço nas relações civil-militares). ; 5. Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa nacional; 6. Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais; 7. Polícia Militar sob parcial controle das Forças Armadas; 8. Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas; 9. Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados por tribunais comuns; 10. Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares mesmo que cometam crimes comuns ou políticos; 11. Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandado judicial e sem flagrante delito; 12. Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida pelos militares; 13. Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução durante intervenção interna; 14. Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do presidente e vice-presidente da República; 15. Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial, navegação, aviação etc.); 16. Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente ao Tesouro; A política salarial do militar é similar a existente durante o regime autoritário. (ZAVERUCHA, 1998, p. 2-3).

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liberalização do regime ditatorial do que a democratização do sistema político. A

distensão promovida durante a abertura política permitiu a continuidade excepcional

do autoritarismo gerando altos custos para a transição política, no qual, até hoje não

conseguimos efetivar.

3 TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

A queda dos regimes militares durante os anos 1980 estimulou uma série de

estudos sobre as transições dos regimes autoritários para os regimes democráticos.

Debruçando-se sobre o problema da transição, vários autores buscaram estruturar

modelos que explicassem como e porque essas mudanças de regime ocorreram.

Essas explicações, que se tornaram clássicas na Ciência Política, priorizaram a

atuação das elites, bem como os “arranjos políticos-institucionais” (TRIBESS, 2014,

p. 172). Isso porque os debates sobre a natureza e as possibilidades da transição

mantinham vínculos estreitos com os debates políticos sobre as oportunidades e

estratégias.

Neste sentido era salientada a necessidade de separar as questões de

procedimento das questões que fossem substantivas e relevantes para o processo.

Deste modo a consolidação dos novos regimes democráticos apoiou-se

basicamente nas questões políticas fundadas em procedimentos e em instituições

democráticas deixando de “recorrer à dimensão substantiva, historicamente contida

nos programas populistas ou desenvolvimentistas” (KECK, 2010, p. 22).

A transição é conceituada como o movimento de uma coisa para outra,

representando o intervalo entre dois regimes, e seu encerramento acontece quando

a anormalidade não constitui traço principal da vida política

(O’DONNEL;SCHMITTER, 1988). Portanto a transição política é,

[...] um momento histórico em aberto, marcado por um processo complexo e não linear, em que diversas forças sociais concorrem por imprimir um destino comum à coletividade. Nesse processo, inexiste uma escala de estágios ou pontos de passagem definidos de antemão (QUINALHA, 2013, p. 30).

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As normas que surgem neste processo passam a definir quais são os canais

que irão ser utilizados para promover o acesso a cargos de governo, os meios

legítimos que poderão ser utilizados para a solução de conflitos e os procedimentos

para a tomada de decisões, ou seja, serão definidos quais são as “regras do jogo”

que todos deverão observar. Deste modo a transição democrática é permeada por

um amplo conjunto de estratégias e escolhas realizadas pelas elites políticas e

militares a fim de promover os processos de mudança política.

3.1 LIBERALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO

As transições não ocorrem da mesma maneira em diferentes países e nem

mesmo seguem um curso determinado ou sugerem uma resposta definida. Estas

podem se arrastar no tempo reunindo um conjunto de fatores complexos e de

questões diversas a depender do contexto em que são propostas. Apesar disso é

possível identificar alguns elementos constitutivos da transição política: a

liberalização e a democratização.

A liberalização do regime não-democrático é o ponto de partida do processo

de transição desencadeando a “redefinição e extensão de direitos, em que apenas

algumas liberdades parciais e restritas, típicas do liberalismo clássico, seriam

salvaguardadas” (QUINALHA, 2013, p.124) ou seja, o regime autoritário passa a ser

menos repressivo aceitando um grau tolerável de liberdades de expressão,

organização e participação políticas. Para Linz e Stepan a liberalização,

pode implicar uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, tais como menos censura da mídia, um espaço um pouco maior para a organização de atividades autônomas da classe trabalhadora; a introdução de algumas salvaguardas jurídicas para o indivíduo, como o habeas corpus; a libertação da maior parte dos presos políticos; o retorno dos exilados; talvez algumas medidas visando a melhoria da distribuição de renda e, o que é mais importante, a tolerância à oposição (LINZ;STEPAN, 1999, p.21-22)

Trata-se, portanto, da concessão da “liberdade negativa” que promove a não

interferência do Estado sobre as questões individuais. A liberalização ocorre sem

diminuir necessariamente a força política do regime repressivo, mas gera mudanças

institucionais que possibilitam em um primeiro momento uma abertura superficial e

pontual. As lideranças políticas passam a negociar os processos de transição

podendo resultar na migração para o regime democrático, ou por vezes, acabar

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elevando o nível de repressão no caso do recuo das forças repressoras. A

liberalização é a “medida de intensidade da transição” (QUINALHA, 2013, p. 126),

podendo ocorrer em maior, ou menor, grau, visando aliviar a tensão política e a falta

de legitimidade do regime não-democrático.

Após a liberalização, segue o próximo processo que é o da democratização.

Este é “um momento mais avançado e expressivo do ponto de vista da garantia de

direitos e de liberdades públicas comparativamente à liberalização” (STEPAN, 1988,

p.13). Neste sentido há a substituição das regras e procedimentos encontrados nas

instituições públicas oriundas do regime autoritário, sendo observadas as regras e

procedimentos voltados a cidadania que devolvem o exercício destas garantias aos

cidadãos.

Por fim, somam-se também “temas e instituições que previamente não

estavam sujeitas a participação dos cidadãos” (O’DONNEL e SCHMITTER: 1988, p.

22). Portanto na democratização não basta que haja apenas uma atuação limitada

da oposição política como ocorre na fase da liberalização, é necessário haver

espaço para a contestação aberta em relação ao controle do governo através de

eleições livres. Deste modo a democratização esta relacionada a ações de

afirmação e transformação removendo os impedimentos à participação grupos antes

excluídos visando corrigir as desigualdades.

Um regime político pode ser liberalizado sem que haja de fato a

democratização. Isso porque a democratização não ocorre automaticamente com a

queda de um regime autoritário. Deste modo a interferência do militares na política

do governo pode gerar percalços para a consolidação democrática produzindo uma

série de consolidações democráticas incompletas, assim como ocorreu no Brasil.

3.1.1 Ondas democráticas

Conforme Huntington (1994) as ondas de democratização e ondas reversas

são manifestações de um fenômeno geral que ocorrem em determinados momentos

históricos de maneira mais ou menos simultânea em diferentes países e/ou sistemas

políticos. Para o autor três ondas de democratização ocorreram no mundo moderno.

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A primeira onda de ocorreu no período entre 1828 a 1926. Neste momento, o

sufrágio foi ampliado de maneira que nos Estados Unidos metade da população

adulta, do sexo masculino e de cor branca passou a contar com o direito ao voto. Na

Inglaterra o sufrágio já atingia a trinta por cento entre os maiores de vinte e um anos

na segunda metade dos anos 1980. Nos anos seguintes outros países ampliaram o

sufrágio, introduziram o voto secreto e aumentaram a responsabilidade dos

governantes em relação à sociedade. Podemos verificar que a democratização da

primeira onda transformou as “oligarquias competitivas em quase-poliarquias”

(DAHL, 2005, p. 33). A primeira onda reversa ocorreu entre 1922 e 1942 nos países

que haviam implantado a democracia logo após o fim da Primeira Guerra Mundial,

eclodindo uma série de países autoritários e totalitários. A ascensão de Mussolini na

Itália, de Hitler na Alemanha, de Stalin na União Soviética, os golpes militares na

Lituânia e Polônia, o Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil.

A segunda onda coincidiu com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra

Mundial (1945) e a consequente ascensão dos Estados Unidos e da União Soviética

como superpotências no qual deram inicio à Guerra Fria. Neste contexto promoveu o

retorno das instituições democráticas primeiramente na Alemanha Ocidental, Japão,

Àustria, Itália e Coreia, e ao final dos anos 1940, na Turquia, Grécia, Costa Rica,

Brasil9, Argentina, Perú, Colombia e Venezuela. O auge democrático ocorreu em

1962 com trinta e seis países governados democraticamente. Sua onda reversa

aconteceu entre 1958 e 1975 marcada pela ascensão dos regimes autoritários na

América Latina. Pelo contexto da Guerra Fria o combate ao comunismo ensejou a

instauração de ditaduras militares. O autoritarismo começou no Peru em 1962 e

chegou ao Brasil em 1964, seguido de outros países latino- americanos como

Argentina, Chile e Uruguai, ao todo foram trinta e oito países que possuíam

governos originados de Golpes de Estado.

A terceira onda de democratização instalou-se a partir da “revolução dos

cravos” (1974) ocorrida em Portugal ocasionando a queda do regime salazarista.

Logo se propagou para a América latina, Ásia e Europa gerando a queda dos

regimes autoritários que eclodiram na segunda reversa de democratização. A

9 O breve período de 1946 a 1964, que trouxe o alento das causas humanitárias reacendidas no segundo pós-guerra, esteve mais para uma “democradura” do que para uma democracia: o Partido Comunista foi novamente tornado ilegal, pessoas a ele filiadas ou que simpatizam com sua visão polí- tica eram presas e perseguidas e a tensão institucional a favor de uma ditadura ia se tornando cada vez maior. As instituições democráticas eram demasiado frágeis. (SILVA, 2010, p. 193)

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terceira onda – que perdura nos dias atuais – é o período onde mais temos a

prevalência de regimes democráticos, ou seja, um total de sessenta e cinco

democracias no mundo10. Estas novas democracias surgidas na terceira onda têm

enfrentado grandes problemas de transição no sentido de buscar resolver questões

complexas sobre o que fazer sobre os grupos políticos que apoiaram o regime

autoritário, como elaborar a reforma das instituições, a construção da memória e da

verdade, e a efetivação da justiça.

3.1.2 Transição por transformação, substituição e “transplacement”

A transição da democracia brasileira ocorreu na “terceira onda” de

democratização identificada por Huntington. O´Donnell e Schmitt (1988, p.108)

comparam o processo de transição democrático a um “jogo de xadrez de níveis

múltiplos” jogado por vários atores. Neste jogo são inventadas regras que podem ser

impostas tanto unilateralmente pelo ator dominante “devendo os demais jogadores

obedecer – por medo ou respeito – ou, ser elaboradas multilateralmente por acordos

implícitos ou pactos explícitos” (O’DONNELL; SCHMITT, 1988, p. 111).

Portanto o “jogo” transicional não decorre de um processo linear, e nem

garante por si só a finalidade da instauração democrática. Pode criar regras

meramente políticas que permitem mudança de regime, mas também garantem que

o regime autoritário saia do jogo sem sofrer arranhões. Para isso usam de

mecanismos jurídicos legítimos – porque ainda são de fato os detentores do poder –

para promover essa mudança.

Dentre todos os países da América Latina o Brasil foi o que mais teve

dificuldade na busca da consolidação democrática. Como vimos anteriormente, as

relações civis-militares influenciaram na escolha das regras do jogo brasileiro

10 Nos dados coletados por Huntington até o período de 1992: Haiti, Sudão, Suriname, Bulgária, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Mongólia, Namibia, Nicarágua, Panamá, Papua Nova Guiné, Romênia, Senegal, Nigéria, Bolívia, Brasil, Equador, Índia, Coréia do Sul, Paquistão, Peru, Filipinas, Turquia, Botswana, Costa Rica, Gambia, Israel, Jamaica, Malásia, Malta, Sri Lanka, Trinidad e Tobago, Venezuela, Alemanha Oriental, Polônia, Portugal, Espanha, Argentina, Checoslováquia, Grécia, Hungria, Uruguai, Chile, Austria, Bélgica, Colômbia, Dinamarca, França, Alemanha Ocidental, Itália, Japão, Holanda, Noruega, Australia, Canadá, Finlândia, Islândia, Nova Zelândia, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos da América. (HUNTINGTON, 1994).

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minando grande parte das possibilidades de transição. As condições restritivas

impostas pelos militares para deixar o poder afetaram tanto a origem do novo

governo quanto o seu desempenho (LINZ;STEPAN, 1999).

Huntington (1994) entende que a transição democrática pode ocorrer de três

maneiras a depender do equilíbrio relativo de poder entre a elite governante e a

oposição. E durante a consolidação democrática os países podem passar por

problemas na transição, problemas contextuais e problemas sistêmicos. Os

problemas na transição correspondem às regras que irão compor o processo que

institucionaliza o novo regime, como, o procedimento a ser seguido para as eleições

e as modificações que irão ser realizadas nas instituições autoritárias. Os problemas

contextuais estão relacionados a questões de cunho social no momento da

transição, como o anseio da oposição na instauração do processo democrático, as

pressões populares e a resistência daqueles que ainda defendem o regime

autoritário. Os problemas sistêmicos relacionam-se com a questão das lideranças na

transição. Por consolidação democrática seguimos a definição de Linz e Stepan:

Uma transição democrática está completa quando um grau suficiente de

acordo foi alcançado quanto aos procedimentos políticos visando obter um

governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto

do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de

gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e

Judiciário, criados pela nova democracia, não têm que, dejure, dividir o

poder com outros organismos (LINZ;STEPAN, 1999, p.21).

Para o autor as democracias consolidadas precisam necessariamente ter

estabelecido cinco campos de interação: 1. Condições para o desenvolvimento de

uma sociedade civil livre a ativa; 2. Uma sociedade política relativamente autônoma

e valorizada; 3. Um estado de direito que assegure as liberdades políticas; 4.

Burocracia estatal que possa ser usada pelo novo regime; 5. Sociedade econômica

institucionalizada.

Agora que sabemos a definição de transição e consolidação democrática

podemos seguir a análise das formas de transição e se houve uma consolidação

democrática.

A primeira forma de transição é a transformação (transformation) do regime

através de controle da liberalização pelo regime autoritário, ou seja, o processo de

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abertura democrática é iniciado pelo próprio regime não democrático e estritamente

controlado por este. A transformação que ocorre não está relacionada ao retorno da

legalidade ou com a ruptura com o regime autoritário, mas sim, com a alternância do

poder daquele que detêm para a oposição. Deste modo não significa que ambos não

irão partilhar do exercício do poder, pois a interferência no processo de transição

normalmente acarreta a continuidade do regime repressivo gerando um alto custo

para o regime democrático insurgente.

Nesta forma de transição, a qual é a mais partilhada entre regimes militares,

há um deslocamento gradual na substituição do sistema político, pois o regime

autoritário possui mais força política e institucional do que a oposição, que se

encontra enfraquecida pelo longo período de repressão imposto. Deste modo todas

as regras do processo transicional como tempo, prazo, etapas e condições, acabam

sendo determinadas pelo regime militar que possuem “poder suficiente para

controlar o ritmo da transição e extrair um alto preço por se retirar do poder”

(LINZ;STEPAN, 1999, p.205).

Oito estratégias são comumente utilizadas durante a transição por

transformação (HUNTINGTON, 1994): 1. A base política deve ser protegida

posicionando os apoiadores da democratização em posições estratégicas; 2.

Utilizando-se de procedimentos estabelecidos pelo regime não democrático deve-se

manter a estrutura de legitimidade e tranquilizar os grupos conservadores através de

concessões simbólicas. Nesse sentido deve agir com parcimônia, um passo a frente

e dois para trás; 3. Deve-se mudar gradualmente o seu próprio círculo eleitoral para

reduzir sua dependência de grupos governamentais que se opõem às mudanças; 4.

Esteja preparado para as ações extremas, como um golpe de Estado, devendo

ataca-los implacavelmente isolando e renegando os adversários mais extremos. 5.

As iniciativas e processos de democratização devem ser mantidos sob controle.

Deve-se agir a força não cedendo aos grupos de oposição; 6. Deve-se manter

baixas expectativas ao invés de incentivar um utopia democrática totalmente

elaborada; 7. Deve-se incentivar o desenvolvimento de um partido de oposição que

os setores chave aceitarão como um governo alternativo plausível; 8. Deve-se criar

uma sensação de inevitabilidade sobre o processo de democratização para que este

se torne amplamente aceito como um fator necessário e natural.

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O processo de transição brasileiro ocorreu via transformação. A liberalização

do regime autoritário iniciou no governo Geisel ante a inexistência do combate aos

movimentos de guerrilha que sustentavam o regime de exceção. Partindo do regime

autoritário a transição foi iniciada através um complexo processo de abertura política

controlada pelo governo propondo uma transição “lenta, gradual e segura”. Esta

liberalização foi vinculada a aprovação de uma Lei de Anistia que perdoou

indistintamente os crimes políticos e conexos a estes cometidos pelos opositores do

regime autoritário que lutaram pelo retorno da democracia e os militares. Com a

imposição dessa forma de transição o processo de alternância de poder perdurou

por anos.

A primeira vai de março de 1974 a março de 1985, e abrange os dois

últimos governos militares, as presidências dos generais Geisel (1974-1979)

e Figueiredo (1979-1985). A segunda etapa – a construção da democracia –

desenvolve-se durante o governo civil de José Sarney (1985-1990). Quanto

ao processo de consolidação do novo regime democrático, uma espécie de

segunda transição, ela inicia-se com a presidência de Fernando Collor de

Mello em março de 1990 (eleito por sufrágio universal e afastado do poder

por um processo de impeachment em dezembro de 1992), e encontra-se

ainda em andamento. (ASTURI, 2001, p.6).

A transição controlada pelo regime anterior gerou uma forte continuidade

dos mecanismos autoritários em nossa sociedade. Isso porque quanto maior o apoio

político detido pelo regime autoritário no inicio da transição, mais gradual e

controlado este se torna, dificultando a consolidação democrática (ASTURI, 2001).

Durante grande parte deste período a Constituição de 1967 – elaborada

para legalizar e institucionalizar o regime militar originado do Golpe de 1964 –

continuou em vigor. O movimento pela anistia “ampla, geral e irrestrita” movida pelos

setores populares foi amplamente controlado pelos setores militares. Como

mostrada nas oito estratégias elucidadas por Huntington, o Brasil elaborou a lei de

anistia justamente durante o período de decadência do regime autoritário para

assegurar que os militares que cometeram crimes em nome do regime ficassem

impunes. O fracasso do modelo político-econômico mergulhou o país em uma crise

que resultou em altas taxas de inflação e endividamento externo, fazendo com que

setores antes apoiadores da instauração do regime militar encontravam-se

insatisfeitos. Mudanças eram reivindicadas, como a campanha “Diretas já”,

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movendo multidões as ruas para promover as eleições diretas para presidente. Mas

a eleição para o Presidente da República em 1985 continuou sendo conduzida pelo

Colégio eleitoral através de eleições indiretas e somente em 1989 as eleições

diretas para presidente ocorreram.

Atualmente podemos notar a força política que os militares ainda exercem

sobre a atuação do governo. Tomamos por exemplo a aprovação em 2009 da

terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) que previu a

Criação Nacional da Verdade. Na 11° Conferência Nacional de Direitos Humanos,

realizado em dezembro de 2008, foi proposta a criação de uma Comissão Nacional

da Verdade e Justiça para apurar os crimes de lesa humanidade e violação de

direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar.

Esta questão gerou grande polêmica11 no seio político visto que os militares

entenderam que a criação de uma comissão desta forma animaria espíritos

revanchistas. A assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas

de demissões do ministro da Defesa e de Comandantes das Forças Armadas como

forma de pressionar o governo a suprimir a própria criação dessa comissão.

Rapidamente o governo retirou do texto o trecho que previa a apuração das

violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar, ficando restrita a

apenas a apuração dos fatos. Ainda, suprimiu o termo “Justiça” passando a ser

então uma “Comissão Nacional da Verdade”. Desde a aprovação do PNDH-3 ainda

as negociações para a criação da CNV se estenderam durante mais dois anos,

sendo aprovada apenas em 2011.

Além da forte influência dos setores militares, ainda podemos constatar os

resquícios do antigo regime repressor na democracia instaurada. A Constituição de

1988 apesar de trazer significativas mudanças não recebeu as devidas alterações

quanto às questões referentes às Forças Armadas, Polícia Militar e segurança

pública. A violência policial no país ainda continua alarmante com a prevalência de

práticas discriminatórias e repressivas. As escolas públicas ainda são de baixa

qualidade com métodos de ensino restritos e os currículos de educacionais estão

longe de ser democráticos. Há forte resistência na mudança de leis instauradas

11 Ver: Arruda, Roldão. Vannuchi e Jobim travam disputa de bastidor por Comissão da Verdade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15.nov.2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,vannuchi-e-jobim-travam-disputa-de-bastidor-por-comissao-da-verdade,466682>. Acesso:05.11.2017.

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durante o regime ditatorial que apesar de legitimamente criadas, não observaram um

fator essencial, a proteção dos direitos humanos.

Se formos analisar a definição de democracia consolidada elaborada por

Linz e Stepan o caso brasileiro é claramente uma situação de democracia não-

consolidada. Além do controle exercido pelo regime militar no processo de transição,

outras questões como a forte crise econômica rapidamente vieram a se tornar mais

importantes do que as questões propriamente políticas. Entre os anos 1991 e 1992 o

apoio ao regime democrático havia decrescido, gerando uma perigosa avaliação por

parte da população de que o desempenho do regime militar no passado foi melhor

do que o regime democrático no presente. E ainda, que este poderia ser uma

preferência para o futuro. (LINZ;STEPAN, 1999).

Diferentemente do modelo por transformação, segue o segundo modelo

apresentado por Huntington (1994) que é o modelo pautado na substituição

(replacement) ou “transição por ruptura”. Ocorre quando a proposta de mudança

parte dos opositores do regime não democrático, de tal maneira que acabam

promovendo o colapso, ou mesmo a derrubada pela força.

Neste tipo de transição há uma ruptura brusca com o regime anterior. Deste

modo pode ocasionar altos graus de conflito e violência. Culmina na

responsabilização dos máximos líderes da ditadura militar através da promoção de

julgamentos e expurgos. O exemplo é a o processo de transição ocorrido na

Argentina (HUNTINGTON, 1994). Esta transição contou com duas crises que

desestruturaram o regime autoritário. A primeira crise ocorreu com o fracasso

argentino na “Guerra das Malvinas” em 1982. E a segunda crise ocorreu com

colapso econômico e a insatisfação generalizada dos setores populares.

Mesmo após a derrota na Guerra das Malvinas o regime autoritário ainda

tentou manter a sociedade sob sua tutela, porém, “a população percebeu a

manipulação exercida pelos meios de comunicação, que abundavam detalhes sobre

a vitória da Argentina na guerra das Malvinas, em realidade inexistente” (SANTOS,

2016, p. 176). Em 1983, Raúl Ricardo Alfonsín foi eleito democraticamente e seu

governo foi pautado no esclarecimento dos fatos e punição das violações de direitos

humanos, estabelecimento de igualdade perante a lei e a formulação de um política

que gerou uma linha divisória em relação ao passado em busca de promover uma

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transição que se desvinculasse de todo o aparato do regime anterior e consolidasse

a democracia emergente.

Durante o governo de Alfonsín, importantes Tratados Internacionais foram

assinados como a Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional

de Direitos Civil e Políticos, Pacto Internacional de Direito Economicos, Sociais e

Culturais, e a Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos ou Degradantes (SANTOS, 2016). Em consonância com entendimento

internacional de direitos humanos sobre leis que promovem autoanistias a Argentina

revogou as duas leis que anistiavam os crimes cometidos na ditadura - “Lei do Ponto

Final” e a “Lei de Obediência Devida”, - possibilitando a continuidade da persecução

penal dos crimes cometidos pelos agentes de Estado. Este modelo de transição é o

que mais se aproxima aos mecanismos propostos pela Justiça de Transição no qual

iremos abordar no seguinte capítulo deste trabalho.

O terceiro modelo de transição, chamado “transplacement”, ocorre da

combinação das suas primeiras formas constituindo uma democracia negociada

entre o regime não democrático e a oposição para estabelecer a mudança de regime

(HUNTINGTON, 1994). Um exemplo é o modelo de transição do Uruguai.

O Uruguai teve um regime autoritário entre 1973 e 1985. No início foi

dominado de facto pelos militares, e a partir de 1976, governado de jure por militares

hierarquicamente comandados. Em 1985, “uma organização militar unida entregou o

poder a um presidente democraticamente eleito” (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187).

O processo de transição no Uruguai ocorreu entre os anos 1980 e 1984

tendo como marco inicial o plebiscito convocado pelos militares para aprovar o

projeto de reforma constitucional. Para a surpresa dos militares que contavam com a

aderência da população, o projeto foi rejeitado pela sociedade uruguaia

demonstrando ao regime militar que a abertura política não iria ocorrer sem que

houvesse a negociação com os partidos políticos. Entendia-se que o Uruguai não

precisava de uma Constituição de autoria dos militares. O poder de barganha dos

militares foi reduzido, pois, naquele momento não havia o perigo de uma ameaça

interna, como a guerrilha, porque esta já havia sido eliminada quando da posse dos

militares no poder. Ainda soma-se a falta de alianças com a sociedade civis e a

promessa de respeitar a decisão proferida no plebiscito (LINZ;STEPAN, 1999). Não

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restou outra opção as Forças Armadas senão uma retirada segura do poder a fim de

impedir os julgamentos dos agentes repressivos, da mesma maneira que estava

ocorrendo na Argentina.

Em 1984 foi firmado o “Pacto do Clube Naval” entre as Forças Armadas e os

dirigentes dos Partidos Políticos no qual foi realizado o acordo para a transferência

do poder aos civis. No mesmo ano eleições foram convocadas com livre participação

dos partidos (CABRAL, 2012), porém com restrições quanto aos candidatos que

poderiam concorrer ao cargo à presidência. Em 1989 foi realizada mais uma eleição

onde foi permitida a participação de todos os candidatos, havendo ampla

participação da população uruguaia (LINZ;STEPAN, 1999).

Para Linz e Stepan (1999) o Uruguai foi o único país a se tornar uma

democracia consolidada dentre todos que passaram por regimes autoritários na

América Latina. Isso porque em termos conceituais o caso uruguaio se encaixa no

esquema teórico sobre democracia consolidada.

De 1973 a 1985, teve um regime autoritário, sendo dominado de facto pelos militares e, a partir de 1976, governado de iure por militares hierarquicamente comandados, até que, em 1985, uma organização militar unida entregou o poder a um presidente democraticamente eleito (LINZ;STEPAN, 1999, p. 187).

Os demais países, principalmente o Brasil, ficaram estagnados no processo

de democratização estando longe de efetivá-la. Assim cabe apontar algumas

considerações quanto à concepção minimalista da democracia abordada até o

momento. As conceituações desenvolvidas neste primeiro capítulo privilegiam a

dimensão procedimental de democracia consistente em um processo de progressiva

ampliação de contestação, participação política, existência de uma livre competição

pacífica pelo poder e a garantia de liberdades civis fundamentais. Estas análises que

colocam em primeiro plano as estratégias seguidas pelas elites dirigentes ignorando

as demandas sociais trouxeram grandes consequências para a democracia

insurgente, como a continuidade de práticas autoritárias nos países latino-

americanos. A limitação em definir a consolidação democrática como um conjunto

de regras e procedimentos para alternância de poder, não considerou outras

questões importantes como os “processos de transformação social, com os anelos

de emancipação e justiça substantiva e com as vivencias quotidianas das grandes

maiorias populares” (VITULLO, 2005, p.26).

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Para Vitullo (2006) é essencial o resgate das dimensões não contempladas

nos trabalhos até então elaborados sobre a transição e consolidação democrática

para entender melhor o processo de crise estrutural que sofrem as instituições

democráticas. Quinalha aponta três problemas principais quanto à teoria da

transição e consolidação elaboradas sem a inclusão das demandas sociais,

O primeiro é a ideia de que a democratização deve, necessariamente, decorrer de uma conexão entre o autoritarismo e a democracia, como se a ausência do primeiro levasse de modo mais ou menos natural à segunda. Outro aspecto criticado é o fato dessa tradição desvincular o autoritarismo dos problemas de constituição do Estado moderno, ou seja, desconsiderar a relação estreita entre formas modernas de racionalidade política e formas contemporâneas de autoritarismo. Por fim, uma última crítica é a de que as relações entre Estado e sociedade não devem ser concebidas apenas enquanto continuidade, como faz crer essa literatura. Isso faz perder de vista as ações sociais de caráter coletivo e solidário, que têm impacto no sistema político (QUINALHA, 2013, p.138-139).

A democracia não pode ser vista como uma alternativa civilizada frente às

violações de direitos humanos que ocorreram durantes os regimes militares

(VITULLO, 2005). Se não considerarmos os outros elementos na conceituação de

democracia, como por exemplo, a necessidade de se realizar uma transição que

observa não apenas as questões políticas, mas também as questões de justiça para

as vítimas, dificilmente poderemos refletir sobre o tipo de democracia que vêm

sendo construído em nossa sociedade.

Deste modo, seguindo esta ideia de que o processo democrático deve se

atentar também a outros fatores como a justiça, iremos abordar no próximo capítulo

outro campo que emergiu sobre transições democráticas. Este novo campo

chamado Justiça de Transição possibilita o confronto com o passado como meio

para gerar uma maior transformação política, atentando aos anseios por justiça que

emergem durante os períodos de transição de um regime não democrático para um

regime democrático.

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PARTE II – A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO LATO SENSU

1 A CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO

As experiências totalitárias da Segunda Guerra Mundial e os regimes

autoritários que eclodiram na América Latina, Ásia, África e Europa nos deixaram

importantes lições. Se antes a democracia como forma de governo foi considerada a

“pior das boas e melhor das más” (BOBBIO, 2003, p. 142), contemporaneamente

estamos convencidos de que a paz só pode ser perseguida com a democratização,

e que esta deve observar a proteção dos direitos humanos.

Como pudemos ver no capítulo anterior, os estudos sobre as transições e

consolidações democráticas refletiram sua atenção na análise dos procedimentos

políticos adequados para facilitar o processo de mudança dos regimes autoritários

para a democracia. Nestes estudos os fatores substanciais, como o anseio das

vítimas por justiça, foram excluídos devido ao contexto em que a abertura política foi

proposta. Neste momento o que se evitava era por em cheque a efetiva

reconciliação por meio de um acordo político entre o regime autoritário e a oposição.

Esse cenário de incertezas quanto à transição e consolidação democrática

decorreu do forte controle que os regimes militares ainda possuíam no momento da

abertura política, no qual impuseram a transição para a democracia de forma “lenta,

gradual e segura”. Em meio aos cálculos das elites políticas a dimensão moral dos reclamos por justiça das vítimas foi relativizada sendo mais

importante conseguir efetivar a transição e consolidação democrática do que abrir

questões que fizessem com que o regime militar recuasse na sua decisão de

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abertura política. A presença da cautela e da prudência se justificava pelo medo de

que, caso a transição não ocorresse, um pior cenário de regressão autoritária

poderia surgir. (QUINALHA, 2013).

Diante dessa lacuna deixada por esses conceitos surge um novo campo de

estudos denominado de Justiça de Transição. Nesta nova forma de análise o papel

da justiça em tempos de transição é considerado tão importante quanto o

procedimento para a transição em si, ilustrando a “impossibilidade de retomar a

convivência democrática do momento em que ela foi interrompida, sem que haja um

olhar especialmente voltado aos elementos do passado que persistem no presente”

(QUINALHA, 2013, p. 83). Neste sentido, a Justiça de Transição é uma reação

crítica que busca verificar se as regras, princípios e práticas respondem às

expectativas e às necessidades das populações que antes haviam sido objeto de

terrorismo do Estado (COELHO, 2014).

Seguindo esta linha, entende-se que não basta a derrubada de uma ditadura,

a instalação de uma Assembleia Constituinte para a elaboração de uma nova

Constituição, nem o retorno dos exilados para que possamos afirmar que houve a

promoção de uma reconciliação nacional. Os mecanismos transicionais baseados na

cultura do silencio e do esquecimento através da imposição de autoanistias não

condiz com a construção de um Estado Democrático de Direito. A transição

democrática não pode ser pautada em um discurso consensual. Para que seja

efetivamente democrática, esta deve observar os anseios da sociedade, que deve

poder participar desse processo.

Com a abertura política na América Latina entre os anos 1980 e 1990 uma

série de conferências12 foram organizadas para discutir as dinâmicas da transição

para a democracia e as experiências vivenciadas no Cone Sul. Ativistas e

acadêmicos foram convocados para discutir como os governos sucessores deveriam

lidar com os crimes dos regimes antecessores, objetivando analisar as implicações

morais, políticas e jurídicas dos “recentes julgamentos, comissões de inquérito,

expurgos e outras medidas que buscaram responsabilizar antigos regimes pelo

12 Na conferência realizada pelo Aspen Institute em 1988, denominada “Crimes de Estado: Punição ou Perdão”, na conferência “Justiça em Tempos de Transição”, realizada pela Chapter 77 Foundation em Salzburg, na Áustria, em 1992, e na conferência “Lidando com o Passado”, realizada em 1994 pelo Institute for Democracy in South África (IDASA), na África do Sul, ativistas de direitos humanos, atores políticos e observadores de vários lugares do mundo foram convocados com o objetivo de comparar experiências e discutir opções. (ARTHUR, 2011, p. 77).

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sistemático abuso aos direitos humanos, bem como promover a transição para a

democracia” (ARTHUR, 2011, p.74).

Esta construção metodológica relacionada à necessidade de respostas a

problemas concretos nós podemos encontrar a partir da proposta de Ruti Teitel, Niel

Kritz, e outros autores (ARTHUR, 2011). A justiça de transição indica uma atividade

focada na superação de legados de abusos dos direitos humanos, atrocidades em

massa ou outras formas de trauma social severo, incluindo genocídio ou guerra civil,

a fim de construir um processo mais democrático, justo e um futuro pacífico

(BICKFORD, 2004). Desta forma desenvolve medidas a serem apreendidas no

processo transicional como o resgate a memória e a verdade, efetivação da justiça,

reparação das vítimas e reforma das instituições repressoras.

O estudo da Justiça de Transição é fundamental compreender os processos,

mecanismos, formas de transição e consolidação democrática em países que

passaram por momentos autoritários, como o Brasil. Isto porque a justiça não se

instaura necessariamente com a transição política. É necessário atentar meios para

que a esta ocorra. Portanto este capítulo se concentrará no desenvolvimento teórico

e a aplicação desses mecanismos de transição, e em especial, abordará como a

justiça de transição ocorreu no caso brasileiro.

Conforme os estudos de Jon Elster (2004) as transições de sistemas políticos

bem como a escolha de medidas que modificam o pensamento político hegemônico

não são novidades da contemporaneidade. Em seu livro Closing the books:

transitional justice in historial perspective apresentou algumas de transições de

regimes ocorridas no passado, como por exemplo, a restauração democrática em

Atenas (411 a.C), e mecanismos que poderiam caracterizar uma Justiça de

Transição. Porém, tais processos transicionais não se relacionam com o conceito de

justiça de transição no qual iremos trabalhar. Posto que, estamos nos referindo a

uma série de mecanismos legais para o enfrentamento da herança autoritária cujo

significado remete às experiências vividas no século XX.

Luiz Fernando Coelho traça alguns contornos sobre o tema:

No estudo dos direitos humanos, especialmente quanto ao problema da eficácia da legislação que os declara e os garante, uma situação particularmente relevante se apresenta: como lhe dar com a necessidade de preservá-los na plenitude de seus princípios quando um governo autoritário, em face da iminente restauração do Estado de Direito e consequente

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substituição por um governo democrático, trata de impedir a investigação, processamento e punição dos delitos contra os direitos humanos praticados na vigência do regime opressor. Este e outros problemas resultantes da passagem de um sistema autocrático para uma ordem democrática exigem soluções jurídicas que repercutem no contexto ético, político e social do novo regime. É um conjunto interdisciplinar que vem sendo caracterizado como justiça de transição. (COELHO, 2014, p.233)

Deste modo a justiça de transição moderna, tal qual conhecemos, possui o

recorte histórico partir do final da Segunda Guerra Mundial com a instituição do

Tribunal de Nuremberg para julgar o alto escalão nazista pelos crimes de guerra e

crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). Isso porque só recentemente as

medidas que chamamos de justiça de transição foram justificadas por meio de

apelações às normas universais, como os direitos humanos.

Conforme o relatório S/2004/616, resultado das reuniões do Conselho de

Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) realizadas em 2003, a noção

de Justiça de Transição

Compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos. (ANNAN, 2009, p.325).

Portanto a justiça de transição moderna discute sobre os “processos judiciais,

resgate da verdade, transformação dos aparatos de segurança de um estado

abusivo e a reabilitação ou compensação de danos” (ARTHUR, 2014, p.115).

A Justiça de Transição é, portanto, um modelo de justiça que pretende a

reconciliação nacional com o seu passado, manifestando-se por meio de medidas

como, a construção da memória e da verdade, a devida responsabilização dos

responsáveis pelas violações de direitos humanos e a reforma das instituições

perpetradoras e coniventes com estes atos, com vistas a impedir que novas

violações sistemáticas de direitos humanos possam ressurgir.

Em um parâmetro geral sobre a Justiça de Transição a autora Ruti Teitel

(2011) elaborou uma genealogia da justiça transicional nos ofertando um importante

estudo estruturando-a em fases como veremos a seguir.

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1.1 A GENEALOGIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

Ruti Teitel (2011, p. 136) visando traçar a busca histórica pela justiça em

tempos de mudança política propôs a elaboração de uma genealogia para

demonstrar através do tempo a relação entre a “justiça que se almeja e as restrições

políticas relevantes”. Deste modo analisando o desenvolvimento dos acontecimentos

políticos ocorridos, a partir da segunda metade do século XX, estruturou a

genealogia em três fases distintas: 1° fase: pós-Segunda Guerra Mundial; 2° fase:

pós-Guerra Fria; 3° fase: Contemporaneidade.

O estudo proposto apresenta uma abordagem indutiva, construtivista e

contextualizada que define a Justiça de Transição como “a concepção de justiça

associada a períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito

jurídico, que tem o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes

opressores do passado” (TEITEL, 2011, p. 135).

Trata-se, portanto, na implicação em processar os perpetradores das

violações de direitos humanos, revelar a verdade histórica sobre os fatos ocorridos,

fornecer às vítimas a devida reparação (financeira e simbólica) e promover uma

verdadeira reconciliação nacional sob a perspectiva das vítimas.

1.1.1 Primeira fase: justiça Pós-guerra (1945)

A primeira fase da genealogia da justiça de transição está associada ao

modelo de justiça conduzido pelos Aliados logo após o término da Segunda Guerra

Mundial. Através do Acordo de Londres (1945) foi determinada a formação de um

Tribunal Militar Internacional – conhecido por Tribunal de Nuremberg - para julgar os

responsáveis pelos crimes cometidos durante a guerra.

Neste sentido três acusações foram tipificadas: 1. Crimes contra a Paz, sendo

a participação direta ou indireta, na preparação e execução de guerras violando

tratados, acordos e garantias internacionais; 2. Crimes de Guerra, no qual há a

violação aos costumes e leis de guerra; 3. Crimes contra a Humanidade, no qual

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englobam o assassinato, extermínio, escravidão, deportação e outros atos

desumanos cometidos contra a população civil, bem como, perseguições civis,

raciais e religiosas.

Cabe observar que os Crimes contra a Humanidade foram aplicados pela

primeira vez nos julgamentos ocorridos no Tribunal de Nuremberg, dado que a

compreensão tradicional carecia de respostas à nova forma de dominação que

eclodiu na Europa: o Totalitarismo. Assim, os Crimes contra a Humanidade

representaram uma inovação ao Direito Internacional estabelecendo um novo

sistema constituído pelo Direito Humanitário.

Sem dúvida o Tribunal de Nuremberg constituiu o maior símbolo da primeira

fase da justiça transicional. Neste momento o objetivo central da justiça era delinear

os parâmetros a ser seguidos para punir a Alemanha e se tais as medidas deveriam

ser deixadas a cargo dos agentes nacionais, ou se deveriam ser realizadas pelos

agentes internacionais (TEITEL, 2011). A justiça de transição da primeira fase

ganhou um forte caráter internacional e punitivo deslocando a competência para

julgar a Alemanha nas mãos dos Aliados.

Isso porque neste momento havia grande hesitação na capacidade da

jurisdição nacional, pautada no positivismo jurídico, em estar processando e

julgando o regime nazista. Esta dúvida parte da experiência vivida pós-Primeira

Guerra Mundial onde Tribunais nacionais falidos não conseguiram “evitar a futura

matança ocorrida na Segunda Guerra Mundial” (TEITEL, 2011, p. 140). Nesse

sentido o Direito Penal Internacional foi usado para atingir diretamente os indivíduos,

permitindo responsabilizar os mais altos escalões do Reich pelos crimes cometidos.

Verifica-se, portanto, que estas condições foram consideradas uma garantia para se

efetivar o Estado de Direito através da reforma das instituições e responsabilização.

Desta primeira fase da justiça transicional a autora tece algumas

considerações:

a) O Tribunal de Nuremberg criou um precedente histórico do poder cogente do

direito internacional no qual influenciou na formação da estrutura central do

Direito Humanitário contemporâneo;

b) Apesar de o objetivo ser a responsabilização pelos crimes cometidos na

guerra, a inovação trazida nesta fase está no uso do Direito Penal

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Internacional e o seu alcance. Os julgamentos de Nuremberg permitiram

atingir o individuo;

c) A primeira fase foi marcada pelo internacionalismo e a criação de Tribunais

ad hoc. O importante abandono das respostas transicionais nacionalistas

prévias e a proximidade de uma política de internacionalismo foram

considerados uma garantia de Estado de Direito;

d) A aplicação da justiça internacional acarretou irregularidades que tencionaram

o Estado de Direito, especialmente dado seu objetivo liberalizador;

e) O Tribunal de Nuremberg criou precedentes importantes, porém limitados,

visto que foi possível somente no contexto da superação de uma nova forma

de dominação: o Totalitarismo. Desde modo foi um modelo sui generis.

Deste modo o desenvolvimento deste modelo elaborado na primeira fase da

Justiça de Transição se exauriu logo após os julgamentos de Nuremberg. O legado

deixado pelo julgamento da Segunda Guerra13 possibilitou a incorporação de

convenções internacionais como a Convenção contra o Genocídio (1948) no qual se

consolidou o que o genocídio é um crime contra o Direito Internacional, contrario ao

espírito e aos fins das Nações Unidas e do mundo civilizado.

1.1.2 Segunda fase: justiça Pós-guerra Fria

As transições da segunda fase da transição situadas entre 1970 e 1989,

apresentaram como pano de fundo uma ordem mundial em plena mutação. O seu

início se deu no término da Guerra Fria com o declínio da União Soviética e a

emergência de um mundo multipolar que provocou a onda de liberalização na

América do Sul, estendendo-se para a Europa do Leste e América Central. Sendo

um período de acelerada democratização e fragmentação política (TEITEL, 2011).

Diferentemente da primeira fase onde a transição ocorreu com a intervenção

de atores internacionais, na segunda fase os processos transicionais foram iniciados

13 Até o precedente dos Julgamentos do Tribunal de Nuremberg não havia possibilidade no direito internacional de punir assassinatos em massa ordenados pelo Estado. Uma falha que havia se evidenciou neste julgamento quando dez dos vinte e dois nazistas acusados de graves crimes de guerra foram libertados ou receberam penas leves.

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e executados pelos próprios regimes autoritários. Segundo Teitel (2011, p.144) “não

havia clareza se o ajuizamento de ações contra os responsáveis no estilo

Nuremberg seria seguido com êxito” devido ao contexto em que essas transições

ocorriam. Apesar dos regimes autoritários estarem enfraquecidos devido as

sucessivas crises econômicas e sociais que foram surgindo durante os anos 1980

estes ainda possuíam o controle político do Estado. Esses processos de transição

política controlados pelo Estado resultaram na produção de uma série de Leis de

Anistia no qual o regime perdoou a si próprio, ou seja, leis que promoveram a

autoanistia.

Assim como a primeira fase da justiça transicional esta segunda fase também

não poderia ser transportada para outros “contextos de soberanias radicalmente

diferentes” (TEITEL, 2011, p. 145).

Essa segunda fase foi marcada pelas seguintes características:

a) Em alguns países as transições políticas controladas pelos Estados

autoritários ocorreram na esfera nacional, onde comumente Leis de Anistia

foram elaboradas assegurando a impunidade dos agentes de Estado que

cometeram crimes contra os direitos humanos. Os conceitos de perdão e

reconciliação foram comumente utilizados como recursos necessários para a

transição.

b) O interesse das vítimas na invalidade das leis de anistia geraram dilemas que

incluíam “a retroatividade da lei, alteração e manipulação indevidas de leis

existentes e um alto grau de seletividade na submissão de processos e um

poder judicial sem suficiente autonomia” (TEITEL, 2011, p.146).

c) A tensão entre punição e anistia se complicou com a admissão e

reconhecimento dos dilemas inerentes aos períodos de mudanças políticas;

d) A justiça neste período se vinculou a uma concepção de justiça imparcial e

imperfeita, gerando a questão: o que é justo e equitativo em circunstancias

políticas extraordinárias?

e) A viabilidade de buscar a justiça através da esfera internacional, como as

condenações contra os crimes de lesa humidade julgados pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos (IDH), dependeu de critérios como: a

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escala dos crimes cometidos, da sua sistematização e do efetivo patrocínio

do Estado repressor.

f) O entendimento sobre justiça nas transições é mais bem compreendido

quando analisamos o contexto político da transição considerando as

contingencias políticas, jurídicas e sociais.

g) Como meio alternativo a impossibilidade julgamentos penais outros

mecanismos foram buscados como: reparação e o estabelecimento das

Comissões da Verdade.

Observa, portanto, que no contexto da segunda fase surgiu um modelo

alternativo que buscou na restauração uma forma de se buscar a justiça, por meio

da construção da verdade histórica dos acontecimentos ocorridos durantes os

regimes repressores. Nesse sentido busca-se oferecer uma perspectiva histórica

ampla, refutando versões oficiais sobre as mortes, perseguições, prisões arbitrárias,

torturas, estupros e demais crimes contra os direitos humanos praticados pelos

agentes de Estado. O direito à “verdade e a memória” passou a ser o direito de toda

a sociedade saber sobre o que realmente aconteceu neste período sombrio da

história através de audiências públicas, publicações de relatórios, livros, filmes,

criação de museus, e demais mecanismos que gerassem ampla publicidade de

modo a evitar, através da conscientização, a repetição desses acontecimentos em

gerações futuras.

1.1.3 Terceira fase: a justiça “estável”

A terceira fase da justiça transicional corresponde a contemporaneidade no

qual a autora afirma ser a “justiça transicional em todo momento” (TEITEL, 2011, p.

164). A justiça transicional estável está relacionada a expansão e normalização

deste ramo para aplicação de seus mecanismos não apenas em condições

extraordinárias, mas sim, em tempos normais (guerras em tempo de paz, Estados

frágeis e conflitos constantes).

A Justiça de Transição torna-se jurisprudência a ser seguida pelos Estados,

em consonância aos valores que atualmente entendemos indispensáveis: Estado de

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Direitos, Democracia, Paz e Direitos Humanos. O símbolo da normalização da

jurisprudência da transição nós encontramos com a consolidação do Tribunal Penal

Internacional (TPI) estabelecido pelo Estatuto de Roma em 1998. Este Tribunal

simboliza a consolidação do modelo de Nuremberg: a criação de um Tribunal

internacional permanente para julgar os autores de crimes de guerra, genocídio e

crimes contra a humanidade (TEITEL, 2011). O Tribunal Penal Internacional iniciou

as suas atividades em 2002, e sua competência é para julgar indivíduos (exame de

litígios entre Estados é julgado pela Corte Internacional de Justiça). Conta com a

participação de cento e vinte e dois Estados-parte: 34 africanos, 27 latino-

americanos e caribenhos, 25 países ocidentais e outros,18 da Europa do Leste e 18

da Ásia e Pacífico.

O Direito Internacional Humanitário incorpora a relação entre o indivíduo e o

Estado como modelo jurídico (TEITEL, 2011) possibilitando julgar indivíduos

responsáveis pelos atos de guerra, genocídio e crimes de lesa humanidade.

Também permite identificar as falhas na ação do Estado e pressionar que este

respeite os direitos humanos.

Apesar dos avanços para o Direito Humanitário e o seu fortalecimento perante

a comunidade internacional, devemos nos atentar ao poder que esse mecanismo

possui. O uso dos discursos de proteção aos direitos humanos somados a um

contexto de existência de uma “aparente guerra permanente” (TEITEL, 2011, p. 167)

pode ressuscitar a opressão ao invés de trazer proteção. Os direitos humanos

direcionados a apenas alguns, não como direito de todos, como no caso do combate

ao terrorismo, cria novamente um terreno sombrio onde tudo é justificável em nome

de um ideal. Isso aconteceu na Segunda Guerra, aconteceu nas ditaduras militares,

e pode tornar a acontecer na contemporaneidade. Deste modo devemos nos atentar

com o uso inadequado desses mecanismos.

Evidenciado o conceito de Justiça de Transição e as suas respectivas fases

conforme a genealogia proposta por Teitel (2011) cabe dar seguimento a nossa

abordagem pronunciando-se a respeito dos pilares que a constituem. Os pilares da

Justiça de transição visam a recomposição do Estado e da sociedade trazendo

parâmetros mínimos que devem ser observados no processo de restauração social.

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A elaboração desses pilares é resultado da agenda ativa da Justiça de

Transição na busca de mecanismos para lidar com o passado repressivo, podendo

ser pautados em modelos judiciais e não judiciais como veremos à seguir.

1.2 PILARES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

A Justiça de Transição é formada por mecanismos de enfrentamento dos

fatos passados objetivando a superação das massivas violações de direitos

humanos para que estas não se repitam no futuro. Para que isto ocorra é de suma

importância o estabelecimento de parâmetros para que as novas gerações possam,

primeiramente, conhecer sobre o seu passado e, através desta, reformular sua

concepção sobre a história. Neste sentido, podemos constatar a intrínseca relação

entre o passado, o presente e futuro. Isto porque só as pessoas que têm direito a

reconhecer plenamente seu passado podem ser verdadeiramente livres para decidir

seu futuro.

Deste modo, este tipo de justiça engloba alguns pilares ou dimensões que

refletem as obrigações do Estado no qual ainda encontram-se calçadas em quatro

dimensões indispensáveis: i. fornecimento da verdade e construção da memória; ii.

Reparação; iii. Reforma das instituições perpetradoras de violações contra os

direitos humanos; iv. Regularização da justiça e restabelecimento da igualdade

perante a lei. (TORELLY, 2011, p. 215).

Deste já ressaltamos que esta não se trata de uma lista fechada de

mecanismos, mas sim, o passo inicial para a consolidação de uma política

direcionada a atenção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dado que, este

campo possui grande versatilidade no que condiz aos caminhos que cada país

escolhe para a superação do seu passado.

a) Direito à verdade e a memória

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Diante das ditaduras que ocorreram na América Latina surge o apelo a um

Direito à memória e à verdade em relação a todos os fatos ocorridos neste período.

Esta expressão “vem preenchendo as pautas de reivindicação política e encontrando

eco na promoção de mecanismos transicionais e na implementação de políticas de

memória relacionadas aos eventos traumáticos vivenciados coletivamente” (SILVA,

2010, p.213).

A verdade que nos apoiamos está relacionada ao interesse de buscar a

verdade que está na própria realidade, que depende da plena manifestação dos

fatos e dos acontecimentos, no qual é possível através do acesso à informação e

disponibilização dos arquivos no período da ditadura. Deste modo o direito à

verdade seria o direito ao desvelamento14 – o ente em seu descobrimento – sendo o

direito de “tirar o véu” no processo da justiça de transição de todo discurso falacioso

que se construiu durante a ditadura, primeiramente para constituí-la e depois para

mantê-la como regime de Estado (SANTOS, 2016). Este pensamento está pautado

no que é prevalecente no direito internacional em meio a reflexões sobre como lidar

com práticas de um período de violência política extraordinária, praticadas por

agentes de Estado. Nas palavras de Torelly (2010):

Neste contexto de alta complexidade, a simples alteração formal de leis não é suficiente para garantir a consolidação de uma democracia substancial limitada exclusivamente pelas garantias fundamentais originadas dos direitos humanos. É necessária a promoção de uma nova cultura política, que seja capaz de transformar o espólio autoritário e o legado de violações individuais em aprendizado para a democracia, valendo-se tanto da memória consciente (aquela que o agente ou grupo sabe possuir, ou seja, lembra-se), quanto da memória não-consciente (aquela que se acumula de forma arcaica na experiência de vida do indivíduo ou grupo), fomentando um senso comum democrático que oriente o agir. É assim que surge a necessidade de afirmação e avivamento de memórias sociais que somem as vivências individuais de violações passadas ao processo reflexivo de superação do legado autoritário e consolidação do Estado Democrático de Direito, fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogar com o autoritarismo, promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que, por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia desde um ponto de vista prático (e não estritamente jurídico) e possibilitando que os elementos não conscientes de memória não sejam vinculados com a violência do passado. (Torelly, 2010, p.104).

14 SANTOS (2016, p.60) aborda o direito à verdade a partir do pensamento de Martin Heidegger utilizando a concepção de verdade como desvelamento. Nesse sentido “a verdade somente pode ser o que é no elemento da clareira, pois somente com a abertura será possível o desvelamento ou desencobrimento do ente”. Isso porque Heidegger estuda a verdade a partir da etimologia grega alétheia no qual significa que algo não pode ser oculto, escondido ou dissimulado. O desvelamento do ente é “tirar o véu” do ente por meio da clareira ou abertura do seu comportamento.

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O direito à verdade e a memória é o direito relacionado à atenção as vítimas.

É o direito que estas possuem de saber o que realmente aconteceu neste período

sombrio da história, onde pessoas desapareciam e tudo o que restava eram

certidões de óbito forjadas. Homícidios cometidos pelos agentes de Estado eram

constantemente alterados nos relatórios das instituições para suicídio. Isso quando

era possível saber o que foi que aconteceu com os perseguidos políticos. Em muitos

casos nem mesmo uma resposta se tinha a respeito. A criação do direito à verdade

se relaciona com a percepção de que essas graves violações de direitos humanos,

muitas das quais ocorreram em um período de violência extraordinária, requerem

mecanismos específicos de tratamento. Silva afirma que no caso brasileiro,

As violências cometidas pelo regime militar não ganharam a dimensão pública e transparente que seriam necessárias para a concretização desse direito. As investigações para apurar os fatos ocorridos foram continuamente abortadas sob o efeito multiplicador da anistia política praticada no Brasil a partir de 1979. [...] Ela revelou-se, igualmente, uma auto-anistia, pois serviu de pretexto para que não se realizasse nenhum tipo de investigação e apuração das responsabilidades dos agentes do regime ditatorial por seus atos ilegais e aviltantes (SILVA, 2010, p.214).

Busca-se desta maneira uma verdade que traga à tona todos os fatos

ocorridos neste período. Conforme entendimento da Organização das Nações

Unidas (ONU): “todo povo tem o direito inalienável de saber a verdade sobre

acontecimentos passados, relacionados à perpetração de crimes aberrantes e sobre

as circunstâncias e motivos que levaram, por meio de violações massivas ou

sistemáticas, à perpetração desses crimes” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

UNIDAS, 2005, principle 2). Deste modo o reconhecimento da memória e da

verdade é um direito fundamental de todo ser humano,

[O] conhecimento, por um povo, da história de sua opressão, o que constitui parte de seu patrimônio e, por isso, deve ser conservado, adotando medidas adequadas em favor do dever de recordar incumbido ao Estado, para preservar os arquivos e outras provas relativas às violações dos direitos humanos e do direito humanitário, e para facilitar o entendimento/conhecimento de tais violações. Essas medidas devem ser encaminhadas no sentido de preservar a memória coletiva contra o esquecimento e, em particular, evitar que surjam teses revisionistas e negacionistas. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005, principle 3).

A memória também está intrinsicamente ligada à ideia de verdade. Neste

sentido, criar uma memória é lidar com tanto com a verdade quanto com o

esquecimento imposto no propósito de reconciliação da transição brasileira. Busca a

superação da anistia como “amnésia” abrindo espaço para refutar os fatos e

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reescrever a história. A memória e o esquecimento, operando dialeticamente,

possibilitam o estabelecimento de confluências e dissidências narrativas que,

ademais de permitirem a constituição de uma “versão histórica” sobre determinados

acontecimentos que influenciam fortemente percepções individuais e sociais de

mundo significando que “lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica,

portanto, em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro”

(TORELLY, 2010, p. 107), uma vez que o que lembramos do passado é fundamental

para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos

no tempo.

O direito à verdade tem ultrapassado os limites dos desaparecimentos

forçados e evoluído em direção a outras graves violações de direitos humanos.

Conforme afirma a Comissão Nacional da Verdade (2014) desde a Conferência

Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, tem-se atrelado o tema

das graves violações de direitos humanos ao aspecto do combate à impunidade. Os

Principios Joinet, aprovados em 1997, remetem ao direito de saber, de natureza

tanto individual como coletiva, relacionado ao dever do Estado de recordar, com a

finalidade de prevenir o revisionismo ou o negacionismo, na medida em que se

considera que a história de opressão de um povo pertence ao seu patrimônio e

assim deve ser preservada.

Santos (2016, p.71) conceitua a memória como “o direito fundamental de

acesso, utilização, conservação e transmissão do passado e dos bens materiais e

imateriais que compõem o patrimônio cultural de determinada coletividade”. O direito

à memória relativa às graves violações dos direitos humanos cometidos pelos

agentes do Estado pode ser ocorrer através da implementação de políticas públicas

que fomentem a investigação história dos fatos ocorridos, garantam o amplo acesso

aos documentos oficiais, criem museus ou espaços públicos dedicados às vítimas,

formulem pedidos oficiais de desculpas às vítimas e à sociedade como um todo,

promovam debates a respeito dos atos de violência e de mecanismos para que

possamos evitar a repetição de atos contra os direitos humanos (SOARES, 2011).

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No Brasil podemos dizer que o pilar da memória e da verdade15 começou a

ser construído a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação da

Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos políticos através da Lei 9.140/1995.

Ainda cabem mencionar a criação da Comissão da Anistia (L.10.559/2002) e da

Comissão da Verdade (12.528/2011), mecanismos importantes que possibilitaram

um conjunto de ações para que a atenção às vítimas finalmente pudesse ser

implementada. Sobre esses mecanismos nós iremos abordar mais adiante neste

trabalho especificando como cada um nos ajuda a estar cada vez mais próximos ao

tipo de sociedade que queremos alcançar. Aquela em que os indivíduos possuem

direitos fundamentais inerentes à sua condição humana que devem ser veemente

protegidas para que atos de violações sistemáticas não se repitam manchando mais

uma página da história da humanidade.

b) Direito à reparação

O direito à reparação das vítimas tem por objetivo reparar devidamente os

danos causados. Estas reparações podem ser tanto materiais como: indenizações,

aposentadorias, medidas de reabilitação e reintegração ao serviço público,

restituição de direitos políticos. Quanto simbólicos: pedidos oficiais de desculpa,

divulgação da verdade dos fatos, registro oficial de mortos e desaparecidos

(SANTOS, 2016).

No caso brasileiro o direito à reparação teve início com a aprovação da Lei de

Anistia de 1979 (L.6.683/1979) grande marco do inicio da transição política para a

democracia. Através desta lei as vítimas tiveram seus direitos políticos restaurados,

puderam reintegrar ao trabalho nos quais estavam afastados, e através da

concessão do perdão puderam retornar ao Brasil. Com a Emenda Constitucional

26/1985, no qual convocou a Assembleia Nacional Constituinte, foi acrescentada a

15 “Na dimensão do fornecimento da verdade e construção da memória também produziram- se avanços. Além do livro Direito à Memória e à Verdade, os dois principais projetos de memória são o projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos, que inclui uma exposição fotográfica itinerante e a publicação de uma série de livros temáticos sobre a ditadura no Brasil, e o Projeto Marcas da Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que inclui audiências públicas; financiamento a projetos e ações culturais propostos e executados pela sociedade civil organizada; a publicação de obras sobre memória, anistia e justiça de transição; e iniciativas de preservação da memórias oral sobre o período” (TORELLY, 2011, p. 224).

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previsão de restituição dos direitos políticos aos dirigentes e representantes de

organizações sindicais ou estudantis. Na Constituição de 1988 a reparação passou a

fazer parte das garantias constitucionais16 (TORELLY, 2011).

A partir de então vieram outras várias iniciativas de reparação: Comissão

Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), Comissão da Anistia (2002),

projeto Direito à Memória e à Verdade (2007), projeto Marcas da Memória I (2010), II

(2011), III (2012) e IV (2013), Caravanas da Anistia (2012), projeto Memórias

Reveladas no qual possui um vasto banco de dados para pesquisa pública, criação

da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Lei de Acesso à informação

(L.12.527/2011) e o Memorial da Anistia17. Nas palavras de Torelly (2011):

Podem-se extrair algumas conclusões sobre o processo reparatório no bojo da efetivação da justiça de transição brasileira. A primeira conclusão importante, extrai-se do art. 8º do ADCT, cujo texto explicitamente se traduz em genuíno ato de reconhecimento dos direitos dos perseguidos políticos e entre eles o direito de resistir à opressão. A segunda é a de que, no Brasil, desde a sua origem, a anistia é ato político que se vincula à ideia de reparação. A terceira conclusão é a de que a anistia é concedida pela Constituição àqueles que foram perseguidos, e não aos perseguidores. Por fim, pode-se ainda afirmar que existe no Brasil a implantação de uma rica variedade de medidas de reparação, individuais e coletivas, materiais e simbólicas (TORELLY, 2011, p. 223).

Todas essas iniciativas movem a agenda política do país para além da

reparação. Estas constituem importantes mecanismos para a construção de uma

nova história, descontruindo as verdades oficiais criadas a partir do regime militar.

c) Direito à reforma das instituições

A reforma das instituições envolve uma série de modificações institucionais

com o objetivo de descaracterizar a cultura de repressão existente nos órgãos

estatais mudando-as radicalmente e em alguns casos dissolvendo-as.

16 CF/1988. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

17 Disponível para consulta no endereço: http://memorialanistia.org.br/

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Neste sentido, cabe às Comissões da Verdade fazer sugestões em seus

relatórios finais para a mudança legal, administrativa e institucional visando evitar a

repetição de crimes sistemáticos. Ao governo, realizar depurações e saneamento

administrativo nos órgãos públicos visando afastar as pessoas que cometeram

violações aos direitos humanos ou participação em corrupção, esses programas

também “podem contribuir para estabelecer a responsabilidade não penal por

violações dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais resulta

impossível processar todos os responsáveis” (ZYL, 2011, p. 54).

Temos como exemplos de reformas nas instituições no Brasil a extinção de

órgãos de repressão18 como o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR),

Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Aeronáutica

(CISA), Serviço Nacional de Informações (SNI), Destacamento de Operações de

Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), Departamento de

Ordem Política e Social (DOPS) e outros órgãos que atuavam em consonância a

ditadura militar.

Ainda cabe observar que a reforma não é apenas para excluir pessoas ou

extinguir órgãos. Esta também tem a função de criar novas instituições para garantir

a nova ordem democrática.

d) Direito à justiça

Quando buscamos o direito à justiça estamos nos referindo a obrigação do

Estado em investigar, processar e punir na esfera penal cada pessoa responsável

pelos crimes cometidos sistematicamente contra os direitos humanos. O que se

busca é evitar a repetição de novas violações sistemáticas cometidas por agentes

de Estado, além de servir como uma resposta ao anseio das vítimas por justiça.

Neste contexto enquadra-se o chamado crime contra a humanidade. O

conceito de crime contra a humanidade surgiu do Acordo de Londres (1945) que

instituiu o Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes cometidos pelo regime

nazista. Conforme explica Gomes e Mazzuoli crimes contra a humanidade são:18 Disponível para consulta no endereço: https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/2-orgaos-de-informacao-e-repressao-da-ditadura/

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O assassinato, extermínio, escravidão, a deportação e qualquer outro ato desumano contra a população civil, ou perseguição por motivos religiosos, raciais ou políticos quando esses atos ou perseguições ocorram em conexão com qualquer crimes contra a paz ou em qualquer crimes de guerra (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p.88).

Esses crimes são considerados pelo direito internacional dos direitos

humanos imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis, o que significa dizer que

não podem deixar de ser processados e julgados devido a leis de anistia, por

exemplo. Neste sentido, é de entendimento internacional que tais leis, que

funcionam como impeditivo para que seja efetuada a justiça, devem ser invalidadas.

Os crimes contra a humanidade faz parte do costume e do jus cogens

internacional. Portanto são normas imperativas no qual nenhum tratado ou norma de

direito interno se sobrepõe. De acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito

dos Tratados (1969), assinada pelo Brasil em 23 de maio de 1969 e ratificada pelo

Decreto 7.030/2009, uma parte não pode invocar as disposições de seu direito

interno para justificar o inadimplemento de um tratado, e ainda, os tratados

incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional (jus cogens):

Artigo 53.º É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza. (grifo nosso).

Neste sentido afirma-se que quando um país firma um tratado internacional a

sua soberania passa a ser relativizada, portanto, as condenações internacionais

advindas de violações aos direitos humanos devem ser cumpridas pela justiça

nacional.

No entanto, Paul Van Zyl (2011, p. 50) faz uma observação importante, “os

sistemas da justiça penal estão desenhados para sociedades em que a violação da

lei constitui exceção e não a regra”. Neste sentido a justiça penal não é suficiente

quando tratamos de violações sistemáticas e generalizadas de direitos humanos,

isso porque tais demandas exigem uma designação significativa de tempo e

recursos19. Desta forma, para além da busca dos julgamentos penais, devemos

19 Em um comparativo o autor afirma que “a Corte Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia

emprega mais de 1100 pessoas e tem um gasto de 500 milhões de dólares desde a sua criação em

1991. Desde essa data conseguiu menos de 20 condenações”. (ZYL, 2011, p.50).

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fortalecer todos os outros mecanismos da justiça de transição em busca do

enfrentamento de um passado marcado por sistemáticas violações aos direitos

humanos.

1.3 TIPOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

As transições podem gerar diversas formas de respostas às graves violações

de direitos humanos. Dentre estas, quatro formas merecem destaque:

a) Vingança:

A vingança privada representa um sistema primitivo de justiça onde o culpado

é punido pela própria vítima e/ou por outros integrantes que se julgam injustiçados,

unindo-se para depreciar o acusado. Pode ocorrer, na maioria das vezes, pela

inércia do Estado em efetivar uma resposta coletiva ou institucionalizada a respeito

das violações aos direitos humanos das vítimas ou quando esta resposta e

considerada insuficiente por estas (SANTOS, 2016).

O discurso da vingança vem desde o Tribunal de Nuremberg sendo

gradativamente afastado. Não resolve o problema e em um sistema de direito a

vingança privada é algo não tolerável. E é justamente por isso que o direito deve

oferecer uma resposta adequada. Se o direito falha em sua função negando justiça

às vítimas de graves violações de direitos humanos, este falha na aplicação da lei e

não na aplicação da vingança.

A invés da vingança, a resposta cabe ao Poder Judiciário por ser “o recurso

mais válido que a sociedade tem para declarar o que considera justo e injusto"

(HUHLE, 2005, p.18)20.

b) Esquecimento:

20 "En un Estado moderno de derecho, hasta ahora, y pese a muchos deseos de tener otros mecanismos tal vez más humanos, el castigo judicial es el recurso más válido que tiene la sociedad para declarar lo que considera justo e injusto”.

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A transição pelo esquecimento ocorre quando mecanismos são utilizados

para impor o esquecimento dos fatos. É o caso das Leis de Anistia que autoanistiam,

a falta de informações sobre os fatos ocorridos, ocultação de documentos emitidos

durante o período, o silencio, e qualquer movimento que impeça que a sociedade

lembre a respeito dos crimes cometidos.

O processo de transição brasileira se encaixa perfeitamente neste tipo de

transição. A abertura política controlada pelo regime militar impôs à sociedade

brasileira uma reconciliação que exigiu como moeda de troca o esquecimento dos

fatos ocorridos naquele período através do que muitos afirmam ter sido um acordo

político.

Ocorre, pois, que para a justiça transicional esta forma de transição ignora os

anseios das vítimas e seus familiares, impondo à força a superação de um passado

violento e perpetuando a impunidade dos agentes violadores de direitos humanos.

c) Julgamento:

A transição através do julgamento é feita por órgãos judiciais, ou quase-

judiciais, permitindo a responsabilização dos agentes do Estado atendendo as

reivindicações das vítimas. Ademais, promovem a publicidade dos fatos e

conscientizam as futuras gerações de que tais atos não podem se repetir. Este é o

exemplo da transição ocorrida na Argentina, que logo após a queda dos regimes

militares, se propôs a processar e julgar os agentes violadores de direitos humanos.

Cabe observar que o julgamento nem sempre é possível devido a

impedimentos jurídicos e políticos que vão surgindo durante o processo de

transição. Ademais, muitas transições acabam posteriormente seguindo um modelo

restaurativo em substituição dos modelos retributivos ou punitivos, pois caso

contrário, é difícil conseguir que agentes perpetradores de violações de direitos

humanos se proponham a revelar os verdadeiros fatos ocorridos durante o regime

de exceção. Desta forma, a construção da memória e da verdade através das

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Comissões da Verdade tornam-se importantes instrumentos na busca pela

reconstrução dos fatos normalmente encobertos ou distorcidos pelo regime militar.

d) Conhecimento:

A transição via conhecimento significa trazer a luz fatos obscuros sobre o

período repressivo sem necessariamente exigir que processos criminais ocorram.

Busca-se uma justiça restaurativa, onde a busca da verdade passa para o primeiro

plano. Conforme dito anteriormente, as Comissões da Verdade criadas para

investigar os fatos ocorridos na repressão, no qual, rechaçam informações oficiais

elaboradas sobre os acontecimentos são um grande exemplo desta forma de

transição. Em sua atuação as Comissões da Verdade realizam uma análise

minuciosa em documentos, testemunhos e oitivas dos opressores, para reconstruir a

história. Ainda, outros meios simbólicos como a mudança de nome de ruas, criação

de museus, lançamento de livros e filmes, são implementados possibilitando que a

sociedade tenha acesso a este período da história reforçando o combate a repetição

desses atos pelas gerações futuras.

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PARTE III - OS CAMINHOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

Neste capítulo vamos realizar a análise da justiça de transição em seu sentido

estrito, ou seja, justiça de transição apresenta-se como uma plataforma de

justificação, a partir do qual se realizam avaliações críticas sobre o passado.

Neste sentido insere-se a abordagem dos caminhos que a justiça de transição

percorreu (e ainda continua percorrendo) no Brasil, desde a promulgação da Lei de

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Anistia, em 1979, até o atual momento com a propositura da Ação de Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 320.

1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO EM SENTIDO ESTRITO

O Brasil, assim como outros países da América Latina, passou por um longo

período de ditadura militar desde o início da década de 1960.

Com a eclosão da Revolução Cubana em 1959, que abalou a influência

hegemônica dos Estados Unidos na América Latina, pacotes de ajuda econômica

foram lançados objetivando promover o desenvolvimento econômico em países

latino-americanos e ao mesmo tempo evitar que a nova configuração política de

Cuba servisse como exemplo para as outras nações (TOSI; SILVA, 2014).

Nessas circunstâncias o governo passou a robustecer a sua política frente

às ameaças comunistas desencadeando a eclosão do regime militar através de um

golpe de Estado. Os militares envolvidos no golpe justificavam as suas ações

assentadas na ideia de combate à ameaça da ordem capitalista e da segurança

nacional. Mas não foram apenas os militares os responsáveis pelo golpe. A elite

política, os conservadores, a imprensa e os empresários também fizeram parte

deste movimento. Temos como exemplo a “Marcha da Familia com Deus pela

liberdade”, onde cerca de quinhentas mil pessoas foram às ruas para apoiar a

deposição de João Goulart.

Durante a ditadura militar diversos atos institucionais21(AI) foram decretados

buscando legitimar o estado de exceção no país, iniciando uma série de

perseguições políticas contra os que passaram a ser considerados subversivos

perante o regime então instaurado. Os cidadãos tiveram as suas liberdades e

direitos civis negados pelo Estado sendo os setores da oposição veemente

reprimidos pela lei de segurança nacional22.

21 Normas elaboradas no período de 1964 a 1969, durante o regime militar. Foram editadas pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional.22 A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva.

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Os anos de chumbo foram inaugurados pela edição do Ato Institucional n°5

(DL 477/1969), que proclamou o fim do livre pensamento nas universidades e

bancos escolares, e da possibilidade organização e mobilização política dos

movimentos sociais. (SILVA, 2010). Marcou a realidade brasileira com práticas

sistematizadas de tortura, homicídio, perseguição política, prisão arbitrária,

ocultação de cadáveres, desaparecimentos forçados, incineração de corpos

humanos em usinas de cana de açúcar (COELHO, 2014) executadas nos porões do

Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa

Interna (DOI-CODI)23. Estima-se que no período de exceção,

pelo menos, 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos, além de ainda constar cerca de 140 desaparecidos políticos. (PNDH-3, 2010, p.173)

Conforme a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

(CEMDP) o Brasil foi o único país da América Latina que não trilhou procedimentos

penais para examinar as violações de direitos humanos cometidos sistematicamente

pelo Estado durante o período de ditadura militar, mesmo tendo oficializado, com a

lei 9.140/1995, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e

desaparecimentos forçados ocorridos neste período. Tudo isso devido à

obstaculização criada pela Lei de Anistia em 1979 que implantou a interpretação do

perdão de “dupla via”, concedendo benefícios recíprocos aos agentes estatais e aos

opositores políticos (BRASIL; CEMDP, 2007).

Foram vinte e um anos de governo comandado pelas Forças Armadas e

elites políticas que atuando sob o regime ditatorial institucionalizou praticas de

violações sistemáticas de direitos humanos que perduram até hoje, como por

exemplo, a tortura e as execuções sumárias praticadas pelas polícias. Não há

dúvida de que este período da história é uma zona cinzenta na qual restam muitos 23 O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) surgiu em janeiro de 1970 e atuou sob comando dos militares com respaldo financeiro das Polícias Estaduais. Somente no estado de São Paulo, o departamento contou com cerca de 250 agentes, com parte desse efetivo composto por militares. Normalmente, militantes políticos, após serem capturados pelas forças de repressão, seguiam para esse local, onde sofriam sessões de tortura durante interrogatório: “Em cada jurisdição territorial, os DOI-CODIs passavam a dispor do comando efetivo sobre todos os organismos de segurança existentes na área, sejam as Forças Armadas, sejam das polícias estaduais e federal.” Além do DOI-CODI, a repressão política contou também na sua estrutura com o Departamento de Ordem Política e Social. (Comissão Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, p. 74)

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fatos a serem revelados. Deste modo abordaremos adiante o processo de Justiça de

Transição brasileiro.

1.1 LEI DE ANISTIA E A JUSTIÇA CERCEADA

A Lei de Anistia foi o marco inicial da justiça de transição brasileira. Foi

promulgada durante o governo do presidente João Baptista Figueiredo para reverter

punições pautadas nos Atos Institucionais dos opositores políticos. Por ela, ficava

extinta a punibilidade a todos os que haviam cometido crimes políticos ou conexos

com estes, garantindo o retorno dos exilados ao País, o restabelecimento dos

direitos políticos e a volta ao serviço de militares e funcionários da administração

pública, excluídos de suas funções durante a ditadura.

Apesar do movimento em busca da anistia24 já existir desde o início da

ditadura, esta se fortaleceu entre 1974 e 1975 através de um intenso processo de

mobilização da sociedade civil, em especial o liderado por mães, esposas e

familiares de desaparecidos, presos e exilados políticos. Em fevereiro de 1978 o

Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) - composto por advogados, estudantes,

militantes de partidos e organizações de esquerda, familiares de presos e de mortos

e desaparecidos, setores progressistas da Igreja Católica, grupo dos parlamentares

autênticos no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), jornalistas, professores, e

intelectuais - foi fundado para coordenar as ações na luta pela anistia, defendendo o

perdão imediato dos presos e perseguidos políticos, o fim das torturas, a volta de

todos os exilados, cassados e banidos políticos, além do esclarecimento a respeito

dos desaparecidos políticos e a revogação da Lei de Segurança Nacional

(MEZAROBBA, 2006).

24 O primeiro a reclamá-la foi Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde. Em dezembro de 1964, durante entrevista a uma emissora de rádio carioca, o escritor católico apelou por anistia ao presidente Castello Branco. Em seguida foi a vez do general Pery Constant Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar (STM), defender a adoção do expediente. Em 1967, um manifesto da Frente Ampla, organizada por líderes da oposição como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, pediria "anistia geral, para que se dissipe a atmosfera de guerra civil que existe no país”.

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A luta era por uma transição “ampla, geral e irrestrita”25. Nesta primeira fase

se buscava o resgate das liberdades públicas civis e políticas (ABRÃO; TORELLY,

2015), organizando os movimentos de oposição em torno de uma plataforma de

lutas democráticas que almejava o reestabelecimento da democracia, a volta do

Estado de Direito e principalmente, o reconhecimento e respeito aos direitos

humanos. Para esses militantes, não era aceitável uma anistia que pactuasse com o

regime, que não fosse um instrumento de justiça e que não trouxesse garantias

realmente democráticas para todos. Deste modo a anistia deveria se pautar no

reconhecimento de mortes e desaparecimentos, na responsabilização dos agentes

de Estado e na não reciprocidade. Neste contexto foram elaborados dois projetos de

Lei de Anistia, um projeto elaborado pelo regime militar e o outro projeto de iniciativa

popular.

Apesar da ampla mobilização popular e a elaboração de um projeto de

anistia visando estes propósitos, o projeto aprovado foi o elaborado pelo regime

militar. Com a Lei 6.683/1979 – Lei de Anistia – foi estabelecida uma abertura

política “lenta, gradual e segura” na qual se promoveu uma reciprocidade do perdão

e esquecimento. Isso porque não havia nenhum interesse do governo em promover

rupturas com o passado que pudessem geram um movimento de revanchismo

contra os agentes de estado. A votação da Lei de Anistia ocorreu em um Congresso

Nacional composto majoritariamente por políticos que apoiavam a ditadura militar –

os chamados “senadores biônicos”26 - sendo afastada a ampla participação e o

anseio da sociedade.

A anistia beneficiou mais de cem presos políticos e permitiu o retorno de

cento e cinquenta pessoas banidas e duas mil exiladas ao país (CNV, 2014). Mas

nem todos foram beneficiados pela anistia. Presos que estavam detidos por crimes

25 “Enquanto em países como a Argentina e Chile a anistia foi uma imposição do regime contra a sociedade, ou seja, uma explícita autoanistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se referia originalmente aos presos políticos, tendo sido objeto de manifestações históricas que até hoje são lembrada. É preciso ressaltar que a deturpação da lei de anistia de 1979 para abranger a tortura perpetrada pelos agentes de Estado jamais fez parte dos horizontes de possibilidades da sociedade civil atuante à época, até mesmo porque a tortura não era uma prática reconhecida oficialmente e seu cometimento não era visível publicamente em razão da censura aos meios de comunicação” (ABRÃO; TORELLY, 2010, p.30).26 Senadores e governadores eleitos indiretamente ficaram conhecidos como “biônicos”. O termo era uma referência ao seriado de televisão O Homem de Seis Milhões de Dólares, que fazia muito sucesso na época. O personagem principal da produção norte-americana, exibida então pela TV Bandeirantes, havia sido mutilado em um acidente e teve o corpo reconstituído por meio de implantes “biônicos”. Como não eram escolhidos por voto popular, governadores e senadores "biônicos" eram considerados um artifício para interferir nos rumos políticos do país (PAGANINE, 2017).

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de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal não foram beneficiados,

mantendo-se presos até a alteração da Lei de Segurança Nacional em 1983.

Desta forma se ignorou todo o contexto no qual a ditadura militar se

instaurou, onde os revolucionários foram aqueles que lutaram contra um regime

ilegítimo imposto a partir de falsos discursos de promoção da democracia. Os

revolucionários foram vítimas, e não os algozes. Na anistia, estes não foram

apresentados como “partidários de um movimento ostensivo” (BORGES, 2012,

p.72), mas sim, como terroristas que seriam finalmente perdoados por terem

cometidos os crimes contra o Estado. Verifica-se, portanto, que o processo de

transição para a democracia ocorrendo de forma controlada pelo regime repressor,

além de corroborar para a manutenção da prisão de vários resistentes ao excluir os

chamados “crimes de sangue”, implantou na conjuntura social uma Lei de anistia

“amnésia”, porque se o Estado estava disposto a esquecer todos os crimes

cometidos contra este, então todos deveriam esquecer os atos de Estado.

Da ausência de ruptura entre o regime ditatorial para o regime democrático

insurgiu a ideia de um acordo que promovesse a reconciliação nacional. Este

posicionamento fica claro quando atualmente vemos as decisões dos ministros em

relação a esta parte da história brasileira, como a interpretação realizada pelo

Supremo Tribunal Federal na ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

(ADPF) n° 153 na qual reafirmou a validade da lei de anistia desconsiderando todo o

contexto no qual este período ocorreu, ignorando toda construção internacional que

ocorre em torno da proteção dos direitos humanos no qual crimes contra a

humanidade são imprescritíveis e, portanto leis que buscam manter tal impunidade

são inválidas.

A transição pautada no esquecimento dos fatos retirou das vítimas a

possibilidade de decidir quando e como poderiam de fato perdoar, ou não, todas as

atrocidades cometidas contra elas e seus familiares. O perdão foi imposto como um

“mal necessário” projetado para lidar com a violência contínua ou em massa

(PAYNE;ABRÃO;TORELLY, 2011) tornando-se moeda de troca para que

perseguidos pudessem retomar as suas vidas.

Cabe ressaltar que o perdão concedido pela Lei não partia da perspectiva das

vítimas para os seus agressores. Nesta interpretação eram os agressores quem

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estavam perdoando os setores da sociedade que lutaram contra o regime militar. O

que se percebe é o propósito de “colocar no mesmo saco” aqueles que golpearam e

os que foram golpeados, o que não é nem jurídica e nem moralmente aceitável

(GENRO, 2009). Isso porque se formos comparar os agentes de estado com os

opositores, resta claro uma grande desproporcionalidade entre estes, mesmo

considerando o fato de que uma parte da oposição optou pela luta armada como

meio para combater o regime.

No caso brasileiro não há como se aplicar a ideia de que houve uma “guerra”

no qual então os dois lados precisam ser considerados (REIS, 2000), porque para

isto haveria a necessidade do combate ter corrido entre duas forças iguais, ou ao

menos parecidas, no qual ambas as partes possuem a capacidade de combate. O

que tivemos foi um aparato sistematizado utilizado pelo Estado para combater

estudantes, professores, políticos – sem distinção entre crianças, mulheres, idosos

ou o que for – como pudemos constatar nos relatórios elaborados pela Comissão da

Verdade. Apesar da existência de alguns movimentos de luta armada estas foram

facilmente trucidadas pelo aparato estatal. Um exemplo disto é o que aconteceu na

Guerrilha do Araguaia, fato pelo qual o Brasil foi condenado atualmente – em 2010 -

pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Lei de Anistia representou o início da transição para a democracia, mas

pelo fato de ter sido uma transição controlada pelo regime militar e pela falta de real

ruptura entre um regime e outro, transformou-a em um grande obstáculo para a

concretização do pilar da justiça no processo de transição.

Atualmente o conceito de anistia está em disputa. Na década de 1960 a luta

era em busca da liberdade aos presos políticos e o restabelecimento do regime

democrático. Após a reabertura política do país a anistia passou a significar uma

espécie de impunidade dos agentes de estado haja vista as vítimas não

conseguirem processá-los pelos atos ocorridos na ditadura. Atualmente, a luta

encontra-se na adequação da interpretação da Lei de anistia à luz dos preceitos

internacionais, no qual a anistia não pode significar o esquecimento ou a

impunidade, a anistia é direcionada as vítimas, deve significar o reconhecimento de

que estas não devem ser punidas por terem lutado contra um regime repressor.

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73

A anistia reverteu a punição de todos os cidadãos brasileiros que entre os

anos de 1961 e 1979 foram considerados criminosos pelo regime militar, ou seja,

opositores políticos e militares foram anistiados aos mesmo tempo. Isso porque os

partidários da ditadura viam os crimes cometidos pelos opositores como uma

autêntica guerra revolucionária. E havendo uma guerra, todos os lados devem ser

considerados (REIS, 2005, p.42)

1.2 RECONHECIMENTO DA ANISTIA AOS PERSEGUIDOS POLÍTICOS

Com a restauração do estado de direito a nova constituição (1988) precisa

estabelecer regras de mutação. Através dos Atos Dispositivos Constitucionais

Transitórios (ADCT) se estabelece regras de transição entre o antigo ordenamento

jurídico e novo ordenamento instituído pelo poder constituinte originário, em outras

palavras, buscou-se a harmoniosa transição do regime constitucional anterior (1969)

para o novo regime constitucional (1988). Depois da Lei de Anistia de 1979 a

primeira oportunidade para que o Estado de Direito promovesse a reparação das

vítimas da ditadura foi a Constituição de 1988 (TOSI;SILVA, 2014) através das

disposições transitórias:

TÍTULO X - ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n.º 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto Lei n.º 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Veja que neste momento a Constituição Federal de 1988 apenas tratou de

assegurar o do reconhecimento da condição de anistiado político estendendo o

prazo da sua aplicação para o período de 18 de setembro de 1946 até a data da

promulgação da Constituição. Desta forma esta não se pronunciou sobre a

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revogação ou reabertura da lei de anistia imposta pelo regime militar (TOSI;SILVA,

2014).

Através da persistência dos familiares27 de mortos e desaparecidos foi iniciado

o movimento da agenda política em busca de mudanças a respeito do silencio

implantado sobre os fatos da ditadura. Em dezembro de 1995 durante os governos

de Fernando Henrique Cardoso houve um grande processo de discussão entre

esses familiares, o Ministério da Justiça e o Poder Legislativo Federal em torno da

responsabilidade do Estado brasileiro pela morte dos opositores políticos do regime.

Isso porque em nenhum momento durante a ditadura e mesmo após o seu fim as

autoridades militares haviam reconhecido oficialmente a responsabilidade pelos atos

cometidos por seus agentes neste período28.

Em cumprimento a determinação contida no artigo 8º do ADCT foi aprovada a

Lei n.º 9.140/1995 no qual instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e

Desaparecidos. Sua finalidade foi proceder ao reconhecimento de pessoas mortas

ou desaparecidas em razão de graves violações de direitos humanos cometidos pelo

Estado, a localização de seus corpos, emitir parecer sobre os requerimentos

relativos à indenização devida aos familiares das vítimas.

1.3 O INICIO PELA BUSCA DA VERDADE: CRIAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS

Após a concessão da Anistia no ano de 1979 e os desdobramentos por ela

causados, como a abertura política, os movimentos sociais e de direitos humanos

passaram por um momento de reorganização no campo político que promoveu o

fortalecimento da sociedade em relação a importantes conquistas para a

democracia. Em 1995, devido ao comprometimento da campanha eleitoral do

presidente Fernando Henrique Cardoso com as famílias das vitimas e a grande

pressão internacional em torno da questão, o Ministro da Justiça Nelson Jobim 27 Nesse período, a luta dos familiares ganhou notoriedade a partir da descoberta da vala de Perus, da conseqüente CPI da Câmara Municipal de São Paulo e da liberação dos arquivos do DOPS, através da promulgação da Lei 8.159/91. (SANTOS, 2008, p. 134). 28 “No final de 1973, D. Paulo Evaristo Arns começou a colecionar nomes e vestígios que documentassem uma lista de ‘desaparecidos’. (...) Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres sumiam sem deixar vestígios” (GASPARI, 2003, p.388).

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informou que a causa dos desaparecidos políticos teriam reconhecimento do

governo. Um projeto de lei para a criação da comissão foi elaborado, porém não

atendia ao todo os pedidos dos familiares29 das vítimas em atendimento ao acordo

realizado com os militares (SANTOS, 2008).

Apesar de todas as críticas30 elaboradas pelos familiares das vítimas a

Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP) em relação ao projeto de

lei proposto pelo governo a Lei 9.140/1995 foi aprovada, sendo o primeiro passo

para o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e

desaparecimento ocorridos na ditadura. Segundo o 1° da Lei 9.140/1995:

São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. (BRASIL, 1995).

O trabalho da Comissão iniciou logo após a edição da Lei 9.140/1995, sendo

composta por sete membros indicados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso,

pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, pelas Forças Armadas, pelo

Ministério Público Federal e pela Comissão de Familiares.

Conforme artigo 4° da referida lei cabe à Comissão averiguar o caso de

pessoas:

a) desaparecidas;b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas;c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público;  d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público; (BRASIL, 1995)

29 “Segundo Nilmário Miranda: eles concordavam com as nossas emendas, mas depois veio a orientação de que não podia mexer, que tinha um acordo com os militares, onde a lei não poderia ser mexida”. (SANTOS, 2008, p. 142). 30 1.Esclarecimento detalhado (como, onde, porque e por quem) das mortes e dos desaparecimentos ocorridos. 2. Reconhecimento público e inequívoco pelo Estado de sua responsabilidade em relação aos crimes cometidos. 3. Direito de as famílias enterrarem condignamente seus entes queridos, visto caber ao Estado, e não a elas, a responsabilidade pela localização e identificação dos corpos. 4. Inversão do ônus da prova: é dever do Estado, e não dos familiares, diligenciar as investigações cabíveis, buscando provar não ser ele o responsável direto pelos assassinatos. 5. Abertura incondicional de todos os arquivos da repressão sob jurisdição da União. 6. Compromisso de não nomear e de demitir de cargos públicos todos os envolvidos nos crimes da ditadura. 7. Inclusão de todos os militantes assassinados por agentes do Estado no período de 1964 a 1985. 8. Indenização como direito e, principalmente, efeito de todo o processo de luta. (SANTOS, 2008, p.142)

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Da promulgação desta lei foram reconhecidos imediatamente como

desaparecidos políticos 136 pessoas baseado dossiê dos mortos e desaparecidos

políticos31, elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos

Políticos, e que havia sido entregue ao Ministro da Justiça Nelson Jobim. A partir de

então inaugurou o ciclo de trabalhos realizados pela Comissão Especial de Mortos e

Desaparecidos em conjunto com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da

Presidência da República.

Durante a sua primeira etapa apreciou 480 pedidos de reparação e

reconhecimento Entre estes, 362 foram deferidos, ou seja, as causas ou

circunstâncias de morte ou desaparecimento por força do arbítrio instalado e

perpetrado pela ditadura militar (1964-1985), pelo Estado ou por seus agentes,

foram oficialmente reconhecidas. Destes, 136 constaram do anexo da Lei nº

9.140/95. Os outros 118 foram indeferidos. (CEMDP, 2007).

Do reconhecimento da responsabilidade do Estado foi garantida a

indenização reparatória calculada a partir da expectativa de vida de cada um dos

mortos e desaparecidos, ou seja, o pagamento de valor único igual a três mil reais

multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de sobrevivência

do desaparecido no qual foi estabelecido em uma tabela própria anexa a Lei. Esta

reparação somente foi regulamentada em 2002 pela Lei 10.559/2002.

Da mesma forma que a Lei de Anistia de 1979 não abordou sobre a

possibilidade de punições aos agentes do Estado a lei que criou a Comissão

Especial de Mortos e Desaparecidos também não, recebendo inúmeras críticas dos

familiares das vítimas que se viam impossibilitados de buscar a punição dos agentes

do Estado.

Porém o trabalho da Comissão Especial trouxe um grande avanço na

construção da verdade e da memória no processo de transição. Na primeira etapa

de seus trabalhos, encerrada em 2006, concluiu a fase de analise, investigação e

julgamento dos processos relativos aos casos de mortos e desaparecidos. Em 2007

durante o segundo mandato do Presidente Lula foi publicada a obra “Direito à

memória e à Verdade”32 no qual relatou todos os casos averiguados pela Comissão

31 Para saber mais acessar o “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964”, disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/dossiers/dh/br/dossie64/br/dossmdp.pdf32 Obra disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/a_pdf/livro_memoria1_direito_verdade.pdf

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Especial ao longo de onze anos sinalizando a busca do sentimento de reconciliação

e os objetivos humanitários que a movem, registrando-os para os anais da história.

A partir do fechamento desta primeira etapa, a Comissão Especial de Mortos

e Desaparecidos Políticos, iniciou em setembro de 2006, a coleta de material

genético de familiares de desaparecidos políticos para a criação de um banco de

DNA que irá ajudar na identificação de possíveis corpos ainda a serem encontrados,

e ainda, em consonância com o disposto no inciso II do Artigo 4° da Lei 9.140/1995,

se comprometeu “a sistematizar informações sobre a possível localização de covas

clandestinas nas grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento de

militantes na área rural”. (VANNUCHI; BARBOSA, 2007, p. 17).

Outro fato importante para o processo de transição brasileiro ocorreu em 2001

com a Medida Provisória n° 2151-3 que criou a Comissão da Anistia do Ministério da

Justiça - sendo reeditada pela Medida Provisória n° 65/2002 e convertida em Lei

10.559/2002 em 13 de novembro de 2002 – finalmente regulamentando o direito

previsto no artigo 8° ADCT. Além de prever direitos como a declaração de anistiado

político, a reparação econômica, a contagem do tempo e a continuação de curso

superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior, instituiu a

Comissão de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça, para a apreciação e

julgamento dos requerimentos de anistia e exame de requerimentos de reparação

econômica.

1.4 A ELABORAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH)

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) surgiu através do

compromisso assumido pelo Brasil durante a 1° Conferência Mundial sobre Direitos

Humanos (Convenção de Viena) ocorrida em junho de 1993. Esta conferência

buscou reafirmar o empenho de todos os Estados em cumprirem as suas obrigações

quanto à promoção, proteção e respeito aos direitos humanos e liberdades

individuais dispostos na Carta das Nações Unidas ensejando a cooperação

internacional para percorrer esse fim.

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O Brasil foi o primeiro país da América Latina a lançar um programa nacional

para direitos humanos. Em meio ao massacre a trabalhares rurais sem terra,

ocorrido durante uma operação realizada pela Polícia Militar em Eldorado dos

Carajás no Pará, o governo de Fernando Henrique Cardoso lançou em 1996 o

Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-I) através do Decreto

1.904/1996. Este foi elaborado a partir de ampla consulta à sociedade, de

organizações não-governamentais (ONG’s), universidades e centros de pesquisa no

qual algumas dezenas de entidades e centenas de pessoas formularam sugestões e

críticas, participaram de debates e seminários. (PINHEIRO;NETO, 1997).

Nas palavras do então Presidente Fernando Henrique Cardoso o objetivo das

propostas elaboradas neste importante documento são,

[...] estancar a banalização da morte, seja ela no trânsito, na fila do pronto socorro, dentro de presídios, em decorrência do uso indevido de armas ou das chacinas de crianças e trabalhadores rurais. Outras recomendações visam a obstar a perseguição e a discriminação contra os cidadãos. Por fim, o Programa sugere medidas para tornar a Justiça mais eficiente, de modo a assegurar mais efetivo acesso da população ao Judiciário e o combate à impunidade (PNDH-1, 1996, p.2)

O PNDH-1 enfatizou a atenção aos direitos civis e políticos. Para tanto contou

com duzentas e vinte e oito propostas de ações governamentais voltadas à

integridade física, liberdade, cidadania e discriminação, afirmando a importância da

proteção aos direitos humanos e que estes devem ser protegidos em todos os

Estados e nações (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).

Dentre as propostas de ações governamentais estão:

i. Políticas públicas para proteção e promoção dos direitos humanos no

Brasil: Proteção do direito à vida e liberdade;

ii. Proteção do direito a tratamento igualitário perante a Lei;

iii. Educação e cidadania como bases para uma cultura de direitos humanos;

iv. Ações internacionais para a proteção e promoção de direitos humanos:

ratificação de atos internacionais, implementação e divulgação de atos

internacionais, apoio a organizações e operações de defesa de direitos

humanos; implementação e monitoramento do PNDH;

Trata-se, portanto, de um quadro referencial para a concretização das

garantias do Estado de Direito em uma ação conjunta entre o Estado e a

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comunidade, transformando indivíduos e coletividades em beneficiários das

garantias e da proteção do direito internacional dos direitos humanos. Da mesma

forma garantiu o acesso o organismos internacionais para a proteção nos sistema

global (Organização das Nações Unidas – ONU) e regional (Organização dos

Estados Americanos – OEA).

Apesar de não dispor sobre os mecanismos de incorporação das propostas

nos instrumentos de planejamento e orçamento brasileiro e a maior parte das suas

propostas se colocarem de maneira pouco afirmativa (CICONELLO;PIVATO;FRIGO,

2009), o PNDH-I significou um importante instrumento na construção da verdade e

da memória (PNDH-II, 2002):

i. Houve o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão

de participação política (Lei nº 9.140/95), onde o Estado brasileiro

reconheceu a responsabilidade por essas mortes e concedeu indenização

aos familiares das vítimas;

ii. A transferência da justiça militar para a justiça comum dos crimes dolosos

contra a vida praticados por policiais militares (Lei 9.299/96), que permitiu

o indiciamento e julgamento de policiais militares em casos de múltiplas e

graves violações como os do Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos

Carajás;

iii. A tipificação do crime de tortura (Lei 9.455/97), que constituiu marco

referencial para o combate a essa prática criminosa no Brasil; e a

construção da proposta de reforma do Poder Judiciário, na qual se inclui,

entre outras medidas destinadas a agilizar o processamento dos

responsáveis por violações, a chamada ‘federalização’ dos crimes de

direitos humanos.

Em 2002 foi lançado o PNDH-II por meio do Decreto 4.229/2002. Neste

sentindo ofereceu a oportunidade de fazer um balanço dos progressos alcançados

desde 1996, das propostas de ação que se tornaram programas governamentais e

dos problemas identificados até então. A ênfase neste momento foi a atenção aos

direitos econômicos, sociais e culturais, sendo então incorporadas ações como,

direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à

moradia, a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim

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como propostas voltadas para a educação e sensibilização de toda a sociedade

brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de respeito aos

direitos humanos (PNDH-II, 2002).

Uma importante novidade foi criação de novas formas de acompanhamento e

monitoramento das ações contempladas no PNDH, por meio da relação entre a

implementação do programa e a elaboração dos orçamentos nos níveis federal,

estadual e municipal (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).

Em 2008, ocorreu um grande debate nacional na 11° Conferência Nacional de

Direitos Humanos sobre quais seriam as prioridades que o Estado brasileiro deveria

assumir ao longo dos próximos anos de modo a dar mais efetividade ao PNDH.

Foram realizados debates em todos os vinte e sete estados da federação, com mais

de quatorze mil participantes (CICONELLO;PIVATO;FRIGO, 2009).

Em 2009, por meio do Decreto 7.037/2009, foi lançado o PNDH-3. A terceira

versão do Programa Nacional de Direitos Humanos gerou grande polêmica entre a

sociedade, o Estado e os militares. Isso porque no Eixo Orientador VI reconheceu o

direito à memória e à verdade como direito humano da cidadania e dever do Estado.

Estabeleceu na Diretriz 23 o objetivo de promover a apuração e esclarecimento

público das violações de direitos humanos praticadas durante a repressão política no

período fixado no artigo 8° do ADCT.

Para tanto foi proposta a criação de uma “Comissão da Verdade e

Justiça”. Esta questão gerou grande polêmica visto que os militares entenderam que

a criação de uma comissão desta forma animaria espíritos revanchistas. A

assinatura do decreto que aprovava o PNDH-3 culminou em cartas de demissões do

ministro da Defesa e de Comandantes das Forças Armadas como forma de

pressionar o governo a suprimir a própria criação dessa comissão. As negociações a

respeito da Comissão da Verdade perduraram até 2011 quando então a Lei

12.528/2011 finalmente criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV).

O PNDH-3 ainda previu questões importantes à mudança da cultura de

esquecimento que restou com a transição política no Brasil. Na Diretriz 24

estabeleceu a preservação da memória histórica e a construção pública da verdade,

e na Diretriz 25, a modernização da legislação relacionada com a promoção do

direito à memória e à verdade como meio de fortalecer a democracia.

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Deste modo o PNDH-3 (2009) previu as seguintes ações programáticas:

1. Designou Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do

Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos

Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de

2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade no qual esta

comissão teria ação em conjunto com o Arquivo Nacional, Comissão da

Anistia; Comissão Especial criada pela Lei 9.140/95, Comitê interinstitucional

de Supervisão, e o Grupo de Trabalho instituído pela Portaria n° 567/2009 do

Ministro da Defesa;

2. Financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão

política, em todos os estados, com projetos de valorização da história cultural

e de socialização do conhecimento por diversos meios de difusão;

3. Criação de Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o

Congresso Nacional, iniciativas de legislação propondo: revogação de leis

remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos

Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações; revisão

de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos

Humanos em geral e no direito à memória e à verdade.

Este ultima ação programática no qual foi proposta a revogação de leis

remanescentes do período de 1964 a 1985 resultou na Ação de Descumprimento de

Preceito Fundamental (ADPF) n°153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB) em 2008 no qual iremos abordar mais adiante.

1.5 EIXO DA REPARAÇÃO: COMISSÃO DA ANISTIA

A Comissão da Anistia iniciou as suas atividades através da medida provisória

2.151-3/2001, posteriormente convertida na Lei 10.559/2002, regulamentando o

direito a reparação dos perseguidos políticos estabelecido no artigo 8° do ADCT. É

um órgão vinculado ao Ministro da Justiça, tendo por finalidade examinar e apreciar

os requerimentos de anistia possibilitando a concessão da anistia e reparação

econômica.

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É composta por no mínimo vinte Conselheiros designados mediante portaria

do Ministro de Estado da Justiça no qual prestam serviço de relevância social sem

qualquer tipo de remuneração, verificando todos os casos ocorridos entre 18 de

setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988.

Desde o inicio do seu funcionamento até 2007 a Comissão de Anistia recebeu

mais de cinquenta e sete mil requerimentos dos quais vinte e nove mil foram

apreciados, concluindo em 2016 a apreciação dos processos em primeiro grau

(GENRO; ABRÃO, 2009).

A declaração de condição de anistiado político foi direcionada às pessoas que

por motivação exclusivamente política:

Art. 2° . São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram: I. atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção na plena abrangência do termo; II. punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência; III. punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas; IV. compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o cônjuge; V. impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica no S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e no S-285-GM5; VI. punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes o' ciais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (BRASIL, 2002, p.1)

As pessoas declaradas anistiadas políticas passaram a ter o direito a dois

tipos de indenização. A primeira é a reparação econômica em prestação única no

valor de trinta salários mínimos por ano de perseguição econômica, observados o

teto legal de cem mil reais, dirigido aos perseguidos políticos que não puderem

comprovar vínculos com a atividade laboral como, por exemplo, estudantes,

profissionais autônomos, etc. A segunda é a prestação mensal permanente e

continuada. Esta é dirigida a aqueles que comprovarem o vinculo laboral

interrompido à época da perseguição. O valor é estabelecido de acordo com as

provas oferecidas pelo requerente. Nesse sentido a grande dificuldade da Comissão

de Anistia para a efetivação do direito à reparação foi a assimetria existente entre os

valores reparatórios percebidos por diferentes anistiados durante o período anterior

à criação da Comissão da Anistia. Até 2009 a Comissão da Anistia havia concedido

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a declaração de anistiado a mais de trinta mil pessoas, concedendo algum tipo de

reparação econômica a pelo menos dez mil pessoas (GENRO; ABRÃO, 2009)

Apesar de ser uma comissão de reparação a atuação da Comissão da Anistia

possibilitou a mudança na concepção de anistia como esquecimento, pois a

concessão da condição de anistiado político requereu uma ampla apresentação de

documentos e narrativas sobre os fatos ocorridos nas sessões de julgamento

promovidas por esta comissão. Ainda como meio de promover à memória e a

verdade desde 2007 a Comissão passou a promover projetos de educação,

cidadania e memória deslocando, através do projeto Caravanas da Anistia, as

sessões de apreciação dos pedidos aos locais onde ocorreram as violações de

direitos humanos. Entre os anos de 2008 e 2011 ocorreram cinquenta Caravanas da

Anistia percorrendo o Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Curitiba, Caxias do Sul,

Belo Horizonte, Salvador, Maceió, Brasília, e demais cidades do Brasil.

Uma das Caravanas que podemos destacar foi a Caravana do Araguaia. No

dia 17 de junho de 2009, a Comissão de Anistia julgou os processos de camponeses

que foram perseguidos pelo exército brasileiro durante a Guerrilha do Araguaia

(SILVA, 2010). Conforme afirma Silva:

A instrução desses processos foi algo muito difícil, visto que até a edição da Lei 9.140/95 o Estado brasileiro não admitia a ocorrência da Guerrilha, refletindo o forte empenho dos militares em varrer da história do país um exemplo de resistência de tão grandes dimensões. Assim, ao contrário das demais perseguições políticas empreendidas, como no caso das guerrilhas urbanas, por exemplo, não vieram à tona documentos oficiais produzidos sobre o episódio. O que se tem são apenas alguns relatórios até hoje não admitidos pelas Forças Armadas e que já foram objeto de reportagens e livros. (SILVA, 2010, p.216).

Então para poder averiguar os acontecimentos a prova testemunhal assumiu

um ponto central. Foram promovidas audiências abertas ao publico, as histórias

contadas foram compiladas e disponibilizadas no Memorial da Anistia.

Documentários, exposições artísticas e fotográficas, palestras, musicias, restauração

de filmes, preservação de acertos, locais de memória, produções teatrais e materiais

didáticos foram constantemente fomentados. Deste modo promoveu além da

reparação individual às vítimas, a reparação coletiva na medida em que permitiu que

a sociedade pudesse conhecer os fatos ocorridos durante a ditadura militar no

Brasil.

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2 A ADPF 153 E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

O fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição de 1988

anunciaram novos caminhos para a sociedade brasileira em relação à proteção dos

direitos humanos. A ideia de direitos humanos, diretamente ligada à necessidade de

proteção as ingerências do Estado e de seus agentes, tornou-se tema central

introduzindo um “indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e

direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira”

(PIOVESAN, 2013, p.84).

Os direitos e garantias fundamentais passaram a ser o suporte axiológico de

todo o sistema jurídico sustentando a noção de estado democrático de direito. Deste

modo, as relações fundamentadas no princípio da prevalência dos direitos humanos

passaram a reforçar o reconhecimento do Estado brasileiro da existência de limites e

condicionamentos à noção de soberania estatal transformando todo o arcabouço de

suas regras jurídicas.

Fundamentado neste princípio os principais tratados de proteção aos direitos

humanos, como, os Pactos das Nações Unidas sobre direitos humanos, a

Convenção contra a Tortura e a Convenção sobre os Direitos da Criança, a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Convenção Interamericana para

Prevenir e Punir a Tortura, dentre outros, passaram a ser aderidos pelo Brasil

ocasionando também no reconhecimento da jurisdição de vários mecanismos

internacionais judiciais para sua efetivação. Conforme André de Carvalho Ramos,

Dentre esses mecanismos estão o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, de Comitês diversos de tratados internacionais de direitos humanos, do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, do Tribunal permanente de Revisão do Mercosul, demonstrando como o Brasil avançou no trato do Direito Internacional (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175).

Segundo este autor a existência desses tribunais internacionais contribuiu

para que o “truque de ilusionista” perante o plano internacional pudesse ser

combatido através da fiscalização e controle das condutas dos Estados. Isto porque

no campo dos direitos humanos “era fácil o ilusionismo” no qual era possível que um

Tribunal Superior invocasse as garantias processuais penais à luz da Convenção

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Americana de Direitos Humanos sem que citasse um precedente de interpretação

desta Corte (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 175). Portanto, passou a ser afirmada a

necessidade da jurisdição internacional e a nacional a dialogarem entre si, afirmando

uma relação de interdependência entre estes sistemas.

Neste sentido Mazzuoli esclarece que o principio do domestic affair (ou da

não ingerência) evoluiu para o princípio do international concern, ou seja, o gozo dos

direitos e garantias fundamentais pelos cidadãos passou a ser uma questão de

direito internacional, não cabendo apenas aos juízes internos exercer essa proteção.

Em suas palavras, “estes últimos já não tem mais a última palavra quando se trata

de amparar um direito humano ou fundamental” (MAZZUOLI, 2011, p. 56).

A Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa

Rica (1969) – foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto 678 de 6 de novembro de 1992,

sendo a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão

internacional responsável pela aplicação e interpretação da convenção, somente

reconhecida após a aprovação, no Congresso Nacional, do Decreto Legislativo n°

89, de 3 de dezembro de 1998. A promulgação deste reconhecimento pelo Poder

Executivo ocorreu com o Decreto 4.463 de 08 de novembro de 2002, afirmando ser

“obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado” a competência da Corte

Interamericana para os fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José da Costa

Rica, é um órgão judicial internacional autônomo do sistema da Organização dos

Estados Americanos (OEA) que dispõe de competência contenciosa e consultiva

podendo conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das

disposições da Convenção Americana sobre Direitos humanos.

No plano consultivo exerce o seu papel de interprete ultima da Convenção

Americana emitindo pareceres que devem ser respeitados pela jurisdição nacional

no exercício do controle de convencionalidade. No plano jurisdicional, a Corte

Interamericana realiza o julgamento de casos relacionados aos Estados-partes da

Convenção Americana, que por força do artigo 62 da Convenção reconheceram

expressamente a sua competência.

A Corte Interamericana, na sua atuação, exerce o controle de

convencionalidade das leis apreciando a compatibilidade dos dispositivos internos –

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inclusive as normas constitucionais originárias – com os textos internacionais de

direitos humanos. Este controle também deve ser exercido internamente, pelo

Supremo Tribunal Federal (STF) e os juízos locais, zelando pelo cumprimento dos

dispositivos convencionais e depurando as normas nacionais que conflitem com as

normas internacionais de proteção aos direitos humanos (CARVALHO RAMOS,

2011).

Porém, a ratificação e incorporação de um tratado internacional de direitos

humanos pelo Estado nem sempre significa o efetivo diálogo entre as jurisdições

nacionais e internacionais. Um exemplo disso é a decisão proferida pelo STF na

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 e a posterior

decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e

outros Vs. Brasil, ambas proferidas em 2010.

Desta forma, analisaremos neste tópico, o posicionamento do STF e o da

Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito da interpretação da Lei de

Anistia e os principais impactos desses entendimentos para a justiça de transição

brasileira.

2.1 POSICIONAMENTO DO STF NA ADPF N° 153/2008

Em 2008, a Comissão de Anistia, apoiada por mais de 30 entidades

internacionais de diretos humanos, promoveu uma audiência pública para discutir

sobre os limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes

violadores de direitos humanos durante o estado de exceção no Brasil (PAYNE,

ABRÃO, TORELLY, 2011), recolocando em pauta o questionamento sobre o alcance

e a interpretação da Lei de Anistia (L. 6.683/1979).

Como fruto dessa discussão, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados

do Brasil promoveu no mesmo ano a Arguição de Descumprimento de Preceito

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Fundamental (ADPF) n° 153 questionando a anistia oferecida aos representantes do

Estado – policiais e militares – que praticaram os crimes de homicídio,

desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro, e

atentado violento ao pudor contra os opositores políticos ao regime militar.

Na respectiva ADPF 153 a OAB afirmou não ser possível, consoante o texto

da Constituição do Brasil, considerar válida a interpretação segundo o qual a Lei n.

6.683 teria anistiado vários agentes públicos responsáveis pelos delitos acima

citados, sendo tal entendimento violador de vários preceitos fundamentais da

Constituição. Deste modo afirmou que o dispositivo legal foi “redigido

intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir sub-repticiamente, no âmbito da

anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns

contra os opositores políticos” (BRASIL, 2008, p. 9), não podendo ser aceita pela

nova ordem constitucional que preza pelo Estado de Direito e proteção aos direitos

humanos.

Invocando os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5°,

caput), direito à verdade (art. 5° XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art.

1°, parágrafo único) e da dignidade da pessoa humana (art.1°, III), a OAB contestou

o § 1° do artigo 1° da Lei 6.683/1979 que considera conexos os crimes de “qualquer

natureza” relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política

durante a ditadura militar.

Deste modo, a previsão do §1° do art. 1° da Lei 6.683/1979 operou no

esvaziamento do conceito da anistia como perdão somente aos crimes efetivamente

políticos, fazendo valer no nosso ordenamento uma forma de “anistia-amnésia”,

onde os atos da resistência e os atos dos agentes de Estado foram colocados no

mesmo pacote, distorcendo o conceito de crimes políticos, e o alcance dos crimes

conexos a estes, no momento em que estendeu a aplicabilidade da lei a crimes

comuns e aos crimes contra a humanidade (SANTOS, 2016).

O crime político seria um delito próprio que exige que, tanto a motivação,

quanto o bem jurídico tutelado, seja necessariamente político. Ainda, são crimes que

devem provocar uma situação de ofensa real ou potencial a integridade territorial e à

soberania nacional. Em contrapartida, o crime de motivação política é um crime

político impróprio, ou seja, embora apresente uma lesão jurídica de índole comum,

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causa um dano potencial ou abstrato ao Estado. Os crimes conexos a estes são

infrações penais dependentes do delito principal, entendido como infrações

cometidas para realizar ou ocultar o proveito, ou impunidade, do delito principal

(SANTOS, 2016).

Dentre os principais crimes praticados pelos agentes de estado durante a

ditadura militar enquadram-se a usurpação do poder e destituição do governo eleito

democraticamente, homicídio, ocultação de cadáver, sequestro, cárcere privado,

tortura, violência arbitrária, abuso sexual e estupro, prisão arbitrária, abuso de

autoridade, extravio ou inutilização de documento, desaparecimento forçado de

pessoas, corrupção passiva, crime de extermínio e crime de genocídio. Ou seja, os

crimes cometidos pelos agentes de estado contra os opositores políticos não

afetaram a integridade do Estado ou a soberania nacional, mas sim, foram crimes

cometidos em nome do Estado para assegurar a permanência do regime ditatorial

então implantado.

Isto fez com que a anistia perdesse sua característica – estar vinculada aos

crimes políticos – para se tornar uma medida de ordem subjetiva e pessoal,

aplicando-se inclusive a crimes comuns e perpetuando a impunidade.

Segundo Carvalho Ramos (2011) entre os precedentes internos que

aplicaram a citada lei da anistia está o homicídio do jornalista Vladimir Herzog

ocorrido nas dependências do DOI/CODI de São Paulo em outubro de 1975. A

tentativa de persecução penal dos responsáveis pela sua morte foi proposta pelo

Ministério Público de São Paulo que, em 1992, requisitou a abertura de inquérito

policial para apurar as circunstancias do homicídio, refutando a versão oficial de que

o jornalista havia se suicidado nas dependências do Destacamento. No entanto, o

Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o trancamento inquérito policial por

considerar que tais atos ilícitos foram anistiados pela Lei 6.683/197933.

Os crimes cometidos pelos agentes de Estado não se encaixam no conceito

de crimes políticos, crimes por motivação política e muito menos de crimes conexos

a estes. Portanto, para a OAB seria irregular estender a anistia aos agentes de

Estado. O objetivo da respectiva ADPF n°153 não buscou declarar a nulidade da Lei

de Anistia, mas sim, obter o posicionamento do STF de que esta lei deveria ser

33 TJSP, HC 131.798.3/4-01, j. 13.10.1993.

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interpretada conforme a Constituição de 1988, declarando que a anistia concedida

não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de estado.

Portanto a procedência da ação proposta pela OAB “afastaria um dos

principais argumentos a favor da continuidade da impunidade dos agentes de

repressão: a de que eles foram anistiados” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 180).

Porém, o STF decidiu em 2010 pela improcedência da ação afirmando que a

interpretação da ADPF 153 é compatível com a Constituição de 1988. Acontece que

a interpretação concedida a Lei de Anistia operou em “um esvaziamento do conceito

de anistia enquanto perdão geral, predominando a anistia enquanto esquecimento

juridicamente comandado” corroborando para que esta continuidade da impunidade

continue vigorando (SANTOS, 2016, p. 163). Vejamos um trecho do voto do Ministro

Relator Eros Grau:

A inicial ignora no momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autentica batalha. Toda a gente que conhece a nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei n°6.683/79. A procura dos sujeitos da História conduz à incompreensão da História. É expressiva uma visão abstrata, uma visão intimista da História, que não se reduz a uma estática coleção de fatos desligados uns dos outros. Os homens não podem fazê-la senão nos limites materiais da realidade. Para que a possam fazer, a História, hão de estar em condição de fazê-la. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu, resultam fustigados os que manifestam politicamente em nome dos subversivos, inclusive a OAB de hoje contra a OAB de ontem (STF, 2010, p.21).

Podemos verificar que esta análise carrega um discurso fortemente

conservador e de caráter histórico e político, prevalecendo a perspectiva da anistia

como um pacto que não poderia ser mexido sem que se comprometesse a

estabilidade democrática. Para este “romper a boa fé dos atores sociais e os anseios

das diversas classes e instituições políticas” significaria prejudicar o “acesso à

verdade histórica” (STF, 2010, p.21). O relator rejeitou todas as preliminares

arguidas pela OAB afirmando que a revisão da Lei de Anistia não caberia ao STF,

mas sim, ao Poder Legislativo. Para este “o Poder Judiciário não está autorizado a

alterar, a dar outra redação, diversa nele contemplada, a texto normativo” (STF,

2010, p. 58). Ainda, acrescentou que o acordo teria sido amplo viabilizando o

consenso entre a oposição e os agentes do regime militar.

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No entanto, segundo relatório da Comissão de Anistia “o nome de cada

anistiado era publicado formalmente no Diário Oficial da União, ao passo que

nenhum agente da repressão política teve seu nome incluído nesses anúncios”

demonstrando que na verdade a anistia não incluía o perdão aos crimes cometidos

pelos Agentes de Estado (BRASIL;CEMDP, 2007, p. 31).

O voto do relator Ministro Eros Grau foi acompanhado pelos Ministros Carmen

Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio e Celso de Mello.

Conforme o entendimento do Procurador Regional da República Marlon

Weichert (2015) a respectiva decisão do STF enveredou por um caminho

inadequado na avaliação da validade da anistia aos agentes do Estado que

praticaram graves violações de direitos humanos. Ao tratar apenas dos fundamentos

históricos da lei e dos reflexos decorrentes da sua suposta interpretação, a Suprema

corte deixou de realizar o “indispensável juízo de constitucionalidade da norma

editada pela Lei 6.683/79, em face do parâmetro constitucional que vinculava a

atividade legislativa no momento do seu exercício” (WEICHERT, 2015, p. 120).

Explica o autor que, no exame do controle de constitucionalidade da Lei de

Anistia o parâmetro de análise a ser adotado deveria ter prestigiado a possibilidade,

ou não, da elaboração desta lei conforme a Constituição democrática de 1946. A

Constituição outorgada pelo regime militar em 1967, não serviria como paradigma

para esta análise. Isso porque “é incompreensível que se pretenda avaliar a validade

constitucional de uma norma legal sobre proteção de direitos fundamentais com a

utilização de um parâmetro decorrente de uma ordem jurídico-constitucional

outorgada por ditadores” que desde a sua implantação buscou socorrer-se

formalmente do direito como instrumento para legitimar os seus atos. Seguindo esta

lógica, as normas que tratam de assuntos diretamente ligados à sustentação do

regime de força, careceriam de legitimidade porque são incompatíveis com os

valores constitucionais de um Estado de Direito. Portanto, inclusive em matéria

penal, o intérprete constitucional não pode adotar como critério de valor para

aferição da validade material de uma norma infralegal de direitos fundamentais o

ordenamento constitucional outorgado pelos ditadores (WEICHERT, 2015).

Conforme afirma Weichert (2015, p. 124) “o Estado de Direito é quem fornece

os instrumentos para o combate à criminalidade. Fora desses limites, é o agente

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público quem envereda pelo caminho do crime, praticando a violência arbitrária”. Por

este motivo, as anistias elaboradas como artifícios para a manutenção da

impunidade destes atos não poderiam prosperar. Seguindo este exame, a Lei de

Anistia de 1979 não passaria pelo filtro da constitucionalidade, pois o

reconhecimento da anistia aos excessos praticados pelos agentes da repressão,

além de ser incompatível com os princípios republicanos e do Estado de Direito,

ainda fere a autoridade do Estado de Direito, na medida a impunidade indica à

sociedade que o Estado pode praticar qualquer ato sem que este esteja adstrito às

consequências da Lei.

Já na perspectiva do direito internacional Carvalho Ramos segue a crítica

(2011, p. 183-185) tecendo algumas considerações sobre os votos desfavoráveis à

revisão da interpretação da Lei de Anistia. Para o autor o voto do relator, Ministro

Eros Grau, não considerou a Convenção Americana de Direitos Humanos, “que

poderia auxiliar a reflexão sobre a não recepção da interpretação de extensão da

anistia a agentes da ditadura”, realizando apenas a transcrição da opinião de Nilo

Batista que considera o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos

sobre a invalidade das leis de anistia um “fantasma” que pode ser afastado, pois, o

reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana pelo Brasil ocorreu apenas

em 1998. Neste sentido, o autor esclarece que há precedentes na jurisprudência da

Corte Interamericana “que reconhecem o caráter permanente de determinadas

violações de direitos humanos, sendo inútil a alegação de que os fatos ocorreram

antes do reconhecimento da jurisdição da Corte pelo Estado réu”.

Ainda, nenhuma palavra sobre o papel do Judiciário local e da aceitação da

jurisprudência da Corte Interamericana foi dita. Na ADPF 153 não houve a reflexão

“sobre a necessidade do judiciário brasileiro interpretar a lei de anistia conforme os

direitos humanos internacionais, preferindo remeter o problema ao nosso Poder

Legislativo”. No voto da Ministra Ellen Gracie, que acompanhou o voto do relator,

também “não houve a menção a dispositivo internacional dos direitos humanos”, e

ainda, parte a fundamentação colidiu com os precedentes internacionais sobre leis

de anistia ao afirmar que “a anistia foi o preço que a sociedade brasileira pagou para

acelerar o processo pacífico de redemocratização”. O voto do Ministro Celso de

Mello, que “desconsiderou a existência do direito internacional consuetudinário de

combate à impunidade dos violadores bárbaros de direitos humanos”, ainda afirmou

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que o entendimento da jurisprudência internacional sobre leis de anistia seriam

aplicáveis somente a casos de leis de autoanistia, o que não seria o caso brasileiro

já que a transição foi fruto de um acordo político entre os dois lados (CARVALHO

RAMOS, 2011, p. 186-189).

Por outro lado, dois Ministros votaram pela procedência da ação, Ricardo

Lewandowski e Carlos Britto. Para Lewandowski há a ausência de conexão entre

crimes comuns praticados pelos agentes de Estado e os crimes políticos afirmando

a necessidade de afastar a incidência da Lei de Anistia.

O mesmo se diga quanto ao delito de tortura. Embora este crime tenha sido formalmente tipificado apenas a partir da Lei 9.455/1997, a sua prática, evidentemente, jamais foi tolerada pelo ordenamento jurídico republicano, mesmo aquele vigente no regime de exceção. Não bastasse a previsão da lei penal ordinária, que sancionava, dentre outros crimes, as lesões corporais e os maus-tratos, a Lei 4.898/1965, definia – e ainda define, por continua e vigor -, em seus arts. 3° e 4°, e as hipóteses de abuso de autoridade, arrolando, dentre elas, o atentado à incolumidade física ao indivíduo e de submissão de pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado em lei [...] Ainda que se admita, apenas argumentar, que País estivesse em uma situação de beligerância interna ou, na dicção do Ato Institucional n°14/1969 – incorporado à Carta de 1967, por força da EC n° 1/1969 – enfrentando uma “guerra psicológica adversa”, “guerra revolucionária” ou “guerra subversiva”, mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumido pelo Brasil desde o inicio do século passado (STF, 2010, p. 19).

O Ministro Carlos Ayres Britto ainda complementou considerando que a

anistia não foi “ampla, geral e irrestrita”, estando a referido parágrafo 1° do artigo 1°

da Lei 6.683/1979 de fato em colisão com a Constituição Federal. Os agentes

estatais não estariam automaticamente contemplados pela anistia porque “para a

coletividade perdoar certos infratores, é preciso que o faça por modo claro,

assumido, autêntico, não incidindo jamais em tergiversação racional, em

prestidigitação normativa, para não dizer em hipocrisia normativa” (SOARES, 2009,

p. 148).

Se considerarmos os aspectos históricos do contexto de aprovação da Lei de

Anistia podemos afirmar que esta não foi fruto de um pacto político democrático

entre a oposição e os militares. Embora o processo pela busca da anistia tenha

iniciado pelo movimento dos familiares das vítimas da repressão, é sabido que este

processo foi altamente controlado pelo regime militar sendo a respectiva lei

elaborada por um Congresso Nacional composto majoritariamente por políticos

apoiadores do regime. Não havia espaço para um verdadeiro consenso a respeito

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deste tema, que inclusive, continuou sendo um “tabu” durante muitos anos após o

fim da repressão.

Apesar de a lei ter sido extremamente importante para que a oposição

pudesse retornar do exílio e para que alguns presos políticos pudessem ser

libertados, a interpretação da anistia que colocou no mesmo pacote os atos de

repressão e os atos de resistência. Dentre os votos indeferindo o pedido da OAB,

podemos verificar inclusive o trecho em que os atos cometidos pelos agentes

públicos e os crimes cometidos pela resistência encontram-se comparados,

reforçando a existência da “Teoria dos dois demônios”,

Se é verdade que cada povo acerta as contas com o passado de acordo com sua cultura, com os seus sentimentos, com sua índole e com a sua história, o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia. E diria, se pudesse, mas não posso, concordar com a afirmação de que certos homens são monstros, que os monstros não perdoam, só o homem perdoa. Só uma sociedade superior, qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos da humanidade, é capaz de perdoar, porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é mais do que seus inimigos, é capaz de sobreviver (STF, 2010, p. 204).

Ao igualar a atuação dos agentes de Estado e dos opositores durante a

ditadura, os Ministros passam a ignorar o contexto de forte repressão aos

movimentos contrarrevolucionários impostos pela Guerra Fria. Tal comparação “faz

crer que todos os sequestros, mortes, estupros e desaparecimentos cometidos

contra opositores foram resultados de ações terroristas, ataques a bombas, assaltos

e sequestros de diplomatas” (MACHADO, 2011, p. 252-253). A afirmação de que

houve uma luta entre dois grupos rivais durante a ditadura militar desvalorizou a

busca pela verdade sendo este entendimento veemente reprovado pela

jurisprudência internacional.

Conforme entendimento do Ministério Público Federal a omissão cúmplice do

sistema de justiça com a violência praticada nos centros clandestinos e oficiais da

repressão política ditatorial contribuiu para que todos esses atos fossem

acobertados “por meio de laudos falsos, sindicâncias dolosamente preparadas para

eximir os agentes e noticias de crimes jamais apuradas”. (BRASIL, 2017, p.88)

Ainda, cabe lembrar que o pacto imposto pelo governo militar para a

sociedade foi uma condição para apaziguar o regime repressor e consequentemente

possibilitar o retorno dos presos políticos à sociedade, não sendo havendo na

verdade um contexto em que uma negociação pudesse ser realizada. A validade

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deste acordo é questionável na medida em que o pacto afrontou nitidamente a

“dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro” (BORGES, 2012, p. 89).

Acertadamente afirmou o Ministro Ricardo Lewandowski que a Lei de Anistia “longe

de ter sido outorgada dentro de um contexto de concessões mútuas, obedecendo a

uma espécie de acordo tácito [...] foi editada em meio a um clima crescente de

insatisfação popular contra o regime autoritário” que após ter exterminado a

oposição política já não possuía razão para se manter no poder (STF, 2010, p. 107).

Por sete votos a dois, o STF foi contra a revisão da Lei de Anistia julgando

improcedente o pedido realizado pela OAB na ADPF 153, mantendo a interpretação

de que a Lei de Anistia de 1979 teria assegurado anistia ampla, geral e irrestrita

indistintamente. Podemos destacar a decisão do STF da seguinte forma,

(a) a Lei da Anistia abrangeu quaisquer crimes praticados com motivação política, o que inclui os delitos praticados pelos agentes do Estado na repressão; (b) a anistia foi, portanto, bilateral; (c) a lei teve efeitos instantâneos, não sendo possível rever sua aplicação após 30 anos; (d) deve ser privilegiada uma interpretação compatível com o momento histórico, que leve em consideração a intenção do legislador da época; (e) houve um pacto político entre o governo militar e entidades da sociedade civil, que teriam anuído com a anistia aos agentes estatais para viabilizar a liberdade de presos políticos e o retorno do exílio de milhares de perseguidos do regime; (f) não seria legítimo rever esse acordo, especialmente por decisão judicial; (g) o Brasil tem tradição de conceder anistias dessa natureza, após conflitos políticos; (h) não houve autoanistia, dada a bilateralidade do benefício penal, sendo inaplicável a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que reputa inválidas normas legais instituidoras de anistia dessa natureza; e (i) a edição e a aplicação da Lei nº 6.683/79 não se sujeitam à Corte Interamericana por serem anteriores ao reconhecimento, pelo Brasil, de sua jurisdição, válida apenas para fatos ocorridos após dezembro de 1998. Portanto, o Supremo Tribunal Federal não precisava temer uma condenação internacional (WEICHERT, 2015, p. 119-120).

1

Com esta decisão o STF denegou às vítimas o direito à justiça, como

também, “reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir

legitimidade político-social à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma

reconciliação nacional” (PIOVESAN, 2011, p. 82).

Como veremos adiante, a decisão do STF foi ao desencontro do

posicionamento consolidado na Corte Interamericana que afirma a obrigatoriedade

dos Estados em investigar, processar e punir os atos contra os direitos humanos

cometidos pelos agentes da ditadura. A resistência do STF na ADPF 153 em se

adequar ao entendimento internacional sobre direitos humanos demonstra a imensa

dificuldade que ainda encontramos de harmonizar a teoria com a prática. Aceitar a

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primazia da norma mais favorável ou benéfica a pessoa humana é de extrema

importância para a construção e consolidação do Estado Democrático de Direito.

2.2 POSICIONAMENTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL (GUERRILHA DO ARAGUAIA)

Em 07 de agosto de 1995 o Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL)

e a Human Rights Watch/América propuseram à Comissão Interamericana de

Direitos Humanos uma petição contra o Brasil a respeito do desaparecimento de

membros da Guerrilha do Araguaia entre os anos de 1972 e 1975. A Guerrilha do

Araguaia foi um movimento político radial organizado pelo Partido Comunista do

Brasil (PCdoB) que abrangeu a região sul e sudeste do Estado do Pará e o oeste do

Estado do Maranhão, nos meados da década de 1960, para organizar um grupo de

resistência contra a ditadura militar. Tal propositura foi baseada na demora

injustificada e na impossibilidade de se fazer justiça no plano interno, onde desde

1982, os familiares aguardavam uma resposta do Poder Judiciário brasileiro34 sobre

a localização dos corpos dos guerrilheiros, a elucidação das circunstâncias das

mortes, e a entrega das informações que estavam sob guarda das Forças Armadas.

Na referida petição foi alegado que os fatos ocorridos na Guerrilha do

Araguaia constituem violações dos direitos garantidos pelos artigos I (Direito à vida,

à liberdade, à segurança e à integridade da pessoa), XXV (Direito de proteção

contra prisão arbitrária) e XXVI (Direito a processo regular) da Declaração

Americana de Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada “Declaração

Americana” ou “Declaração”) bem como pelos artigos 4 (Direito à vida), 8 (garantias

judiciais), 12 (Liberdade de consciência e religião), 13 (Liberdade de pensamento e

de expressão), e 25 (Proteção judicial) conjugados com o artigo 1(1) (obrigação de

respeitar direitos) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CORTEIDH,

2001).

34 Esta ação tramitou na justiça ordinária por 25 anos, entre a petição inicial (fevereiro de 1982) e o trânsito e julgado da sentença (junho de 2007), sem que as vítimas pudessem auferir por justiça.

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Durante o trâmite ante a Comissão, as organizações postulantes – CEJIL,

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) e a Comissão de

Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo (CFMDP-SP) identificaram,

além dos aspectos referentes à negação da verdade e justiça, obstáculos como, à

falta de devida diligência nas poucas investigações não penais realizadas, a não

colaboração das Forças Armadas e as medidas administrativas e legislativas que

impediram o acesso às informações, gerando um efeito direto nas medidas estatais

para esclarecer a verdade e localizar os restos mortais dos desaparecidos

(AFONSO; ROCHA, 2009).

Em 20 de maio de 1996 a Comissão ainda recebeu mais duas novas

informações mediante comunicação dos peticionários correspondentes à criação da

Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos no qual o Estado brasileiro passou a

reconhecer a responsabilidade pelos desaparecimentos provocados entre setembro

de 1961 e agosto de 1979 e, a produção de várias matérias jornalísticas que

identificaram alguns locais de sepultamento dos corpos dos guerrilheiros.

Em 06 de março de 2001, a Comissão Interamericana expediu o relatório de

admissibilidade n° 33/01, e após exaustivo processamento perante a Comissão foi

emitido o Relatório de Mérito 91/2008, nos termos do art. 50 da Convenção,

contendo determinadas recomendações35 ao Estado brasileiro. A Comissão

Interamericana concluiu,

35 “A CIDH recomendou ao Estado: 1. Adotar todas as medidas que sejam necessárias, a fim de garantir que a Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) não continue representando um obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade; 2. Determinar, através da jurisdição de direito comum, a responsabilidade penal pelos desaparecimentos forçados das vítimas da Guerrilha do Araguaia, mediante uma investigação judicial completa e imparcial dos fatos com observância ao devido processo legal, a fim de identificar os responsáveis por tais violações e sancioná-los penalmente; e publicar os resultados dessa investigação. No cumprimento desta recomendação, o Estado deverá levar em conta que tais crimes contra a humanidade são insuscetíveis de anistia e imprescritíveis; 3. Realizar todas as ações e modificações legais necessárias a fim de sistematizar e publicar todos os documentos relacionados com as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia; 4. Fortalecer, com recursos financeiros e logísticos, os esforços já empreendidos na busca e sepultura das vítimas desaparecidas cujos restos mortais ainda não hajam sido encontrados e/ou identificados; 5. Outorgar uma reparação aos familiares das vítimas, que inclua o tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de atos de importância simbólica que garantam a não repetição dos delitos cometidos no presente caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento das vítimas e o sofrimento de seus familiares; 6. Implementar, dentro de um prazo razoável, programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas brasileiras, em todos os níveis hierárquicos, e incluir especial menção no currículo de tais programas de treinamento ao presente caso e aos instrumentos internacionais de direitos humanos, especificamente os relacionados com o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura; e 7. Tipificar no seu ordenamento interno o crime de desaparecimento forçado, conforme os elementos constitutivos do mesmo estabelecidos nos instrumentos internacionais respectivos” (CIDH, 2009, p. 8).

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que o Estado brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além disso, a CIDH conclui[u] que, em virtude da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia), promulgada pelo governo militar do Brasil, o Estado não levou a cabo nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia; que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito ao acesso à informação desses familiares; e que o desaparecimento forçado das vítimas, a impunidade dos seus responsáveis, e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, p. 7).

O Brasil foi notificado em 21 de novembro de 2008 sendo outorgado o prazo

de dois meses para que o Estado informasse sobre as ações executadas a fim de

implementar as recomendações da Comissão. Diante da falta de uma

implementação satisfatória pelo Estado brasileiro, em 26 de março de 2009,

conforme o disposto nos artigos 51 e 62 da Convenção Americana, a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos submeteu o caso à jurisdição da Corte

Interamericana, com o fim de forçar o Estado brasileiro a adotar medidas de

reparação – observa-se que a Comissão Interamericana é um órgão consultivo e a

Corte Interamericana detém competência consultiva e jurisdicional.

Para a Comissão, o Brasil deve responder pela detenção arbitrária, tortura e

desaparecimento forçado de setenta pessoas, entre membros do Partido Comunista

do Brasil (PCdoB) e camponeses da região do Araguaia enfatizando que esta seria

“uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre

as leis de anistia com relação aos desaparecimentos forçados e à execução

extrajudicial e a consequente obrigação dos Estados de dar a conhecer a verdade à

sociedade e investigar, processar e punir as graves violações de direitos humanos”

(CORTEIDH, 2010, p. 3).

Na fase processual, o Estado brasileiro exerceu o seu direito de defesa

alegando perante a Corte Interamericana três exceções preliminares: a)

incompetência da Corte para examinar supostas violações que teriam ocorrido antes

da competência contenciosa do Tribunal, ou seja, fatos anteriores a 10 de dezembro

de 1998; b) falta de esgotamento dos recursos internos e; c) falta de interesse

processual da Comissão e dos representantes. Ainda em audiência pública alegou

como exceção preliminar a regra da quarta instancia com relação a um fato que

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qualificou como superveniente. Todas as alegações foram indeferidas pela Corte

Interamericana.

Quanto à alegação de ausência de jurisdição da Corte para os fatos

anteriores a 10 de dezembro de 1998, a Corte considerou que em respeito ao

princípio da irretroatividade a Corte interamericana somente pode analisar os fatos

ocorridos após o respectivo reconhecimento pelo Estado da sua jurisdição. Porém,

conforme jurisprudência consolidada, no caso de atos de caráter contínuo ou

permanente a sua competência para julgar prevalece na medida em que estes atos

perduram durante todo o tempo em que o fato continua. Assim, a Corte decidiu que

poderia analisar todos os fatos e omissões ocorridos após 10 de dezembro de 1998,

ou seja, a falta de investigação, julgamento e sanção das pessoas responsáveis

pelos desaparecimentos forçados e execução extrajudicial, a falta de efetividade dos

recursos judiciais de caráter civil para obter informações sobre os fatos, as restrições

ao direito de acesso à informação e o sofrimento dos familiares.

Quanto à suposta falta de esgotamento dos recursos internos – requisito

essencial para propor uma ação perante a comunidade internacional – o Estado

brasileiro teve a oportunidade de ter alegado a suposta falta de esgotamento dos

recursos internos na etapa de admissibilidade do procedimento perante a Comissão,

porém, as alegações brasileiras relativas à Arguição de Descumprimento, à Ação

Civil Pública, à possibilidade de interposição de uma ação penal subsidiária e às

diversas iniciativas de reparação, foram expostas pelo Brasil somente na fase de

Contestação perante a Corte (MAZZUOLI, 2011) contrariando o entendimento

consolidado de que não é tarefa da Corte, e nem da Comissão, identificar ex officio

quais são os recursos internos a serem esgotados.

Quanto à falta de interesse processual a Corte se manifestou afirmando que a

“responsabilidade internacional do Estado se origina imediatamente após ter sido

cometido um ato ilícito segundo o Direito Internacional, e que a disposição de

reparar esse ato no plano interno não impede a Comissão ou Corte de conhecer um

caso” (CORTEIDH, 2010, p. 14). O Tribunal considerou, portanto, que as ações que

o Estado afirmou que adotou para reparar as supostas violações cometidas no

presente caso, ou evitar sua repetição não têm efeito sobre o exercício da

competência da Corte para dele conhecer.

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Em relação à regra da “quarta instância”, a Corte estabeleceu que possui uma

clara doutrina demonstrando que a mesma não é um tribunal de apelações e nem

uma quarta instância. A sua legitimação encontra-se na revisão de supostos erros

de fato ou de direito cometidos pelos tribunais nacionais. Deste modo, a Corte

afirmou que a demanda apresentada pela Comissão Interamericana “não pretende

revisar a sentença do Supremo Tribunal Federal”, mas sim, estabelecer se “o Estado

violou determinadas obrigações internacionais dispostas em diversos preceitos da

Convenção Americana, em prejuízo das supostas vítimas”. Para a Corte, “o

esclarecimento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas obrigações

internacionais” pode acarretar no exame de processos internos, inclusive das

decisões dos Tribunais Superiores. Neste sentido, a Corte não pretende realizar o

controle de constitucionalidade, mas sim, realizar o controle de convencionalidade,

analisando a incompatibilidade das leis nacionais com as “obrigações internacionais

do Brasil contidas na Convenção Americana” (CORTEIDH, 2010, p. 20).

A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos foi

proferida em 24 de novembro de 2010 decidindo que:

O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma (CORTEIDH, 2010, p. 113).

Seguindo os seus precedentes, tais como o caso Castillo Páez versus Peru, o

caso Bairro Altos versus Peru, a caso Almonacid Arellano e outros versus Chile, e o

caso La Cantuta versus Peru, a Corte Interamericana condenou duramente o Brasil.

A sentença prolatada, por unanimidade, decidiu:

a) Violação ao direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas

A Corte ainda decidiu que o Estado foi responsável pela violação do direito à

integridade pessoal previsto no art. 5.1 da Convenção em prejuízo dos familiares

das vítimas. A Corte afirmou que se pode presumir um dano à integridade psíquica e

moral dos familiares diretos de vítimas de certas violações de direitos humanos,

aplicando uma presunção juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e filhos,

esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes.

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b) A responsabilidade do Estado pelo desaparecimento forçado: uma violação

permanente:

A Corte reiterou que o desaparecimento forçado de pessoas tem caráter

permanente e persiste enquanto não se conheça o paradeiro das vítimas ou que

seja encontrado os seus restos mortais. A omissão do Brasil referente a esses fatos

consistiu em uma infração ao dever de prevenção de violações dos direitos à

integridade pessoal e à vida, estabelecidos nos artigos 5° (direito à integridade

pessoal) e 4° (direito à vida) da Convenção Americana, ainda na hipótese em que os

atos de tortura ou de privação da vida destas pessoas não possam ser

demonstrados no caso concreto. A Corte ainda concluiu que o desaparecimento

forçado também implica a vulneração do direito ao reconhecimento da personalidade

jurídica (art. 3° da Convenção) e da liberdade pessoal (art. 7° da Convenção), uma

vez que o desaparecimento busca não somente uma das mais graves formas de

subtração de uma pessoa de todo o âmbito do ordenamento jurídico, mas também

negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo ou situação de

indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado.

c) Superação das alegações de prescrição e a falta de tipificação penal

prévia:

Os representantes expuseram para a Corte que a Lei de Anistia, alegações

de prescrição e a falta de tipificação penal, são três obstáculos legais à investigação

e à punição dos fatos ocorridos durante a ditadura militar. Neste sentido, a Corte

indicou que os atos de caráter continuo ou permanente, como os desaparecimentos

forçados, perduram durante todo o tempo em que o fato continua, sendo este

entendimento reconhecido reiteradamente pelo Direito Internacional de Direitos

Humanos. A falta de tipificação desse crime viola o art. 2° da Convenção impondo

ao Estado a obrigação de adotar as providencias de toda índole para que ninguém

sejam privado da proteção judicial e do exercício do direito. Deste modo, o principio

da legalidade não deve prejudicar o julgamento e a sanção dos atos considerados

delitos pela comunidade internacional.

d) Violação ao direito à verdade:

A Corte condenou o Brasil pela violação do direito da liberdade de

pensamento e de expressão previsto no art. 13 da Convenção, pois, foi negado aos

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familiares das vítimas o direito de buscar a verdade quanto aos fatos ocorridos

durante a Guerrilha do Araguaia. Deste modo a Corte Interamericana ressaltou a

importância da instituição e do funcionamento de uma Comissão da Verdade

integrando o conjunto de medidas de promoção do acesso à informação e revelação

da verdade.

e) A negação da anistia a todos os agentes de repressão da ditadura militar:

A Corte considerou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 que

impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são

incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. É de

entendimento da Corte que,

Quanto à alegação das partes a respeito de que se tratou de uma anistia,

uma auto-anistia ou um “acordo político”, a Corte observa, como se

depreende do critério reiterado no presente caso (par. 171 supra), que a

incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves

violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas

“autoanistias”. Além disso, como foi destacado anteriormente, o Tribunal,

mais que ao processo de adoção e à autoridade que emitiu a Lei de Anistia,

se atém à sua ratio legis: deixar impunes graves violações ao direito

internacional cometidas pelo regime militar. 252 A incompatibilidade das leis

de anistia com a Convenção Americana nos casos de graves violações de

direitos humanos não deriva de uma questão formal, como sua origem, mas

sim do aspecto material na medida em que violam direitos consagrados nos

artigos 8 e 25, em relação com os artigos 1.1. e 2 da Convenção

(CORTEIDH, 2010, p. 65).

Após a sentença de improcedência do STF na ADPF 153 sobre a invalidade

da interpretação da Lei de Anistia, a Corte Interamericana afirmou que o Brasil é

responsável de forma permanente pelos desaparecimentos forçados executados

durante a ditadura militar. A Corte no exercício do controle de convencionalidade

declarou que a Lei de Anistia carece de efeitos jurídicos em relação aos crimes de

graves violações de direitos humanos, não podendo continuar representando um

obstáculo para que os fatos deste período sejam devidamente investigados,

processados e julgados pelo ordenamento jurídico nacional.

Deste modo, a Corte ressaltou a importância do Estado brasileiro em adequar

o seu ordenamento jurídico nacional, retirando-se da condição de ilegalidade frente

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ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirmando a importância da

prevalência desses direitos frente às tentativas de perpetuar a impunidade dos

crimes cometidos.

Diante do que foi exposto, denota-se um aparente conflito entre os

entendimentos do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo

anunciada à sentença, ressoaram na mídia algumas declarações dos Ministros do

STF rejeitando-a, afirmando que a decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos somente valeria “no plano moral”, “só no plano internacional”, “só no

campo de convencionalidade”, “só no plano político” (MAZZUOLI, 2011, p. 52).

Segundo afirma Mazzuoli (2011, p. 52) tais declarações dos Ministros do STF

encontram-se equivocadas e se explicam em razão da tradicional conivência de

setores do Judiciário Brasileiro com a chamada “legalidade autoritária”.

Tais declarações partem da premissa de um ordenamento jurídico dualista,

onde o direito interno não possui nenhuma relação com a ordem internacional. Tal

entendimento tem sido rechaçado pela comunidade internacional, sobretudo, a partir

da entrada em vigor da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969,

que adota nitidamente o sistema monista internacionalista. Para esta teoria o direito

é uno e indivisível e conforme previsão do Artigo 27 da Convenção de Viena “uma

parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o

inadimplemento de um tratado”. Desta forma, quando um Estado é parte de tratados

internacionais, cabe aos três poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – observar

o seu efetivo cumprimento não podendo se escusar de tal obrigação (MAZZUOLI,

2011).

O cumprimento da sentença da Corte Interamericana proferida no Caso

Gomes Lund poderá representar um grande passo para a concretização da justiça

de transição brasileira. Ineditamente o cumprimento desta sentença representa uma

ação conjunta entre os três poderes do Estado, que deverão mover esforços para

adequar nosso ordenamento e efetivar a promoção dos direitos humanos. Esta

sentença representa muito além da busca pela efetivação da justiça, representa o

nosso interesse de que tais atrocidades nunca mais aconteçam em nossa

sociedade.

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2.3 UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE AS DECISÕES DO STF E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS?

Como podemos constatar as decisões proferidas pelo STF e pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos seguem em lados opostos. De um lado, o STF

no exercício do controle de constitucionalidade decidiu que a interpretação da Lei de

Anistia é constitucional e, de outro, a Corte Interamericana exercendo o controle de

convencionalidade afirmou que leis de autoanistia são inválidas na medida em que

promovem a impunidade das graves violações de direitos humanos.

Foi dito também, que o cumprimento da sentença Gomes Lund é uma

obrigação do Estado brasileiro, cabendo aos três poderes dar cumprimento das

obrigações de fazer contidas na respectiva sentença e ao Ministério Público a tarefa

de atuar no caso de inércia desses poderes.

Ao Poder Executivo incumbe boa parte das obrigações de fazer impostas na

sentença. Recai no Ministério da Justiça o dever de investigar os desaparecimentos

forçados e outros atos de violação de direitos humanos cometidos pelos agentes da

repressão, assim, deve o Poder Executivo formar uma equipe de trabalho,

supervisionado pelo Ministério Público Federal, para apurar os fatos. Ainda, deve o

Poder Executivo ocupar-se da entrega dos arquivos e documentos da ditadura, para

que os restos mortais dos desaparecidos possam ser encontrados e para que

possamos saber o que aconteceu durante este período. Também incumbe a este

órgão a disponibilidade do tratamento médico adequado aos familiares das vítimas,

a publicação da sentença da corte e a edição de um livro eletrônico, dando

publicidade aos fatos ocorridos (CARVALHO RAMOS, 2011).

Ao Poder Legislativo cabe a aprovação de uma lei instituindo a Comissão da

Verdade, a fim de promover a apuração e esclarecimento público das graves

violações de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado, e ainda, a

tipificação do delito de desaparecimento forçado. E ao Poder Judiciário cabe dar o

cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana negando as tentativas

dos autores das graves violações de direitos humanos de interromper tais esforços,

atuando em consonância com a jurisprudência internacional sobre direitos humanos

(CARVALHO RAMOS, 2011).

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Apesar de contrárias as decisões, ambas são plenamente válidas no

ordenamento jurídico brasileiro. Diante disso, como devem atuar os agentes

nacionais encarregados de dar cumprimento à condenação da Corte?

Primeiramente incumbe destacar que a adesão do Brasil à Convenção

Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdição obrigatória da

Corte Interamericana foi um ato soberano e voluntário do Estado brasileiro que,

através da Presidência da República e do Congresso Nacional, decidiu integrar o

sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Incumbe adicionar que tal

decisão não decorreu apenas de uma vontade política em se adequar aos

parâmetros internacionais de proteção a esses direitos, mas também, do

cumprimento de uma exigência prevista na própria Constituição Federal de 1988.

Conforme afirma Weichert (2011) a aceitação da jurisdição e da competência

da Corte Interamericana concretiza seguintes preceitos constitucionais: art. 4°, II ( A

República Federativa rege-se nas suas relações internacionais pelo principio da

prevalência dos direitos humanos); art. 5° §2° (Os direitos e garantias expressos

nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por

ela adotados ou dos tratados internacional em que o Brasil seja parte); e o art. 7°

dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (O Brasil propugnará pela

formação de um tribunal internacional de direitos humanos).

O ato soberano do Estado brasileiro em aceitar a jurisdição da Corte

Interamericana, limitando a competência do STF, não afronta a Constituição, mas

sim, dá efetivo cumprimento ao que nela está prevista.

A Corte Interamericana - órgão máximo para interpretação da Convenção

Interamericana de Direitos Humanos – em sua competência contenciosa age de

forma complementar ao ordenamento nacional quando da sua transgressão ou

omissão quanto às normas contidas na Convenção. Deste modo, a sua atividade

ocorre na falta do amparo do Estado à proteção dos direitos humanos.

No exercício da sua jurisdição, a Corte não revogou a decisão proferida pelo

STF na ADPF 153. O que se verificou foi à falta do exercício do controle de

convencionalidade pelo respectivo tribunal, desconsiderando as obrigações

internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas

estabelecidas nos arts. 8° (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção

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Americana, em relação com os arts. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos e

liberdades nela reconhecidos) e 2 (dever de adotar as disposições quanto o

exercício dos direitos e liberdades) do mesmo instrumento.

Na sua analise verificou-se que a decisão proferida pelo STF na ADPF 153

não estava em consonância com a jurisprudência internacional que reiteradamente

vem afirmando que as leis de autoanistia promovem a impunidade, portanto, devem

ser invalidadas e carecem de valor jurídico.

Quando um Estado se recusa a dar cumprimento a uma sentença da Corte

Interamericana após ter aceitado voluntariamente a sua jurisdição, está atuando

contrariamente ao princípio da boa fé. Neste sentido o Tratado de Viena (1969) é

claro ao afirmar que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito

interno para justificar o inadimplemento de um tratado.

O caminho para que o STF possa recusar a autoridade da Corte

Interamericana seria pela existência de algum vício na constitucionalidade dos atos

de ratificação, aprovação e promulgação da Convenção e da aceitação da jurisdição

internacional no plano interno. Ou seja, o STF teria que demonstrar que o Presidente

da República não possuía competência para ratificar e promulgar a Convenção e

tampouco o Congresso Nacional para aprová-la, o que não se verificou, pois o Brasil

seguiu todos os requisitos constitucionais (WEICHERT, 2011).

Ainda mais, para sustentar que a jurisdição da Corte Interamericana não é

obrigatória, teria o Brasil que denunciar integralmente a Convenção Americana

retirando o país do sistema interamericano de direitos humanos, o que é geraria um

enorme retrocesso.

Mesmo com a denúncia, o Brasil ainda continuaria obrigado ao cumprimento

das sentenças já proferidas pela Corte Interamericana por força da previsão do art.

78 da Convenção, e ainda, responderia por todas as sentenças de casos propostos

por violações ocorridas até um ano após a data da denuncia (WEICHERT, 2011).

Conforme entendimento de Carvalho Ramos,

Do ponto de vista do direito brasileiro, entendemos que a denuncia da Convenção seria, por sua vez, inconstitucional. De fato, a Convenção tem a natureza de norma materialmente constitucional. Logo, seria aplicável a proibição do retrocesso cuja essência é prevista no art. 60, §4°, IV, da própria Constituição: não se admite sequer emenda constitucional que tenda

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a abolir os direitos e garantias individuais. Assim, o efeito cliquet ou proibição do retrocesso impediria que a denuncia brasileira (em consequência natural da postura negacionista) pudesse ser feita sem que fosse gerado verdadeiro trauma na coerência da interpretação dos direitos humanos no Brasil (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 216).

Na mesma linha Mazzuoli (2011, p. 61-65) afirma que mesmo que a denuncia

seja tecnicamente possível, “esta seria totalmente ineficaz sob o aspecto pratico,

uma vez que seus efeitos continuam operando no nosso ordenamento jurídico, pelo

fato de eles serem clausulas pétreas do texto constitucional”. Desta forma, com o ato

de denuncia o Estado passa a não ter responsabilidade apenas no plano

internacional, mas no plano nacional nada muda “uma vez que eles já se

encontrarão petrificados no nosso sistema de direitos e garantias”.

Um caminho possível a ser seguido para solucionar o conflito aparente

desses dois entendimentos pode ser encontrado na proposta de Carvalho Ramos

(2011). Segundo o professor de direito internacional da Universidade de São Paulo

(USP) o conflito entre as decisões é apenas aparente podendo ser solucionado

através da hermenêutica. Em sua teoria o autor propõe o uso de dois critérios para

a análise.

O primeiro seria um critério preventivo o qual o autor chamou de “diálogo das

Cortes ou fertilização cruzada”. O autor entende que o STF ao tomar as suas

decisões deve observar a jurisprudência da Corte Internacional uma vez que ambas

cumprem a mesma missão de assegurar o respeito à dignidade humana e aos

direitos fundamentais, evitando assim, o surgimento de divergências entre a

jurisprudência nacional e a internacional. Deste modo, o autor sugere a instalação

de foro ou de uma secretaria permanente “unindo os Poderes Legislativo, Executivo

e Judiciário, além do Ministério Público Federal, Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB), Conselhos nacionais do Ministério Público e da Justiça”

para a sua implementação (CARVALHO RAMOS, 2009, p. 283).

No caso Gomes Lund não é mais possível usar este critério porque a

divergência já existe. Deste modo, passamos ao segundo critério o qual o autor

chamou de “Teoria do Duplo Controle ou duplo crivo”.

De acordo com este critério um ato interno para ser considerado válido, teria

que passar por um duplo controle, ou seja, é reconhecida a atuação em separado do

controle de constitucionalidade e do controle de convencionalidade. Assim, para que

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um ato possa ser considerado válido este precisaria passar pelo controle de

constitucionalidade realizado de forma concentrada pelo STF e também pelo

controle de convencionalidade da Corte Interamericana. Para o autor esta separação

de atuações possibilita dirimir o conflito aparente entre a decisão do STF e da Corte

Interamericana.

Complementando essa ideia, Weichert (2011) afirma que para que os órgãos

internos de persecução penal possam discernir qual das decisões seguir, estes

devem observar os limites da competência de cada um dos Tribunais. Assim,

quando estivermos diante de violações de direitos humanos a decisão a ser seguida

deve ser o da Corte Internacional dada sua especial competência. Para os delitos

que não se refiram aos direitos humanos, prevalece o efeito vinculante do

julgamento da ADPF.

Com relação à anistia, a própria Corte Interamericana não considerou inválida

a Lei de Anistia para “qualquer violação de direitos humanos”, mas sim, para

aquelas consideradas “graves violações de direitos humanos” (WEICHERT, 2011, p.

230). Assim, quando os fatos se tratarem, por exemplo, de atos de tortura, execução

sumária ou desaparecimento forçado, o entendimento da Corte Interamericana deve

ser observado.

Esta é a posição institucional que vem sendo adotada pelo Ministério Público

Federal (MPF) para dar cumprimento à sentença da Corte Interamericana de

Direitos Humanos no Caso Gomes Lund.

Conforme relatório elaborado em 2017 pela instituição sobre as atividades de

persecução penal desenvolvido pelo MPF em matéria de graves violações de

direitos humanos cometidos por agentes do Estado durante o regime de exceção a

afirmação é de que no caso da Lei de Anistia o STF efetuou o controle de

constitucionalidade desta norma, não se pronunciando a respeito da compatibilidade

da causa de exclusão da punibilidade com os tratados internacionais de direitos

humanos ratificados pelo Brasil (BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017).

Isso porque, conforme entendimento de Carvalho Ramos (2011), o controle de

convencionalidade não era objeto da ação da análise,

O STF, que e o guardião da Constituição [...] exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153, a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da ditadura militar e a interpretação adequada da

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Lei de Anistia e esse formato amplo de anistia e que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a Corte de San Jose e a guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei de Anistia não e passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Mais: sequer as alegações de prescrição, bis in idem e irretroatividade da lei penal gravior merecem acolhida. Com base nessa separação vê-se que e possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de San Jose. [...] No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destrocada no controle de convencionalidade. Por sua vez, as teses defensivas de prescrição, legalidade penal estrita etc., também deveriam ter obtido a anuência dos dois controles. Como tais teses defensivas não convenceram o controle de convencionalidade e dada a aceitação constitucional da internacionalização dos direitos humanos, não podem ser aplicadas internamente (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 217-218).

Assim, este autor destaca que não cabe alegar coisa julgada ou efeito

vinculante para obstar as ações penais que visam cumprir a sentença da Corte

Interamericana justificando a não rescisão ou nulidade da decisão da ADPF 153.

Segundo o “Documento 1” de 21 de março de 2011, homologado pelos

membros da 2° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, para não cumprir as

obrigações de persecução penal seria necessário suscitar no STF a declaração de

inconstitucionalidade do reconhecimento da jurisdição da Corte ou pedir

interpretação conforme à Constituição, objetivando de definir se as sentenças da

Corte só devem ser cumpridas se estiverem alinhadas com a interpretação do STF

(BRASIL. MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, 2017). O que geraria o esvaziamento

da proposta de adesão à jurisdição da Corte Interamericana, pois suas sentenças

tornar-se-iam meras confirmações, caso estivesse em consonância com o

entendimento do tribunal nacional, ou seriam rechaçadas caso fossem contrárias,

restando enfraquecidas as propostas em torno da proteção aos direitos humanos.

A proposta de uma Corte Internacional surgiu justamente para evitar que os

tribunais nacionais atuassem distorcendo a aplicação dos tratados internacionais de

direitos humanos criando uma “Convenção Americana de Direitos Humanos

paralela” (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 176).

Deste modo é importante que as instituições insistam no cumprimento da

sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos limites de

sua respectiva aplicabilidade, buscando dar cumprimento efetividade ao

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compromisso assumido pelo Brasil na busca da adequação do ordenamento jurídico

nacional ao que consta na jurisprudência internacional sobre direitos humanos.

3 A CRIAÇÃO DE COMISSÕES DA VERDADE PARA APURAÇÃO DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS

Apesar do primeiro exemplo da instituição de uma Comissão da Verdade ter

ocorrida na Uganda através da criação da “Comissão para Investigação de

Desaparecimento de Pessoas” em 1974, o desenvolvimento do seu modelo ocorreu

principalmente na América Latina na década de 1980 após as sucessivas

restaurações democráticas surgidas com a queda dos regimes militares.

A busca pela verdade tornou-se essencial para “fomentar o desenvolvimento

da democracia e reforçar o principio republicano” (SAMPAIO; ALMEIDA, 2009,

p.250). Neste sentido passou a ser entendido que verdade não deveria ficar restrita

apenas às vítimas e aos seus familiares. Construiu-se o fomento do “direito à

verdade” no qual a sociedade passa a ter acesso aos verdadeiros fatos ocorridos

durante os períodos de exceção visando evitar a repetição dessas praticas

sistemáticas contra os direitos humanos pelas gerações futuras.

As Comissões da Verdade são organismos oficiais temporários criados pelo

governo nacional para promover a apuração e esclarecimento público das graves

violações de direitos humanos praticados sistematicamente pelo Estado durante um

período específico. Esses mecanismos oficiais de apuração de graves violações de

direitos humanos são normalmente aplicados em países emergentes de períodos de

exceção ou guerras civis (WEICHERT, 2011). Constituem um mecanismo importante

para a construção da memória e da verdade trazendo fatos que até então eram

desconhecidos ou eram divulgados conforme versões oficiais que não condiziam

com a verdade. Desde modo as Comissões da Verdade possibilitam oferecer uma

perspectiva histórica ampla no qual elaboram relatórios a partir de documentos,

testemunhos. Conforme exposto no relatório da Comissão Nacional da Verdade:

Para o exercício de seu mandato, uma comissão da verdade deve realizar diligências nos lugares de interesse para suas investigações; promover, perante órgãos competentes, a proteção de testemunhos; e assegurar a

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produção e conservação de provas, cabendo especial atenção às provas de interesse da Justiça. Devem ser adotadas medidas técnicas e sanções penais para impedir subtração, destruição, dissimulação ou falsificação dos arquivos, de modo a evitar a impunidade dos autores das graves violações de direitos humanos. Deve ainda ser sublinhada a importância de preservação dos arquivos das próprias comissões, evidenciando-se as condições que regem o acesso e, em caráter excepcional, a determinação da confidencialidade. No que se refere ao poder de nomeação dos responsáveis pelas graves violações, a comissão da verdade deve referir-se a todas as pessoas envolvidas, sejam aquelas que as ordenaram ou as que as cometeram, na condição de autores ou cúmplices. Nesse contexto, aos nomeados deve ser conferida a oportunidade de expor sua versão dos fatos (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2012, p. 33).

Deste modo podemos extrair que dentre as atribuições das Comissões da

Verdade estão: receber testemunhos, informações e dados; requisitar informações e

documentos; convocar entrevistas de pessoas que possam saber sobre os fatos;

determinar a realização de perícias e diligencias para recuperar informações,

documentos e dados; promover audiências públicas; e promover parceria com

outros órgãos para o intercambio de informações, dados e documentos para auxiliar

na investigação dos fatos.

O trabalho de uma Comissão da Verdade permite identificar as estruturas da

violência, suas ramificações nas diversas instâncias da sociedade – forças armadas,

polícia, poder judicial, igreja, etc –, entre outros fatores imensos nesta problemática

(SALMÓN, 2011, p.248). Para tanto os seus membros devem possuir garantias

como a inamovibilidade e imunidade durante o mandato, e as vitimas possuem a

assistência psicológica e social, sendo-lhes oferecida a opção de confidencialidade.

Não há uma única maneira de lidar com o passado marcado por graves

violações enquanto a verdade não for totalmente revelada, sendo diversas as

formas de expressão do direito à memória e à verdade.

Antes que abordarmos sobre a Comissão Nacional da Verdade no Brasil,

iremos abordar primeiramente sobre a Comissão Nacional sobre Pessoas

Desaparecidas (CONADEP), criada na Argentina, pois esta foi a primeira comissão

da verdade da América Latina e seus mecanismos tornaram-se paradigma para

outras comissões.

3.1 ARGENTINA: LA COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP)

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A primeira Comissão da Verdade estabelecida no Cone Sul foi a La Comisión

Nacional Sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com sede no Centro

Cultural de San Martin na Cidade de Buenos Aires / Argentina. A CONADEP foi

criada através do Decreto 187/83 pelo governo Raúl Alfonsín, em 1983, como parte

da política do Estado instituída para esclarecer o passado violento que havia

assolado a Argentina. A criação da CONADEP foi uma das medidas do presidente

Alfonsín para concluir o processo de transição política da Argentina atendendo as

demandas por verdade e justiça das vítimas.

Dentre as funções específicas dessa Comissão estão:

a) receber reclamações/denúncias e provas sobre aqueles eventos e enviá-los imediatamente à justiça se estiverem relacionadas com os alegados cometimentos de crimes; b) averiguar o destino e paradeiro das pessoas desaparecidas, bem também qualquer outra circunstância relacionada com a sua localização; c) determinar a localização de crianças raptadas da tutela de seus pais ou guardadores sob alegação de repressão ao terrorismo, e fornecer uma intervenção apropriada aos tribunais ou organismos de proteção à criança; d) denunciar à justiça qualquer tentativa de ocultamento, subtração ou destruição de provas relacionadas com os direitos que se pretende esclarecer; e) emitir um relatório final com uma explicação detalhada dos feitos investigados, cento e oitenta (180) dias a partir de sua constituição (ARGENTINA. DECRETO LEI 187/83, p. 1).

A Comissão tinha o poder para requerer ao Poder Executivo, aos seus

organismos dependentes, entidades autárquicas e das forças armadas e de

segurança, o fornecimento de informações, dados e documentos, bem como o

acesso a lugares importantes para a elucidação dos fatos. Ainda ressaltou que os

funcionários e os organismos estão obrigados a atender ao requerimento da

Comissão quando solicitado.

Ernesto Sábato, escritor argentino, foi eleito o presidente da Comissão sendo

encarregado de enfrentar a tarefa de promover suas atividades. Cinco secretarias

foram criadas: 1. Secretaría de Recepcíon de Denuncias; 2. Secretaría de

Documentación y Procesamiento; 3. Secretaría de Procedimientos; 4. Secretaria de

Asuntos Legales; 5. Secretaria Administrativa. Além desta estrutura ainda as

organizações de direitos humanos e os organismos internacionais como a

Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos

(OEA) forneceram recursos humanos e técnicos. Durante o período de um ano a

CONADEP realizou audiências públicas, entrevistas e mesas-redondas, contando

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com forte presença da mídia para que seus atos fossem divulgados. Mais de mil e

trezentos ofícios foram expedidos, cem entrevistas foram concedidas pelo

presidente da Comissão, trinta audiências públicas e sessenta coletivas de imprensa

(CONADEP, 2013).

Em 1984 foi publicado o relatório final Nunca Más, dividido em seis capítulos:

I. A ação repressiva; II. Vítimas; III. O Poder Judiciário durante o período que

ocorreu o desaparecimento forçado de pessoas; IV. Criação e Organização da

Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas; V. O respaldo legal da

repressão; VI. Recomendações e Conclusões.

Durante a investigação foi constatado uma metodologia repressiva projetada

para produzir sequestros, desaparecimentos e torturas foram sistematicamente

aplicados. O relatório afirmou que 62% dos sequestros ocorriam do domicílio da

vítima, 24,6% em locais públicos, 7% eram sequestrados no trabalho, 6%

sequestrados no local de estudo. Cerca de 600 pessoas foram sequestradas antes

do golpe militar de 1976 e que 8960 pessoas encontravam-se desaparecidas desde

então. Os sequestros ocorriam em forma de detenção nos períodos da noite ou ao

amanhecer antes que os membros da família pudessem agir. Um grupo entre cinco

a seis agentes eram enviados as casas para executar as operações, fortemente

armados, intimidando tanto as vítimas quanto seus familiares. Crianças também

foram sequestradas e entregues a adoção. A tortura foi sistematicamente aplicada

nos 340 centros de detenção clandestinos existentes no país, onde faltava comida e

as condições sanitárias eram precárias36 (CONADEP, 2013).

Apesar desta Comissão não possuir competência para julgamentos, a

investigação da CONADEP resultou em provas comprobatórias sobre os crimes de

lesa humanidade cometidos durante o regime culminando em diversas ações

judiciais. A Comissão foi dissolvida no momento da apresentação do relatório final.A

partir da iniciativa da CONADEP outras comissões da verdade foram instaladas

como a do Chile, África do Sul e Peru.

36 As condições durante o tempo de detenção eram deploráveis. Os sequestrados permaneceram amontoados em colchões sujos com sangue, urina, vômitos e transpiração. Em alguns casos, eles tiveram que atender suas necessidades em baldes, que foram posteriormente removidos.

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3.2 OUTRAS COMISSÕES37:

Escolhemos abordar sobre algumas outras comissões além da Argentina,

como a do Chile, da África do Sul e do Peru, apenas para termos um panorama de

como as outras Comissões ocorreram depois do caso argentino. Isso não quer dizer

que só houve essas comissões. No mundo nós tivemos comissões da verdade na

Alemanha, Bolivia, Canadá, Chade, Colombia, Congo, Coreia do Sul, El Salvador,

Equador, Estados Unidos, Gana, Granada, Guatelama, Haiti, Ilhas Maurício, Ilhas

Salomão, Indonésia, Iugoslávia, Libéria, Marrocos, Nepal, Nigéria, Panamá,

Honduras, Paraguai, Quenia, Ruanda, Serra Leao, Sri Lanka, Timor Leste, Togo,

Uganda, Zimbábue. Porém como não são objeto de nossa pesquisa não iremos

abordá-las neste trabalho.

a) Chile: Comissão da Verdade e Reconciliação (Comisión Verdad y Reconciliación, Comisión Rettig e Comisíon Valech)

A Comissão da Verdade e Reconciliação (Comisión Rettig) chilena foi

instituída após as eleições de 1989 apurando os fatos ocorridos durante o regime

militar de Augusto Pinochet, através do Decreto Supremo n° 355 de 25 de abril de

1990. O principal objetivo foi esclarecer a verdade sobre as violações de direitos

humanos cometidos entre 11 de setembro de 1973 e em 11 de março de 1990. Após

nove meses, em 8 de fevereiro de 1991, a Comissão entregou ao ex-presidente da

República, Patricio Aylwin Azócar, o Relatório da Comissão Nacional de Verdade e

Reconciliação. Foram recebidas 3550 reclamações dos quais 2296 casos foram

considerados aceitos.

Em 2003, outra Comissão foi instituída no governo do Presidente Ricardo

Lagos Escobar, a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (Comisíon

Valech). A Comissão ouviu trinta e cinco mil testemunhos e anunciou em 2004 vinte

37 Vide: Comissões de Memória e Verdade Mundo. Disponível em: <http://dhnet.org.br/verdade/mundo/index.htm>.

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e oito mil casos de vítimas oficiais. O relatório elaborado por esta Comissão restou

em dez capítulos: 1. Apresentação; 2. Funcionamento da Comissão; 3. Contexto; 4.

Prisão política e Tortura; 5. Métodos de Tortura; 6. Locais de detenção; 7. Perfil das

vitimas; 8. Consequencias da prisão e da tortura; 9. Propostas de Reparação; 10.

Palavras finais.

Em 2011, durante o governo do Presidente Sebastián Piñera a Comissão

Nacional sobre Prisão Política e Tortura (Comisíon Valech) entregou mais um

relatório que atualizou o de 2004, acrescentando nove mil e oitocentas vítimas

oficiais. Deste modo o número de vítimas oficiais do período da ditadura de Pinochet

para quarenta mil, duzentos e oitenta pessoas.

b) Africa do Sul: Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation Commission)

O primeiro passo para a instauração do processo de justiça de transição na

África do Sul ocorreu em 1992 com a realização do plebiscito que contou apenas

com a participação de pessoas brancas. Este aprovou a revogação das leis raciais.

Em 1994 ocorreram as primeiras eleições multirraciais elegendo Nelson Mandela.

Duas conferências foram realizadas após as eleições. A primeira discutia o dossiê

Dealing with the past: truth and reconciliations in South Africa onde especialistas do

leste europeu e da America Latina compartilharam suas experiências. Na segunda

conferência aconteceu após a instauração de inquéritos de investigação sobre

abusos de direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional nos campos de

exílios (PEREIRA, 2016). Neste momento se estabeleceu que a verdade iria ser

apurada através da Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation

Commission)

Com o fim do regime de apartheid38 Nelson Mandela, em 1995, instituiu a

Comissão da Verdade e Reconciliação (Truth & Reconciliation Commission). A 38 O Apartheid estava correlacionado com o exacerbado racismo, dominação militar e econômica, além da dominação branca. Ele foi institucionalizado em 1948, quanto o Partido Nacional toma o poder, tornando legal um sistema totalitário, de descriminação racial, espacial, jurídico, político, econômico, social e cultural. Em 1961 a Assembleia Geral da ONU criou o Comitê Especial Contra o Apartheid, marco institucional que foi vital para que os governos e as ONGs pudessem praticar ações antiapartheid.(PEREIRA, 2016, p. 96)

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Comissão serviu como principal instrumento transicional africano adotando o modelo

restaurativo, ao invés do modelo retributivo ou punitivo, como meio para buscar a

verdade. Este modelo de Comissão apresentou características diversas daquelas do

âmbito latino-americano porque enfatizou a reestruturação social e deixou as

punições em segundo plano. Em suas atividades foram ouvidas vinte e três mil

vítimas e testemunhas sobre o período compreendido entre 1960 e 1994. No

processo de busca pela verdade prestigiou-se a concessão de anistia individual para

aqueles que confessassem todos seus crimes políticos, rompendo com a forma

clássica de anistia generalizada (PEREIRA, 2016). Essa comissão perdurou até

1998 resultando em um relatório de sete volumes de testemunhos, fatos e verdades.

c) Peru: Comissão de Verdade e Reconciliação (La Comisión de La Verdad y Reconciliación)

Em 1995 foram promulgadas leis de autoanistia no Peru. Com a queda do

governo de Alberto Fujimori, em 2000, o governo de transição presidido por Valentín

Paniagua foi instalado. A Comissão de Verdade e Reconciliação (La Comisión de La

Verdad y Reconciliación) foi criada em 2001 por meio do Decreto Supremo

065/2001-PCM. Seu objetivo foi investigar e fazer publica verdade sobre vinte anos

de violência política. Apesar da luta armada no Peru ter ocorrido desde 1980, a

Comissão de Verdade e Reconciliação considerou como período de exceção os

anos de 1992 até 2000, tempo em que as instituições foram dissolvidas e o governo

comandado via decretos-lei. No mesmo ano a Corte Interamericana de Direitos

Humanos julgou o caso Barrios Vs. Peru, afirmando que leis de autoanistia não

possuem efeito. Essa sentença gerou a condenação de Fujimori em 2009. Os

trabalhos da Comissão da Verdade e Reconciliação durou pouco mais de dois anos

e foi acompanhado por organizações de direitos humanos, vítimas e demais setores

da sociedade (MACHADO, 2007).

Em 2003 foi lançado o Informe Final constando nove Tomos: Tomo I: Primeira

parte: O processo, os direitos e as vítimas; Tomo II: Os atores do conflito; Tomo III:

Os atores políticos e Institucionais. As organizações sociais; Tomo IV: Os cenários

da violência; Tomo V: Historias que representam a violência; Tomo VI: Os crimes e

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as violações de Direitos Humanos; Tomo VII: Os investigados pela Comissão da

Verdade e Reconciliação; Tomo VIII: Os fatores que tornaram a violência possível;

Tomo IX: Recomendações da Comissão.

Nesse informe foram constatadas mais de sessenta e nove mil vítimas

oficiais. Foram investigados casos de assassinatos e massacres, desaparecimentos

forçados, execuções arbitrárias, tortura e tratamentos crués, desumanos ou

degradantes, violência sexual contra a mulher, violações do devido processo legal,

sequestros, violências contra crianças e, violações de direitos coletivos. O Informe

Final trabalhou com o tema de gênero, o que era incomum em países Latino-

americanos.

3.3 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NO BRASIL E SUA ATUAÇÃO

No ano de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu no caso

Gomes Lund que a criação de uma Comissão de Verdade no Brasil – no qual o

processo de instauração já estava em andamento através Projeto de Lei 7.376/2010

– integra o conjunto das medidas de promoção do acesso à informação e revelação

da verdade (essenciais no aprimoramento das instituições de segurança pública e

para a contribuição do principio da não repetição) formando um importante

instrumento na efetivação da Justiça de Transição.

Neste sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos se manifestou

sobre a comissão da verdade:

297. Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção e preservação da memória

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histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato (CORTEIDH, 2010, p. 107).

A sua atuação permite a exposição pública dos verdadeiros fatos ocorridos

durante o regime de opressão, constituindo a possibilidade da sociedade em

compreender o que ocorreu e, desta maneira, trazer ganhos significativos para a

democracia.

Em 26 de outubro de 2011 o projeto de Lei instituindo a Comissão da Verdade

foi aprovado, por unanimidade, pelo Plenário do Senado Federal, sendo sancionada

pela Presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011 dando origem a Lei

12.528/2011.

Três fatores foram determinantes para a sua criação: 1. A elaboração do

PNDH-3 que determinou a criação de uma comissão da verdade para investigar os

fatos ocorridos durante a ditadura; 2. A decisão do Supremo Tribunal Federal na

ADPF n°153; 3. A sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos no caso Gomes Lund e Outro vs. Brasil (SANTOS, 2016).

A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi instituída com o propósito de

examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticados no

período estipulado pelo artigo 8° ADCT, ou seja, 18 de setembro de 1946 até a data

da promulgação da Constituição de 1988.

A sua criação se deu dentre muitos impasses e discussões. A proposta

original para a criação de uma Comissão da Verdade incluía, além da promoção da

verdade e esclarecimento dos fatos, a efetivação da justiça para as vítimas. A

proposta do Decreto 7.037/2009 possuía a seguinte redação:

Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade.c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos.f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão.

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Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c) Propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham sido atribuídos.d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985. (Grifo nosso)

A proposta original buscava criar uma Comissão da Verdade que pudesse

realizar a justiça em relação aos crimes apurados. Isto gerou um grande “mal estar”

entre o governo e os militares, pois os segundos estavam temerosos pelo que

chamaram de política “revanchista”. Neste momento uma séria disputa entre o

Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e o Ministro

da Defesa Nelson Jobim foi travada. De um lado a Comissão da Verdade seria uma

resposta aos anseios das famílias vítimas da ditadura, e de outro, argumentava-se

que a criação da Comissão da Verdade poderia criar atritos desnecessários com as

Forças Armadas (SANTOS, 2016). Diante da resistência dos militares a proposta

elaborada pela sociedade através do Decreto 7.037/2009 esta foi alterada pelo

Decreto 7.177/2010 passando a ter a para a seguinte redação:

Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade.c) Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover, com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos.f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre graves violações de direitos humanos ocorridas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.c) Fomentar debates e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores.d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil sobre casos que envolvam graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988.

A criação da CNV marcada pela resistência dos militares retirou da proposta

original as expressões: “repressão ditatorial”, “regime de 1964-1985”, “resistência

popular à repressão”, “pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade” e

“responsabilização criminal sobre os casos que envolvam atos relativos ao regime

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de 1964-1985” (SANTOS, 2016), limitando a atuação da CNV para o esclarecimento

dos fatos ocorridos entre 1946 e 1988.

Percebe-se então que a forte influência dos setores ligados ao regime

autoritário estabeleceram parâmetros para a criação de uma Comissão da Verdade

que pudesse atender de maneira limitada e parcial aos interesses das vítimas e da

sociedade na busca da verdade.

Na opinião de muitos familiares das vítimas e militantes de direitos humanos,

a criação da Comissão da Verdade funcionou como uma “cortina de fumaça” para

desviar a atenção do cumprimento da sentença da Corte Interamericana que havia

determinado também a necessidade de processar, julgar e punir os responsáveis

pelas violações de direitos humanos ocorridos na ditadura (SANTOS, 2016, p. 222).

Feitas as respectivas alterações, a CNV foi finalmente criada através da Lei

12.528/2011 – 30 anos depois do fim da ditadura - com o objetivo de promover a

apuração e esclarecimento das graves violações de direitos humanos ocorridos no

Brasil durante o período de 1946 a 1988. Ficou estabelecido o prazo de dois anos

para que a Comissão apresentasse o relatório final com os resultados das

investigações deste período.

Registre-se que o fato da Comissão Nacional da Verdade ter sido criada por

lei constituiu uma importante diferença em relação às outras Comissões da Verdade

constituídas na América Latina – através do ato exclusivo do Poder Executivo –

desfrutando de maior poder operativo para desempenhar suas atividades (CNV,

2014).

No mesmo ano da aprovação da Comissão Nacional da Verdade, a Lei

12.527/2011 (Lei de acesso à informação pública) também foi aprovada, sendo

determinante para assegurar aos cidadãos o direito de obter informações que estão

sob a responsabilidade da Administração Pública sem a necessidade de justificar os

motivos da respectiva solicitação.

A Lei 12.527/2011 regulamentou o artigo 5°, inc. XXXIII, o art. 37, §3°, inc. II,

e o art. 216, § 2°, da Constituição Federal. Esta lei subordina todos os órgãos da

Administração Pública a exercerem a transparência ativa, ou seja, promover a

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divulgação de informações de interesse público independentemente de solicitações,

e também a transparência passiva divulgando as informações demandadas.

Antes desta lei o acesso à informação era severamente restrita, sendo às

informações classificadas em ultras-secreto, secreto, confidencial e reservado. Entre

as informações ultras-secretas estavam os dados ou informações referentes à

soberania e à integridade territoriais nacionais e os planos e operações militares

(SANTOS, 2016). A Lei de acesso à informações públicas se tornou essencial aos

trabalhos da Comissão Nacional da Verdade pois possibilitou o acesso as

informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação

aos direitos humanos praticados por agentes públicos ou a mando de autoridades

públicas.

A Comissão foi composta por sete membros, integrados em Colegiado e

nomeados pelo presidente da Republica, além de duzentos e dezessete

colaboradores, incluindo assessores, servidores públicos, consultores,

pesquisadores, auxiliares técnicos e administrativos, estagiários e voluntários. Os

membros indicados para a composição da Comissão Nacional da Verdade foram:

Claudio Lemos Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Langaro Dipp,

ministro do Superior Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, advogado, defensor de

presos políticos e ex-ministro da Justiça; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e

ex-ministro da Justiça; Maria Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio

Pinheiro, professor titular de Ciência Polícia da Universidade de São Paulo (USP) e

Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada criminal e defensora de presos políticos

Com a renúncia de Claudio Lemos Fonteles, em setembro de 2013, sua vaga foi

ocupada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, advogado e professor titular de

Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da USP (CNV, 2014).

Em dezembro de 2012 a atividade de pesquisa da Comissão Nacional da

Verdade foi iniciada sendo organizada em treze grupos de trabalhos: 1) ditadura e

gênero; 2) Araguaia; 3) contextualização, fundamentos e razões do golpe civil-militar

de 1964; 4) ditadura e sistema de Justiça; 5) ditadura e repressão aos trabalhadores

e ao movimento sindical; 6) estrutura de repressão; 7) mortos e desaparecidos

políticos; 8) graves violações de direitos humanos no campo ou contra indígenas; 9)

Operação Condor; 10) papel das igrejas durante a ditadura; 11) perseguições a

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121

militares; 12) violações de direitos humanos de brasileiros no exterior e de

estrangeiros no Brasil; e 13) o Estado ditatorial-militar.

Na sua atuação a Comissão da Verdade poderia estão receber testemunhos,

informações, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente;

fazer requisição de informações dados e documentos de órgãos e entidades do

poder público; convocar para entrevistas pessoas que possam guardar qualquer

relação com os fatos; realizar perícias e diligências para coleta ou recuperação de

informações, documentos e dados; promover audiências públicas; promover

parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais,

para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e requisitar auxílio de

entidades e órgãos públicos (Art. 4° da Lei 12.528/2011).

Ao longo da sua atuação, a Comissão Nacional da Verdade realizou

inúmeras audiências públicas colhendo os depoimentos das vítimas das graves

violações de direitos humanos emitindo diversos relatórios preliminares de pesquisa.

O primeiro relatório preliminar foi apresentado em 18 de fevereiro de 2014

divulgando as instalações militares utilizadas para cometer os crimes de tortura,

nome das vítimas e formas de tortura. A metodologia empregada pela comissão

para poder elaborar o relatório teve como ponto de partida a identificação dos casos

de tortura de ex-presos políticos que receberam o pagamento de indenização por

parte do Estado pelos processos deferidos pela Comissão de Anistia e pela

Comissão Especial de Indenização às vítimas de tortura – instituída pela Lei

Estadual 13.187/1999 – integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de

Minas Gerais da Secretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais. Para pesquisar

sobre os presos políticos mortos a CNV utilizou os processos deferidos pela

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos criada pela Lei

9.140/1995 e ainda, contou com os depoimentos prestados ao Ministério Público

Federal.

No segundo relatório apresentado em 27 de fevereiro de 2014 a CNV expôs o

caso Rubens Paiva. Rubens Paiva era deputado federal por São Paulo pelo Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi cassado pelo Ato Institucional n°1, exilando-se na

embaixada da Iugoslávia no Rio de Janeiro, depois na França e Inglaterra. Retornou

ao Brasil em 1965, sendo detido pelo Centro de Informações de Segurança da

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Aeronáutica (CISA) em 20 de janeiro de 1971. Foi conduzido para o Destacamento

de Operações de Informações (DOI) passando a ser interrogado sob tortura por

agentes do DOI e do Centro de Informações do Exército (CIE) ocasionando à sua

morte. O relatório concluiu que o Comandante do DOI general Belham estava ciente

das torturas, e que somente este poderia esclarecer o destino do corpo de Rubens

Paiva, assim como o nome dos agentes envolvidos na tortura, morte e ocultação do

cadáver.

O terceiro relatório elaborado em 25 de março de 2014 tratou da “Casa da

Morte” de Petrópolis, Rio de Janeiro. Através do depoimento de Inês Etienne Romeu

– única sobrevivente da casa da morte – serviu como ponto de partida para a

elaboração deste relatório. A Casa da Morte foi uma estrutura criada pelo Centro de

Informações do Exército (CIE) em 1971 para intensificar o combate dos opositores

executando práticas de extermínio e desaparecimento forçado.

O quarto relatório elaborado em 07 de abril de 2014 tratou dos centros

clandestinos de violações de direitos humanos atuantes entre os anos 1970 e 1975

nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Pernambuco,

Sergipe, Ceará, Pará e Distrito Federal sob responsabilidade da Marinha do Brasil e

do Exército Brasileiro.

O quinto relatório elaborado em 22 de abril de 2014 tratou do caso Juscelino

Kubitschek investigando as circunstancias do acidente do ex-presidente Jucelino

Kubitschek e seu motorista Geraldo Ribeiro ocorrido em agosto de 1976 no qual

concluiu que estes morreram mesmo em virtude de um acidente de trânsito.

O sexto relatório apresentado em 29 de abril de 2014 tratou do caso

Riocentro, ocorrido em 1981. Este foi um caso de explosão premeditada de duas

bombas de fabricação artesanal durante um show de musica popular brasileira que

reuniu cerca de vinte mil jovens. Porém a bomba que era para ser instalada

provavelmente no palco estourou antes da hora dentro do veículo no colo do

sargento Rosário que morreu instantaneamente. Sua conclusão foi de que as

explosões no Riocentro estavam relacionados a ação do DOI-Codi e ao SNI.

O sétimo relatório apresentado em 09 de junho de 2014 tratou do caso Stuart

Edgar Angel Jones. Stuart foi um militante político, sequestrado e preso

arbitrariamente em 1971. Os relatórios apresentados afirmaram que este foi

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torturado até a morte para revelar o paradeiro de Carlos Lamarca. O

desaparecimento de Stuart é um dos mais conhecidos da ditadura militar, tanto no

Brasil, quanto no exterior.

O oitavo relatório e ultimo relatório foi apresentado em 29 de agosto de 2014

tratando do caso Epaminondas Gomes de Oliveira foi militante, preso em agosto de

1971, sofrendo torturas no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) vindo a falecer

no mesmo ano.

Todos os relatórios elaborados pela Comissão da Verdade contestaram as

informações oficiais elaboradas pelo regime militar. Conforme seu entendimento

casos de tortura, desaparecimentos forçados, homicídios, foi alterado nos relatórios

oficiais para fuga, suicídio, ou outras causas de morte que não condiziam com a

verdade. Ademais, muitos casos de desaparecimento forçado não foram

solucionados e, nem mesmo encontrados os restos mortais ocultados pelos agentes

de Estado.

O relatório final elaborado pela Comissão da Verdade foi entregue no dia 10

de dezembro de 2012 em uma cerimônia oficial realizada no Palácio do Planalto à

ex-presidente Dilma Rousseff.

Este foi dividido em três volumes. O primeiro volume relatou as atividades

desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade descrevendo os fatos

investigados e apresentando as devidas conclusões e recomendações. Este volume

foi dividido em cinco partes e 18 capítulos, apresentando a criação da Comissão

Nacional da Verdade, sua atuação, as estruturas repressivas do Estado e as graves

violações de direitos humanos ocorridos no Brasil.

No segundo volume foi reunido um conjunto de textos originados das

atividades desenvolvidas pelos grupos de trabalhos constituídos no âmbito da

comissão integrando vítimas, familiares, pesquisadores e demais interessados.

Neste é mostrado como diferentes grupos sociais foram afetados pela ditadura e a

repressão, e o papel destes na resistencia política.

E no terceiro volume é realizada uma compilação de todos os mortos e

desaparecidos políticos atingidos pelo regime militar expondo os cenários de horror,

até então restritos à memória das vítimas e seus familiares, à sociedade brasileira.

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Os relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade constituem um

importante material para esclarecer os acontecimentos durante o período da

ditadura militar. As recomendações da Comissão Nacional da Verdade em seu

relatório final foram essenciais para a adoção de medidas gerais de caráter

institucional pelo Ministério Público Federal.

3.3.1 Obstáculos à atuação da Comissão Nacional da Verdade

A Comissão Nacional da Verdade sofreu inúmeras limitações institucionais e

operacionais durante a sua atuação.

Dentre as limitações institucionais enquadram-se o número reduzido de

membros para executar a complexa tarefa de esclarecer as graves violações de

direitos humanos praticados entre 1946 e 1988, o processo de seleção e escolha

dos membros da Comissão que não precedido de um amplo processo de consulta

pública, a falta de autonomia e independência da Comissão e os entraves temporais

ocasionados pela demora da instauração da comissão - mais de vinte anos após a

promulgação da Constituição de 1988, marco do reestabelecimento democrático – a

amplitude do período de apuração dos fatos e o mandato limitado da Comissão

Nacional da Verdade para realizar todas as suas atividades.

Conforme a Lei 12.528/2011 a Comissão Nacional da Verdade seria

composta por sete membros brasileiros, com reconhecida idoneidade e conduta

ética. Mesmo com o auxilio de assessores e colaboradores, é evidente que esse

número pequeno de membros para executar a árdua tarefa de esclarecer as graves

violações de diretos humanos ocorridos em um período de quarenta e dois anos de

praticas sistematizadas conduzidas pelo Estado é demasiadamente complicado.

Desta forma, em 2013, o pequeno quadro de integrantes da Comissão foi ampliado

pelo Decreto 7919/2013 remanejando temporariamente cargos em comissão o

exercício das suas atividades.

Neste sentido, Santos (2016) critica a quantidade inicial de membros

designados para a composição da Comissão e a demora – um ano após o inicio das

atividades da Comissão – para a ampliação deste quadro. Segundo a autora, a

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legislação deveria ter contemplado em sua origem um número maior de membros e

assessores para que as atividades da Comissão não restassem prejudicadas.

O Processo de seleção e escolha de integrantes da Comissão também foi

outro ponto fortemente criticado por esta autora. No caso brasileiro a escolha desses

representantes não foi precedida de um processo de consulta pública. Neste

sentido, é destacada a necessidade de um processo escolha que possibilite a

participação de diferentes setores da sociedade, principalmente “das vítimas e

outros grupos marginalizados” (SANTOS, 2016, p. 242).

Outro ponto essencial a ser destacado foi à possibilidade de participação de

integrantes das Forças Armadas na composição da Comissão Nacional da Verdade.

Tal previsão foi ao desencontro da neutralidade necessária para promover a

investigação dos fatos cometidos justamente por esta categoria, e por seus

apoiadores, durante o regime de exceção. Acertadamente, nenhum membro da

Forças Armadas foi indicado pela Presidente da República, atendendo aos anseios

das entidades de direitos humanos e familiares das vítimas da repressão. Isso

porque, é de conhecimento a grande dificuldade já existente em extrair informações

desses agentes que prezam pelo silêncio em detrimento da verdade.

A Comissão, ainda, careceu de autonomia e independência, na medida em

que, as suas atividades ficaram restritas pela própria legislação que a criou. Por

exemplo, a comissão não possuiu poderes para requisição coercitiva das

testemunhas, foi determinada a manutenção do sigilo de alguns documentos e das

informações em contradição com a finalidade desta comissão e, houve a

necessidade de autorização judicial para a realização de determinadas diligencias e

requisições pela comissão (SANTOS, 2016).

Dentre as limitações operacionais sofridas pela Comissão da Verdade estão:

a dificuldade de estruturação e organização interna – a comissão demorou cerca de

sete meses para se estruturar -; as divergências internas surgidas quanto ao objeto

de estudo da respectiva comissão – se deveriam ser investigados apenas os atos

dos agentes de Estado ou se deveriam abranger também os atos praticados pelos

opositores -, e quanto à forma de condução dos trabalhos; a alta rotatividade dos

coordenadores das atividades da comissão que ocorreu no primeiro ano da sua

instituição; e a falta de cooperação das forças armadas que mantendo o pacto de

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silêncio negavam constantemente a pratica de torturas e violações de direitos

humanos por parte da sua instituição.

Apesar de todos esses percalços, a instituição de uma Comissão Nacional da

Verdade constituiu um importante mecanismo para a elucidação dos fatos e um

grande passo na recuperação da verdade e da memória histórica que até então

estava restrita na memória daqueles que viveram este período sombrio da história

brasileira. O maior êxito da criação da Comissão Nacional da Verdade foi ter

colocado na pauta social a discussão sobre a temática, fomentando o trabalho de

outras comissões da verdade nos planos estaduais, municipais e setoriais, que

perfazem uma rede ativa na produção de novas pesquisas sobre este período.

4 EM BUSCA DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO: ADPF 320

Em 2010, através do exercício do controle de convencionalidade a Corte

Interamericana julgou o Brasil no Caso Gomes Lund e outros condenando a

manutenção de leis que promovem a autoanistia e afirmando o dever do Estado em

processar, julgar e punir os crimes de lesa humanidade pelo seu caráter

imprescritível.

Desde então o MPF tem movido esforços para dar efetividade à decisão da

Corte Interamericana, porém, esbarra com decisões contrárias proferidas pelo

judiciário brasileiro que atuam em consonância com o entendimento do STF sobre a

validade da Lei de Anistia.

Em 2014, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) propôs a ADPF 320

questionando os efeitos da Lei de Anistia confirmados pela decisão proferida pelo

STF. De acordo com o partido, desde a publicação da sentença pela Corte

Interamericana, em 2010, esta ainda não teria sido cumprida, pois o Supremo em

sua decisão, não analisou o caráter permanente de alguns dos crimes cometidos

pelos agentes públicos contra opositores políticos ao regime militar, notadamente a

ocultação de cadáver.

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Neste sentido, busca-se a adequação à interpretação internacional que afirma

a obrigatoriedade dos Estados em processar, julgar e punir os crimes de lesa

humanidade cometidos pelos agentes de Estado durante a ditadura.

O Procurador-geral da República Rodrigo Janot enviou parecer ao STF

favorável defendendo a revisão da interpretação da Lei de Anistia no qual foi

enviado para a análise do relator da ação no STF Ministro Luiz Fux.

O Procurador-geral da República utilizou-se da Teoria do Duplo Controle,

criada por André de Carvalho Ramos, para explicar que no atual ordenamento

jurídico brasileiro predomina a necessidade de ser realizada a compatibilização

vertical dos atos normativos, que devem obedecer tanto a Constituição, quanto os

tratados internacionais de direitos humanos.

Neste sentido afirmou o procurador,

Não é admissível que, tendo o Brasil se submetido à jurisdição da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, por ato de vontade soberana

regularmente incorporado a seu ordenamento jurídico, e se comprometido a

cumprir as decisões dela (por todos os seus órgãos, repita-se), despreze a

validade e a eficácia da sentença em questão. Isso significaria flagrante

descumprimento dos compromissos internacionais do país e do mandado

constitucional de aceitação da jurisdição do tribunal internacional (BRASIL.

PARECER PROCURADORIA-GERAL DA REPUBLICA, 2014, p. 52)

A ADPF 320, até o fechamento desta pesquisa, ainda continua tramitando no

STF, pesando grandes expectativas das vítimas e da sociedade ao desfecho que se

dará.

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PARTE IV – JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE

Diante do que foi exposto até o momento, podemos constatar que a atuação

da justiça de transição no Brasil tem encontrado uma agenda ativa. Após a transição

para o regime democrático, simbolizado pela promulgação da Constituição da

República de 1988, diversos princípios de proteção aos direitos humanos foram

sendo incorporados vislumbrando a emergência de um novo paradigma jurídico.

O reconhecimento da anistia aos perseguidos políticos através do art. 8° do

ADCT, a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, a elaboração do

Programa Nacional de Direitos Humanos, a criação da Comissão da Anistia e a

criação da Comissão Nacional da Verdade demonstram o esforço do Estado

brasileiro na efetivação dos mecanismos transicionais visando principalmente à

atenção das vítimas e o enfrentamento com o passado autoritário. Esta

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movimentação, mesmo que esteja ocorrendo a passos lentos, afasta a permanência

do esquecimento para dar lugar à construção da verdade e da memória.

Deste modo, a justiça de transição parte do pressuposto de que para que

possamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, conforme prevê a nossa

Carta Constitucional, precisamos acertar as contas com o passado, não sendo

possível fazer “desaparecer” pela imposição da anistia política o passado histórico

marcado pela violação sistemática aos direitos humanos.

Provavelmente, em virtude desta consciência de uma trágica realidade

histórica ocorrida no país, o Brasil prontamente tenha aderido a todos os tratados

internacionais relacionados à proteção dos direitos humanos cristalizando a ideia de

que o indivíduo merece proteção e que este deve ser assegurado pelo Estado.

Neste sentido a adesão pelo Brasil da Convenção Americana de Direitos Humanos,

em 1992, e a aceitação da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humano,

em 1998, estabeleceu garantias judiciais institucionalizando o processo como meio

de assegurar os direitos humanos. (COELHO, 2014).

Assim, os direitos humanos passam a contar com a proteção em duas

esferas: primeiramente no plano nacional onde os Estados devem observar a

prevalência dos direitos humanos rechaçando toda e qualquer norma que vise a sua

violação e, em segundo plano, a proteção internacional, que no caso do Brasil é

regido pela jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos atuando de

forma complementar na falta ou omissão dessa proteção pelos Estados.

Todavia, os legados autoritários (STEPAN, 1988; ZAVERUCHA, 1998)

deixaram resquícios do regime burocrático-autoritário que se projetam no tempo,

mesmo após tantos anos término do regime de exceção. Deste modo, constata-se

que somente a transferência do poder político para atores democráticos não é

suficiente para que possamos superar estes legados. Um dos grandes resquícios

desta continuidade é a interpretação da anistia recíproca imposta pelos militares

como condição para a abertura política do país.

Esta interpretação presente na atualidade fortalece a crença de que os

acontecimentos da ditadura devem ser esquecidos em nome da lógica da

reconciliação nacional (MEZZAROBBA, 2009), transformando em revanchismo

qualquer movimentação contrária a esta convicção.

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Após a condenação do Brasil no Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia),

uma nova perspectiva foi afirmada, exigindo do país a sua adequação a

jurisprudência internacional que não aceita leis que buscam promover a impunidade

e impedem a investigação de graves violações de direitos humanos.

Porém, a ratificação do Brasil aos tratados internacionais de direitos

humanos, a aceitação formal à competência da jurisdição da Corte Interamericana, e

ainda, a afirmação do caráter supralegal das normas internacionais que tratam de

direitos humanos conforme o art. 5° §2° da Constituição, não foram suficientes para

que houvesse uma interpretação que buscasse compatibilizar a jurisprudência

nacional e a internacional.

A existência de duas decisões plenamente válidas no ordenamento nacional –

a decisão o STF que valida à interpretação da Lei de anistia recíproca e a decisão

da Corte Interamericana invalidando a Lei de anistia – criou uma situação onde as

iniciativas do Ministério Público Federal em dar cumprimento à decisão da Corte

Interamericana em relação à responsabilização penal dos agentes de Estado

envolvidos em graves violações de direitos humanos são constantemente negadas

pelo judiciário brasileiro com decisões que afirmam a ocorrência de prescrição ou

anistia dos fatos imputados, dando cumprimento ao entendimento do STF.

Conforme Luiz Fernando Coelho (2012, p. 6) quando “as soluções propostas

para tais entraves estão em oposição, sendo todas elas fundamentadas e com

pressupostos igualmente válidos, geram-se situações de conflito designadas

antinomias”. Essas antinomias podem ser principiológicas ou ideológicas. ,

As antinomias principiológicas ocorrem ao nível dos princípios gerais de direito declarados na Constituição ou a ela subjacentes. As ideológicas se verificam entre os comandos mais gerais do ordenamento e constituem antecedentes dos próprios princípios. Essa divisão é meramente didática, pois na verdade todos os valores e crenças refletidos na ordem jurídica são redutíveis a princípios. A ideologia do direito envolve preceitos de natureza religiosa, ética e política, e mesmo científica, como é o caso dos pressupostos do ordenamento considerados racionais (COELHO, 2012, p. 6).

Na Justiça de Transição estas antinomias ocorrem ao mesmo tempo

contrapondo o acesso à justiça das vitimas da opressão, a devida assistência e um

mínimo de satisfação, com a impunidade dos agentes opressores salvos pela

anistia-amnésia.

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Apesar da justiça de transição em seu conceito amplo propor a realização da

justiça em momentos de afirmação democrática abrangendo um conjunto de

providencias que englobam o campo jurídico, político e social, é a análise mais

restrita deste conceito que vem prevalecendo. Ou seja, a análise dogmática onde

“prevalece à confrontação entre as soluções preconizadas pelo direito interno de

cada país com a legislação internacional” (COELHO, 2014, p. 235) conforme

demonstramos no capitulo II deste respectivo trabalho.

Na sua análise sobre a Justiça de Transição, Coelho (2014) propõe o uso das

ferramentas da teoria geral do direito para executar uma investigação zetética e

crítica desse campo de estudos. Assim, inverte a ordem epistemológica passando a

examinar o direito sob o ponto de vista da sociedade.

O pensamento zetético ou investigativo é uma abordagem que tem por

objetivo caracterizar o horizonte das questões no campo jurídico. Assim, busca a

investigação e a dissolução, através de questionamentos, de uma opinião já

formada. Para tanto, esta envolve um conjunto interdisciplinar formado pela filosofia

do direito, pela sociologia jurídica e a histórica do direito, fornecendo substratos para

flexibilizar, adaptar e revisar os dogmas, tratando os enunciados jurídicos como

elementos tentativos e questionáveis. Podemos então afirmar que a investigação

zetética exerce um papel crítico sobre os pressupostos dogmáticos explorando suas

vulnerabilidades lógicas a fim de melhorar as fundamentações e a construção em

que a dogmática se ampara (ROESLER, 2013).

Assim, afirma o autor que, do ponto de vista zetético, a interpretação das leis

da transição democrática deve ocorrer “dentro de um contexto transdisciplinar que

requer sua adequação a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos, como

a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justiça material e

outros”. (COELHO, 2014, p. 236). Desta maneira é possível ir além dos textos

legais, inclusive afastando-os, para fazer prevalecer esses valores.

1 OLHANDO A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO DE “BAIXO PARA CIMA”

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Utilizando-se do conceito amplo de justiça transicional podemos seguir da

análise do tema sob a perspectiva da teoria geral do direito. Seguindo do ponto de

vista zétetico e crítico podemos então elaborar um panorama em que o aspecto da

transição democrática é visto “de baixo para cima”, ou seja, da perspectiva da

sociedade perante o direito.

Como afirmamos anteriormente, esta visão adequa a transição democrática

baseando-se em pressupostos metaéticos essenciais para a análise. Nestes são

considerados princípios importantes como a dignidade da pessoa humana, a

solidariedade, a paz social, a justiça material, como ponto de partida.

A partir do conceito amplo de justiça de transição podemos afirmar que esta

“extravasa o referencial que liga a expressão ao Poder Judiciário, com alcance do

entendimento de uma justiça criminal” (COELHO, 2014. p. 237). Deste modo esta se

refere a vários tipos de justiça: justiça penal, histórica, reparatória, administrativa,

constitucional e restaurativa.

Este movimento envolve o Estado como um todo na busca de efetivar

plenamente as recomendações dos órgãos internacionais de proteção aos direitos

humanos segundo o qual o Estado possui o dever de investigar, processar e punir

os agentes que violem esta proteção.

Deste modo falar sobre justiça de transição envolve a referência ao menos a

quatro pressupostos:

a) a transição institucional de um Estado autoritário, geralmente dirigido por uma cúpula ditatorial, para o estado de direito, liderado por um governo democrático e constitucional;

b) que o regime anterior tenha praticado, por meio dos seus agentes, atos contra os direitos humanos, como tais definidos pelo direito internacional, na nova constituição e outras fontes, inclusive contra o sentimento moral da nação;

c) que haja a vontade política do novo governo de tentar corrigir as distorções do autoritarismo e impor medidas saneadoras que restabeleça a ética e o respeito ao conteúdo mínimo de um estado de direito;

d) a participação do povo, a intersubjetividade das vontades no sentido da condenação, ao menos moral, do despotismo anterior. É necessário que as medidas as serem tomadas pelo novo governo respondam aos anseios, necessidades e expectativas não somente das vítimas e cidadãos diretamente interessados, como de toda a população, ao menos das parcelas da sociedade que não tenham ficado alienadas ao terrorismo de estado praticado (COELHO, 2014, p. 238).

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Verifica-se através destes pressupostos que a justiça transicional então deve

ocorrer na plenitude do estado de direito no qual a democracia e os direitos

humanos são o panorama mínimo para a superação do regime opressivo.

A justiça de transição é um novo instituto que busca meios de resolução de

divergências na sociedade, apresentando outras, específicas, a delimitá-lo como

categoria jurídica e política (COELHO, 2014). Neste sentido, o Estado passa a ter os

instrumentos essenciais para lidar com o regime anterior ao mesmo tempo em que

dedica atenção ás vítimas e a seus familiares.

Uma das características dessa justiça é o uso da informalidade.

Conforme afirma Coelho (2014, p. 240), esta pode ser bem compreendida no

contexto de uma tendência generalizada de atenuação das dicotomias

características da modernidade, especialmente a oposição do formal e informal.

Assim afirma que “a diluição das dicotomias nas formas de controle social e das

oposições no seio da sociedade civil é um fenômeno que a observação sociológica

detecta na organização social pós-moderna e na elaboração dos meios de controle

social” fazendo com que os dois polos da vida social se encontrem, ou seja, a

comunidade civil e o Estado.

A burocracia é atenuada, abrindo espaço para outros meios de solução como

a mediação, a conciliação e a arbitragem, instituindo meios mais “simples e popular

de solução de questiúnculas do dia a dia na convivência social” (COELHO, 2014, p.

241). Assim, a justiça de transição consciente da limitação do estado – preparado

para solução de conflitos jurídicos e não para resolver conflitos sociais – faz o uso

desses vários instrumentos informais para fazer justiça.

2 ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

Apesar da lei de anistia ter sido elaborada e aprovada pelos militares, esta foi

recepcionada pelos governos democráticos, e configurou uma resposta ás

reinvindicações de opositores da ditadura e seus familiares sanando os efeitos do

controle extremo do Estado. Contudo, ao mesmo tempo esta lei descortinou

sucessivas injustiças ao inviabilizar a punição dos agentes repressores violadores de

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134

direitos humanos deixando as vítimas sem a efetiva proteção que o Estado de

Direito deveria promover.

Já no seio do regime democrático, a Comissão de Anistia foi criada com a

responsabilidade de apreciar e decidir sobre os requerimentos de anistia, afirmando

o pedido de perdão do Estado pelos atos de seus agentes. Apesar de admitir o erro

do Estado, o núcleo da impunidade se manteve intocável.

Em 2011, a criação da Comissão Nacional da Verdade retomou as tentativas

de imposição de justiça, porém foi novamente abafada pelos setores militares, que

alegando revanchismo, limitou as atividades da Comissão da Verdade ao mero

esclarecimento dos casos terrorismo, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação

de cadáver, dentre outros crimes cometidos no regime de exceção. Apregoando que

para se buscar a verdade era preciso uma Comissão que não instituísse a vingança.

Ou seja, todo o aparato elaborado em busca da justiça foi veemente afastado,

e mais, no interior de um regime democrático. O comando internacional de direitos

humanos foi completamente ignorado admitindo a impunidade calcada no principio

da irretroatividade da lei penal em detrimento dos princípios básicos do direito

humanitário: a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade e o da

“universalidade apriorística” (COELHO, 2014, p. 253).

Do ponto de vista dogmático, a lei de anistia impera porque seus efeitos foram

sanados quando da data da concessão de anistia. Porém, na análise da sociedade

para o direito, pode-se questionar se “após a Constituição de 1988, definida como

cidadã, tudo deveria continuar como os militares havia planejado” (COELHO, 2014,

p. 254). Afinal, seria aceitável que um regime opressor, após ter cometido inúmeros

crimes contra os opositores políticos, pudesse perdoar a si mesmo?

O Brasil não viveu o terrorismo. O “terrorismo estatal e o terrorismo

revolucionário”, argumentos justificativos da opressão militar, não se aplicam a

realidade brasileira, pois são fenômenos da história contemporânea restrita a

territórios e povos bem definidos como, a Palestina. A luta revolucionária armada

não fazia “parte da índole do povo brasileiro”. A “ameaça comunista” não passou de

uma ideia fantasiosa, manipulada pelos Estados Unidos, para poder depor o

presidente João Goulart, pois na época, o “partido comunista era inexpressivo”. A

maior expressividade da esquerda na época seria a atuação da “doutrina social da

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135

igreja” que pregava “uma igreja para os pobres, ambiência que convergiu para a

teologia da libertação”. A ameaça comunista era, portanto, o fato da “igreja deixar de

ser dos ricos para aproximar-se dos pobres”. A inspiração advinda da Revolução

Cubana de 1959 “não passava dos grêmios estudantis e de círculos intelectuais de

esquerda”. Desde modo, onde estava a ameaça comunista? (COELHO, 2014, p.

256-260).

Parece que o objetivo da anistia concedida desde o seu inicio é ilegítima. O

seu objetivo oculto foi “etiquetar para sempre” as ações da oposição como terroristas

(COELHO, 2014, p. 260).

A concessão de autoanistia é condenável juridicamente e moralmente, pois

ao mesmo tempo em que vai ao desencontro com os princípios norteadores da

sociedade, ainda implantam a ideia de que o Estado pode tudo, o que não deve ser

aceitável. Uma ditadura não pode perdoar a ela mesma.

Seguindo esta ideia, a doutrina de direitos humanos determina que crimes

considerados de lesa humanidade merecem tratamento diferenciado, pois são

crimes cometidos sistematicamente pelo Estado contra a própria sociedade. Neste

sentido, o Estado perde o seu objeto, pois ao invés de amparar e proteger, utiliza o

aparato institucional para reprimir e eliminar a população.

Enquadram-se como de lesa humanidade os crimes de assassinato,

escravidão e prisão violando as normas internacionais, violação, tortura, partheid,

escravidão sexual, prostituição forçada e esterilização compulsória, e ainda, como

tipos penais de guerra, o homicídio internacional, a destruição de bens não

justificada pela guerra, a deportação e o ato de abrigar um prisioneiro a servir em

forças inimigas. Igualmente o principio do “nunca mais” – expressão utilizada pelos

países latino-americanos que passaram pela experiência de governos repressivos

traduzida na ideia de não repetição das atrocidades cometidas pelos agentes de

Estado – foi desconsiderado (COELHO, 2014).

São crimes considerados imprescritíveis porque dentro da lógica de proteção

de direitos humanos, não existe a possibilidade de dispor desses direitos para dar

espaço a critérios que seriam aplicados em tempos normais, como a prescrição.

Assim, os crimes de lesa humanidade podem ser analisados a qualquer tempo

visando à justiça a aqueles que foram injustiçados.

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Fazendo uma análise de viés filosófico o autor afirma que, o estrito

cumprimento da lei, também foi o argumento utilizado pela defesa dos réus no

julgamento de Nuremberg. Neste julgamento, a condenação dos nazistas foi

sustentada com fulcro na tese da universalidade dos direitos humanos e na noção

de crimes contra a humanidade, remetendo a doutrina do direito natural,

Ou seja, tal qual a história literária e filosófica atribuiu a Antígona, exigia-se

dos nazistas que tivessem resistido às ordens do tirano, pois havia uma lei

superior que deveria ser obedecida. Do mesmo modo impunha-se aos

títeres da modernidade que se abstivessem de atos contra os regramentos

do direito natural (COELHO, 2014, p. 255).

Esta análise mais ampla não é realizada, ficando restrita ao debate sobre um

possível conflito de lei entre normas nacionais e internacionais. Para o autor, a

justiça de transição deve ser analisada no contexto dos princípios gerais dos direitos

humanos, dos quais já existe um consenso internacional que integram o nosso

ordenamento jurídico nacional.

3 PRINCIPIOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS

A repercussão das violações de direitos humanos pelo mundo ganhou maior

notoriedade após o processo de globalização. Atualmente, recebemos notícias em

tempo real, tendo acesso a informações ocorridas em praticamente qualquer lugar

do mundo. Este fator contribuiu para que cada vez mais pessoas engajassem na

ideia de proteção aos direitos humanos na atualidade, sendo este conceito

conhecido por muitos.

Isso tornou a questão da universalidade desses direitos um discurso cada vez

mais utilizado pelos movimentos de direitos humanos, e inclusive pelos Estados, que

firmam tratados e convenções internacionais sobre estes direitos afirmando o seu

compromisso com este paradigma.

Seguindo a ideia de universalidade, a titularidade dos direitos humanos

passou a ser definido como absoluto, devendo ser observado tão somente pela

condição de ser humano. Essa compreensão deriva da teoria do direito natural

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constantes nas declarações de direito das revoluções americana e francesa do final

do século XVIII (COELHO, 2014). Neste sentido, o direito humanitário hoje existente

parte dessa construção do direito natural incorporando na consciência da

humanidade a sua importância para a construção de uma sociedade justa.

A constitucionalização das garantias processuais para os direitos humanos foi

essencial para que vários países latino-americanos aderissem a Convenção

Americana de Direitos Humanos e a jurisdição consultiva e contenciosa da Corte

Interamericana de Direitos Humanos provendo, desta forma, uma ampliação dos

mecanismos processuais de proteção aos direitos humanos. Deste modo, o direito

internacional dos direitos humanos foi sendo enriquecido com declarações formais

que afirmavam o compromisso dos países perante a comunidade internacional de

agir em boa-fé para a concretização desses valores.

Assim, emerge um novo campo do direito que se desenvolve nos planos

normativo e doutrinário. No plano da normatividade emerge a tarefa de

sistematização de um international bill of human rights buscando suprir as

deficiências da legislação interna. No plano teórico elabora-se uma teoria geral dos

direitos humanos constituídos pelos seguintes princípios: a) Princípio da dignidade

da pessoa humana; b) Principio da alteridade; c) Principio da universalidade; d)

Principio da aprioricidade; e) Principio da fundamentalidade constitucional; f)

Principio da irreversibilidade; g) Principio da imprescritibilidade dos delitos contra os

direitos humanos; h) Principio da competência judiciária universal; i) Principio do in

dubio pro humanitate (COELHO, 2014).

A dignidade da pessoa humana constitui o “tronco ontológico” de todos os

outros princípios, sendo o valor jurídico supremo da ordem jurídica nacional e

internacional (COELHO, 2014, p. 163-164). No Brasil, a Constituição de 1988 o

estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito (Art. 1°, III,

CF). No plano internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos

estabelece, já no seu preâmbulo, a necessidade de proteção da dignidade humana

por meio da proclamação dos direitos elencados naquele diploma, estabelecendo,

em seu art. 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e

direitos” (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 74). Assim, essa proteção deriva de uma

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única condição: ser pessoa. Essa proteção é direcionada para todos os seres

humanos, independentemente do reconhecimento de cidadania.

Este principio também é afirmado nos dois Pactos Internacionais (Sobre

direitos civis e políticos e sobre os direitos sociais, econômicos e culturais) e na

Convenção Americana de Direitos Humanos. Conforme afirma Carvalho Ramos,

Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio geral ou fundamental, mas não como um direito autônomo. De fato, a dignidade humana é uma categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético. Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato material para que os direitos possam florescer. Diferentemente do que ocorre com direitos como liberdade, igualdade, entre outros, a dignidade humana não trata de um aspecto particular da existência, mas sim de uma qualidade inerente a todo ser humano, sendo um valor que identifica o ser humano como tal. Logo, o conceito de dignidade humana é polissêmico e aberto, em permanente processo de desenvolvimento e construção (CARVALHO RAMOS, 2017, p. 76).

Deste modo a dignidade da pessoa humana é um principio que limita do

poder do Estado ao mesmo tempo em que existe a sua atuação para garanti-lo.

O principio da alteridade é corolário do principio da dignidade consistindo no

direito à diferença, ou seja, na aceitação do outro. Este princípio busca combater

simultaneamente a intolerância e a busca da exclusão legítima do outro sendo o laço

de intersubjetividade que une os participantes de um estrato social visando a

unidade cultural. Assim, a alteridade é fonte do multiculturalismo, determinando que

devemos respeitar a diversidade cultural, religiosa, de crença, etc.

A universalidade apriorística declara que a universalidade dos direitos

humanos não está restrita as fronteiras geopolíticas dos Estados, são normas

válidas e vigentes em todos os lugares. A universalidade consiste no

reconhecimento de que os direitos humanos são direitos de todos, não fazendo

distinção de raça, cor, credo, casta, afirmando a essencialidade dos direitos

humanos como valores indispensáveis que devem ser observados e protegidos por

todos.

Coelho (2014, p. 172-269) adjetivou o termo “apriorista” para referir-se à ética

kantiana “que atribuía validade a priori ao imperativo categórico”. Por apriorismo

entende-se que os direitos humanos “não dependem de sua definição jurídico-

positiva para configurarem como tais”. Deste modo as constituições, tratados e leis

exercem a função de declarar e dar certo grau de eficácia, pois os direitos humanos

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são naturais. Uma vez incorporada essa garantia na constituição e tratados

internacionais sua validade “é e deve ser vista como apriorística,

independentemente de sua elaboração histórica”. Assim a dignidade humana e o

respeito aos direitos humanos são conquistas irreversíveis do ser humano e os atos

atentatórios a esses direitos constituem crimes contra a humanidade.

A fundamentalidade constitucional remete a distinção entre os direitos

humanos e os direitos fundamentais. Os direitos humanos são aqueles inerentes a

toda e qualquer pessoa independentemente da cidadania. Os direitos fundamentais

são aqueles internacionalizados no ordenamento jurídico nacional através da

Constituição. Neste sentido, o principio da fundamentalidade constitucional dispõe

que os direitos humanos devem constar na constituição e nos documentos básicos

do Estado como fundamentais (COELHO, 2014).

Os direitos humanos fundamentais são vistos pelos aspectos formal e

material. A fundamentalidade formal é a positivação dos direitos fundamentais na

Constituição, implicando obrigações de ordem positiva e negativa. A

fundamentalidade material dispõe que os direitos humanos são materialmente

constitucionais. No Brasil, as normas de direitos humanos materialmente

constitucionais possuem o caráter supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição

de 1988 e acima da legislação ordinária. Essa separação serve como critério para o

controle de legalidade e o controle de constitucionalidade da legislação.

O principio da irreversibilidade ou principio “nunca mais” remete à condição de

clausula pétrea das normas constitucionais que enunciam os direitos humanos.

Coelho (2014) utilizou-se do conceito “nunca mais” para homenagear o movimento

social ocorrido durante a ditadura militar na América Latina na luta contra a

repressão. Este principio tem alcance teórico e pratico. Na teoria “ele enuncia que o

mero fato de haverem sido invocados, em algum momento da opopeia das

instituições jurídico-políticas, torna os seres humanos para sempre incorporados ao

patrimônio moral da humanidade”. No campo prático, afirma que uma vez

incorporada à norma na legislação, esta não é mais passível de reforma.

Assim busca-se o não retrocesso de direitos humanos adquiridos ao longo da

evolução das sociedades, afirmando que estes uma vez conquistados não podem

mais ser excluídos ou ignorados pelos Estados.

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O principio da imprescritibilidade criminal e a competência judiciário universal

afirmam a imprescritibilidade dos delitos cometidos contra os direitos humanos,

afirmando que estes podem ser julgados a qualquer tempo e por qualquer

autoridade que possua competência para exercer o poder jurisdicional. Deste modo,

qualquer juiz ou Tribunal pode processar e julgar os crimes de lesa humanidade.

Também é consequência deste principio a limitação dos Estados em conceder

anistia aos crimes de lesa humanidade.

O último principio que iremos abordar é o princípio do in dubio pro humanitate.

Esta tese fundamental elaborada pelo professor Luiz Fernando Coelho trouxe um

novo paradigma para reger a hermenêutica dos direitos humanos no que tange a

imprescritibilidade e competência judiciária. Conforme o autor trata-se de um

“aforisma que deve ser aplicado dentro de uma limitação: só deve ser considerado

quando se trata de praticas coletivas, por parte de um governo ou grupo no poder,

atos cometidos sistematicamente” (COELHO, 2012, p. 18). Esta tese abrange todas

as situações que se referem a eficácia dos direitos humanos, inclusive as definidas

como justiça de transição.

4 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: PRINCIPIO IN DUBIO PRO HUMANITATE

Seguindo o estudo da justiça de transição sob a perspectiva zétetica e crítica

passamos a analisar o tema utilizando um conceito mais amplo, ou seja, “um

conjunto de medidas que, ao abrigo da legislação pós-autoritária, passa atenuar os

efeitos do autoritarismo e assim responder à questão da eficácia do direito em

períodos de metamorfose política” (COELHO, 2014, p. 235), no qual a transição

democrática passa a ser analisada “de baixo para cima”.

Neste sentido, a questão sobre a compatibilidade ou não do ordenamento

nacional com o internacional – que é uma abordagem mais restrita da justiça de

transição – deu espaço para um analise voltada mais ao aspecto da justiça do que

ao processo de transição em si. Ou seja, saímos da análise dogmática para

discutirmos sobre a prevalência dos princípios gerais dos direitos humanos.

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São pressupostos e ao mesmo tempo fundamentos para uma política de

transição do autoritarismo para a democracia respeitando a ideia de que uma

ditadura não pode, moralmente, julgar outra, pois a participação do povo, a

intersubjetividade das vontades no sentido da condenação, ao menos moral, do

despotismo anterior, é outro pressuposto inarredável (COELHO, 2012).

A tese fundamental in dubio pro humanitate elaborada pelo professor Luiz

Fernando Coelho (2014) é essencial para que possamos solucionar a questão que

hoje prevalecente no país sobre o conflito entre a interpretação da Lei de Anistia de

1979 realizada pelo STF e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

e outros conflitos que possivelmente surgirão ao longo do tempo.

Do ponto de vista zetético a interpretação das leis da transição democrática

deve ocorrer dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequação a

alguns valores tidos como pressupostos metaéticos como, a dignidade da pessoa

humana, a solidariedade, a paz social e a justiça material. E essa adequação pode

insurgir no afastamento da dogmática jurídica, que ao ser contestada, não se

adequou a esses pressupostos. Afinal, a perspectiva utilizada é da sociedade para o

direito e não ao contrário.

O principio in dubio pro humanitate enuncia que todos os direitos que dizem

respeito à humanidade se sobressaem a quaisquer outros direitos. Neste sentido, o

seu enunciado sugere a analogia com as máximas in dubio pro reo, in dubio pro

operário e in dubio pro natura, ou seja, a intepretação da norma em questão deve

ser compreendida de maneira a tornar mais proveitosa e melhor viabilizar a

prestação jurisdicional que protege os direitos humanos. Seguindo este raciocínio,

nenhuma norma interna poderia afastar essa proteção, devendo o ordenamento

jurídico nacional afastar de imediato uma possível violação.

Essa tese fundamental possui uma limitação: somente deve ser aplicado aos

casos em que forem constatadas práticas coletivas e sistemáticas de violações aos

direitos humanos cometidos por parte de um governo ou um grupo no poder, e não

para processar e julgar delitos individuais de direitos humanos. Fora deste contexto

não deve ser utilizada para julgar outras espécies de crimes, por mais hediondos

que sejam.

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Este critério hermenêutico favorece a análise das violações sistemáticas

contra os direitos humanos estabelecendo que “o terrorismo de Estado e a

crueldade contra o povo” devem motivar a reação dos governos democráticos. Além

de projetar-se sobre todos os demais princípios, este ainda se “interliga com outro

invocado no âmbito do direito constitucional, em especial no que tange às

antinomias constitucionais”. É o principio da razoabilidade ou proporcionalidade

(COELHO, 2014, p. 188).

Aplicando o principio in dubio pro humanitate para solucionar o conflito de

intepretação entre as decisões do STF e as decisões da Corte Interamericana de

Direitos humanos, a decisão da Corte Interamericana prevaleceria. Não apenas

porque ratificamos a Convenção de Viena ou aceitamos a jurisprudência da Corte

Interamericana, mas sim, porque na análise da antinomia existente entre esses dois

entendimentos, a norma mais favorável aos direitos humanos consta da decisão que

afasta a validade da Lei de Anistia de 1979.

Em síntese, o principio in dubio pro humanitate surge como um mecanismo

que reforça o campo hermenêutico e a tese da universalidade apriorística dos

direitos humanos, servindo como um instrumento de tríplice função: “É informadora

para o legislador, normativa para a solução de antinomias e interpretadora como

critério para a magistratura e os operadores do direito em geral” (COELHO, 2014, p.

188). A utilização da hermenêutica jurídica para interpretar as questões de antinomia

entre normas que dizem respeito à humanidade desprende-se dos aspectos

dogmáticos possibilitando dar outra interpretação a norma utilizando-se do critério

mais favorável à humanidade. Assim, a antinomia é solucionada com base nas

regras gerais de interpretação jurídica e nas específicas da hermenêutica

constitucional auxiliando na resolução de conflitos entre duas normas igualmente

válidas.

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143

]

CONCLUSÂO

Os processos de transição ocorridos logo após o termino da ditadura militar

impuseram Leis de Anistia que implantaram o perdão recíproco para agentes do

estado que cometeram crimes de graves violações de direitos humanos. Quando

analisamos de uma perspectiva política a transição da forma como ocorreu era o

único meio possível, já que havia grande receio em que o processo transicional

ficasse prejudicado caso as forças militares decidissem recuar na liberalização

política.

Ao mesmo passo que a Lei de Anistia implantou o esquecimento quanto aos

acontecimentos ocorridos na ditadura impossibilitando que ações penais contra os

agentes corressem, este foi um grande passo para que os presos políticos

retornassem a vida em sociedade sem o risco de serem mortos ou perseguidos.

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A justiça transicional se desenvolveu no Brasil a passos lentos buscando

efetivar mecanismos que pudessem atenuar os efeitos gerados pelos regimes não

democráticos afirmando que o processo transicional deve ocorrer observando

também os parâmetros da justiça.

Assim, a construção da memória e verdade, reparação das vítimas, reforma

das instituições e justiça passaram a ser exigidas como forma de concretização do

processo democrático.

Neste percurso, antinomias surgiram. De um lado o Supremo Tribunal Federal

afirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, e de outro, a Corte

Interamericana proferiu decisão diversa da nossa Corte Maior.

Conforme verificamos neste trabalho, a discussão em torno desta

problemática ocorre no plano dogmático, restringindo os caminhos e gerando

embates entre o Ministério Publico que atua em cumprimento a sentença da Corte

Interamericana, enquanto o judiciário nega tais pedidos em consonância com o

entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Neste embate o professor Luiz Fernando Coelho sugere outra perspectiva.

Uma análise mais ampla que se utiliza da Teoria Geral do Direito. Deste modo, a

justiça de transição é analisada pela ótica da zétetica e da critica, sugerindo a

utilização da hermenêutica como possível solução.

Assim, o principio in dubio pro humanitate é uma tese fundamental para reger

a hermenêutica dos direitos humanos no que tange à imprescritibilidade e

competência judiciária. Deste principio emerge com uma tríplice função: Informadora

para o legislador, normativa para a solução de antinomias e interpretadora como

critério de orientação para aqueles incumbidos a interpretar e integrar os direitos

humanos (COELHO, 2012).

Deste modo, o in dubio pro humanitate reforça o campo hermenêutico

afirmando que no caso de crimes sistematizados cometidos pelo Estado que gerem

graves violações aos direitos humanos, os direitos que dizem respeito à humanidade

se sobrepõem a todos os outros devendo, portanto, ser observado.

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