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INTRODUÇÃO 6

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INTRODUÇÃO

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O presente trabalho visa explorar a pluralidade de sentidos contidos no

livro Horto da poetisa norte-rio-grandense Auta de Souza.

Na sua única obra encontramos dois significados diferentes para título:

Horto era nome dado ao lugar onde eram realizadas as crucificações na época

em que Cristo viveu – nesse caso, o termo denota dor, sofrimento e morte. Mas

esta mesma palavra também pode denominar um terreno onde se cultiva

plantas ornamentais e frutíferas, como um jardim. Agora o Horto assume um

sentido totalmente diferente do primeiro, sugerindo o ideal de felicidade, paz,

tranqüilidade, vida e reprodução.

Analisando a obra de Auta de Souza e sua relação com o título

escolhido para ela, observamos como a dualidade aparece tão fortemente em

seus escritos. Não só ao compararmos diferentes poemas contidos no livro,

mas até dentro de um mesmo poema o eu lírico se manifesta em diferentes

estados, ora de tristeza e desespero, ora de alegria e esperança; ora

retratando sofrimentos com extrema profundidade, ora relatando a vida como

providência divina.

Para compreender as dualidades contidas nessa obra é imprescindível

correlacioná-la à vida da autora, marcada por inúmeras fatalidades, mas

abençoada por inabalável fé. Relataremos aqui os fatos mais relevantes que se

sabe sobre a curta vida de Auta de Souza, contextualizando sua história ao

espaço e à época em que viveu. Conheceremos os prazeres e desprazeres de

sua existência como um ponto de partida para entendermos seus poemas,

mostrando como sua visão de mundo – sofrida, mas ainda assim amante da

vida – manifesta-se em seus textos.

Abordaremos também o caráter fortemente espiritualista de seus

poemas, o que tem justificado, por parte de alguns leitores religiosos, o

argumento de que Auta seria uma das primeiras escritoras espíritas no Brasil.

Adentraremos no universo particular de Auta de Souza para

entendermos a fundo sua produção artística e compreenderemos a enorme

relevância que teve essa autora potiguar para a literatura nacional e para o

processo de emancipação feminina no Brasil.

Mostraremos brevemente a estética do Romantismo e do Simbolismo,

correntes literárias nas quais muitos pesquisadores inserem Auta; porém,

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adiantamos que caracterizar Auta de Souza entre o Simbolismo e o

Romantismo tem se revelado uma opção mais razoável do que tentar restringi-

la a um ou outro. Há, inclusive, teóricos que alegam ser vã a tentativa de

enquadrar Auta de Souza em qualquer estética literária, tendo em vista a

liberdade de sua forma poética.

Sendo de reconhecida importância para a literatura brasileira, Auta de

Souza foi pesquisada por grandes pesquisadores. Desde a sua morte, a poeta

potiguar simbolizou um ideal de mulher, um ideal de poesia.

Há uma vasta lista de estudos e artigos que foram escritos sobre Auta

de Souza. Dentre os pesquisadores da autora temos Alfredo Bosi, que em seu

livro “História Concisa da Literatura Brasileira”, afirma que Auta teve grande

participação para difusão do Simbolismo no Rio Grande do Norte. José

Rodrigues de Carvalho publicou um artigo sobre Auta de Souza na revista da

Academia Cearense de Letras em 1900; seu irmão, Henrique Castriciano,

escreveu uma nota para a segunda edição do Horto; temos também o artigo de

Nestor Victor publicado no Rio de Janeiro em 1911 e depois transformado em

livro em 1919; o livro de Jackson de Figueiredo, especificamente sobre a poeta.

Luis da Câmara Cascudo, um dos maiores pesquisadores brasileiros, publicou

em 1961 um livro sobre Auta chamado “Vida breve de Auta de Souza”. Há

também estudos mais contemporâneos como um artigo de Diva Cunha Pereira

de Macedo, publicado em 1994 no livro Mulher e Literatura no Rio Grande do

Norte.

Dentre os comentários mais notáveis acerca de Auta, encontramos o de

Giselda Lopes do Rego Pinto, que em seu livro Auta de Souza e a Estética

Simbolista (2000), diz que a poeta norte-rio-grandense tem sua obra gerada e

amadurecida em pleno fastígio simbolista, isto é, no período em que o

Simbolismo estava à tona no País, mas que a despeito disso, o espírito

simbolista de Auta não foi estudado, preparado. Ele nasceu de um impulso

natural, espontâneo, quase nato.

Na primeira edição do Horto, prefaciado por Olavo Bilac, um dos poetas

mais renomados da época, ele afirma que poderia encontrar dentro dos

poemas de Auta de Souza estrofes de um artista que transformava as suas

idéias, sua torturas, as suas esperanças, os seus desenganos em pequenas

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jóias. Diz também que dentro dos poemas de Auta de Souza a alma vibra em

liberdade sem a preocupação da Forma, livre da complicada teia do artifício.

Alceu Amoroso de Lima (Tristão de Athayde), no prefácio da terceira

edição do livro Horto, declara que Auta de Souza é filiada à corrente das letras

femininas do Brasil e que não pertence nem ao Romantismo e nem ao

Simbolismo. Já Luis da Câmara Cascudo defende no seu livro Vida Breve de

Auta de Souza (1961) “a ingenuidade (da sua poesia), versus uma poesia

edificada, construída pela mecânica da inteligência, planejada pela técnica, que

precisa ser interpretada, explicada”, etc., na tentativa de justificar a sua

fraqueza teórica.

Tantos estudos e análises elogiosas acerca da jovem autora

demonstram a relevância de sua obra para a cultura nacional. Percebemos que

Auta de Souza foi uma mulher de seu tempo que optou por algo à frente de sua

cultura. Lutou para consolidar-se como poeta, ousou fazer-se poeta, quando a

escrita feminina era entendida como uma transgressão e assumiu

publicamente essa condição singular.

Sem dúvida, ainda há muito a se explorar sobre a vida e a obra de Auta

de Souza. É possível levantar outras questões, buscar novas formas de

leituras. É possível explorar na leitura de imagens do Horto um vasto jardim

poético de sonhos e possibilidades.

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AUTA, FRUTO DE UM JARDIM

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2.1 CANTA A TUA TERRA

Cidade do interior do estado do Rio Grande do Norte, localizada às

margens do Rio Jundiaí, Macaíba contava com famílias dedicadas ao trabalho

de plantação de algodão, cultura de cereais e criação de gado.

Por volta da metade do século XIX, Coité – como era chamada

antigamente a região que hoje compreende Macaíba – foi favorecido por

acontecimentos externos que impulsionaram o ciclo de algodão e a mobilização

comercial. Naquela época os Estados Unidos estavam divididos na violenta

Guerra da Secessão e, portanto, ficaram impossibilitados de abastecer a

indústria têxtil inglesa com o algodão norte americano. Com isso as

companhias inglesas partiram à procura de novos parceiros e produtores; a

região Nordeste do Brasil e o Egito passaram a vender em grandes

quantidades sua produção algodoeira para a Inglaterra.

Devido a dificuldades de escoamento e aporte de grandes navios no

porto de Natal, quase toda a produção de algodão do interior do Estado

chegava ao povoado de Coité, fazendo com que a localidade se tornasse um

importante entreposto comercial.

Coité atraiu vários comerciantes da Paraíba e de Pernambuco, que

deixaram seus Estados e vieram se estabelecer na região. Foi nesse cenário

que chegou àquela terra um comerciante e proprietário do Engenho, o

paraibano Fabrício Gomes Pedrosa. Fabrício Gomes tinha participação ativa na

vida do povoado e, com o passar do tempo, conquistou muitas amizades e

respeito.

Por ser amante da natureza, Fabrício tinha grande fascínio por uma espécie de

palmeira com frutos pequenos chamados Macaíba, árvore que cultiva no quintal de sua

casa1, que levou em um determinado dia do ano de 1855 mudar o nome da vila de Coité

para Macaíba. Essa mudança se deu da Seguinte forma: “Seu” Fabrício reuniu os

vizinhos, amigos e parentes, numa festa em sua casa e propôs a mudança do nome da

localidade em homenagem a árvore. Como a proposta foi bem recebida com grande

aplauso pelo povoado de Coité.

1 De acordo com o livro Nomes da Terra de Luis da Câmara Cascudo a histórica palmeira teria sido plantada por Fabrício Gomes, no alinhamento do povoado e não no quintal de sua casa.

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Devido às implantações das linhas ferroviárias na região existindo assim um

caminho direto entre o interior e a capital, que se tornou naturalmente o grande centro

comercial, o comercio de Macaíba e de outros centros comerciais da época como São

José do Mipibu, Guarapes e São Gonçalo do Amarante entram em declínio.

Em 27 de outubro de 1877, pela leia nº 801, sancionada pelo presidente da

Província, José Nicolau Tolentino de Carvalho e somente em 1882 foi conhecido seu 1º

administrador, o senhor Vicente de Andrade Lima. Macaíba deve suas terras

desmembradas de São Gonçalo, tornando-se um novo município do Rio Grande do Norte.

Macaíba limita-se com os municípios de São José de Mipibu, São Gonçalo do Amarante,

Vera Cruz, Natal, Parnamirim, Boa Saúde, São Pedro, Ielmo Marinho e Bom Jesus.

A cidade de Macaíba tem sido respeitada como um autêntico celeiro de talento e

cultura. A terra da linda palmeira de seu Fabrício é também a terra de Auta de Souza,

cujo ossuário se encontra na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Além de Auta de

Souza, seus filhos ilustres são Augusto Severo, Tavares de Lira, Alberto Maranhão,

Henrique Castriciano - Ex-vice-governador do Estado, Fundador da Escola Doméstica de

natal e da Academia norte-rio-grandense de Letras - entre outros ilustres macaibenses.

2.2 AS RAÍZES DE UMA CURTA E BRILHANTE EXISTÊNCIA.

Dono de uma vasta terra e uma boa soma de gado, o bisavô de Auta,

Francisco Pedro Bandeira de Melo, deu sua filha Cosma Bandeira de Melo –

que não se sabe se era filha adotiva ou legítima – à um vaqueiro chamado

Félix José de Souza. Um homem “baixo, escuro, magro, enxuto, ágil, gato do

mato para saltar em cima de uma sela e correr no limpo e no fechado, como

peixe revira n’água” (Cascudo. Vida breve de Auta de Souza, pg 23).

Dessa união nasce Eloy Castriciano de Souza, no dia primeiro de janeiro

de 1842. Eloy trabalhou por 13 anos para um comerciante de grande influência

da cidade de Macaíba: Fabrício Gomes Pedroza. Aliado a carreira comercial e

política, Eloy foi Deputado provincial pelo Partido Liberal do Biênio (1878-

1879).

Do lado materno havia a figura forte de Silvina Maria da Conceição – a

avó Dindinha, que mais tarde seria homenageada em vários poemas da neta

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Auta de Souza. Silvina era uma mulher humilde, resignada e, como a maioria

das mulheres da época, era analfabeta, o que não impediu que sua filha

Henriqueta fosse uma mulher “lida em livros”, segundo Câmara Cascudo.

Sabe-se que o avô materno Auta, Francisco de Paula Rodrigues, era amasiado

com Dona Silvina, mas passou à condição de esposo para não constranger a

filha Henriqueta no dia de seu casamento com Eloy Castriciano de Souza, um

homem conservador, sisudo e avesso a desvios de conduta. Dona Silvina

serviu com dedicação ao marido, filhos e depois aos netos órfãos até aos

oitenta anos, quando faleceu em Natal no mês de Dezembro de 1908 – órfã da

neta Auta de Souza, que falecera sete anos antes.

Do casamento de Eloy e Henriqueta nasceu o primogênito Eloy Junior

em Março de 1873. Eloy Junior depõe comovido:

Nasci a 4 de Março de 1873 no velho sobrado de azulejos, situado entre Tamarineira e Mangabeira de Baixo, estação da Estrada de Ferro, suburbana do Recife que estão terminava no Monteiro, ramal do Arraial. Do entroncamento até o Monteiro era então o único sobrado de azulejo que havia. Ao lado que dava para a Estrada de Ferro erro o jardim, jardim imenso com as muitas roseira do tempo, Rosa Amélia, Roda de Alexandria, e posteriormente Paul Nerón e Bola de Ouro. Meu avô, Francisco de Paula Rodrigues, tinha escravos e era eles que tratavam e agoavam o jardim, trabalho que depois dos meus 8 anos era para mim uma ocupação incomparável. Batizei-me em oratório privado quando tinha oito dias. Foram meus padrinhos os avós maternos, Francisco de Paula Rodrigues e Silvina de Paula Rodrigues. Apesar de ter nascido no dia dos Santos Casimiro e Lucio, tive o nome inteiro do meu Pai. (CASCUDO, 1961 p. 30).

No ano seguinte, nasce Henrique Castriciano, no dia 15 de Março de

1874. No dia de Santo Irineu, 28 de Junho de 1875, nasce Irineu Leão

Rodrigues de Souza.

Enquanto isso, o patriarca Eloy de Souza, que à época já era um homem

influente, conquista mais amigos, fregueses e poder político discursando sobre

as eleições e traçando planos para derrubar o poleiro administrativo da região.

Desfrutando de seu alto poder aquisitivo, constrói um casarão com oito janelas,

muito arejado, com um quintal cheio de árvores. É nesse casarão, no dia 12 de

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Setembro de 1976, dia de Santa Auta, que nasce nossa poetiza, a única

menina entre cincos filhos: Auta de Souza, um anjo que descia do céu para

cantar e sofrer. Logo que nasceu, Auta de Souza encantou a todos da família.

No dia de São João Câncio, 20 de outubro de 1877 nasceu João Câncio

Rodrigues de Souza, o caçula dentre os irmãos de Auta.

2.2.1 As primeiras perdas.

A vida de Auta de Souza foi bastante atribulada. As experiências de

perda foram freqüentes desde a tenra idade. A primeira perda veio com a morte

da mãe Henriqueta Leopoldina. Devido aos cincos partos consecutivos,

Henriqueta vivia pálida, fraca e caía facilmente. Naquela época, a cidade do

Recife era um pólo centralizador, tanto para estudos como para atendimentos

hospitalares, e para lá foi Henriqueta tratar de suas debilidades. Após receber o

diagnóstico de Tuberculose, Henriqueta foi aconselhada a viver em lugares de

clima seco, onde não houvesse mudanças climáticas.

Levando consigo os filhos Eloy e Henrique, ela se hospeda na fazenda

Carcará, em ribeira do Potengí, uma das propriedades do marido. Sem

esperanças de se restabelecer, regressa para a residência senhorial em

Macaíba, onde viveu seus últimos meses, cercada de cuidados. Na tarde do

dia 29 de Junho de 1879, dia de São Pedro, Henriqueta Leopoldina morreu,

deixando sua filha com 2 anos e 9 meses.

A mãe de Auta foi homenageada em inúmeros poemas da autora. Em

tais versos a poeta demonstra muita tristeza e saudades, associando a imagem

da mãe à sua condição de desalento. Dentre os poemas dedicados a

Henriqueta, “Eterna dor” destaca-se pela intensidade de sua melancolia, que

chega ao ponto de almejar a própria morte para estar junto da mãe e longe

desse mundo que, segundo ela, é tão cheio de mágoas que faz chorar o

próprio Deus.

Eterna Dor

Alma de meu amor, lírio celeste,Sonho feito de um beijo e de um carinho,Criatura gentil, pomba de arminho,Arrulhando nas folhas de um cipreste,

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Ó minha mãe! Por que no mundo agreste,Rola formosa, abandonaste o ninho?Se as roseiras do Céu não têm espinho,Quero ir contigo, ó meu lírio celeste!

Ah! Se soubesses como sofro, e tanto!Leva-me à terra onde não corre o pranto,Leva-me, Santa, onde a ventura existe...

Aqui na vida – que tamanha mágoa! –O próprio olhar de Deus encheu-se d’água...Ó minha mãe, como este mundo é triste!

Os avós maternos Francisco Paula Rodrigues e Dindinha estavam

presentes na missa de 7º dia de morte da filha Henriqueta e logo após o

término da cerimônia eles levaram os cincos netos para o Recife. A partir de

então, o Sobrado de Azulejos no Arraial passou a ser o abrigo daquelas cinco

crianças.

Eloy de Souza, o pai de Auta, após a morte da esposa, dedicou-se mais

avidamente à política, sendo eleito Deputado Provincial durante o período de

1878 a 1879 e depois reeleito durante 1880 a 1881. Na tarde de 15 de fevereiro

de 1881, aos 39 anos de idade, morreu na cidade de Macaíba, também vítima

de Tuberculose. Mais uma vez, Auta de Souza, com apenas 5 anos de idade,

experimenta a perda de um ente querido, acometido do mesmo mal que levara

sua mãe poucos anos antes.

Na sequencia de perdas veio vovô Paula, marido de Dindinha, que

adoeceu de bronquite após uma de suas viagens a Macaíba, onde foi fiscalizar

as firmas e propriedades agrícolas da família. Aos 73 anos, morreu o querido

avô de Auta. A partir de então, Dindinha fica sozinha para cuidar dos netos e

do patrimônio, apesar de morar longe de Macaíba.

2.2.2 Pausa para uma vida natural de criança

Apesar de sua vida ter sido marcada por mortes desde cedo, a infância de Auta

de Souza teve muitos aspectos comuns aos das crianças de famílias

abastadas. Foi uma menina alegre, curiosa e tranqüila; era nas brincadeiras

que gastava suas energias. Gostava muito de jardins; desde cedo foi muito

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sonhadora – era comum que os irmãos a vissem parada com a mão no queixo,

viajando sem sair do lugar.

Seu parceiro mais frequente era o irmão João Câncio, um menino

obediente ao que Auta ordenava. Mas seu irmão preferido foi Irineu, apesar de

ser um menino muito calado. Henrique adorava brincar com Auta. Já o irmão

mais velho, Eloy, se dedicava aos serviços dos jardins do Arraial.

Aos 7 anos de idade Auta já lia, escrevia, fazia contas e se mostrava

muito interessada por estudos. Isso fez com que a avó a mandasse estudar

francês com uma moça que morava em Ponte D’Uchôa. Aluna dedicada, Auta

aprendeu rapidamente o idioma Francês, escrevia versos na língua estrangeira

e os recitava.

Ajudava a preparar as festas que havia no Colégio São Vicente de Paula,

que era dirigido pela irmã Savigno e um grupo de professoras francesas no

bairro da Estância. Esse colégio era uma escola que atraia as filhas da

sociedade pernambucana pela sedução dos novos processos educacionais e

novidades da cultura pedagógica. Foi a única escola que a poetiza cursou. Na

escola, Auta conquistou muitas amigas. Uma delas é Antonia Tavares de

Araujo, a quem dedicou alguns poemas em seu livro Horto.

2.2.3 Irineu Leão Rodrigues de Souza: uma gaiola sem o passarinho.

Irmão e companheiro predileto de Auta, Irineu era um menino calado. Na

noite de 16 de fevereiro de 1887, quando Auta tinha 11 anos de idade, uma

tragédia abalou seu coração de criança.

Há duas vertentes que explicam a morte de Irineu. A primeira – segundo

o livro Vida Breve de Auta de Souza de Luis da Camara Cascudo – Irineu subia

as escadarias para o andar superior carregando um candeeiro de querosene

na mão. Um vento canalizado na chaminé provocou a explosão do candeeiro

nas mãos de Irineu cobrindo-o de chamas e espalhando as labaredas por toda

a casa. Gritando de pavor correu até esgotar as forças, vencido pelas

queimaduras. Quando foi alcançado pelos escravos e pela Avó, Irineu estava

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irreconhecível e condenado a morte. Agonizou por 18 horas antes de morrer no

dia 17 de fevereiro de 1887, 6 anos após a morte do pai, Eloy.

A outra versão para a morte de Irineu diz que o menino dormia na rede

quando acidentalmente o candeeiro com querosene caiu sobre os punhos da

rede. O Fogo se alastrou rapidamente sobre a rede e por toda a casa. No lado

de fora, os irmãos, a avó e Auta viram Irineu passar em chamas correndo

dentro da casa. Auta, que gostava muito do irmão e tinha assumido certa

maternidade sobre ele, correu para dentro da casa e puxou o irmão em chamas

para fora. Envolveram Irineu com folha de bananeira e, depois de 18 horas

segurando a mão do irmão e companheiro, Auta assistiu os últimos momentos

de vida do pequeno Irineu, a agonia e dores das queimaduras. No dia 17 de

fevereiro de 1887, Auta perdia mais uma pessoa querida em sua vida.

Encontramos em seu livro Horto alguns poemas em que ela expressa

seus sentimentos em relação à morte desse irmão querido. Nesses poemas

Auta refere-se ao irmão morto de forma muito presencial, como se a ausência e

a presença de Irineu fossem sensações conflitantes dentro de si.

Especialmente por esses poemas, em que trata da morte de Irineu, é que

Auta é aclamada por adeptos do espiritismo como uma das primeiras escritoras

espíritas do Brasil. São frequentes as imagens criadas por Auta de Souza

retratando a alma do irmão como algo presente e até mesmo visível em sua

vida.

No soneto intitulado Irineu, Auta de Souza declara com muito pesar que a

morte causou um grande abismo entre os dois irmãos e termina o poema

afirmado que, em determinados instantes, vê a alma do irmão subindo ao céu:

[...] Os anos que se foram! Entanto, eu cismoA todo o instante, no profundo abismoQue veio a morte entre nós dois abrir.

Mas cada noite n’asa de uma prece,Ou num raio de sol quando amanhece,Vejo tua alma para o céu subir...

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Em outro poema, intitulado “Goivos”, dedicado a ausência do irmão

Irineu, Auta faz um paralelo entre a sensação de ver seu passarinho morto e as

saudades que sentia do irmão, criando a bela metáfora de ser o seu coração

uma gaiola vazia pela morte prematura do pássaro, a quem compara com

Irineu. Abaixo, temos um trecho do poema.

Goivos

À memória de Irineu.Um dia... (eu era menina)Trouxeram-me um passarinho;Era uma ave pequenina,Roubada ao calor [...]

Mas dias depois, ó dor!Que grande desdita a minha;No fundo da gaiolinhaAchei morto o pobre amor.

Tinha o biquinho entreabertoQual se morresse a cantar,E um par de assas aberto,Como se fosse a voar.

Chorei sem hipocrisia,Como se chora em criança...Era a primeira esperançaQue do sei me fugia. [...]

Mas... a gaiola vazia,Que eu conservo noite e dia,Não sabem? É o Coração...É dentro dele que mora,É dentro dele que chora,A alma do meu irmão.

Já em outro poema, intitulado “À memória de uma ave”, Auta utiliza a mesma analogia feita em “Goivos”, porém numa outra atmosfera, essencialmente consoladora e feliz, o que nos remete, entre vários outros exemplos, à dualidade expressa no título da obra “Horto”. Aqui, a morte, tanto do pássaro como a do irmão é tratada com serenidade, não mais envolta no manto do sofrimento e da saudade, mas sim de uma compreensão incomum da morte como algo divino:

À memória de uma ave

Quando morre uma criança

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Diz-se que o pálido anjinhoVoou como uma esperança,Foi para o Céu direitinho.

Mas nossa mente se cansaA voar de ninho em ninho,Interrogando a lembrança,Quando morre um passarinho.

Só eu, se alguém diz que a vidaDe uma avezinha queridaSe extingue como um clarão,

Ponho-me a rir, pois, divina!Ouço cantar em surdina,Tu’alma em meu coração

2.2.4 Uma vida dedicada a Deus.

A União Pia das filhas de Maria funcionava como um estímulo adicional

para que as estudantes buscassem o virtuosismo nos colégios. Para fazer

parte dessa União, as meninas tinham que ser consideradas merecedoras por

sua conduta exemplar, devoção e fé reconhecida. Havia competição em

devoção, piedade, espírito de mortificação e adesão irrestrita aos preceitos

doutrinários do catolicismo da época entre meninas que queriam participar da

Pia União.

A igreja Católica oitocentista direcionava a educação das moças

sugerindo leituras de histórias religiosas ou romances baseados em fatos

históricos ou temas religiosos. A igreja preparava as moças para a morte

identificando-as com o sofrimento de Cristo na cruz, como uma forma de

remissão do pecado original vindo por Eva na Tentação do Jardim do Éden,

apresentados nos primeiros capítulos da Bíblia sagrada. Pecado esse que

levou a igreja Católica a postular Eva como um emblema feminino de rebeldia.

Para contrapor o exemplo de Eva, as mulheres deveriam almejar a

pureza da Virgem Maria, um modelo santificado de domesticidade. Ao segui-lo,

elas assumiriam o poder de condutoras do bem, mas apenas no âmbito

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familiar, pois, segundo a mentalidade da época, o único objetivo de uma mulher

era conseguir um casamento bem realizado no qual pudessem exercer com

maestria a função de esposa e mãe. O marido era visto como um presente de

Deus que conduziria a mulher, através do sacrifício, à santidade. Esse discurso

da igreja Católica servia para colocar a mulher cristã como um anjo do lar em

oposição ao anjo rebelde.

Auta freqüentava a igreja e era amiga das zeladoras. Com humildade,

ajudava-as no arranjo dos altares, colocava azeite nas lâmpadas do Santíssimo

e tinha uma dedicação especial para com o grupo das catequistas, preparando

várias turmas para a Primeira Comunhão.

Foi no meio desse universo ideológico que Auta de Souza viveu e

estudou, o que justifica o recorrente tema da fé inserido em seus poemas. Ela

estava entre as integrantes mais fiéis da União Pia das filhas de Maria e serviu

de exemplo para as alunas consideradas menos virtuosas.

Abaixo, transcrevemos “Rezando” e “Soneto”, dois dos vários poemas

religiosos no qual a poeta demonstra sua devoção e fé. No primeiro, composto

em redondilhas, temos uma homenagem ao menino Jesus, no qual a poeta

busca esperanças e chora suas dores, pedindo para vê-lo, num sutil desejo de

morte; poema este musicado em seu cancioneiro. No segundo, apesar de

mencionar a mágoa e o sofrimento, a poeta canta a vida, atribuindo

resignadamente a Deus toda a beleza que existe “neste mundo cruel de

desenganos”.

Rezando

Róseo meninoFeito de luz,Lírio divino,Santo Jesus!

Meu cravo olente,Cor de marfim,Pobre inocenteBanco Jasmim!

Entre as palhinhas,Pequeno amorDas criancinhasTu és a flor.

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Cabelo louro,Olhos azuis...Eis meu tesouro,Manso Jesus!

Estrela pura,Santo farol,Flor de canduraRaio de sol...

Dá-me a esperançaN’um teu olhar:Loura criança,Me ensina a amar.

Sonho formosoCheio de luz,Jesus piedoso,Meu bom Jesus...

Como eu te adoro,Pequeno assim!Jesus, eu choro,Tem dó de mim.

No doce encantoDe um riso teu,Jesus tão santo,Leva-me ao Céu!

Em ti espero,Mostra-me a luz...Leva-me, eu queroVer-te Jesus!

Macaíba - Noite de Natal – 1896

Soneto

Tudo o que é puro, santo e resplendente, N'este mundo cruel de desenganos, Toda a ventura dos primeiros anos N'um'alma que desabrocha sorridente;

Tudo o que ainda vemos de potente Na vastidão sem fim dos oceanos,

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E da terra nos prantos soberanos Trazidos pela aurora refulgente;

Tudo o que desce do infinito ousado: O sol, a brisa, o orvalho prateado, A luz do amor, do bem, das esperanças;

Tudo, afinal, que vem do Céu dourado A despertar o coração magoado, - Deus encerrou nos olhos das crianças!

2.2.5 TUBERCULOSE, a doença que assolou a família Souza.

Desde os séculos XVII, associavam a essa doença duas representações.

Uma, era que a Tuberculose era uma “doença romântica”, idealizada nas obras

literárias e artísticas ao estilo do romantismo que se manifestava apenas em

poetas e intelectuais. No fim do século XIX, período em que a família Auta de

Souza viveu, a tuberculose adquiriu outra idealização. Passou a ser considerada

um “Mal Social”. Uma maior incidência de tuberculose junto às classes populares,

em virtude das precárias condições de vida, aspecto obscurecido na "tísica

romântica". Essa doença se espalhava com o vento que saia da boca de um

infectado, visto que a Família Souza não fazia parte das classes populares e nem

muitos menos tinha uma precária condição de vida. O tratamento pra uma pessoa

com essa doença se resumia numa boa alimentação e repouso incorporado no

clima sem variação. Geralmente era aconselhado o clima das montanhas.

Como um tuberculoso vivia junto com os não infectados2. A doença

espalhou dentro da família Souza. Começando com Henriqueta, Eloy, Henrique.

Por sua vez, Auta deve que abandonar a escola. Aos 14 anos de idade,

apareceram em Auta alguns problemas pulmonares. Uma leve febre visitava-a

toda a tarde. Tosses com som estridente, arrepios de frio lhe sacudia suas

espátulas.

2 Só em 1920 que A Reforma Carlos Chagas deu origem ao Departamento Nacional de Saúde inaugurando uma fase de maior intervenção do Estado ao combate à Tuberculose. Nesse ano, foi criado a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose aplicando e disponibilizando o atendimento organizando em dispensários e enfermarias exclusivas para tuberculosos.

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Como a avó Dindinha via que Henriqueta e Eloy morreram de Tuberculose

e que essa doença se mostrara em seus filhos da mesma forma, fez com que

Dindinha levasse a neta, Auta, para Recife em busca de consultas em médicos da

cidade, que na época era cidade em que tudo se resolvia, tanto em relação a

comércio, tanto em relação a formação escolar, como também em relação a

saúde.

Auta de Souza deve que abandonar o Colégio após três anos de estudos.

O Diagnostico foi claro: A dama Branca, nome popular dado para a Tuberculose

da época, a atingira. Como a Penicilina não havia sido descoberta, o prognóstico

para o tuberculoso era fatal. Como essa enfermidade impunha no contaminado

uma rigorosa disciplina e viagens em busca de climas mais adequados, fez com

que Auta fosse para Angicos, no Rio Grande do Norte, cidade que era procurada

por muitos enfermos da Época.

Auta de Souza tinha mais estudos que as moças da época. Com 14 anos

escrevia e lia em inglês e francês. Apesar de ter deixado o colégio em 1890

devido a doença, não impediu que Auta continuasse a busca pelo saber. Não a

impediu de professar o catecismo para crianças em Macaíba.

Já com Henrique, seu irmão, a doença não o impediu de voltar aos estudos

formais mesmo que de forma irregular. A saída de Auta de Souza da escola não

foi só porque estava “tísica”, mas porque já tinha adquirido o “lustro” mais que

necessário para a formação requerida para mulheres.

Com esse conceito discriminatório, Auta de Souza teria que permanecer com seus

mirrados três anos de escolarização regular. Mas isso não seria suficiente para

um poeta e Auta sabia disso, que mesmo com o afastamento do colégio,

continuou aprimorando sua formação intelectual sozinha. Em relação a sua

formação poética, Auta deve a sorte de viver ao lado de seus irmãos que, desde

cedo, já exercitavam sua leitura e escrita, tendo acesso a produções intelectuais

mais atualizadas, entre elas jornais e revistas de divulgação literária.

A Tuberculosa que era considerada um “Mal Social” da época, e que nesse

período existia muitos preconceitos para o portador da doença, ninguém sabia que

Auta ou que seus familiares sofriam desse mal. Expressões como “Não consigo

vender essa casa parece que é casa de Tuberculoso” visto que tudo dentro de

uma casa ficava contaminado com o bacilo de Koch, ou expressões como “tem

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ouvido de tuberculoso” para o doente porque prestava atenção nas conversas

sussurradas. A família paterna de Auta tinha estreitas relações familiares, políticas

e de compadrio com famílias da cidade de Macaíba e do Maranhão, considerada

uma oligarquia no Rio Grande do Norte. Tal relação foi importantíssima na vida de

Auta e de seus irmãos. Mas tarde Henrique Castriciano foi Procurador do Estado,

Secretário do Governo, Deputado Constituinte, Vice-Governador e Presidente do

Congresso Legislativo do Estado. Seria difícil para um tuberculoso em que todos

sabiam da sua doença subir de tal maneira.

No soneto Passando notamos que Auta era invejada por outras moças de

sua contemporaneidade e que ninguém sabia da sua doença. Notamos também

que a poeta era uma moça que tinha uma forte personalidade. Aos 19 anos ela

escreve:

Passando

Ao Dr. Celestino Wanderley, em agradecimento à sua Morte de Cecy.

Quando me vêem passar risonha e calma,Sem um pesar que me anuvie a fronte,Perdido o olhar na curva do Horizonte,Cuidam que eu tenho o paraíso n’alma.

Mesmo encontrei quem me dissesse um dia:“Invejo-te a existência descuidosa”.Como se espinhos não tivesse a rosa,Ou fosse a vida isenta de agonia!

Porém, enquanto, desdenhosa, altiva,Eu vou passando, alegre ou pensativa...A ria, a rir, como um feliz demente,

Meu pobre coração dentro do peito- Triste doente a agonizar no leito –Vai soluçando dolorosamente.

Mesmo doente, ela nunca deixou de participar de eventos sociais com as

moças e os rapazes da cidade. Nessas festas só os homens podiam beber as

“bebidas para homem”. Mulheres não podiam beber em nenhuma hipótese.

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Essas festas eram recheadas de poesias, sendo que Auta era a única mulher

que as declamava.

A moça tinha vida social muito ativa: além das atividades na igreja,

cultivava muitas amizades e empreendia encontros e saraus em casa. Mais

tarde Auta iria fundar o Clube do Biscoito, um grupo de jovens que se reuniam

festivamente para ler e discutir literatura. Nessas reuniões, Auta declamava

poemas de Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Junqueira Freire

e poetas norte-rio-grandenses como Lourival Açucena, Areia Bajão, Segundo

Wanderley, entre outros poucos conhecidos.

Preservando amizades de colégio, tanto em Recife como em Macaíba e

Natal, Auta dedicou vários poemas a amigos. Analisando estes poemas ou

mesmo dedicatórias com olhos de uma sociedade conservadora e recalcada,

poderíamos estranhar o excesso de intimidade com que Auta se manifestava

ao falar dos olhos, cabelos, lábios e outras partes do corpo.

Naquela época não seria de bom timbre para a sociedade ouvir uma

moça falando do corpo masculino, pois até o casamento a ordem era de que a

mulher não deveria se aproximar do sexo oposto. Portanto era natural que as

moças de antigamente tivessem intimidade mais forte entre elas. Como não era

comum a escrita feminina, Auta apresenta certa singularidade ao falar de sua

admiração pelas amigas. São inúmeros os poemas de Auta dedicados a

mulheres, mas num deles, “Versos ligeiros”, a poeta espanta-se pela

intensidade da própria contemplação à beleza feminina:

Versos Ligeiros

Eu acho tão feiticeiraA Noemita da esquina,Com o seu recato de freira,Muito morena e Franzina;

Que fico toda encantadaQuando na Igreja a contemplo,Pois cuido ver uma fadaAjoelhada no Templo.Doce nuvem cor-de-rosaParece que a Deus se eleva,Daquela boca mimosa,Daquele olhar cor de Trevas. [...]

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Tem a boquinha vermelhaComo uma rosa entreabrindo...É um favo de mel de AbelhaAquela boca sorrindo!

Minh’alma nunca se cansaDe vê-la assim, tão divina,Sempre formosa e criançaCom seu perfil de menina.

Ás vezes, eu olho-a tanto,Com tanta veneraçãoQue fico muda de espanto,Depois da contemplação

É verdade que não fazMal nenhum fitá-la assim...Meu Deus! Se eu fosse rapazO que diriam de mim?!

2.2.6 O fantasma volta à tona

Sua avó tinha uma grande cautela em relação à saúde de Auta devido à

tuberculose. Dindinha com leveza ensinava os afazeres domésticos, a bordar

letras em lenços, pregar botões, fazer flores de papel e a confeitar bolos. Tudo

para que a moça se ativesse por mais tempo dentro de casa, onde estaria em

maior segurança.

Em 1893, mesmo com todos os cuidados da avó, reaparecem os

sintomas da doença em Auta. Febre, arrepios e tosses voltam a atormentá-la,

isso fez com que Auta se ausentasse de Macaíba – onde havia voltado a morar

após cessar a primeira crise da doença – e fosse para a Fazenda Jardim. Auta

não parava de compor poemas. Foram cinco poemas datados nesse período.

Num deles, “Desalento”, Auta expressa as angústias provocadas pela doença e

pela idéia da morte que a ameaçava:

Desalento

Quando meu pensamento se transportaÀs praias de além-mar,Sinto no peito uma tristeza imensaQue manda-me chorar.

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É que vejo morrerem, uma a uma,Santas aspiraçõesE voarem como os pássaros saudososAs minhas ilusões...

Nunca julguei que a terra fosse um túmuloDe sonhos juvenis,Sorrindo acreditei que aqui, no mundo,Podia ser feliz...

Enganei-me: a tristeza que me oprimeO coração sem luz...Como do Sol o derradeiro raioNos braços de uma Cruz...

A trêmula saudade que entristeceE de desfalecer;Essa agonia lenta que me inspiraDesejos de morrer...

Tudo me diz que a vida é o desengano,A morte da Ilusão,E o mundo um grande manto de tristezasQue enluta o coração.

Jardim - 1983

2.2.7 Um coração apaixonado.

Em 1895, Auta de Souza apaixonou-se por João Leopoldo da Silva

Loureiro, promotor público de Macaíba e posteriormente da cidade de

Canguaretama. Havia rumores da possibilidade de um noivado entre os dois,

porém a interferência dos irmãos de Auta pôs fim aos planos do casal.

Segundo Câmara Cascudo, que era amigo próximo de Eloy e Henrique, o

rapaz não era da confiança da família de Auta de Souza.

Mas o motivo principal da interferência dos irmãos contra o noivado foi o

medo de que o rapaz descobrisse a doença de Auta e a rejeitasse, tornando de

conhecimento público a tuberculose na família Souza. Havia também a

possibilidade de que Auta transmitisse a doença para promotor ou mesmo para

os filhos que esse casal viesse a ter, deixando-a triste com mais uma tragédia

em sua vida. Se esse motivo é verdadeiro, de acordo com a vontade dos

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irmãos, Auta de Souza permaneceria sempre solteira. Eloy e Henrique, que

eram mais velhos e já influentes em Macaíba fizeram com que João Leopoldo

fosse transferido de cidade, afastando-o definitivamente da irmã.

Em 12 de Junho de 1897, em João Pessoa, o promotor público morre de

tuberculose, o que sugere que o rapaz contraira a doença de Auta. Foi nessa

época que Auta de Souza fechou seu livro manuscrito denominado Dhálias,

contento poemas escritos entre 1893 e 1897. Quase um ano depois, dentre

algumas publicações feitas em A República, Auta escrevia “A Beira Mar”,

poema este que foi excluído do Horto. Nesse pequeno e doce poema, Auta se

lembra do amado promotor riscando seu nome na areia da praia.

A Beira Mar

Quantas vezes na areia embranquecidaDo Mar, teu doce nome estremecidoA minha mão traçou...Mas... este mesmo nome, tão queridoQuantas vezes uma onda enraivecidaDa praia não levou?...

2.2.8 A formação poética e intelectual de AuTa de Souza.

Quando criança, segundo o irmão Henrique Castriciano, Auta gostava

muito de ler a Historia de Carlos Magno e os Dozes Pares de França, livro

bastante conhecido no nordeste. Ele afirma que Auta não o lia apenas para si,

mas em voz alta em eventos para as mulheres do povo e escravos. Os livros

franceses estavam presentes na história literária de Auta. A moça lia os livros

de Jacques Bénigne Bossuet, François de Salignac Fenelon, François René

Chateubriand e Alphonse de Lamartine. De alguns autores estrangeiros, Auta

usou seus poemas como epígrafe. A leitura de Auta de Souza foi muito vasta.

Conheceu obras de muitos autores importantes para a história literária do Brasil

e do mundo.

De acordo com depoimentos feitos por Henrique Castriciano, o livro de

cabeceira que Auta lia antes de dormir era um devocionário católico conhecido

por A imitação de Cristo, livro compilado a partir de manuscritos medievais.

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Auta de Souza estreou como escritora oficialmente em 1894, com 18

anos de idade na revista Oásis de Natal3. Dois anos depois, Auta passou a ser

colaboradora em A República, também de Natal, ao lado de Pedro Velho de

Albuquerque Maranhão, o fundador do jornal, dos irmãos Eloy de Souza como

redator e Henrique Castriciano como colaborador. Vale salientar aqui o mérito

próprio de cada um deles na conquista de seu espaço de divulgação, tendo em

vista a notória qualidade de seus trabalhos.

Na época, A República era o meio de comunicação de maior circulação

do país, pois permutava com a imprensa do sul, do norte e do Centro do país.

A partir do ano de 1897, Auta passou a ser colaboradora oficial do jornal ao

lado de outros nomes masculinos, dentre os quais seu irmão Henrique

Castriciano. Foi então que Auta passou a publicar assiduamente seus poemas

em A Tribuna, um periódico de prestígio onde ocorriam muitas publicações de

famosos autores nordestinos.

No mesmo ano, Auta colaborou com a revista Oito de Setembro, primeiro

periódico religioso e popular da igreja Católica do estado, fundado pelo Padre

João Cavalcanti de Brito (1848-1905) popularmente conhecido como Padre

João Maria, uma figura importante da igreja católica do Rio Grande do Norte,

considerado santo, havendo inclusive tentativas de sua canonização. Auta teve

muitos de seus poemas musicados pela igreja Católica, o que se deve em certa

medida à sua estreita amizade com o Padre João Maria.

Em 1897, Auta iniciou outro manuscrito, com alguns poemas do anterior

– Dhálias – modificando-os e acrescentando poemas inéditos. Esse novo livro,

denominado Horto, foi publicado pela primeira vez em 1990. Dezesseis dos

114 poemas presentes na obra já haviam sido publicados antes, em outros

meios de comunicação.

Entre os anos de 1899 a 1900 Auta de Souza passou a usar os

pseudônimos de Ida Salúcio e Hilário das Neves para publicar seus poemas

em jornais.

Não há publicações ou notícias de que Auta de Souza tenha participado

de movimentos políticos nessa época, mas sua participação na revista Oito de 3 No Oasis, não só era publicado apenas textos literários, mas também havia publicações de noticias da época. O Oásis fazia parte do grêmio literário de Le Monde Marche.

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Setembro sugere sua aproximação com as causas abolicionistas, visto que o

padre João Maria foi um grande defensor da abolição dos escravos. Não

podemos deixar de mencionar sobre a cor da pele de Auta de Souza, que

revelava claramente suas origens africanas. Pouco se falou sobre isso até hoje,

mas é possível afirmar que, no plano imaginário, houve uma espécie de

embranquecimento da poetisa. Em retratos, ela é apresentada como uma

jovem branca e de finas feições, mas há evidências de que tal imagem tenha

sido forjada nesses aspectos.

2.2.9 Horto, sua única obra.

No ano de 1899, Auta de Souza já estava com o Livro Horto pronto para

ser publicado. Arthur Pinto da Rocha, colega de seu irmão Eloy de Souza, fez

uma leitura cuidadosa do livro tecendo algumas considerações. Algumas foram

aceitas por Auta e outras não. Arthur pegou o manuscrito no quarto em que

estava dividindo com Eloy no Rio de Janeiro. O manuscrito estava com Eloy

para ser entregue a Olavo Bilac para que ele o prefaciasse.

Com uma tiragem de mil exemplares, o Horto foi publicado em 20 de

junho de 1900, trazendo o prefácio de Olavo Bilac – idéia dada pelo irmão,

Henrique, que muito insistira para que a irmã aceitasse – trazia 144 poemas

dentro de 232 páginas.

O prefácio de Olavo Bilac na primeira edição do livro foi e tem sido um

grande orgulho dentro desses 108 anos de sua publicação. Não só para Auta

de Souza, mas para todos que buscam um forte argumento para a importância

da poetisa4 dentro das letras femininas brasileiras.

Olavo Bilac no prefácio em que fez para a primeira edição afirma:

E o encontrar entre os livros de versos (tantos, Santo Deus!) que por aí se publicam um livro como este, de uma tão

4 Esse prefácio pode ter sido importante para Auta de Souza no período em que ela era uma poetiza desconhecida nos centros intelectuais da época, mas hoje sabemos o tamanho do brilhantismo de seus poemas.

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simples e ingênua sinceridade, é coisa que surpreende e encanta. Não há nas estrofes do Horto o labor pertinaz de um artista, transformando as suas idéias, as suas torturas, as suas esperanças, os seus desenganos em pequeninas jóias [...] Aqui a obra vibra em liberdade, sem a preocupação dos afeites da Forma, livre da complicada teia do artifício. Ingenuamente, comovida e meiga, essa alma de mulher alma de mulher vai traduzindo em versos os mundos de sensações, agora ardente, agora triste, que o espetáculo da vida lhe vai sugerindo [...] (BILAC, 1899. p. 15-17)

Após seu falecimento no ano seguinte da publicação do seu único livro,

o Horto foi publicado por mais quatro vezes (1910, 1936, 1970 e 2000). Na

segunda publicação, Henrique escreveu uma Nota sobre ele, que mais tarde

tornou-se um emblema biográfico de Auta de Souza. Além da Nota, a nova

publicação do livro trouxe mais 17 poemas inéditos retirado do manuscrito

Dhálias. Henrique, aproveitando a viagem para França, em busca de um

tratamento e pesquisa pelo governo do estado, levou a segunda edição do

Horto para ser tipografado em París. A terceira edição do livro foi publicada no

Rio de Janeiro e ganhou mais um prefácio escrito por Alceu Amoroso de Lima.

Na terceira e quarta edição, os poemas foram reproduzidos iguais aos

da primeira e segunda, apenas modificando as ordens de apresentação deles.

Em 1970, pela fundação José Augusto Natal – RN, tivemos a penúltima edição

e a quinta produzida em 2000 pela Editora Auta de Souza, da Sociedade de

Divulgação Espírita Auta de Souza, de Taguatinga (DF) em comemoração aos

cem anos do livro.

2.2.10 “Longe de mágoa, enfim, no céu repousas quem sofreu muito e quem amou demais”

Já sabemos que Auta de Souza tinha contraído a Dama Branca, nome

dado à Tuberculose. Sabemos também que a doença nunca a impedira de

viver normalmente produzindo seus poemas e participando dos eventos como

qualquer moça intelectual da época participava. Mesmo em meio às crises

fortes que a atacavam, Auta viajava em busca de descanso e de bons climas.

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Não confundindo aqui o eu – lírico5, Auta descreve alguns desses momentos

no poema Dolores. Numa crise da doença, Auta sente falta de ar e abre as

janelas. De lá olha o Campo Santo, nome dado ao cemitério onde sabia que,

em breve, seria enterrado o caixão de seu pobre corpo tuberculoso.

Dolores

Já vão caminho do cemitérioMeus louros sonhos em visões negrasE vão-se todos no Azul sidéreoComo uma nuvem de toutinegras.

A noite de ontem levei chorandoTodo o passado de meus amores;E o dia ainda me achou, rezandoNo imenso terço de minhas dores.

Vejo na vida longo desertoSem doce oásis de salvação,Dentro em minh’alma, douda, chorosa,De pobre moça tuberculosa,Cheio de medo, trêmulo, incerto,Bate com força meu coração.

E assim morrendo, coitada, aos poucos,Convulsa e fria, louca de espanto,Solto suspiro, soluços roucos,Olhando as cruzes do Campo Santo;

Porque me lembro que muito breveLeva-me a ele tanta dor física.É dentro em pouco, branco de neve,Verão o esquife da pobre tísica.

Enfim, a morte bateu em sua porta em golpes definitivos. Na noite de 6

de fevereiro, Auta entrou em uma forte crise de tuberculose. Familiares a

cercavam velando o desespero da moça. Como uma voz rouca, Auta pede

para chamar o Padre João Maria, que rapidamente atendeu ao chamado.

Quando chegou à casa da Família Souza, deu a Auta a Extrema Unção e

segurou sua mão após a absolvição sorrindo, pois sabia qual o caminho que 5 Aqui é o eu – lírico poético que afirma ter tuberculose. Como foi falado anteriormente do preconceito que havia sobre o “mal-social” que era a tuberculose.

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Auta de Souza iria percorrer. Naquele momento, os olhos grandes de Auta não

demonstravam pavor, havia uma serenidade. Ela ainda teve uma última

sufocação, agitando-se e sacudindo as mãos no ar. A partir desse momento,

Auta fechou os olhos para sempre com 24 anos, 4 meses e 26 dias.

Seu falecimento foi anunciado em uma nota comovente no periódico A

República. No cemitério, muitos homens importantes da cidade discursaram,

como Pedro Avelino, representando o Grêmio Polimático, Ezequiel Wanderley,

pelo Congresso Literário; Manoel Dantas, por A República; Lima Filho, pelo Le

Monde Marche.

Dias depois do sepultamento de Auta de Souza, em 16 de fevereiro de

1901, o Oásis prestou uma homenagem, publicando grandes notas cheias de

saudades. Logo depois, A Tribuna – representando o Congresso Literário e

com a ajuda de oito colaboradores – dedicou à poetiza um número parcial do

periódico.

Como podemos notar, a morte de Auta de Souza teve uma grande

repercussão no Brasil.

Em uma publicação para A República, na secção Acta Diurna, Luis da

Câmara Cascudo publica em 23 de fevereiro de 1943, mês de aniversário de

sua morte, uma crônica, dentro da sua secção, com título de “UM TÚMULO

PARA AUTA DE SOUZA”. Mesmo a crônica cheia de enganos nas datas e que,

mais tarde, quando a reescreveu em seu livro Vida Breve de Auta de Souza

com as datas exatas, Cascudo afirma justificando os erros e colocando as

datas exatas, seu apelo sincero e espontâneo pedindo um túmulo para a

poetisa norte-rio-grandense que, até então, estava sepultada no cemitério do

alecrim sem o devido reconhecimento.

Auta de Souza faleceu em Natal às 7,15 da manhã de 7 de maio de 1901 na casa n. 15, da Avenida Rio Branco onde residiam seus irmãos Eloy de Souza, Henrique Castriciano e João Câncio. Tinha vinte e cinco anos, sete meses e cinco dias de idade.

Sepultou-se na tarde do mesmo dia. Pedro Velho beijou-lhe a face morta, cobrindo-a de lírios.

Falaram no Cemitério, Galdino Lima, Pedro Avelino e Ezequiel Wanderley. Todos já desapareceram.

Auta de Souza em 1900 publicara seu livro de versos, Horto com uma segunda edição em 1910 e outra em 1936.

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Não pode haver duas opiniões sobre Auta de Souza. É a maior poetiza mística do Brasil.

Não é menor lírica. A paisagem alma, sentimento, paixões e tristezas, foram temas maravilhosamente tratados com elevação clareza e originalidade.

Em 1906 exhumaram seus restos mortais do Cemitério do Alecrim e levaram para a Matriz de Macaíba. Colocaram os ossos no jazigo da família. Auta de Souza está lá.

Na figura as letras do seu nome na lápide. Não mereceu um epitáfio. Não possue um túmulo.

Faço um apelo às Almas de boa-vontade. Aos jornalistas e aos poetas. Aos membros da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. A doma Palmira Wanderley de França, titular da cadeira academia de que Auta de Souza é a égide patronímica. Faço um apelo a todos os brasileiros residentes nas terras do Rio Grande do Norte.

Todos que amem a beleza invisível da Poesia, são convidados para essa campanha serena e generosa.

É preciso doar-se um túmulo à maior Poetiza Mística do Brasil. Um túmulo, apenas.

Deixo aqui este soneto onde Auta de Souza escreveu o próprio epitáfio –

Eis o descanso eterno, o doce abrigoDas almas tristes e despedaçadas;Eis o repouso enfim; e o sono amigoJá vem cerrar-se as pálpebras cansadas.

Amargura das terras! Eu me desligoPara sempre de vós... Almas amadasQue soluçais por mim, eu vos bendigo,Ó almas de minh’alma abençoadas

Quando eu d’aqui me for, anjos da guarda,Quando vier a morte que não tardaRoubar-me a vida para nunca mais...

Em pranto escrevam sobre minha lousa:Longe de mágoa, enfim, no Céu repousaQuem sofreu muito e quem amou demais.”

(CASCUDO, 1961. p.93)

No mesmo dia, Henrique o responde dizendo:

Natal, 23 de fevereiro de 1943.

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Meu caro Câmara Cascudo

Auta está sepultada entre os seus, no anonimato coletivo que sempre desejou e pediu. Os que conheceram de perto essa doce criatura, sabem que nunca sonhou, na sua humildade cristã, senão a felicidade da morte na sepultura comum dos que lhe foram caros.

Não está sem túmulo; continua apenas entre os seus, junto aos quais descansa aquela avozinha para quem construiu “O Horto”, essa campa de outro em que principalmente a avó e a neta jazem unidas para sempre

Os ossos de ambas, os ossos de toda família, acha-se confundidos com a poeira.

Para que pertubá-los, se já sabem melhor do que nós o que é o nada da vida?

Esta seria a interrogação de quem traçou para si o epitáfio que Você lembra no seu belo e generoso artigo:

Longe da mágoa, enfim no céu repousasQuem sobre muito e quem amos demais.

Seu falecimento ocorreu no dia 7 de Fevereiro à uma hora e quinze minutos da madrugado e não em Maio como está registrando no seu piedoso artigo.

Aceite, meu caro Câmara Cascudo, um grande e sincero abraço do velho amigo e admirador.

(a) H. Castriciano. (Castriciano apud CASCUDO, 1961. p.93)

Cascudo não publicou a carta que Henrique havia enviado respondendo

ao artigo. Respondeu a carta de Henrique alegando que Auta havia publicado

inúmeros versos em jornais e em revistas e que anonimato seria

diametralmente oposto aos livros publicados. Afirmou também na tréplica que

não seria uma falta de humildade ou mesmo uma ofensa cristã os

reconhecimentos dos justos frutos, comparado com o maior humilde da

humanidade, São Francisco de Assis em que seu tumulo é uma catedral.

Questionou Henrique o porquê que o Rio Grande do Norte não poderia mostrar

à sepultura de sua maior poetisa.

Após oito anos, uma proposta do então presidente da Academia de

Letras do Rio Grande do Norte, Paulo Pinheiro de Viveiros, Auta de Souza

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ganhou no jazigo familiar uma lápide, aposta solenemente em 17 de junho de

1951 na Igreja Matriz de Macaíba, repetindo os versos pedidos por Auta de

Souza como um epitáfio em sua sepultura.

Quando Auta de Souza tinha 17 anos, escrevera um poema que não foi

publicado. Ao lê-lo, é possível supor que a poeta olhava para o próprio túmulo:

Quando cheguei ao pé da Igreja entreiPela porta que então mostrou-me abrigo,O sol embalado em leito de outroParecia chorar também comigo...E descia e descia p’ra Poente,Olhando as tristes brumas do Oriente.

Ajoelhei-me então perto da lousa,N’ela pousei os lábios convulsivos...Ai! A doce friez d’aquela campaEm mim achava ecos expressivos...Era tão fria em sua santa calmaQue me gelou todas as fibras d’alma.

E rezei pelas duas vidas justas!Que ali dormiam o sono derradeiro;Minha Mãe! Um’alma cristalina!Meu pai! Um astro que passou ligeiro,E chorei porque veio-me à lembrançaDos beijos que me deram em criança.(SOUZA apud CASCUDO 1961. p 95-96)

É nessa doce Friez d’aquela campa, que Auta de Souza ficou.

Em 14 de Novembro de 1936, Palmira Wanderley foi a primeira titular da poltrona XX dedicada a Auta de Souza na Academia de Letras do Rio Grande do Norte.

2.3 O CANCIONEIRO DE AUTA DE SOUZA

Muitos dos seus poemas foram musicados. Auta de Souza era a poeta

local que mais recebeu melodias em seus poemas. Alguns de seus poemas

foram transformados em belíssimas canções. Auta deve um grande prestígio

entre os cultores de saraus e serenatas no nosso estado. A poetisa Palmira

Wanderley, após assumir a cadeira n.22 da Academia Norte-Rio-Grandense de

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Letras que antes era de Auta de Souza fez elogios sobre Auta. Palmira chamou

Auta de uma Trovadora das Serenatas.

Caminhos do Sertão, musicado por Abdon Álvares Trigueiro para

participar de um concurso que premiava musicista do Rio Grande do Norte, fez

com que o músico Abdon ganhasse em primeiro lugar. Além do prêmio em

dinheiro, o ganhador teria sua partitura musical editada pela Casa Bevilacqua,

do Rio de Janeiro. Esse poema de Auta de Souza foi cantado pela primeira vez

em público no dia 6 de setembro de 1922, acompanhada por uma orquestra-

serenata regida pelo próprio autor.

Outra versão* do poema de Auta de Souza, Caminho do Sertão musicados por

Eduardo Medeiros é diferente da que foi musicada por Abdon Álvares Trigueiro

é mais popular, parecido com à forma das velhas modinhas.

Cláudio Galvão, o cancioneiro de Auta de Souza ganhou um registro

escrito que contribuiu muito até hoje com a transmissão oral dos poemas de

Auta. Outro estudioso da cultura e que divulgava a existência desses poemas

musicados foi Mário de Andrade que chega a afirmar em seu livro Um turista

aprendiz sobre os poemas de Auta de Souza.

Hoje estou gozando a vida na Redinha [praia de Natal]... Chega um choro, clarineta, violões, ganzá, numa série deliciosa de sambar, maxixes, valsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada. Modinhas de Ferreira Itajubá e Auta de Souza... A boca da noite se abriu sem a gente sentir. (Andrade apud GOMES, 2001. p.39).

2.4 AUTA DE SOUZA: ROMÂNTICA E SIMBÓLICA.

No livro História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi (1994)

o autor afirma que Auta de Souza, juntamente com seu irmão Henrique

Castriciano, são poetas potiguares que se destacam na estética simbolista e

que tiveram uma grande importância para a difusão do Simbolismo no Rio

Grande do Norte.

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Mas o fato é que podemos encontrar tanto características românticas

como simbolistas dentro dos poemas de Auta de Souza. Sabendo que essa

última corrente literária tentou resgatar muitos valores e características do

Romantismo varridos pelo Realismo, tal afirmação não se configura como um

contra-senso dentro da produção da autora. Certos valores e características

são semelhantes nas duas escolas, portanto encontramos nos poemas de Auta

de Souza um hibridismo de características Românticas e Simbolistas.

Para entendermos melhor esse hibridismo nos poemas de Auta de

Souza, devemos conhecer os princípios dessas duas correntes literárias.

O Romantismo se inicia na Europa no final do século XVIII, espalhando-

se pelo mundo até o final do século XIX. No Brasil, inicia-se em 1836 com a

publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, do autor Gonçalves de

Magalhães. Nesse período, nosso país ainda vivia sob a euforia da

Independência do Brasil. Os artistas brasileiros buscaram sua fonte de

inspiração na natureza e nas questões sociais e políticas brasileiras.

Das características Românticas temos o predomínio da emoção; o

egocentrismo, subjetivismo, espiritualismo, nacionalismo; o gosto pelas

redondilhas; comparações, metáforas e adjetivações para dar vazão à fantasia;

vocabulário e sintaxe mais brasileiros; a natureza interagindo com o eu – lírico;

o grotesco e o sublime que se complementam; alusões ao cristianismo; a

mulher idealizada e inacessível, a virgem angelical ou sensual; amor intenso e

paixão; interesse pela noite e pelo mistério.

Tal período literário não foi contemporâneo de Auta de Souza, que

nasceu em 1876, época em que o Realismo já havia repudiado os ideais

românticos e, ultrapassado, dava lugar à estética Simbolista, que bebia da

mesma fonte dos Românticos, mas renovado e manifestado de forma diversa.

Porém, é possível encontrar, no Horto, características evidentes de um

romantismo tardio, feito que alguns escritos de Auta possuem cunho

sentimentalista e apresentam sua subjetividade de maneira aflorada. A grande

relevância que dava às suas dores, ao medo da morte e do sofrimento, rende-

lhe caráter semelhante ao dos ultra-românticos, como no poema “Agonia do

coração”, no qual a poeta anuncia sua própria morte:

Agonia do coração

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Estrelas fulgem da noite em meioLembrando círios louros a arder...E eu tenho a treva dentro do seio...Astros! Velai-vos que eu vou morrer!

Ao longo cantam. São almas purasCantando à hora do aormecer...E o eco triste sobe às alturas...Moças! Não cantem, que eu vou morrer!

Pássaros tremes no ninho santoPedindo a graça do alvorecer...Enquanto eu parto desfeita em pranto...Aves! Suspirem, que eu vou morrer!

De lá do campo cheio de rosasVem um perfume de entontecer...Meu Deus! Que mágoas tão dolorosas...Flores! Fechai-vos que eu vou morrer

Em muitos aspectos parecido com o Romantismo, o Simbolismo seria

uma forma de reatar a tradição romântica na literatura, representando uma

nova filosofia de vida, uma maneira diferente de interpretar o homem e o

mundo. Originada na França, a princípio ganha o nome Decadentismo,

passando depois a ser chamado de Simbolismo. Seu percussor foi Charles

Baudelaire (1821-1867).

Essa corrente literária inicia-se no Brasil em 1880 e se estende até

a semana de arte moderna. Um grupo de jovens insatisfeitos com o excesso de

objetividade e materialismo da corrente dominante – o parnasianismo –

resolveu divulgar as novas estéticas vindas da Europa. Nomes como Cruz e

Souza, Alphonsus de Guimaraens, Pedro Kilkerry, Nestor Vitor, Limas Campos,

entre outros tiveram grande importância para o início desse movimento artístico

no nosso país.

Os poetas do simbolismo buscavam mais que a paixão do efeito

estético. Eles buscavam recuperar a subjetividade romântica, porém, evitando

o sentimentalismo demasiado, bem como as banalidades e a pura descrição.

Seu pressuposto é o de que a poesia não pode exprimir coisa alguma de

maneira definida ou definitiva. Os Simbolistas buscavam integrar a poesia à

vida cósmica, ao mundo interior, às regiões mais profundas além do

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consciente, concedendo à poesia um estatuto que apenas era dado à religião e

à Filosofia.

O Simbolismo lutou contra o fatídico Naturalismo e reconheceu a falta de

fundamento na pretensão Positivista em reduzir todo o conhecimento à pura

experiência. Lutou também contra a ingênua fé na ciência, o culto dos fatos, a

recusa da dialética abstrata e metafísica.

Em seus preceitos, encontramos a afirmação de que a realidade não é

dada pelas nossas sensações e muitos menos pela razão. O mundo natural

consiste numa veste de sensível aparência sobre a qual flui a “divina idéia do

mundo”. Muitos simbolistas adotam uma concepção platônica da realidade

concreta como imagem das idéias. Eles colhiam em sim mesmos a voz do

Todo, voz de uma vida misteriosa que palpita em cada ser. Acreditavam em

Deus ou Nada.

Para Baudelaire, um dos precursores desta corrente literária, cada

metáfora, cada comparação tinha que chegar a revelação da realidade

profunda que o poeta desvendava. O poeta alemão Novalis sonhou com uma

poesia que representasse o irrepresentável e visse o invisível. Já para o poeta

francês Rimbaud, o poeta simbolista tinha que se tornar vidente através de

uma longa aberração dos sentidos e atingir o desconhecido através da palavra,

devendo para tal utilizar uma linguagem delirante e enigmática.

O simbolismo buscou uma linguagem que fosse capaz de sugerir a

realidade, e não retratá-la. Para isso, fez uso de símbolos, imagens,

misticismo, religiosidade, transcendência e interação cósmica; atração pela

morte e elementos decadentes da condição humana, metáforas, sinestesias,

além de recursos sonoros e cromáticos. Tudo isso com a finalidade de exprimir

o mundo interior, intuitivo, antológico e antiracional.

Na poesia de Auta de Souza, percebemos a existência da estética

simbolista em diversos aspectos, dentre os quais a recorrência do sonho como

um dos temas principais. Muitas vezes comparado à própria vida, o sonho

aparece como meio de introspecção, fundido à realidade aparente. Em alguns

de seus poemas, o sonho e a vigília se confundem numa sutil dualidade,

criando uma “realidade suspensa”, intimista e abstrata.

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Em especial no poema “Meu Sonho”, percebemos o sonho como uma

espécie de entidade envolta em sensações mescladas em sinestesias. Um

alívio para suas dores que ela descreve como algo sagrado e abstrato, mas

perceptível de várias formas sensitivas.

Meu Sonho

A Yayá e a Maria Leonor Medeiros Eu tenho um sonho que no Céu mora Feito de luz e feito de amor, Um sonho róseo como uma aurora, Um sonho lindo como uma flor.   E eu vivo sempre, sempre sonhando, O mesmo sonho de noite e dia, O mesmo sonho suave e brando De minha vida toda a alegria.   Quando soluço, quando minh’alma, Cheia de angústia, fica a chorar. O sonho amado me traz a calma E, então, minh’alma põe-se a rezar.   Quando, nas noites frias de inverno, Eu tenho medo da tempestade, Ele, o meu sonho, consolo eterno, Transforma as sombras em claridade.   Quando no seio, choroso e louco, Palpita, incerto, meu coração... O sonho doce vem, pouco a pouco, Trazer-me a graça de uma ilusão.   E eu canto e rio na luz dispersa Deste dilúvio de fantasias... Minh’alma voa no Azul imersa Buscando a pátria das harmonias. Imagem doce, visão sagrada, Quimera excelsa dos meus amores, Pérola branca, delícia amada, Bálsamo puro das minhas dores;  Ele, o meu sonho, farol que encanta, Guia-me à pátria da salvação, Sorriso ingênuo, relíquia santa, Do relicário do coração!

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Outro traço simbolista na poesia de Auta é o intenso misticismo e

religiosidade, através dos quais a relação entre a vida terrena e atmosferas

superiores sugerem valores transcendentais. A presença do divino como algo

que rege poeticamente a existência humana tece a idéia de uma nova atitude

do espírito, no qual fato e fé se complementam, no qual é possível amar a

sombra e o brilho doce, construir imagens sagradas inspiradas na cor de

cabelos, expandir o mundo onde é possível viver no mundo infinito do sonho e

da quimera.

Olhos de SantaA Antônia Araújo Cheios de treva e luz, teus olhos têm a cor Das noites sem luar, ó meu divino amor! E eu amo tanto a sombra e o brilho doce e puro Dos grandes olhos teus, ó luz de meu futuro, Como adora minh’alma os rútilos clarões Do bando virginal de suas ilusões.

Olha-me sempre e sempre... Em teu olhar formoso, Minha noite e meu sol, ó Querubim piedoso! Eu quero ver à toa, eu quero ver boiar, - Como se fosse um lago o teu formoso olhar Todo um mundo sem fim de sonhos e quimera, Lírios desabrochando ao sol da Primavera.

Não vês? É noite, e o Céu nos mostra tanta luz Que, olhando para cima, eu cuido que Jesus As estrelas formou de lúridos novelos Dos raios ideais do sol de seus cabelos... E assim no teu olhar, doce como um jasmim, Uma estrela se fez do nosso amor sem fim.

Deixa brilhar a estrela loura e mansa, Que nos há de guiar à Terra da Esperança.

A grafia em letras maiúsculas de palavras abstratas ou pertencentes ao

campo semântico divino é outra característica simbolista presente na poesia da

Auta de Souza. A simbologia dos pássaros como representação da liberdade e

mobilidade entre a terra e o céu é uma constante observada em vários poemas

do Horto.

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Abaixo, leremos “Ao luar”, um poema tipicamente simbolista, no qual a

autora cria metáforas e comparações místicas baseadas no céu e nos astros.

Há aqui uma meticulosa mistura de sensações, alternando imagens reais e

abstratas num plano etéreo, onde tudo parece flutuar.

Ao luarAstros celestes, docemente louros,Giram no espaço, em luminoso bando;Ouve-se ao longe um violão plangenteE, mais além, n’um soluçar dolente,Canções serenas, ao luar voando.

Quanta tristeza pela noite clara!Quanta saudade pelo azul boiando!Cuida-se ouvir, n’um dolorido choro,As preces tristes de um magoado coroDe almas penadas ao luar rezando.

O céu parece uma igrejinha antigaQue a lua branca vai alumiando...E essas estrelas, muito além dispersas,São rosas brancas no Infinito imersas,Monjas benditas, ao luar chorando.

Os pirilampos, pelas moitas tristes,Voam, calados e sutis, brilhando...Lembram descrenças, a bailar sombrias,Ilusões mortas de esquecidos dias,Almas de loucos, ao luar passando.

Flocos de nuvens pela Esfera adejam,Barcos de neve pelo Azul formando...Semelham preces que se vão da terra,Almas mimosas, que este mundo encerra,De criancinhas, ao luar sonhando.

Eles parecem também velas brancasSoltas, à toa pelo mar vogando...Leves e tênues, a correr imensas,Folhas de lírios pelo Ar suspensas,Aves saudosas, ao luar chorando.

Ai! quem me dera ser também criança!Ai! quem me dera andar também voando! Fazer dos astros um barquinho amado,N’ele vagar por todo o Céu dourado,As minhas dores ao luar cantando!

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Angicos - Junho de 1896.

2.5 FRUTOS DE UM JARDIM PERFUMADO.

O certo é que conseguimos notar uma grande importância nos poemas

de Auta de Souza. Poemas que remetem sofrimentos, agonias de uma moça

tuberculosa que já sabe o seu final de igual modo seu Senhor Jesus Cristo no

Jardim do Getsemani, como também há vários poemas que demonstram

alegria, paixão e fé. Temas com dualidades de sentimentos de uma moça

negra que viveu intensamente sua breve vida.

Passando dos católicos aos espíritas, pelas memórias daqueles que

musicaram ou recitaram seus poemas em rodas das praias, em festas

religiosas ou em serenatas Auta teve e tem um grande significado na literatura

do Brasil e principalmente na literatura do Rio Grande do Norte. Um fruto de

uma jardim plantado por ela mesma.

2.6 DATAS IMPORTANTES PARA A BIOGRAFIA DE AUTA DE SOUZA

1876 Nasce a 12 de Setembro Auta de Souza

1879 Falece Henriqueta Leopoldina vitimada de tuberculose no dia 29 de junho com 27 anos de idade.

1881 No dia 15 de janeiro, morre o pai de Auta, Eloy Castriciano de Souza vitimado de tuberculose. Nesse mesmo ano, Auta, juntamente com seus irmãos, acompanha sua Avó Dindinha para Recife.

1882 Falece no dia 29 de outubro Francisco de Paula Rodrigues, Avô de Auta de Souza que o chamava de avô Paula.

1887 Em um acidente com candeeiro, Irineu, irmão de Auta, morre queimado. Auta tinha 12 anos de idade e já escrevia versos.

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1888 No Colégio de São Vicente de Paula, uma escola da Estância, regido por irmãs religiosas francesas, Auta é primeira aluna

1890 Auta é acometida pela tuberculose aos 14 anos de idade e é nesse mesmo tempo que ela abandona a escola. Dindinha e seus netos retornam para Macaíba.

1893 Apesar da tuberculose, Auta se dedica ativamente a poesia, colaborando com muitos períodos literários da época. Nesse mesmo ano há várias viagens para o agreste em busca de tratamento para a doença.

1894 No período Oásis em Natal, Auta inicia sua colaboração

1895 Auta de Souza viaja para Recife regressando no mesmo ano

1896 Inicia sua colaboração no periódico A República. Periódico esse de repercussão nacional.

1897 Assiduamente colabora no periódico A Tribuna. Reúne também nesse ano as produções que fez no período de 1893 e 1897 sob o título de Dhálias.

1898 No periódico religioso Oito de Setembro e na Revista do Rio Grande do Norte, ambos de Natal, Auta de Souza participa assiduamente. Denomina o Horto como sua futura publicação.

1899 Olavo Bilac escreve no mês de Outubro o prefácio do livro Horto

1900 Circula a 20 de Junho o Horto, impresso na A República com 232 páginas e prefaciado por Olavo Bilac.

1901 No dia 7 de fevereiro, falece em Natal e é sepultada no Cemitério do Alecrim.

1906 Os restos mortais de Auta de Souza são transladados do Cemitério do Alecrim para o jazigo da família na Matriz de Macaíba onde permanecem até os dias de hoje.

1908 Falece em Natal, no dia 11 de Dezembro D. Silvina de Paula Rodrigues conhecida como Dindinha.

1910 É publicada a segunda edição do livro Horto com Nota de Henrique Castriciano e dois póstumas. Um Decreto de número 255 de 19 de outubro cria o Grupo Escolar em Macaíba com o nome de Auta de Souza

1922 O músico Abdon Álvares Trigueiro publica pela Casa Bevilacqua, no Rio de Janeiro. Publicação essa que foi por prêmio de primeiro lugar em um concurso.

1925 Fundação do Grêmio Litero-Musical “Auta de Souza”, na Escola Doméstica

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1930 Natal tem uma rua com o nome de Auta de Souza de acordo com a lei municipal n.14 de 30 de agosto pelo prefeito Omar ó Grady

1933 Falece em São José do Mipibu no dia 9 de Dezembro João Câncio Rodrigues de Souza.

1936 Terceira edição do Horto com prefácio de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) Nesse ano, também ocorre a instalação da Academia Noite Rio Grandense de Letras em 14 de Novembro com a poltrona XX dedicada a Auta de Souza e ocupada por Palmira Wanderley como titular

1947 Falece em Natal no dia 26 de Julho, Henrique Castriciano

1950 A escritora Jandira de Carvalho publica em Fortaleza, Ceará, em 14 de setembro, o ensaio sobre Auta de Souza

1951 Por proposta de Paulo Pinheiro Viveiro, Presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Norte, a pedido de um apelo por parte de Luis da Camara, é feita uma lapide para o sepulcro de Auta de Souza com os versos da poetiza como epitáfio.

1959 Falece em Natal o irmão mais velho de Auta de Souza no dia 7 de Outubro Eloy Castriciano de Souza

1961 Luis da Camara Cascudo publica um livro sobre Auta de Souza com o título Vida Breve de Auta de Souza. Nesse livro, ele apresenta poemas que não foram publicados e alguns que não estavam na integra dentro do livro Horto

1970 Publicação da quarta edição do livro Horto.

1976 Há comemorações em Macaíba e em Natal devido ser o centenário de aniversário de nascimento de Auta de Souza.

2000 Nalba de Souza Leão defende uma tese de mestrado sobre Auta de Souza sobre O Cancioneiro de Auta de Souza.

2000 Com a quinta publicação do livro Horto também é comemorado no dia 20 de junho o centenário do livro. Por essa ocasião há várias festividades em diversos lugares em Natal.

2001 Diversas festividades relembrando o centenário de morte de Auta de Souza.

2008 No dia 12 de Setembro Auta de Souza completou 123 anos do nascimento de Auta de Souza.No mesmo mês é exibido o documentário Noite Auta Céu Risonho na cidade de Macaíba e em Natal sobre a poetisa.

2009 A figuração do nome de Auta de Souza na lista de obras literárias, objeto da prova do Vestibular 2010 da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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REFERÊNCIAS

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