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ESCOLA, CURRÍCULO E AVALIAÇÃO ESCOLA, CURRÍCULO E AVALIAÇÃO

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ESCOLA, CURRÍCULO E AVALIAÇÃO

ESCOLA, CURRÍCULO E AVALIAÇÃO

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PROGRAMA DA DISCIPLINAEmentaConceituação. Pressupostos epistemológicos e vertentes teóricas da avaliação educacional. Avaliação como política numa perspectiva histórica e conceitual. Níveis, tipos e modalidades de avaliação de sistemas, organizações, programas e projetos educacionais. Aspectos metodológicos de avaliação educacional. Indicadores e qualidade em educação. Análise de experiências e práticas vigentes em avaliação educacional na Educação Básica e na Educação Superior.Determinações histórica, cultural, epistemológica, social e ideológica do currículo; paradigmas técnico, prático e crítico e suas implicações para o processo de desenvolvimento curricular; pós-modernidade e suas implicações para o currículo escolar; perspectivas construtivista, pós-construtivista e sócio-interacionista do currículo escolar; pressupostos sócio-filosóficos de propostas curriculares de diferentes sistemas de educação, níveis de ensino e escolas; o currículo no cotidiano da escola pública.

Objetivos Entender os pressupostos teóricos de diferentes propostas curriculares; Discutir as diferentes teorias curriculares bem como as diferentes

concepções de currículo que lhes são correspondentes; Analisar as tendências contemporâneas do campo do currículo; Identificar as relações entre currículo, poder, cultura e formação de

sujeitos; Analisar as relações de conflito e poder, bem como as alianças e os

interesses presentes na definição e implementação dos currículos; Discutir as políticas públicas de currículo e os critérios que norteiam a

seleção e organização do conteúdo curricular; Analisar as relações entre conhecimento, currículo, os professores e a

organização do trabalho escolar.

Conteúdo Programático1. Teorias do currículo1.1. O campo do currículo: a construção histórica1.2. Teorias críticas1.3. Teorias pós‐críticas1.4. Tendências contemporâneas do campo do currículo: identidade e diferença; o multiculturalismo

2. Conhecimento, Currículo, os Professores e a Organização do Trabalho Escolar2.1 Organização disciplinar/ currículo integrado2.2 Os professores e o currículo: uma relação delicada

3. Políticas Curriculares no Brasil3.1 Diretrizes e normas governamentais e das escolas;3.2 Parâmetros Curriculares Nacionais,3.3. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

Bibliografia

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BRASIL.Lei 4.024/61; 5.062/71; 7.044/82 e 9394/96.

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Cortez, 1995.

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SUMÁRIO

1 CURRÍCULO__________________________________________________41.1Breve Histórico Sobre Currículo___________________________________41.2 Currículo e Mercantilismo________________________________________51.3 Currículo e Segunda Revolução Industrial___________________________71.4 Currículo e Pós-modernismo____________________________________101.5 Currículo e Pós-Estruturalismo___________________________________111.6 Currículo e Estudos Culturais____________________________________121.7 Currículo para Além dos Pós-Estruturalistas e dos Estudos Culturais_____131.8 Diversidade e Currículo________________________________________131.9 Hierarquização das Disciplinas___________________________________14

2. A ESCOLA E CURRÍCULO______________________________________152.1 Culturas e Cultura Escolar______________________________________162.2 Respostas da Escola Face às Culturas Diversas_____________________172.3 Do Contato de Culturas à Interacção Cultural_______________________192.4 Papéis dos Professores no Desenvolvimento de um Currículo que Atende à Diversidade_____________________________________________________202.5 A Educação Intercultural na Renovação de um Currículo que Concretize o Princípio da “Escola para Todos”___________________________________22

3. ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA ESCOLA E AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM_______________________________________________233.1 Currículo: O Coração da Escola__________________________________233.2 Formas de Organização do Currículo Escolar_______________________233.3 Currículo e Avaliação da Aprendizagem Escolar_____________________253.4 Currículo, Avaliação e Mobilidade Escolar__________________________26

4 O CURRÍCULO ESCOLAR NA LDB _______________________________284.1 O Lobby e as Mudanças________________________________________284.2 O Currículo na Educação Infantil: O que Propõem as Novas Diretrizes Nacionais?_____________________________________________________294.3 Os Objetivos Gerais e a Função Sociopolítica e Pedagógica das Instituições de Educação Infantil______________________________________________304.4 Currículo e Proposta Pedagógica na Educação Infantil________________314.5 A Visão de Criança e seu Desenvolvimento_________________________324.6 As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil______________334.7 Subsídios para a Elaboração do Currículo na Educação Infantil_________354.8 A Avaliação e a Continuidade dos Processos de Aprendizagem das Crianças_______________________________________________________374.9. E Como Começar?___________________________________________38

TEXTO COMPLEMENTAR________________________________________38

1. PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DA AVALIAÇÃO EDUCACIONAL.......................................................................................................................... 031.1. Sala de Aula e Avaliação: Caminhos e Desafios........................................031.2. O que é Avaliação?....................................................................................041.3. Origem da Avaliação.................................................................................061.4. Evolução da Avaliação...............................................................................061.4.1. Mensuração ............................................................................................06

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1.4.2. Descritiva.................................................................................................071.4.3. Julgamento..............................................................................................071.4.4. Negociação..............................................................................................071.5. Funções do Processo Avaliativo ................................................................071.5.1. Função Diagnóstica ................................................................................071.5.2. Função Formativa....................................................................................071.5.3. Função Somativa.....................................................................................081.6. Objetivos da Avaliação ..............................................................................081.7. Modelo Tradicional de Avaliação Versus Modelo Mais Adequado.............081.8. A Avaliação da Aprendizagem Como Processo Construtivo de Um Novo Fazer.................................................................................................................101.9. O Objetivismo e suas Implicações..............................................................101.10. Abordagem Subjetivista............................................................................121.11. O Vínculo Indivíduo-Sociedade................................................................13

2. AVALIAÇÃO EDUCACIONAL: TRAJETÓRIA HISTÓRICA........................152.1. Ensaiando Novas Questões da Avaliação .................................................202.2. Avaliar é Refletir sobre o Ensino?..............................................................20

3. A AVALIAÇÃO EDUCACIONAL E OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO PARA O FUTURO.......................................................................223.1. Tipos de Avaliação.....................................................................................26

4. ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL: POLÍTICA E PRINCIPAIS PROGRAMAS ATUAIS.............284.1. SAEB: O Primeiro Grande Sistema de Avaliação......................................284.2. ENEM: Exame Nacional do Ensino Médio.................................................29

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1 CURRÍCULOÉ sabido que em cada momento histórico, há uma incansável busca

por idéias chaves que sejam capazes de explicar como se percebe o mundo, procurando entender como ele é.

A globalização tem sido nos últimos anos o termo escolhido para explicar a conjuntura e as inter-relações econômicas, políticas, e sócio-culturais estabelecidas entre indivíduos e nações. Papel fundamental nessa realidade tem exercido os meios de comunicação, que constroem de maneira particular uma nova realidade por meio da seleção de informações que veiculam.

Concordamos com Sacristán (2003) ao afirmar ser a globalização um conceito utilizado para caracterizar a peculiaridade do tempo presente, reconhecido como a segunda modernidade:

"... Refere-se a fenômenos, processos em curso, realidades e tendências muito diversas que afetam diferentes aspectos da cultura, as comunicações, a economia, o comércio, as relações internacionais, a política, o mundo do trabalho, as formas de entender o mundo e a vida cotidiana, os quais, como podemos ver, portam um significado pouco preciso.” (SACRISTÁN, 2003 p.50)"

O mundo globalizado é um mundo em rede, cujas partes são interdependentes, no qual se adotam padrões de comportamento, modelos culturais e onde são traçados projetos. É um mundo com muitas possibilidades de comunicação, suas partes se conhecem entre si, se influenciam e se apóiam, ou não. Parece constituir-se um todo, entretanto, pouco coeso, resultado de imposições de grupos hegemônicos sobre os que estão em inferioridade de condições, de hibridizações culturais e etc.

Entendemos que a educação, característica da realidade da economia, da sociedade e da cultura, é inevitavelmente afetada pelas mudanças suscitadas pelo processo de globalização. Os critérios acerca do que se entende por qualidade na educação, têm sido amplamente influenciados pelas políticas neoliberais, que “desvalorizaram o sistema educativo como um fator de integração e inclusão social, em favor do incremento da iniciativa privada, da ideologia que busca um maior acoplamento do sistema escolar ao mundo do trabalho e às necessidades da produtividade econômica, apoiando-se e acentuando as desigualdades sociais”. (SACRISTÁN, 2003, p.51)

Acreditamos ainda, que a globalização afeta a educação porque incide sobre os sujeitos, os conteúdos do currículo e as formas de aprender.

Desse modo, discutiremos com mais afinco a questão do currículo, quer como simples expressão da ideologia dominante, quer como um conjunto de princípios científicos para organização e acompanhamento do processo de ensino. Tal discussão se dará mediante uma contextualização histórica e a realização do debate sobre a questão do currículo também no interior do campo acadêmico da educação física.

Ao longo da História surgiram diferentes concepções de currículo. Como os pressupostos não são explicitados, corre-se o risco de estagnarem-se as discussões, obstruindo os estudos no campo do currículo. A riqueza dos estudos neste campo decorre do caráter conflitual das diversas concepções de currículo, objeto do presente trabalho. Orientam o desenvolvimento do trabalho

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questionamentos sobre as matrizes teóricas dos estudos de currículo e seus pressupostos desde suas origens até as últimas décadas do século XX e início do século XXI.

O currículo é uma práxis, não um objeto estático. Enquanto práxis é a expressão da função socializadora e cultural da educação. Por isso, as funções que o currículo cumpre, como expressão do projeto cultural e da socialização, são realizadas por meio de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que gera em torno de si. Desse modo, analisar os currículos concretos significa estudá-los no contexto em que se configuram e através do qual se expressam em práticas educativas.

A história das concepções de currículo é marcada por decisões básicas tomadas com o intuito de (1) racionalizar, de forma administrativa, a gestão do currículo para adequá-lo às exigências econômicas, sociais e culturais da época; (2) elaborar uma crítica à escola capitalista; (3) compreender como o currículo atua, e (4) propor uma escola diferente seja na perspectiva socialista, seja na perspectiva libertária.

1.1 Breve Histórico Sobre Currículo

Segundo Moreira (1990) os sociólogos das disciplinas escolares, defendem que a história do currículo tem por meta explicar porque certo conhecimento é ensinado em determinado momento e local e por que ele é conservado, excluído ou alterado.

Domingues (1985) apud Moreira (1990) ao desvelar o caráter ideológico do campo do currículo, enfatiza sua harmonia com os princípios norteadores dos governos militares nos anos setenta. Ao mesmo tempo, chama a atenção para a subserviência de nossos teóricos ao pensamento curricular americano e para a falta de modelos de análise mais adequados ao contexto brasileiro. Considera o discurso brasileiro sobre currículo uma conseqüência tão direta e sólida das tentativas americanas de aumentar nossa dependência cultural que torna-se difícil entender como foi possível uma orientação crítica no campo.

Para Moreira (1990) as origens do pensamento curricular no Brasil podem ser localizadas nos anos 20 e 30, quando importantes transformações econômicas,sociais, culturais, políticas e ideológicas processaram-se em nosso país. Argumenta que a literatura pedagógica da época refletia as idéias propostas por autores americanos associados ao pragmatismo e às teorias elaboradas por diversos autores europeus, buscando superar as limitações da antiga tradição pedagógica jesuítica e da tradição enciclopédica, que teve origem com a influência francesa na educação brasileira, e esforçavam-se para tornar o quase inexistente sistema educacional, consistente no novo contexto.

Para o mesmo autor, as primeiras infra-estruturas no campo do currículo corresponderam, inicialmente, às reformas promovidas pelos pioneiros nos estados, e a seguir, à base institucional do Instituto Nacional Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira (INEP) e do Programa de Assistência brasileiro-americana à Educação Elementar (PABAEE). Afirma que a tradição epistemológica que fundamentou tanto as reformas como o enfoque curricular desenvolvido pelo INEP foi basicamente compostas por idéias progressivistas derivadas do pensamento de Dewey e Kilpatrick. Tais idéias, segundo Saviani (1983) apud Moreira (1990), foram bastante influentes no cenário educacional brasileiro até o início da década de sessenta.

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Algumas reformas ocorridas na década de vinte nos estados da Bahia, em Minas Gerais e no Distrito Federal foram inovadoras e trouxeram sugestões referentes à organização curricular e de programas, constituindo o primeiro esforço de sistematização do processo curricular.

Essas transformações representaram um importante rompimento com o modelo educacional tradicional, por sua preocupação em renovar o currículo, por sua insistência na democratização da sala de aula e da ralação entre aluno e professor.

Apesar da expressa preocupação com a reconstrução social, a maior contribuição das reformas acabou por limitar-se a novos métodos e técnicas. Essa ambigüidade pode ser interpretada como refletindo, em certo grau, as idéias liberais dominantes e a influência do processo de modernização das escolas americanas e européias. (MOREIRA, 1990, p. 72)

Quanto ao desenvolvimento do campo do currículo no INEP, criado em 1938 para funcionar como centro de estudos de todas as questões educacionais relacionadas ao Ministério da Educação e Saúde, Moreira (1990) afirma que o pensamento do INEP sobre a questão tinha suas raízes em Dewey e Kilpatrick, no entanto, era diretamente derivado da forma como os pioneiros, principalmente Anísio Teixeira, interpretaram esses autores e os aplicaram à realidade brasileira. Havia uma preocupação com a prática, com modos científicos e coma realidade do aluno. Apesar da influência americana, realizava-se pesquisas em nosso país e buscava-se aparentemente, construir currículos “brasileiros”.

Já no PABAEE, a principal preocupação no trabalho com o currículo pareceu, ser de fato com procedimentos, métodos e recursos e que a principal fonte foi o discurso curricular americano.

A partir de 1964, com o golpe militar e as transformações no panorama político, econômico, ideológico e educacional, e por meio de diversos acordos assinados com os Estados Unidos que visavam à modernização e racionalização do país ocorreu o aumento e dispersão das discussões sobre o currículo.

“... A tendência tecnicista passou a prevalecer, em sintonia com o discurso de eficiência e modernização adotado pelos militares, e diluiu não só a ênfase às necessidades individuais da tendência progressivista, mas também as intenções emancipatórias das orientações críticas, incompatíveis com a doutrina da segurança nacional que passou a ser a eficiência do processo pedagógico indispensável ao treinamento adequado do capital humano do país.” (MOREIRA, 1990 p.83).

Segundo Arroyo (1980) o sistema educacional brasileiro foi reorganizado pelos militares: a preocupação com o ensino secundário, ensino profissionalizante, formação de professores e ensino superior refletiu uma estrutura ocupacional mais especializada. Semelhantemente à divisão do trabalho na sociedade mais ampla, o trabalho pedagógico fragmentou-se para tornar o sistema educacional mais efetivo e produtivo. Como conseqüência, os professores começaram a usar técnicas e metodologias criadas por experts, simplificadas e transmitidas por supervisores. Foi diretamente a essa nova especialização, a supervisão escolar, que o campo do currículo se associou desde a sua emergência.

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Moreira (1990) afirma que tão logo uma política de descompressão foi adotada pelo presidente Geisel em 1974, análises críticas de questões curriculares começaram a aparecer, tornado-se bastante influentes na década de oitenta.

Para o mesmo autor, a influência das condições internacionais na evolução do campo do currículo foi, nos anos oitenta, significativamente diferente da que se verificou anteriormente: a influência de autores europeus aumentou, ao passo que a de autores americanos diminuiu. Tanto as forças inter-relacionadas de redemocratização do país, como a criação de espaços institucionais para discussões e propostas críticas, constituíram-se em elementos cruciais na definição das principais tendências do campo contemporâneo do currículo e das respostas às questões curriculares levantadas.

Conforme Moreira (1996,1999) os principais autores de currículo no Brasil reconhecem essas influências, ressaltando, contudo, sua ambivalência. Por um lado, enfatizam a importância de conhecer o que está sendo formulado em países nos quais se desenvolvem significativos estudos de questões curriculares. Por outro, sustentam que devemos ser mais críticos em relação a esse discurso, e que precisamos desenvolver análises mais adequadas ao contexto brasileiro.

O exame da produção cientifica brasileira elaborada nos anos 90 confirma que a presença de teóricos estrangeiros, especialmente dos associados à teoria curricular crítica, ainda é bastante visível nas bibliografias. Nos últimos anos, temas derivados dos estudos culturais, de raça e de gênero já começaram a se fazer notar no pensamento brasileiro, seguindo as novas tendências internacionais. Embora em alguns casos a apropriação se faça sem um efetivo diálogo com nossa realidade, em outros, a incorporação das discussões envolve um acentuado processo de recontextualização crítica. (MACEDO e FUNDÃO 1996; MOREIRA 1996 e 1997 apud MOREIRA 1999, p.12)

O currículo constitui, portanto, um significativo instrumento utilizado por diferentes sociedades “tanto para desenvolver os processos de conservação, transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados como para socializar as crianças e os jovens segundo valores tidos como desejáveis.” (MOREIRA, 1997, p.11)

1.2 Currículo e MercantilismoDo latim, curriculum, significa caminho, trajeto, percurso, pista ou

circuito atlético. Segundo Goodson (1995:7), o termo curriculum é derivado da palavra latina currere, que significa correr, curso ou carro de corrida. Pode também estar se referindo à “ordem como seqüência” e à “ordem como estrutura”. Nesta última acepção, remonta ao conjunto de XVI, em universidades, colégios e escolas, a partir do Modus et Ordo Parisienses. Modus designava a combinação e a subdivisão das escolas em classes, com a retenção da instrução individualizada, isto é, aluno – por – aluno e Ordo (ordem) com dois significados: seqüência (ordem de eventos) e coerência (sociedade ‘ordenada’) (HAMILTON, 1992).

Datam do século XVI, os registros históricos de quando, e em que circunstância, aparece, pela primeira vez, a palavra curriculum aplicada aos meios educacionais. Tais registros evidenciam que currículo esteve ligado à idéia de "ordem como estrutura" e “ordem como seqüência", em função de determinada eficiência social. Assim, na Universidade de Leiden (1582), os

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registros constam que "tendo completado o curriculum de seus estudos” o certificado era concedido ao aluno. Na Universidade de Glasgow (1633) e na Grammar School de Glasgow (1643), o curriculum referia-se ao curso inteiro de vários anos, seguido pelos estudantes, e não apenas às unidades pedagógicas curtas (HAMILTON, 1992).

As idéias de seqüência, de terminalidade, de completude, de integralidade trazem embutida a idéia de intencionalidade. Uma instituição universitária só poderia atribuir a alguém o título após o cumprimento de todas as exigência de um percurso ou trajetória acadêmica. Donde se supõe que o diploma, grau ou título era somente concedido, após o alcance dos propósitos da instituição, de acordo com os parâmetros de avaliação sobre a eficiência da escolarização e sua eficácia social. Esses registros históricos expressam que a inovação pedagógica do currículo é um fato histórico de extrema relevância. Coloca em pauta a idéia de que os diversos elementos de um curso educacional devem ser tratados como uma peça única expressa na globalidade estrutural e na completude seqüencial, conforme os parâmetros de cada época histórica.

Entre os séculos XV e XVIII, ocorria a transição do regime feudal para sociedade capitalista. Nesta época, denominada de Mercantilismo, aconteceram transformações em todas as dimensões da realidade social: jurídica, política, econômica, social e ideológica. Estas forjaram as pré-condições para o advento do sistema capitalista, com a reestruturação do sistema educativo e da instituição escolar para a formação do homem necessário para uma nova sociedade. É neste contexto que ocorre a passagem do ensino individualizado, onde preceptor e aluno se defrontavam, frente a frente, para as escolas organizadas em classes. Por sua vez, as diversas classes de uma escola deveriam passar pelo mesmo caminho ou percurso com todas as provas e obstáculos, semelhante à idéia de um circuito atlético. Em decorrência, estabeleceu-se a passagem do termo curriculum do contexto do mundo do exercício físico para o pedagógico. Tal como o atleta, que conseguiu passar por todos os caminhos e obteve o prêmio, os alunos que conseguissem passar por todo curriculum recebiam o diploma, pelo qual a escola se responsabilizaria, atestando formar homens necessários às exigências da sociedade da época.

Hamilton (1992) levanta a hipótese da possibilidade de haver uma conexão entre protestantismo, calvinismo e curriculum. Constata em suas pesquisas que “de fato, Leiden foi fundada em 1575 especificamente com o propósito de treinar pregadores protestantes, e a reconstituição de Glasgow na mesma década ocorreu para atender propósitos similares”. Continuando a investigação, Hamilton (1992) supõe que “a resposta parece relacionar-se com a difusão de novos pressupostos sobre a eficiência da escolarização e a eficiência da sociedade em geral” e pergunta: “Por que a teoria calvinista adotou uma palavra latina que significa ‘corrida’ ou ‘pista de corrida’? E, ainda, que novas aspirações educacionais eram atendidas pela adoção do termo ‘curriculum’?” Segundo o pesquisador, “a resposta à última questão é sugerida pelos usos originais de curriculum. Em Leiden e Glasgow e numa referência subseqüente nos registros de 1643 da Grammar School of Glasgow (a instituição que alimentava a Universidade), ‘curriculum’ referia-se ao curso inteiro de vários anos seguido por cada estudante, não a qualquer unidade pedagógica mais curta. No caso de Leiden, ao emitir o resultado final, fazia-se constar a expressão tendo completado o curriculum de seus estudos.

Hamilton (1992, p. 43) conclui que:

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Assim, falar de um ‘curriculum pós-Reforma [Protestante] é apontar para um entidade educacional que exibe tanto globalidade estrutural quanto completude seqüencial. Um ‘curriculum’ deveria também ser ‘completado. Enquanto a duração, seqüência e completude dos cursos medievais tinham sido relativamente abertos à negociação por parte dos estudantes (por exemplo, em Bolonha) e/ou a uso por parte do professor (por exemplo, em Paris), a emergência de ‘curriculum’ trouxe (...) um sentido maior de controle tanto ao ensino quanto à aprendizagem.

Um dado que possibilita o levantamento de hipóteses é o fato de Adam Smith, autor de A Riqueza das Nações, ter lecionado na Universidade de Glasgow, na Escócia entre 1752 a 1764. Nesta época, ele escreve The Theory of Moral Sentiments (1759), no qual colocava as Ciências Morais em pé de igualdade com as Ciências Físicas, argumentando que a sociedade civil era mantida unida por um elemento de ligação análogo à força da gravidade.

É de se supor que o padrão de conduta moral que norteava a relação preceptor – aluno, nos tempos do ensino individualizado era um, sendo outro o que guiava a relação professor-aluno no ensino em classes. As condutas entre preceptor-aluno, no ensino individualizado, eram vivenciadas apenas pelos dois envolvidos, porém no ensino em classe, as relações entre docente-aluno e aluno-aluno são vivenciadas em um coletivo. Na classe, diversos interesses embatem, portanto, diversas negociações são necessárias, regras comuns de conduta devem ser estabelecidas. O modo de funcionamento da sociedade capitalista emergente, no século XVI, exige uma nova moral. A moral do homem de negócios, necessária ao funcionamento da economia capitalista. Pressões para a formação deste homem tornam-se intensas sobre o sistema educativo, levando ao surgimento do currículo e ao estabelecimento de um novo modo de organizar o trabalho escolar.

Comprova-se a partir dessa análise que o currículo não é uma realidade abstrata, à margem do sistema sócio-econômico, da cultura e do sistema educativo no qual se desenvolve e para o qual é proposto. Quando se define o currículo, estão sendo descritas as funções concretas da própria escola e uma forma particular de focá-las, em um momento histórico e social determinados, para um nível ou modalidade de educação, dentro de determinada instituição, com uma organização própria.

1.3 Currículo e Segunda Revolução IndustrialAs teorizações sobre currículo são, no entanto, recentes e podem ser

situadas no início do século XX. Nos Estados Unidos, é reconhecido o papel que desempenhou Franklin Bobbit, ao elaborar o primeiro tratado de currículo - The curriculum (1918) – e, posteriormente o How make the curriculum (1924). Além de Bobbit, podem ser citados como importantes membros da área de currículos naquele país W. W. Charters, Edward L. Thorndike, Ross L. Finney, Charles C. Peters e David Snedden. Estes autores definiram qual deveria ser a relação entre a estrutura do currículo e o controle social, em um período histórico de transição da América do Norte rural, agrária, do século XIX um crescente processo de industrialização e divisão do trabalho. Neste contexto, os problemas das cidades cresciam à medida em que aumentava a população

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oriunda da zona rural, bem como da imigração européia e de negros do sul rural da América do Norte. Segundo Apple (1982, p. 108),

Essas pessoas diferentes eram vistas como uma ameaça a uma cultura norte-americana homogênea, uma cultura centrada na cidade pequena e sedimentada em crenças e atitudes da classe média. A comunidade que os antepassados ingleses e protestantes dessa classe ‘lavraram de um deserto’ parecia desmoronar-se diante de uma sociedade urbana e industrial em expansão...

Uma nova classe operária, a que Bobbit denominava de “grupo de operários associados” surgia na América do Norte e precisava ser preparada para se inserir em organizações hierárquicas de trabalho e para desempenhar funções especializadas. Estes operários precisavam, também, conhecer suas tarefas sociais e econômicas que lhes permitissem trabalhar especializadamente para a consecução de um produto maior.

Segundo Apple (1982: 106), Bobbit e Charters responderam com suas teorizações sobre curriculum a essa nova necessidade econômica de especialização, fundamentando-se nos princípios da Administração Científica e construíram uma teoria de estruturação do currículo que se baseava na diferenciação de objetivos educacionais em termos das funções específicas e limitadas da vida adulta.

A segunda revolução industrial corresponde ao advento de novas fontes de energia eletricidade e petróleo e das técnicas que decorrem de sua transformação para o uso no domínio da produção e dos transportes. A revolução dos transportes, a indústria automobilística, o advento da aviação e das telecomunicações transformam o quadro industrial. Assim a metalurgia e as construções mecânicas vão se tornando indústrias-chaves, enquanto o setor têxtil declina. Um novo tipo de mão-de-obra qualificada é exigido e os construtores da nova indústria são responsáveis pela sua formação.

A expansão e o crescimento da economia, que marcam o início do século XX, aceleram a competitividade intra-capitalistas e têm como base a produção padronizada e em série para o consumo de massa. É imperativo nestas circunstâncias, baixar os custos e para isso a prioridade, a todo custo, é racionalizar a produção. Os estudos empíricos que feitos, desde meados do século XIX, sobre a organização do trabalho vão ser sistematizados e o taylorismo e o fordismo emergem como duas vertentes interligadas da organização científica do trabalho.

O taylorismo é concebido como um modo de organização racional do trabalho, fruto do trabalho de engenheiros, tendo como expoente F.W. Taylor. É uma construção teórica na qual os técnicos tentam regular a produção e as relações sociais, aplicando seus princípios na organização das empresas, e substituindo a administração das coisas pelo controle dos homens. Para atingir seu intento rendimento optimum do trabalho operário o taylorismo busca fundamentos nas ciências humanas, tais como psicologia, sociologia, medicina do trabalho, ergonomia, entre outras. Radicaliza a divisão do trabalho em duas direções: (i) separação rigorosa do trabalho manual e do trabalho intelectual, da concepção e da execução do trabalho; (ii) decomposição rigorosa, nos seus elementos gestuais, das operações do trabalho produtivo.

O fordismo ou o trabalho em série na esteira rolante constitui, como que, a outra face da moeda na evolução da organização científica do trabalho.

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A série na esteira rolante é a reconstituição das seqüências do trabalho segundo uma ordem lógica e simples, de ligação fluente. Ela implica uma reorganização do espaço fabril em linhas bem coordenadas e, por conseguinte, uma divisão das tarefas e dos gestos. A base da organização não é mais a máquina, mas o posto de trabalho. O seu instrumento fundamental é o transportador automático, que vai estimular a imaginação dos engenheiros. Dentre as vantagens destacam-se a economia de espaço e de tempo distribuídos de um modo mais racional, seja pelas matérias primas que chegam ao operário, seja pelo ritmo de fabricação que lhes é imposto. O operário imobiliza-se, preso ao seu posto ou à sua máquina e a passadeira dita-lhe o ritmo, despojando-o dos próprios gestos do seu próprio trabalho.

As qualidades requeridas não são a habilidade manual, mas a flexibilidade, a rapidez, a resistência nervosa, a docilidade e a passividade. O operário não precisa conhecer a máquina, pois, em caso de dificuldade, deve chamar o regulador, que é o que detêm o conhecimento sobre funcionamento das máquinas. A noção de qualificação desloca-se da fabricação para as tarefas de controle e de manutenção. Por decorrência, a hierarquia é reforçada, as promoções se processam por mudanças de serviço, os chefes de linha são selecionados entre os mais aptos a evitar uma greve, as chefias, mais elevadas, têm por função ordenar e não explicar, e a informação circula de forma vertical e individual, nunca coletivamente.

Valendo-se desses princípios da Administração Científica do Trabalho, advindos da produção capitalista, Bobbit concebe o currículo como um meio de desenvolver o que chamou de “grande consciência de grupo”, onde não havia lugar para os diferentes e divergentes. Nas palavras do autor:

Como desenvolver um sentimento genuíno de pertencer a um grupo social, quer grande quer pequeno? Parece haver apenas um método, e este é: Pensar e sentir e AGIR com um grupo como parte dele à medida que ele exerce suas atividade e se esforça por atingir seus fins. Os indivíduos são amalgamados em pequenos grupos coesos, os pequenos grupos divergentes são amalgamados no grande grupo de cooperação, quando atuam juntos para fins comuns, com visão comum, e com juízo unificado” (Citado por APPLE, 1982: 107).

Por esta declaração de Bobbit não há como discordar da afirmação de Apple (1982: 107), de que “o interesse dos primeiros teóricos a estruturem o currículo estava na preservação do consenso cultural e, ao mesmo tempo, em destinar aos indivíduos ao seu ‘lugar” adequado numa sociedade industrial interdependente”.

É neste contexto que, a concepção de currículo conhecida como acadêmica ou humanista, passa a ser criticada. No início do século, os educadores americanos Tyler e Dewey, embora com perspectivas diferentes, criticavam o currículo acadêmico ou humanista por seu distanciamento da realidade. Enquanto Tyler propunha um currículo com enfoque tecnicista, enfatizando o estabelecimento de objetivos comportamentais, para atender as exigências do desenvolvimento econômico de base industrial, Dewey voltava-se para os interesses e as atividades da criança e propunha um currículo com enfoque ativo. Em suas palavras, “trata-se de obter uma reconstrução contínua, que parta da experiência infantil, a cada momento, para a experiência

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representada pelos corpos organizados de verdades, a que chamamos ‘matérias de estudo’”. (DEWEY, 1965: 48). Ainda, segundo este autor (1965:34):

A escola tradicional está organizada para permitir que se pratiquem certas habilidades mecânicas e certas idéias, sem cogitar da prática de outros traços morais e emocionais desejáveis em uma personalidade. Como aprender, com efeito, honestidade, bondade, tolerância, no regime de ‘lições’ marcadas para o dia seguinte? Só uma situação real de vida, em que se tenha de exercer determinado traço de caráter, pode levar à sua prática e, portanto, à sua aprendizagem. Daí ser necessário que a escola ofereça um meio social vivo, cujas situações sejam tão reais quanto as fora da escola.

Analisando a transposição dos princípios oriundos do processo de produção industrial para o âmbito do sistema educacional, Santomé (1998) salienta a produção, no âmbito do sistema educacional, de distorções semelhantes às do mundo produtivo, tais como, hierarquização, divisão de funções, atomização de tarefas, ênfase no conhecimento científico como verdade absoluta, currículo composto por disciplinas estanques, entre outros aspectos.

Nos anos 60 estes enfoques vestem nova roupagem com os referenciais da análise sistêmica.

O currículo passa a ser tratado como um sistema tecnológico de produção. Este enfoque de currículo propõe que os resultados da aprendizagem sejam traduzidos em comportamentos específicos definidos operacionalmente, com verbos adequados, tendo em vista os objetivos que se pretendem alcançar com a prática pedagógica.

Em diversas partes do mundo, assiste-se a partir dos anos 60 uma eclosão de movimentos sociais e culturais de diversas naturezas. Em meio à contestação do “status quo”, as críticas eram dirigidas ao sistema de ensino e aos currículos tecnicistas baseados na administração científica.

Destacam-se os trabalhos de Bourdieu e Passeron, Baudelet e Establet na França. A escola, por intermédio do currículo, passa a ser tratada como parte do Aparelho Ideológico do Estado (Althusser), reprodutora da estrutura social (Bourdieu e Passeron), dual e orientada pelos interesses da classe capitalista (Baudelot e Establet). Tais teorias, ao denunciarem, provocaram a abertura de novas perspectivas de estudos de currículo.

A crítica advinda dos movimentos sociais expressava a insatisfação com a escola seletiva e excludente, despreocupada com o processo de aprendizagem dos alunos e esvaziada de conteúdos com significados vitais. Os movimentos sociais articularam algumas experiências alternativas de currículo, que, embora não constituam objeto deste trabalho fazer o seu mapeamento, vale salientar a sua importância pelo que representaram historicamente a possibilidade de pensar e fazer uma escola diferente.

Neste movimento, o campo do currículo foi, também, objeto de reflexão nas perspectivas marxistas ortodoxa e heterodoxa. Duas grandes linhas de pesquisa e estudos de currículo se delinearam no período: (i) o currículo com ênfase nos conteúdos, que ficou conhecido como pedagogia crítica dos conteúdos e (ii) o currículo com ênfase nas experiências de lutas da classe

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trabalhadora, que alguns denominam genericamente, sem uma análise de seus pressupostos, de “educação popular”. A primeira linha parte do pressuposto de que a emancipação da classe trabalhadora decorre, entre outras formas, do domínio do da herança cultural. Gramsci (1891-1937), defensor da escola socialista, por ele denominada escola única ou unitária, constituiu o suporte teórico das denúncias ao currículo e de propostas alternativas de muitos educadores que se posicionavam a favor de um currículo voltado à formação da classe trabalhadora.

Os teóricos desta linha concebem, como Gramsci (1968, p.118), que “a escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda vida social. O princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de cultura, transformando-se e emprestando-lhe um novo conteúdo”. Segundo os autores desta linha a classe trabalhadora deve dominar o saber da classe dominante, como estratégia de luta. Por isso, advogam que o currículo deva enfatizar tanto os conhecimentos clássicos como os conhecimentos profissionais.

A consciência de classe passa ser o núcleo pedagógico central da organização do currículo, porém, incorporando os avanços e conquistas técnicas e científicas da escola burguesa. Não obstante, a apropriação do conhecimento universal, da herança cultural não deve se fazer de forma individualizada como na escola burguesa ou capitalista, mas orientada pela solidariedade de classe sem o caráter competitivo.

Na segunda vertente do pensamento marxista a heterodoxa os teóricos, que refletem sobre o currículo, assumem como pressuposto o pensamento de Marx que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. A inspiração desta vertente para os estudos curriculares encontra-se na nova historiografia inglesa, cujos expoentes principais são Erick Hobsbawn, E. Thompson. Parte-se das experiências da classe trabalhadora e de sua constituição como sujeito da história. As propostas curriculares seriam assim voltadas para a apreensão da história da classe trabalhadora, de suas experiências emancipatórias. A organização de experiências pedagógicas voltam-se para a formação de indivíduos cooperativos, solidários e portadores de uma utopia em contraposição ao espírito competitivo, individualista, alienado e consumista típico do modelo capitalista de produção.

O fim do socialismo real, o esgotamento do modelo taylorista-fordista de produção, as transformações no mundo do trabalho, o toyotismo, a introdução de novas tecnologias na produção, o desemprego estrutural, o neoliberalismo levaram à negação destas abordagens do currículo e ao surgimento de novos estudos curriculares.

1.4 Currículo e Pós-modernismoO campo do currículo ganhou complexidade nos últimos anos. Neste

sentido, fazem-se necessários estudos que explicitem seus pressupostos. Estabelecer o divisor do ponto de vista teórico entre as diferentes vertentes do campo do currículo, possibilita ampliar o conhecimento de seus desdobramentos para a prática pedagógica e, ainda, torna viável os diálogos possíveis entre as diferentes tendências. Isto coloca em discussão as posições pós-modernas num esforço de compreender as suas pretensões de pensar o mundo sem recorrer a meta-relatos, a meta-narrativas e suas implicações para a área educacional. Buscar a origem do pós-modernismo possibilita a compreensão da negação das meta-narrativas.

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A idéia de "pós-modernismo" surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Perry Anderson, conhecido pelos seus estudos dos fenômenos culturais e políticos contemporâneos, em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999), conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega, Frederico de Onís, que imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Mas coube ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação "A Condição Pós-Moderna" (1979), a expansão do uso do conceito.

Em sua origem, pós-modernismo significava a perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" o que, no campo estético, significou o fim de uma tradição de mudança e ruptura, o desaparecimento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da apropriação e da citação de obras do passado. A perspectiva pós-moderna questiona o pressuposto de uma consciência unitária, auto-centrada e portanto, construída sobre utopias, universalismos, narrativas mestras, que se consubstanciaram a partir do Iluminismo. Nesta mesma linha, questiona tanto as posições teórico-metodológicas positivistas como as marxistas. Na área educacional, o currículo na perspectiva humanista, na tecnicista e toda tentativa de currículo emancipatório das pedagogias críticas são questionados.

Para a crítica pós-moderna as explicações totalizantes estão desacreditadas pelas experiências socialistas stalinistas, queda do muro de Berlim, fim da guerra fria, crise do modelo taylorista-fordista, movimento contestatório, registrado no mundo inteiro entre 1960 e 70. Para legitimar este descrédito inauguram novas perspectivas interpretativas da realidade, entre elas os estudos pós-estruturalistas e os estudos culturais.

1.5 Currículo e Pós-EstruturalismoO pós-estruturalismo, embora tenha suas origens francesas, parte das

formulações filosóficas de Nietzsche, das contribuições de Martin Heidegger sobre Nietzsche, das leituras estruturalistas de Freud e de Marx, que são decisivas para a emergência do pós-estruturalismo. Considerava-se que, enquanto Marx havia privilegiado a questão do poder e Freud havia dado prioridade à idéia de desejo, Nietzsche não havia privilegiou qualquer um desses conceitos em prejuízo do outro. Sua filosofia oferecia uma saída que combinava poder e desejo. Nesta direção, salienta-se a elaboração teórica feita por Deleuze, Derrida, Foucault, Klossowski e Koffman, a partir das leituras de Nietzsche, desde o início dos anos 60 até os anos 80.

O pós-estruturalismo é inseparável também da tradição estruturalista da lingüística baseada no trabalho de Ferdinand de Saussure e de Roman Jakobson, bem como das interpretações estruturalistas de Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes, Louis Althusser e Michel Foucault (da primeira fase). O pós-estruturalismo, considerado em termos da história cultural contemporânea, pode ser compreendido no amplo movimento do formalismo europeu, com vínculos históricos explícitos tanto com a lingüística e com a poética formalista e futurista quanto com a avant-garde artística européia.

O pós-estruturalismo francês, filia-se ao pensamento de Nietzsche, em relação à crítica da verdade, à ênfase na pluralidade da interpretação; à centralidade concedida à questão do estilo, crucial, filosófica e esteticamente, para que cada um se supere, em processo de perpétuo auto devir; à importância do conceito de vontade de potência e suas manifestações como vontade de verdade e vontade de saber. É tanto uma reação quanto uma fuga

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em relação ao pensamento hegeliano. No livro Nietzsche e a filosofia, Deleuze (1997, p. 195-96), elege, essencialmente, o "jogo da diferença" como conceito central no ataque à dialética hegeliana, colocando em xeque o 'sujeito' dos diversos humanismos e das diferentes filosofias subjetivistas Foucault, por exemplo, desenvolveu a genealogia nietzscheana como uma forma de história crítica que resiste à busca por origens e essências, concentrando-se, em vez disso, nos conceitos de proveniência e emergência. Ao analisar; por meio do uso de narrativas e da narratologia, a pragmática da linguagem, Lyotard demonstra a mesma aversão que tinha Nietzsche pelas tendências universalizantes da filosofia moderna. Derrida, seguindo Nietzsche, Heidegger, e Saussure, questiona os pressupostos que governam o pensamento binário, demonstrando como as oposições binárias sustentam, sempre, uma hierarquia ou uma economia que opera pela subordinação de um dos termos da oposição binária ao outro, utilizando a desconstrução para denunciar, deslindar e reverter essas hierarquias.

Todos esses pensadores enfatizam o significado como construção ativa, dependente da pragmática do contexto, em oposição à suposta universalidade das chamadas "asserções de verdade".

Para Foucault a verdade é produto de regimes ou gêneros discursivos com conjunto de regras próprias e irredutíveis para construir sentenças ou proposições bem formadas. Seguindo Nietzsche, todos questionam o sujeito cartesiano-katiano humanista, ou seja, o sujeito autônomo, livre e transparentemente autoconsciente, que é tradicionalmente visto como a fonte de todo o conhecimento e da ação moral e política. Em contraste, e seguindo a crítica da filosofia liberal feita por Nietzsche, eles descrevem o sujeito em toda sua complexidade histórica e cultural - um sujeito "descentrado" e dependente do sistema lingüístico, um sujeito discursivamente constituído e posicionado na interseção entre as forças libidinais e as práticas socioculturais. O sujeito é visto, em termos concretos, como corporificado e generificado, ser temporal, que chega, fisiologicamente falando, à vida e enfrenta a morte e a extinção como corpo, mas que é, entretanto, infinitamente maleável e flexível, estando submetido às praticas e às estratégias de normalização e individualização que caracterizam as instituições modernas.

Os pensadores pós-estruturalistas desenvolveram formas peculiares de análise dirigidas à crítica de instituições específicas (família, Estado, prisão, clínica, escola, fábrica, forças armadas, universidade e filosofia) e para a teorização de uma ampla gama de diferentes meios (leitura, escrita, ensino, televisão, artes visuais, artes plásticas, cinema, comunicação eletrônica). É neste contexto que se insere a crítica do pós-estruturalismo ao currículo.

Ao rejeitar as "grandes narrativas", ao questionar um conhecimento universal e a distinção entre "alta cultura" e a cultura cotidiana abrem espaço a currículos mais vinculados às diferenças culturais. Os estudos de currículo dentro desta perspectiva têm como objetivo o processo de construção e desenvolvimento de identidades mediante práticas sociais, privilegiando a análise de discurso. Ao denunciarem questões de interesse e poder na condução da instituição escolar, colocam sob suspeição toda a tradição filosófica e científica moderna, problematizando as próprias idéias de razão, progresso e ciência, que em última análise são a razão de ser da própria idéia da instituição escolar (Silva, 1996). Um projeto educacional supõe uma meta-narrativa que o explique, denunciando como deformada a educação presente, e um sujeito livre, autônomo e auto-centrado, passível de repressão ou libertação e que constitui a finalidade da educação.

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1.6 Currículo e Estudos CulturaisConstata-se um crescente interesse atual no mundo pelos estudos

culturais; tendência também observada em relação aos estudos culturais do currículo. Sua origem remonta aos meados dos anos sessenta, quando um grupo de estudiosos cria o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos na Universidade de Birmingham (Inglaterra) e buscavam seus fundamentos na Teoria Crítica, enquanto que nos dias atuais, seu suporte teórico decorre dos estudos pós-modernistas e pós-estruturalistas.

Segundo Hall (2005), no Centro de Estudos Culturais trabalhava “com figuras como Edward P. Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams”. E, ainda, “os Estudos Culturais não começaram sozinhos”; “surgiram relacionados a outros movimentos da época como as políticas de cultura, o feminismo, os estudos multiculturais, sobretudo aos estudos pós-coloniais”.

Os intercâmbios culturais, possibilitaram a sua divulgação em vários países (Estados Unidos, Austrália, alguns países da África e da América Latina (Brasil e México). Em entrevista, George Yúdice (2005) fala da influência do Centro de Estudos Culturais, pois quando trabalhou com Jameson entrou “em contato com o pessoal de Birmingham, conhecido como berço dos estudos culturais.

Conhecemos Stuart Hall e outros profissionais que trabalhavam com um mistura de Gramsci, psicanálise, história, foi incrível. Eles traziam uma nova metodologia crítica, analítica, multidisciplinar”.

Na Inglaterra desenvolve-se uma reflexão teórica sobre a escola e o currículo entre as temáticas da Nova Sociologia da Educação, cujo expoente principal é o sociólogo Michael Young, autor do livro Conhecimento e Controle (1971), cujo cerne é a análise dos processos de seleção e organização dos conhecimentos veiculados pela escola. As hipóteses que norteiam o trabalho voltam-se para a investigação da relação entre o poder, a ideologia, o controle social e a forma como os conhecimentos são selecionados, organizados e tratados pela escola. Têm como pressuposto que os conteúdos escolares, expressos nos livros didáticos, guias curriculares ou outros materiais pedagógicos e na prática escolar contribuem para a manutenção das desigualdades sociais.

Dois movimentos podem ser observados nos estudos de currículo, na Inglaterra. O primeirodesenvolveu os estudos do campo do currículo sob a inspiração das denominadas teorias críticas que deslocaram o eixo da reflexão das questões pedagógicas e de aprendizagem, para a busca de conexão entre saber, currículo e ideologia e o segundo, desloca, nos dias atuais, o eixo da reflexão de currículo tendo por base as críticas à escola capitalista e os embates entre capital e trabalho para o eixo saber, currículo, discurso e poder, à luz das reflexões pós-modernistas e pós-estruturalistas.

As produções de currículo na vertente estudos culturais não propõem alternativas curriculares, mas compreender as diferentes formações curriculares. Adotam as abordagens metodológicas etnográficas e as análises discursivas e textuais, tendo em vista a necessidade de ressignificar as noções de alta cultura e baixa cultura. A cultura passa a ser tomada como noção política, ensejando na área educacional o surgimento da noção de pedagogia cultural.

A partir do final dos anos 70, surgem, nos EEUU, os trabalhos de Henry Giroux, calcados nos princípios filósoficos da Escola de Frankfurt e de Gramsci, superando as posturas reprodutivistas e introduzindo as noções de

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conflito, resistência e luta contra a hegemonia, e os de Michael Apple - Ideologia e Currículo (1982) estabelecendo a relação entre currículo, ideologia e hegemonia na análise do currículo das escolas americanas. noções de resistência e oposição, destacando o papel da escola na produção do conhecimento.

Pinar et al.(1995) constatam a tendência dos estudos curriculares nos Estados Unidos voltarem-se para a compreensão das formações curriculares e Macedo et al. (2005) a identificam, também, nos estudos curriculares no Brasil nos estudos do Grupo de Trabalho de Currículo da ANPEd, nos anos 90. Nas palavras Silva (1999, p.30), “para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de ‘como’ fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo ‘faz’”, empregando as estratégias analíticas e interpretativas do método hermenêutico, que realçam a subjetividade escondida nos símbolos e signos.

1.7 Currículo para Além dos Pós-Estruturalistas e dos Estudos CulturaisA inquietação com a globalização dos estudos culturais e, por

extensão, dos trabalhos culturais de currículo não é por acaso. Constitui hipótese fértil de trabalho investigar as razões de uma vertente de estudos se tornar hegemônica, especialmente, quando ela muda o eixo da dialética para a filosofia da diferença, da crítica à escola capitalista e ao seu currículo para a legitimidade dos estudos das diferenças culturas.

Os estudos pós-modernistas ao rejeitar as análises do todo, priorizam o local em contraposição ao global e guardam relação direta com as teses neoliberais, tendo como causa comum a defesa da postura conservadora que paralisa os movimentos sociais. Ao enfatizar a heterogeneidade dos jogos de linguagem, relegam todo esforço de busca do consenso e do coletivo, considerando-o ultrapassado. A diferença torna-se revolucionária e os acontecimentos devido seu caráter incerto implicam na negação da utopia e na criação de um futuro melhor para a humanidade. Os estudos pós-modernos limitam-se a compreender o que o currículo faz no presente e não propõem um currículo alternativo para formação de homens necessários para modificar o status quo. Tais estudos negam a perspectiva de determinado projeto pedagógico que pode ser construído pelo coletivo de docentes, criando na escola clima de malestar, de desânimo e de impotência diante dos problemas do presente.

A crítica de Jacoby (citado por BERNARDO,2004, p.75) aos estudos culturais é contundente: “Os multiculturalistas só se interessam pela cultura e pouco lhes importam os imperativos econômicos. Mas como pode a cultura subsistir sem o trabalho e a produção de riquezas? [...] Se fosse desvendado o esqueleto econômico da cultura, deixaria de se falar de diversidade e tornar-se-ia evidente que as diferentes culturas assentam nas mesmas infra-estruturas”. Segundo Bernardo (2004, p. 75), não constituem objeto de estudos das pesquisas multiculturais como “outras culturas” os fundamentalismos religiosos e as suas práticas culturais tradicionais e arraigadas, por serem antagônicas à cultura capitalista contemporânea. Há um investimento em extirpá-las da cultura porque não coadunam com as necessidades de homogeneização social e de mobilidade individual impostas pelo capitalismo atual.) “A pluralidade de culturas de que tanto se fala na esquerda pós-moderna tem obrigatoriamente de ser compatível com o prevalecimento de uma infra-estrutura única”(BERNARDO, 2004, p. 75).

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1.8 Diversidade e Currículo No contexto da diversidade, as diferenças se tornam motivo de

desigualdade, promovendo o conflito nas relações humanas: como a Escola reflete os conflitos vividos na sociedade? Como o currículo lida com tais conflitos, já que é ele que norteia o fazer pedagógico da escola? Como o currículo trata de questões como o preconceito, discriminação, raça, racismo, gênero, etnia, sexualidade, homossexualidade, homofobia, deficiência física e /ou mental, e tantas outras questões, que nos tornam tão singulares e únicos?

O preconceito se baseia na opinião que se forma antecipadamente, com base em informações acerca de pessoas, grupos e sociedades em geral, infundadas ou baseadas em estereótipos que se transformam em julgamento prévio negativo, gerando, assim, a discriminação, que é a materialização de tais preconceitos em ações, em alguns e não raros casos violentos.

A luta histórica da mulher na conquista e garantia de direitos, tem avançado de forma acelerada nas últimas décadas, entretanto, ainda é muito forte a desigualdade de tratamento no que se refere às questões de trabalho, ainda é muito tímida a inserção da mulher na vida política do País e, a cada dia se vê nos noticiários mais casos de violência contra a mulher.

O reconhecimento de reivindicações históricas da comunidade afro-brasileira implica na efetivação de direitos sociais, civis, culturais e econômicos; isso requer a aplicação efetiva da Lei n. 10.639 e uma transformação de comportamentos, bem como a implementação e a promoção do debate entre os vários atores da Escola na discussão étnico-racial. É importante salientar que, aqui, tratamos de uma reestruturação dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial e social do Brasil.

As questões da sexualidade são tratadas de acordo com um padrão de moralidade pautado em critérios conservadores, machistas e tradicionalistas; isso se torna mais evidente e forte no que diz respeito aos homossexuais, lésbicas, transexuais, etc., não podendo deixar de ser lembrada a questão da gravidez na adolescência e de adolescentes infectados com HIV e de outros jovens infectados, que não têm conhecimento.

A gravidez na adolescência é uma questão que precisa ser enfrentada, tanto no que diz respeito às formas contraceptivas, quanto à permanência da mãe adolescente na escola, já que o número de partos antes dos dezenove anos continua alto e, como na grande maioria das vezes, essa gestação não é planejada e nem é fruto de uma união estável; essa realidade é uma das responsáveis pelos altos índices de evasão escolar.

Mesmo com inclusão da sexualidade como tema transversal, os projetos na temática ainda são pequenos e solitários, normalmente feitos por alguns(mas) trabalhador(as) em educação. Trabalhar a temática da sexualidade produz sofrimento e resistência social, religiosa e pedagógica, pois tratam o sexo do ponto de vista do pecado, da doença, da negação do prazer, ressaltando a hipocrisia sexual da sociedade contemporânea.

Nosso convívio com as pessoas portadoras de deficiência nas escolas comuns é recente e gera ainda muito receio entre os (as) educadores(as) que as compõem. Muitos professores se sentem assustados por não disporem de uma formação suficiente para enfrentar o desafio de uma escola inclusiva.

Não se pode aceitar que apenas a presença de alunos(as) com necessidades educativas especiais na escola seja a concretização de uma educação inclusiva. Além de oferecer oportunidades e espaços que propiciem o contato, a sociabilidade e a integração e convivência do(a) aluno(a), a escola

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deve também oferecer condições para que este(a) aluno(a) tenha acesso aos conhecimentos destinados a todos(as) os(as) demais alunos(as).

Oferecer uma resposta adequada à diversidade dos(as) alunos (as) exige, acima de tudo, uma preocupação especial com a formação daqueles(as) que receberão e trabalharão com esse(a) aluno(a). É necessário reforçar a formação continuada dos(as) trabalhadores(as), bem como discutir o currículo dos cursos de licenciatura das agências formadoras de profissionais da educação.

Talvez, o maior desafio a ser enfrentado por uma educação com propostas de inclusão seja ode convencer os pais, especialmente os que têm filhos excluídos das escolas comuns, de que precisam fazer cumprir o que a Lei prevê quando se trata do direito à educação.

Que diversidade pretendemos que esteja contemplada no currículo das escolas e nas políticas de currículo, onde a diversidade que encontramos em nossa cultura está diretamente ligada às comunidades tradicionais, quer sejam os indígenas, quilombolas, seringueiros, agricultores, pescadores, demais povos da floresta e de religiões diversificadas, que constroem seus conhecimentos?

Como podemos valorizar a diversidade presente nas comunidades tradicionais com direito ao reconhecimento dos seus saberes de forma a considerar sua incorporação aos currículos escolares, conforme seus valores e potencialidades?

O conceito de cultura necessita ser (re) discutido e definido claramente.Considerando que o Brasil apresenta as mais variadas formas de

manifestações culturais, é necessário que a escola se abra para a aceitação e valorização dos mais diferentes modos de vida e, consequentemente, de sua expressão cultural, contudo, entende-se que o(a) aluno(a) tem o direito de se apropriar de outras formas de cultura, inclusive, da chamada cultura erudita, até como forma de detentores dos saberes e conhecimentos, antes, privilégio de uma classe social específica, possa estar preparado para competir em nível de igualdade.

Não se pode conceber que haja uma cultura “popular” e uma outra erudita, à qual, somente um grupo da sociedade tem acesso. Nesse sentido, entendemos que o currículo deve contemplar as mais variadas culturas, respeitando as diferentes raízes da composição do povo brasileiro, devendo também promover o acesso às demais expressões culturais.

Os desafios de uma sociedade cada vez mais competitiva exigem também uma escola que forme um(a) cidadão(ã) integrado(a) a essa sociedade, uma vez que há, ainda, a presença da inibição e do receio nas discussões dessa natureza. Dessa forma, uma melhor adequação curricular permitirá que o indivíduo se sinta preparado, ao sair da escola, para enfrentar o mundo profissional em uma sociedade globalizada. 1.9 Hierarquização das Disciplinas

Disciplinas que reprovam, disciplinas que não reprovam, disciplinas mais importantes ou menos importantes. A hierarquização das disciplinas é um paradigma cristalizado, não somente nos(nas) alunos(as), nos pais, como também, na maioria dos(as) educadores(as) e devem ser promovidos debates com todos(as) que fazem educação.

O fato de algumas disciplinas não terem caráter promocional, inclusive da Base Nacional Comum, poderiam estar contribuindo para que os estabelecimentos de ensino não atinjam os indicadores propostos?

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Quanto à gestão escolar, entendemos que uma escola com propostas democráticas deve propiciar ampla participação de todos(as) os (as) envolvidos(as) no processo educacional, ou seja, os pais, alunos(as), trabalhadores(as) em educação e comunidade, tanto no que diz respeito à gestão administrativa da escola, quanto na elaboração e aplicação do Projeto Político Pedagógico da escola.

As Diretrizes Curriculares devem estabelecer critérios claros para elaboração do Projeto Político Pedagógico, assim como de quais critérios se utilizar para fixar no Projeto Político Pedagógico os indicadores a serem alcançados pelo coletivo da escola.

Se concebermos o currículo como a organização de saberes intrínsecos e extrínsecos, respeitando-se a individualidade de cada um dos atores do processo de aprendizagem e que educar pressupõe preparar o indivíduo para o pleno êxito do seu convívio social e a inserção no mundo do trabalho. Como entendermos a preocupação do currículo com esse pressuposto? Que tipo de cidadão se pretende formar a partir de um currículo humanista, inserido num contexto de sociedade capitalista em que o mercado de trabalho impõe um perfil profissional voltado para a competitividade e para o capital? O que deve ser considerado conteúdo? O que deve ser considerado conhecimento? O que deve ser considerado informação? Como importar para dentro dos currículos as questões sociais e políticas, sem deixar de lado a aquisição do conhecimento científico sistematizado?

2. A ESCOLA E CURRÍCULOPretende-se neste texto repensar o lugar da escola, dos seus agentes e

do currículo na construção de uma educação intercultural, são nele focados os seguintes aspectos: relações entre as culturas e a cultura escolar; respostas que a escola tem dado às culturas diversas presentes nas sociedades; evolução das concepções educativas que vão desde o mero contacto entre culturas à interação cultural; papéis que os professores podem ter no desenvolvimento do currículo, e especificamente quando ele pretende atender à diversidade; potencialidades da educação intercultural na renovação de um currículo que concretize o princípio da “escola para todos”.

2.1 Culturas e Cultura EscolarÉ quase um lugar comum dizer que não é possível pensar a educação

sem, simultaneamente, pensar a cultura e as relações existentes entre ambas. A educação, enquanto processo dialógico, formativo e transformativo, supõe, necessariamente, um contacto, uma transmissão e uma aquisição de conhecimentos, mas também um desenvolvimento de competências, hábitos e valores que constituem aquilo que Forquin (1989, p. 10) designa por “conteúdo da educação”. A educação supõe, portanto, não apenas uma reprodução do saber e da(s) cultura(s) mas também uma produção de novos saberes e de novas expressões culturais. E é neste confronto entre um papel mais reprodutivo ou mais produtivo que se tem vindo a debater o conteúdo cultural escolar.

Os discursos de deslegitimação da escola se orientar por um modelo cultural único, transmitido numa intencionalidade assimilacionista e

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homogeneizadora, têm vindo a fazer a apologia de uma seleção de conteúdos que contemple a diversidade sociocultural das populações escolares. Critica-se a escola por continuar a privilegiar os herdeiros de uma determinada cultura e a excluir todas as outras, tal como afirmavam, na década de 60 Bordieu & Passeron em Les Héritiers. E estes sociólogos sustentam que estes fenômenos de marginalização ou de desvalorização ocorrem sobretudo no campo cultural, já que o que se reproduz são formas de relação com a cultura dominante. Analisando a organização do sistema educativo e a cultura escolar, consideram que "toda a ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbítrio cultural" (ibidem, 1970: 24).

Quanto ao papel que a educação escolar pode ter na melhoria da situação dos grupos mais desfavorecidos, nomeadamente na mobilidade social ascendente, esta posição céptica é seguida por outros autores. Althusser, defendendo a tese que a escola constitui um dos principais dispositivos de manutenção da estrutura social existente, usando os seus recursos para reproduzir as relações e as divisões sociais, critica o que nela se aprende porque enquanto produz reproduz, ou seja, "ao mesmo tempo que ensina ... técnicas e ... conhecimentos, a Escola ensina também as regras dos bons costumes, isto é, o comportamento que todo o agente da divisão do trabalho deve observar, segundo o lugar que está destinado a ocupar" (Althusser, 1972, p. 21).

Nos últimos tempos, na seqüência destas críticas e dos movimentos que têm proclamado uma educação para todos e uma escola mais democrática, os discursos e a enunciação das intenções educativas têm vindo a mudar. No entanto, segundo Perrenoud (1990, p. 23), embora os programas escolares se tenham vindo a tornar progressivamente menos elitistas, eles possuem ainda características de uma cultura de elite, como, por exemplo, dar maior importância ao “saber sobre” do que ao “saber fazer”, predominar o verbo sobre a ação, privilegiar os textos escritos sobre os outros tipos de expressão e valorizar de forma distinta o estilo ortográfico.

É por reconhecermos que o princípio da escola para todos e com todos está ainda muito longe de ser atingido que secundamos Forquin (1989) quando parte da ideia de que “o pensamento pedagógico contemporâneo não se pode esquivar de uma reflexão sobre a questão da cultura e dos elementos culturais dos diferentes tipos de escolhas educativas” (ibidem: 10).

No quadro destas ideias, não podemos esquecer o aspecto relativo às condições em que o saber é distribuído e recontextualizado, isto é, não podemos ignorar o que é privilegiado na escola e a forma como esse saber é dispensado. E, para essa análise, tem crucial importância aquilo que é designado por dispositivo pedagógico de educação intercultural e que tem como intenção criar um novo discurso pedagógico que diferencie os meios de apropriação do saber e a interação de saberes e experiências culturais (Bernstein, 1993). Talvez por isso, Perrenoud (1990: 23) defenda a ideia que “hoje o debate sobre a cultura deveria ser indissociável de um debate sobre a pedagogia”, pois ela é susceptível de se transformar mais depressa do que a própria cultura escolar.

De fato, é mais fácil mudar as práticas pedagógicas dos professores do que a cultura da instituição, pelo que a ideia de Perrenoud nos parece ser uma boa hipótese de ação para uma escola que pretende rapidamente transformar-se nas respostas que organiza para as culturas diversas dos seus clientes. E, para esta transformação, não podemos esquecer aspectos como conteúdos e

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programas escolares, materiais selecionados, organizações do tempo e do espaço que condicionam a estrutura do discurso pedagógico e privilegiam, desigualmente, as culturas dos alunos presentes no território escolar. Tenhamos em memória que as reformas dos anos 60 e 70, ao centrarem-se quase exclusivamente na dimensão pedagógica e ao esquecerem aspectos ligados ao macro currículo, pouco mais conseguiram do que o exercício de técnicas e procedimentos de ensino que favoreceram a aprendizagem da cultura escolar mas que não a transformaram nem aproveitaram a riqueza proveniente da diversidade. Atualmente, os princípios do direito à diferença e da igualdade de oportunidades exigem, a par de uma atenção à prática pedagógica, uma atenção aos processos de produção e valorização cultural, ou seja, ao que Bernstein (1990, 1993) designa por “texto privilegiante da escola”.

2.2 Respostas da Escola Face às Culturas DiversasAs concepções de educação perante a diversidade cultural e as

respostas que a instituição escolar tem dado às características das populações que a frequentam têm variado ao longo do tempo e de país para país. No entanto, podemos considerar que é na institucionalização de um discurso que defende o direito de todos à educação e à igualdade de oportunidades que se enraízam as acções educativas de resposta à multiculturalidade. A tradição humanista, de valorização da pessoa humana, e a crença de que a educação escolar é um factor importante no desenvolvimento pessoal e social e que é potenciadora da igualdade justificam muitas das vozes que se têm levantado em defesa de uma educação que responda à diversidade dos sujeitos e das situações. Diversidade sem diferenciação pedagógica conduz à desigualdade, dizem muitos dos que têm reflectido estas questões e que alertam para efeitos perversos da construção da escola de massas. Mas será que as respostas que foram sendo encontradas para a diversidade cultural conduziram, sempre, a práticas de positiva diferenciação pedagógica?

Banks (1988, p. 29-31) considera que nos Estados Unidos, e em muitos outros países, a emergência da resposta educativa às características multiculturais da população, ou seja, aquilo que ele designa “educação multicultural”, decorreu de um processo evolutivo que teve como fases primeiras os "cursos monoetnicos", os "cursos de estudos multiétnicos" e a "educação multiétnica" 1. Para Banks, na origem da educação para questões de ordem cultural estão os movimentos dos direitos civis dos negros, nos anos 60, nos Estados Unidos e das minorias étnicas, nos anos 70, na Inglaterra e no Canadá. Estes movimentos, reclamando da escola e das outras instituições respostas mais adequadas às suas necessidades e aspirações, geraram um interesse crescente pelas culturas de que eram portadores, que se traduziu na realização de cursos específicos sobre aspectos dessas culturas. São exemplo destes cursos monoétnicos a História dos Negros, a Literatura Mexicana, entre outros.

Os cursos sobre as especificidades das etnias foram-se transformando progressivamente, segundo Banks (1988), em cursos destinados a todos os grupos, e não apenas para as minorias étnicas, o que

1Robert Ford, apoiado em Banks, define estes conceitos da seguinte forma: "estudos étnicos - educação em que se está preocupado com os estudos humanísticos e científicos das histórias, culturas e experiências dos vários grupos étnicos dentro de uma sociedade; educação multiétnica - a que se preocupa com a modificação do ambiente social para que este seja mais reflexivo sobre a diversidade étnica na sociedade; educação multicultural - a que se preocupa com a criação de um ambiente educativo no qual os estudantes de uma variedade de grupos microculturais (isto é, raça e etnia, gênero, classe social e necessidades específicas) experimentem igualdade educativa" (in doc. policopiado fornecido pelo autor).

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deu origem aos chamados cursos de estudos multiétnicos. Estes cursos multiétnicos foram-se tornando cada vez mais abrangentes e cativando mais educadores, que reconheciam os estudos étnicos necessários, mas não suficientes, para uma reforma educativa orientada para a igualdade. A exigência deste tipo de reforma gerou, pois, um movimento que Banks designa por educação multiétnica e onde a mudança foi alargada a vários elementos do currículo escolar. O que estava em causa já não eram apenas variáveis referentes a materiais ou estratégias de ensino, mas sim atitudes dos professores, envolvimento dos pais e da comunidade, textos escolares e outras fontes curriculares.

A resposta escolar à multiculturalidade surge, assim, associada ao interesse de alguns educadores por uma reforma educativa que tivesse em conta não só o que era considerado ser o problema das minorias étnicas, mas também os problemas que diziam respeito a mulheres, pessoas incapacitadas, grupos religiosos, etc. (Banks, 1988, p. 29-53). Para Banks, a "educação multicultural" tornou-se o conceito mais preferido em muitas instituições educativas, em parte por "focar uma grande variedade de grupos, em vez de limitar o seu foco às minorias raciais e étnicas" (1988, p. 31).

Por sua vez, Lynch (1988, 1989) associa a imigração dos anos 60, ocorrida no Reino Unido, com a origem da atenção escolar à diversidade cultural. E, neste caminho, identifica, depois de uma primeira resposta centrada no Inglês, como língua segunda, a fase do déficit e as fases do ensino multicultural, na linha do pluralismo cultural e do anti-racismo, orientado para a redução dos pré-juízos. Este percurso evolutivo foi passando, pois, de uma educação que enfatizou a adição étnica ou práticas de compensação das privações culturais, para processos de desenvolvimento de auto-imagens mais positivas dos alunos dos diversos grupos2.

Se analisássemos a origem das respostas educativas ao multiculturalismo noutros países, provavelmente chegaríamos a conclusões semelhantes, ou seja, que elas estão intimamente relacionadas com o contacto com grupos étnicos ou culturais diversos e com a procura de princípios de igualdade e de justiça social. É evidente que a procura desta igualdade está também relacionada com a existência de grupos de pressão que reclamam direitos de cidadania para todos e posturas mais democráticas. E é também evidente que estas posições não são por todos partilhadas de igual modo, o que justifica respostas muito diversas na forma de entender e pôr em prática a educação escolar numa sociedade multicultural.

Quanto a Portugal, a origem desta educação está também relacionada com o facto de passarmos a receber grandes contingentes de povos de outras nações, com outros costumes e tradições, outras religiões, outras crenças e outras línguas. Depois de passarmos por uma fase de opção declaradamente assimilacionista (bem expressa no multiculturalismo conservador da educação escolar colonial) têm-se vindo a delinear algumas ações que começaram por uma aceitação passiva e benevolente da diversidade e se têm tornado progressivamente mais interativas e geradoras de uma interculturalidade crítica.

De uma maneira geral, podemos dizer que as teorias da assimilação que caracterizaram as primeiras opções em educação foram dando lugar às metáforas do “caldo de culturas” e da “salada de culturas”, promissora do pluralismo cultural e que reconhece a importância da permanência das

2 Banks (1988: 19) descreve como etapas constituintes deste percurso evolutivo: a adição étnica; o desenvolvimento da auto-imagem; a compreensão pelas privações culturais; o ensino das línguas de origem.

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subculturas. A ideia do “caldo de culturas” está associada ao princípio de que todas elas têm aspectos positivos, pelo que a diversidade presente neste “caldeirão” constitui uma fonte geradora de uma nova cultura superior. Esta metáfora, sendo portanto orientada por ideais de homogeneização, foi dando lugar, como dissemos, à metáfora da salada, que compreende as diversas culturas, nas suas especificidades e valores, ligadas por um tempero comum que é a cultura dominante3. O horizonte intercultural não se identifica, no entanto, ainda, com estas visões parcelares das culturas uma vez que a perspectiva intercultural pressupõe que se gerem formas originais nascidas das culturas em contacto, sem, no entanto, se deixarem reduzir a qualquer delas.

Em síntese, desde a orientação pela assimilação e homogeneização cultural, isto é, desde a fase do monoculturalismo até à opção por princípios de educação intercultural um longo caminho foi percorrido. Paralelamente, nesta evolução das concepções educativas, a multiculturalidade foi deixando de ser percepcionada como um problema que exigia intervenções escolares no sentido de o resolver para passar a ser entendida como um fator potenciador de um enriquecimento pessoal e social. No entanto, nem sempre as práticas que se foram instituindo corresponderam a esta evolução conceptual.

Pormenorizando um pouco mais, na fase e nas orientações correspondentes aos programas assimilacionistas, a diversidade cultural e qualquer característica percepcionada como diferente do comportamento ou regras padrão são vistas como um problema perturbador da ordem instituída e do consenso social. Nesta perspectiva assimilacionista, é impensável a ideia de R. Rowland (1987: 8-9) quando sustenta que a diversidade e a colaboração de culturas diferentes contribuem para o progresso da humanidade e para o conhecimento e compreensão de cada cultura. A tônica põe-se na existência de uma cultura única, e os que desejam a igualdade pensam-na, no que se refere à Escola, apenas em termos do acesso dos mais capazes, sem relacionarem a possibilidade de sucesso com a relação entre a origem e cultura de pertença dos educandos e a cultura escolar. Não está, também, presente nesta concepção a ideia de B. S. Santos (1995) do mundo como um “arco-íris de culturas”. Ou, então, o que existe é um “daltonismo cultural” (Cortesão, L. & Stoer, S., 1996: 38) que não possibilita a alguns identificarem as cores desse arco-íris cultural (ou terem delas consciência).

Os programas de compensação, que caracterizam um segundo tipo de respostas educativas à diversidade cultural presente nas escolas, reconhecem já a existência de diferentes culturas mas optam, na procura da igualdade e da eliminação de situações de discriminação, por submeter os alunos e alunas pertencentes aos grupos minoritários a processos e a estratégias de ensino que permitam superar aquilo que é considerado ser o seu “déficit”. É aos alunos e às suas características culturais e de origem que é atribuída a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso escolar, e não ao sistema ou ao currículo escolar, em geral. No fundo, em termos culturais, esta postura continua na lógica da cultura única e nas respostas do tipo subtrativo.

O reconhecimento da diferença, do direito a essa diferença e dos efeitos positivos e enriquecedores que podem advir das interações culturais, ou sejam, os programas igualitários, correspondem a um discurso e a uma orientação mais recentes, existindo ainda, e tal como atrás dissemos, alguma dificuldade de implementação ao nível dos projetos educativos das escolas e das práticas de grande número de professores. Na realidade, toda a tradição

3 Para aprofundamento destes conceitos, ver Esteve, J. M. (1991). “Mudanças sociais e função docente”, in Nóvoa, A. -org.- Profissão professor, Porto: Porto Editora, pp. 93-124.

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escolar tem apontado para a valorização exclusiva dos produtos da cultura hegemônica pelo que não é fácil romper com esta situação tornando presentes, na cultura escolar, as vozes que dela têm estado ausentes, nem é fácil reconstruir um conhecimento que seja de todos e, simultaneamente, de cada um dos grupos culturais presentes na sociedade.

Centrando a nossa atenção na situação portuguesa, a origem das posições e/ou projetos que apontam para a necessidade de repensar a educação de modo a responder à diversidade cultural resulta:

* i) dos ideais da democracia instalados entre nós nos anos 70;* ii) do facto de ser mais visível, numa escola que passou a ser de massas, a presença de alunos e alunas que não correspondem ao perfil do “cliente-ideal” (H. Becker, 1977), ou seja, da criança ou jovem que facilmente compreende ou aceita o ensino padrão que caracteriza a escola tradicional e que responde de acordo com as regras por ela valorizadas;* iii) do princípio do direito de todos à educação proclamado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (aprovado em 1948) e que ganhou nova força com a Lei de Bases do Sistema Educativo Português (1986);* iv) do direito à diferença hoje instituído nos discursos da política educativa e que rejeitam as teses monoculturalistas (que pressupondo um modelo cultural único o impõe a todos como forma de ascensão e de reconhecimento social);* v) da ideia do empobrecimento cultural que resulta da desculturação da cultura de origem.

Apesar de reconhecermos que nos últimos anos começou a emergir uma certa consciência de que existem especificidades culturais nos grupos que configuram a sociedade portuguesa e que surgem posições que apontam para a ilegitimidade da opção por programas assimilacionistas, não podemos ser inocentes ao ponto de pensarmos que o coletivo dos agentes educativos e da administração da educação concebem a organização curricular e desenvolvem o currículo segundo processos igualitários. Questionamos, mesmo, que a diversidade seja vista como um fator de enriquecimento, e não que continue a ser representada e encarada como um problema. De fato, em nossa opinião, predomina na sociedade portuguesa uma visão social que considera certas culturas deficitárias, o que faz com que a diferença não seja percepcionada como um fator potenciador de enriquecimento pessoal e social. Face às características diversas dos alunos e quando elas são detectadas e reconhecidas ocorrem mais situações de rejeição, de paternalismo ou de compensação do que situações estruturadas no direito à diferença e na consideração de potencialidades que podem advir das interações entre o diferente e o plural.

2.3 Do Contato de Culturas à Interação Cultural

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S. May (1994, p. 38), referindo-se à educação para o multicultural e à retórica do pluralismo, sustenta que o “multiculturalismo benevolente”, ou seja, o mero reconhecimento da diversidade ou as atitudes paternalistas, tem muita importância na identidade cultural e étnica mas muito pouca importância no que determina negociações de sucesso para grupos étnicos minoritários nas suas interações com os grupos dominantes na sociedade. E, recorrendo a Hulmes (1989, p. 13), diz que as vozes das culturas minoritárias são ignoradas, exceto quando elas falam de níveis de atividades culturais tais como a música, a dança, a cozinha e hábitos sociais.

Ora, como é evidente, não é nesta óptica que estamos a arguir quando apontamos no sentido de uma educação intercultural. Não se trata de desenvolver o que Husén (1988) designa por “currículo de turistas”, ou seja, o que noutra altura (Leite, 1995, p. 5) caracterizamos como o tipo de currículo que trabalha esporadicamente e de forma fragmentada temas da diversidade cultural, da situação diferenciada das mulheres e outros aspectos das especificidades de certos grupos socioculturais e étnicos, promovendo um olhar do "diferente" como algo de estranho e de exótico. Essa é apenas uma atitude de contemplação que ao procurar definir ou descrever as culturas em presença, numa atitude comparativa, tem, muitas vezes, o efeito perverso de separar o "nós" dos "outros" e de realçar as diferenças, reforçando os estereótipos.

Ao contrário, a posição que estamos a defender é a que ultrapassa quer o assimilacionismo, quer a aceitação passiva das diferentes culturas, para assumir formas de uma coexistência ativa entre elas, geradora, nos elementos de cada cultura, quer de um melhor conhecimento de si, quer dos outros. É, no fundo, aquilo para que aponta a Recomendação da Conferência Internacional da Educação realizada em Geneve em Setembro de 1992 e onde os Ministros da Educação aceitaram como definição da interculturalidade “o conhecimento e a apreciação de diferentes culturas e o estabelecimento de relações de trocas positivas e de enriquecimento mútuo entre os elementos das diversas culturas, tanto no interior de um país como do mundo” (Conselho da Europa, 1994, p.8).

Neste entendimento de interações culturais, trata-se, não de uma situação de dádiva, por parte de uns, e recepção, por parte de outros, mas sim de um diálogo intra e entre-culturas onde cada uma se valoriza através de práticas que permitem um melhor conhecimento de si e o (re)conhecimento dos outros. É por isso que apoiamos posições que consideram constituir a presença nas escolas e nas salas de aula de crianças e jovens pertencentes a diferentes culturas, não um obstáculo para o ensino e para a aprendizagem, mas sim um potencial fator de enriquecimento, desde que sejam criadas oportunidades de troca e reciprocidade. Seguimos a linha das teorias ou pedagogias críticas que, opondo-se aos modelos de educação por “transmissão” - por excluírem ou rejeitarem as experiências dos alunos – se estruturam mais nas suas experiências e pontos de vista do que numa cultura imposta e muitas vezes alienante (S. May, 1994, p. 45). Por outro lado, consideramos que uma educação que tem em conta a diversidade cultural tem de estar intimamente relacionada com os princípios que orientam movimentos dos direitos humanos. “Diversidade sem igualdade é opressão”, diz-nos Meyer Weinberg (1994, p. 27) apresentando como exemplo o caso da Alemanha Nazi onde existiam Judeus, Polacos, Sérvios e trabalhadores estrangeiros e isso não fez dela uma verdadeira sociedade multicultural.

Apesar do que vimos afirmando, a ênfase da educação nas questões da diversidade cultural tem sido também alvo das críticas dos teóricos radicais,

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pela sua incapacidade em lidar com as desigualdades estruturais que limitam as condições de vida das crianças dos grupos minoritários. Por isso, uma educação que pretende positivamente responder ao multiculturalismo precisa de ter em conta as críticas dos teóricos radicais e de reconhecer a necessidade de mudanças estruturais ou institucionais dentro da escola (S. May, 1994, p. 5-6). Mas, para além das posições destas teorias radicais menos favoráveis a uma educação orientada para o multiculturalismo, também os conservadores a olham com desconfiança. Os primeiros, os críticos radicais, consideram que ela não é suficientemente política, servindo apenas para acalmar as minorias enquanto não mudam as ordens sociais, os segundos, os conservadores, opõem-se-lhe por ser demasiado “política”.

No quadro destas posições, há que não pensar a educação intercultural4 como uma panaceia5 que resolve todas as situações de desigualdade, discriminação e exclusão econômica, social e cultural. Ela é um processo de aquisição de um “bilinguismo cultural”6 que facilita o acesso das crianças e jovens dos grupos minoritários, não apenas ao conhecimento das suas culturas de origem, mas também ao conhecimento de outras culturas e ao usufruto dos bens por elas proporcionadas no exercício da cidadania. A posição que aqui estamos a sustentar, de uma educação onde as diferentes culturas interagem, associa-lhe, também, características de uma formação anti-racista, e onde a cultura passa de “produto” a “processo” (Camilleri, 1992, p. 45) uma vez que se prevê a vivência de situações de análise das estruturas sociais e econômicas que influenciam fortemente condições de classe, relações de poder e características culturais.

2.4 Papéis dos Professores no Desenvolvimento de um Currículo que Atende à Diversidade

Nos últimos tempos, das críticas às explicações conservadoras, que defendem a educação das crianças dos grupos minoritários segundo um currículo especial, de acordo com a situação de défice e inferioridade que, na perspectiva dessas correntes, as caracterizam, têm surgido propostas que apontam para soluções que reconheçam o multiculturalismo e, nesse sentido, advogam modelos curriculares de "compreensão cultural", “alfabetização cultural”, “competência cultural”, “bilinguismo cultural” ou de “emancipação cultural”. Clarificando as intenções de cada um destes modelos, podemos dizer que os programas que se orientam para a “compreensão cultural” pretendem conseguir o que Banks (1991) designa por a meta da ausência de pré-juízos; os programas que se inserem nos modelos de “alfabetização e competência cultural” pretendem preservar a diversidade, sobretudo no que se refere ao idioma da identidade dos grupos minoritários; os programas “bilingues”, do ponto de vista cultural, pretendem que os grupos minoritários sejam capazes de se recensear, quer na sua cultura de origem, quer na cultura dominante; os programas curriculares de “emancipação cultural” e de “reconstrução social”

4 Há quem, tendo em conta esta situação, fale não de educação intercultural mas sim de "impostura intercultural". Ver, a propósito, conclusões do grupo de reflexão sobre Política Educativa no Colóquio Internacional "Diversité culturelle, Société industrielle et Etat National”, Mayo, 1983, Université de Créteil, France.5 Segundo S. May (1994: 4) a educação que dos anos 70 aos 80 pretendia responder ao multiculturalismo começou a ser vista por muitos analistas liberais como uma nova panaceia para remediar as dificuldades educacionais colocadas pelas crianças das minorias. E, neste sentido, May utiliza mesmo a expressão “panaceia multicultural” (ibidem: 34).6 Garcia Castaño & Pulido Moyano (1992) falam de uma “educação bicultural” ou de um “biculturalismo” que capacite cada pessoa para atingir os benefícios das concessões econômicas e políticas, ao mesmo tempo que recebe o substracto psicológico e sociológico da sua cultura de origem (ver, principalmente, pp. 43-44 sobre a questão da educação bicultural como a competência em duas culturas).

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atribuem a responsabilidade da situação desfavorável dos grupos minoritários à não presença da cultura minoritária no currículo escolar e às atitudes de pré-juízos dos professores, pelo que advogam a ampliação do âmbito do conhecimento escolar à diversidade de conhecimentos, histórias e experiências dos grupos marginalizados (McCarthy, 1994: 65).

Admitindo que “o currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social” (Moreira, A. F. & Silva, T. T., 1995: 7-38), ele não pode ser negligenciado nos processos de educação que pretendem comtemplar as características culturais dos alunos a quem se destina. A este propósito, Bernstein, nos seus primeiros trabalhos7, afirma que a escola coloca em situação desvantajosa as crianças oriundas de determinados grupos sociais. E, neste sentido, critica-a porque, ao usar preferencialmente um "código elaborado"8, condiciona fortemente o que se aprende e como se aprende, favorecendo as crianças cujo ambiente e cultura familiares estão na continuidade deste código e limitando aquelas que não o dominam porque pertencem a classes com "códigos linguísticos restritos". Na estruturação da sua tese, Bernstein parte da ideia de que o conhecimento formal é realizado através de três sistemas de mensagem: o currículo9 (que, segundo ele, define o conhecimento válido), a pedagogia (que define a transmissão válida do conhecimento) e a avaliação (que define a realização válida do conhecimento). E é com base nestes três sistemas de mensagem que este autor critica a construção social do discurso pedagógico, afirmando que "o modo como a sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educacional formal, reflete a distribuição do poder e os princípios de controlo social”10. Por outro lado, defendendo a necessidade de conhecer a gramática do discurso pedagógico, ou seja, a lógica dos dispositivos de transmissão, Bernstein propõe, em substituição de análises centradas nas mensagens transmitidas, análises das regras que constituem o que ele designa de dispositivo pedagógico, ou sejam, as regras de distribuição, de recontextualização e de avaliação.

Na linha desta referência teórica, a compreensão dos efeitos gerados pelos processos de desenvolvimento de um determinado currículo tem de passar por análises que tenham em consideração, quer as ideologias e valores que o orientam, quer as características e os contextos onde ocorre a formação, ou seja, tem de passar pela análise do que se ensina e das realidades de quem ensina, como ensina e de quem se deseja ensinar. Historicamente os professores, no desenvolvimento do currículo, têm tido um papel que se enquadra mais no perfil do "professor-transmissor" de um currículo, feito à sua medida, do que o de um "professor-implementador ativo" ou de um "professor-configurador" desse currículo (Ben-Peretz, 1988). De fato, no tocante ao

7 Ver Bernstein, B. (1971-1974) Class, codes and control, Vol. 1, 2, 3, London: Routledge Kegan Paul.8 Segundo Bernstein, a estrutura social gera formas linguísticas, ou códigos de fala distintos, que ele classifica em: código restrito e código elaborado. O primeiro, código restrito, aparece em relações sociais que privilegiam o "nós" sobre o "eu" e caracteriza-se pela utilização da expressão numa ordem muito simples e breve, onde predomina um simbolismo descritivo e concreto que traduz pensamentos próximos da realidade. Pelo contrário, no código elaborado há um alto nível de organização sintática e de seleção léxica que permite ao falante recorrer a um elevado número de alternativas. Nesta perspectiva sociológica dos códigos, estes referem-se à realização e execução linguística e não à competência intelectual, não se podendo, também, identificar com os dialetos. Para esta última perspectiva, ver entrevista de Bernstein, em 1979, a Cuadernos de Pedagogia, in Caivano F. & Carbonell J. - org. - (1986: 9-20).9O conceito de currículo, que nos orienta, tem uma concepção mais ampla do que a que é expressa por Bernstein (que utiliza o termo para referir apenas os programas e conteúdos de ensino).10Bernstein, in Domingos A. M. & al. (1986: 149).

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currículo, podemos considerar três situações que correspondem a três diferentes papéis de professores:

* -currículos oficiais prescritos para serem implementados sem que ocorram alterações significativas ao modelo definido pelo macrosistema, e que, portanto, se estruturam de forma a que os professores tenham um papel neutro;* -currículos oficiais que permitem na sua implementação algumas adaptações face às especificidades educativas e onde é atribuído aos professores um papel mais activo;* -currículos que se constróem a partir das acções projectadas e desenvolvidas pelo/a professor/a, que é reconhecido/a como o/a protagonista na tomada de decisões.

À atitude do/a professor/a neutro/a que consome e fielmente transmite o currículo oficial opõe-se uma outra progressivamente mais ativa e que vai caminhando no sentido de um/a educador/a que toma decisões, construindo e configurando o próprio currículo. Por outro lado, se considerarmos o que significa ensinar e participar na educação de grupos de crianças que são diferentes entre si, concluímos ser necessário aos professores esta atitude interveniente e que reflete a substituição de uma "mentalidade tecnicista" por uma "mentalidade curricular". Zabalza (1987) caracteriza estes dois tipos de mentalidade, referindo que a primeira (mentalidade tecnicista) traduz uma visão parcelar e restrita do acto educativo enquanto a segunda (mentalidade curricular) significa uma consciência do sistema em que se está inserido e das opções que o orientam, bem como do modelo que se veicula e que integra as acções realizadas.

2.5 A Educação Intercultural na Renovação de um Currículo que Concretize o Princípio da “Escola para Todos”

Na linha de Forquin (1989, p.9), partimos da premissa que “não há ensino possível sem o reconhecimento, por parte daqueles a quem o ensino é dirigido, de certa legitimidade da coisa ensinada”. De fato, em sociedades onde a diversidade e o multicultural são cada vez mais aspectos que as caracterizam não faz sentido a continuação do privilégio dos currículos nacionalistas e etnocêntricos, onde apenas alguns se revêem e se sentem legitimados. Se queremos uma “escola para todos” temos de partir da consideração do multiculturalismo, onde os silêncios, as marginalizações e o desconhecimento são substituídos pelos diversos contributos.

Estas atitudes que não se coadunam com o mero domínio, por parte dos professores, de técnicas e estratégias que se apliquem de modo universal - ao exigirem uma contínua procura dos “caminhos” e processos mais adequados para cada situação, contribuem também para a construção da profissionalidade docente e legitimam os professores, não apenas como executores passivos de programas por outros delineados, mas como intervenientes ativos nos processos de inovação e configuração curricular.

Uma “escola para todos”, e em que “todos são diferentes”, exige de cada professora e professor a capacidade e a flexibilidade para inovar na linha de um paradigma que proporcione o êxito e a mudança, sem despersonalizar e aculturar. Argumentações que têm sido feitas, do ponto de vista social e educativo, aos princípios que orientam a assimilação ou homogeneização cultural, apontam para o caráter injusto e empobrecedor que esta perspectiva

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transporta. Na realidade, e como já atrás foi indiciado, a valorização de uma cultura única e as práticas de homogeneidade social penalizam determinados grupos e, ao ignorar a riqueza proveniente da diversidade, impedem desenvolvimentos societais. Daí as teses que se opõem a uma educação monocultural.

Decorrente das críticas feitas às práticas monoculturalistas e assimilacionistas, que perante a diferença optam por uma atitude subtrativa ignorando essa diferença ou por uma atitude aditiva preenchendo os aspectos considerados em déficit relativamente à cultura hegemônica, outras correntes têm surgido apoiadas em ideias que reconhecem a existência de culturas diversas, o direito à diferença e o enriquecimento que pode advir dessas interações. É no quadro desta postura que se situa a educação intercultural. O reconhecimento pela escola (e na escola) de diferentes manifestações e comportamentos culturais tem repercussões ao nível das auto-estimas dos elementos dos grupos minoritários, gerando confiança e predisposição para a aquisição de outros saberes. É nisto que cada um e uma de nós, profissional da educação, tem de acreditar se quiser vencer o fatalismo do insucesso escolar e contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática.

Perrenoud (1991) fala da necessidade dos professores fazerem uma série de lutos se o insucesso escolar os incomodar e se quiserem evoluir no sentido de uma diferenciação pedagógica. E, para fazer esse luto, refere: a necessidade de se reconhecer que o insucesso é evitável; em vez de se procurar um bode expiatório, reconhecer-se as próprias responsabilidades para esse insucesso; encontrar prazer em lutar contra o insucesso; encontrar formas eficazes de ajudar os alunos em dificuldades; vencer as inércias e as rotinas repousantes; pôr em causa as certezas didáticas tendo consciência de que as situações de resistência de alguns alunos estão muitas vezes na base de soluções mais inovadoras; valorizar dinâmicas da instituição e o trabalho em equipa; abandonar o papel central dos acontecimentos para se tornar pessoa-recurso.

É também uma atitude orientada por estes princípios que se enquadra numa educação intercultural. Perante a diversidade dos alunos, um professor que desenvolve práticas que contemplam essas especificidades acredita nas vantagens que daí decorrem e transporta para a escola os saberes do quotidiano dos diversos grupos, trabalhando-os, não de forma esporádica e fragmentada, mas contextualizada e vivenciada por processos interagidos. Esta atitude educativa é, portanto, substancialmente diferente da de um “currículo turístico” (Husén, T., 1988) e imbui os professores de uma mentalidade curricular que lhes permite ultrapassar o paradigma técnico-burocrático e o peso das rotinas, por forma a conceberem projetos ajustados às realidades em que trabalham. É o que Zeichner (1993) afirma quando diz que os professores, para implementarem nas suas aulas o princípio da inclusão, terão de possuir conhecimentos sócio-culturais sobre os diversos grupos, mas “deverão ser capazes, também, de utilizar estes conhecimentos na organização curricular e no ensino, para estimularem a aprendizagem dos alunos” (ibidem: 89).

3. ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA ESCOLA E AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM

3.1 Currículo: O Coração da Escola

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Como sabemos, o currículo escolar requer uma organização dos tempos/espaços em que a escola vai desenvolver os diferentes conhecimentos e valores que durante a construção do seu Projeto Político Pedagógico - PPP forem considerados necessários para a formação de seus alunos. Isso é possível, hoje, porque, com base no princípio da autonomia, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (Lei n° 9394/1996) estabeleceu como incumbência da escola e de seus professores (Art. 12 e 13) a construção do PPP. É na construção do PPP que a comunidade escolar (Pais, Professores, Alunos, Funcionários) debate, discute e estabelece suas concepções de homem, de mundo, de sociedade, de conhecimento, de currículo, de avaliação e tantas outras, com o objetivo de criar referências e diretrizes próprias para as práticas que pretende implantar.

Dentre as práticas implantadas pela escola, a mais legitimamente ligada à sua razão de ser é, sem dúvida, a que denominamos desenvolvimento do currículo escolar. Muito mais do que um conjunto de saberes dividido em áreas de conhecimento, disciplinas, atividades, projetos e outras formas de recorte, por sua vez hierarquizados em séries anuais ou semestrais, ciclos, módulos de ensino, eixos e outras formas de escalonar o tempo, o currículo é o coração da escola. É por dentro dele que pulsam e se mostram as mais diversas potencialidades, em meio às reações manifestadas pelos alunos nos seus escritos, desenhos, jogos, brincadeiras, experimentos, estratégias de relacionamento entre si e com os educadores. É por dentro dele que desejos podem ser tolhidos ou encorajados.

A força do currículo escolar é tanta, que sobre ele costumam recair os aplausos ou as criticas sobre o “êxito” ou “fracasso escolar”, quando se discutem as causas internas da boa ou da má qualidade do ensino. Assim, quando crescem os índices de reprovação e evasão escolar é bastante freqüente que os Sistemas de Ensino e as escolas procurem reorganizá-lo, intensificando, por exemplo, o número de horas de determinada atividade, disciplina ou área de conhecimento, ou, ainda, incluindo novos componentes curriculares ou excluindo outros.

3.2 Formas de Organização do Curículo EscolarDentre as formas de organização curricular, as mais freqüentes nas

escolas brasileiras são denominadas de regime seriado e regime ciclado.O regime seriado predominou em nossas escolas do final do século

XIX até o início da década de 80 do Século XX, quando passou a ser problematizado por ter seus fundamentos vinculados a uma pedagogia tradicional. A pedagogia tradicional, como se sabe, está centrada na transmissão de conhecimentos acumulados e considerados essenciais para a inserção de todos à sociedade e ao mercado de trabalho. Nesse modelo, os conhecimentos são divididos em componentes curriculares específicos para cada campo do conhecimento e esses, por sua vez, são subdivididos em séries ou anos de estudos. A lógica dessa forma de organização curricular é exclusivamente temporal, pois fica estabelecido que determinados conteúdos devam ser aprendidos, indistintamente, por todos os alunos num tempo também determinado.

O regime ciclado também é dividido em tempos que costumam variar entre dois e três anos de duração, mas considera as variações evolutivas dos alunos, suas histórias pessoais/familiares, suas experiências, seu ritmo, sempre procurando compreender e atender cada um em suas diferenças, mas sem perder de vista sua inclusão na sociedade como cidadão de direitos e

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deveres e, portanto, como protagonistas na vida coletiva. Mas é, acima de tudo, o resultado de uma nova concepção de escola como espaço onde as aprendizagens não se dão apenas a partir de um campo científico definido como, por exemplo, Artes, Matemática, Estudos Sociais e outros, mas, sim, agregando valor formativo a cada um desses ou de outros campos do saber sistematizado. Isso implica, necessariamente, no estabelecimento de uma ética curricular que respeita os percursos individuais mas que impõe o trabalho coletivo com vistas a consolidação de uma sociedade democrática.

Os regimes seriado e ciclado coexistem, atualmente, em função do olhar pedagógico que cada escola define de forma autônoma em seu PPP. Mas cabe destacar, que ambos são objetos de inúmeras análises e debates acadêmicos, na medida em que cada grupo de estudiosos pesquisadores e professores das redes públicas e privadas de ensino assumem posições a favor ou contra uma dessas duas formas de organização curricular.

Essa polarização tem levado os defensores do regime seriado a criticarem o regime ciclado acusando-o de desqualificar o ensino e de promover automaticamente o aluno sem uma definição clara dos critérios avaliativos e sem que as aprendizagens tenham se efetivado. Por outro lado os defensores do ensino ciclado acusam o regime seriado de elitista e atrelado aos valores de mercado e, principalmente, de excludente em face dos rígidos critérios avaliativos que estabelece.

Mas existem outras formas de organização curricular previstas para o atendimento de determinadas populações ou grupos de alunos em função de suas peculiaridades, estabelecidas no Art. 23 da LDBEN, como se observa no excerto que segue:

“A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar”.

A alternância regular consiste na “organização do ensino de forma seqüencial, cumprindo dois momentos diferentes, um presencial na escola e outro que se dá fora dela, sempre na mesma ordem”. (Parecer CEED/RS 740/1999). As demais possibilidades (grupos não seriados e outras formas diversas) dependerão das condições que possuírem as unidades escolares, do número de alunos a serem atendidos e, sobretudo, da “capacidade de gestão educacional para cumprir os objetivos a que se propõe” (Parecer CEED/RS 740/1999), no sentido de recursos humanos em quantidade adequada e devidamente capacitados.

Esta flexibilidade contida na atual LDB, apesar dos mais de dez anos de sua promulgação, ainda representa algo novo para as escolas e para os profissionais da educação, formados em regimes seriados, num contexto histórico que fez prevalecer essa forma de organização curricular por bem mais de cem anos. Por tudo isso, a opção da escola por esta ou aquela forma de organização curricular requer uma meticulosa discussão, pois cada escola será reconhecida pelo tipo de homem que ela deseja formar e por meio dos mecanismos que utiliza na definição de seu currículo: propondo, selecionando, privilegiando, excluindo, silenciando conteúdos e posturas tanto dos professores e alunos quanto de possíveis interesses das comunidades onde as

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escolas se localizam. (GONTIJO. GONTIJO. Salto Para o Futuro. Série Currículo e Projetos. Programa N° 4/2004)

Como se observa, a questão que está em jogo quando a escola debate e decide coletivamente suas intenções curriculares é a concepção que irá nortear suas práticas. Essa concepção pode se concretizar numa forma de organização como a “grade curricular” com tempos, espaços e conteúdos rigidamente definidos, sendo mais comum no regime seriado, ou num campo de possibilidades com raízes que se multiplicam indefinidamente colaborando para a constituição das potencialidades dos alunos, o que é mais provável quando a forma de organização for ciclada.

3.3 Currículo e Avaliação da Aprendizagem EscolarUm aspecto fundamental quando se fala em organização do currículo

escolar é a forma como se avalia as aprendizagens que os alunos efetivam durante seu desenvolvimento. Com isso, estamos querendo dizer que currículo e avaliação da aprendizagem escolar, são faces indissociáveis de uma mesma moeda e que, portanto, ocorrem simultaneamente.

A idéia de que a avaliação da aprendizagem dos alunos é um processo dissociado do desenvolvimento curricular nasceu com a pedagogia tradicional e ainda se faz presente em muitas unidades escolares, apesar de intensamente questionada. Quando essa concepção prevalece a avaliação da aprendizagem consiste somente na aplicação de instrumentos como questionários, provas, trabalhos escritos em geral, em períodos regulares (final de cada mês, ou bimestre ou semestre) e com o objetivo de verificar a quantidade de informações que os alunos assimilaram naquele período e classificá-los em escalas de notas ou até mesmo de conceitos tratados como se fossem notas. Quando a concepção vai além da classificação, preocupando-se com o processo de aprendizagem ao longo do desenvolvimento curricular e ocorrendo por meio de um acompanhamento do aluno com o objetivo de reorientá-lo a cada dificuldade encontrada, situa-se na perspectiva formativa.

As duas formas de avaliação são necessárias quando se pensa na indissociabilidade currículo-avaliação. A primeira, porque quando utilizada não apenas com sua finalidade classificatória auxilia na problematização do próprio currículo e com isto fornece pistas para a melhoria do planejamento docente e escolar. Se algo não vai bem com a parte, provavelmente precisará de uma análise e até reformulação do todo, inclusive do PPP e do Regimento Escolar. A segunda, porque possibilita uma intervenção imediata no processo de aprendizagem, permitindo que o currículo em desenvolvimento se reconstrua ainda durante o processo e comprovando, assim, sua natureza dinâmica e impermanente no atendimento das necessidades dos alunos. Assim, entendemos que:

A avaliação é uma das atividades que ocorre dentro de um processo pedagógico. Este processo inclui outras ações que implicam na própria formulação dos objetivos da ação educativa, na definição de seus conteúdos e métodos, entre outros. A avaliação, portanto, sendo parte de um processo maior, deve ser usada tanto no sentido de um acompanhamento do desenvolvimento do estudante, como no sentido de uma apreciação final sobre o que este estudante pôde obter em um determinado

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período, sempre com vistas a planejar ações educativas futuras. (FERNANDES. FREITAS. 2007, p. 47)

Uma questão importante é a da relação entre a concepção de conhecimento e a forma de organizar o currículo e de avaliar as aprendizagens dos alunos.

Assim, quando a concepção de conhecimento ainda se apresenta fragmentada, a proposta curricular da escola costuma ser organizada na forma de disciplinas organizadas em regime seriado que ao serem desenvolvidas não dialogam e não buscam pontos de articulação. Além disso, e por conseqüência, a prática avaliativa, costuma ser classificatória.

Mas, nem sempre a organização curricular em regime seriado vem acompanhada de uma avaliação classificatória. Esse avanço ocorre quando a concepção de conhecimento e sua respectiva proposta curricular estão fundamentadas numa epistemologia que considera o conhecimento como uma construção sócio-interativa que ocorre na escola e em outras instituições e espaços sociais. Nesse caso, já se percebe múltiplas iniciativas entre professores no sentido de articularem os diferentes campos de saber entre si e, também, com temas contemporâneos, baseados no princípio da interdisciplinaridade, o que normalmente resulta em mudanças nas práticas avaliativas. Em situações como essa, encontram-se professores que trabalham cooperativamente em projetos e outras metodologias que envolvem alunos de diferentes disciplinas e turmas e onde esses são avaliados antes, durante e depois das práticas vivenciadas, por meio até mesmo de auto-avaliação e sem foco na classificação. Mais ainda, escolas que assumem essa posição costumam aprovar regras de avaliação mais inovadoras em seus Regimentos e mais compatíveis com o percurso escolar dos alunos, como a de progressão continuada, também adotada no regime ciclado.

A LDB (Art. 24;III), com a flexibilidade que a caracteriza, já prevê a possibilidade de progressão parcial nos estabelecimentos que adotam a progressão regular por série, lembrando que o regimento escolar pode admiti-la “desde que preservada a seqüência do currículo, observadas as normas do respectivo sistema de ensino”. Também, no art. 32, inciso IV, § 2º, quando trata especificamente do

Ensino Fundamental, refere que: os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino.

O Conselho Nacional de Educação, em mais de um Parecer em que a avaliação do rendimento escolar é analisada demonstra a nova visão de avaliação recomendada aos Sistemas de Ensino e às escolas (públicas e particulares), destacando seu caráter formativo predominando sobre o classificatório. O Conselho Estadual do Estado do Rio Grande do Sul - CEED/RS, por meio do Parecer n° 740/99 destaca a progressão continuada como uma possibilidade oferecida ao aluno,

[...] com determinadas dificuldades de aprendizagem detectadas pelo professor ao longo do processo, a oportunidade de retomá-las, não sendo impedida a sua promoção ao período seguinte. Não se trata simplesmente de uma estratégia de promoção do aluno mas, sim, de uma estratégia de progresso individual e

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contínuo, que favoreça o crescimento do educando, preservando a qualidade necessária para sua formação escolar.

Em se tratando do regime ciclado o conceito de progressão continuada emerge com maior facilidade. Isso ocorre porque um de seus fundamentos é o de que o conhecimento não é transmitido nem está pronto, mas sim, construído informações detalhadas sobre as diretrizes nacionais que tratam da avaliação do rendimento escolar estão disponibilizadas no site do Conselho Nacional de Educação – CNE. No âmbito da aprendizagem escolar, esse fundamento provoca a re-significação das formas de tratar o conteúdo e de avaliá-lo. Se o conhecimento é permanentemente construído, e se essa construção não obedece a padrões rígidos, graças ao entendimento que hoje se tem de que cada aluno ou aluna tem seu próprio ritmo e caminhos para aprender, como, então, manter as formas tradicionais de avaliação?

Ou seja, a implantação dos ciclos, ao prever a progressão continuada, supõe tratar o conhecimento como processo e, portanto, como uma vivência que não se coaduna com a idéia de interrupção, mas sim de construção, em que o aluno, enquanto sujeito da ação, está continuamente sendo formado, ou melhor, se formando, construindo significados a partir das relações dos homens com o mundo e entre si. (SOUZA, 2000)

Ao falar em progressão continuada, portanto, estamos falando de uma escola que inclui a todos. Naturalmente, isso requer outra forma de gestão do currículo, esteja ele organizado em séries ou em ciclos, pois na medida em que o avanço no percurso escolar é marcado por diferentes níveis de aprendizagem, a escola precisará, também, organizar espaços e formas diferenciadas de atendimento, a fim de evitar que uma defasagem de conhecimentos não se transforme numa lacuna permanente.

3.4 Currículo, Avaliação e Mobilidade EscolarUma situação bastante corriqueira em nossas escolas é a mobilidade

dos alunos. Quantas vezes nos perguntamos sobre o que fazer quando recebemos alunos provenientes de outras instituições e de até de outros Sistemas de Ensino, dentro ou fora do município ou Estado em que a escola em que atuamos se situa?

Quantas vezes admitimos nossas dificuldades para incluí-lo no novo contexto escolar? Quantas vezes esquecemos que estes alunos ao viverem um processo de transição institucional passam por momentos de insegurança frente aos novos professores, colegas e frente a pedagogia que lhes é oferecida? Como inseri-los nos tempos/espaços da escola em que são acolhidos quando provêm de outra em que a forma de organização curricular e de avaliação é diferente?

A mobilidade escolar ou a conhecida transferência também e objeto de regramento na LDB e em outros instrumentos normativos do CNE e dos Conselhos de Educação Estaduais e Municipais. Esta é uma realidade que precisa ser tratada a partir do que se entende por direito à educação, pois envolve dimensões que extrapolam a escolha da criança, quando se tratar da Educação Básica e nessa, especialmente do Ensino Fundamental, por seu caráter obrigatório.

As mobilidades, de modo geral ocorrem por necessidade dos adultos responsáveis pelo menor que não pode deixar de ser atendido frente a uma escolha que não foi sua. Nesse sentido não há como recusar matrícula em

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algum estabelecimento de ensino que favoreça o deslocamento do aluno transferido. Mas, acima dessas questões administrativas, não há como recusar a continuidade dos estudos iniciados em outra escola de forma que o aluno não se sinta despreparado para avançar em seu percurso de aprendizagem ou que não se sinta retrocedendo em conquistas já efetivadas.

Parece estarmos tratando do óbvio, mas, nossas observações e acompanhamento de alguns estudos indicam que essa questão tem sido descuidada inúmeras vezes gerando nos alunos transferidos uma sensação de abandono ou descaso, semelhante a que costuma ocorrer com alunos que não acompanham o ritmo de seu colegas em classes cujo professor se pauta por uma visão rígida de conhecimento.

Por tudo isso, ao tratar da mobilidade inter-séries e inter-escolas ou sistemas e pensando, prioritariamente na dimensão pedagógica que envolve o currículo escolar e a avaliação a LDB estabeleceu no § 1° do Art. 23 que: A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais.

Entendemos que reclassificar significa incluir o aluno transferido de uma para outra escola com regimes diferentes, no lugar compatível com se desenvolvimento e com suas aprendizagens. Isso só poderá ser feito após cuidadosa observação e acompanhamento de sua adaptação na instituição que o acolhe, em termos de relacionamento com colegas e professores, de preferências, de respostas aos desafios escolares, indo além de uma simples análise do seu currículo escolar.

Sobre a reclassificação possibilitada pela LDB, mais uma vez é o Parecer CEED/RS n° 740/99 que nos oferece importante contribuição: A despadronização da escola, referida no artigo 23 da LDBEN, permite diversas maneiras de organização escolar. Diante de tal diversidade organizacional, a escola pode se utilizar da reclassificação para situar o aluno que a ela chega nas séries, períodos, ciclos, etapas ou fase, visando a integrá-lo no espaço-tempo adequado ao seu estágio de desenvolvimento e a suas possibilidades de crescimento. Em tais situações, a reclassificação, cumpridas as normas curriculares gerais [...] deverá ficar explicitada no Regimento Escolar.

Voltando a LDB, não podemos deixar de apontar o Art. 24, com seus incisos e alíneas, também fornecedores de alternativas à problemática que estamos discutindo e, mais uma vez, deixando claro que se trata de flexibilizar as condições, para que a passagem dos alunos pela escola seja lembrada como um momento de crescimento, mesmo frente a percursos de aprendizagem não lineares. Extraímos alguns excertos desse Artigo para melhor compreensão do que afirmamos:

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita:a) por promoção, para alunos que cursaram, com aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola;b) por transferência, para candidatos procedentes de outras escolas;

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c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino;III - nos estabelecimentos que adotam a progressão regular por série, o regimento escolar pode admitir formas de progressão parcial, desde que preservada a seqüência do currículo, observadas as normas do respectivo sistema de ensino;IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares;

Uma leitura mais cuidadosa do artigo 24 da LDB nos oferece indicativos de que a escola hoje possui os instrumentos legais e normativos para exercitar sua autonomia também no terreno do currículo e da avaliação da aprendizagem. Esse exercício permitirá que ela se posicione e institua suas próprias regras para mudar e reinventar-se em nome do que entendemos como qualidade da educação ou, ao contrário, para perpetuar as muitas injustiças cometidas em nome de uma padronização do conhecimento e da avaliação. Em qualquer um dos casos, trata-se da escolha de um caminho institucional que impõe um posicionamento sobre o tipo de homens e mulheres que a escola pretende formar.

4 O CURRÍCULO ESCOLAR NA LDB Entre setembro de 2007 e agosto de 2008, foram sancionadas quatro

leis que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Em comum, três delas introduziram a obrigatoriedade de determinadas disciplinas ou componentes curriculares na educação básica.

Em setembro de 2007, a Lei 11.525 determinou que o currículo do ensino fundamental passasse a incluir "obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes".

Em março de 2008, a Lei 11.645 tornou obrigatória a "temática (?) indígena" no ensino médio e fundamental. Em junho do mesmo ano, a Lei 11.684 transformou a Filosofia e a Sociologia em "disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio".

Finalmente, em agosto de 2008, a Lei 11.769 estabeleceu o ensino de música como conteúdo obrigatório, no ensino fundamental e médio, do componente curricular de Artes. A mudança deverá ser introduzida no prazo de três anos.

A inclusão de novas "obrigatoriedades" não é um fenômeno novo e resulta, a meu ver, de um defeito de origem da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996). Em nome de uma "flexibilização" exagerada e dada a polarização que se estabeleceu no Congresso durante a tramitação da LDB, a lei de educação tratou com pouca seriedade o currículo escolar. Genérica, a proposta original limitava-se a estabelecer a obrigatoriedade do "estudo da língua portuguesa e da matemática" e um vago "conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil" (art. 26, §1º). Havia ainda referência ao ensino de História do Brasil, que

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deveria "levar em conta as diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia" (art. 26, §4º).

Durante a tramitação, foram acrescentadas artes e educação física como "componentes curriculares" da educação básica (art. 26, §§ 2º e 3º, apenas artes em caráter "obrigatório"). Também foi incluído no texto o "domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania" (art 36, §1º, III).

Na parte diversificada, a LDB estabeleceu o ensino de pelo menos uma língua estrangeira a partir da 5ª série (agora 6º ano). Por força de um tremendo lobby, o ensino religioso acabou entrando como "disciplina no horário normal das aulas de ensino fundamental das escolas públicas, mas com matrícula facultativa" (art. 33).

4.1 O Lobby e as MudançasA falta de uma discussão mais séria sobre os currículos na educação

básica abriu espaço para que interesses particulares pressionassem por alterações pontuais na Lei, depois de sua promulgação. A LDB foi sendo gradualmente remendada, transformando-se numa colcha de retalhos desconexa.

As mudanças não se limitaram a incluir como "obrigatórios" apenas alguns componentes curriculares e/ou disciplinas, mas conferiram tratamentos diferentes a eles, de acordo com a capacidade de pressão dos grupos diretamente interessados.

Assim, o texto da LDB sancionado em 1996 estabeleceu como obrigatórios o ensino de Língua Portuguesa, Matemática e uma vasta área denominada de "conhecimentos do mundo físico e natural e da realidade social e político", sem definir a estrutura da grade curricular (as disciplinas e a distribuição delas ao longo da educação básica).

Em oposição a tamanha generalidade, a mesma LDB elevou o ensino religioso ao patamar de disciplina do ensino fundamental nas escolas públicas, dentro do "horário normal de aulas", ainda que de matrícula facultativa. Tornou a Sociologia e Filosofia as únicas "disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio". Obrigou que currículos do ensino fundamental tratassem dos direitos de crianças e adolescentes e que o ensino sobre a formação da população brasileira seja abordado a partir de dois "grupos étnicos" (sic) - o negro e o indígena.

Sobre esse último item, vale refletir um pouco mais. Em janeiro de 2003, foi sancionada a Lei 10.639 tornando obrigatório o ensino, no fundamental e médio, de História e Cultura Afro-brasileiras (art. 26-A). Como subproduto, a mesma obrigatoriedade foi estendida à "temática indígena" (sic) em março de 2008 (Lei 11.645).

As duas alterações na LDB não criaram novas disciplinas (o tema deve ser abordado transversalmente e "ministrado em todo o currículo escolar" do fundamental e médio). Em compensação, a lei definiu os conteúdos programáticos que os professores estão obrigados a ministrar. Proeza que nem o regime militar conseguiu instituir:

"O conteúdo programático (...) incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos [negros e índios], tais como o estudo da história da África

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e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional ..." (LDD, § 1º, art. 26-A, com a redação dada pela Lei 11.645, de março de 2008).

O precedente aberto serviu de base para que em fevereiro de 2008 fosse apresentado o projeto de lei 2.742, que não só introduz a educação para o trânsito na educação básica, como determina, no ensino médio, o conteúdo programático da nova disciplina! Espera-se que o bom senso prevaleça e a proposta seja devidamente engavetada¹.

Todo esse conjunto de mudanças são medidas pontuais que não observam o currículo escolar integralmente, nem a sua importância estratégica para um projeto de nação. Elas estão sendo adotadas a reboque de interesses específicos de grupos com maior capacidade de pressão, sejam eles "progressistas" ou "conservadores".

Exemplos não faltam. Em 1997, por conta da vinda do Papa João Paulo II ao Brasil, foi excluída a garantia de que o ensino religioso seria realizado "sem ônus para os cofres públicos". O Conselho Federal de Educação Física atuou fortemente para tornar a Educação Física componente curricular "obrigatório" (em 2001) e suprimir o seu caráter facultativo aos alunos do curso noturno (2003). Ao apresentar o projeto de lei que tornou a Sociologia e a Filosofia disciplinas obrigatórias no ensino médio, o deputado Ribamar Alves escreveu uma longa justificativa de quatro páginas sem mencionar uma única vez a Sociologia.

Devo ressaltar que sou favorável ao ensino de Filosofia e Sociologia, mas tenho ressalvas aos mitos que justificaram a sua introdução como disciplinas obrigatórias. Em primeiro lugar, essas áreas do conhecimento não detêm o monopólio do "saber pensar criticamente". E nem se situam exclusivamente no campo ideológico da esquerda, como muitos acreditam (basta assistir ao Globo News Painel nas noites de sábados).

Em segundo lugar, louvou-se muito o "retorno" das duas disciplinas, como se antes de junho de 2008, data em que a Lei 11.684 foi sancionada, as escolas estivessem proibidas de incluí-las em seus currículos. Ora, especialmente a Filosofia já vinha sendo introduzida nas escolas há mais de dez anos, só que sustentada por projetos pedagógicos e não pela mera obrigatoriedade.

Em terceiro lugar, do ponto de vista pedagógico não há justificativa plausível para que essas duas disciplinas sejam as únicas "obrigatórias em todas as séries do ensino médio", em detrimento de demais disciplinas.

Por que então não apresentar projetos de lei que instituam História, Física, Química, Ciências e Geografia como disciplinas obrigatórias em todos os anos escolares? Ou então definir o que um professor deve ensinar, de acordo com uma ou outra visão de mundo?

Em relação às disciplinas, estou propondo um tratamento isonômico a todas elas. Em relação aos "conteúdos", quero ver criada a confusão. Talvez assim seja possível reiniciar a discussão sobre o currículo escolar, desta vez com um pouco mais de responsabilidade.

4.2 O Currículo na Educação Infantil: O que Propõem as Novas Diretrizes Nacionais?

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O Parecer CNE/CEB nº 20/09 e a Resolução CNE/CEB nº 05/09, que definem as DCNEIs, fazem, em primeiro lugar, uma clara explicitação da identidade da Educação Infantil, condição indispensável para o estabelecimento de normativas em relação ao currículo e a outros aspectos envolvidos em uma proposta pedagógica. Eles apresentam a estrutura legal e institucional da Educação Infantil - número mínimo de horas de funcionamento, sempre diurno, formação em magistério de todos os profissionais que cuidam e educam as crianças, oferta de vagas próxima à residência das crianças, acompanhamento do trabalho pelo órgão de supervisão do sistema, idade de corte para efetivação da matrícula, número mínimo de horas diárias do atendimento e colocam alguns pontos para sua articulação com o Ensino Fundamental.

A versão institucional proposta nas Diretrizes se contrapõe a programas alternativos de atendimento englobados na ideia de educação não-formal. Lembra o Parecer CNE/CEB nº 20/09 que nem toda Política para a Infância, que requer esforços multisetoriais integrados, é uma Política de Educação Infantil. Com isso, outras medidas de proteção à infância devem ser buscadas fora do sistema de ensino, embora articulada com ele, sempre que necessário.

Em segundo lugar, as Diretrizes expõem o que deve ser considerado como função sociopolítica e pedagógica das instituições de Educação Infantil. Tais pontos refletem grande parte das discussões na área e apontam o norte que se deseja para o trabalho junto às crianças.

A questão pedagógica é tratada pensando que, se a Educação Infantil é parte integrante da Educação Básica, como diz a Lei nº 9.394/96 em seu artigo 22, cujas finalidades são desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores, essas finalidades devem ser adequadamente interpretadas em relação às crianças pequenas. Nessa interpretação, as formas como as crianças, nesse momento de suas vidas, vivenciam o mundo, constroem conhecimentos, expressam-se, interagem e manifestam desejos e curiosidades de modo bastante peculiares, devem servir de referência e de fonte de decisões em relação aos fins educacionais, aos métodos de trabalho, à gestão das unidades e à relação com as famílias.

Por outro lado, as instituições de Educação Infantil, assim como todas as demais instituições nacionais, devem assumir responsabilidades na construção de uma sociedade livre, justa, solidária e que preserve o meio ambiente, como parte do projeto de sociedade democrática desenhado na Constituição Federal de 1988 (artigo 3, inciso I). Elas devem ainda trabalhar pela redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos (artigo 3 incisos II e IV da Constituição Federal). Contudo, esses compromissos a serem perseguidos pelos sistemas de ensino e pelos professores também na Educação Infantil enfrentam uma série de desafios, como a desigualdade de acesso às creches e pré-escolas entre as crianças brancas e negras, ricas e pobres, moradoras do meio urbano e rural, das regiões sul/sudeste e norte/nordeste. Também as condições desiguais da qualidade da educação oferecida às crianças em creches e pré-escolas impedem que os direitos constitucionais das crianças sejam garantidos a todas elas. Todos os esforços então se voltam para uma ação coletiva de superação dessas desigualdades.

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Em terceiro lugar as Diretrizes partem de uma definição de currículo e apresentam princípios básicos orientadores de um trabalho pedagógico comprometido com a qualidade e a efetivação de oportunidades de desenvolvimento para todas as crianças.

Elas explicitam os objetivos e condições para a organização curricular, consideram a educação infantil em instituições criadas em territórios não-urbanos, a importância da parceria com as famílias, as experiências que devem ser concretizadas em práticas cotidianas nas instituições e fazem recomendações quanto aos processos de avaliação e de transição da criança ao longo de sua trajetória na Educação Básica. Vejamos cada um desses pontos.

4.3 Os Objetivos Gerais e a Função Sociopolítica e Pedagógica das Instituições de Educação Infantil

As novas DCNEIs consideram que a função sociopolítica e pedagógica das unidades de Educação Infantil inclui (Resolução CNE/CEB nº 05/09 artigo 7º):

a. Oferecer condições e recursos para que as crianças usufruam seus direitos civis, humanos e sociais.

b. Assumir a responsabilidade de compartilhar e complementar a educação e cuidado das crianças com as famílias.

c. Possibilitar tanto a convivência entre crianças e entre adultos e crianças quanto à ampliação de saberes e conhecimentos de diferentes naturezas.

d. Promover a igualdade de oportunidades educacionais entre as crianças de diferentes classes sociais no que se refere ao acesso a bens culturais e às possibilidades de vivência da infância;

e. Construir novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnicoracial, de gênero, regional, lingüística e religiosa.

Nessa definição, foram integrados compromissos construídos na área em diferentes momentos históricos, mas articulados em uma visão inovadora e instigante do processo educacional. Não só a questão da família foi contemplada, como também a questão da criança como um sujeito de direitos a serem garantidos, incluindo o direito desde o nascimento a uma educação de qualidade no lar e em instituições escolares.

O foco do trabalho institucional vai em direção da ampliação de conhecimentos e saberes de modo a promover igualdade de oportunidades educacionais às crianças de diferentes classes sociais e no compromisso de que a sociabilidade cotidianamente proporcionada às crianças lhes possibilite se perceber como sujeitos marcados pelas ideias de democracia e de justiça social, e se apropriar de atitudes de respeito às demais pessoas, lutando quanto a qualquer forma de exclusão social.

A colocação dessa tarefa requer uma forma de organização dos ambientes de aprendizagem que, na perspectiva do sistema de ensino, é orientada pelo currículo.

4.4 Currículo e Proposta Pedagógica na Educação InfantilO debate sobre o currículo na Educação Infantil tem gerado muitas

controvérsias entre os professores de creches e pré-escolas e outros educadores e profissionais afins. Além de tal debate incluir diferentes visões de

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criança, de família, e de funções da creche e da pré-escola, para muitos educadores e especialistas que trabalham na área, a Educação Infantil não deveria envolver-se com a questão de currículo, termo em geral associado à escolarização tal como vivida no ensino fundamental e médio e associado à ideia de disciplinas, de matérias escolares.

Receosos de importar para a Educação Infantil uma estrutura e uma organização que têm sido hoje muito criticadas, preferem usar a expressão ‘projeto pedagógico’ para se referir à orientação dada ao trabalho com as crianças em creches ou pré-escolas.

Ocorre que hoje todos os níveis da Escola Básica estão repensando sua forma de trabalhar o processo ensino-aprendizagem e rediscutindo suas concepções de currículo. Com isso, as críticas em relação ao modo como a concepção de currículo vinha sendo trabalhada nas escolas não ficam restritas aos educadores da Educação Infantil, mas são assumidas por vários setores que trabalham no Ensino Fundamental e Médio, etapas que, inclusive, estão também revendo suas diretrizes curriculares.

Por sua vez, nos últimos 20 anos, foi se acumulando uma série de conhecimentos sobre as formas de organização do cotidiano das unidades de Educação Infantil de modo a promover o desenvolvimento das crianças. Finalmente, a integração das creches e pré-escolas no sistema da educação formal impõe à Educação Infantil trabalhar com o conceito de currículo, articulando-o com o de projeto pedagógico.

O projeto pedagógico é o plano orientador das ações da instituição. Ele define as metas que se pretende para o desenvolvimento dos meninos e meninas que nela são educados e cuidados. É um instrumento político por ampliar possibilidades e garantir determinadas aprendizagens consideradas valiosas em certo momento histórico.

Para alcançar as metas propostas em seu projeto pedagógico, a instituição de Educação Infantil organiza seu currículo. Este, nas DCNEIs, é entendido como “as práticas educacionais organizadas em torno do conhecimento e em meio às relações sociais que se travam nos espaços institucionais, e que afetam a construção das identidades das crianças”. O currículo busca articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico da sociedade por meio de práticas planejadas e permanentemente avaliadas que estruturam o cotidiano das instituições.

Esta definição de currículo foge de versões já superadas de conceber listas de conteúdos obrigatórios, ou disciplinas estanques, de pensar que na Educação infantil não há necessidade de qualquer planejamento de atividades onde o que rege é um calendário voltado a comemorar determinadas datas sem avaliar o sentido das mesmas e o valor formativo dessas comemorações, e também da ideia de que o saber do senso comum é o que deve ser tratado com crianças pequenas.

A definição de currículo defendida nas Diretrizes põe o foco na ação mediadora da instituição de Educação infantil como articuladora das experiências e saberes das crianças e os conhecimentos que circulam na cultura mais ampla e que despertam o interesse das crianças. Tal definição inaugura então um importante período na área, que pode de modo inovador avaliar e aperfeiçoar as práticas vividas pelas crianças nas unidades de Educação Infantil.

O cotidiano dessas unidades, enquanto contextos de vivência, aprendizagem e desenvolvimento, requer a organização de diversos aspectos:

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os tempos de realização das atividades (ocasião, freqüência, duração), os espaços em que essas atividades transcorrem (o que inclui a estruturação dos espaços internos, externos, de modo a favorecer as interações infantis na exploração que fazem do mundo), os materiais disponíveis e, em especial, as maneiras do professor exercer seu papel (organizando o ambiente, ouvindo as crianças, respondendo-lhes de determinada maneira, oferecendo-lhes materiais, sugestões, apoio emocional, ou promovendo condições para a ocorrência de valiosas interações e brincadeiras criadas pelas crianças etc.). Tal organização necessita seguir alguns princípios e condições apresentados pelas Diretrizes.

4.5 A Visão de Criança e seu DesenvolvimentoUm conjunto de representações, valores e conceitos que expressam

alguns pontos de consenso na área em relação à criança, e o papel do professor face aos processos de desenvolvimento e aprendizagem das crianças está por trás das orientações defendidas pelas Diretrizes.

A criança, centro do planejamento curricular, é considerada um sujeito histórico e de direitos. Ela se desenvolve nas interações, relações e práticas cotidianas a ela disponibilizadas e por ela estabelecidas com adultos e crianças de diferentes idades nos grupos e contextos culturais nos quais se insere. A maneira como ela é alimentada, se dorme com barulho ou no silêncio, se outras crianças ou adultos brincam com ela ou se fica mais tempo quietinha, as entonações de voz e contatos corporais que ela reconhece nas pessoas que a tratam, o tipo de roupa que ela usa, os espaços mais abertos ou restritos em que costuma ficar, os objetos que manipula, o modo como conversam com ela, etc., são elementos da história de seu desenvolvimento em uma cultura.

A atividade da criança não se limita à passiva incorporação de elementos da cultura, mas ela afirma sua singularidade atribuindo sentidos a sua experiência através de diferentes linguagens, como meio para seu desenvolvimento em diversos aspectos (afetivos, cognitivos, motores e sociais). Assim a criança busca compreender o mundo e a si mesma, testando de alguma forma as significações que constrói, modificando-as continuamente em cada interação, seja com outro ser humano, seja com objetos. Em outras palavras, a criança desde pequena não só se apropria de uma cultura, mas o faz de um modo próprio, construindo cultura por sua vez.

Outro ponto importante em relação à aprendizagem infantil considera que as habilidades para a criança discriminar cores, memorizar poemas, representar uma paisagem através de um desenho, consolar um coleguinha que chora etc., não são fruto de maturação orgânica, mas são produzidas nas relações que as crianças estabelecem com o mundo material e social, mediadas por parceiros diversos, conforme buscam atender suas necessidades no processo de produção de objetos, ideias, valores, tecnologias.

Assim, as experiências vividas no espaço de Educação Infantil devem possibilitar o encontro de explicações pela criança sobre o que ocorre à sua volta e consigo mesma enquanto desenvolvem formas de sentir, pensar e solucionar problemas. Nesse processo é preciso considerar que as crianças necessitam envolver-se com diferentes linguagens e valorizar o lúdico, as brincadeiras, as culturas infantis. Não se trata assim de transmitir à criança uma cultura considerada pronta, mas de oferecer condições para ela se apropriar de determinadas aprendizagens que lhe promovem o desenvolvimento de formas de agir, sentir e pensar que são marcantes em um momento histórico.

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Quando o professor ajuda as crianças a compreender os saberes envolvidos na resolução de certas tarefas tais como empilhar blocos, narrar um acontecimento, recontar uma história, fazer um desenho, consolar outra criança que chora, etc, são criadas condições para desenvolvimento de habilidades cada vez mais complexas pelas crianças, que têm experiências de aprendizagem e desenvolvimento diferentes de crianças que têm menos oportunidades de interação e exploração.

Face essa visão de criança, o desafio que se coloca para a elaboração curricular e para sua efetivação cotidiana é transcender a prática pedagógica centrada no professor e trabalhar, sobretudo, a sensibilidade deste para uma aproximação real da criança, compreendendo-a do ponto de vista dela, e não da do adulto.

O impacto das práticas educacionais no desenvolvimento das crianças se faz por meio das relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças e que afetam a construção de suas identidades. Em função disso, a preocupação básica do professor deve ser garantir às crianças oportunidades de interação com companheiros de idade dado que elas aprendem coisas que lhes são muito significativas quando interagem com companheiros da infância e que são diversas das coisas que elas se apropriam no contato com os adultos ou com crianças já mais velhas. À medida que o grupo de crianças interage, são construídas as culturas infantis.

Além de reconhecer o valor das interações das crianças com outras crianças e com parceiros adultos, e a importância de se olhar para as práticas culturais em que as crianças se envolvem, as DCNEIs ainda destacam a brincadeira como atividade privilegiada na promoção do desenvolvimento nesta fase da vida humana.

Brincar dá à criança oportunidade para imitar o conhecido e construir o novo, conforme ela reconstrói o cenário necessário para que sua fantasia se aproxime ou se distancie da realidade vivida, assumindo personagens e transformando objetos pelo uso que deles faz.

Na brincadeira de faz-de-conta se produz um tipo de comunicação rica em matizes e que possibilita às crianças indagar sobre o mundo a sobre si mesma e por à prova seus conhecimentos no uso interativo de objetos e conversações. Através das brincadeiras e outras atividades cotidianas que ocorrem nas instituições de Educação infantil, a criança aprende a assumir papéis diferentes e, ao se colocar no lugar do outro, aprende a coordenar seu comportamento com os de seus parceiros e a desenvolver habilidades variadas, construindo sua Identidade.

O campo de aprendizagens que as crianças podem realizar na Educação Infantil é muito grande. As situações cotidianas criadas nas creches e pré-escolas podem ampliar as possibilidades das crianças viverem a infância e aprender a conviver, brincar e desenvolver projetos em grupo, expressar-se, comunicar-se, criar e reconhecer novas linguagens, ouvir e recontar histórias lidas, ter iniciativa para escolher uma atividade, buscar soluções para problemas e conflitos, ouvir poemas, conversar sobre o crescimento de algumas plantas que são por elas cuidadas, colecionar objetos, participar de brincadeiras de roda, brincar de faz-de-conta de casinha ou de ir à venda, calcular quantas balas há em uma vasilha para distribuí-las pelas crianças presentes, aprender a arremessar uma bola em um cesto, cuidar de sua higiene e de sua organização pessoal, cuidar dos colegas que necessitam ajuda e do ambiente, compreender suas emoções e sua forma de reagir às

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situações, construir as primeiras hipóteses, por exemplo, sobre o uso da linguagem escrita, e formular um sentido de si mesmo.

Finalmente, considerar as crianças concretas no planejamento curricular das instituições de Educação infantil significa também compreender seus grupos culturais, em particular suas famílias. Creches e pré-escolas, ao possibilitar às crianças uma vivência social diversa da experiência no grupo familiar, desempenham importante papel na formação da personalidade da criança. É bom lembrar, no entanto, que os contextos coletivos de educação para crianças pequenas diferem do ambiente familiar e requerem formas de organizá-lo diferentes do modelo de substituto materno, anteriormente usado para analisar o trabalho em creches e escolas maternais.

As instituições precisam conhecer a comunidade atendida, as culturas plurais que constituem o espaço da creche e da pré-escola, a riqueza das contribuições familiares e da comunidade, as crenças e manifestações dessa comunidade, enfim, os modos de vida das crianças vistas como seres concretos e situados em espaços geográficos e grupos culturais específicos. Esse princípio reforça a gestão democrática como elemento imprescindível, uma vez que é por meio dela que a instituição também se abre à comunidade, permite sua entrada, e possibilita sua participação na elaboração e acompanhamento da proposta curricular.

A gestão democrática da proposta curricular deve contar na sua elaboração, acompanhamento e avaliação tendo em vista o Projeto Político-pedagógico da unidade educacional, com a participação coletiva de professoras e professores, demais profissionais da instituição, famílias, comunidade e das crianças, sempre que possível e à sua maneira.

4.6 As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação InfantilPara orientar as unidades de Educação Infantil a planejar seu

cotidiano, as Diretrizes apontam um conjunto de princípios defendidos pelos diversos segmentos ouvidos no processo de sua elaboração e que devem orientar o trabalho nas instituições de Educação Infantil. Dada sua importância na consolidação de práticas pedagógicas que atendam aos objetivos gerais da área, eles serão aqui apresentados em detalhes. São eles:

Princípios éticos – valorização da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades.

Princípios políticos – garantia dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática.

Princípios estéticos – valorização da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de manifestações artísticas e culturais.

Para apontar formas de operacionalização destes princípios, o texto do Parecer das Diretrizes remete à adoção de uma série de medidas voltadas a garantir certos objetivos e certa metodologia no trabalho didático. Vejamos:

a) Cabe às instituições de Educação Infantil, de acordo com os princípios éticos:

- assegurar às crianças a manifestação de seus interesses, desejos e curiosidades ao participar das práticas educativas;

- valorizar suas produções, individuais e coletivas;- apoiar a conquista pelas crianças de autonomia na escolha de

brincadeiras e de atividades e para a realização de cuidados pessoais diários;- proporcionar às crianças oportunidades para:

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ampliar as possibilidades de aprendizado e de compreensão de mundo e de si próprio trazidas por diferentes tradições culturais,

construir atitudes de respeito e solidariedade, fortalecendo a auto-estima e os vínculos afetivos de todas as crianças, combatendo preconceitos que incidem sobre as diferentes formas dos seres humanos se constituírem enquanto pessoas.

aprender sobre o valor de cada pessoa e dos diferentes grupos culturais;

adquirir valores como os da inviolabilidade da vida humana, a liberdade e a integridade individuais, a igualdade de direitos de todas as pessoas, a igualdade entre homens e mulheres, assim como a solidariedade com grupos enfraquecidos e vulneráveis política e economicamente.

respeitar todas as formas de vida, o cuidado de seres vivos e a preservação dos recursos naturais.

b) Para a concretização dos princípios políticos apontados para a área, a instituição de Educação Infantil deve trilhar o caminho de educar para a cidadania, analisando suas

práticas educativas de modo a:promover a formação participativa e crítica das criançascriar contextos que permitam às crianças a expressão de

sentimentos, ideias, questionamentos, comprometidos com a busca do bem estar coletivo e individual, com a preocupação com o outro e com a coletividade.

criar condições para que a criança aprenda a opinar e a considerar os sentimentos e a opinião dos outros sobre um acontecimento, uma reação afetiva, uma ideia, um conflito.

garantir uma experiência bem sucedida de aprendizagem a todas as crianças, sem discriminação e lhes proporcionar oportunidades para o alcance de conhecimentos básicos que são considerados aquisições valiosas para elas.

c) O trabalho pedagógico na unidade de Educação Infantil, em relação aos princípios estéticos deve voltar-se para:

valorizar o ato criador e a construção pelas crianças de respostas singulares, garantindo-lhes a participação em diversificadas experiências;

organizar um cotidiano de situações agradáveis, estimulantes, que desafiem o que cada criança e seu grupo de crianças já sabem sem ameaçar sua auto-estima nem promover competitividade;

ampliar as possibilidades da criança de cuidar e ser cuidada, de se expressar, comunicar e criar, de organizar pensamentos e ideias, de conviver, brincar e trabalhar em grupo, de ter iniciativa e buscar soluções para os problemas e conflitos que se apresentam às mais diferentes idades;

possibilitar às crianças apropriar-se de diferentes linguagens e saberes que circulam em nossa sociedade, selecionados pelo valor formativo que possuem em relação aos objetivos definidos em seu projeto político pedagógico.

Os princípios expostos devem sustentar as práticas de Educação infantil e privilegiar aprendizagens como: ser solidário com todos os colegas, respeitá-los, não discriminá-los e saber por que isto é importante, aprender a fazer comentários positivos e produtivos ao trabalho dos colegas, a apreciar suas próprias produções e a expor a adultos e crianças o modo como as fez.

Na integração dessas metas, “a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo principal promover o

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desenvolvimento integral das crianças de zero a cinco anos de idade garantindo a cada uma delas o acesso a processos de construção de conhecimentos e a aprendizagem de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e interação com outras crianças” (Resolução CNE/CEB nº 05/09, art.8º).

Nessa direção as práticas cotidianas na Educação Infantil devem:considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões

expressivo-motora, afetiva, cognitiva, lingüística, ética, estética e sociocultural das crianças,

apontar as experiências de aprendizagem que se espera promover junto às crianças e

efetivar-se por meio de modalidades de experiências que assegurem as metas educacionais de seu projeto pedagógico.

4.7 Subsídios para a Elaboração do Currículo na Educação InfantilO trabalho pedagógico organizado em creche ou pré-escola em que

cuidar e educar são aspectos integrados, se faz pela criação de um ambiente em que a criança se sinta segura, satisfeita em suas necessidades, acolhida em sua maneira de ser, onde ela possa trabalhar de forma adequada suas emoções e lidar com seus medos, sua raiva, seus ciúmes, sua apatia ou hiperatividade, e possa construir hipóteses sobre o mundo e elaborar sua Identidade.

A meta do trabalho pedagógico nas instituições de Educação infantil é apoiar as crianças, desde cedo e ao longo de todas as suas experiências cotidianas, no estabelecimento de uma relação positiva com a instituição educacional, no fortalecimento de sua auto-estima, interesse e curiosidade pelo conhecimento do mundo, na familiaridade com diferentes linguagens, e na aceitação e acolhimento das diferenças entre as pessoas.

Para garantir às crianças seu direito de viver a infância e se desenvolver creches e pré-escolas devem organizar situações agradáveis, estimulantes, que ampliem as possibilidades infantis de cuidar de si e de outrem, de se expressar, comunicar e criar, de organizar pensamentos e ideias, de conviver, brincar e trabalhar em grupo, de ter iniciativa e buscar soluções para os problemas e conflitos que se apresentam às mais diferentes idades, desde muito cedo. O ambiente deve ser rico de experiências para exploração ativa e compartilhada por crianças e professores, que constroem significações nos diálogos que estabelecem.

Desses pontos decorrem algumas condições para a organização curricular das instituições de Educação Infantil. Elas devem, segundo as Diretrizes: o assegurar a educação de modo integral, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educativo; o combater o racismo e as discriminações de gênero, sócio-econômicas, étnico-raciais e religiosas o conhecer as culturas plurais que constituem o espaço da creche e da pré-escola, a riqueza das contribuições familiares e da comunidade, suas crenças e manifestações, e fortalecer formas de atendimento articuladas aos saberes e às especificidades étnicas, lingüísticas, culturais e religiosas de cada comunidade; o dar atenção cuidadosa e exigente às possíveis formas de violação da dignidade da criança; o cumprir o dever do Estado com a garantia de uma experiência educativa com qualidade a todas as crianças na Educação Infantil.

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Com base nessas condições, as DCNEIs apontam que as instituições de Educação Infantil, na organização de sua proposta pedagógica e curricular, necessitam:

garantir espaços e tempos para participação, o diálogo e a escuta cotidiana das famílias, o respeito e a valorização das diferentes formas em que elas se organizam.

trabalhar com os saberes que as crianças vão construindo ao mesmo tempo em que se garante a apropriação ou construção por elas de novos conhecimentos.

considerar a brincadeira como a atividade fundamental nessa fase do desenvolvimento e criar condições para que as crianças brinquem diariamente.

propiciar experiências promotoras de aprendizagem e conseqüente desenvolvimento das crianças em uma freqüência regular.

selecionar aprendizagens a serem promovidas com as crianças, não as restringindo a tópicos tradicionalmente valorizados pelos professores, mas ampliando-as na direção do aprendizado delas para assumir o cuidado pessoal, fazer amigos, e conhecer suas próprias preferências e características.

organizar os espaços, tempos, materiais e as interações nas atividades realizadas para que as crianças possam expressar sua imaginação nos gestos, no corpo, na oralidade e/ou na língua de sinais, no faz de conta, no desenho, na dança, e em suas primeiras tentativas de escrita.

considerar no planejamento do currículo as especificidades e os interesses singulares e coletivos dos bebês e das crianças das demais faixas etárias, vendo a criança em cada momento como uma pessoa inteira na qual os aspectos motores, afetivos, cognitivos e lingüísticos integram-se, embora em permanente mudança.

abolir todos os procedimentos que não reconhecem a atividade criadora e o protagonismo da criança pequena, e que promovam atividades mecânicas e não significativas para as crianças.

oferecer oportunidade para que a criança, no processo de elaborar sentidos pessoais, se aproprie de elementos significativos de sua cultura não como verdades absolutas, mas como elaborações dinâmicas e provisórias.

criar condições para que as crianças participem de diversas formas de agrupamento (grupos de mesma idade e grupos de diferentes idades), formados com base em critérios estritamente pedagógicos, respeitando o desenvolvimento físico, social e linguístico de cada criança.

possibilitar oportunidades para a criança fazer deslocamentos e movimentos amplos nos espaços internos e externos às salas de referência das turmas e à instituição, e para envolver-se em exploração e brincadeiras.

oferecer objetos e materiais diversificados às crianças, que contemplem as particularidades dos bebês e das crianças maiores, as condições específicas das crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, e as diversidades sociais, culturais, étnico-raciais e lingüísticas das crianças, famílias e comunidade regional.

organizar oportunidades para as crianças brincarem em pátios, quintais, praças, bosques, jardins, praias, e viverem experiências de semear, plantar e colher os frutos da terra, permitindo-lhes construir uma relação de identidade, reverência e respeito para com a natureza.

possibilitar o acesso das crianças a espaços culturais diversificados e a práticas culturais da comunidade, tais como apresentações musicais,

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teatrais, fotográficas e plásticas, e visitas a bibliotecas, brinquedotecas, museus, monumentos, equipamentos públicos, parques, jardins.

Um tópico a ser destacado diz respeito às experiências de aprendizagem que podem ser promovidas. Elas são descritas no artigo 9º da Resolução CNE/CEB nº5/09 enquanto experiências que podem ser selecionadas para compor a proposta curricular das unidades de Educação infantil.

As experiências apontadas visam promover oportunidades para cada criança conhecer o mundo e a si mesma, aprender a participar de atividades individuais e coletivas, a cuidar de si e a organizar-se. Visam introduzir as crianças em práticas de criação e comunicação por meio de diferentes formas de expressão, tais como imagens, canções e música, teatro, dança e movimento, assim como a língua escrita e falada, sem esquecer da língua de sinais, que pode ser aprendida por todas as crianças e não apenas pelas crianças surdas. Conforme as crianças se apropriam das diferentes linguagens, que se interrelacionam, ela amplia seus conhecimentos sobre o mundo e registram suas descobertas pelo desenho, modelagem, ou mesmo por formas bem iniciais de registro escrito.

Também a satisfação do desejo infantil de explorar e conhecer o mundo da natureza, da sociedade e da matemática, e de apropriar-se de formas elementares de lidar com quantidades e com medidas deve ser atendida de modo adequado às formas das crianças elaborarem conhecimento de modo ativo, criativo.

Todas essas preocupações, além de marcar significativamente todas as instituições de Educação Infantil do país, devem ainda estar presentes em três situações que são apontadas nas DCNEIs:

1) O compromisso com uma Educação infantil de qualidade para todas as crianças não pode deixar de ressaltar o trabalho pedagógico com as crianças com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Em relação a elas o planejamento das situações de vivência e aprendizagem na Educação Infantil deve: o garantir-lhes o direito à liberdade e à participação enquanto sujeitos ativos, o ampliar suas possibilidades de ação nas brincadeiras e nas interações com as outras crianças, momentos em que exercitam sua capacidade de intervir na realidade e participam das atividades curriculares com os colegas, o garantir-lhes a acessibilidade de espaços, materiais, objetos e brinquedos, procedimentos e formas de comunicação a suas especificidades e singularidades, o estruturar os ambientes de aprendizagem de modo a proporcionar-lhes condições para participar de todas as propostas com as demais crianças, o garantir-lhes condições para interagir com os companheiros e com o professor; o preparar cuidadosamente atividades que tenham uma função social imediata e clara para elas, o organizar atividades diversificadas em seqüências que lhes possibilitem a retomada de passos já dados; o preparar o espaço físico de modo que ele seja funcional e o cuidar para que elas possam ser ajudadas da forma mais conveniente no aprendizado de cuidar de si, o que inclui a aquisição de autonomia e o aprendizado de formas de assegurar sua segurança pessoal; o estabelecer rotinas diárias e regras claras para melhor orientá-las. o estimular a participação delas em atividades que envolvam diferentes linguagens e habilidades, como dança, canto, trabalhos manuais, desenho etc., e promover-lhes variadas formas de contato com o meio externo; o dar-lhes oportunidade de ter condições instrucionais diversificadas: trabalho em grupo, aprendizado cooperativo, uso de tecnologias, diferentes

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metodologias e diferentes estilos de aprendizagem; o oferecer, sempre que necessário, materiais adaptados para elas terem um melhor desempenho; o garantir o tempo que elas necessitam para realizar cada atividade, recorrendo a tarefas concretas e funcionais por meio de metodologias de ensino mais flexíveis e individualizadas, embora não especialmente diferentes das que são utilizadas com as outras crianças; o realizar uma avaliação processual que acompanhe suas aprendizagens com base em suas capacidades e habilidades, e não em suas limitações, tal como deve ocorrer para qualquer criança, o estabelecer contato freqüente com suas famílias para melhor coordenação de condutas, troca de experiências e de informações.

O importante é reconhecer que a Educação Inclusiva só se efetiva se os ambientes de aprendizagem forem sensíveis às questões individuais e grupais, e onde as diferentes crianças possam ser atendidas em suas necessidades específicas de aprendizagem, sejam elas transitórias ou não, por meio de ações adequadas a cada situação.

2) A Educação infantil deve atender a demanda das populações do campo, dos povos da floresta e dos rios, indígenas, quilombolas por uma educação e cuidado de qualidade para seus filhos. O trabalho pedagógico de creches e pré-escolas instaladas nas áreas onde estas populações vivem precisa reconhecer a constituição plural das crianças brasileiras no que se refere à identidade cultural e regional e à filiação socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, lingüística e religiosa. Para tanto ele deve: o estabelecer uma relação orgânica com a cultura, as tradições, os saberes e as identidades das diversas populações, o adotar estratégias que garantam o atendimento às especificidades das comunidades do campo, quilombolas, ribeirinhas e outras tais como a flexibilização e adequação no calendário, nos agrupamentos etários e na organização de tempos, atividades e ambientes em respeito às diferenças quanto à atividade econômica e à política de igualdade, e sem prejuízo da qualidade do atendimento, com oferta de materiais didáticos, brinquedos e outros equipamentos em conformidade com a realidade das populações atendidas, evidenciando ainda o papel dessas populações na produção de conhecimento sobre o mundo.

Esta demanda por ampliação da Educação Infantil para além dos territórios urbanos é nova e se integra à preocupação em garantir às populações do campo e indígena, e aos afrodescendentes, uma educação que considere os saberes de cada comunidade, ou grupo cultural, em produtiva interação com os saberes que circulam nos centros urbanos, igualmente marcados por uma ampla diversidade cultural.

3) Quando oferecidas, aceitas e requisitadas pelas comunidades indígenas, as propostas curriculares na Educação Infantil devem: o proporcionar às crianças indígenas uma relação viva com os conhecimentos, crenças, valores, concepções de mundo e as memórias de seu povo; o reafirmar a identidade étnica e a língua como elementos de sua constituição; o dar continuidade à educação tradicional oferecida na família e articular-se às práticas sócio-culturais de educação e cuidado coletivos da comunidade; o adequar calendário, agrupamentos etários e organização de tempos, atividades e ambientes

4.8 A Avaliação e a Continuidade dos Processos de Aprendizagem das Crianças

Na Educação Infantil a avaliação da aprendizagem é instrumento de reflexão sobre a prática pedagógica na busca pelo professor de melhores

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caminhos para orientar as crianças, conforme ele pesquisa que elementos podem estar contribuindo, ou dificultando, as possibilidades de expressão da criança, sua aprendizagem e desenvolvimento.

As DCNEIs consideram que a avaliação deve ser processual e incidir sobre todo o contexto de aprendizagem: as atividades propostas e o modo como foram realizadas, as instruções e os apoios oferecidos às crianças individualmente e ao coletivo de crianças, a forma como o professor respondeu às manifestações e às interações das crianças, os agrupamentos que as crianças formaram, o material oferecido e o espaço e o tempo garantidos para a realização das atividades.

Conhecer as preferências das crianças, a forma delas participarem nas atividades, seus parceiros prediletos para a realização de diferentes tipos de tarefas, suas narrativas, e outros pontos pode ajudar o professor a reorganizar as atividades de modo mais adequado ao alcance dos propósitos infantis e das aprendizagens coletivamente trabalhadas. Ele poderá então fortalecer, ou modificar, a situação, de modo a efetivar o projeto político pedagógico de cada instituição.

A avaliação deve se basear na observação sistemática dos comportamentos de cada criança, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano, com utilização de múltiplos registros realizados por adultos e crianças (relatórios, fotografias, desenhos, álbuns etc.), feita ao longo do período em muitos e diversificados momentos.

A documentação dessas observações e outros dados sobre a aprendizagem da criança devem acompanhá-la ao longo de sua trajetória da Educação Infantil e ser entregue por ocasião de sua matrícula no Ensino Fundamental, para garantir uma atenção continuada ao processo de aprendizagem e desenvolvimento da criança e compromissada em apontar possibilidades de avanços.

Para garantir a continuidade dos processos de aprendizagem das crianças, devem ser criadas estratégias adequadas aos diferentes momentos de transição vividos pela criança quando de seu ingresso na instituição de Educação infantil, considerando a necessária adaptação das crianças e seus responsáveis às práticas e relacionamentos que têm lugar naquele espaço, e visar o conhecimento de cada criança e de sua família pela equipe da Instituição, de suas mudanças de turmas no interior da instituição, e sua transição da creche e a da pré-escola, e desta para o Ensino Fundamental.

4.9. E Como Começar?O dinamismo hoje presente na área de Educação infantil, ao mesmo

tempo em que tem criado esperanças, invoca a necessidade de ampliação dos processos de formação continuada para qualificar as práticas pedagógicas existentes na direção proposta. Muitas instituições encontram-se presas a modelos que já foram avaliados e julgados inadequados como instrumentos de educar e cuidar e promover o desenvolvimento das crianças. Em parte a presença desses modelos é devida à longa tradição assistencialista presente no processo de constituição da área de Educação Infantil, em particular em relação à creche, o que prejudicou a elaboração modelos pedagógicos mais afinados com as formas de promoção do desenvolvimento infantil.

Outro fator presente quando se pensa na necessidade de se ter outra forma de trabalho junto às crianças, é a ausência de uma política de formação específica para os profissionais da Educação Infantil nos cursos de Pedagogia

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com uma explicitação clara de suas atribuições junto às crianças, particularmente em relação aquelas com idade entre zero a três anos.

Ao final desta apresentação das diretrizes, nossa aposta é pelo grande e estimulante envolvimento dos educadores que atuam na área na reflexão sobre as práticas cotidianas vividas pelas crianças nas instituições de Educação infantil e pela busca de formas de trabalho pedagógico que possam caminhar na direção pretendida. Cabe aos sistemas de ensino e às instituições formadoras de professores dar-lhes as melhores condições para essa atuação sensível às novas exigências da área.

Se hoje algumas instituições já se encontram bem avançadas na concretização de suas propostas de modo compatível com as normativas trazidas pelas novas Diretrizes, outras instituições podem desde já se envolver em amplo processo de renovação de práticas, de revolução de representações cristalizadas sobre a criança, as expectativas acerca do que ela pode aprender. Afinal, não apenas as crianças são sujeitos do processo de aprendizagem, mas também seus professores se incluem no fascinante processo de ser um eterno aprendiz, um construtor de sua profissionalidade.

TEXTO COMPLEMENTAR

SÓ O CURRÍCULO, NADA MAIS QUE O CURRÍCULO!O debate incessante e atualmente muito acalorado sobre os critérios

de sucesso testemunha a seu modo a dificuldade das democracias quanto:• à adoção de textos precisos; não por ausência de rigor, mas pelo

cálculo que textos abertos a interpretações diversas podem ser mais amplamente objeto de um relativo consenso;

• ao limite da contestação pública e da crítica dissimulada das regras em vigor, mesmo sendo elas instituídas por procedimentos legítimos.

O projeto do sistema escolar encarna-se no seu currículo, conjunto de objetivos e de conteúdos de formação. Apesar das controvérsias a respeito, nunca extintas, o currículo está inscrito em textos que têm força de lei e não podem ser inconseqüentes, mesmo se subsiste certa margem de interpretação. Parece-me de bom senso tomar o currículo como a referência última, à qual se reportam as formas e as normas de excelência escolar. Isso é mais ou menos óbvio.

Na realidade, entre o enunciado do currículo formal e cada julgamento de excelência referente a um aluno particular, as etapas intermediárias são numerosas.

Cada uma se presta a variações possíveis, com freqüência pouco visíveis e difíceis de estabelecer.

1. A definição das normas e das formas de excelência não aparece sempre explicitamente no currículo. É preciso então “deduzi-la” dos objetivos e dos programas.

2. Há uma certa arbitrariedade na tradução das formas e das normas de excelência em provas, questões, problemas e tarefas destinadas a manifestar “objetivamente” os conhecimentos, as capacidades ou as competências dos alunos.

3. A distinção dos diversos níveis de excelência e sua codificação em índices ordinais ou métricos (notas, conceitos, porcentagens de aquisição) abrem outra porta à arbitrariedade.

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4. A confecção de tabelas e a determinação do limiar que separa os alunos com desempenho satisfatório daqueles com desempenho insatisfatório são, por sua vez, o resultado de decisões nunca inteiramente ditadas pelos textos, mas com freqüência tomadas em função da curva de desempenho efetivo dos alunos.

5. Modula-se o sucesso e o fracasso ponderando e combinando de certa maneira os resultados obtidos em diversas provas múltiplas, e, mais ainda, ponderando diversas formas de excelência, para elaborar sínteses.

6. Alguns sistemas adotam procedimentos como recursos ou modos informais de negociação, que fazem do julgamento final um produto dependente de transações com os alunos e as famílias, enquanto em outros sistemas predomina a lógica da medida não negociável.

7. Em muitos sistemas educacionais são introduzidos procedimentos de “moderação” das avaliações feitas por certos professores e certos estabelecimentos muito severos ou muito complacentes. Muda-se a imagem do sucesso segundo os procedimentos de moderação, os pesos respectivos da avaliação feita em classe e os resultados das provas padronizadas.

8. Mais recentemente, tem-se procurado harmonizar as avaliações correntes e os resultados das avaliações de sistema, para reduzir a eventual defasagem entre a eficácia da escola apreendida no âmbito cotidiano e as apreciações externas.

Nenhuma dessas escolhas é feita ao acaso, mas os desafios são muito complexos e diversos de modo que não convém perder o currículo de vista ou inventar normas que estão mais voltadas para a tradição escolar, para as obrigações de funcionamento, para as escolhas metodológicas ou as considerações político-estratégicas, que para uma leitura rigorosa dos programas.

Ao contrário, é mais importante que:1. o currículo tenha precedência e se fundamente naquilo que pareça

essencial para ensinar e aprender, em vez de fundamentar-se na obsessão de avaliar de modo preciso ou na preocupação de fazer boa figura diante de uma concorrência que passa por tantas mediações;

2. o sucesso escolar se fundamente numa avaliação eqüitativa do conjunto das dimensões do currículo. Só o currículo e nada mais que o currículo. As dificuldades metodológicas e as preocupações táticas não justificam nenhuma renúncia. Os riscos, já presentes no cotidiano, de reduzir o currículo a um núcleo cognitivo tradicional, seriam fortemente acentuados pelas provas que privilegiam as aquisições mais facilmente mensuráveis e que não levam em consideração competências, atitudes, relação com o saber, desenvolvimento social ou dimensão reflexiva.

PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DA AVALIAÇÃO EDUCACIONAL

Na maioria dos textos educacionais estão presentes ainda hoje as denúncias dos alarmantes índices de evasão e repetência tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio da escola pública.

As demíncias descritivas e principalmente quantificadas são importantes e necessária, pois fornecem indicadores e parâmetros para que se possa aquilatar a extensão dos desníveis e dos desequilíbrios que se instalarem no ensino brasileiro.

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Assim quando sabemos que 50% das crianças da escola pública repetem a 2ª série do Ensino Fundamental, enquanto essa porcentagem, entre aquelas que freqüentam a rede de ensino privado, não chega a 5%, estamos comparando, avaliando e nos conscientizando acerca da magnitude e complexidade do problema.

Esses números, essas denúncias são por demais conhecidos assim como são conhecidas as providências (bem ou malsucedidas) que ao longo dos anos têm sido tomadas para minimizar os inadmissíveis indicadores do fracasso escolar.

Uma dessas providências está diretamente relacionada ao estudo da prática pedagógica do professor e, especificamente, à análise de seus critérios e procedimentos de avaliação, uma vez que, em última instância, são esses critérios e procedimentos que vão decidir o destino do aluno, retendo-o nas séries iniciais, aprovando-o ou mesmo empurrando-o para as "classes especiais". É, portanto, fácil compreender a existência de inúmeros trabalhos, sobre avaliação educacional.

Todo esse empenho já vem de longa data, embora hoje esteja se acirrando e quase virando um modismo acrítico, provavelmente desencadeado pelas recentes medidas do Ministério da Educação, que, para cumprir acordos internacionais, tem sistematicamente encomendado a pesquisadores e a instituições projetos e programas de avaliação.

Sem uma revisão crítica dos diferentes modelos de avaliação educacional especialmente daqueles que, suplantando os limites circunscritos à avaliação do rendimento escolar ou à avaliação de "custo beneficio" (no caso de formação profissional), passaram a exigir a elaboração de paradigmas mais abrangentes, a execução de tais programas é inócua para o desenvolvimento da área e, o que é pior, insuficiente para desvendar as questões nodais que emperram o sistema educacional brasileiro.

É evidente que não basta avaliar para melhorar. No entanto, existe uma trajetória na história da avaliação educacional, no Brasil, que precisa ser recuperada, principalmente no que diz respeito à compreensão dos pressupostos teórico metodológicos que fundamentam os diferentes modelas ou paradigmas de avaliação. Ou seja, é preciso saber identificar em que matriz epistemológica foi inspirado esse ou aquele modelo, para que se complete o real entendimento acerca de cada um deles.

O exame dessa problemática parece fundamental, uma vez que, qualquer que seja o modelo ou processo de avaliação por ser adotado, ele concentra uma série de decisões que se expressam na ação prática do professor quando avalia seus alunos, toma novas decisões a partir dos resultados da avaliação, mantém ou reformula seus planos.

Ocorre que todo esse conjunto de decisões não é neutro nem arbitrário. Ao contrário, traz no seu bojo uma maneira bem específica de conceber o mundo, o indivíduo e a sociedade, a qual condiciona a tomada de decisões no plano das políticas educacionais e orienta e norteia a prática pedagógica no âmbito da escola e da sala de aula. Daí a necessidade de aprofundar as análises dos pressupostos subjacentes às diferentes modalidades de ação educativa, uma vez que essas análises podem contribuir para uma opção mais consciente no que diz respeito à organização da estrutura curricular, à sistemática de avaliação por ser adotada, e, principalmente, funcionam como parâmetros para julgamento da relevância social dos conteúdos e para a obtenção de um conhecimento mais realista acerca do aluno.

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Na tentativa de poder também contribuir para o esclarecimento dessa temática, vou aproveitar algumas das reflexões que já tenho feito a respeito da pesquisa educacional e da psicologia da educação, para ser coerente com a própria concepção de epistemologia que incorpora a característica de matriz geradora e explicativa dos diferentes comportamentos humanos, sejam eles voltados para ensinar, pesquisar, medir, avaliar ou julgar.

1.1. Sala de Aula e Avaliação: Caminhos e DesafiosA questão da avaliação é amplamente discutida e abordada em todos

os segmentos externos e internos da escola. Nos últimos anos, as escolas buscam constantemente redefinir e ressignificar o seu papel e a sua função social. Elas estão elaborando o seu projeto educativo para nortear as práticas educativas e, conseqüentemente, a avaliação.

A escola que hoje queremos, dentro da pedagogia preocupada com a transformação, e não mais com a conservação, repensa o processo da sala de aula. A sala de aula existe em função de seus alunos, e cabe a nós, educadores, refletir se realmente respeitamos os alunos em relação ao acesso ao conhecimento e se consideramos quem são eles, de onde vieram, em que contexto vivem, etc...

Diante disso, tentaremos trazer para a sala de aula um novo sentido para a aprendizagem e para a avaliação. Abordaremos essas questões a partir de uma escola em que o aluno tenha acesso aos bens culturais, ao conhecimento produzido historicamente, e possa adquirir habilidades para transformar esses conteúdos no contexto social. Assim, a prática pedagógica e a prática de avaliação deverão superar o autoritarismo, o conteudismo, a punição, estabelecendo uma nova perspectiva para o processo de aprendizagem e de avaliação educacional, marcado pela autonomia do educando e pela participação do aluno na sociedade de forma democrática. Partindo desses pressupostos, para que o aluno construa o seu conhecimento, a sua autonomia, é necessário que ele esteja inserido em um ambiente em que haja intervenções pedagógicas, em que o autoritarismo do adulto seja minimizado e onde os indivíduos que se relacionam considerem-se iguais, respeitando-se reciprocamente. Importante ainda dizer que o aluno deve ter oportunidade de participar da elaboração das regras, dos limites, dos critérios de avaliação, das tomadas de decisão, além de assumir pequenas responsabilidades.

Na perspectiva dessa escola cidadã, teremos, na sala de aula, um professor mediador entre o sujeito e o objeto do conhecimento, trabalhando de forma que, a partir dos conteúdos, dos conhecimentos apropriados pelos alunos, eles possam compreender a realidade, atuar na sociedade em que vivem e transformá-la. Assim, o conhecimento para o professor deixa de ter um caráter estático e passa a ter um caráter significativo para o aluno.

Por conta de uma série de reformas e mudanças que ocorreram na educação nos últimos anos, os sistemas de ensino têm produzido maior flexibilização e autonomia nas escolas, até mesmo em relação ao desempenho dos alunos.

Cabe à escola definir o seu projeto educativo, considerando todos os aspectos, sem criar um descompasso entre o que se pensa e diz e o que se tem feito, ou seja, o seu projeto deve ser coerente, claro, participativo, e estar em sintonia com os grupos envolvidos com a escola, ou seja, com a comunidade, alunos, professores...

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É preciso também pensar sobre os professores, pois, para superar os limites dessa escola que não queremos mais, será necessário investir continuamente na sua formação, retomando e repensando o seu papel diante dessa escola cidadã. Nela, não caberá um professor conteudista, tecnicista, preocupado somente com provas e notas, mas, sim, um professor mais humano, ético, estético, justo, solidário, que se preocupe com a aprendizagem. É preciso um profissional com competência, tanto política quanto técnica, que conheça e domine os conteúdos escolares e os atitudinais, saiba trabalhar em sala de aula utilizando uma metodologia dialética, tenha um compromisso político, social, seja pesquisador, um eterno aprendiz e estudioso, tenha uma prática coerente com a teoria, seja consciente do seu papel como cidadão, etc...

Diante dessas exigências quanto à escola e ao professor, daremos prosseguimento às reflexões iniciais, em relação às práticas avaliativas.

1.2. O que é Avaliação?Em encontros com professores e até relatos de especialistas,

constatamos uma contradição entre as intenções e o processo efetivamente aplicado, na busca de uma definição ou de um posicionamento acerca da avaliação. Certamente tal contradição nasce da autocensura gerada pelo descompasso entre uma imagem idealizada da avaliação, encontrada em teorias atuais, progressistas, e a realidade cotidiana das escolas, condicionadas, estruturalmente, pelo sistema de promoção e seriação e, conjunturalmente, pelas péssimas condições concretas de trabalho e pelas determinações de superiores.

Talvez por esse motivo, mesmo que aparente, surjam tantas concepções de avaliação, sempre vagamente apresentadas nas formulações verbais de professores, pais e alunos, que identificam a avaliação como tudo o que ocorre nas práticas avaliativas, como prova, nota, boletim, recuperação, aprovação, etc.

Entre estudiosos do tema, percebemos uma interminável discussão, seja pelo monopólio da verdade, seja pela tentativa da precisão do conceito, o que fez surgir conseqüentemente uma variação conceitual muito grande.

Em cada conceito de avaliação subjaz uma determinada concepção de educação. Na questão específica da avaliação da aprendizagem, a escola encontra-se diante de duas correntes resultantes de concepções antagônicas, pautadas, é claro, nos modelos de sociedade: a liberal conservadora e a social democrática.

Assim, a pedagogia, de acordo com os modelos sociais, se apresenta como conservadora ou transformadora. A pedagogia conservadora, da escola tradicional, prioriza a avaliação dos conteúdos livrescos; a escola novista, as relações afetivas, e a tecnicista, os meios técnicos, o fazer. A pedagogia transformadora apresenta nas suas práticas pedagógicas a pedagogia libertadora, que apresenta subjacente à sua teoria a formação da consciência política, de uma avaliação antiautoritária. Já a pedagogia libertária traz a autogestão, e a pedagogia histórico-crítica, a compreensão da realidade, dando prioridade à educação como instrumento de transformação, de formação para a cidadania.

Podemos acrescentar que a pedagogia conservadora destaca a importância das medidas de dimensões ou aspectos quantificáveis, considerando a importância da periodicidade do processo de avaliação e do registro de seus resultados, especialmente nos momentos de terminalidade,

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como de uma unidade, série, curso, etc. A avaliação tem uma função, então, de classificação, sempre se referenciando em padrões socialmente aceitáveis, destacando a avaliação como um julgamento de valor, com base em padrões consagrados. Além disso, a distinção que estabelecem entre padrões sociais, culturais, científicos denota nessa escola, nessa pedagogia, uma postura positivista, na medida em que não incorporam a idéia de que os padrões científicos são também socialmente elaborados.

Para a pedagogia transformadora, na avaliação da aprendizagem predominam os aspectos qualitativos sobre os quantitativos. Nesta concepção, a avaliação deve ter uma finalidade diagnóstica, voltada para o levantamento das dificuldades dos alunos, com vistas à correção de rumos, à reformulação de procedimentos didáticos ou até mesmo dos objetivos. A avaliação é um processo contínuo e paralelo ao processo de ensino-aprendizagem. Ela deve ser permanente, permitindo-se a periodicidade apenas no registro das dificuldades e avanços do aluno relativamente às suas próprias situações pregressas.

Nesta pedagogia, considera-se como parâmetros válidos e legítimos para servirem de referência apenas o ritmo, as características e aspirações do próprio alvo da avaliação (seja ele o aluno, a instituição, o professor, ou qualquer outro).

A partir desta segunda concepção de avaliação, acredito que na escola cidadã, na escola democrática, devemos caminhar para uma educação em que o conhecimento não tenha uma estrutura gnoseológica estática, mas seja um processo de descobertas mediatizado pelo diálogo entre educador e educando. Nesta escola, a preocupação, na sala de aula, deverá ser com uma educação que torne os alunos pessoas habilitadas para agir na sociedade e entendê-la, sem qualquer tipo de manipulação obscura, como, por exemplo, um sistema avaliativo punitivo. Devemos valorizar na sala de aula o processo de aprender a aprender, a formação das capacidades, o desenvolvimento da criatividade pessoal e do reconhecimento do outro como sujeito, a criação de atividades que privilegiem o conhecimento e, por fim, a possibilidade de verificar o desempenho dos alunos nas diversas práticas escolares, para encadear sempre a correção de rumos e o replanejar.

Ressaltamos ainda que, nesse processo de avaliação, o professor deve conhecer os seus alunos, seus avanços e dificuldades, e também que o próprio aluno deve aprender a se avaliar e descobrir o que é preciso mudar para garantir melhor desempenho. É importante que os alunos reflitam sobre seus relacionamentos, de forma a alterar as regras quando necessário, para que todos alcancem os objetivos estabelecidos coletivamente.

O professor, para acompanhar o desempenho dos alunos, poderá registrar cotidianamente as considerações sobre o grupo todo e sobre cada um dos alunos, a partir das atividades desenvolvidas durante todo o trabalho pedagógico. Tomando como parâmetros os critérios formais da aprendizagem, deve observar: o nível de aprendizagem, relacionado ao conhecimento; o interesse e a iniciativa do aluno para a leitura, o estudo, a pesquisa; a qualidade do conteúdo elaborado e da linguagem utilizada; a sistematização e ordenação das partes, relacionadas à produção individual; a qualidade da elaboração em conjunto com outros alunos; a capacidade crítica, indicando a criatividade; a capacidade de reconstrução própria e de relacionar os conteúdos das diversas áreas do conhecimento. As considerações e opiniões dos próprios alunos deverão também ser anotadas e analisadas pelo professor.

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Nesse processo de avaliação, não podemos esquecer que o professor também deve se avaliar, refletindo sobre o seu próprio trabalho, verificando seus procedimentos e, quando necessário, reestruturando sua prática.

Diante de todas as considerações apresentadas acerca do papel e da importância da avaliação no processo educativo, destacamos que a avaliação deve ser conscientemente vinculada à concepção de mundo, de sociedade e de ensino que queremos, permeando toda a prática pedagógica e as decisões metodológicas. Sendo assim, a avaliação não deve representar o fim do processo de aprendizagem, nem tampouco a escolha inconsciente de instrumentos avaliativos, mas, sim, a escolha de um caminho a percorrer na busca de uma escola necessária.

1.3. Origem da AvaliaçãoAvaliar vem do latim a + valere, que significa atribuir valor e mérito ao

objeto em estudo. Portanto, avaliar é atribuir um juízo de valor sobre a propriedade de um processo para a aferição da qualidade do seu resultado, porém, a compreensão do processo de avaliação do processo ensino/aprendizagem tem sido pautada pela lógica da mensuração, isto é, associa-se o ato de avaliar ao de “medir” os conhecimentos adquiridos pelos alunos.

A avaliação tem sido estudada desde o início do século XX, porém, segundo Caro apud Goldberg & Souza (1982), desde 1897 existem registros dos relatos de J. M. Rice sobre uma pesquisa avaliativa utilizada para estabelecer a relação entre o tempo de treinamento e o rendimento em ortografia, revelando que uma grande ênfase em exercícios não levava necessariamente a um melhor rendimento.

As duas primeiras décadas deste século, de acordo com Borba & Ferri (1997), foram marcadas pelo desenvolvimento de testes padronizados para medir as habilidades e aptidões dos alunos e influenciados, principalmente nos Estados Unidos, pelos estudos de Robert Thorndike.

Nessa época, as pesquisas avaliativas voltavam-se particularmente para a mensuração de mudanças do comportamento humano. Caro apud Goldberg & Souza (1982) aponta várias destas pesquisas realizadas nos anos 20 para medir efeitos de programas de diversas áreas sobre o comportamento das pessoas.

Eram realizados experimentos relativos à produtividade e à moral dos operários, à eficácia de programas de saúde pública, à influência de programas experimentais universitários sobre a personalidade e atitudes dos alunos, etc.

A avaliação da aprendizagem tem seus princípios e características no campo da Psicologia, sendo que as duas primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo desenvolvimento de testes padronizados para medir as habilidades e aptidões dos alunos.

A avaliação é uma operação descritiva e informativa nos meios que emprega, formativa na intenção que lhe preside e independente face à classificação. De âmbito mais vasto e conteúdo mais rico, a avaliação constitui uma operação indispensável em qualquer sistema escolar.

Havendo sempre, no processo de ensino/aprendizagem, um caminho a seguir entre um ponto de partida e um ponto de chegada, naturalmente que é necessário verificar se o trajeto está a decorrer em direção à meta, se alguns pararam por não saber o caminho ou por terem enveredado por um desvio errado.

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É essa informação, sobre o progresso de grupos e de cada um dos seus membros, que a avaliação tenta recolher e que é necessária a professores e alunos.

A avaliação descreve que conhecimentos, atitudes ou aptidões que os alunos adquiriram, ou seja, que objetivos do ensino já atingiram num determinado ponto de percurso e que dificuldades estão a revelar relativamente a outros.

Esta informação é necessária ao professor para procurar meios e estratégias que possam ajudar os alunos a resolver essas dificuldades e é necessária aos alunos para se aperceberem delas (não podem os alunos identificar claramente as suas próprias dificuldades num campo que desconhecem) e tentarem ultrapassá-las com a ajuda do professor e com o próprio esforço. Por isso, a avaliação tem uma intenção formativa.

A avaliação proporciona também o apoio a um processo a decorrer, contribuindo para a obtenção de produtos ou resultados de aprendizagem.

As avaliações a que o professor procede enquadram-se em três grandes tipos: avaliação diagnostica, formativa e somativa.

1.4. Evolução da AvaliaçãoA partir do início do século XX, a avaliação vem atravessando pelo

menos quatro gerações, conforme Guba e Lincoln, apud Firme (1994). São elas: mensuração, descritiva, julgamento e negociação.

1.4.1. Mensuração Não distinguia avaliação e medida. Nessa fase, era preocupação dos

estudiosos a elaboração de instrumentos ou testes para verificação do rendimento escolar. O papel do avaliador era, então, eminentemente técnico e, neste sentido, testes e exames eram indispensáveis na classificação de alunos para se determinar seu progresso.

1.4.2. DescritivaEssa geração surgiu em busca de melhor entendimento do objetivo da

avaliação. Conforme os estudiosos, a geração anterior só oferecia informações sobre o aluno.

Precisavam ser obtidos dados em função dos objetivos por parte dos alunos envolvidos nos programas escolares, sendo necessário descrever o que seria sucesso ou dificuldade com relação aos objetivos estabelecidos.

Neste sentido o avaliador estava muito mais concentrado em descrever padrões e critérios. Foi nessa fase que surgiu o termo “avaliação educacional”.

1.4.3. JulgamentoA terceira geração questionava os testes padronizados e o

reducionismo da noção simplista de avaliação como sinônimo de medida; tinha como preocupação maior o julgamento.

Neste sentido, o avaliador assumiria o papel de juiz, incorporando, contudo, o que se havia preservado de fundamental das gerações anteriores, em termos de mensuração e descrição.

Assim, o julgamento passou a ser elemento crucial do processo avaliativo, pois não só importava medir e descrever, era preciso julgar sobre o conjunto de todas as dimensões do objeto, inclusive sobre os próprios objetivos.

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1.4.4. NegociaçãoNesta geração, a avaliação é um processo interativo, negociado, que

se fundamenta num paradigma construtivista. Para Guba e Lincoln apud Firme (1994) é uma forma responsiva de enfocar e um modo construtivista de fazer.

A avaliação é responsiva porque, diferentemente das alternativas anteriores que partem inicialmente de variáveis, objetivos, tipos de decisão e outros, ela se situa e desenvolve a partir de preocupações, proposições ou controvérsias em relação ao objetivo da avaliação, seja ele um programa, projeto, curso ou outro foco de atenção. Ela é construtivista em substituição ao modelo científico, que tem caracterizado, de um modo geral, as avaliações mais prestigiadas neste século.

Neste sentido, Souza (1993) diz que a finalidade da avaliação, de acordo com a quarta geração, é fornecer, sobre o processo pedagógico, informações que permitam aos agentes escolares decidir sobre as intervenções e redirecionamentos que se fizerem necessários em face do projeto educativo, definido coletivamente, e comprometido com a garantia da aprendizagem do aluno. Converte-se, então, em um instrumento referencial e de apoio às definições de natureza pedagógica, administrativa e estrutural, que se concretiza por meio de relações partilhadas e cooperativas.

1.5. Funções do Processo Avaliativo As funções da avaliação são: de diagnóstico, de verificação e de

apreciação.

1.5.1. Função Diagnóstica A primeira abordagem, de acordo com Miras e Solé (1996, p. 381),

contemplada pela avaliação diagnóstica (ou inicial), é a que proporciona informações acerca das capacidades do aluno antes de iniciar um processo de ensino/aprendizagem, ou ainda, segundo Bloom, Hastings e Madaus (1975), busca a determinação da presença ou ausência de habilidades e pré-requisitos, bem como a identificação das causas de repetidas dificuldades na aprendizagem.

A avaliação diagnóstica pretende averiguar a posição do aluno face a novas aprendizagens que lhe vão ser propostas e a aprendizagens anteriores que servem de base àquelas, no sentido de obviar as dificuldades futuras e, em certos casos, de resolver situações presentes.

1.5.2. Função Formativa A segunda função á a avaliação formativa que, conforme Haydt (1995,

p. 17), permite constatar se os alunos estão, de fato, atingindo os objetivos pretendidos, verificando a compatibilidade entre tais objetivos e os resultados efetivamente alcançados durante o desenvolvimento das atividades propostas.

Representa o principal meio através do qual o estudante passa a conhecer seus erros e acertos, assim, maior estímulo para um estudo sistemático dos conteúdos.

Outro aspecto destacado pela autora é o da orientação fornecida por este tipo de avaliação, tanto ao estudo do aluno como ao trabalho do professor, principalmente através de mecanismos de feedback.

Estes mecanismos permitem que o professor detecte e identifique deficiências na forma de ensinar, possibilitando reformulações no seu trabalho didático, visando aperfeiçoá-lo.

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Para Bloom, Hastings e Madaus (1975), a avaliação formativa visa informar o professor e o aluno sobre o rendimento da aprendizagem no decorrer das atividades escolares e a localização das deficiências na organização do ensino para possibilitar correção e recuperação.

A avaliação formativa pretende determinar a posição do aluno ao longo de uma unidade de ensino, no sentido de identificar dificuldades e de lhes dar solução.

1.5.3. Função Somativa

Tem como objetivo, segundo Miras e Solé (1996, p. 378) determinar o grau de domínio do aluno em uma área de aprendizagem, o que permite outorgar uma qualificação que, por sua vez, pode ser utilizada como um sinal de credibilidade da aprendizagem realizada.

Pode ser chamada também de função creditativa. Também tem o propósito de classificar os alunos ao final de um período de aprendizagem, de acordo com os níveis de aproveitamento.

A avaliação somativa pretende ajuizar do progresso realizado pelo aluno no final de uma unidade de aprendizagem, no sentido de aferir resultados já colhidos por avaliações do tipo formativa e obter indicadores que permitem aperfeiçoar o processo de ensino. Corresponde a um balanço final, a uma visão de conjunto relativamente a um todo sobre o qual, até aí, só haviam sido feitos juízos parcelares.

1.6. Objetivos da Avaliação Na visão de Miras e Solé (1996, p. 375), os objetivos da avaliação são

traçados em torno de duas possibilidades: emissão de “um juízo sobre uma pessoa, um fenômeno, uma situação ou um objeto, em função de distintos critérios”, e “obtenção de informações úteis para tomar alguma decisão”.

Para Nérici (1977), a avaliação é uma etapa de um procedimento maior que incluiria uma verificação prévia. A avaliação, para este autor, é o processo de ajuizamento, apreciação, julgamento ou valorização do que o educando revelou ter aprendido durante um período de estudo ou de desenvolvimento do processo ensino/aprendizagem.

Segundo Bloom, Hastings e Madaus (1975), a avaliação pode ser considerada como um método de adquirir e processar evidências necessárias para melhorar o ensino e a aprendizagem, incluindo uma grande variedade de evidências que vão além do exame usual de ‘papel e lápis’.

É ainda um auxílio para classificar os objetivos significativos e as metas educacionais, um processo para determinar em que medida os alunos estão se desenvolvendo dos modos desejados, um sistema de controle da qualidade, pelo qual pode ser determinada etapa por etapa do processo ensino/aprendizagem, a efetividade ou não do processo e, em caso negativo, que mudança devem ser feitas para garantir sua efetividade.

1.7. Modelo Tradicional de Avaliação Versus Modelo Mais Adequado Gadotti (1990) diz que a avaliação é essencial à educação, inerente e

indissociável enquanto concebida como problematização, questionamento, reflexão, sobre a ação. Entende-se que a avaliação não pode morrer. Ela se faz necessária para que possamos refletir, questionar e transformar nossas ações.

O mito da avaliação é decorrente de sua caminhada histórica, sendo que seus fantasmas ainda se apresentam como forma de controle e de

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autoritarismo por diversas gerações. Acreditar em um processo avaliativo mais eficaz é o mesmo que cumprir sua função didático-pedagógica de auxiliar e melhorar o ensino/aprendizagem.

A forma como se avalia, segundo Luckesi (2002), é crucial para a concretização do projeto educacional. É ela que sinaliza aos alunos o que o professor e a escola valorizam. O autor, na tabela 1, traça uma comparação entre a concepção tradicional de avaliação com uma mais adequada a objetivos contemporâneos, relacionando-as com as implicações de sua adoção.

Tabela 1 – Comparação entre a concepção tradicional de avaliação com uma mais adequada

Modelo tradicional de avaliação Modelo adequadoFoco na promoção – o alvo dos alunos é a promoção. Nas primeiras aulas, se discutem as regras e os modos pelos quais as notas serão obtidas para a promoção de uma série para outra.

Implicação – as notas vão sendo observadas e registradas. Não importa como elas foram obtidas, nem por qual processo o aluno passou.

Foco na aprendizagem - o alvo do aluno deve ser a aprendizagem e o que de proveitoso e prazeroso dela obtém.

Implicação - neste contexto, a avaliação deve ser um auxílio para se saber quais objetivos foram atingidos, quais ainda faltam e quais as interferências do professor que podem ajudar o aluno.

Foco nas provas - são utilizadas como objeto de pressão psicológica, sob pretexto de serem um 'elemento motivador da aprendizagem', seguindo ainda a sugestão de Comenius em sua Didática Magna criada no século XVII. É comum ver professores utilizando ameaças como "Estudem! Caso contrário, vocês poderão se dar mal no dia da prova!" ou "Fiquem quietos! Prestem atenção! O dia da prova vem aí e vocês verão o que vai acontecer..."

Implicação - as provas são utilizadas como um fator negativo de motivação. Os alunos estudam pela ameaça da prova, não pelo que a aprendizagem pode lhes trazer de proveitoso e prazeroso. Estimula o desenvolvimento da submissão e de hábitos de comportamento físico tenso

Foco nas competências - o desenvolvimento das competências previstas no projeto educacional devem ser a meta em comum dos professores.

Implicação - a avaliação deixa de ser somente um objeto de certificação da consecução de objetivos, mas também se torna necessária como instrumento de diagnóstico e acompanhamento do processo de aprendizagem. Neste ponto, modelos que indicam passos para a progressão na aprendizagem, como a Taxionomia dos Objetivos Educacionais de Benjamin Bloom, auxiliam muito a prática da avaliação

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(estresse). e a orientação dos alunos.Os estabelecimentos de ensino estão centrados nos resultados das provas e exames - eles se preocupam com as notas que demonstram o quadro global dos alunos, para a promoção ou reprovação.

Implicação - o processo educativo permanece oculto. A leitura das médias tende a ser ingênua (não se buscam os reais motivos para discrepâncias em determinadas disciplinas).

Estabelecimentos de ensino centrados na qualidade - os estabelecimentos de ensino devem preocupar-se com o presente e o futuro do aluno, especialmente com relação à sua inclusão social (percepção do mundo, criatividade, empregabilidade, interação, posicionamento, criticidade).

Implicação - o foco da escola passa a ser o resultado de seu ensino para o aluno e não mais a média do aluno na escola.

O sistema social se contenta com as notas - as notas são suficientes para os quadros estatísticos. Resultados dentro da normalidade são bem vistos, não importando a qualidade e os parâmetros para sua obtenção (salvo nos casos de exames como o ENEM que, de certa forma, avaliam e "certificam" os diferentes grupos de práticas educacionais e estabelecimentos de ensino).

Implicação - não há garantia sobre a qualidade, somente os resultados interessam, mas estes são relativos. Sistemas educacionais que rompem com esse tipo de procedimento tornam-se incompatíveis com os demais, são marginalizados e, por isso, automaticamente pressionados a agir da forma tradicional.

Sistema social preocupado com o futuro -já alertava o ex-ministro da Educação, Cristóvam Buarque: "Para saber como será um país daqui há 20 anos, é preciso olhar como está sua escola pública no presente". Esse é um sinal de que a sociedade já começa a se preocupar com o distanciamento educacional do Brasil com o dos demais países. É esse o caminho para revertermos o quadro de uma educação "domesticadora" para "humanizadora".

Implicação - valorização da educação de resultados efetivos para o indivíduo.

Adaptado de Luckesi (2002)

Mudando de paradigma, cria-se uma nova cultura avaliativa, implicando na participação de todos os envolvidos no processo educativo. Isto é corroborado por Benvenutti (2002), ao dizer que a avaliação deve estar comprometida com a escola e esta deverá contribuir no processo de construção do caráter, da consciência e da cidadania, passando pela produção do conhecimento, fazendo com que o aluno compreenda o mundo em que vive, para usufruir dele, mas sobretudo que esteja preparado para transformá-lo.

1.8. A Avaliação da Aprendizagem Como Processo Construtivo de Um Novo Fazer

O processo de conquista do conhecimento pelo aluno ainda não está refletido na avaliação. Para Wachowicz & Romanowski (2002), embora historicamente a questão tenha evoluído muito, pois trabalha a realidade, a

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prática mais comum na maioria das instituições de ensino ainda é um registro em forma de nota, procedimento este que não tem as condições necessárias para revelar o processo de aprendizagem, tratando-se apenas de uma contabilização dos resultados.

Quando se registra, em forma de nota, o resultado obtido pelo aluno, fragmenta-se o processo de avaliação e introduz-se uma burocratização que leva à perda do sentido do processo e da dinâmica da aprendizagem.

Se a avaliação tem sido reconhecida como uma função diretiva, ou seja, tem a capacidade de estabelecer a direção do processo de aprendizagem, oriunda esta capacidade de sua característica pragmática, a fragmentação e a burocratização acima mencionadas levam à perda da dinamicidade do processo.

Os dados registrados são formais e não representam a realidade da aprendizagem, embora apresentem conseqüências importantes para a vida pessoal dos alunos, para a organização da instituição escolar e para a profissionalização do professor.

Uma descrição da avaliação e da aprendizagem poderia revelar todos os fatos que aconteceram na sala de aula. Se fosse instituída, a descrição (e não a prescrição) seria uma fonte de dados da realidade, desde que não houvesse uma vinculação prescrita com os resultados.

A isenção advinda da necessidade de analisar a aprendizagem (e não julgá-la) levaria o professor e os alunos a constatarem o que realmente ocorreu durante o processo: se o professor e os alunos tivessem espaço para revelar os fatos tais como eles realmente ocorreram, a avaliação seria real, principalmente discutida coletivamente.

No entanto, a prática das instituições não encontrou uma forma de agir que tornasse possível essa isenção: as prescrições suplantam as descrições e os pré-julgamentos impedem as observações.

A conseqüência mais grave é que essa arrogância não permite o aperfeiçoamento do processo de ensino e aprendizagem. E este é o grande dilema da avaliação da aprendizagem.

O entendimento da avaliação, como sendo a medida dos ganhos da aprendizagem pelo aluno, vem sofrendo denúncias há décadas, desde que as teorias da educação escolar recolocaram a questão no âmbito da cognição.

Pretende-se uma mudança da avaliação de resultados para uma avaliação de processo, indicando a possibilidade de realizar-se na prática pela descrição e não pela prescrição da aprendizagem.

1.9. O Objetivismo e suas ImplicaçõesAs primeiras discussões sistemáticas sobre avaliação educacional

chegaram até nós via psicologia da educação, em sua vertente dedicada à psicometria, numa época em que nos primeiros laboratórios de psicologia experimental, criados na Alemanha, a própria psicologia começava a ganhar condição de ciência.

Essa condição foi possível graças ao repentino desenvolvimento da ciência e ao surgimento das áreas de especialização que proporcionaram condições favoráveis para a emergência de uma psicologia "científica" que durante muito tempo havia permanecido fundida na filosofia. A distinção entre ambas deus e baseada nos critérios de cientificidade aplicáveis às ciências naturais, em que a observação, a verificação e a experimentação são tidas como condições indispensáveis para a criação de princípios, leis e teorias.

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Dessa forma, efetuou-se uma transposição mecânica para as ciências sociais dos métodos científicos, originariamente construí dos para investigar a natureza física. Essa transposição tem seu fulcro orientador nos postulados teóricos da matriz positivista que se edificam a partir de três princípios fundamentais:

· a sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza;· portanto, na vida social, à semelhança da natureza, reina uma

harmonia natural (sem ambigüidades);· em conseqüência, toda a ruptura dessa harmonia passa a ser

indicativa de desequilíbrio e desadaptação;· a sociedade é regida por leis naturais, quer dizer, leis invariáveis

independentes da vontade e ação humanas.Uma das conseqüências mais importantes desses princípios diz

respeito ao tratamento dado ao fato social, que, para ser convertido em "científico", deve ser isolado do sujeito que o estuda. Ou seja, no contexto dessa conceituação, para fazer ciência é necessário lidar com fatos "objetivos", e "objetivo" passa a ser somente aquilo que pode ser observado, medido, palpado.

Para tanto, é preciso tratar os fatos sociais como coisas, exatamente como o cientista da natureza trata os fenômenos naturais. Isso implica considerar os fatos sociais como desprovidos de historicidade, movimento e contradição e, contradição e, em contrapartida, o cientista social como “subjetivo” mas com a tarefa de esforçar-se para estudar uma realidade, da qual participa, como se não fizesse parte dela. Em consequência, a “objetividade” passa a ser buscada a todo custo, sem o que a atividade “científica” estaria seriamente abalada.

Um dos conhecidos adeptos dessa concepção admite que a objetividade ajuda o pesquisador a sair de si mesmo, ajuda-o a conseguir condições publicamente replicáveis e, conseqüentemente, descobertas publicamente averiguáveis ... A ciência, diz o autor, é um empreendimento social e público ... mas uma regra importantíssima do empreendimento científico é que todos os procedimentos sejam objetivos feitos de tal forma, que haja ou possa haver acordo entre juízes, porque quanto maior a objetividade mais o procedimento afasta-se das características humanas, e de suas limitações.

Essa maneira de ver a ciência, essa dicotomia que pretende dissociar o conhecimento do objeto da intenção prática que se tem em relação a esse objeto, esse dualismo que elege como regra fundamental da objetividade científica a separação entre sujeito que conhece e objeto do conhecimento, enfim, esse pseudo-distanciarnento que em busca da objetividade pretende, por hipótese, garantir neutralidade do cientista, deixou profundas marcas na produção acadêmica dos anos 70.

Os pesquisadores empenhavam-se na decodificação de paradigmas de pesquisa importados e na elaboração de métodos que garantissem fidedignidade, e validade aos dados, textos e observações. As pesquisas descritivas eram desvalorizadas. Uma pesquisa, para obter posição deveria, no mínimo, testar hipóteses, estabelecendo correlações entre variáveis.

Mas, sem dúvida, o maior "ibope" estava reservado para os delineamentos de pesquisa ditos "experimentais", ou seja, aqueles nos quais o pesquisador deveria, realmente, reproduzir o modelo das ciências da natureza e procurar respostas para efeito de uma dada intervenção.

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Embora o estudo das condições sociais e econômicas influenciando o indivíduo fosse também uma área de interesse para o pesquisador, o principal foco de preocupação estava centrado nas mudanças comportamentais que pudessem ser “cientificamente” observadas e, sempre que possível, quantificadas.

Por trás dessa prática, nos laboratórios e nos institutos de psicologia, instalavam-se os grandes marcos teóricos do individualismo/liberalismo (ao supor igualdade natural entre os seres humanos), "cientificismo" (ao supor experimentação, quantificação, neutralidade, objetividade) e da planificação (ao supor controle, manipulação e previsão, em que o que se colocava como útil era saber para prever).

Para dar conta das previsões 'onde se pudesse garantir a necessidade lógica da separação entre julgamento de “fato” e julgamentos de "valor", tomava-se indispensável recorrer a sofisticados procedimentos de coleta de dados. Multiplicavam-se então a criação de instrumentos, escalas de atitude, categorias para análise de conteúdo, manuais de instruções etc, extremamente trabalhosos, que, por hipótese, deveriam possibilitar a "objetividade" da coleta, neutralizando assim a interferência do pesquisador, como se essa interferência já não estivesse presente na própria construção do instrumental. Tomava-se, pois, necessário despender enormes esforços nas tarefas intermediárias, e os produtos finais das pesquisas, na maioria das vezes, mostravam-se extremamente frágeis para explicar a realidade.

Evidentemente, isso explica-se pela própria natureza epistemológica do modelo "objetivista", que fragmenta a realidade e pressupõe, erroneamente, que a totalidade pode ser concebida por associações de elementos parciais, os quais, desde que somados e interligados, têm, em tese, condições de explicar o todo.

Os professores (e portanto avaliadores), em contrapartida, passaram a valorizar os testes, as escalas de atitude, as questões de múltipla escolha, as provas ditas "objetivas" e tiveram de submeter-se à fúria funcionalista da época, que acabou gerando, mesmo nas escolas "experimentais" ou "deponta", critérios formalistas para definição e seleção de um "bom professor". Assim é que, de acordo com a racionalidade implícita na matriz objetivista, a elaboração de planos de ensino que comportassem "operacionalizações" adequadas de "objetivos educacionais", "objetivos instrucionais", "estratégias", "procedimentos" e "sistemática de avaliação", passou a ser parâmetro de julgamento para a tomada de decisão de quem poderia ser considerado um "professor competente".

Proliferavam cursos de treinamento, palestras e assessorias aos quais os aspirantes ou professores efetivos deveriam estar presentes para adquirir as habilidades necessárias à elaboração de bons planos de ensino e a sagacidade em discriminar os matizes na "operacionalização" formal de diferentes níveis de objetivos e diferentes facetas nas especificações de estratégias.

Tendo em vista a exagerada valorização da "planificação educacional”, em voga na época, tais treinamentos e cursos de aperfeiçoamento passaram a ser muito disputados, mesmo porque realizá-los representava obter ganhos reais para futuras contratações ou promoções na carreira do magistério.

Não estamos nos colocando contra a oferta de treinamentos que visem a uma efetiva e permanente reciclagem do professor. Estamos apenas ressaltando que, sob a égide do positivismo, do racionalismo e do funcionalismo, o critério de competência do professor deslocou-se do "saber

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fazer" no concreto para o "saber planejar o que fazer" no papel. Uma vez que não existe uma relação linear entre ambas as habilidades, muitos equívocos foram cometidos, tanto na esfera micro, nas escolas (por exemplo, nos processos de seleção de pessoal) quanto na esfera macro, na definição de políticas educacionais (por exemplo, a obrigatoriedade da profissionalização universal para o ensino de 2º grau, prevista na lei 5.692/71).

Os equívocos e as limitações observados em relação ao modelo objetivista levaram muitos estudiosos (ainda na década de 1970) a contrapô-lo a uma postura técnico-metodológica radicalmente oposta.

1.10. Abordagem SubjetivistaEstamos referindo-nos aos modelos subjetivistas ou idealistas, nos

quais admite-se que o sujeito que conhece tem predominância sobre o objeto do conhecimento. Dentro desse modelo não existe uma preocupação explícita de garantir a objetividade do conhecimento. Ao contrário, declara-se que ele é parcial e determinado pelo sujeito que conhece a partir de suas experiências e valores.

Nessa abordagem, a predominância, se não a exclusividade, volta-se para a atividade do sujeito, a quem atribui-se o papel de criador da realidade. Certamente nesse modelo, que nega o papel meramente contemplativo do indivíduo que conhece, o objeto do conhecimento desaparece, mas o papel do sujeito ganha por isso mais importância. Sua influência se fez sentir na produção de pesquisas "psicologizantes", centradas no indivíduo e na análise da interação professor-aluno, no âmbito restrito da sala de aula. Em contrapartida, quando transportada para a avaliação educacional, representou um avanço e norteou a geração de modelos de investigação mais completos e abrangentes.

Enquanto no modelo "positivista" a ênfase avaliativa recai sobre a medida do produto observável, no modelo "subjetivista" a preocupação volta-se também para a apreensão das habilidades já adquiridas (ou em desenvolvimento), que não estão necessariamente refletidas nos produtos demonstráveis. Trata-se, agora, de captar o "subjetivo", penetrar na "caixa preta" dos processos cognitivos.

Em decorrência disso, começaram a surgir sérios questionamentos em relação à aplicação de testes padronizados e no que diz respeito à absorção acrítica de seus resultados. Igualmente, procurou-se ressaltar a importância e a necessidade de respeitar o ritmo individual de cada uma para a aquisição de aprendizagens significativas. Foi também no contexto dessa concepção que iniciou-se a valorização da "auto-avaliação", o estudo dos aspectos afetivos e a análise das condições emocionais que interferem na aprendizagem.

No que se refere aos procedimentos e aos instrumentos de coleta de dados, abriu-se maior espaço para a elaboração de "questões abertas" ou "divergentes", para a utilização de opinionários e entrevistas nos quais o sujeito constrói sua própria resposta ao invés de submeter-se a uma escolha entre alternativas já fabricadas.

Apesar da relevância desses elementos, a matriz subjetivista mostrou-se, e mostra-se ainda hoje, insuficiente para a explicação da realidade educacional. Isso porque também fragmenta a realidade uma vez que permanece no âmbito das análises "abstratas" e universais e perpetua conclusões centradas no indivíduo e em seus vínculos intimistas determinados por suas respectivas trajetórias pessoais, sem que o caráter histórico dessas trajetórias seja recuperado.

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Além disso, em meu entender, trouxe como conseqüência um preconceito descabido e dogmático contra a quantificação em pesquisa, por considerá-la necessariamente comprometida com o positivismo, e, portanto, reacionária. Esse radicalismo pode contribuir para a falta de uma sistematização em relação aos dados e delineamentos da pesquisa, o que compromete a qualidade das pesquisas em psicologia e em psicologia da educação. Especificamente no que se refere à educação, as pedagógicas não diretivas, cujo pressuposto é de que a tarefa do professor é fazer emergir o que o aluno traz consigo, até hoje não encontram respostas para facilitar o aproveitamento escolar das populações de baixa renda, cujo repertório cultural é sensivelmente diferente quando comparado ao proveniente de seus colegas de "classe média", para os quais nossa escola está montada.

1.11. O Vínculo Indivíduo-SociedadeSendo ambos os modelos citados insuficientes para a explicação da

realidade, por negligenciarem o caráter histórico e transitório dos fatos, tomava-se necessária a criação de novos modelos de análise.

Para recuperar a explicação da realidade em sua totalidade contraditória e romper com as análises micro, psicopedagógicas e "psicologizantes", começaram a surgir novos esquemas interpretativos, baseados em teorias mais amplas, que procuram explicar as relações entre indivíduo, educação e sociedade. A tônica principal foi dada por análises históricas, sociológicas e econômicas, nos quais a educação era vista apenas como instância menor e dependente dos determinantes estruturais mais amplos. Isso já no final da década de 1970, quando avançava entre nós a necessidade de fazer a crítica à educação e à psicologia, mas ainda imperavam as teorias reprodutivistas (de inspiração althusseriana), quando recuperar o específico dessas disciplinas não se colocava como questão importante, uma vez que ambas eram caracterizadas como subprodutos ideológicos do Estado e subordinados às leis do capital.

De uma certa forma, essa postura desencadeou em muitos educadores a sensação de "tempo perdido", levando-os a um desinteresse em relação à escola (como instituição formal) e a buscar a oportunidade de fazer pesquisas, de fazer educação e desenvolver sua prática social de pesquisadores e avaliadores em novos cenários: sindicatos, fábricas, empresas, comunidade, organizações de camponeses, lavradores, bóias-frias.

Não pretendemos desmerecer o valor social desses trabalhos; queremos apenas levantar a questão, para mostrar que, no interior das análises macroestruturais, ocultam-se dois aspectos muito importantes: a especificidade da escola e a problemática do indivíduo. Esse indivíduo, como sujeito e objeto do conhecimento, não pode ser considerado um elemento isolado da sociedade, mas deve ser visto como parte integrante de sua dinâmica. Sua compreensão é essencial para a apreensão do todo. Tanto na vertente "objetivista" quanto na vertente "subjetivista", a visão de indivíduo apresenta-se de uma forma automatizada, a histórica e "abstrata".

A redefinição da avaliação educacional deve ter como unidade de análise o vínculo indivíduo-sociedade numa dimensão histórica. Para isso, em primeiro lugar, é necessário conhecer a realidade social, e em especial a realidade brasileira; isso significa partir da descrição e identificação das desigualdades sociais decorrentes das diferenças de equilíbrio, as quais se apresentam tanto para a totalidade de nossa estrutura sócio-econômica como para cada um de seus setores. Além disso, é necessário apreender a rede de

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relações sociais e de conflitos de interesses imbricados na dinâmica social, superar o nível descritivo e factual, para captar as contradições que imprimem um dinamismo permanente à sociedade, e, principalmente, explorar as brechas que abrem caminho para as rupturas e mudanças.

Dessa perspectiva, qualquer avaliação dos processos psíquicos (percepção, pensamento, imaginação, emoções, expectativas etc) deve ser historicamente fundamentado. Todavia a análise de uma avaliação historicamente fundamentada tem sido mal interpretada pela maioria dos estudiosos, ao imaginarem que estudar historicamente alguma coisa significa, por definição, estudar algum evento do passado. Para nós, estudar historicamente alguma coisa significa estudá-Ia no processo de mudança.

Esse processo de mudança concretiza se na ação, no movimento, na prática social, na relação com outros homens e no conjunto de relações concretas, objetivas, dentro de uma estrutura social historicamente determinada. Por isso, compreender o indivíduo significa explicitar a especificidade de sua atividade no contexto de uma configuração social.

Significa, ainda, conhecer os motivos e objetivos das ações que, mediadas pelo pensamento e linguagem, refletem a consciência social dos indivíduos, a qual, na atividade prática concreta, não somente se manifesta como também se desenvolve e ao desenvolver-se transforma o mundo e transforma a si mesma.

Evidentemente, essa concepção coloca-nos desafios adicionais, pois uma análise que busca desvelar as relações dinâmicas do comportamento humano, ao invés de limitar-se à enumeração de suas características, e não admite conceber o indivíduo "de forma abstrata", desvinculado das relações concretas de subsistência, do lugar que ocupa em determinado modo de produção e momento histórico ... aponta para a discussão de novas questões.

Se os determinantes históricos criam limites objetivos para as ações humanas, é preciso considerar, em contrapartida que a própria história é uma construção humana e somente pela atividade dos homens pode permanecer estagnada, retroceder, ou, ao contrário, ser superada.

Em outro nível, isso implica também considerar que a construção do conhecimento (no aspecto teórico, das idéias) está intimamente vinculada à prática social de seu produtor, isto é, não pode ser concebida como algo desvinculado da forma pela qual os homens relacionam-se entre si, e com a natureza para a produção e reprodução de suas condições de subsistência.

A produção de idéias, de representações, da consciência, está diretamente entrelaçada com a atividade prática dos homens, enquanto asseguram as condições necessárias à sua existência. O ponto de partida para essa produção são os homens em sua atividade real, vivendo no coletivo das relações sociais historicamente determinadas e produzindo a realidade, ainda que esses mesmos homens não tenham consciência de ser seus únicos produtores.

Sendo os homens, em sua atividade concreta, o ponto de partida para a construção do conhecimento, a ciência real, a formação de conceitos, a aprendizagem, o desenvolvimento da personalidade começam na vida real, na atividade prática. Portanto a verdadeira atividade a práxis é teórico-prática e, nesse sentido, é relacional, é crítica, é educativa, é transformadora, pois é teórica sem ser mera contemplação urna vez que é a teoria que guia a ação , e é prática sem ser mera aplicação da teoria uma vez que a prática é a própria ação guiada e mediada pela teoria; teoria entendida aqui como uma aquisição histórica, construída e produzida na interação que se estabelece entre os

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homens e o mundo. No curso do desenvolvimento dessa prática, vão surgindo as tarefas cognitivas; engendram-se e desenvolvem-se a percepção, o pensamento, a linguagem e a consciência humana.

É indispensável entender a relação entre teoria e prática como processo através do qual se constrói o conhecimento, mas nesse caso reiteramos que estamos referindo-nos à prática social, ou seja, à forma pela qual os homens asseguram as condições necessárias para a produção e a reprodução de suas subsistências. São os homens reais, em sua atividade concreta, ou seja, na vida e no trabalho, o ponto de partida e o ponto de chegada para a produção das idéias, representações e da consciência.

O conhecimento não se dá à margem de prática social dos homens. Ela é antes de mais nada o fundamento do pensamento, mas, para a verdadeira apreensão do real, é preciso que o pensamento (que é teórico-prático) "trabalhe" o observável e vá além dele, concretizando-o através da consciência, que é ativa, não por dom sobrenatural, mas porque abstrai e apreende o movimento existente na totalidade.

Daí ser fundamental para a avaliação da aprendizagem, em todos os níveis, o entendimento da atividade humana, da ação prática dos homens, o que pressupõe a análise do motivo e da finalidade dessa ação. As ações humanas não são atos isolados. São atos engendrados no conjunto das relações sociais, impulsionados por motivos específicos e orientados para uma finalidade consciente.

Na base das necessidades dos indivíduos, instalam-se os motivos de suas ações. As necessidades, porém, são ao mesmo tempo motivos da atividade e produtos desta. No decorrer da atividade, que é dirigida para a satisfação das necessidades, as primitivas necessidades orgânicas modificam-se e convertem-se em novas necessidades. Com o desenvolvimento e a determinação das necessidades culturais mais elevadas, modifica-se também a hierarquia entre necessidades predominantes e subordinadas. Isso é manifesto pela própria característica de irreversibilidade implícita no conceito de necessidade.

A satisfação das necessidades básicas gera novas necessidades mais elaboradas, porém não menos fundamentais, pois são produzidas no conjunto das relações sociais concretas, apreendidas e reelaboradas pelos componentes ativos do psiquismo humano e objetivadas, ou seja, convertidas em autênticas necessidades humanas, e portanto, orientadoras de novas ações.

Do ponto de vista de uma proposta pedagógica, deve haver compatibilidade entre os motivos que a impulsionam e a finalidade para a qual está dirigida. Isto é, a coerência significativa entre motivo e finalidade constitui condição importante do desenvolvimento integral, criativo e transformador da personalidade, pois dessa forma passa a existir uma unidade integradora entre os motivos e os fins que determinam as realizações, os projetos e o trabalho escolar.

A prática desintegrada da motivação serve apenas para perpetuar a fragmentação implícita de uma sociedade perpassada pela divisão social e técnica do trabalho e marcada pelas relações alienantes, desmotivadoras e carentes de significado.

Como já salientamos, é evidente que o fracasso escolar, a evasão e a repetência estão relacionados com a utilização de modelos inadequados, parciais e fragmentados de avaliação. Todavia o primeiro passo para reverter essa situação requer o entendimento do significado que assume para o aluno a

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relação que se estabelece entre os motivos e a finalidade de sua realização escolar. Não se trata de uma relação imediatista, falsa ou arbitrária. Ao contrário, para ser significativa, deve ser realmente representativa de algo relevante que se inicie pelo domínio dos conhecimentos básicos e fundamentais e prossiga pela articulação da escola com o mundo do trabalho (em sua dimensão real e concreta) por ser esse mundo a expressão das condições de subsistência dos alunos (sejam trabalhadores ou não).

Os conteúdos que encontram ressonância na vivência do estudante representam instrumentos úteis para a compreensão de sua prática atual e importantes elementos para a revisão e transformação dessa prática.

Nesse caso, o estudo impulsionado por um motivo e orientado para uma finalidade consciente torna-se não apenas urna etapa que permeia o processo de formação do indivíduo, mas também urna modalidade de trabalho produtivo. Modalidade que o capacita no e para o processo de trabalho, articulando conhecimentos relevantes com habilidades requeridas para o desenvolvimento de sua consciência crítica, via apropriação ativa de conteúdos voltados para a compreensão de sua condição de sujeito histórico produto e produtor da realidade.

Daí, coloca-se com redobrada importância a necessidade de esclarecer nossos alunos a respeito da força das idéias, do pensamento e da linguagem, que constituem a expressão da prática social. Coloca-se ainda como meta um trabalho orientado para a desmistificação das meias verdades ideológicas, que, servindo ao poder, para a manutenção, escamoteiam as reais contradições sociais. Além disso, ao analisar, junto com eles, o caráter histórico do desenvolvimento de sua consciência social, estaremos em condições de discutir se as ações humanas podem e devem ser direcionadas para a concretização de projetos estritamente individuais ou se, ao contrário, embora incorporem projetos individuais, têm num horizonte mais amplo a configuração e a organização de projetos coletivos, tendo em vista a mudança e a transformação social.

2. AVALIAÇÃO EDUCACIONAL: TRAJETÓRIA HISTÓRICAROSALES (1992) afirma que a avaliação é uma área de conhecimento

muito nova, mas que teve um desenvolvimento intenso nos últimos anos, podendo-se mesmo afirmar que sua infância estaria situada até os anos 70, a adolescência em torno dos anos 80 e que, nos anos 90, caminhamos para a idade adulta.

Para compreender o processo de amadurecimento da área avaliativa, é preciso fazer uma pequena revisão das produções de décadas anteriores, resgatando a partir daí as contribuições que possam ainda oferecer subsídios para as nossas atividades atuais na área.

A preocupação em ressaltar a importância da avaliação do desempenho escolar no Brasil foi registrada já na década de 30, principalmente por Isaias ALVES (1930), quando defendia os testes pedagógicos, argumentando que sua objetividade seria mais adequada que as avaliações subjetivas até então realizadas.

Até a década de 70, as concepções presentes em toda a área educacional tinham como suporte um paradigma positivista e eram fortemente orientadas pela produção de avaliadores norte-americanos.

Avaliar consistia em comparar os resultados dos alunos com aqueles propostos em determinado plano. Para realizar uma boa avaliação, era preciso

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definir, em primeiro lugar, os objetivos em termos comportamentais e determinar, além disso, em que situação seria possível observá-los.

Só poderia ser avaliado o que fosse observável, ou através de provas ou por meio de algum outro tipo de instrumento de medida. Preconizava TYLER que, como a avaliação envolve a obtenção de evidência sobre mudanças de comportamento nos estudantes, somente evidências válidas sobre comportamentos desejados os objetivos educacionais forneceriam possibilidade de uma avaliação apropriada.

Foi sendo questionada, então, esta profunda confiança que havia em uma metodologia de caráter racional, basicamente comportamental da avaliação. Nesse período, em conjunto com os avaliadores brasileiros que também rejeitavam a orientação teórica predominante na avaliação educacional, foram buscados fundamentos em autores como Michael SCRIVEN, Robert STAKE, Daniel STUFFLEBEAM, David HAMILTON, SCRIVEN (1967), PARLETT & HAMILTON, os quais propunham que ao lado das aprendizagens predeterminadas, estabelecidas em um programa de ensino, seria necessário considerar outras não previstas. Não se deveria então partir dos objetivos de um plano, mas chegar a eles através das produções dos alunos, observadas em um dado contexto educacional. Mais ainda, o autor considerava que, além de avaliar os objetivos finais de um curso, seria importante também analisar aqueles que se estavam desenvolvendo no transcorrer do curso, o que possibilitaria intervenções ainda durante o processo de execução de um plano.

Avaliador criativo, SCRIVEN apresenta em 1963/1967 o conceito de avaliação somativa e formativa, que teve um grande impacto, principalmente, entre avaliadores brasileiros, por volta da década de 70.

Passouse a compreender então que a avaliação deveria ser não somente somativa, isto é, voltada para a análise de resultados terminais que subsidiasse decisões do tipo sim/não, passa/não passa, mas também formativa, com o objetivo de permitir subsidiar ações de intervenção, quando um curso estivesse ainda em desenvolvimento. Esta categorização da avaliação formativa e somativa que hoje já se tornou clássica, trouxe para a teoria da avaliação uma maior complexidade dos métodos avaliativos. Embora definisse a avaliação como uma "atividade metodológica que é essencialmente similar, quer se esteja tentando avaliar uma máquina de café ou máquina de ensinar, planos para uma casa ou planos de currículo", SCRIVEN (1967) reconhecia que a avaliação de uma situação incluía o processo de interpretação do próprio avaliador.

STAKE (1967) iria ampliar a importância do processo de interpretação, ao afirmar que a avaliação envolvia a emissão de juízos de valor não somente de especialistas em avaliação, mas também de professores, pais etc. Avaliar era, sobretudo, uma questão de dizer se algo é bom ou mau, e o avaliador, para este autor, deveria coletar argumentos que permitissem julgar o valor de um programa educacional.

STUFFLEBEAM (1971) definia avaliação como um processo de delinear, obter e fornecer informações úteis para subsidiar a tomada de decisões.

Esse autor propõe um modelo avaliativo bastante complexo que envolve análise de variáveis de input (entrada) de processo, de contexto e de resultados, mas o dimensionamento de todas elas deveria ser dado pela relevância do processo de tomada de decisões. Uma verdadeira avaliação, segundo o autor, seria aquela que permitiria subsidiar, em tempo hábil, o

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aperfeiçoamento de um programa. Daí a importância da escolha de informações úteis e relevantes que atendam às necessidades de quem toma decisões. Um estudo que não subsidiasse a revisão de ações, que não atendesse às audiências de um programa educativo, seria para ele uma pseudoavaliação.

PARLETT & HAMILTON (1977) desenvolveram a avaliação iluminativa, com base no paradigma socioantropológico, com o foco muito mais na descrição e interpretação de um processo educativo do que na medida e previsão de comportamentos. Para esses autores, quando se analisa um programa inovador, é preciso considerar que os objetivos inicialmente propostos por este programa são modificados, reinterpretados por aqueles que o executam. Assim, a avaliação deveria considerar como os objetivos estão sendo percebidos, vividos por aqueles responsáveis por sua execução.

PARLETT & HAMILTON compreendem que, no contexto em que professores e alunos atuam, está presente e interagindo um complexo de variáveis culturais, sociais, institucionais e psicológicas que produzem em cada sala de aula um arranjo único de circunstâncias, pressões, hábitos, opiniões e estilos de trabalho que influenciam o ensino e a aprendizagem que lá se realizam. Os autores propõem, a partir desta compreensão, um processo avaliativo que exigirá do avaliador uma convivência com o cotidiano escolar, onde irá, a partir de uma estratégia metodológica, desemaranhar as variáveis que atuam em uma situação e isolar suas características significativas, buscando iluminar a compreensão das relações entre crenças, práticas, padrões organizacionais e comportamentos apresentados pelos agentes e sujeitos da ação educativa.

MacDONALD (1977) introduz a classificação política dos estudos avaliativos, argumentando que, dependendo dos valores, objetivos, procedimentos utilizados por um avaliador, a avaliação poderia ser "burocrática, autocrática ou democrática". A avaliação burocrática se caracterizaria mais como um serviço prestado a agências governamentais, realizada para atender a questões de controle de verbas educacionais. A avaliação autocrática seria também desenvolvida para agências governamentais, mas tendo como propósito a análise mais objetiva e rigorosa de políticas educativas. A avaliação democrática seria aquela realizada para atender a necessidades de informação e análise de uma dada comunidade sobre um programa educacional. O valor que orienta este tipo de avaliação é a cidadania consciente, e o avaliador vai utilizar uma metodologia que permita a acessibilidade às informações dos diferentes sociais, favorecendo assim a negociação entre eles e a tomada de decisões coletiva.

Os paradigmas avaliativos desenvolvidos por estes autores citados e outros de grande importância, como CRONBACH (1963), EINER (1979), assim como os estudos de autores brasileiros, que procuraram desenvolver novos modelos avaliativos em uma abordagem de natureza mais qualitativa, dentre os quais se encontram ANDRÉ (1978), SAUL (1985), GATTI (1981), GOLDBERG & PRADO DE SOUSA (1979), LUCKESI (1984), GOLDBERG & FRANCO (1980) ou quantitativa, como os estudos de VIANA (a partir de 1973), ampliaram a temática, o objeto e as funções da teoria da avaliação educacional, mas havia ainda muito a caminhar.

Na verdade, o questionamento mais relevante a respeito da avaliação educacional somente vai ser construído no Brasil na década de 80, quando as contribuições da sociologia se tornam mais efetivas na área educacional.

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No final da década de 70, e principalmente durante os anos 80, os educadores brasileiros, em consonância com as reflexões que se faziam, sobretudo, em países europeus, analisando o desempenho de sistemas de ensino, evidenciaram a reprodução das desigualdades sociais no interior da escola. Pesquisas e estudos relevantes foram desenvolvidos no sentido de permitir compreender como justamente os alunos provenientes das camadas populares, que sofriam uma discriminação socioeconômica, recebiam das escolas um ensino de pior qualidade e ainda eram aqueles que respondiam pela maior taxa de evasão e repetência de todo o sistema de ensino. A escola, assim, como nos fez compreender autores como BOURDIEU & PASSERON (1964/70), BAUDELOT & ESTABLET (1971), reproduz as estruturas de classes sociais, perpetuando as estruturas sociais.

Mas, ressaltavam GRAMSCI (1978), SNYDERS (1977) e retomava SAVIANI (1980), para a elevação do nível cultural das classes populares, a escola é fundamental. É preciso, no entanto, modificar a educação, reordenar seus objetivos, permitir o desenvolvimento de uma educação voltada para a formação de sujeitos que aprendam coletivamente a construir maiores possibilidades e alternativas de subsistência para enfrentarem suas situações adversas e promoverem a transformação social.

Nessa época, FREIRE (1974/1975) já havia desenvolvido uma pedagogia que buscava conscientizar o aluno de sua condição de subordinação social e, assim, libertá-lo para a construção de uma nova perspectiva de vida social. Mesmo partindo de epistemologias diferenciadas, os autores do período poderiam ser reunidos em uma frente de pensamento progressista que evidenciava a desigualdade da educação oferecida nas escolas e se comprometia com a busca de justiça social. Os alunos das classes populares, sujeitos a exigências e tendo de apresentar uma competência que não lhes era oferecida na escola nem na família, sofrem uma "violência simbólica" (BOURDIEU 1970), legitimada de forma arbitrária pela ação pedagógica inconsciente. Esses alunos, ao receberem uma educação diferenciada daqueles que já detinham o suporte cultural possibilitado por melhores condições socioeconômicas, acabam se mantendo defasados socialmente. O conhecimento construído nesse período na área de Educação, fundamentado pela sociologia e pela filosofia, veio opor-se a uma teoria educacional marcada principalmente por uma base psicologizante, que reduzia a compreensão do social às influências de contexto e de relações intergrupais.

A avaliação educacional, por conseguinte, enquanto uma prática pedagógica, construída até aquele momento com fundamentos de uma vertente psicológica de orientação comportamental, sofre, a partir daí, um questionamento. Em sintonia com o conjunto dos educadores, passamos a desenvolver uma análise crítica do papel que a avaliação exercia no cotidiano escolar. Nesse período, a análise da função política da avaliação foi objeto de estudo de muitos avaliadores brasileiros, dentre eles Ana Maria SAUL, Carlos Cipriano LUCKESI, Magda SOARES, Sandra Zakia Lian de SOUZA, Pedro DEMO (apenas cito alguns com cujos textos tive maior contato).

As reflexões produzidas na época foram no sentido de deixar claro que a avaliação é uma atividade socialmente determinada. A definição de por que, o que e como avaliar pressupõe uma concepção do Homem que se quer formar e das funções atribuídas à escola em determinada sociedade.

Melhor dizendo, são os determinantes sociais que definem a função que a escola vai ter; e a avaliação, enquanto prática educativa, explicita e acaba legitimando esta função.

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A denúncia da função política da avaliação, da possibilidade de ela poder assumir uma direção classificatória, seletiva e discriminatória não me imobilizou e também não impediu que os avaliadores brasileiros já citados e outros, como Jussara HOFFMAN, Celso dos S. VASCONCELOS, Mete ABRAMOVICH, Lea DEPRESBITERIS, Maria Laura Barbosa FRANCO, Menga LÜDKE, Thereza Pena

FIRME, buscassem construir uma nova teoria de avaliação que pudesse produzir modificações de práticas para superar no cotidiano escolar as indignidades já exaustivamente denunciadas. A contribuição dos autores da área, fortemente empenhados em buscar caminhos novos ao processo avaliativo, resultou no redirecionamento da função da avaliação. A avaliação enquanto prática educativa passou a ser compreendida tomando-se por base as ciências humanas. Ciências humanas definidas como as que tratam do Homem no horizonte de sua historicidade. Aquelas cujo objeto é o Homem e sua existência. Enfatizou-se muito nesse período, também, a análise de processos de aprendizagem em detrimento das avaliações de produto e a importância de estudos de natureza qualitativa que permitissem descrever e interpretar a atividade realizada na escola. Chegou-se mesmo a criar uma dicotomia entre avaliação de processo e de produtos e entre avaliação qualitativa e quantitativa, que somente foi superada uma década mais tarde, quando ficou claro para todos os pesquisadores da área a falibilidade e complementaridade de todos os tipos de avaliação.

Assim, embora se continuasse reconhecendo que a avaliação educacional visava analisar o alcance dos objetivos educacionais, sua função não deveria ser mais a de legitimar aprovação e reprovação do aluno. A decisão de reprovação deveria ser tomada coletivamente por todos os profissionais da escola, sendo que nesse contexto a avaliação teria função apenas subsidiária, dependendo sempre das possibilidades da escola em recuperar o aluno e oferecer condições que garantissem sua aprendizagem.

A década de 90 chegou, então, para nós educadores e especialistas em avaliação escolar, como um momento de grande desafio: integrar as contribuições críticas dessas últimas décadas e construir, no cotidiano, instrumentos que nos permitissem não somente analisar o rendimento escolar, mas também compreender os processos de construção de desigualdade social, tendo em vista a busca de alternativas para sua superação.

Estes desafios reorientaram a avaliação educacional. A avaliação tinha, até então, acordado entre milhares de avaliadores de todo o mundo (Joint Commitee on andar for Educational Evaluation) alguns princípios básicos, que precisariam agora receber um acréscimo para atender as necessidades de democratização social. A avaliação que se preconizava deveria ser: útil, factível, ética e exata. Útil no sentido de possibilitar àqueles envolvidos em uma ação educativa o julgamento do que vai bem e do que não vai bem com um dado processo ou resultado; factível, isto é, sem perder o rigor, garantir a utilização de procedimentos compatíveis com a situação e as condições; ética, no sentido de comprometer-se com os direitos dos participantes e com a honradez dos resultados; exata, garantindo o rigor na aplicação dos procedimentos e no julgamento dos resultados.

Os desafios que enfrentamos no momento exigem que a avaliação acrescente também a estes princípios a eqüidade e o comprometimento ou responsabilização dos agentes educativos. Avaliar com eqüidade significa analisar se a qualidade da educação que está sendo oferecida atende igualmente a todos os setores sociais. E a responsabilidade para garantir a

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eqüidade é de toda a sociedade, sobretudo dos governos, e exige o compromisso expresso e definitivo dos agentes do processo educacional.

Esta reorientação da avaliação educacional encontra suporte nas tendências e estudos da área de ciências humanas que se realizam hoje e que procuram compreender as macroestruturas determinantes de uma realidade em conjugação com o desempenho dos atores sociais que a constroem.

Nesse sentido, é tão importante avaliar como o sistema educacional condiciona a qualidade do ensino oferecido nas escolas, quanto analisar como os educadores constroem, no seu cotidiano, a partir de suas representações, de suas atuações, de suas relações, o nível de ensino que os alunos irão receber.

A implantação de programas de avaliação de sistemas educacionais no Brasil, a exemplo do SAEB e do SARESP, coloca a questão da qualidade do ensino a ser esperado em um processo de escolarização e a importância do controle da eqüidade da educação em nível da macroestrutura.

Nesse tipo de avaliação, a proposta que a orienta é a identificação dos conteúdos e habilidades dominados pelo aluno e a busca de elementos que possam subsidiar o planejador na perspectiva de levar a escola e os professores a superar as defasagens flagrantes nos alunos, fruto de um ensino desigual, conseqüência de recursos e condições contraditórios a que têm sido submetidos os nossos alunos.

Mas ao lado dessas avaliações de sistema, é necessário também considerar as avaliações que o professor realiza em sala de aula, que naturalmente devem ser orientadas pelos mesmos princípios. A tomada de consciência pelo professor dos efeitos do nível socioeconômico dos alunos sobre os resultados de aprendizagem não implica a realização de avaliações que mascarem este fato. É necessário identificar onde o aluno apresenta maiores dificuldades, como se mostram essas defasagens e garantir uma escola e um sistema de ensino que realmente ministre educação com justiça.

Os alunos com acesso reduzido aos bens culturais, com pais com baixa escolaridade, podem apresentar dificuldades para vencer as tarefas exigidas em nossas escolas. Devem-se realizar, então, processos avaliativos que permitam identificar como estas dificuldades se apresentam e que forneçam pistas sobre como contornar os problemas e não apenas registrar a freqüência e o tipo de problema detectado. De um avião em pleno vôo, que comece a sofrer trepidações (com a gente dentro), o que se espera é que o piloto identifique as dificuldades e, conhecendo a origem do problema, tome providências para contornar a situação e garantir uma rota segura. O que para nós menos importaria é que o piloto culpasse os ventos fortes em determinada região. As questões que são enfrentadas pela avaliação de sistema e pela avaliação do professor em sala de aula, se bem identificam por um lado a complexidade e o amadurecimento da teoria de avaliação no Brasil, por outro indicam que temos muito a pesquisar e refletir.

Esta reflexão, contudo, só será profícua se for realizada em conjunto com os professores que vivenciam as mesmas preocupações em suas salas de aula. A questão com que a avaliação se defronta poderia ser melhor equacionada da seguinte forma: como preparar professores para refletir sobre sua prática pedagógica e integrar, no dizer de PERRENOUD (1993), os "saberes" da teoria avaliativa com o "saberfazer" de sua prática profissional, no cotidiano escolar? Mais ainda, como os "saberes" da teoria avaliativa contribuem para a formação de uma competência do saber avaliar? Quais são as competências a serem exigidas do professor para articular a teoria e a

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prática, reconhecendo que o sucesso do desempenho estará sempre mediado pela pessoa do professor, com seus sentimentos, desejos, medos (sendo que este aspecto é ignorado na formação de professores)? E, finalmente, como avaliar essa prática avaliativa?

Analisando competências da formação de professores, PERRENOUD (1993b, p. 179) assinala:

"Os formadores de professores mal procederiam se limitassem a sua análise da profissão ao emprego de saberes científicos e de método racionais. Se também se ensina com as entranhas, intuições, experiências, crenças, desejos e medos, então tudo isto é matéria a ter em conta no esforço de formação. Mais do que investir, ainda e sempre, em modelos didáticos ideais, os formadores de professores fariam melhor em trabalhar mais intensivamente no desenvolvimento de uma teoria da prática":

A maioria dos cursos universitários destinados à formação inicial de professores (graduação) desenvolve uma estrutura curricular que divide o saber acadêmico do pedagógico (licenciaturas), apostando em uma competência que pressupõe uma dissociação entre qualificação acadêmica e qualificação didática. A profissão docente, no entanto, exige que o professor se mobilize como pessoa, articulando essas qualificações em sua prática cotidiana. "O professor é uma pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor", assinala NÓVOA (1992, p. 2), citando NIAS (1991), e afirma em seguida:

“A formação de professores tem ignorado, sistematicamente, o desenvolvimento pessoal, confundindo ‘formar’ e formar-se; não compreendendo que a lógica da atividade educativa nem sempre coincide com as dinâmicas próprias da formação. Mas também não tem valorizado uma articulação entre a formação e os projetos das escolas (...‘Estes dois esquecimentos' inviabilizam que a formação tenha como eixo de referência o desenvolvimento profissional dos professores, na dupla perspectiva do professor individual e do coletivo docente").

Nesse contexto, nossa preocupação com o aperfeiçoamento da prática avaliativa de professores deve pressupor a definição de um critério básico e referencial de competência, qual seja, a capacidade pessoal do professor de articular seus saberes para diagnosticar, compreender e neutralizar as causas dos insucessos escolares e, conseqüentemente, para tratar das diferenças sem as transformar em desigualdade.

Portanto, o aperfeiçoamento de práticas avaliativas, no presente momento, exige, por um lado, uma ação de macroestruturas a ser desenvolvida pelo sistema de ensino no sentido de controlar a eqüidade do ensino e os seus efeitos perversos; e, por outro, um trabalho conjunto com professores no sentido de fazê-los compreender e se conscientizar das representações que eles próprios têm sobre suas práticas avaliativas.

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A análise dessas representações, isto é, de como o professor constrói o seu saber avaliara partir de suas experiências e formas de pensamento transmitidas pela educação, possibilita-nos não só entender a prática avaliativa, que é vivenciada no cotidiano escolar, mas encontrar caminhos para a construção de uma teoria de avaliação que contemple os desafios e questionamentos desta década.

2.1. Ensaiando Novas Questões da Avaliação Minha proposta aqui foi refletir sobre alguns aspectos da trajetória

avaliativa e a partir daí ensaiar a colocação de novas questões que esta postura crítica nos traz. A primeira questão, que acredito apresentar-se neste momento, refere-se a como compreender a avaliação como uma possibilidade de refletir sobre o ensino.

2.2. Avaliar é Refletir sobre o Ensino?Os instrumentos que construímos para identificar o domínio do aluno

em conteúdos ou habilidades devem ser encarados como indicativos e não como reveladores de toda a verdade sobre o aluno. Isto é, os resultados que encontramos nos permitem formular hipóteses sobre o desempenho do aluno em uma dada situação. Porém, estes mesmos resultados são elementos riquíssimos que nos informam sobre o tipo de ensino que estamos oferecendo.

Em primeiro lugar porque, ao preparar um instrumento para avaliar, apontamos aí nossas prioridades, descrevemos nossos interesses, identificamos claramente o que consideramos importante dentre tudo o que ensinamos. Mesmo que não tenhamos deixado claro nossas intenções, nossos propósitos em sala de aula, ao elaborar uma prova, ao propor um seminário, ao preparar um roteiro de observação, somos obrigados a nos revelar.

Em segundo lugar porque as respostas dos alunos vão nos apontar muito mais sobre se conseguimos ensinar aquilo que queríamos, do jeito que queríamos, do que sobre as reais possibilidades dos alunos.

Costumeiramente os instrumentos que elaboramos em sala de aula não nos informam sobre pré-requisitos, co-requisitos e não identificam razões das dificuldades ou facilidades dos alunos. Na verdade, somos nós que fazemos uma interpretação qualitativa baseada em nossas representações sobre o aluno, sobre o processo de ensino-aprendizagem, sobre a função da escola etc.

Considerando estes aspectos, eu diria que nossas avaliações avaliam muito mais nós mesmo do que os próprios alunos. São bons instrumentos para analisar nosso ensino.

Então não existem alunos com dificuldades? Todas as dificuldades são dos professores?

Constatada a falibilidade de nossos instrumentos de avaliação, pareceria uma conclusão lógica fazer a suposição de que as dificuldades dos alunos são quimeras? Bastaria uma boa avaliação e desapareceriam as dificuldades? Nós sabemos que isto não é verdade. Muitas vezes não precisamos de nenhum instrumento de avaliação para identificar as dificuldades que os alunos estão enfrentando em determinada área do programa. Um acompanhamento de seu caderno, de sua participação em classe, a análise de suas lições de casa já nos dão pistas importantíssimas sobre o seu desempenho. O problema aqui é mais uma vez como tem sido utilizada a avaliação e sua relação com o ensino. Alunos apresentam dificuldades em algum momento de seu processo de aprendizagem. As rosas

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nem sempre florescem todas juntas em uma mesma roseira. No entanto, quando o aluno apresenta dificuldades, ele e sua família passam a ser responsabilizados por esta "desventura". O que não se pode fazer é atribuir à avaliação a responsabilidade deste feito. A avaliação apenas nos dá indícios de onde está o problema. Cumpre ao educador, a partir daí, definir o que fazer. Recuperar? Aulas complementares? Ensino individualizado? Solicitar orientação da coordenação pedagógica? Rever a programação? O que quero reafirmar é que o processo de ensino não se encerra no processo de ministrar aulas, fazer avaliações e julgar o desempenho do aluno. Ser educador na década de 90, envolve também garantir eqüidade do ensino.

E, nesse sentido, a avaliação pode ajudar oferecendo elementos para se analisar onde se pode aperfeiçoar este ensino. Ninguém corta uma mangueira que demorou 7, 10, 15 anos para crescer só porque as frutas não foram boas nesta estação. Mas, muitas vezes, se reprova ou se provoca a evasão de alunos que apresentam problemas de aprendizagem. Estou tentada a concluir (mesmo não sendo nada original) que a avaliação deve ajudar o professor a identificar onde estão os problemas de aprendizagem, para que possamos aperfeiçoar o ensino. Estaria mais correto definir dessa forma o processo de avaliação do que identificá-lo com um procedimento de classificação e seleção daqueles alunos que "devem merecer", segundo nosso parecer, acesso ao ensino.

Finalmente, então qual é o problema da avaliação?Parti neste texto de um profundo respeito ao trabalho do professor. Não

estou nesta profissão há mais de 25 anos "somente porque se é muito bem remunerado", mas, sobretudo, porque acredito na educação como possibilidade de transformar gentes e mundos.

Nesse sentido, tenho utilizado a avaliação como instrumento para me ajudar a percorrer minha trajetória, iluminar meus passos. O grande problema que acho que enfrentamos não é evidentemente o como avaliar, mas sim o como ensinar. Quanto mais apuro meus procedimentos de avaliação, mais consigo desenvolver hipóteses sobre dificuldades dos alunos, processos de ensino, modelos de aprendizagem e aspectos que devo aperfeiçoar em minha formação de professora.

Convido-os a utilizar a avaliação dessa forma. É gratificante e renovadora de nosso cotidiano. Finalmente, isto me leva à conclusão de que avaliar exige um profundo estudo sobre aprendizagens e uma postura política comprometida com o processo de transformação social. A grande questão, então, que se coloca para nós professores, hoje, não é como avaliar mas sim por que o aluno não está aprendendo. Por que determinado aluno vai bem e outro não? qual método foi mais adequado nesta classe? quais procedimentos têm promovido melhores aprendizagens?

Estivemos discutindo muito tempo sobre como avaliar, mas formulando questões equivocadas. Enquanto estávamos interessados em analisar se deveríamos utilizar notas ou conceitos, usar provas semestrais ou mensais, usar o método quantitativo ou qualitativo, nos desviamos do problema básico que deve orientar toda a avaliação. Um bom problema, ou um problema bem formulado, já é sem dúvida uma forma correta de encaminhar uma resposta adequada. Nosso problema é justamente como identificar, analisar o processo de aprendizagem do aluno e oferecer um ensino de qualidade, adequado a sua forma de aprender.

À guisa de reforço, vale atentar para: o referencial para compreendermos a avaliação educacional, incluída a avaliação de

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aprendizagem e a avaliação institucional, é a Teoria Crítica da Educação. Essa teoria foi elaborada a partir da contribuição dos pensadores da Escola de Frankfurt e entende que a educação é um processo reflexivo e prático, que se situa num contexto sócio-político-econômico, sendo por ele influenciado, mas que tem a força de influenciá-lo, através de uma ação transformadora. Assim sendo, o processo de avaliação deve visar ao desenvolvimento do homem na sua pluridimensionalidade, focando uma perspectiva humanizadora. Isto significa dizer que o homem e seu processo de formação deverão ser o centro de qualquer prática avaliativa, e não as normas e os ritos, como acontece na perspectiva burocrática.

A avaliação deve indicar caminhos, ajudando o professor, o aluno ou a escola a dar novos passos. Não deve ser uma avaliação que só constata, mas, sobretudo, uma avaliação que ilumina o vira ser.

3. A AVALIAÇÃO EDUCACIONAL E OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO PARA O FUTURO

O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez.

Edgard Morin

A política educacional brasileira acolheu como eixos norteadores as teses apresentadas no documento Educação: Um Tesouro a Descobrir.

Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI. De 1998, coordenado por Jacques Delours. Neste documento, são apresentados os Quatro pilares da educação contemporânea: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer.

Estes pilares constituem a matriz principal na construção da visão de mundo dos princípios e diretrizes da educação na atualidade, visando a uma preparação mais ampla dos alunos. acreditando numa melhoria da própria estrutura dos sistemas educacionais. Pois, como enfatiza Basarab Nicolescu (Presidente do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares CIRET) apud Morin,

(...) há uma transrelação Que liga os Quatro pilares do novo sistema de educação e Quetem sua origem em nossa própria constituição como seres humanos. Uma educação só pode ser viável se for uma educação integral do ser humano. Uma educação que se dirige à totalidade do ser e não apenas a um dos seus componentes (2000, p. I I).

Nessa perspectiva transdisciplinar Edgar Morin, atualmente um dos maiores estudiosos das Ciências Sociais. Elaborou um conjunto de reflexões sobre a educação do amanhã. MORIN (2000) enunciou os sete saberes necessários à educação do futuro e assim os intitulou: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinara identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão e, por último, A ética do gênero humano. São, pois, considerados eixos e caminhos que se abrem a todos os que

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pensam e fazem educação, e que estão preocupados com o futuro das crianças e adolescentes (MORIN. 2000, p. 12).

Para Morin (2000) "a educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão" (p.19).

Com essa idéia, o autor projeta uma responsabilidade mais acentuada ao trabalho do educador Que deverá tornar seu próprio conhecimento cada vez mais abrangente a fim de contribuir de forma mais eficaz no plano educacional, sendo capaz de promover a formação e instrução do educando numa lógica. reconhecidamente científica e filosófica, em que a capacidade de análise e interpretação do aluno sejam trabalhadas simultaneamente.

Para tanto, promovendo o aprimoramento de seu conhecimento, conduzirá o profissional ao enriquecimento cultural, necessário ao seu papel profissional, favorecendo cada vez mais a sua inserção num mundo em que as exigências quanto à atualização em conteúdos se tornou um aspecto corriqueiro em decorrência da incessante evolução do conhecimento.

Este perfil de educador deverá acentuar o papel da educação na formação do pensamento do educando, que deverá ser preparado para assimilar as reais diferenças entre o que pode ser considerado errado e o que pode ser havido como ilusório, quando da compreensão do conhecimento. Tal assimilação não poderá se limitar apenas à identificação do aspecto erro ou aspectos ilusão; ao contrário, deverá permitir uma ampliação dessa investi da, pois o educando há de ser preparado para não se deixar levar por idéias que o conduzam ao erro de interpretação, ou deixar-se iludir por concepções que violem a própria maneira de realizar a leitura do mundo, ou ainda.

Que não lhe permitam conhecer-se como pessoa capaz de empreender-se em busca de sua felicidade. Nesse ínterim, o educador, em sua função de avaliador, deverá também estar alerta para as inúmeras possibilidades que o próprio conhecimento produz com relação às abordagens de interpretação possíveis de ocorrer, já que sua função exige um comportamento necessário em vislumbrar as várias faces de análises dos problemas educacionais. Assim, o trabalho do avaliador exige não somente uma preparação sólida e ampliada, bem como uma postura profissional capaz de perceber as devidas relações que podem ser estabelecidas pelos educandos quando da análise de conteúdos.

Enfatizando-se neste momento o trabalho do avaliador nas atividades pedagógicas rotineiras, chama-se a atenção para o fato de que a interpretação, o reconhecimento da importância e da aplicação de um determinado conteúdo estabelecidos pelos educandos nessas atividades, e que serão focos de trato avaliativo, devam ser coerentes e não desviados do bom senso, da compreensão e do pensamento lógico, pois

as possibilidades de erro e de ilusão são múltiplas e permanentes: aquelas oriundas do exterior cultural e social inibem a autonomia da mente e impedem a busca da verdade; aquelas vindas do exterior encerradas às vezes, no seio de nossos melhores meios de conhecimento, fazem com que as mentes se equivoquem de si próprias e sobre si mesmas (MORIN. 2000. p. 33).

Nessa construção da educação do futuro, a área de trabalho da avaliação educacional assume um papel muito relevante, pois fornece embasamentos e instrumentos teóricos pertinentes a essa linha de

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pensamento apresentada por MORIN. No aporte teórico da avaliação educacional, encontra-se um reconhecido esforço de seus clássicos estudiosos em dirigir o trabalho dessa área para uma concepção abrangente do trabalho educativo, buscando a produção de um conhecimento embasado em múltiplas possibilidades que permeiam a construção da ciência.

Assim, convergem ao mesmo ponto à proposta de educação para o futuro de Morin e as concepções imbricadas na construção teórica da avaliação educacional, ao reconhecerem que "o conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepções são. ao mesmo tempo. Traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos" (p. 20).

Entretanto, o trabalho do profissional dedicado à avaliação educacional deve ser muito cauteloso, por isso mesmo a necessidade de uma atualização e amadurecimento contínuos de sua preparação, tendo em vista

Que o próprio conhecimento que é “ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação. o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento" (MORIN, 2000, p.20).

Tendo sido dada a devida importância pela política educacional brasileira às idéias contidas no documento coordenado por Delours, e de certa forma indiretamente às idéias de Morin, espera-se que seja elaborada uma proposta de preparação dos profissionais que trabalham em avaliação para atuar com ênfase nessa óptica de pensamento. É importante que surjam iniciativas que favoreçam essa preparação, para que a atualização da política educacional brasileira não fique apenas na sugestão de correntes de pensamento inovadoras, mas que sejam implementadas efetivas ações que permitam uma aplicação objetiva da teoria, evitando, assim, que cada profissional interprete e execute o plano teórico a seu gosto e modo.

Quanto aos princípios de pertinência do conhecimento, Morin enfatiza a inadequação cada vez mais ampla dos saberes desunidos e divididos de um lado, e de outro, a realidade cada vez mais multidisciplinar. Segundo este abalizado autor, para que o conhecimento seja considerado pertinente, a educação deverá evidenciar o contexto o global o multidimensional e o complexo.

Referindo-se ao contexto ele parte da idéia de que "o conhecimento das informações ou dados isolados é insuficiente. É preciso situar as informações e os dados em seu contexto para que adquiram sentidos" (MORIN, 2000, p. 36).

Nesse sentido, a avaliação educacional se destaca por possuir, em seu ideário, tal concepção que pode ser ratificada quando Stake apud Vianna acentua, desde 1967, "não deveria ter um caráter episódico. mas permitir uma compreensão de todo o processo relacionado a um programa, por intermédio de um amplo levantamento de informações para uma tomada de decisões em bases realistas" (2000. p. 57).

A relevância atribuída aos educadores no trato dos assuntos relativos à avaliação educacional adquire mais evidência ao relaciona-Iá às teses de Morin, pois, conforme Cronbach apud Vianna (2000, p. 68), a avaliação "deve ser entendida como uma atividade diversificada. Que exige a tomada de vários tipos de decisões e uso de grande número de diferentes informações".

Entretanto, as diferentes informações coletadas precisam ser analisadas de maneira precisa, com interpretações coerentes, para que as

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análises decorrentes não sejam elaboradas com acentuada caracterização do senso comum, e para que haja pertinência no conhecimento produzido.

(...) a avaliação precisa concentrar-se em um conjunto de atividades científicas que garantam a congruência entre as observações apresentadas e o mundo da realidade. Além disso. As atividades científicas devem possibilitar interpretações aprofundadas sobre os dados levantados. Uma avaliação não terá um crédito relevante se tudo aquilo que o avaliador estabeleceu e aprendeu não for incorporado ao conhecimento de diferentes públicos: alunos. Professores, pais, administradores, burocratas e a todos os cidadãos interessados em problemas educacionais.O valor de um avaliador não está apenas em levantar questões, mas em dar respostas aos problemas. Comunicando-as de uma forma eficiente: de modo claro, rapidamente, com fidedignidade e validade. Oferecendo informações alternativas que satisfaçam às várias audiências. Tudo isso, para que a mensagem do avaliador seja compreendida, mereça credibilidade, ofereça respostas significativas, altere prováveis posições preconcebidas e estabeleça um diálogo enriquecedor conseqüente e, finalmente, permita decisões adequadas (VIANNA, 2000, p. 76-77).

Quanto ao global, Morin enfatiza Que este vai além do contexto. Por ser um "conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter retroativo ou organizacional" (2000. p. 37). Assim, o todo terá Qualidades ou propriedades não verifica das nas partes, caso estejam isoladas e algumas Qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo, sendo preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes (2000, p. 37).

O aspecto multidimensional é reconhecido em unidades complexas como o ser humano (biológico, psíquico. social, afetivo e racional) e a sociedade (dimensão histórica, econômica, sociológica. religiosa etc.) e "o conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional" (MORIN, 2000. p. 38). Esse mesmo conhecimento deve enfrentar a complexidade que Morin conceitua como a união entre a unidade e a multiplicidade.

"Em conseqüência, a educação deve promover a "inteligência gera'" apta a referir-se ao complexo. ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global" (MORIN, 2000, p. 39).

Em entrevista datada de 27 de julho de 2002, concedida à TV Cultura, no programa Nossa Língua, o economista Flávio de Almeida Prado declarou que é difícil se fazer compreender o óbvio. De imediato a afirmação pode parecer algo que não chame a atenção, entretanto seu relato se referia às suas experiências profissionais com empresários no tocante à necessidade de possibilitar Que qualquer tipo de profissional possa trabalhar naquilo que gosta. Porque para Prado ninguém faz bem feito aquilo que não gosta de fazer (entrevista, 27/07/2002).

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Estimular alguém a fazer o que gosta é um desafio pertinente à concepção de uma proposta educacional que reconheça a importância do estímulo da inteligência geral. Tal concepção necessita de uma íntima interação com os procedimentos e princípios preconizados na teoria da avaliação educacional, já que para reconhecer habilidades e gostos profissionais é necessário o estabelecimento de critérios e medidas para que sejam realizadas ações comparativas que agucem as percepções de avaliadores, no refinamento dos estímulos e compreensão das respostas, assim como dos avaliados, sensibilizando-os adequadamente às suas efetivas preferências profissionais.

Assim,

(...) a educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais, e de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Esse uso total pede o livre exercício da curiosidade. a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, Que com freqüência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, despertar (MORIN,2000, p.39).

Atualmente, para muitas pessoas, a escolha de uma profissão está arraigada às leis do mercado de trabalho. O ideal de exercício profissional associado às habilidades pessoais está bastante comprometido pela falta de oportunidades empregatícias, pois há acentuada valorização de áreas específicas de trabalho com iniciativas de investimentos e o abandono de outras que não atendem aos interesses financeiros do modelo econômico vigente.

Em razão das suas várias necessidades, o trabalhador acaba por assumir funções para as quais as suas aptidões não combinam com as características e exigências operacionais de tais funções. Em decorrência, um dos efeitos diretos dessa situação é a insatisfação profissional que tende a se manifestar em diversificadas formas presentes nas relações de trabalho, chegando, até mesmo, em casos patológicos já que "(...) o trabalho torna-se perigoso para o aparelho psíquico quando ele se opõe à sua livre atividade" (DEOURS, 1994, p. 24).

No campo de estudo da avaliação educacional, há possibilidades de construção de contribuições metodológicas que objetivem associar a aptidão de alguém para determinada área de trabalho com o que esta pessoa possa assumir, consideradas também as exigências inerentes aos tipos de funções. Tais formulações podem ser direcionadas por vertentes teóricas dessa área do conhecimento concentradas na dimensão do ensino-aprendizagem ou na dimensão curricular. Quanto ao aspecto metodológico, vê-se possibilidades de construção de procedimentos avaliativos Que valorizem o conjunto de aptidões de cada pessoa e busquem ferramentas capazes de identificar potencialidades particularizadas.

Ainda assim,

(...) do ponto de vista de uma proposta pedagógica. Deve haver compatibilidade entre os motivos que a impulsionaram e a finalidade para a Qual está dirigida. Isto é, a coerência significativa entre 'motivo' e 'finalidade'

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constitui condição importante do desenvolvimento integral, criativo e transformador da personalidade, pois dessa forma passa a existir uma unidade integradora entre os motivos e os fins que determinam as realizações, os projetos e o trabalho escolar (FRANCO apud SOUSA,1995, p.24-25).

O terceiro saber necessário à educação do futuro e ressaltado por Morin é ensinar a condição humana, Quer dizer, "a educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal. Centrado na condição humana" (2000, p. 47), pois, para o autor, interrogar a condição humana é questionar nossa posição no mundo.

Para o profissional dedicado à avaliação, fica encarregada a tarefa de tornar compreensível o destino multifacetado do humano. Que conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os seres humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra (Morin. 2000, p, 61).

Ensinar a identidade terrena é o quarto saber necessário à educação do futuro idealizado por Morin. O estudioso acentua que todos os seres humanos vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e morte, já que estão unidos num mesmo destino ao qual chamou de planetário.

Assim, ao educador é importante conhecer e tornar conhecida a necessidade de aprender a estar no planeta Terra, ou seja, "aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos" (Morin, 2000, p. 76).

Dessa forma, Marin destaca que a transformação da espécie humana em verdadeira humanidade torna-se objetivo fundamental da educação que aspira principalmente à sobrevida da humanidade, ante a ânsia do progresso.

O século XX tornou evidente a consideração da imprevisibilidade para a tomada de consciência de que o futuro é aberto e imprevisível. Daí Morin caracteriza o quinto saber necessário à educação do futuro. Qual seja: enfrentar as incertezas, já que "o conhecimento é. pois. uma aventura incerta que comporta em si mesma, permanentemente, o risco de ilusão e de erro" (2000. p. 86).

A incerteza é o reflexo da época de mudanças vivida. Época em que tudo está ligado pelas redes virtuais e a complexidade das informações cresce em razão da multiplicidade de inter relações daí decorrentes. A incerteza deve ser considerada na medida da avaliação da veracidade, da qualidade, da pertinência, da interpretação, da aplicação das informações atualmente produzidas.

Como a educação para o futuro deve estar atenta à incerteza no processo de produção do conhecimento. Enfatiza-se a abordagem subjetivista nessa produção. Que dá desta que à atividade do sujeito que se torna responsável pela criação da sua realidade. E tal abordagem,

(...) Quando transportada para a avaliação educacional representou um avanço e norteou a geração de modelos de investigação mais completos e abrangentes.Enquanto no modelo "positivista" a ênfase avaliativa recai sobre a medida do produto observável, no modelo "subjetivista" a preocupação volta-se também para a

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apreensão das habilidades já adquiridas (ou em desenvolvimento), que não estão necessariamente refletidas nos produtos demonstráveis.Trata-se, agora, de captaro "subjetivo", penetrarna "caixa preta" dos processos cognitivos (FRANCO apud SOUSA. 1995. p.1920).

O cuidado que deve ser dado à compreensão e interpretação da realidade, nesse contexto de incertezas, justifica-se pelo fato de que a realidade não é facilmente legível.

"As idéias e teorias não remetem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa idéia da realidade" (MORIN, 2000, p. 85).

Como a leitura da realidade é tarefa difícil, fazer compreendê-la a outros assim também o será. Ensinar a compreensão é um problema crucial na sociedade atual porque, apesar do Planeta ser atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvidas há importantes e múltiplos progressos da compreensão.

Mas o avanço da incompreensão parece ainda maior. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade (MORIN, 2000, p. 93).

Nesse ínterim, Morin diz que, apesar de todas as condições tecnológicas hodiernas o problema da compreensão é crucia! advindo daí uma das finalidades da educação futura, já que a comunicação não garante a compreensão e que a compreensão humana vai além da explicação.

A compreensão no campo da avaliação é um aspecto primordial inerente à prática dessa atividade, já que a amplitude da capacidade do ser humano é imensa e precisa ser lida pelo educador com bastante zelo e interesse. É importante que ele esteja em condições de reconhecer a referida amplitude e a desnecessária e improdutiva padronização que em geral se quer como resposta do aluno aos conteúdos ministrados.

Nessa óptica é o que aponta Perrenoud, ao afirmar que não se concebe: "separar a reflexão sobre a avaliação de um questionamento mais global sobre as finalidades da escola, das disciplinas. do contrato pedagógico e didático e dos procedimentos de ensino e aprendizagem" (1999, p. 168).

O sétimo saber indicado por MORIN dá desta que à urgente necessidade em se priorizar uma convivência social mais humanizada e democrática em que não haja a dissociação indivíduo sociedade espécie, já que

(... ) são não apenas inseparáveis. mas coprodutores um do outro. Cada um destes termos é. ao mesmo tempo, meio e fim dos outros. Não se pode absolutizar nenhum deles e fazer de um só o fim supremo da tríade: esta é. em si própria, rotativamente, seu próprio fim. Estes elementos não poderiam, por conseqüência. Ser entendidos como dissociados: qualquer concepção do gênero humano significa desenvolvimento conjunto das autonomias individuais. das participações comunitárias e

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do sentimento de pertencer à espécie humana. No seio da tríade complexa emerge a consciência.Desde então, a ética propriamente humana, ou seja. a antropoética, deve ser considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano. Essa é a base para ensinar a ética do futuro (MORIN, 2000, p.106).

Diante desse contexto elaborado por Morin, vê-se o papel da avaliação educacional de extrema importância na construção da educação para o futuro, tendo em vista a estreita ligação entre os saberes necessários apontados pelo autor e a elaboração teórica, bem como a prática dessas idéias já comuns nesse campo do conhecimento.

3.1. Tipos de AvaliaçãoSEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE OS VÁRIOS TIPOS DE AVALIAÇÃO TIPOS DE AVALIAÇÃO

DE DIAGNÓSTICO FORMATIVA SOMATIVA

Finalidades

- Obter indicações sobre conhecimentos, aptidões, interesses (ou outras qualidades do aluno).

- Determinar a posição dos alunos no início de uma unidade de ensino, período ou ano.

- Determinar as causas subjacentes de dificuldades de aprendizagem.

- "Feed-back" ao professor e ao aluno relativamente ao progresso deste.

- Detectar os problemas de ensino e aprendizagem.

- Classificar os alunos no final de um período relativamente longo (por exemplo, unidade de ensino; período, ano, etc.).

Utilização - No início de uma unidade de ensino, período ou ano letivo.

- Durante todo o processo de ensino-aprendizagem quando o aluno

- Durante o processo de ensino-aprendizagem.

- No final de um período relativamente longo (por exemplo, unidade de ensino; período, ano, etc.).

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revela insistentemente incapacidade para aproveitar o ensino formal.

Objectivos sobre que incide a avaliação

- Cada objetivo importante da unidade.

- Uma amostragem representativa dos objetos considerados.

Aspectos a que a avaliação dá ênfase

- As aptidões, interesses, etc., que são julgados necessários (pré-exigidos ou desejáveis relativamente aos objetivos a atingir.

- Resultados da aprendizagem relativamente aos objetivos.

- Comparação dos diferentes resultados obtidos pelo mesmo aluno.

- Processo de ensino-aprendizagem que permitiu os resultados obtidos.

- Causas dos insucessos de aprendizagem.

- Resultados de aprendizagem relativamente aos objetivos.

Informação

- Informação global relativamente às capacidades detectadas.

- Descrição pormenorizada das capacidades reveladas.

- Apreciação relativamente a cada objetivo.

- Identificação, se possível, das origens das dificuldades observadas.

- Geralmente global visando uma classificação ou nota.

- Poder-se-á também considerar uma apreciação relativamente a cada objetivo.

Tipos de instrumentos

- Instrumentos de diagnóstico.

- Instrumentos formativos especialmente concebidos.

- Provas finais ou somativas.

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4. ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL: POLÍTICA E PRINCIPAIS PROGRAMAS ATUAIS

Antes do compromisso,Há hesitação, há oportunidade de recuar,

Urna ineficácia permanente ...No momento em que nos comprometemos

De fato, a Providência também age.Ocorre toda espécie de coisas para nos ajudar,

Coisas que de outro modo nunca ocorreriam.Toda vez que urna cadeia de eventos emana da

decisão,Fazendo vir em nosso favor todo tipo de

Encontros, de incipientes e de apoio imprevistosQue ninguém poderia sonhar

Que surgiriamEm seu caminho ...

A ousadia traz em si o gênio, o poder e a magia.(Goethe)

Este capítulo se propõe a dar algumas informações sobre a Avaliação do Sistema Educacional Brasileiro, a partir da década de 90; portanto, no contexto da discussão da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996. Numa ordem cronológica, foram implementados os seguintes sistemas de avaliação, pelo MEC:

1. O SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica, em 1990;2. O PAIUB Programa de Avaliação Institucional das Universidades

Brasileiras, em 1993;3. O ENC Exame Nacional de Cursos, conhecido como "provão" e a

Avaliação de Condições de Oferta, para a educação superior, em 1995;4. O ENEM Exame Nacional do Ensino Médio, o "provão do ensino

médio", em 1995;5. O PAS Programa de Avaliação Seriada, alternativa para o exame

vestibular, através do aproveitamento de notas obtidas numa prova e os resultados do ENEM, a partir de 1998.

Farei alguns comentários sobre o SAEB e o ENEM, sistemas que atingem o Ensino Fundamental.

4.1. SAEB: O Primeiro Grande Sistema de AvaliaçãoO SAEB foi implementado pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais, em 1990, e visa avaliar a aprendizagem dos alunos da Educação Fundamental e Média. Busca, através de realização de prova:

a) Aferir conhecimentos e habilidades dos alunos, nas diversas áreas do saber, mediante a aplicação de provas não com a intenção de "avaliar" o aluno, senão com a finalidade de ponderar a qualidade e competência do ensino ministrado;

b) Verificar os fatores contextuais e escolares que incidem na qualidade da Educação Básica ministrada ..., a saber: características de infra-estrutura, perfil do diretor e mecanismos de gestão escolar, perfil do professor,

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sua prática pedagógica, características socioculturais e hábitos de estudo do aluno;

c) Acompanhar a evolução de desempenho dos alunos e dos diversos fatores incidentes na qualidade e efetividade do ensino ministrado.

Alguns questionamentos são feitos pela comunidade educacional em relação à viabilidade desses objetivos, tendo em vista os critérios e instrumentos utilizados, tais como:

• Pela aferição da aprendizagem pode-se avaliar a qualidade do ensino? Somente uma prova tem essa abrangência?

• Os conceitos "bom" ou "ruim", e as avaliações que se baseiam em juízos de valor, empregados nos instrumentos de informação sobre fatores relacionados à escola e o ambiente externo, desvelam a real situação da escola? Ajudam a encontrar as causas e a formular ações para superá-las?

• Uma única aferição, uma prova, é suficiente para aferir conhecimentos e habilidades e "acompanhar a evolução do aluno e da escola"?

Na prática, o SAEB é composto por um conjunto de provas (Português, Matemática e Ciências Naturais, para o Ensino Fundamental, e Física, Química e Biologia, para o Ensino Médio), aplicadas nas 4ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e na 3ª série do Ensino Médio, e de quatro questionários aplicados ao professor, diretor, aluno e outro sobre a escola.

Os resultados do nível dos alunos nos conteúdos e competências consideradas mínimas e as informações sobre a escola pretendem que sirvam para definição de políticas corretivas das ineficiência do sistema. Mas o conteúdo das provas e seus resultados é motivo de grande preocupação. Vejamos o que nos diz o documento intitulado Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB (1997:6) ... os resultados de uma avaliação de âmbito nacional acabam orientando, além da revisão de políticas, a definição de projetos pedagógicos de Secretarias e escolas e o próprio cotidiano do professor, pois acredita-se que, no bojo do avaliado, está implícito que deveria ser ensinado.

A professora Isaura BELLONI (2000) faz o seguinte alerta sobre esta questão:

... os próprios formuladores do governo reconhecem o perigo das provas padronizadas e seus efeitos negativos no cotidiano da escola. As provas do SAEB podem tornarse mais importantes que as matrizes curriculares, que a competência e a criatividade do professor, que o projeto pedagógico da escola, que as características e necessidades de cada aluno em seu contexto cultural e social. O grande medo é que os conteúdos das provas definam os conteúdos a serem ensinados. E, com isso, haveria um "nivelamento por baixo", pois os conteúdos das provas, que são "mínimos", passariam a ser "máximos", com sérios e irremediáveis prejuízos para os alunos e para a sociedade.

Em outras palavras, simplifica-se o ensino através de uma padronização de conteúdos generalizados e nivelados por baixo.

É aqui que surge a seguinte questão: o que aprova a prova? O que prova a prova? Uma prova não ...

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· dá conta da diversidade cultural e ambiental de um país;· substitui a riqueza e a diversidade das culturas regionais.Uma prova pode ....· tornar-se"padrão de referência", que levará à homogeneização ou massificação;· reforçar a cultura dominante, veiculada pelos meios de comunicação;· desvirtuar o papel da escola na formação plural do cidadão e na

preservação da pluralidade cultural da sociedade;· estimular a criação de "cursinhos", independentes do sistema regular

de ensino, proporcionando, assim, um excesso do consumismo educacional paralelo;

· agredir a história, valores e ritmos de cada escola.· O SAEB, embora instituído antes da LDB/96, não sofreu alterações, a

partir dela, confirmando seus princípios, objetivos e sistemática.

4.2. ENEM: Exame Nacional do Ensino MédioO ENEM foi criado em 1995, mas implementado, pela primeira vez, em

1998. Consta de prova única vez, questões objetivas e uma redação. Tem como objetivo: Avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para afrir o desenvolvimento das competências fundamentais ao exercício da cidadania.

A partir no ENEM é voluntária, mediante pagamento atual de R$ 25,00 (vinte cinco reais) e é aplicado nas capitais e em alguns municípios, dependendo do número de inscritos. É apresentado aos alunos como vantajoso, pois substitui alguma prova do vestibular.

Em documento de divulgação para os alunos, estão emuneradas as seguintes razões para fazer o ENEM:

· Saber como você usa o que aprendeu na escola para resolver problemas do dia-a-dia; saber se você está pronto para o mercado de trabalho ou para a universidade;

• saber em que áreas você precisa melhorar mais para ter sucesso no trabalho ou nos estudos futuros;

• saber quais as escolhas que se adaptam mais às suas competências;• olhar para você mesmo neste momento e avaliar suas chances

futuras.Várias críticas são feitas à ambição. e abrangência dos objetivos do

ENEM.Dentre elas, podemos citar:• É ambicioso querer avaliar, por uma única prova, possibilidades para

o mercado de trabalho e chances futuras.• Os objetivos são amplos e variados. Como saber se houve

aproveitamento, no cotidiano, dos estudos feitos, por uma prova?• Há inconsistência pedagógica e psicossocial na proposta, com grande

reforço à competição.• Antecipa atitudes e comportamentos.• Acumula frustrações nos alunos.• Desperdiça tempo e dinheiro público.• Trabalha com a idéia enganosa de que se está fazendo "o melhor".É como diz Isaura BELLONI (2000): Os exames gerais (tipo ENEM e

Provão) apresentam inconsistências que merecem aprofundamento analítico e acompanhamento. Gostaria de destacar uma avaliações introduzem ou reforçam valores sociais. Nos exames gerais, a competição e não a

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cooperação passa a ser o valor predominante entre os estudantes na fase final de sua adolescência. A cooperação, o trabalho em grupo, o estudo coletivo tendem a ser abandonados, pois todos estarão competindo direta e indiscriminadamente, não apenas por uma vaga na universidade, mas por boa posição no ranking deste exame geral. Cada colega representa um competidor e deixa de SN um parceiro e companheiro na vivência dos desafios da aprendizagem.

Antes da conclusão desta fase delicada de formação, o estudante de ensino médio deverá concentrar-se em definir seu futuro, antecipando atitudes e comportamentos e acumulando frustrações.

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