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CRISTIANISMO: A MENSAGEM ESQUECIDA

Esta obra, no dizer do próprio Autor, HERMÍNIO C. MIRANDA, ...“É um documento critico, como não poderia deixar de sê-lo, não, porém, um ensaio sobre o desespero. Nem uma agressão ou gesto de hostilidade a esta ou àquela denominação cristã inevitavelmente envolvida na exposição dos argumentos suscitados”.

Assim, portanto, é um documentário extraordinário da Missão de Jesus à luz do Espiritismo. Aprofundamento sobre a magna questão que caracteriza a Segunda Revelação Divina destacada | por Allan Kardec.

As pesquisas feitas pelo culto e estimado r Autor, registrados no livro, fazem desta obra oportuna e valiosíssima um convite ao conhecimento especializado a todos os que se interessam pelo assunto.

HERMÍNIO C. MIRANDA coloca em nossas mãos um livro que realmente estava faltando, preenchendo uma lacuna na volumosa e importante bibliografia espírita.

LANÇAMENTOS OPORTUNOS CULTURAIS-DOUTRINARIOSCRISTIANISMO: A MENSAGEM ESQUECIDAHERMINIO C. MIRANDACRISTIANISMO: A MENSAGEM ESQUECIDA TERCEIRA EDIÇÃO 15ª ao 17a milheiroDezembro de 2001Composto e Impresso:Casa Editora O Clarim(Propriedade do Centro Espírita O Clarim).Fone: (0xx16) 3382-1066Fax: (0xx16) 3382-1647C.G.C. 52313780/0001-23 Inscr. Est. 441002767116Rua Rui Barbosa, 1070-Cx. Postal, 09CEP 15990-903 Matão, SPhttp://[email protected] CATALOGRÁFICA

PREFÁCIOCicatrizavam-se ainda os ferimentos produzidos pela 1ª Guerra Mundial, quando um

grupo de teólogos e pensadores cristãos resolveu escrever um estudo sobre a crise em que mergulhara a sociedade de então. Chamou-se o livro CHRISTIANITY AND THE CRISIS (1) e foi publicado na Inglaterra, em 1933.

Embora não especificamente formuladas, duas questões básicas se colocavam como motivadoras do alentado volume: 1) Teria falhado o cristianismo na tarefa de ordenar uma sociedade, senão ideal, pelo menos razoavelmente equilibrada e feliz? 2) Teria ainda o cristianismo condições de realizar essa tarefa?

Se falhara o cristianismo, por que? Se podia corrigir situações críticas, ou, no mínimo, dar uma contribuição decisiva nesse sentido, que medidas teria de adotar e sugerir?

O Dr. A. Herbert Gray lembra, no ensaio de sua autoria, que muitos consideram inadequada a mensagem de Jesus, que apenas teria servido para aqueles tempos e no contexto

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em que ele viveu, mas não para as complexidades e sofisticações da nossa era. Ou, quem sabe, a mensagem seria ainda válida, mas o ser humano, em geral, não a entendeu ou, mesmo entendendo-a, deixara prevalecer a dureza de coração que o próprio Cristo assinalara?

Esta última hipótese era de considerar-se, mas não explicava tudo. Quem sabe as Igrejas o plural é do Dr. Gray não haviam estado todo esse tempo a trabalhar com um modelo de cristianismo diverso daquele que propunha Jesus? Neste caso, então, o que a sociedade moderna estava rejeitando, com o esvaziamento dos templos, que se intensificaria posteriormente, não era o cristianismo autêntico de Jesus, mas uma doutrina adulterada que pouco ou nada teria a ver com o que ele ensinou.

Seja como for, não havia mais espaço para dúvidas: o cristianismo vigente não tinha respostas adequadas para as mazelas da civilização. Por isso, propunha o autor o retorno às origens, ignorando teólogos, comentaristas e até apóstolos, inclusive Paulo, de volta a Jesus.

— Não queremos o Cristo dos credos — bradava ele —, mas o profeta campesino que fala num tom de voz que exige atenção.

Mais de meio século passou por cima de tais especulações. Muita coisa aconteceu e nada aconteceu. Se havia uma crise na década de 30, que dizermos deste entardecer do século XX? O mundo vive, dorme, tem pesadelos à noite e desperta, pela manhã, em cima de um depósito descomunal de armas nucleares capazes de desintegrá-lo numa imperceptível fração do tempo que levou a sua formação.

E inadmissível a ideia de que o cristianismo não tenha uma contribuição de vital importância para reordenação da caótica sociedade em que vivemos. Tem. Mas que tipo, que modelo de cristianismo produzirá esse milagre? Obviamente, não é nenhum desses que aí estão estruturados institucionalmente.

Este livro é, pois, uma reflexão sobre a aflição, escrito sob a pressão da urgência. E um documento crítico, como não poderia deixar de sê-lo, não, porém, um ensaio sobre o desespero. Nem uma agressão ou gesto de hostilidade a esta ou àquela denominação cristã inevitavelmente envolvida na exposição dos argumentos suscitados. E passado o momento de identificar culpados, acusá-los e condená-los. O que precisa ser identificada, com urgência, é a verdadeira face do cristianismo e recuperado o conteúdo da esquecida mensagem do Cristo, sem as complexidades teológicas, sem a rigidez cadavérica do dogma, sem o ritualismo vazio. Antes de desenhar o perfil do cristão ideal, como desejam teólogos modernos, imperioso é redefinir, com poucos e seguros traços, o do próprio cristianismo, desfigurado por séculos de desastradas manipulações e desastrosos abusos.

Ao contrário do que fomos induzidos a crer, o pensamento de Jesus é de desconcertante simplicidade e nitidez, pois a Verdade é tão simples, iluminada e transparente quanto transcendente. Não há necessidade de toda uma vasta arquitetura teológica e hierárquica para gerir a nossa vivência espiritual. O próprio Cristo deixou isso bem claro ao ensinar que a Verdade se oculta sutilmente aos sábios e presunçosos e se mostra, em todo o esplendor da sua singular beleza, aos simples, mansos e humildes. Por isso, lhes atribui, a estes, a prioridade na implantação do Reino de Deus, a herança da Terra e a visão transcendental da divindade.

Somos todos testemunhas e vítimas dessa realidade perversa: a de eruditos tentando ensinar uma verdade que ignoram, aos simples, que a conhecem pela força mágica da intuição.

O Reino de Deus tema central da pregação de Jesus se resume na realização do amor na intimidade de cada um. Feito isso, descobriremos, felizes e perplexos, que também no mundo em que vivermos seja ele onde for estará implantado o império da paz.

Prevalece, por enquanto, a irretocável observação do Cristo:Os homens desejam a paz, mas não buscam as coisas que trazem a paz.

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1. O PROBLEMAFoi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos receberam o nome de cristãos (Atos 11:26)

Em comemoração aos quatro séculos e meio da Reforma Protestante, o TIME dedicou a sua 'cover story', em 24 de março de 1967, a uma espécie de reavaliação da obra iniciada por Lutero, em 1517. Lembro-me do impacto que me causou a informação de que um conclave internacional que reunira, em 1963, as melhores cabeças pensantes do protestantismo não conseguira interpretar, em termos modernos, o conceito fundamental da doutrina reformista, ou seja, a da justificação pela fé.

E me perguntava ingenuamente, é certo se a comunidade protestante mundial se dera conta da gravidade de tal impasse. Achava eu que a desconfortante descoberta deveria provocar algo como uma crise de identidade no movimento protestante ou, pelo menos, um reexame em profundidade nas estruturas da sua teologia. Tanto quanto pude observar, nada disso aconteceu. Continuou tudo como sempre, ou seja, a mesma pregação básica e as mesmas práticas tradicionais, variando apenas, aqui e ali, no tempo e no espaço, diferentes tipos de ênfase sobre este ou aquele aspecto particular.

Como explicar a mim mesmo, um curioso e atento 'outsider', que tenham sido inconclusivos os debates em torno do moderno conceito de justificação? De que maneira, então me perguntava eu -, havia evoluído a doutrina protestante a partir de Lutero, que, por sua vez, fora buscar em Paulo os fundamentos do seu ideário? O que estaria restando do protestantismo sem um claro entendimento da justificação? Quais as suas tônicas? Que propostas estaria apresentando, no mundo moderno, aos que buscam explicar a vida? Que opções estaria oferecendo? Que esperanças? Que perspectivas? Ou, mais amplamente ainda, que era ser cristão? O que buscam e esperam os que se dizem cristãos? Salvação? Mas o que é salvar-se? A fé salva, dizem os pregadores. E o que é fé? Um impulso espontâneo e criativo gerado no próprio ser, ou dom indefinível, dádiva incompreensível, acaso feliz? E que tipo de fé? Passiva, desligada da responsabilidade pelos próprios atos? Ou seja: fé desinteressada das obras?

Talvez por causa dessas e de inúmeras outras perguntas que me ocorriam, decidi assumir a modesta condição de teólogo amador e, ainda por cima, autodidata, no esforço de tentar encontrar respostas. E qje a linguagem dos meus 'colegas', profissionais da teologia com as raras e honrosas exceções de praxe era (e continua) impenetrável ao entendimento dos vis mortais, como eu. Além do mais, acostumei-me a pensar com a minha própria cabeça, certo de que as mais convincentes respostas são aquelas que nós próprios encontramos, ordenamos e formulamos. Outra observação importante cabe aqui. A busca não estava sendo impulsionada sob a pressão de inquietações e angústias pessoais minhas. Eu tinha (e tenho) as 'minhas' respostas, não especificamente em termos de teologia protestante ou católica, pois não faço parte de seus respectivos quadros, mas é certo que me sentia estimulado pelo desafio de compreender as razões de uma situação que me parecia esdrúxula, ou seja, como pode sobreviver e manter-se estruturada e atuante uma doutrina cujos postulados básicos se tornaram inexplicáveis ou inaceitáveis à mente moderna? Que, em outras palavras, distanciou-se ou até mesmo desligou-se de suas origens, de sua motivação inicial?

Sem que nisto vá a mínima intenção depreciativa, é legítimo perguntar-se ainda: Será que o humilde pastor ou pároco das diminutas comunidades de crentes espalhadas por todo o mundo sabe que uma parte considerável das suas respectivas teologias já desmoronou? Que a outra parte está sendo questionada, reavaliada, reexaminada, reinterpretada em termos que a tornaram, no mínimo, incompreensível e, se compreendida, inaceitável, em confronto com seus dogmas oficiais?

Ainda há pouco, me dizia alguém, aí pelo interior, que seu irmão tivera de vender o

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aparelho de TV porque se tornara 'crente', ou seja, membro de uma das humildes comunidades protestantes. Que tem isso a ver com a doutrina cristã? Para ser cristão tenho de vender a minha televisão? Por que?

Percorrendo o dial de um rádio, há tempos, em busca da hora certa, dei com um pastor a discorrer sobre o Juízo Final, que considerava iminente. Achava ele que o Cristo viria à Terra em duas etapas: da primeira, para recolher e levar consigo todos os que pertencessem à SUA Igreja obviamente, a igreja do orador e da segunda, então, para julgar os demais, que, aliás, já estariam, a meu ver, julgados e condenados pelo simples fato de não terem integrado a primeira leva de pessoas rumo ao céu.

Não cometo a imprudência e a indelicadeza de julgar que o caro amigo pastor fosse insincero ele falava com a maior convicção e obviamente acreditava naquilo que dizia. Estou disposto a ouvir, também, a contestação de que essa pode não ser a melho teologia protestante, mas é indiscutível que são essas as ideias que, em inúmeros grupamentos, pelo mundo a fora, estão sendo levadas ao homem e à mulher que se consideram cristãos, e às crianças que se preparam para sê-lo, em futuro próximo.

E claro que o nosso pastor radiofônico, imbuído das melhores intenções e das mais puras motivações, não tem notícia do que hoje se discute e especula ou, se a tem, prefere ignorar o debate. O certo é que se questiona, no âmbito do cristianismo, a verdadeira essência da temática de seus sermões, radiofonizados ou não, dos seus escritos em jornais e folhetos, de tudo aquilo, enfim, que os trabalhadores mais modestos da seara divulgam como sendo a boa moeda cristã, com a qual o crente está convicto de adquirir o seu lugarzinho no céu, a salvo dos horrores do inferno, livre, afinal, das pressões insuportáveis do demônio.

Seria ridículo dizer que estou preparado para alinhar todas as respostas às perguntas que a mim mesmo formulei, ao ler a reportagem do TIME. Creio, porém, estar, hoje, em melhores condições de debater com o leitor inteligente e aberto alguns desses desconcertantes aspectos. E é precisamente para isso que o convido: para pensarmos juntos, a ver se entendemos o que está se passando com o que hoje conhecemos pelo nome de cristianismo.

Comecemos por algumas perguntas bem simples, das mais simples possíveis. Esta, por exemplo: Que é um cristão?

Do, ou relativo ou pertencente ao cristianismo ensina Aurélio Buarque de Hollanda (3) Que professa o cristianismo.

Cristianismo, ainda segundo o Prof. Aurélio, é "o conjunto de religiões cristãs, i.é., baseadas nos ensinamentos, na pessoa e na vida de Jesus Cristo: o catolicismo, o protestantismo e religiões ortodoxas orientais".

São definições sensatas, inteligentes e sintéticas. Mais não se pode exigir de um dicionário.

Já o dicionário de Funk & Wagnalls (4) e, com ligeiras variações, o Webster (5), dizem o seguinte, que traduzo: "Cristão aquele que professa ou segue a religião de Cristo". Coisa parecida diz o Larousse (6) que, também, traduzo: "Cristão aquele que é batizado e professa a religião do Cristo".

O que nos leva a colocar novas perguntas: Há uma religião do Cristo? Ou seja, teria ele fundado especificamente uma religião? Ou, ainda, de outra maneira: o que hoje conhecemos por cristianismo é a fiel e exata expressão do pensamento de Jesus Cristo? O cristianismo moderno é cristão? Só pode ser cristão aquele que foi batizado? Ou que esteja formalmente ligado a uma das várias seitas ditas cristãs e suas numerosas ramificações? Qual delas? Somente posso considerar-me cristão, seguidor, admirador, estudioso, praticante dos princípios éticos pregados pelo Cristo se pertencer a alguma dessas ramificações? A ser inevitável a afirmativa, como parece ser, no entendimento dos ministros das várias seitas todas exclusivistas, naturalmente teria de haver, por exemplo, uma organização bem estruturada e hierarquizada, à qual se filiasse aquele que desejasse declarar-se adepto das

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ideias de Sócrates ou de Aristóteles. Ressalvo, antes de qualquer interpretação apressada, que não considero o Cristo um mero filósofo, e nem Sócrates ou Aristóteles foram meros filósofos. Estamos aqui especulando sobre se a adesão a um corpo doutrinário estratificado exige ou não, em princípio, algum título distintivo, rótulo específico ou forma particular de iniciação, juramento, fidelidade, aceitação irrestrita.

O 'mahatma' Gandhi, um dos mais categorizados espíritos do nosso tempo, foi grande admirador do Cristo e achava mesmo incongruente a disparidade entre o que constava nos textos evangélicos e o procedimento daqueles que se diziam cristãos. Não sendo cristão, segundo a precisa definição dos dicionários não era batizado e não professava a religião do Cristo ele foi cristão dos melhores, na prática do amor ao próximo, na mansidão, no entendimento fraterno, no viver limpo, correto, modesto, autêntico.

- Digo aos hindus declarou ele, certa vez que suas vidas serão imperfeitas se também não estudarem reverentemente os ensinamentos de Jesus.

- É possível para alguém, hoje disse o Padre Dino Belluci, da Universidade Gregoriana de Roma, citado pelo TIME deixar a igreja organizada e empenhar-se em continuar como cristão fora do cristianismo organizado.

Mesmo aqui, contudo, não nos livramos das perguntas. Esta, por exemplo: Como ser cristão fora do cristianismo institucionalizado, se dentro dele a conceituação é cada vez mais confusa? No entendimento do Padre Belluci, aquele que tentasse ser cristão fora do cristianismo estruturado estaria dispensado ou não dos sacramentos, dos rituais e da frequência aos templos, conservando apenas a prática da ética pregada por Jesus? Estaria esse cristão marginal salvo, segundo a Igreja?

Como percebe o leitor, voltamos sempre ao eixo principal em torno do qual giram todos os problemas deste universo de ideias: O que é ser cristão?

O teólogo suíço (católico) Hans Kung (7) escreveu um tratado de 700 páginas para tentar responder a essa única pergunta, aparentemente tão simples. O problema, contudo, está em que, antes de se tentar responder à pergunta "0 que é ser cristão?", temos de recuar um passo ou dois para uma questão anterior e prioritária: O que é cristianismo?

Raymond Brown (8), teólogo americano (também católico) escreveu seiscentas páginas exclusivamente sobre o nascimento de Jesus.

E forte a evidência de que o cristianismo, tal como é hoje conhecido, necessita urgentemente de ser repensado. E que, a despeito das dúvidas levantadas quanto aos textos sobreviventes, é ao Cristo que precisamos retornar para um confronto honesto e dramático entre o que ele ensinou e o que hoje temos como seu.

Há, pois, certa unanimidade na perplexidade, que indica a imperiosa necessidade de um retorno às origens, para reexaminá-las piais uma vez, na tentativa de reconstituir os caminhos percorridos. Ou, para dizêlo com maior precisão: para identificar os pontos em que a mensagem do Cristo derivou para os descaminhos.

2. A HISTORICIDADEI. JESUS EXISTIU MESMO?No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes, tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe, tetrarca da Itureia e da Traconítide, Lisânias, tetrarca de Abilene, sendo Sumo Sacerdote Anás, e Caifás, a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto. (Lucas 3:1-2)

Por muito tempo ninguém cogitou de questionar a realidade histórica de Jesus. Tampouco alguém procurou consolidá-la, utilizando-se da metodologia historiográfica para identificar e separar, ordenadamente, fatos para um lado e fantasias para outro. Situado muito além e

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acima da condição de mera personalidade histórica, Jesus divinizado seria um ser que transcendia limitações de tempo e espaço, dentro das quais se move a História e, portanto, insuscetível de apreciação fora do contexto ético-religioso. A historicidade assumia papel secundário para ceder as honras do procênio aos aspectos teológicos. Em outras palavras: o que importava em Jesus não era a sua historicidade, mas a sua pregação ou mais precisamente, as estruturas doutrinárias, institucionais e hierárquicas montadas sobre as ideias que ele propôs, ou lhe foram atribuídas.

Assim, as chamadas "vidas de Jesus" não tinham compromisso algum com a historiografia e seus métodos eram relatos edificantes e apologéticos, nada mais.

Tal situação prevaleceu enquanto não foram seriamente questionados os princípios básicos da doutrina cristã, da qual uma única instituição eclesiástica mantinha severo monopólio.

A contestação mais veemente de alguns desses aspectos, que encontrou sua expressão na Reforma Protestante do século XVI, acabaria por suscitar, no devido tempo, não apenas o reexame das ideias atribuídas a Jesus, mas o de sua própria personalidade. Tornou-se necessário redescobrir o Cristo, reavaliar seus ensinamentos, reinterpretar alguns dos mais cristalizados conceitos acerca do que se conhecia como cristianismo, procurando traduzi-ios não apenas em termos semanticamente inteligíveis à mentalidade mais especulativa dos novos tempos, como fazer da proposta de Jesus uma opção viável para esses tempos e com eles compatível.

Entenderam muitos que antes de qualquer tentativa de reformulação de tais postulados, tornava-se necessário determinar, acima de qualquer dúvida ou contestação, a historicidade de Jesus, ou seja: existiu, mesmo, no âmbito da História, um ser humano real com as características mínimas que nos permitissem identificá-lo com a imagem preservada pela tradição?

Era o que cabia apurar. A essa tarefa, nada fácil ante a escassez quase inexistência de documentação historicamente confiável, dedicaram-se alguns dos mais brilhantes e eruditos talentos, especialmente na Alemanha, até hoje o grande centro de especulações em torno de Jesus. Queriam esses estudiosos entender melhor o seu pensamento a partir de uma visão mais nítida de sua personalidade, observada de um ponto de vista essencialmente histórico, ou, pelo menos, mais histórico do que teológico.

O primeiro ensaio de vulto nessa direção partiu de Hermann Samuel Reimarus (1694 1768), professor de línguas orientais, nascido em Hamburgo, Alemanha. Preconizava ele uma religião racional, em contraposição à sustentada pela fé, como propunham as Igrejas cristãs. Sua obra mais importante, um tratado de mais de quatro mil páginas, permaneceu, em sua maior parte, inédito. O pouco que foi impresso e divulgado esparsamente até 1778, suscitou memoráveis controvérsias.

No seu clássico e erudito estudo, o Dr. Albert Schweitzer (9) não poupa elogios a Reimarus, especialmente ao fragmento denominado OS OBJETIVOS DE JESUS E SEUS DISCÍPULOS, que considera...

- ...não somente um dos mais importantes acontecimentos na história da crítica, como, também, uma obra prima de literatura geral.

Mas, como reconhece Schweitzer, nas primeiras páginas do seu livro, ao expor o problema da historicidade de Jesus,

- ...não somente cada época encontrou seu reflexo em Jesus; cada indivíduo criou-o de acordo com o seu próprio caráter. Nenhuma tarefa histórica revela tanto da verdadeira natureza de um homem como escrever uma Vida de Jesus. Nenhuma força vital é injetada na figura a não ser que o autor sopre sobre ela todo o ódio ou todo o amor de que seja capaz. Quanto mais forte o amor, ou quanto mais intenso o ódio, mais viva é a figura resultante.

Acha mesmo o Dr. Schweitzer que os mais impressionantes estudos acerca de Jesus

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foram produzidos pelo ódio: Reimarus e David F. Strauss.Praticamente, todos os grandes temas a serem desenvolvidos pelas obras destinadas a

montar uma imagem racional e histórica de Jesus constavam do vasto, erudito e apaixonado estudo de Reimarus, mas terminou tudo em discórdia inconclusiva.

Seja como for, Reimarus abriu os portões para um novo território especulativo: a busca do Jesus histórico, racional, ou, pelo menos, inteligível à mentalidade moderna, contexto no qual avultam nomes como os de Paulus, Schleiermacher, D. F. Strauss, Bruno Bauer e Renan, entre outros.

Para compreender Strauss, acha o Dr. Schweitzer que temos de amá-lo, a despeito de suas asperezas. Em verdade, Strauss é um escritor arrogante e convencido. Não é homem de meias-palavras ou expressões adocicadas e modestas. Ele diz exatamente o que pensa, de maneira contundente, doa a quem doer.

- Desta vez escreveu no prefácio da sua NOVA VIDA DE JESUS (10) -, pelo contrário, escrevi para os leigos e esforcei-me por tornar as minhas proposições inteligíveis a todo o homem cultivado e capaz de pensar. Quanto aos teólogos (falo dos profissionais), pouco me importa que me leiam ou que me não leiam.

Seu livro é um colossal esforço em destruir para sempre a ideia do milagre e acabar com o problema da divindade de Jesus. Não é, contudo, um iconoclasta irresponsável, disposto a tudo, para demolir também a figura do Cristo. Ao contrário, tem afirmativas surpreendentes, como esta:

- Só compreendem o cristianismo como cristãos os que o apreendem como iniciação da humanidade a uma consciência mais íntima e mais completa de si mesma, que reconhecem em Jesus o homem em quem esta consciência surgiu primeiro como lei absoluta da sua natureza e da sua vida, e que se esforçou por dela se compenetrarem bem e por a assimilarem, por assim dizermos, ao seu próprio sangue. Está aí a purificação e a salvação.

O cristianismo teria um sistema transitório e outro permanente de ideias cabendo a quem tivesse competência para fazê-lo, marcar com nitidez os limites que separavam um do outro, em benefício dos que buscavam a verdade, a fim de seguirem rumo à genuína salvação, rejeitando as simples opiniões que se haviam introduzido na doutrina cristã.

Schweitzer considera a NOVA VIDA DE JESUS, de Strauss, "uma das coisas mais perfeitas em todo o espectro da literatura de erudição".

Em mais de mil e quatrocentas páginas prossegue Schweitzer não há uma frase supérflua; sua análise desce aos mínimos detalhes, mas ele não se perde neles; o estilo é simples e pitoresco, às vezes irônico, mas sempre digno e distinto.

Quanto ao milagre e a tudo quanto possa lembrar o que a terminologia imprecisa e inadequada chama até hoje de sobrenatural, Strauss não apenas rejeita-lhes o conceito e a possibilidade de terem ocorrido, como revela sobre o assunto uma hostilidade mal-humorada, impaciente e irredutível.

Para ele, as aparições póstumas de Jesus, bem como a ressurreição e a ascensão, não passam de montagens mitológicas, ou, então, a morte de Jesus foi apenas aparente. Em suma; se a ressurreição foi real, a morte não o foi, e vice-versa.

Aliás, todo o segundo volume da sua NOVA VIDA DE JESUS é elaborado em torno do problema do mito. Sua tese básica que, sob muitos aspectos, prevalece até hoje — consiste em "mostrar como a biografia de Jesus foi amoldada, acomodada" para dar apoio a certas fases do desenvolvimento das tendências e dogmas da igreja nascente, o que, aliás, é parcialmente verdadeiro.

Há, a seu ver, três grupos de mitos: 1) os das origens, isto é, anunciação e nascimento; 2) os da vida pública, e 3) os da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

Acha ele, para concluir, que a verdadeira grandeza moral de Jesus está na sua condição humana, que empresta autoridade aos seus ensinamentos, em vez de situá-los como mandatos

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divinos. Jesus provou com a sua vida que é possível ser grande em termos de natureza humana, o que não teria a mesma força se o fizesse na condição sobre-humana, ou seja, divina, pois claro está que Strauss não admite a divindade de Jesus.

A despeito de sua erudição e até de certa boa vontade com relação à figura ímpar de Jesus, Strauss, disposto a demolir uns tantos dogmas milenares, saiu para a luta equipado de outros tantos dogmas pessoais que frustraram o seu projeto de racionalização, de vez que partiu ele de certos pressupostos que considerava indiscutíveis, como o da sumária rejeição do milagre, do sobrenatural, da imortalidade e da sobrevivência do ser. Muniu-se, portanto, de recursos inadequados à sua tarefa, tentando avaliar, através de Jesus, com instrumentação rigidamente materialista, uma doutrina e um processo concebidos e levados a termo sobre bases eminentemente espiritualistas. Não que tenhamos de ser, necessariamente, cristãos para estudar o cristianismo, ou budistas para examinar o conteúdo do budismo, mas, num cometimento desses, temos de assumir posturas mais liberais, cautelosos e até desconfiados, mas de sarmados perante o contexto que pretendemos estudar. Ninguém pode achar aquilo que não se dispôs a procurar. Em outras palavras: temos de entrar na água, se quisermos estudar a vida dos peixes, no seu habitat, pois é ali que eles vivem, e não impor-lhes a condição de se transferirem para o nosso contexto, a fim de que possamos estudá-los à nossa comodidade

Podemos até admitir certas posturas de Strauss, como aquela com a qual inicia seu relato (PROLEGÔMENOS, Capítulo II DOS EVANGELHOS COMO FONTES DA VIDA DE JESUS), onde se lê:

Já o dissemos, e temos tentado demonstrá-lo por exemplos: os evangelhos considerados como verdadeiras fontes históricas, tornam impossível uma visão histórica da vida de Jesus.

Realmente, os Evangelhos são documentos essencialmente apologéticos e não relatos biográficos, no sentido moderno. Os evangelistas não são historiadores ou biógrafos; são pregadores de uma nova filosofia religiosa para a qual buscam convencer os adeptos em potencial. Isso não quer dizer, porém, que a História esteja autorizada a rejeitar esses escritos, em bloco, como se fossem relatos fantasistas, pura ficção, mesmo porque a temática dos Evangelhos, ainda que imperfeitos, retocados e acomodados, gravita em torno da figura e dos ensinamentos de uma personalidade inquestionavelmente histórica. E mais: essa personalidade, com a sua breve presença temporal, mudou para sempre o curso da História, dividindo-a em duas porções cronológicas e deixando com a humanidade uma herança importantíssima que até hoje não foi corretamente avaliada compreendida e posta em prática.

Por outro lado, por mais que questionemos a historicidade de numerosas passagens e ensinamentos evangélicos, ali está preservado um núcelo de ideias do mais nobre teor ético, a começar pelo princípio universal da fraternidade humana e do amor, como elemento ordenador da vida; o conceito da paternidade divina, em contraposição à antiga ideia de um Deus ciumento, vingativo, mal-humorado e temível. Em lugar do "temer a Deus" e do "olho por olho", Jesus propõe o "amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo".

O radicalismo de Strauss prejudicou bastante a sua visão de Jesus e da doutrina que ele pregou, ainda que sua crítica veemente seja positiva em importantes aspectos.

Como seria de esperar-se, o livro de Strauss suscitou vigoroso alarido. Dois grupos antagônicos alinharam-se logo, um para dar-lhe apoio e outro para combatê-lo. Entre estes últimos, cerca de metade aferrouse à questão do milagre, do que resultou, segundo Schweitzer, um desvio da teologia para o sobrenatural. (Novamente topamos com essa palavra-chave associada a outro mal definido termo, o milagre).

Strauss e seus admiradores e seguidores não cederam terreno na luta pela rejeição pura e simples do milagre, dando início ao que Schweitzer chama de "período da visão não-miraculosa da vida de Jesus". Os componentes da tese exauriram seus argumentos, não

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suficientemente convincentes, e, aos poucos, foram também cedendo suas posições. Daí em diante, o milagre recua cada vez mais para os bastidores da teologia, que passou como que a ignorá-lo diplomaticamente, como questão mais ou menos vexatória, para a qual não havia respostas aceitáveis e conclusivas.

Isto não significa declara Schweitzer que o problema do milagre tenha ficado resolvido. Do ponto de vista histórico é realmente impossível resolvê-lo, uma vez que não temos condição de reconstruir o processo dentro do qual uma série de narrativas miraculosas foram suscitadas, ou uma série de ocorrências históricas transformadas em ocorrências miraculosas. Tais narrativas devem ser simplesmente abandonadas com um ponto de interrogação diante delas.

Como se vê, até mesmo o Dr. Schweitzer, teólogo cristão do mais alto nível, declara a sua dificuldade no entendimento do fenômeno do milagre. Com uma ressalva importante e significativa: em vez de liquidar o assunto com uma declaração categórica de rejeição, ele tem o bom senso e a humildade de confessar sua inibição diante do problema, mantendo, porém, abertas as portas ao entendimento futuro.

Aí pela década de 60 do século XIX as controvérsias acalmaram-se num remanso, mas, em verdade, o espinhoso problema do milagre continua sendo passagem intransitável, não apenas para os que pretendiam excluí-lo, mas, surpreendentemente, para os que o aceitavam como dado histórico, mas não tinham como explicá-lo porque não o entenderam. Quem lê os teólogos modernos protestantes e católicos sabe que o impasse continua.

Sem solução para o problema, as conclusões têm sido, nestes últir mos dois séculos, a contar de Reimarus, as mais estapafúrdias. Tudo se disse de Jesus e sobre sua maneira de pensar. Vimos que Strauss, sem negar sua historicidade, opta pela desmitificação da sua figura que, para ele, era simplesmente um ser humano bem dotado, mas não Deus. Quanto aos milagres e aos marcantes eventos da vida de Jesus, adotou procedimento oposto, montando em torno deles uma complexa rede de mitos. Sem ter como explicá-los e sem poder ignorá-los, preferiu considerá-los como arranjos acrescentados às narrativas com o objetivo de atestarem a condição messiânica de Jesus, de vez que assim o exigiam as tradições endossadas pelo Antigo Testamento, no que, em parte, tem razão.

Bruno Bauer, também envolvido pelo conceito mitológico, acabou concluindo, na CRÍTICA DA HISTÓRIA DO EVANGELHO, que o Cristo histórico nunca existiu.

Anos mais tarde, Binet-Sanglé e dele não fala Schweitzer colocaria Jesus, sumariamente, na categoria dos alienados mentais com a sua lamentável obra LA FOLIE DE JÉSUS, na qual Jesus é considerado um paranoico.

Enquanto isso, continuavam a aparecer publicações de mera ficção, novos trabalhos ditos racionalistas e narrativas que Schweitzer classifica de "imaginativas" e de "liberais".

Sacrificaríamos muito espaço neste livro se fôssemos examinar tudo isso, mesmo com a palavra apressada de quem se limita a dar uma simples notícia.

A obra de Renan, por exemplo, é bem conhecida no Brasil através de ampla divulgação de seus livros, tanto no original francês, como em traduções portuguesas, da Lello. Sua postura não é mais compreensiva, nem menos radical em relação ao persistente problema do milagre, fundamental, a nosso ver, para o entendimento do Cristo.

- Que os evangelhos são em parte lendários escreve ele (11) isso é evidente, porque estão cheios de milagres e de sobrenatural; mas há lendas de lendas.

O incidente com a pitonisa de Filipos, ocorrido durante a primeira viagem de Paulo, como se lê em Atos 16, Ftenan o liquida sumariamente, dizendo que a moça era "provavelmente ventríloqua". (12)

Ao tratar, com arrogante superioridade, as pessoas que seguiam Jesus nas suas pregações às margens do lago, em Cafarnaum, a palavra de Renan chega a ser cruel. Para ele, era tudo uma gentinha, entre a qual a "aristocracia era representada por um cobrador de impostos e

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pela mulher de um administrador. Tudo o mais se cifrava em pescadores e outros homens do povo. Era extrema a sua ignorância; tão crédulos quanto incientes, acreditavam em fantasmas e espíritos".

Pelos padrões aferidores de Renan, Sócrates, que se entendia com espíritos e os tinha em alta conta, seria um crédulo ignorante, o que não me consta seja verdadeiro.

Donde se conclui que, tanto quanto Strauss, Renan e outros apresentam-se mal aparelhados para exame dos mais relevantes aspectos das narrativas sobre Jesus e sobre seus ensinamentos. Não trazem credenciais e qualificações que lhes teriam proporcionado, pelo menos, uma visão mais equilibrada e realista de Jesus, exatamente o que se propuseram fazer.

Por essas e tantas outras, é que Schweitzer escreve no seu excelente livro sobre a historicidade de Jesus:

- Nada há mais negativo do que o resultado do estudo crítico sobre a Vida de Jesus.E explica: - O Jesus de Nazaré que surgiu publicamente como Messias, que pregou a ética do

Reino de Deus, que fundou o Reino dos Céus na Terra e morreu para dar ao seu trabalho o testemunho final, nunca existiu. Ele é a figura criada pelo racionalismo, vitalizada pelo liberalismo e vestida pela moderna teologia na sua roupagem histórica.

Emverdade, tantos foram os problemas suscitados pela crítica devastadora alimentada pelo personalismo de cada autor, seus preconceitos e fixações, suas descrenças e até seus ódios, como assinala Schweitzer, que a imagem de Jesus, como personalidade histórica, fragmentou-se a ponto de, no dizer de Joel Carmichael no prefácio ao livro de Guignebert, "desaparecer sem nenhuma chance de restauração". (Teremos oportunidade de examinar essa afirmativa, mais adiante).

Embora revele uma compreensão mais nítida de alguns aspectos da fascinante personalidade de Jesus, Renan diz tolices inesperadas com relação a outros aspectos que não entendeu ou julgou irrelevantes ante a sua superioridade de homem civilizado do século XIX.

À página 26 de sua VIDA DE JESUS (11), escreve ele que "seria gravíssimo erro imaginar que Jesus foi o que chamamos um ignorante". Pouco adiante, contudo (páginas 32, 33 e 34), menciona o que entende por falhas na formação do Cristo, utilizando-se precisamente do verbo ignorar.

- Parece-lhe a Terra ainda dividida em reinos que se guerreiam; parece ignorar a "paz romana" e o novo estado da sociedade que inaugurava o século. Não teve ideia exata do poder romano; apenas alcançou notícia do nome de "César".

E mais adiante:- A corte dos reis afigurava-se-lhe como um lugar onde os homens têm esplêndidas

vestiduras (...), nunca concebeu a sociedade aristocráti-, ca senão como moço aldeão que vê o mundo através do prisma da sua singeleza.

E ainda:- Acreditava no diabo, que considerava uma espécie de espírito do mal, e pensava,

como todo o mundo, que as doenças nervosas eram obras de demônios que se apossavam do paciente e o agitavam. O maravilhoso não era para ele o excepcional; era o estado normal. A noção de sobrenatural, com as suas impossibilidades, não aparece senão no dia em que nasce a ciência experimental da natureza. (O destaque é meu).

Pois é preciso que alguém vá dizer ao Sr. Renan, onde quer que esteja ele e se ainda não o sabe, que é precisamente a "ciência experimental da natureza" que está, relutantemente, mas sem alternativas, admitindo uma reavaliação no conceito do sobrenatural. E já considera também viável um reexame na tão ridicularizada tese de que as "doenças nervosas" podem resultar mesmo de influenciação ou possessão de personalidades estranhas, autênticos "espíritos do mal", exatamente como as considerava Jesus.

Igualmente insustentáveis são as demais observações de Renan acerca da suposta

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ignorância de Jesus. Como não tinha ele ideia exata .do poder romano? Como poderia ele ignorar as claras implicações do que representava César? Não disse ele que se desse a César o que a ele pertencia? Uma resposta dessas não se improvisa ela é fruto de amadurecida meditação, por quem sabe utilizar-se corretamente de sua inteligência e dos conhecimentos de que dispõe acerca do contexto em que vive.

É muito fácil para os ilustrados pensadores dos séculos XIX e XX, verdadeiros almoxarifados de conhecimento livresco catalogado, achar que Jesus foi um jovem provinciano ignorante e simplório. No fundo, porém, o que isto revela é uma lamentável ausência de sensibilidade para apreender os mais relevantes aspectos da pregação de Jesus. Esses cavalheiros preocupam-se mais em proclamar as aparentes contradições de seu caráter e as supostas falhas de sua formação cultural do que em aproximar-se de Jesus com suficiente humildade intelectual para tentar saber o que realmente quis ele dizer com as coisas que disse.

A mesma atitude incoerente vamos encontrar em teólogos contemporâneos, que lamentam ou até criticam, em Jesus, com a costumeira superioridade, que ele não tenha sido um teólogo, no moderno sentido da palavra, e não tenha deixado nada escrito. O que desejam eles? Um tratado de teologia ou de cristologia em sete volumes, escrito em aramaico? Pois se foram precisamente a teologia e a cristologia e outras logias artificiais que criaram todo esse emaranhado em torno do que ele pregou! Se, hoje, os cristãos estão divorciados da mensagem de Jesus é precisamente porque a teologia dogmática submergiu-a num agitado mar de especulações ou despejou sobre ela verdadeira montanha de escombros!

0 problema destes senhores está precisamente em que os ensinamentos de Jesus são de desconcertante e desarmada simplicidade. A verdade pensam eles não pode ser tão simples assim!

Jesus não escreveu um tratado de teologia pela simples razão de que não foi necessário. E também por isso, ensinou ele que a Verdade tem o estranho vezo de ocultar-se aos sábios e revelar-se aos ignorantes. Não que seja ela rasa e simplória, mas porque sendo simples sintoniza-se com os simples e não com os sofisticados e arrogantes intelectuais do nosso tempo, da mesma forma que não atraiu os daqueles tempos.

Não exagera Renan ao escrever que "a religião nascente foi, a muitos respeitos, um movimento de mulheres e crianças" (11), bem como de homens simples, entre os quais figuras socialmente mais destacadas, como Mateus e Joana de Cusa, ele considera, com uma ponta de sarcasmo, aristocratas.

Ainda bem que foi assim; do contrário, o movimento de ideias suscitado por Jesus teria morrido ao nascedouro, como se pode depreender da fria rejeição com a qual a elite intelectual de Atenas marcou a dramática exposição doutrinária de Paulo, no areópago e que tanto abateu o ânimo do valoroso e intimorato pregador. IMo entanto, não muito longe dali, os primeiros contingentes cristãos, marginalizados, em Roma, para as catacumbas sinistras, desafiavam o poder massacrante de César para, juntos, orar e falar do Cristo. Poder-se-ia dizer que o aceitavam com o coração e não com a cabeça, mas um não exclui a outra. Além do que, Jesus não impôs uma crença limitou-se a propor uma opção. Por essa proposta morreu ele, tal como aqueles ali estavam dispostos a fazêlo. E o provaram a si mesmos, ao mundo e à História.

Parece que muitos não conseguem entender como um pobre jovem na faixa dos 30 anos, sem nenhuma formação universitária, sem doutorados, sem currículo conhecido e sem "status" consiga sacudir o mundo do seu torpor religioso, seja para amá-lo, seja para destroçá-lo. A corrente de incompreensão desdobrou-se em duas: uma viu-se obrigada a fazer dele um deus, pois assim, pelo menos, poupava-se ao trabalho de entendê-lo; a outra preferiu reduzi-lo à condição de um ignorante, porque assim podia ignorá-lo. Coube a uma minoria de mulheres, pescadores, artesãos, escravos e crianças segui-lo, mesmo sem apreender, em toda

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a sua grandeza, aquilo que ele ensinava. Por generosa e pura intuição. Por amor, como ele ensinou e exemplificou.

Mas que ele foi um fenômeno, mesmo no seu tempo, não há dúvida.De onde lhe vêm essa sabedoria e esses milagres? pergunta-se em Mateus 13 -. IMão é

ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não vivem entre nós? Donde então lhe vêm todas essas coisas? E se escandalizavam dele.

Lá estavam, portanto, os Renan e os von Hartmann do primeiro século ... Literalmente escandalizados e perplexos ante o misterioso e inexplicável saber daquele jovem.* * *

Charles Guignebert, professor de História do Cristianismo, na Sorbonne, dividiu em duas partes o seu estudo; deu à primeira o título simples e expressivo de JÉSUS (13) e à segunda chamou LE CHRIST (14).

A editora inglesa da tradução do primeiro deles chama a atenção para os problemas suscitados pela obra que tivera apenas uma edição na Inglaterra, em 1935, quando exportou certo número de exemplares para os Estados Unidos. Recebida por alguns com os mais veementes elogios, produziu perplexidades em outros, que julgaram "o objetivo e crítico estudo histórico de Jesus demasiado demolidor para a fé tradicional "Daí prossegue a nota de apresentação do livro as pressões no sentido de manter este livro esgotado".

Guignebert cobre terreno semelhante ao percorrido por Albert Schweitzer em THE QUEST OF THE HISTORICAL JESUS, que estivemos a examinar ainda há pouco, mas além de ser diferente o seu enfoque e outras as suas prioridades e ênfases, ele não apenas atualiza para nós o estudo de Schweitzer, que se limitou ao século XIX, como injeta novo vigor no assunto. Chega mesmo a chocar o leitor desprevenido com algumas declarações inesperadas e impactantes, a despeito da comedida simplicidade e objetividade de seu estilo, ou por isso mesmo.

Outra das suas significativas características está em fazer questão de ser apenas um historiador e não um teólogo, como o Dr. Schweitzer. Para ele, o historiador deve abordar seu trabalho como se não tivesse nenhuma crença e de nada soubesse, limitando-se ao papel de alguém em busca da verdade histórica, qualquer que seja ela, apoiado exclusivamente na documentação de que dispõe. E evidente que cada tipo de abordagem traz em si mesma méritos e limitações que é preciso entender.

O livro de Guignebert consta de uma introdução (62 páginas) e de três partes distintas: A vida de Jesus; II Os ensinamentos de Jesus e III A morte de Jesus e a fé pascal. Ao todo, 538 páginas, sem contar a bibliografia e o índice.

Ao apresentar as fontes de referência acerca de Jesus, Guignebert arrola as Epístolas de Paulo, informando que, embora contemporâneo de Jesus, não parece que ele o tenha conhecido pessoalmente ou, mesmo, o tenha visto, mas manteve certo relacionamento com os discípulos da primeira hora. É de supor-se, por conseguinte, que Paulo procurou informar-se da vida de seu Mestre com quem dela sabia melhor do que ele.

O que se conhece de Jesus é pouco e pode ser assim resumido: Jesus era judeu, da casa de Davi, nasceu de mulher, teve irmãos, um dos quais, de nome Tiago (não confundir com o filho de Alfeu, irmão de João, o futuro evangelista), teve destacada posição na comunidade (ecclesia) nascente de Jerusalém. Paulo informa, ainda, que ele viveu "sob a lei", ou seja, era judeu ortodoxo e pregava apenas ao povo de Israel. Que foi um ser sem pecado e revelou-se obediente servo de Deus, a ponto de aceitar a morte na cruz. Que escolheu seus doze apóstolos, instituiu a eucaristia na noite em que foi traído e depois insultado e crucificado "por causa da malícia dos judeus". Ressuscitou no terceiro dia e apareceu a Pedro, aos demais apóstolos e a outras pessoas, bem como ao próprio Paulo, estando, àquela altura, sentado à direita de Deus, à espera do grande dia da volta triunfal.

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Feito esse resumo, de cujas assertivas o autor não deseja examinar a veracidade, acrescenta ele uma das suas declarações de impacto, ao dizer que...

- ... Paulo sacrificou deliberadamente Jesus ao Cristo.O teólogo alemão Gunther Bornkamm (15), em livro relativamente recente (1969),

declara, em resumo, que Paulo não cuida de expor os ensinamentos do Jesus histórico, não fala de seus milagres, do sermão do monte, das parábolas, dos seus encontros com os escribas e fariseus, nem do Pai IMosso, mas, de forma alguma, acha que o apóstolo traiu ou perverteu a mensagem de Jesus, apenas a viabilizou, no que concorda com Albert Schweitzer, como se pode ver em THE MYSTICISM OF PAUL THE APOSTLE (16).

Não falta quem diga que Paulo é o verdadeiro fundador do cristianismo tal como, basicamente, o conhecemos hoje. Dizem mesmo que ele não apenas é o primeiro cristão, mas o primeiro protestante... Não pretendo, porém, abordar o assunto aqui, já que estará sendo examinado mais adiante. O que não consigo aceitar, pois não vejo isso em Paulo, é que ele haja considerado o Cristo como Deus, segundo assegura Guignebert. Mesmo porque Paulo conservou muito de sua formação rabínica, embora nitidamente redirecionada. Sua concepção ainda é a de um Deus bíblico zangado, cuja ira se manifesta implacavelmente contra os ímpios e pecadores que não têm como escapar do seu severo juízo, tal como se lê na Epístola aos Romanos. Um judeu, mesmo convertido a Jesus, dificilmente aceitaria a divinização de um ser humano.

Após longas reflexões sobre os textos sobreviventes, Guignebert entende, do ponto de vista biográfico-histórico, que...

- As conclusões prováveis, justificadas pela evidência documental, acerca das questões que vimos considerando, podem ser resumidas da seguinte maneira: Jesus nasceu em algum lugar da Galileia, na época do Imperador Augusto, de família humilde, que incluía meia dúzia ou mais de filhos, além dele próprio.

Praticamente nada restou de aceitável, do ponto de vista histórico, quanto à infância de Jesus. Suas ligações com o Batista oferecem outras tantas dificuldades ao entendimento e conciliação. Realmente, se João batizou Jesus e o reconhece como Messias, como é que, mais tarde, manda seus discípulos perguntarem a Jesus se é ele mesmo o Messias ou se deveria ser esperado outro?

Guignebert prefere pôr em dúvida o episódio do batismo e sim, chegando mesmo a admitir que Jesus tenha começado sua vida pública como discípulo ou companheiro de João, prosseguindo, depois, sozinho. É certo que ele pessoalmente não batizou ninguém e instruções suas aos apóstolos nesse sentido são consideradas suspeitas, para dizer o mínimo.

Na discutível passagem de Mateus (28:19), por exemplo, o texto mostra claramente conotações posteriores à criação do dogma da trindade: "Ide, portanto, e pregai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo".

Tudo o que sabemos escreve Guignebert — é que, quando começou a agir por sua própria conta, ele não fez uso do batismo.

Acontece que a cerimônia do batismo foi logo adotada pela Igreja nascente como sinal, formalidade de admissão e aceitação do novo crente na comunidade, do mesmu modo que a circuncisão era e continua sendo o sinal da iniciação, da aceitação na comunidade judaica.

Isto significa, portanto, que Guignebert não concorda com a afirmativa de que Jesus haja instituído o batismo, como forma de iniciação e muito menos como sacramento, segundo a Igreja o conceituaria posteriormente. Mas que ele considera Jesus uma personalidade histórica, não há dúvida.* * *

Não deixa de ser melancólico concluir que, ao cabo de dois séculos de especulação os documentos básicos são praticamente os mesmos de sempre nem se conseguiu recuperar historicamente a figura de Jesus, como queriam os historiógrafos, nem racionalizar a imagem

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que dois milénios de teologia dogmática criaram para nós. Pior que isso: essa imagem ficou mais vaga e contraditória e cada vez menos compreendida. Como uma tela que se descaracterizou de tão retocada.

O debate em torno de Jesus e de sua doutrina fracionou-se em numerosos departamentos. Ele próprio deixou de ser uma personalidade viva para se tornar objeto de um novo ramo da especulação a Cristologia.

Não deixa, pois, de ter alguma razão Renan, ao escrever em sua VIDA DE JESUS, este período desalentador:

Foi só desde o século II, quando o cristianismo caiu nas mãos de raças raciocinadoras, loucas de dialética e de metafísica, que começou aquela febre de definições que faz da história da Igreja a história de uma imensa controvérsia.

Ainda bem que, de certa forma, os teólogos escrevem basicamente uns para os outros e raramente são lidos (e entendidos) fora do círculo fechado de uns poucos iniciados. Não só o jargão teológico é obscuro e exige um complexo "background" de conhecimentos especializados, mas a própria matéria tratada se torna tão rarefeita que escapa à apreensão dos simples mortais. Não há dúvida de que aqui também é necessário fazer as ressalvas habituais, pois há quem consiga comunicar com relativa clareza o seu pensamento. O certo, porém, é que pouco resta ou nada nas antigas concepções teológicas, que não haja sido questionado, posto' em dúvida ou redondamente negado. Se o homem e a mulher de formação religiosa mediana ou até mesmo os mais cultos tivessem tempo, disposição e preparo para inteirar-se do que hoje se diz nos tratados de teologia cristã católica e protestante mergulhariam em estado de perplexidade. Examinaremos alguns aspectos dessa questão mais adiante neste livro.

Schweitzer acha que os teólogos ("nós, os modernos teólogos" diz ele) deixaram-se levar pela metodologia histórica, certos de que a pesquisa somente poderia resultar em benefícios gerais, pois visava ao melhor entendimento e aceitação de Jesus e de sua doutrina. Mas não foi o que aconteceu. O resultado foi o que ele chama de risco de uma imagem miniaturizada de Jesus, por causa da tentativa de forçá-lo para dentro dos exíguos limites da psicologia e dos padrões humanos. De minha parte, acho que o processo foi além do mero risco, de vez que historiadores e teólogos quebraram tudo desastradamente e nos passaram os cacos, em estado de caótica desarrumação. Do ponto de vista histórico, o fracasso ainda é compreensível, dado que a reconstituição dos eventos pode ser criativa, pode levar a reinterpretações e até modificações substanciais no que antes se conhecia, mas não se permite ao historiador inventar novos contextos, gestos ou palavras, à margem do que autorizam a documentação e as melhores tradições à sua disposição. No caso de Jesus, como ficou dito ainda há pouco, os documentos são os mesmos de sempre, escassos e inseguros, em grande parte por causa das manipulações irresponsáveis ou manifestamente inescrupulosas a que foram submetidos no correr de quase dois milênios. Quanto às deformações da teologia, ou, mais especificamente, da Cristologia, será sempre possível reconstituir a doutrina de Jesus, mesmo que precariamente resumida nos textos sobreviventes. Não é impraticável demolir o complexo e confuso edifício criado pelo bizantinismo teológico intercorrente. Sempre será viável remontar o curso da impetuosa e poluída correnteza teológica que hoje temos diante de nós e chegar ao diminuto olho dágua que brota, pura e incontaminada, e que, a despeito de tudo, se preservou e ainda pode ser identificado.

Mesmo Renan, fechado a qualquer entendimento quanto ao problema do milagre, declara enfaticamente que "Para se renovar (o cristiav nismo) basta-lhe voltar ao Evangelho".

Um século depois dele, Hans Kung pensa de maneira semelhante.Ficamos, porém, com o direito de achar que o problema não tem sido considerado com

sensatez e sem espírito preconcebido.O que se percebe claramente de uma análise desapaixonada e inteligente como a do Dr.

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Schweitzer ainda que não concordemos com tudo o que ele diga é que a maioria dos autores, senão todos, parte de um sistema preconcebido de convicções pessoais e se empenha, vigorosa e inflexivelmente, em provar, com a sua maneira de ver a vida de Jesus, que o seu esquema pessoal é o único verdadeiro. Por que não buscar, primeiro, captar alguma coisa, pelo menos, da verdade sobre o Cristo e, depois, montar um sistema racional que o explique? Strauss, por exemplo, parte de três posturas básicas: 1) Jesus não pode ser Deus; 2) o milagre não existe; 3) o sobrenatural não é problema histórico de admitir-se a validade da primeira premissa, sobre a divindade de Jesus, mas mesmo isso deve resultar de um conjunto bem formulado, bem desenvolvido e bem apresentado de argumentos lógicos e aceitáveis, independentes da posição pessoal do autor perante a questão. Deve, em suma, ser uma conclusão, não um pressuposto.

Quanto ao milagre e ao sobrenatural, sua postura, bem como a de Renan e de outros tantos, é, no mínimo, precipitada, quando não rigidamente preconceituosa.

Aliás, Guignebert (13), que assume atitude menos rígida na questão do milagre, faz um reparo a Renan, segundo o qual "Nenhum milagre jamais ocorreu perante um grupo de pessoas céticas. E condição do milagre a credulidade da testemunha".

Como bem assinala Guignebert, bastaria a Renan dar uma chegada a Lourdes para observar que a sua presença de cético "não impediria as curas que os peregrinos consideram miraculosas".

A questão é que Guignebert também merece reparo. Este, ao contrário do que pensa ele, os chamados milagres de Lourdes, ou em outro qualquer ponto, no tempo e no espaço, não apenas ocorrem na presença de céticos e descrentes, mas também com céticos e descrentes.

Para não alongar aqui a questão, que será tratada alhures neste livro, basta uma pergunta (mais uma): E se o milagre for mesmo possível?

Quanto ao chamado sobrenatural, de fato, não é, em si mesmo, problema específico para a historiografia. Uma vez, porém, que se montou em cima dele uma realidade histórica, não há como fugir a uma análise lúcida e fria da questão. A perturbação emocional e a alienação mental não são, a rigor, problemas de historiografia, mas quando pessoas nessas condições assumem posições de liderança, como na Roma dos Césares, ou em regimes contemporâneos de terrorismo político, não há como ignorá-las o historiador. Por outro lado, nas várias oportunidades nas quais se tentou a renovação pelo retorno aos textos antigos e às práticas primitivas, as boas intenções faliram consistentemente, por uma razão ou outra.

No caso dos cátaros, por exemplo, nos séculos XII e XIII, a Igreja tratou de expurgar, pela violência, o movimento que considerou tão irrecuperavelmente herético que despachou contra seus praticantes uma das suas mais sangrentas cruzadas. Caso único, esse, na História, em que uma cruzada foi posta em ação para eliminar irmãos de raça e crença, pois o Languedoc era província francesa e os cátaros estudavam o mesmo Evangelho, rezavam o mesmo Pai Nosso, oravam ao mesmo Cristo e ao mesmo Deus dos demais cristãos.

Na ordem cronológica, o próximo caso de maior relevo foi o da Reforma Protestante que também adotou como tema central de sua programática a ideia de que um retorno às fontes do cristianismo, ou seja, aos textos evangélicos, que foram cuidadosamente retraduzidos e reinterpretados. Nesse sentido, decidiu a Reforma adotar apenas os procedimentos que admitia consagrados e autorizados nos Evangelhos, onde não encontrava apoio para missas, por exemplo, ou confissões. Quanto à eucaristia, contudo, entenderam os reformistas que fora realmente instituída, porém, sob duas espécies, isto é, pão e vinho. Nada de hóstia, portanto. Nada encontrando, também, quanto ao purgatório, rejeitaram-no. Consideraram válidos, porém, conceitos como o da divindade de Jesus, Trindade, céu e inferno, demônio e outros.

Acabou a Reforma recaindo no mesmo equívoco de sempre, ao criar a sua própria teologia, quando seu objetivo primordial fora precisamente o de eliminar a montanha teológica que se interpusera entre o cristão e a palavra de Jesus, transformando esta em artigo

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de segunda mão (ou terceira, ou décima) como que pasteurizada por verdadeira multidão de teólogos de muitas gerações. Bem entendido: teólogos e pensadores que haviam conseguido "vender" as suas ideias, como dizem os americanos, de vez que os outros foram rejeitados, quando não sumariamente incinerados nas fogueiras purificadoras, como João Huss, Giordano Bruno, Savonarola e tantos outros e outras.

Isso não anula os benefícios que a Reforma prestou à comunidade cristã mundial. Se nada mais houvesse realizado, um mérito ninguém lhe poderia negar: o de devolver os textos evangélicos ao povo, traduzidos em língua viva, contemporânea, que todos podiam ler e entender. Argumenta-se que isto suscitou nova onda montante de interpretações alternativas, e, em consequência, nova safra de seitas e subseitas. E certo isso, mesmo porque o homem é o único ser vivo que questiona ideias.

Não há como negar, por outro lado, que o livre exame dos textos suscitaria, com o tempo, os amplos debates que vimos considerando neste livro. Se os resultados têm sido desanimadores e até negativos, como entende Schweitzer, é porque se insiste em arrombar o cofre de segredos dos textos, em vez de abri-lo com as chaves apropriadas. Disso não têm culpa os textos, por mais acomodados que estejam e sim os que tentam tomá-los de assalto, com rudes e inadequadas ferramentas, aprioristicamente consideradas como as únicas possíveis.

Como pode alguém entender ou reinterpretar os conceitos evangélicos e marcantes eventos da vida de Jesus se rejeita liminarmente, como inválidos, o próprio contexto e as premissas que serviram à formulação das ideias de Jesus? É inadmissível impensável, como dizem os ingleses que Jesus não tivesse nítida noção de sua natureza espiritual, de sua tarefa, de seus objetivos, bem como o conhecimento seguro dos recursos espirituais que manipulava. Sua doutrina era traduzida em linguagem popular e, para usar outro transplante da língua inglesa, de maneira gráfica, isto é, tanto quanto possível, visual, criando imagens que fixassem bem a sua mensagem, o conteúdo, a essência de seu pensamento.

Mas isto fica para uma análise aprofundada mais adiante neste livro. Permaneçamos, por enquanto, no âmbito da busca do Jesus histórico, em contraposição à figura artificial criada para uso da Cristologia.

Ao apagarem-se as luzes do século XIX, a figura histórica de Jesus, longe de apresentar-se mais nítida, estava, como vimos, mais difusa e contraditória. Cada um tentara recriá-la à sua própria imagem e semelhança, desmontando-a para remontá-la segundo um esquema pessoal prefixado. Verdadeiro batalhão de estudiosos saíra a campo, a partir de Reimarus, como que dispostos a uma campanha planejada e levada a termo com toda a reconhecida paixão pelo detalhe, pela ordem e pela disciplina, típicas do espírito germânico, pois que nesse imponente destacamento de pesquisadores houve uma predominância maciça de alemães. Chegou-se a um ponto em que a imagem mais liberal de Jesus cedeu lugar, segundo Schweitzer, a um "Jesus germânico", esculpida em moldes claramente político-patrióticos. Gustav Frenssen fala de uma "vida do Salvador, segundo a pesquisa alemã, como base para um renascimento espiritual da nação alemã".

A questão é que a figura de Jesus recusou-se terminantemente a acomodar-se a quaisquer destes esquemas mutiladores. Schweitzer diz mesmo que depois de trazido, a duras penas, para o procênio do pensamento moderno, ele como que voltava ao seu contexto histórico, como um pêndulo que, abandonado a si mesmo, retorna ao estado de repouso.

Falharam todas as tentativas, fracassaram todos os esforços no sentido de fazer de Jesus uma figura inteligível à mulher e ao homem contemporâneos. Houve, por exemplo, uma tentativa nesse sentido, baseada no Evangelho de Marcos, tido como o mais confiável do ponto de vista histórico, por ser o que mais se interessa pela narrativa de eventos, mas o resultado foi igualmente desastroso.

A teologia moderna diz o eminente Dr. Schweitzer com três quartos de ceticismo, viu-se,

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afinal, com um Evangelho de Marcos todo rasgado em farrapos, nas mãos. E prossegue:- E evidente, portanto, que esse declarado Jesus histórico não é uma figura

puramente histórica, mas alguém que foi artificialmente transplantado para a história.Não estou bem convicto disso. É certo que não houve o menor êxito na tentativa de

transplante da personalidade de Jesus para as modernas estufas da História, mas é evidente que ainda não se abriu espaço suficiente e adequado para recebê-lo com a dignidade e credibilidade a que ele certamente tem direito. Não acho, por isso, que a imagem seja irreconstituível. Sabe-se menos de Cambises para citar apenas um, ao acaso e, no entanto, ele tem lugar marcado na História, mesmo porque ninguém tentou 'refazê-lo', ou refundi-lo a partir de moldes pessoais, obviamente inadequados.

- Nos últimos dez anos escreve Schweitzer no seu livro (de 1906) a moderna teologia histórica tem procurado adaptar-se cada vez mais às necessidades do homem da rua. Cada vez mais, mesmo as melhores obras utilizam-se de atraentes manchetes como recurso para apresentar seus resultados de maneira viva às massas. Fascinada pela sua própria engenhosidade em inventá-las, a teologia torna-se mais confiante na sua causa, chegando a crer que a salvação do mundo depende, em grande parte, da divulgação de seus próprios "resultados garantidos" à multidão. E tempo de que ela comece a duvidar de si mesma, a duvidar de seu Jesus "histórico", a duvidar da confiança com a qual contempla sua própria montagem destinada à regeneração moral e religiosa do nosso tempo. Seu Jesus não tem vida, por mais alemão que tenham desejado fazê-lo.

Chegamos, assim, à melancólica e desapontadora conclusão de que a figura de Jesus produzida pelo tremendo esforço de estudo e pesquisa é uma pequenina imagem deformada e sem beleza, uma figurinha de barro ou gesso que nada diz da grandeza do ser que mudou o curso da História. É uma imagem que não convence nem àqueles que a engendraram, muitos, como observa Schweitzer, com ódio, pois se é difícil construir com amor, é impraticável fazê-lo com rancor, que este só produz monstrengos.

É bem verdade que muitos, no passado, tentaram escrever com amor a história de Jesus e nem por isso chegaram a produzir retrato mais fiel; a estes, faltou-lhes bom senso para as opções adequadas, rejeitando as óbvias fantasias para tirar partido dos aspectos aceitáveis. Há de haver e há um meio termo igualmente distante do ódio e da cega aceitação de adornos em nome de um amor mal compreendido que não se importa com a lógica e o bom senso, desde que se ressalve o aspecto apologético.

Seria injusto negar às obras ditas de "edificação" escritas sobre Jesus o mérito que revelam na sua intenção de construir algo de bom no espírito de seus leitores, mas isso não é história e nem teologia.

Não há dúvida, porém, de que o eminente e respeitável teólogo, médico e filósofo alsaciano tem toda razão ao concluir que "tanto a teologia como a imagem que se tentou reproduzir de Jesus são pobres e fracas", porque ele "tem sido medido pela mesquinha medida do homem moderno". Daí a desconcertante conclusão de que Jesus "como personalidade histórica concreta, continua um estranho em nosso tempo". O conceito continua válido.

Não foram poucos os que tentaram reduzir a figura de Jesus a uma inaceitável insignificância provinciana, muito provavelmente para mostrarem como eram, eles próprios, grandes e geniais. Observe-se, por exemplo, a condescendente arrogância de Eduard von Hartmann:

Ele (Jesus) não era um gênio, mas possuía certo talento que, à completa ausência de qualquer instrução sadia, produzia, em geral, apenas resultados moderados, o que não foi suficiente para preservá-lo de numerosas fraquezas e sérios erros. No fundo, um fanático e um transcendental entusiasta, que, a despeito de sua inata disposição para a bondade, odeia e

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despreza o mundo e tudo que ele contém e acha que qualquer interesse pelas coisas do mundo é prejudicial à verdade única, ou seja, o interesse transcendental. (Foi) um amável e modesto jovem que, levado por uma notável sequência de circunstâncias, chegou à ideia epidêmica àquela época de que era ele próprio o esperado Messias e, em consequência disso, enfrentou o seu destino.

Não é minha intenção, contudo, enveredar pelo labirinto das controvérsias e debates em torno da historicidade de Jesus e da formação dos textos evangélicos. Limito-me a apresentar alguns pontos mais relevantes para caracterizar, com o mínimo de nitidez, o problema que se põe, ou seja, o de que inúmeros aspectos da vida e dos ensinamentos de Jesus estão sendo questionados há mais de duzentos anos.

Duas proposições, não obstante, devem ser claramente expostas e enfatizadas. A primeira é a de que não vejo nos historiadores, teólogos e pensadores modernos os intentos demolidores notados em alguns dos seus predecessores, como Reimarus, D.F. Strauss, von Hartmann, BinetSanglé ou Nietzsche. Percebe-se nos autores mais recentes, como Guignebert, Maurice Goguel ou mesmo Hans Kung e Raymond Brown e Schillebeeckx, uma crítica veemente e não menos devastadora sob certos aspectos, mas ponderada, bem construída, com a evidente intenção de chegar-se eventualmente à verdade, qualquer que seja ela. Parece uma crítica mais desapaixonada, objetiva e, talvez por isso, mais impactante, embora não esteja nos seus propósitos ferir e chocar e sim esclarecer.

Por outro lado, não deixa de ser alentador o fato de que prossegue, sem desfalecimentos, e em bom nível, o debate mundial em torno da figura ímpar de Jesus, que continua a merecer crescente atenção e interesse. Passada a fase irreverente e demolidora, são mais comuns, hoje, os que se empenham em decifrar o mistério da sua personalidade e chegar ao verdadeiro sentido dos seus ensinamentos. Não é possível que de tudo isso não se consiga, um dia, extrair a essência da verdade que ele veio trazer-nos, em pessoa. Nisto sou mais otimista do que o querido Dr. Schweitzer.

A segunda proposição é a de que não nos devemos perturbar pelo entrechoque de opiniões, conceitos, suposições e inferências. Se Jesus nasceu em Belém ou Nazaré, se foi batizado ou não por João, se teve ou não irmãos de sangue, se era ou não descendente de Davi, nada disso importa se conseguirmos chegar ao cerne da sua mensagem, desvencilhando-a de todo o peso das falsas interpretações que se depositaram sobre ela no correr dos séculos. É que tais aspectos secundários são, subsidiariamente, esclarecedores e desejáveis e de alguns deles estamos cuidando mais adiante mas não essenciais à inteligência da mensagem em si, embora possam ajudar-nos a definir melhor certas áreas obscuras nela contidas.

O fato de que o povo judeu não o aceitou como o prometido messias, por exemplo, em nada modifica o conteúdo universal da sua mensagem; pelo contrário, parece revigorá-la, ao transcender limitações de contexto étnico-religioso. Acresce que precisamos entender e aceitar as razões que levaram as maiorias judaicas à rejeição, pois a tradição e a palavra dos profetas, bem como as expectativas do povo indicavam um Messias basicamente político, ou pelo menos eram assim interpretadas as profecias, talvez por causa da própria ânsia de liberdade predominante à época em relação à humilhante dominação romana.

Tenha sido Jesus o Messias, do ponto de vista judaico, ou não, e por mais exíguos que sejam os textos sobreviventes acerca de sua vida e de seus ensinamentos, há nele e no que ele disse e realizou uma mensagem tão poderosa e carismática que mudou a face da Terra. Alguma coisa deve conter essa mensagem de eterno, de permanente, de.construtivo. Em primeiro lugar, parte ela do único pressuposto válido na formulação de uma sociedade justa, feliz, pacífica, equilibrada e serena, ou seja, o da reforma íntima de cada ser humano. Ela propõe uma reconstrução por dentro, a partir do homem e da mulher, não necessariamente dos grandes, dos poderosos, mas sem exclusão destes que também são seres humanos. Não

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condena a riqueza em si e nem os ricos; apenas considera difícil ao rico "entrar no Reino dos Céus" porque sabe muito bem que a riqueza confere poder e tende a estimular o egoísmo e a indiferença pela sorte dos outros, confirmando o ser humano nas suas fixações materialistas. 0 mistério e o segredo da filosofia de vida ensinada por Jesus estão na desconcertante simplicidade de seus ensinamentos. E preciso, contudo, não confundir as coisas e lembrar-se sempre de que ele foi simples, mas não um simplório, como tantos, do alto das suas torres de orgulho, gostam de fazer crer.

Para encerrar esta brevíssima repassagem pelas torrenciais especulações acerca da historicidade de Jesus, uma observação parece pertinente: a discreta, quase omissa, atitude da Igreja Católica, que tem procurado conservar-se à margem da campanha que, no século passado empolgou tantos estudiosos de talento, como vimos, especialmente entre os céticos.

A Igreja preferiu o silêncio, mantendo sua postura pré-straussiana, com diz o Dr. Schweitzer, sem aventurar-se a uma abordagem decidida ao problema específico do milagre e às questões suscitadas pelo Evangelho de João, nos seus aspectos históricos.

Como vimos anteriormente, o livro de Schweitzer foi publicado em 1906, mas suas observações acerca da posição da Igreja Católica no problema continuam válidas e atuais, enquanto a dos teólogos protestantes e neste ponto a palavra continua basicamente com os alemães tem tido um envolvimento muito mais profundo, declarado e objetivo com essa problemática.

Não resta dúvida de que começa a soprar uma brisa mais rija sobre os estandartes do Vaticano a partir do 2Concílio, mas a posição oficial continua sendo a do não envolvimento em temas controversos. Mais do que isso: de rejeição a qualquer atitude desinibida de reexame, de reinterpretação ou de reconstrução de alguns aspectos mais danificados da vetusta dogmática católica. São exemplos recentes e dramáticos os de Hans Kung e o de Schillebeeckx, que a hierarquia eclesiástica botou de quarentena, chegando a cassar, a Kung, o direito à cátedra.

Que os ventos continuam a soprar, contudo, não há como duvidar, pois aí está o maciço tratado de Raymond Brown sobre a natividade, publicado, aliás e com surpresa para leigos como eu com o Nihil obstat do Censor e o Imprimatur da autoridade competente, no caso, o Vigário Geral da Arquidiocese de New York.

Conto com a paciência complacente do leitor e com o meu fôlego para uma apreciação, tão ligeira quanto possível, ao entendimento desses dois livros singulares, que não podem ser simplesmente ignorados por aqueles que se interessam por uma conceituação mais nítida e aceitável acerca da figura de Jesus e da doutrina que ele pregou.

A propósito, confio também na tolerância do leitor para as digressões doutrinárias em capítulo que se propõe discutir, prioritariamente, a questão particular da historicidade. E difícil evitar essa compulsão no estudo de uma personalidade singular como a de Jesus, na qual pensamento e vida se apresentam inextricáveis num contexto de sólida coerência.

Voltemos, contudo, aos aspectos históricos.* * *

Uma pesquisa mais atenta e paciente revela que nem sempre a postura do historiógrafo especializado ou do teólogo é melhor, mais lúcida e mais aceitável do que a do historiador leigo, se assim podemos chamá-lo.

Em busca de uma visão panorâmica que resultasse do confronto de maior número de depoimentos pessoais, procurei a imagem do Cristo nos livros de História Geral. Desejava vê-lo também nesse contexto mais amplo, com os olhos do historiador não particularmente voltado para aspectos religiosos, à exclusão ou com a minimização dos demais, que, necessariamente, informam o entendimento de uma relevante personalidade histórica.

A busca foi proveitosa e reveladora. A questão é apresentada de maneira mais desapaixonada e objetiva por historiadores movidos pela intenção despojada de apenas

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informar, com um mínimo de envolvimento emocional ou opinativo. Além de muito mais sintéticos do que seus colegas especializados na história do cristianismo, o que é lógico e compreensível, eles se apresentam bem menos complexos nas suas especulações.

Com a finalidade de trazer para o nosso livro duas dessas visões históricas, descomprometidas ou seja, desinteressadas de provar esta ou aquela tese e, ao mesmo tempo, manter em mínimo possível o volume de referências bibliográficas, optei por dois historiadores de minha preferência: Will Durant e H. G. Wells. O leitor poderá queixar-se de que a escolha é arbitrária e pessoal, no que estaremos de pleno acordo. E mesmo. Nada impede, porém, que ele faça suas próprias opções e examine outras fontes, o que será ótimo.

Ao abordar o tema da historicidade de Jesus, Will Durant (38) considera da maior importância a moderna atitude crítica perante a Bíblia, questionando, de um lado, sua autenticidade e veracidade e, de outro, a tentativa de salvar "os alicerces da fé cristã". Acha mesmo que os resultados de tais estudos poderão revelar-se, com o tempo, mais revolucionários do que o próprio cristianismo.

Segue-se sumária e inteligente apreciação sobre os principais episódios do que ele caracteriza como "guerra de duzentos anos".

Vejamos alguns dos seus "generais":* Reimarus, segundo o qual Jesus somente poderá ser considerado como personalidade

final e dominante na escatologia judaica e não como fundador do cristianismo. * Herder, que discorreu sobre as discrepâncias aparentemente irreconciliáveis entre o

Cristo de Mateus, Marcos e Lucas, em confronto com o de João.* Paulus, que propôs uma interpretação racionalista dos milagres, atribuindo-os a

causas e faculdades naturais.* Strauss, que rejeitou essa conciliação, preferindo a tese de que os elementos tidos

por sobrenaturais nos Evangelhos deveriam ser considerados mitos e que o Cristo deveria ser estudado sem eles.

* Bauer, que depois de um estudo crítico sobre as Epístolas de Paulo, desenvolveu a teoria de que o Cristo teria sido apenas uma figura mitológica, resultante da fusão personalizada de elementos contidos nas teologias judaica, romana e grega, no século II.

* Renan, cuja VIDA DE JESUS "alarmou milhões com o seu racionalismo e encantou milhões com a sua prosa". (Não estou entre os primeiros milhões).

* Loisy, um abade, que submeteu os textos evangélicos a um exame tão severo que a Igreja resolveu excomungá-lo. juntamente com outros "modernistas".

De tais pioneiros, o gosto por esses estudos alastrou-se pela Holanda, Alemanha e Inglaterra, onde foi contestada a historicidade de Jesus, que parecia questão liquidada para sempre.

Vale a pena, contudo, conhecer, na sua própria e elegante linguagem, a conclusão de Durant:

-Que uns poucos homens simples pudessem ter inventado, numa só geração, uma personalidade tão vigorosa e atraente, uma ética tão elevada e uma visão tão inspiradora de fraternidade humana, seria milagre muito mais incrível do que qualquer outro constante dos Evangelhos. Ao cabo de dois séculos de crítica, o perfil da vida, do caráter e dos ensinamentos de Jesus permaneceu razoavelmente claro e constitui a mais fascinante característica da história do homem ocidental.

H. G. Wells (35) raciocina no âmbito de esquema semelhante e chega a idênticas conclusões.

Considerando Jesus "a semente" e não o fundador do cristianismo, expressa as dificuldades com as quais se defronta o historiador moderno perante a exiguidade das fontes de consulta. Os três sinóticos, segundo muitos, resultariam de uma fonte única primitiva e o de João, fortemente colorido por uma teologia de caráter eminentemente helenista. O de

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Marcos seria o relato mais confiável sobre a personalidade e os ditos de Jesus. E conclui:Os quatro, porém, produzem a mesma convicção de realidade também encontráveis nas

fontes primitivas sobre Buda. A despeito de incríveis e miraculosos aditamentos, somos obrigados a dizer: "Aí está o homem. Esta parte da história não poderia ter sido inventada".

Como se vê, Wells parece não dar credibilidade aos milagres, mas a realidade de Jesus é inegável, para ele. Quanto aos vários enfeites, ele os considera "desnecessários aos ensinamentos (de Jesus) e roubam-lhe muito do vigor e da força que possuem, quando desembaraçados de tais acessórios".

No que estamos de inteiro acordo. Curioso é que, mesmo rejeitando o conceito do milagre provavelmente por causa do velho tropeço da sobrenaturalidade Wells é, a meu ver, o pensador (e nisso incluo leigos e teólogos) que entendeu com mais lucidez o conceito do Reino de Deus, aspecto que abordaremos no local próprio deste livro.

II. RESUMO E CONCLUSÕESA despeito do desastrado esforço mitificador que tentou aprisionar a personalidade

histórica de Jesus numa rede de fantasias, os componentes básicos de sua imagem resistem e persistem, tornando-a suscetível de uma aceitável restauração, mesmo ante à exiguidade da evidência documental. Seria errôneo supor que estão para sempre fechadas todas as vias de acesso a uma completa reconstituição histórica, não apenas quanto à sua figura, mas também a seus ensinamentos, o ambiente em que viveu, as coisas que realmente fez, disse e ensinou. Isso porque os seres humanos que com ele conviveram são tão imortais quanto ele próprio e, portanto, continuam vivos, conscientes, dotados de inteligência, de experiência e memória. Um dia será possível obter deles um depoimento abrangente, confiável, honesto, genuíno, definitivo, semelhante ao que podemos obter da memória de um computador à qual tenhamos confiado informes de vital importância aos seus programas de trabalho.

Mesmo sem esses dados, porém, é possível inferir alguns informes aceitáveis que, embora escassos, pelo menos estarão despojados das fantasias, das ficções e das deformações que nos foram impingidas pelos que se dedicaram, no passado, à inglória tarefa de utilizarem-se do Cristo como peça importante no tabuleiro de suas paixões, no qual disputavam maiores fatias do poder transitório..

Em suma, e para responder especificamente à pergunta de início formulada: Jesus existiu mesmo, é um ser historicamente identificável. Viveu, pregou e morreu na Palestina, tanto quanto continua a existir hoje, enquanto escrevo este livro ou enquanto o leitor o lê. E continuará a existir, e nós com ele, pois somos todos criaturas imortais, em diferentes estágios evolutivos. Durante algum tempo a historiografia duvidou ou negou a sua presença real na Terra. Por algum tempo ainda, muitos continuarão a negar a sua realidade. Não importa. Ele não depende de tais opiniões para ser o que é e quem é. Graças a Deus.* * *

3. ASPECTOS HISTÓRICOS ESPECÍFICOS

Tenhamos, pois, em mente esse quadro, a fim de podermos examinar com lucidez e serenidade os aspectos mais relevantes da vida e dos ensinamentos de Jesus, hoje sob o fogo cerrado da crítica, do reexame, da reavaliação e até da contestação por parte de historiadores, pensadores e teólogos.

Já abordamos incidentalmente alguns desses aspectos no que ficou dito. Tentaremos, a seguir, uma exposição ordenada e tão sumária quanto possível sobre cada um deles em

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particular, limitados aos mais relevantes.

I. JESUS NASCEU EM BELÉM?Porventura pode o Cristo vir da Galileia? (João 7:41)

Já vinha sendo contestada desde Renan e até antes dele, embora não de maneira tão enfática, a informação de que Jesus nascera em Belém. O historiador francês abre o capítulo II de seu livro, com a seguinte observação:

Jesus nasceu em Nazaré, pequena cidade da Galileia, desconhecida até então. Toda a sua vida foi designado pelo nome de "Nazareno" e só por um esforço que não se compreende é que se poderia, segundo a lenda, dá-lo como nascido em Belém.

Renan tem por hábito afirmativas radicais que, às vezes, até corrige ou adoça mais adiante. Como se vê em Guignebert (13), não é tão indiscutível a informação de que Jesus tenha nascido em Nazaré, embora esteja este autor convicto de que o local tenha sido a Galileia e não Belém, que fica na Judeia, a poucos quilômetros de Jerusalém.

O termo Nazareno atribuído a Jesus, foi considerado, de início, como indicação de que ele provinha de Nazaré, mas pelas suas conotações semânticas que Guignebert e Brown expõem com minúcias e erudição o certo é que "significou aproximadamente ‘o Enviado do Deus', 'o Santo de Deus' ".

A opinião dominante entre os estudiosos modernos é a de que o nascimento em Belém, atribuído pelos Evangelhos de Mateus e Lucas, ou seja, pelos textos que conhecemos hoje sob esses nomes, resulta de um arranjo posterior com o objetivo de mostrar que Jesus era realmente o Messias, que, uma passagem do profeta Miqueias previa que nasceria em Belém, como descendente de Davi. É também essa a opinião de Loisy.

Considero inaceitável que o texto de Miqueias se refira a Jesus, o que, aliás, encontra apoio em Brown. Uma leitura descompromissada do profeta que viveu cerca de sete séculos antes do Cristo revela que ele escreve sobre um futuro líder político-militar nas linhas da tradição judaica e não sobre um pregador de natureza essencialmente religiosa e pacífica, como o foi Jesus. A figura que ele pressente a mover-se além dos véus do futuro é a de um "dominador em Israel", um guerreiro, condutor de guerreiros, como se vê no mesmo capítulo 5, que anuncia, no primeiro versículo, o nascimento, em Belém, do libertador do povo judeu. Assim:

- Que a tua mão se eleve contra os teus adversários e que todos os teus inimigos sejam aniquilados!

Segue-se um inventário das terríveis aflições previstas para os 'inimigos': aniquilação de cidades e fortalezas, de sortilégios e adivinhos, de estátuas e esteias. E, para terminar:

- Com ira e furor tomarei vingança das nações que não ouviram.Não concebo como se possa entrever aí a figura de Jesus, ainda

mais que o texto começa com a profecia da dispersão, após a destruição e consequente abandono do templo de Jerusalém, o que somente se daria no ano 70 da nossa era, depois, portanto, de Jesus. As palavras são estas:

- O Senhor saiu do seu santo Templo! Porque eis que Javé sai do seu lugar santo.Acresce que a menção feita a Belém (naquele tempo chamava-se Efrata) não parece ser

especificamente à cidade, do ponto de vista histórico e geográfico e sim como símbolo da Casa de Davi, numa conhecida figura de sintaxe. Vejamos:

- Mas tu, Efrata, embora pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será dominador em Israel.

Um membro da casa de Orléans, por exemplo, não teria, hoje, de nascer necessariamente na cidade de Orléans e sim nascer no clã dos Orléans.

A ideia de que Jesus seria mesmo aquele belicoso Messias anunciado levou a lamentáveis violências ao texto primitivo. Tornou-se necessário imaginar uma fórmula que, pelo menos

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para aqueles tempos, fosse aceitável para fazer Jesus nascer em Belém. A fórmula do censo, contudo, não foi das mais felizes. Houve, realmente, em censo promovido por Quirino, aí por volta do ano 6 antes do Cristo, mas, como o próprio Lucas também diz que Jesus nasceu no tempo de Herodes, fica o censo de Quirino se é isto mesmo que o redator tinha em mente antecipado de cerca de 10 anos.

Por outro lado, como assinala Renan e com ele concordam Guignebert e outros autores "a jornada da família de Jesus a Belém nada tem de histórica"; sendo difícil admitir-se que "seus pais se vissem obrigados, por uma operação puramente cadastral e de negócios da fazenda, a irem inscrever-se num local donde há mil anos tinham saído seus antepassados".

Guignebert, por sua vez, (13) lembra que a movimentação de famílias inteiras em toda a extensão do Império Romano é algo que ultrapassa os limites da imaginação. Que utilidade teria um censo desses, no qual, as pessoas são interrogadas num único dia, é de notar-se não nos locais onde viviam e tinham seus bens e negócios, mas em remotas regiões, onde viveram seus ancestrais séculos antes? O mais provável é que muitos especialmente entre as classes mais pobres e menos instruídas até ignorassem e não tivessem como apurar quem eram e onde viveram seus antepassados. E nem condições para deslocarem-se até tais regiões de origem. Resta, ainda, um aspecto: mesmo admitindo-se que José tenha sido obrigado a deslocar-se a tão grande distância para uma simples declaração censitária, não se compreende que tenha de levar consigo a esposa, em adiantado estado de gestação, pelos riscos e desconfortos que representava, para ela e para a criança, uma viagem penosa como aquela.

E, afinal de contas, depois de "documentar" o nascimento de Jesus em Belém, com o propósito de assegurar para ele a ascendência davídica, vemos que, na formulação da doutrina do nascimento virginal, os mesmos textos comprometem irremediavelmente a tese de que Jesus tenha pertencido à pretendida dinastia, como se desejou demonstrar com as genealogias elaboradas com esse propósito.

Isto nos leva ao problema seguinte.

II. JESUS É DESCENDENTE DE DAVI?A Escritura não diz que o Cristo será da linhagem de Davi e virá de Belém, a cidade de Davi? (João 7:43)

São irreconciliáveis as genealogias de Mateus e Lucas, tanto diferem elas, não apenas em muitos dos nomes citados como antepassados de Jesus e nos "claros" que deixam abertos, mas também nas suas respectivas conclusões. Afinal, especula Guignebert, por que tanto empenho em ligar José a Davi, se esse mesmo texto afirma que Jesus não é filho de José?

Já Raymond E. Brown (8) declara que "a genealogia não é registro da produtividade biológica do homem, mas uma demonstração da providência divina". Pouco adiante, admite que a genealogia de Mateus é mais "artificial do que histórica na sua estrutura", o que se depreende do seu arranjo certinho, em três grupos iguais de catorze gerações. Brown adverte, ainda, que o espaço de tempo implícito em cada um dos três grupos é grande demais para conter apenas catorze gerações, de vez que decorreram 750 anos de Abraão a Davi, 400 de Davi ao exílio da Babilônia e cerca de 600 daí até o nascimento de Jesus. Tomando-se 30 anos para cada geração, chegamos a apenas 420 anos, ou seja, um total de 1260 anos para as 42 gerações, quando, em realidade, passaram-se cerca de 1750 anos (750 + 400 + 600 = 1750).

Seja como for, ainda segundo Brown o que outros autores confirmam, não exatamente com as mesmas palavras, mas com as mesmas conclusões básicas "a intenção de Mateus é mostrar que Jesus é o Messias davídico e a de Lucas a de que Jesus é o Filho de Deus".

Essas dificuldades levaram os modernos estudiosos do assunto a rejeitar ambas as genealogias. Loisy diz francamente que elas são fictícias. Brown, contudo, imagina uma fórmula conciliatória, dizendo que ...

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- ... a mensagem acerca de Jesus, filho de José, não é a de que ele seja, de fato, também neto de Jacó (segundo Mateus) ou de Eli (segundo Lucas), mas teologicamente ele é "filho de Davi, filho de Abraão (Mateus) e "Filho de Deus" (Lucas). (Grifei).

Embora o erudito teólogo considere a lista de Lucas "mais plausível", do que a de Mateus, admite honestamente que ela não é suficiente para ser tomada como "um registro exato da ascendência biológica de Jesus".

São complexos os problemas suscitados aqui. Mateus encerra a sua genealogia (1:16), dizendo:

- ... Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Çristo.Há, porém, outras redações, como assinala a Bíblia de Jerusalém (17). Uma que parece

aos seus compiladores e tradutores mais aceitável é esta: "José, com o qual se desposou a Virgem Maria, que gerou a Jesus"; e outra, que se reporta à versão siríaca (rejeitada), e diz o seguinte: "José, com o qual estava desposada a Virgem Maria, gerou a Jesus".

Guignebert informa que a descendência davídica de Jesus foi aceita pelos cristãos primitivos, mas o messianato de Jesus "jamais foi deduzido da sua descendência davídica". Justamente o contrário ocorreu: primeiro acreditou-se que "ele era o Messias e daí inferiu-se que descendia de Davi".

Argumento ainda mais convincente encontrou Guignebert no Quarto Evangelho (7:40-42), "que não podia ignorar a crença na descendência davídica, (mas) não a aceita". Quando Jesus termina a pregação constante do capítulo, há exclamações: "Este é o Cristo!" E, em seguida:

- Mas alguns diziam: Porventura pode o Cristo vir da Galileia? A escritura não diz que o Cristo será da linhagem de Davi e virá de Belém, a cidade de onde era Davi?

Impressiona a Guignebert o fato de que o autor do Evangelho não tome partido na disputa deflagrada entre os ouvintes de Jesus. De fato, aí estava excelente oportunidade para uma afirmativa categórica, assegurando que, em verdade, o Cristo provinha da linhagem real e nascera em Belém. Ou que o próprio Cristo dissesse: "Eu sou descendente de Davi".

O certo é que o autor desse Evangelho não acata a informação de que Jesus teria nascido em Belém. João e Marcos têm como certo que ele era de Nazaré, e nenhum dos dois propõe qualquer espécie de genealogia.

Ninguém foi mais enfático e explícito em caracterizar Jesus como o Cristo (Messias), o Salvador, o Ungido, do que Paulo. Jesus é o promotor e o fiador de um novo convênio com Deus, em substituição ao de Moisés. Sua vida, sua pregação e seu testemunho invalidam a Lei antiga naquilo em que especificamente ele não a confirma ou reformula.

Curiosamente, contudo, e apesar das duas referências à descendência davídica de Jesus (Rom. 1:3 e 2 Tim. 2:8), ele nos assegura o seguinte:

- É bem conhecido, de fato, que nosso Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da qual Moisés nada diz quando se trata dos sacerdotes.

E o que se lê na Epístola aos Hebreus (6:14), seu dramático apelo aos irmãos de raça.A genealogia de Lucas adotou a ordem inversa, partindo de Jesus para remontar à sua

ascendência e começa com esta afirmativa:- Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos, e era, conforme se

supunha, filho de José.As vezes parece que as acomodações e interpolações são tão desatentas, que

determinados versículos foram alterados e outros deixados como estavam, a despeito de suas conexões. Colhemos esta impressão ao ler Lucas que, depois de certo contorcionismo verbal para demonstrar que José não era pai de Jesus, confirma, em 2:33, que, sim, era:

- ...o pái e a mãe (de Jesus) estavam admirados com o que diziam dele.E, mais adiante, em 2:41:- ...Seuspais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa.

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Além disso, ao reencontrar Jesus, no templo, a debater com osdoutores (2:48), Maria lhe diz: "Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos".

Aliás, Maurice Goguel (19) enfatiza que, no Quarto Evangelho, "Jesus é, explicitamente, descrito como filho de José". De fato, é o que se lê, logo de início, em 1:45: "Encontramos aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de José, de Nazaré".

E, novamente, em 6:42: "Este não é Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos?" Aliás, o próprio Jesus o declara, ao dizer, em 7:28: "Vós me conheceis e sabeis de onde sou. No entanto, não vim por minha própria vontade".

Qualquer que seja, contudo, a interpretação dada às genealogias, persiste o conflito entre o que elas pretendem dizer e o conceito do nascimento virginal, que passaremos a examinar a seguir.

III. JESUS TEVE PAI TERRENO?Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos. (Lucas 2:48)

Uma palavra de muito afeto e profundo respeito fique, de início, aqui registrada pelos nobres seres humanos que aceitaram a responsabilidade de proporcionar a Jesus a condição de vir desempenhar, entre nós, a sua generosa, difícil e transcendental missão.

Convém considerar, ainda, antes de abordar o aspecto particular do nascimento virginal, uma importante observação de Raymond E. Brown, segundo o qual,

- ...este conceito de profecia como predição do futuro distante, desapareceu da erudição mais séria hoje, sendo amplamente admitido que o 'cumprimento' do Antigo Testamento no Novo envolve muita coisa que os autores do antigo testamento, de forma alguma, previram.

De acordo com este consenso de opiniões, os profetas estavam mais preocupados com os problemas de seu tempo, transmitindo sobre eles o que entendiam ser a palavra direta de Deus. Mesmo referindo-se ao futuro, faziam-no mais em termos gerais, discorrendo sobre o que poderia acontecer se o povo e os dirigentes aceitassem ou não as indicações que eles proporcionavam com as suas candentes exortações.

Por isso, conclui Brown, na sua maneira clara e precisa, acerca dos profetas:- Ainda que algumas vezes hajam pregado um nascimento 'messiânico' (isto é,

nascimento de um (ser) ungido como representante de Deus, e, portanto, um rei ou mesmo um sacerdote), não há evidência de que eles tenham previsto com precisão um só detalhe da vida de Jesus de Nazaré.Para não alongar indevidamente este módulo do livro, é necessário um rígido critério de seleção na escolha do vasto material oferecido pelo erudito Raymond Brown, publicado, repetimos, com expressa autorização da Igreja Católica.

Vamos, pois, resumir o seu pensamento apenas no vetor do nascimento virginal, em seu livro, resignados em abandonar o restante de sua penetrante análise ao que ele chama "the infancy narrative", ou seja, as narrativas da infância de Jesus, segundo Mateus e Lucas.

Como sabemos, tais relatos são pesadamente assentados em Isaías 7:14, que diz o seguinte: "Eis que a jovem concebeu e dará a luz a um filho e pôr-lhe-á o nome Emmanuel".

Estou transcrevendo, mais uma vez, o texto da Bíblia de Jerusalém, embora outras versões ponham, habitualmente, o termo 'virgem' em lugar de 'jovem'. Aliás, em nota de rodapé, observa a Bíblia de Jerusalém:

- A tradução grega traz "a virgem", precisando assim o termo hebraico almah que designa quer a donzela, quer uma jovem casada recentemente, sem explicitar mais. O texto dos Setenta é, porém, um testemunho precioso da interpretação judaica antiga, que será consagrada no Evangelho. Mt. 1:23 encontra aqui o anúncio da concepção virginal do Cristo.

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Ou seja, mesmo reconhecendo que o termo 'virgem' utilizado na tradução grega da Setuaginta coaduna-se melhor com a interpretação católica, a Bíblia de Jerusalém é fiel ao texto original hebraico, no qual a palavra não é 'virgem', mas 'almah', ou seja, uma jovem, uma moça.

Brown é cauteloso e sensato, ao informar que realmente a palavra almah é empregada para caracterizar a moça que atingiu a puberdade e está em condições de casar-se. Nenhuma ênfase é posta no aspecto específico da virgindade, muito embora, no contexto judaico daqueles tempos, praticamente, toda 'almah' fosse virgem.

Guignebert é do mesmo juízo, ao informar que o texto hebraico não contém a palavra virgem, que seria betulah, mas haalmah (jovem mulher), que, nesse caso, teria de ser vertida, em grego, como neanis (uma jovem) e não parthenos (virgem).

Lembra, ainda, o historiador francês que os autores ortodoxos têm feito o possível para 'provar' que haalmah podia, também, significar virgem, mas não há como fazê-lo. (Esclareço que as diferenças de grafia correm por conta dos autores citados: almah e haalmah).

Realmente, é o que vemos nos textos que tratam da matéria sob o ângulo da teologia ou da cristologia ortodoxas, como, por exemplo, em O NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA (17), verbete EMMANUEL.

Ainda com relação à conexão feita em Mateus com a muito citada passagem de Isaías (7:14), observa Brown, reproduzindo, também aí, o consenso das opiniões:

- A criança a nascer não era o Messias, de vez que o messianismo ainda não fora desenvolvido ao ponto de criar a expectativa de um único rei futuro'. Os estudiosos não chegam a um acordo sobre a identidade da criança, mas, na melhor das hipóteses, deve referir-se ao nascimento de um príncipe davídico que livraria Judá de seus inimigos.

Além do mais, há a considerar, como também já foi assinalado, que o profeta fala de uma criança à qual a mãe daria o nome de Emmanuel, o que, também, não foi o caso de Jesus. Com a sua mistura de franqueza e cautela, Brown classifica a divergência de embaraçosa...

Logo, isso nada tem a ver com o nascimento de Jesus. A profecia de Isaías se dirige à sua época, em futuro mais ou menos próximo, pois se trata de um sinal específico pedido no contexto das lutas político-militares de Acaz, mais de sete séculos antes de Jesus.

Mesmo a Setuaginta, contudo, com o termo virgem (parthenos), em lugar do mais correto que seria neanis (jovem mulher), não dá cobertura adequada à concepção virginal desejada pelos teólogos ortodoxos. Segundo Brown, é apenas a maneira de dizer que "uma mulher, atualmente virgem, conceberá, por meios naturais, logo que passe a conviver com seu marido".

Restam ainda outros aspectos suscitados pelo erudito Padre Brown. Apresenta ele três perguntas, assim alinhadas: 1) O texto atual de Lucas contém realmente a ideia de uma concepção virginal? 2) Se contém, teria sido essa ideia introduzida posteriormente em relato que, originariamente, não a continha? 3) Como entender a lógica da pergunta formulada por Maria em 1:34?

Lembro ao leitor o que consta em Lucas 1:34: "Maria, porém, disse ao anjo: Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?"

J. A. Fitzmyer, citado por Brown, declara o seguinte:Quando esse relato (de Lucas) é lido em si mesmo e por si mesmo sem as implicações da

anunciação, segundo Mateus, a José todos os seus detalhes poderiam ser entendidos como se a criança a nascer de Maria viesse pelo usual processo humano.

1 uma interpretação perfeitamente válida, ante o fato de que não há em Lucas qualquer declaração explícita de que o casal não se tenha unido após a anunciação. Ou seja, no momento da anunciação, realmente Maria não se unira ainda ao esposo, o que não quer dizer que não o tenha feito posteriormente.

A corrente dos teólogos tradicionalistas deseja insistentemente fazer crer que, embora

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prometida, Maria ficou grávida sem haver coabitado com José. Cabe, nesta hipótese, a embaraçosa pergunta de Brown: "Se Maria não estava ainda vivendo com José, como teria viajado com ele para Belém?"

Ainda segundo esse teólogo, o impacto da narrativa de Mateus está em "assegurar triunfalmente aos seus leitores cristãos prova de que possam utilizar-se contra qualquer adversário na sinagoga, do plano profético de Deus, segundo o qual o Messias seria chamado Jesus, seria concebido por uma virgem e nasceria em Belém, e, no entanto, seria de Nazaré".

Por tudo isso, Brown, já no fim do livro, prevê que suas conclusões possam parecer demasiado radicais aos crentes, mas prossegue ele:

- Para muitos estudiosos, que há muito tempo descartaram-se da concepção virginal como dramatização teológica, esta conclusão pode até parecer, retroativamente, conservadora.

E conclui, numa espécie de confissão ou desabafo, que, sintomaticamente, coloca entre parênteses:

- (E eu os chocaria ainda mais diz ele afirmando que acho mais fácil explicar a evidência contida no Novo Testamento, em termos de natureza histórica, do que de uma posição de pura criação teológica).

Ou seja, a teologia "embrulhou" as coisas de tal maneira que a precária evidência histórica, tornou-se mais aceitável do que as vãs especulações oferecidas pelos teólogos.

Ficamos, assim, entendendo por que a Igreja tem-se aplicado em minimizar o impacto das ideias postas a circular pelo Padre Brown.

Ainda neste passo, resta apreciar o aspecto particular da anunciação.

IV. O ANJO ANUNCIOU JESUS?O anjo, porém, acrescentou: Não tenhas medo, Maria.(Lucas 1:30)

Em face da quantidade e qualidade dos dados hoje acumulados pela pesquisa psíquica, mais do que simples tolice, seria evidente sinal de ignorância ou preconceito ridículo negar aprioristicamente a possibilidade do fenômeno da anunciação. A Bíblia mesma. Antigo e Novo Testamentos, está repleta de manifestações desse tipo. Ainda que se atribua a certos relatos uma dosagem de crendice, de observação defeituosa ou de mera invenção piedosa para ilustrar e dar força à narrativa, fica um inquestionável resíduo de autenticidade. Cuidaremos disso mais adiante, neste estudo.

É perfeitamente possível que um ser espiritual se tenha manifestado à vidência de Maria, quando solteira, para anunciar-lhe a vinda de um filho de elevada condição evolutiva. A literatura especializada relata casos bem documentados dessa natureza. O próprio Jesus poderia tê-lo feito, ainda na condição de espírito. O que coloca o episódio sob suspeita é o fato de que a família não tenha entendido posteriormente que aquele era um ser excepcionalmente bem dotado que trazia uma tarefa específica, de alta relevância. Não é possível conjugar harmonicamente a informação contida na anunciação com episódios posteriores da vida de Jesus, como, por exemplo, a surpresa dos pais dele em face do debate com os doutores do templo também admissível, em princípio ou a dramática passagem em Marcos 3:20-21, que assim diz:

- E voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a ponto de não poderem se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo porque diziam: Enlouqueceu!

O que indiretamente confirma-se em João (7:5), onde se lê:- Pois nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele.É difícil entender que um filho e irmão, cujo nascimento é anunciado de maneira

desusada, seja considerado por toda a família como um louco que é preciso confinar, na

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tentativa de dissuadi-lo da sua anunciada e transcendente missão e no qual nem mesmo seus irmãos acreditavam. Será que, a essa altura, ninguém se lembra da anunciação e nada sabe das profecias?

Isto nos leva ao tópico seguinte.

V. JESUS TEVE IRMÃOS? Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não vivem todas entre nós? (Mateus 13:55-56)

A despeito dos esforços da tradição ortodoxa, prevalece, hoje, a convicção de que Jesus teve mesmo irmãos e irmãs, um dos poucos aspectos da sua vida, aliás, sobre o qual a evidência é relativamente abundante e conclusiva, em face do pouco que se sabe da sua biografia pessoal.

Disso temos notícia logo no início do texto de Lucas, o evangelista por excelência da natividade, pois foi o que mais se estendeu no assunto.

Ainda uma vez, prefiro socorrer-me do Padre Brown em vez de Guignebert, embora ambos estejam de acordo, variando apenas a maneira de expressarem seus respectivos pontos de vista pessoais.

Antes, precisamos reler os versículos específicos em Lucas (2:6-7) e que assim concluem:Enquanto lá estavam (em Belém), completaram-se os dias para o parto, e eia deu à luz o

seu filho primogênito.Como de hábito, a Bíblia de Jerusalém ressalva que a palavra grega correspondente a

primogênito "não implica, necessariamente, na existência de irmãos mais novos, mas sublinha a dignidade e os direitos da criança".

É uma fórmula reconhecidamente hábil e até elegante de colocar o problema, pois, como se vê, não fecha a questão àqueles que julguem mais acertada a interpretação de que Jesus tenha sido o primeiro filho, mas não o único.

Brown informa, porém, que o termo grego, no original, é prototokos, corretamente traduzido como primogênito, ou seja, o que foi gerado ou nasceu primeiro. Admite até o emprego ocasional como equivalente a monogenes unigénito, ou seja, filho único. Recorrendo, contudo, a Plummer (in A CRITICAL AND EXEGETICAL COMMENTARY ON THE GOSPEL ACCORDING TO S. LUKE (ed. ICC, Edinburgh, 1901) observa ele que "o evangelista não teria usado 'primogênito' para qualificar Jesus, se soubesse que Maria não tivera mais filhos".

E lícito concluir-se, portanto, que não havia, ao tempo de Lucas, a tradição de que Jesus fosse filho único. De qualquer maneira, o emprego do termo "primogênito", em lugar de "unigénito" deixa bem claro que Lucas não pretendeu "apresentar Jesus como filho único de Maria".

Aliás, mesmo preservando-se a ideia de que até o nascimento de Jesus o casamento não se consumara, prevalece, em Mateus (1:25), a implícita informação de que, após o parto o relacionamento do casal foi normal, do que poderia ter resultado outros filhos, como é o caso:

- Mas não a conheceu até o dia em que ela deu a luz um filho.A Bíblia de Jerusalém procura ressalvar a posição da Igreja, no seguinte comentário: "O

texto não considera o período ulterior e por si não afirma a virgindade de Maria, mas o resto dos Evangelhos, bem como a tradição da Igreja, a supõem". (Grifei)

Essa não é, de forma alguma, a convicção de Guignebert, que diz precisamente o contrário:

- O primeiro ponto a ser estabelecido é o de que o nascimento virginal, que é positivamente afirmado em Mateus 1:18-25 e em Lucas 1:580, não encontra eco em nenhuma outra parte do Novo Testamento.

Como acabamos de ver, contudo, é contestável a afirmativa de Guignebert de que o

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nascimento virginal seja tão positivamente afirmado nos textos que ele cita.Ademais, tanto os sinóticos como o Quarto Evangelho mencionam, livremente e sem

hesitações ou subterfúgios, os irmãos de Jesus. Em Marcos (3:31), lê-se que sua mãe e seus irmãos, que não haviam podido chegar até ele por causa da multidão que o cercava, queriam falar-lhe. E o que também se encontra em Mateus (12:46) e Lucas (8:20), bem como na informação refletida em João, há pouco citada, segundo a qual seus próprios irmãos não criam nele.

Em Mateus 13:55 e no episódio paralelo em Marcos 6:1-16 ante a sua pregação na sinagoga de Nazaré, ouvintes admirados perguntam se não era o filho do carpinteiro (Marcos cita nominalmente José), se não eram seus irmãos dali mesmo e conhecidos de todos, como Tiago, José, Simão e Judas.

Coerente com a postura dogmática, a Bíblia de Jerusalém declara, em nota explicativa a Mateus 12:46, que os irmãos aí referidos não eram "os filhos de Maria, mas parentes próximos, por exemplo, primos, que o hebraico e o aramaico também chamavam 'irmãos'

Posição semelhante guardam, até hoje, as igrejas protestantes.Mais uma vez, não é esta a enfática opinião de Guignebert e de outras autoridades no

assunto.- Não precisamos deter-nos escreve o eminente historiador francês em provar que o

evangelista certamente se refere a "irmãos” e "irmãs" no sentido habitual das palavras. Nada há, absolutamente, a sugerir que esses termos devam ser entendidos de outra qualquer maneira, e tal coisa jamais teria sido imaginada se o desenvolvimento do culto a Maria não tornasse, subsequentemente, necessária uma interpretação diferente. Ademais, referências a esses "irmãos" de Jesus são razoavelmente frequentes no Novo Testamento e em nenhuma parte há qualquer ambiguidade acerca deles. Ao que tudo indica, trata-se, inquestionavelmente, de irmãos de sangue.

De fato, é essa espontaneidade convincente que encontramos, por exemplo, em Atos 1:12-14, onde o narrador dá notícia das primeiras reuniões do grupo remanescente, após a ascensão. São citados os apóstolos e outros que "eram assíduos à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele”.

Referência igualmente inequívoca encontramos em Cor. 9:5, onde Paulo interroga:- Não temos o direito de levar conosco, nas viagens, uma mulher cristã, como os

outros apóstolos e os irmãos do Senhor e Cefas?Do que se depreende que não só os irmãos de Jesus participavam, àquela altura, das

atividades do movimento nascente, como eram casados.Como assinala Guignebert, mais adiante, em seu livro, desde muito tempo articulava-se

uma tentativa de "livrar-se dos irmãos e irmãs de Jesus". Por isso, os textos foram de tal maneira "torturados" que acabaram por expressar exatamente "o contrário do que se acreditava".

Por sua vez, lembra Maurice Goguel (19) que, à primeira vista, parece natural considerar apenas os doze discípulos como membros da família espiritual de Jesus. Após a sua morte, contudo, seus irmãos aderiram à sua doutrina e juntaram-se ao movimento nascente, tanto que se criou uma situação que Goguel chama de "dinástica", a partir da ideia de que os membros da família natural de Jesus seriam os mais credenciados para substituí-lo. Reportando-se a Edouard Meyer, Goguel lembra ainda, que também nas origens do Islam e do movimento Mórmon, "tão logo morreu o profeta, um elemento dinástico surgiu e tentou afirmarse".

Isto explica a razão pela qual a direção da primeira comunidade apostólica de Jerusalém tinha sido confiada não a Pedro, mas a Tiago que, em todas as referências, aparece claramente como "irmão do Senhor", .fato sabido de todos e sobre o qual não havia o que debater ou contestar. Paulo é particularmente enfático nesse ponto, ao escrever, em Gálatas

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1:19, o seguinte. "Não vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago, irmão do Senhor". Tiago, irmão de Jesus, era, pois, o dirigente ali.

Embora não seja esse o pensamento ortodoxo, que se tem esforçado por minimizar a evidência de que Jesus teve irmãos, dificilmente se poderia identificar como dirigidas a Tiago, filho de Alfeu, as referências contidas em Atos 12:17 e 15:13, bem como em Cor. 15:7 e Gálatas 2:9.

No primeiro caso, conta-se a libertação de Pedro, da prisão. Chegado à casa de Maria Marcos, mãe do futuro evangelista, o pescador conta o ocorrido aos seus amigos e, em seguida, pede: "Anunciai isto a Tiago". Refere-se, evidentemente, a alguém em posição de autoridade, o que não seria o caso do filho de Alfeu.

No segundo caso, trata-se de texto mais longo, que reproduz um discurso de Tiago que traz as nítidas características de palavra final, de autoridade, no relevante problema em discussão.

No terceiro caso, é Paulo que fala das aparições de Jesus a Cefas, aos demais apóstolos, aos quinhentos e a Tiago.

No quarto, Paulo conta o mesmo dramático episódio constante de Atos 15:13, como vimos, no qual conseguiu consentimento formal e oficial da comunidade-mãe de Jerusalém para pregação aos gentios.

...Tiago, Cefas e João, tidos como colunas, estenderam-nos a mão, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão: nós pregaríamos aos gentios e eles para a circuncisão.

Como se verifica, Tiago tem precedência sobre Pedro.Não para ignorar-se, ainda, o testemunho de Eusébio (21), primeiro escritor a elaborar

uma narrativa que se aproxima do que hoje consideramos como historiografia. Diz ele que alguns heréticos denunciaram às autoridades romanas certos descendentes de Judas “irmão, humanamente falando, do Salvador” de vez que Vespasiano havia determinado a execução de todos os judeus considerados de linhagem davídica e, por conseguinte, relacionados com Jesus. Se o incidente é autêntico, circulava já a noção de que a família do Cristo tinha conexões com a "casa real de Davi".

Seja como for, sobrinhos ou sobrinhos-netos de Jesus foram levados à presença de Domiciano (Imperador dos anos 81 a 96) que lhes teria perguntado inicialmente, se eles eram descendentes de Davi, o que os indiciados confirmaram. Foi-lhes perguntado, a seguir, que propriedades e que valores possuíam. Declararam que seus bens orçavam aí pelos 9.000 denários, importância difícil de precisar hoje, mas que não era uma fortuna, longe disso. O exemplar de que disponho, publicado na Inglaterra, menciona 1.500 libras esterlinas, em termos de poder aquisitivo da época em que o livro foi traduzido (1965), o que correspQnderia, aproximadamente, a 3.000 dólares. Não me arrisco a citar um montante em moeda brasileira, que seria mero palpite.

O certo é que, sem viverem em estado de penúria, e mesmo que seja fantasista essa conexão com Davi, os sobrinhos de Jesus existiam e estavam longe de ser ricos e influentes. Suas terras foram estimadas em cerca de 25 acres, uma fazendola, que eles próprios trabalhavam e da qual tiravam o sustento.

Eles prontamente exibiram seus mais autênticos "documentos": as mãos calejadas e rudes. Não eram do tipo que estaria tramando a tomada do poder civil pela força para sentarem-se em tronos, como descendentes de Davi.

Em resposta a uma pergunta final, disseram que o Reino de Deus, no entendimento de Jesus, não era nada deste mundo, nem de nenhuma parte da Terra, mas no céu e que somente seria estabelecido no final dos tempos, quando ele voltasse, em toda a glória, para julgar cada um segundo sua conduta.

Domiciano concluiu que eram simplórios inocentes, indignos de sua atenção. Mandou libertá-los e determinou fosse encerrada a perseguição.

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Eusébio acrescenta que, uma vez postos em liberdade, eles (não diz quantos) se tornaram "líderes das igrejas, tanto porque deram seu testemunho, como porque eram da família do Senhor".

Graças ao estabelecimento da paz escreve o veterano historiador eles viveram até o tempo de Trajano (Imperador de 98 a 117).

O episódio serve, pois, para evidenciar que se consolidara, afinal, a ideia verdadeira ou não de que Jesus fora descendente de Davi.

VI. JESUS É O MESSIAS?Se tu és o Messias, dize-nos (Lucas 22:67).

Como se verifica, as principais acomodações, interpolações e alterações nos textos evangélicos, especialmente quanto às origens humanas de Jesus, convergem para um único objetivo: convencer ao leitor de que ele é o Messias.

Acontece, porém, que, em vez de facilitar a tarefa dos propagadores da nova doutrina, a ideia dificultou-a sobremaneira, acarretando inesperadas complicações e contradições. Junto aos judeus, em primeiro 58 lugar, porque lhes era inaceitável um Messias executado na cruz. Está escrito em Deuteronômio (21:22-23): "o que for suspenso (a um madeiro ou árvore) é um maldito de Deus”. Tão severa é a ordenação, que o texto não admite, sequer, que o cadáver permaneça suspenso durante a noite, devendo ser enterrado no mesmo dia, a fim de não contaminar com a sua impureza o solo que Javé concedera, como herança, ao povo eleito.

Como aceitar, pois, um Messias que passara pela terrível condenação da lei?Além do mais, Israel esperava, segundo as melhores e mais respeitadas interpretações dos

textos proféticos, um Messias belicoso, um dinâmico líder político, que sacudiria o jugo estrangeiro e estabeleceria, por toda a parte, finalmente, a hegemonia do povo de Deus.

Lembra, não obstante, Guignebert, que o capítulo 53 de Isaías consistentemente considerado pelos pensadores ortodoxos como minuciosa profecia sobre Jesus nada tem a ver com o conceito judaico do messianato e nem cuida de anunciar a vinda de um ungido. "Acreditavam os judeus escreve o historiador francês que ele caracterizava o Servo Ideal de Deus, o Justo, sofrendo por causa de sua retidão”. Em outras palavras: era um ensaio teórico e edificante sobre o bom procedimento, a retidão.

Foi somente a partir do terceiro século que a polêmica com os cristãos forçou os rabinos a aceitarem, relutantemente, o texto como profético.

A outra ponta do dilema estava no mundo pagão, ou melhor, grecoromano. Seria admissível que os judeus examinassem, mesmo para rejeitar, a ideia de que Jesus pudesse ter sido o esperado Messias, mas para os gregos, em particular, e para os gentios, em geral, o conceito não fazia o menor sentido, pois não estavam eles à espera de nenhum libertador político ou religioso. A não serem os mais instruídos, talvez vagamente inteirados de pontos relevantes da cultura judaica, as maiorias étnicas ignoravam esse aspecto, sendo-lhes difícil assimilar qualquer pregação baseada em tal conceito.

Paulo deve ter sido dos primeiros a perceber a seriedade do problema, de vez que tinha de pregar de um jeito aos seus irmãos de raça e de outro inteiramente diverso aos demais. Para os primeiros, insistia em dizer que Jesus era o Messias prometido nas profecias e exatamente porque morrera como um réprobo maldito, diz a lei é que quebrara a maldição que pesava sobre a humanidade em geral e, especialmente, sobre os judeus, que viviam sob o domínio severo da lei. Por isso, diz ele que com o Cristo encerra-se a missão da lei, que exercera apenas a função de pedagogo, ou seja, aquele que guarda e acompanha as crianças à escola, ao encontro do mestre, mas nada tem a ensinar-lhes, no mero exercício de uma supervisão disciplinar. Chegado o Mestre (Jesus), cessava a função do pedagogo (a lei).

Mas como convencer disso os judeus, para os quais não apenas a lei era sagrada, intocável e irretocável, como inaceitável lhes era a imagem que Paulo lhes oferecia do

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Messias?Já para o mundo pagão, a ênfase tinha de ser outra. Jesus era o mediador da salvação,

portador e dispensador do amor divino; perseguido e morto por nossa causa, assumira, por nós, os nossos pecados a fim de livrar-nos deles.

Não resta dúvida, porém, de que é difícil convencer a duas correntes tão amplamente separadas por suas tradições, anseios e expectativas, a aceitarem como artífice de uma revolução íntima, a mesma e tão mal compreendida figura histórica. É, certamente, um tributo à aguda inteligência e à dialética de Paulo que ele tenha conseguido êxito tão significativo. E é por isso, com certeza, que ele diz: "Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo".

Junto aos seus irmãos de raça, seu êxito foi discutível, embora tenha conseguido convencer um contingente respeitável deles. A maioria continuou rejeitando o Messias proposto, fiel às suas leis e tradições.

Junto aos gentios, o sucesso de sua pregação transbordou todas as medidas dos seus sonhos mais otimistas, de vez que as primeiras sementes produziram, em solo generoso, como ensinou Jesus, abundantíssima colheita. Se milhões e milhões de seres consideram-se cristãos, hoje, deve-se, em boa parte, à visão universalista daquele pequeno, teimoso e valente doutor da lei, nascido em Tarso.

Seja como for e por maior que tenha sido o esforço, Jesus não corresponde ao conceito judaico tradicional do Messias. Não é um ser belicoso, voltado para aspectos político-militares, interessado em cumprir certas profecias que previam a vinda de um líder que livrasse o povo de Israel do domínio estrangeiro, mas não somente isso: que também submetesse os demais povos ao domínio de Israel. Jesus não é esse tipo de Messias e, por isso, embora se possa admitir como aplicáveis a ele algumas profecias, as que descrevem um líder político são inaceitáveis para essa finalidade.

Sua identificação com o esperado libertador do povo judeu foi igualmente imprópria, no sentido de que produziu deformações lamentáveis na imagem que dele nos ficou após as infelizes manipulações e acomodações textuais.

Vemos isso de modo mais dramático no Evangelho de Mateus, mas, infelizmente, todos trazem marcas evidentes de enxertias com esse objetivo. No texto atribuído a Mateus, tais marcas são mais profundas e óbvias, dando a nítida impressão de que se partiu das profecias para recontar e reformular a narrativa acerca da vida de Jesus, como denunciam tantos autores.

Na Bíblia de Jerusalém as marcas são graficamente visíveis, de vez que as frases proféticas são reproduzidas em itálicos, com a citação marginal de sua origem, o que é certo, tanto do ponto de vista bibliográfico, como formal.

Vejamos alguns exemplos.Consta em Isaías (7:14) o seguinte, como já vimos:Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de

Emmanuel.Ora, ainda que Jesus não tenha recebido o nome indicado na profecia e que o texto

original não autorize a palavra virgem, como também já vimos, e, finalmente, que esse texto nada tenha com o nascimento de Jesus, os autores da reformulação dos Evangelhos acomodam o texto à profecia, declarando que Jesus é concebido por uma virgem que ainda não coabitara com o seu prometido esposo.

Em seguida, diz outra profecia que o Messias deve nascer na casa, ou melhor, da linhagem de Davi; do contrário não poderia aspirar ao trono. Como as raízes da dinastia davídica estão em Belém, é ali que se faz necessário dizer que nasceu "o guia que apascentará Israel, meu povo''. Para isso, por sua vez, é preciso inventar ou deslocar, no tempo, um recenseamento, a fim de trazer de Nazaré, onde vivia, para Belém, o casal cuja esposa

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aproximava-se da hora do parto. Afinal de contas, não era estritamente necessário nascer em Belém para ser considerado da Casa de Davi.

Outro texto, de Oséas (11:1), dizia: "Do Egito chamei meu filho". Mais uma vez, isso nada tem com o messias e muito menos com Jesus. O texto se refere ao povo judeu e começa assim: "Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho".

O profeta utiliza-se da palavra menino para significar que se tratava de um povo ainda jovem, historicamente, sem consciência de si mesmo, sujeito à dominação egípcia. A expressão meu filho não é, portanto, indicativa de um relacionamento genético pai/filho, mas espiritual, simbólico. Deus toma aquele povo sob sua proteção e amparo como um pai tomaria o filho, para ajudá-lo a encontrar caminho na vida, a realizar-se.

Como, porém, o texto menciona que Deus chamou seu filho do Egito, é preciso arranjar uma fórmula para mandar Jesus para lá, a fim de que posteriormente possa ser chamado, pois já se decidiu que ele é o filho unigénito de Deus, segundo outras mal interpretadas profecias. Em razão disso, surge a história da fuga para o Egito e o retorno.

Dizia-se, também, que o messias seria chamado Nazareno ou Nazareu, aliás, profecia não identificada esta, talvez apenas da tradição oral. O próprio termo nazareno é de incerta origem, tanto quanto de incerto significado. Seja como for, tornou-se necessário trazer Jesus de volta a Nazaré, de onde, aliás, ele talvez nem saíra.

Quanto à fuga, é até possível que a família, sentindo-se ameaçada por qualquer motivo, tenha preferido retirar-se por algum tempo para o Egito. Se, porém, Jesus infante teve de ser deslocado para o Egito, para que invocar textos que nada têm a ver com o messias e nem com ele?

Tomemos mais um exemplo: o da chamada tentação no deserto. Deve ser assinalada, de início, a dificuldade em admitir-se que um Espírito da categoria evolutiva de Jesus tenha passado por tentações daquela sorte, ficando praticamente à mercê de seres muitíssimo inferiores a ele. Havia, porém, alguns textos a aplicar ao caso, ou pelo menos assim o entendiam os redatores daquele tempo. Deuteronômio (8:3) dizia que “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus". Era preciso criar uma situação em que Jesus pudesse dizer essa frase ao suposto demônio que o tentava. Isso ocorre quando, depois de ter jejuado, ele teria sentido fome. O 'tentador' o desafia: ''Se és filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães". Vem, então, a frase antiga.

No mesmo livro (Deut. 6:16) está escrito que não se deve tentar a Deus, tirada, aliás, incongruente, pois Deus não está sujeito a tentações. Pois vão as palavras para a boca de Jesus, depois que o 'demônio' o desafiou a atirar-se pelo despenhadeiro abaixo. Satanás revela-se aí entendidíssimo em textos bíblicos, porque logo após a sugestão, ele a justifica com um dos Salmos (91:11-12), que assim diz: "Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em alguma pedra".

Mais uma vez, é preciso enfatizar, o texto não se refere a nenhum messias, mas, como está escrito no primeiro verso, àquele que "habita na proteção do Altíssimo", ou seja, a toda criatura de bem.

Finalmente, o diabo leva-o para o cume de uma elevação e oferece-lhe o domínio do mundo: "Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares". Jesus teria respondido com outro texto, também sacado ao Deuteronômio (6:13) que assim instruía: "Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto". Com esta, o demônio desistiu.

Pouco importa, nesta, como em outras passagens, o flagrante desrespeito à lógica de uma realidade incontestável. Que sentido faz a cena segundo a qual a figura mitológica do Demônio oferece a Jesus o poder sobre a Terra que este já possui, mas não o "outro"? Mesmo que o demo tivesse em suas mãos o poder sobre o planeta, por que razão iria passá-lo a Jesus?

O mais grave, porém, é que alguns ainda acabaram concluindo que a última citação mencionada atesta a divindade de Jesus, o que não é de espantar, porque para isso foi ela

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articulada.E assim, ficam eventos atribuídos a Jesus ligados a textos bíblicos dos quais tenha sido

possível extrair qualquer conotação, remota que fosse, com o messianismo, ainda que nada tivessem com essa ideia. Estão, nesse caso, a ida para Cafarnaum, as curas miraculosas, o envio de um precursor, a pregação em parábolas, a expulsão dos vendilhões do 62 templo, e vários episódios da paixão. Alguns desses relatos têm um núcleo de autenticidade ou foram inspirados em eventos reais e conhecidos, ou, no mínimo, possíveis. Outros são inaceitáveis ou altamente duvidosos, tendo sido engendrados apenas para dar cumprimento aparente a uma profecia.

Em Marcos é menos abundante o uso de citações antigas para enquadrar episódios da vida de Jesus, mas lá estão várias delas, como a já lembrada expulsão dos vendilhões, que aparece também em João. Os sinóticos, aliás, citam uniformemente um texto de Isaías ("Minha casa será uma casa de oração"), combinado com um fragmento tirado de Jeremias ("...fizestes dela um covil de ladrões"). Em lugar desses textos, João invoca um Salmo que dizia: "O zelo de tua casa me devorará". E põe Jesus a derrubar mesas, espantar animais destinados ao sacrifício e acrescenta: "...tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do templo".

É uma passagem de difícil aceitação pelo seu valor nominal. Embora Jesus contestasse certos aspectos e práticas da religião dominante, ele era judeu, conhecia a lei, falava nas sinagogas e não se opunha ao cumprimento de determinados rituais, pelo contrário, os prescrevia, como ficou evidenciado em várias oportunidades. Até ele próprio os cumpriu. Ainda que, em princípio, condenasse a prática comercial no pátio do templo, ele sabia da necessidade de manter ali os cambistas para trocar o dinheiro de muitas procedências pela moeda corrente nos negócios locais. Quanto aos sacrifícios e oferendas, também não eram do seu agrado, mas ele não parece interessado em acabar com tudo aquilo de uma vez e ainda menos pela violência, que jamais foi de seu hábito. A alguns dos que curou ele mandou apresentarem-se aos sacerdotes para cumprir os rituais prescritos.

Examinemos, a seguir, certas implicações da sua condenação, com o problema do messianato.

Tecnicamente Jesus foi condenado e executado pelo crime político de tentativa de subversão da ordem. Esse, pelo menos, é o motivo invocado e que, por determinação das autoridades, foi inscrito na placa pregada à cruz. Ele teria tentado ser Rei dos Judeus.

Não nos deixemos, contudo, iludir pelas aparências e pelo explícito. É preciso lembrar que as autoridades romanas dificilmente condenariam à pena máxima um pregador dissidente da religião local. O delegado de César nas províncias envolvia-se o menos possível com as disputas doutrinárias dos judeus e nem sequer as entendia muito bem. Contanto que suas rivalidades e discussões não provocassem distúrbios e tumultos, que cada um seguisse o seu caminho. Era exigido, apenas, respeito incondicional a César, no que Jesus foi mais liberal do que autorizava o pensamento quase unânime de sua gente, pois ele admitiu, sem restrições, o pagamento dos tributos exigidos pelo poder opressor. Jamais um Messias político, enquadrado no contexto das profecias conhecidas, teria assumido tal atitude.

Sua condenação como aspirante ao trono de Israel, por conseguinte, é uma incongruência histórica, explicável, contudo. Sabendo que não podiam eliminá-lo apenas sob a acusação de que ele pregava ideias e práticas que se chocavam com as da religião tradicional, os interessados na sua morte tramaram para que prevalecesse a acusação de que ele se considerava o Messias político prometido nas profecias, ou seja, um Messias subversivo, que expulsaria os romanos da Palestina e submeteria a Israel todos os demais povos.

Se a acusação era legítima ou não, não vinha ao caso; o importante era convencer a autoridade romana de sua autenticidade. É até provável quase certo que Pilatos não se deixou impressionar, de início, pela evidente manobra, pois ele relutou o quanto pôde para eximir-se daquele julgamento, dado que não via Jesus como criminoso político, mas como vítima de

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uma conspiração local porque sua pregação ameaçava a estabilidade do poder religioso e privilégios aos quais a classe sacerdotal não estava disposta a renunciar.

Se, contudo, Pilatos relutava em condenar o acusado, e certamente o teria liberado, acabou cedendo, não tanto à pressão popular, que ele devia perceber que era programada e dirigida pelo templo. Alguma palavra secreta deve ter sido murmurada ao seu ouvido. O mais provável é que o tenham ameaçado de levar o caso ao conhecimento do próprio César. Seria, em tal hipótese, imprevisível a reação de Tibério, que via complôs por toda parte, ante a suspeita de que um de seus prepostos na distante província não estava sendo suficientemente zeloso para condenar alguém que, pelo testemunho dos líderes religiosos locais, tramava para restaurar a soberania judaica, pela violência.

Seja como for, Jesus foi condenado e executado por crime político por um Pilatos mais acovardado e pressionado do que convicto da validade da acusação. Era melhor entregar um pregador galileu à morte do que ter sua própria cabeça em risco por ordem de César, por haver desleixado no cumprimento de seu dever de zelar pelos interesses de Roma na agitada e distante província.

Não é, pois, de surpreender-se que a condição messiânica de Jesus, publicamente proclamada pela autoridade romana, depois de denunciada pelas hierarquias religiosas, tenha contribuído, de maneira decisiva, para que até alguns dos seus discípulos, senão todos, acabassem convictos de que ele fora mesmo o Messias previsto nas profecias. E que só não chegara a cumpri-las por ter sido apanhado antes de completar a sua tarefa. Se discípulos e apóstolos não chegaram exatamente a essa conclusão, pelo menos a segunda geração de cristãos foi, pouco a pouco, sendo convencida dessa condição. E sintomático, porém, que os 64 apóstolos tenham permanecido em expectativa, como que imobilizados, à espera do retorno triunfal de Jesus. Quem sabe se, a despeito de tudo e afinal de tudo, não seria ele mesmo o Messias? Só que não o guerreiro das profecias, mas o vencedor de uma outra espécie de vitória, que voltaria acolitado por anjos e santos para implantar o reino de Deus na Terra, como esperavam tantos.

De qualquer maneira, os textos começaram a ser reescritos nesse sentido. Isto explicaria, não apenas o critério de colocar as profecias lado a lado com os eventos de sua vida, ou a narrativa de tais eventos sempre reportada a uma específica profecia ou salmo; explicaria, também, as contraditórias noções e definições acerca do Reino de Deus, como ainda veremos neste livro.

A despeito das manipulações posteriores, contudo, ficaram veementes indícios de que Jesus jamais se considerou o Messias da tradição judaica. Um desses indícios está na surpreendente questão levantada por João Batista, segundo consta em Mateus (11:3): "Es tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?" manda-lhe perguntar João.

Duas hipóteses poderão ser suscitadas por esse questionamento. Primeira: a cena do batismo de Jesus é falsa, naquilo em que o mesmo Batista proclama Jesus como Enviado, de que ele não é digno nem de desatar as sandálias. Segunda: depois de criada toda a expectativa messiânica e revitalizadas as esperanças redentoras de sempre, João percebe que Jesus não está nada interessado em realizar-se como Messias judaico. Os anos passam e ele não arrebanha prosélitos em número suficiente e com preparo adequado para a tomada do poder civil. As dúvidas assaltam João e ele manda perguntar a Jesus de maneira direta e objetiva, se ele é ou não é o Messias esperado.

Jesus lhe responde com extrema habilidade e inteligência. Que o próprio João o julgue: os cegos veem, os coxos andam, os "mortos" ressuscitam. No entanto, cala-se sobre os aspectos políticos. Equivale isso a dizer: "Trago comigo as credenciais de um enviado, sim, para servir, para amar e pregar uma doutrina libertadora, mas não sou o Messias no sentido político das expectativas tradicionais".

Lamentavelmente, porém, ficaria decidido mais tarde que tinha sido mesmo aquele

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Messias bíblico, a despeito de suas próprias convicções pessoais. Messias ficou sendo e os textos, para usar a expressão de Guignebert, foram "torturados" para mostrar essa teoria, dado que as narrativas evangélicas são prioritariamente elaboradas para provar determinadas teorias e não para narrar singelamente uma história e reproduzir somente os ditos autênticos de Jesus.

Em Lucas, a utilização de citações no contexto da narrativa é ampla e variada. O "Magnificat", atribuído a Maria, é uma coletânea bíblica de profecias e salmos, como também o "Benedictus", que Zacarias recita "repleto do Espírito Santo", ou seja, em transe. Diga-se de passagem aliás, que este é um dos pontos em que, segundo Pastorino, o texto grego original não autoriza a tradução "cheio ou repleto do Espírito Santo” e sim, "cheio de um espírito santo", ou melhor, "sob a influência de um espírito". (32)

Quanto á morte na cruz, cada qual a vê de um jeito. Mateus e Marcos lembram o Salmo 22 "Meu Deus, por que me abandonaste?" A sede saciada com fel e vinagre, é um eco do Salmo 69. Lucas nada diz sobre a sede, nem sobre o abandono divino; prefere o Salmo 31, para descrever o ato final: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito". João menciona a sede saciada pelo vinagre (não fala do fel) e conclui: "Quando Jesus tomou o vinagre, disse: 'Está consumado!' E, inclinando a cabeça, entregou o espírito".

Não se encontram em João, por outro lado, os insólitos fenômenos cósmicos, nem o rompimento do véu do templo, nem o espetáculo dos mortos a saltarem dos seus túmulos. Mas é bastante pródigo ele na citação de textos antigos para explicar episódios reais ou imaginários que teriam ocorrido com Jesus: o sorteio de suas vestes entre os soldados (Salmo 22), o fato de que os ossos do Cristo não foram partidos (Salmo 34), ou a referência, em Zacarias, sobre os que olhariam para aquele que traspassaram (12:10).

Em suma: Jesus é um Messias, no sentido de enviado, de missionário, incumbido de uma tarefa da mais alta relevância no processo evolutivo da humanidade; um indicador de rumos, um reformista religioso, social e ético, um espírito de elevadíssima condição. Não, porém, o Messias judaico previsto nos textos tidos como proféticos do Antigo Testamento. Os redatores dos Evangelhos sinóticos não são historiadores, nem estão interessados em narrar coerentemente uma vida, mas em provar uma tese: a de que Jesus é o Messias prometido pelos antigos e de que nele se cumpriram as profecias. Foi, contudo, incompetente, para dizer o mínimo, a escolha indiscriminada de profecias para dar apoio a eventos reais. Pior do que isso, foi a inclusão de episódios duvidosos ou francamente falsos com a intenção de dar como realizadas profecias que, no atender dos redatores, aplicavam-se ao Messias e, portanto, a Jesus.# * *

VII.JESUS É DEUS?Se me amásseis, alegrar-vos-íeis, por eu ir para o Pai, porque o Pai é maior do que eu. (João 14:28).

Este é o próximo problema a tratar.Guignebert encerra o seu excelente livro com um comentário desalentado, ao declarar: 66- E discutível, contudo, se o dogma da ressurreição, que tem sido durante tanto tempo a

coluna-mestra do cristianismo, não se tenha tornado, em nossos dias, uma carga pesada demais para ser suportada.

E certo que a ressurreição tem proporcionado, e continuará a fazê-lo por algum tempo, considerável embaraço à teologia moderna, que, lamentavelmente, deixou-se influenciar, consciente ou inadvertidamente, pela pressão que as correntes materialistas têm exercido sobre as estruturas do pensamento contemporâneo, em todos os seus aspectos: político, social, filosófico, religioso, científico, moral, econômico, histórico, enfim, sobre todas as manifestações da vida inteligente na Terra.

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Como que intimidada e acuada pelos seus desabridos questionadores, a teologia não encontra em si mesma o que dizer-lhes, como explicar certos aspectos que, evidentemente, se tornaram incômodos e ameaçam suas estruturas. Ante sua incapacidade de responder coerente e inteligentemente a certas interpelações, que reconhece legítimas, a teologia tem preferido calar-se, fechada sobre si mesma, como assinala o Dr. Schweitzer, temerosa até mesmo de examinar a historicidade de Jesus, segundo os modelos da metodologia crítica. Por que? Seria somente receio ou tem ela certeza de encontrar, ao final de suas pesquisas, um Jesus diferente daquele que ficou cristalizado nos dogmas?

Esse acovardamento em atacar o problema, sejam quais forem as consequências, é uma forma de acomodação, mas é, principalmente, uma dramática, eloquente e incontestável confissão de impotência, uma daquelas situações em que o silêncio fala mais alto do que o grito. Sim, porque se dispusesse dos argumentos adequados, a teologia não hesitaria em proclamá-los alto e bom som.

O problema da ressurreição não apenas é espinhoso, mas insolúvel, no embate ideológico entre a teologia dogmática e as correntes materialistas do pensamento universal, pois a solução não está em nenhuma das duas alternativas. É que para fazer calar o questionamento materialista a teologia teria de abrir mão de posições milenares que a Igreja não quer e não pode abandonar sem renunciar a quase tudo quanto ela é e significa.

O grande problema, a meu ver, não é tanto o da ressurreição, como propõe Guignebert, mas o da divindade de Jesus, para o qual a única "resposta" da Igreja terá que ser, forçosamente, a do recuo, pois não há opções válidas e aceitáveis, como as há para o da ressurreição, mesmo com perda de prestígio.

Alguns teólogos mais lúcidos e corajosos começam não apenas a entender isso, mas a ter a coragem de proclamá-lo, como Hans Kung, que assim se expressa:

- Contra todas as tendências de divinizar Jesus, deve ser constantemente enfatizado, mesmo hoje, que ele foi total e inteiramente homem com todas as consequências que isto acarreta (predisposição ao sofrimento, ao temor, à solidão, à insegurança, às tentações, às dúvidas, possibilidade de erro).

Devo dizer que não concordo, neste passo, com todo o pensamento do eminente teólogo católico e ainda teremos de falar sobre ele. No meu entender, ele recai no extremo oposto, exagerando as condições humanas que atribui a Jesus. E preciso, contudo, considerar que, sem ser Deus, como querem tantos, Jesus é um ser de elevadíssima posição evolutiva, nada sujeito às fraquezas que o autor assinala, próprias e encontradiças na criatura infinitamente menos evoluída. O que pretendo destacar é que, considerando Jesus, total e inteiramente humano, Kung deixa claro que não vê nele "espaço" para ser também Deus.

E preciso lembrar-se que Kung não tem apoio da Igreja para essas e outras revolucionárias afirmativas; pelo contrário, foram-lhe cassadas certas prerrogativas, embora não sumariamente declarado herético. Ele propõe ir abandonando, aos poucos, à sua própria sorte, a tormentosa questão da divindade de Jesus. Sabe-se, por outro lado, que não é ele voz solitária, sendo apenas dos primeiros que assumem, declaradamente, tal posição, com todos os riscos que isto possa acarretar ao seu "status" eclesiástico.

Estamos, porém, nos antecipando, levados pela empolgação com o tema. O que desejamos, por enquanto, é apenas examinar a tradição documentada, em busca de indícios de que Jesus tenha-se considerado Deus. Ou que seus seguidores imediatos tenham-no assim considerado.

Nos textos evangélicos propriamente ditos existe apenas uma referência, em João, que poderia ser interpretada como de sustentação à divindidade de Jesus. Isto ocorre quando, após manifestar-se materializado aos apóstolos, "estando as portas fechadas", Tomé testou a aparição com o toque e teria exclamado: "Meu Senhor e meu Deus!" (João 20:28).

A declaração, não meramente duvidosa, é inaceitável e traz a marca inconfundível das

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"piedosas" interpolações e manipulações posteriores, como estamos vendo aqui.Como assinala Guignebert, a exclamação atribuída a Tomé "jamais teria saído da boca de

um judeu". Ela representa a fase final do desenvolvimento de uma cristologia, que primeiro chamou-o de Senhor, já no contexto da comunidade grega. A ideia de que Jesus seria o próprio Deus manifestado entre os seres humanos, como ser humano, não vai além do segundo século da nossa era, quando examinada retroativamente, pois somente começa a emergir nas Epístolas atribuídas a Inácio de Antioquia, cuja data, lamentavelmente, é difícil de determinar com precisão, mas alcançam aquela época.

Voltaire (22) já se referira às diversas etapas desse desenvolvimento. A princípio, Jesus foi considerado um homem inspirado por Deus; em 68 seguida, como criatura mais perfeita do que as outras (Com o que estou de acordo eu, HCM). Pouco depois, atribuiu-se a ele uma posição acima dos anjos, como diz Paulo, com o que também concordo, se conceituarmos os anjos como seres que já alcançaram elevado estágio evolutivo. Tornou-se, depois, emanação temporal de Deus, mas ainda não era suficiente: fizeram-no nascer antes do próprio tempo, consubstanciai com Deus.

Informa, ainda, Voltaire, no verbete DIVIIMITÉ DE JESUS, de seu Dicionário, que Eusébio, bispo de Cesareia, declarou, ifa sua HISTORIA DA IGREJA, ser "absurdo que a natureza não engendrada e imutável do Deus todo-poderoso tome forma humana". E cita Justino e Tertuliano que disseram a mesma coisa. /

Não encontro, porém, a referência de Eusébio.Ao contrário do que afirma Guignebert sem explicitar a observação com as citações

apoiadoras de que Paulo atribuía a Jesus condição divina, Voltaire é enfático, ao declarar que Justino e Tertuliano recorrem precisamente a Paulo, "que jamais chama/esus Cristo de Deus e o chama, com muita frequência, de homem"/

Semelhante juízo ocorre a Frederick D. Kershner (23), ao observar que o pensamento de Paulo sobre a questão da divindade não é claro, mas "ele era judeu e nenhum judeu jamais pensou que existisse Deus, no verdadeiro sentido da palavraexceto Jeová".

Sem dúvida, Paulo conservou muitos dos conceitos bíblicos de sua crença de origem e essa é, evidentemente, uma delas, gravada para sempre no texto do Primeiro Mandamento. Mesmo convertido ao cristianismo, sua formação cultural é a de um rabino judeu, dos mais brilhantes discípulos de Gamaliel. Seu Deus é, explicitamente, o Deus bíblico, justo, mas irado, quando necessário; severo, sempre que não hesita em castigar o faltoso. Acho, porém, que nem passou pela cabeça de Paulo que o problema da divindade de Jesus pudesse, um dia, ser suscitado. Se isto lhe ocorresse, ele teria deixado bem explicitada a sua posição, como o fez em vários outros aspectos de relevo.

Não há, pois, apoio nos textos evangélicos para o dogma da divindade de Jesus, por melhores que sejam os esforços dos exegetas interessados na sua preservação, nem mesmo a partir do muito citado texto de João, segundo o qual Jesus declarou: "Eu e o Pai somos um".

Estar unido a Deus, sentir sua presença, interpretar sua vontade, está longe de ser o mesmo que Deus. Sob esse aspecto, convém lembrar o belo conceito atribuído a Paulo, segundo o qual "vivemos e nos movemos em Deus e nele temos o nosso ser", bem como aquele outro em que Jesus declara, ainda segundo João: "Vós sois deuses".

Vale aqui uma digressão. A exclamação figura em João 10:34. Trata-se do episódio em que os judeus (genericamente) pressionam a Jesus para que ele diga logo, sim ou não, se é mesmo o Messias. Jesus lhes responde que já lhes dissera, mas eles não o acreditaram e que dão testemunho dele as obras que realiza em nome do Pai, com o qual ele é um. Ante essa declaração, aprestam-se os judeus para apedrejá-lo e ele deseja saber por que. "Blasfêmia dizem pois, sendo homem te fazes Deus". Segue-se a pergunta:

- IMão está escrito em vossa lei: "Digo-vos: Sois deuses"?A Bíblia de Jerusalém coloca a pergunta da seguinte maneira:

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- Não está escrito em vossa lei: "Eu disse: Sois deuses?"No primeiro caso, o ponto de interrogação não faz parte da citação e sim da frase de

Jesus, o que suscita certa perturbação no sentido. Acham estes últimos tradutores que a pergunta "dirige-se aos juízes, chamados 'deuses', metaforicamente, por causa de seu ofício, pois 'o julgamento cabe a Deus'."

A citação original, contudo, em Salmos (82:6), parece não autorizar essa conotação: "Eu declarei: Vós sois deuses, todos vós filhos do Altíssimo; contudo, morrereis como um homem qualquer, caireis como qualquer um dos príncipes".

O texto não é, por conseguinte, interrogativo e sim afirmativo: sois deuses por causa da condição de filhos de Deus, da mesma forma que os filhos dos nobres e príncipes são nobres e príncipes e que, a despeito dessa condição, estão sujeitos a quedas, como qualquer mortal.

Enfim, estamos todos em Deus, mesmo porque nada pode existir além dele, que ele não haja criado e que ele não sustente, se é que admitimos a premissa incontestável de que tem de haver, necessariamente, uma vontade consciente, inteligente e ordenadora no universo. O ser humano não pode deixar de trazer em si uma fagulha da essência divina, de vez que o efeito inteligente precisa provir de uma causa igualmente inteligente. Não é difícil admitir-se que em nenhum ser de nosso conhecimento essa consciência da presença de Deus, de estar em Deus, de viver em Deus, seja tão desenvolvida e aguda quanto em Jesus. Até Renan reconhece isto.

Não vemos, porém, em nenhuma parte do Evangelho qualquer palavra dele que nos leve à conclusão de que ele se julgava igual a Deus, ou mesmo, manifestação, ou aspecto da divindade, como mais tarde impôs a teologia com o dogma da Trindade. Encontramos, ao contrário, constantes declarações de que seu objetivo era fazer a vontade de Deus, que o enviou. Em Mateus (24:36) está a declaração enfática de que "daquele dia e da hora (do seu retorno) ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai".

Aí está, pois, uma personalidade (Jesus) que, sendo Deus não poderia ter sido enviado por Deus, ao qual obedecia, como o provou, da mesma forma que não poderia ignorar o momento do seu próprio retorno.

Haveria, então, um Deus que ordena e outro que obedece? Um que sabe e outro não? E que conceito é esse de Deus que leva a ter de admitir-se o seu aprisionamento nas limitações de uma vida física na Terra? Deus seria, então, um ser encarnável? Ou, na melhor hipótese, submetido ás estreitezas e limitações do contexto humano?

Renan, do qual discordamos tantas vezes, tem, sobre isto, expressões felizes, como se pode ler em sua VIDA DE JESUS, pág. 61:

- ... Deus não lhe fala como a quem está fora dele; Deus está nele; ele sente-se com Deus, e tira do seu coração o que diz de seu Pai. Vive no seio de Deus por uma comunicação de todos os instantes; não o vê, mas ouve-o sem carecer de trovões nem de sarça ardente como Moisés, de tempestade reveladora como Jó...

E mais adiante, pág. 196:- Que Jesus nunca pensou em querer passar por uma encarnação do próprio Deus, é do

que ninguém pode duvidar.Por duas vezes, no Evangelho de João, encontramos textos nos quais constam verdadeiras

defesas formais ante a acusação de que "sendo homem, se fazia Deus", ou que, dizendo-se filho de Deus, fazia-se igual a Deus.

Duas oportunidades de ouro para o Quarto Evangelho confirmar a divindade de Jesus, mesmo que ele a negasse, como se vê do texto. Mesmo assim, a Bíblia de Jerusalém faz sua habitual ressalva, ao declarar, em comentário à afirmativa de que "o Pai é maior do que eu":

- Igual ao Pai, o Filho tem a sua glória velada presentemente; seu retorno ao Pai a manifestará de novo.

O problema da divindade é, pois, uma contradição em si mesma, um paradoxo, de vez

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que sendo dos mais simples de resolver é o que mais amplas consequências poderá acarretar pelas suas graves implicações. Simples porque só admite uma solução a do recuo. Não dá mais para admitir, perante a mentalidade moderna. Deus reduzido à condição humana, prisioneiro de um contexto limitado, sujeito a julgamento e condenação, suplício e morte. Ou não seria Deus. Por mais elevada que seja sua condição evolutiva e é, de fato Jesus é humano, nasce, cresce, vive e morre o seu corpo.

Por outro lado, sendo ele Deus, ficaria, para nós, não um modelo, um objetivo a alcançar, uma meta atingível, mas um sonho irrealizável e até incompreensível.

Jesus nunca admitiu essa condição, impensável para um ser nascido, criado e educado no contexto judaico, no qual até o nome de Deus fora impronunciável. Deus não podia, sequer, ter representação figurada em imagens, gravuras, estátuas ou símbolos. Ainda que Jesus ignorasse ou desconhecesse a distância que vai da criatura ao Criador e esse não é, definitivamente, o seu caso dificilmente ele se poria como Deus, não só pela sua formação doutrinária, como pela tenaz resistência do meio em que vivia a essa ideia esdrúxula e, acima de tudo, pela vastidão da sua sabedoria. Aliás, um dos motivos básicos da sua pregação é o tema Pai/filho. Ele não diz, sequer, que é filho unigénito, mas inclui, insistentemente, todos os seres humanos na categoria de filhos de Deus. Os exemplos são abundantes; não há como duvidar de que essa foi a sua convicção. Obviamente ele fala da integração de seu pensamento, da sua vontade, no pensamento e vontade de Deus. Aqui veio por ordem do Pai, como filho e servo obediente, para cumprir uma tarefa missionária entre os seres humanos, seus irmãos.

Ao ensinar a orar, construiu uma prece que começa com a inconfundível expressão PAI NOSSO. Não é MEU Pai, é NOSSO, de todos. E ensina que a esse Pai devemos nos dirigir pelos caminhos da prece, que ele não dará pedras a quem pedir-lhe pão. "Sede perfeitos, como VOSSO PAI..." Se perdoarmos os que contra nós pecaram, também nosso Pai perdoará nossos próprios erros.

De outras vezes, surge, também, a expressão MEU PAI, referindose a Deus, especialmente em João, mas isso não exclui a condição de Deus como pai de todos. Mesmo assim, contudo, encontramos em João (14:28) a declaração de que "o Pai é maior do que eu", o que significa que, por mais que tenham sido adulterados os textos, não foi possível fazê-los falar da divindade de Jesus, a não ser em interpolações inadequadas e forçadas, como na incrível exclamação atribuída a Tomé. O que se vê é precisamente o contrário: Jesus declarando-se diferente de Deus, sujeito a ele, cumprindo sua vontade, obediente aos seus propósitos. Seria inconcebível uma das três manifestações de Deus sujeita à outra que, neste caso, lhe seria superior, com poder e autoridade sobre ela.

Estamos, pois, ante uma ficção que acabou suscitando embaraços praticamente insuperáveis aos teólogos modernos. Como sair de uma situação dessas sem acarretar danos irreparáveis às bases de sustentação doutrinária? Muitos concordam hoje, mesmo na Igreja, em que Jesus não é Deus, mas como traduzir isso em ação? Onde corrigir? Que soluções propor? Para onde recuar? A que custos e sob que consequências e implicações? Ninguém sabe se as estruturas eclesiásticas resistirão à retirada de pedra tão importante aos seus alicerces. Há um temor generalizado de que o edifício possa ruir irrecuperavelmente. Já bastou a agitação interna provocada por certas decisões do Concílio Vaticano II para assustar a ala conservadora da Igreja. Imagine se, logo em seguida, questiona-se a divindade de Jesus...

Vive, portanto, a Igreja um dilema, comprimida entre a insustentável posição de não poder mais impor a toda a gente conceitos como o da divindade de Jesus e a pressão, cada vez mais intensa, de cristãos que não admitem os dogmas, ou daqueles que se não se filiam à Igreja por causa desse e de outros conceitos inaceitáveis. Ou, ainda, dos que a abandonam porque não encontram nela respostas adequadas aos conflitos íntimos suscitados por preceitos

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inaceitáveis. Quando os próprios teólogos começam a achar estranho que uma criança aponte para a imagem de Jesus crucificado e diga que ali está Deus, realmente, as coisas não vão bem. Além disso, sabem eles, teólogos, que, daqui mais um pouco, aquela criança também vai rejeitar a ideia da divinização de um ser humano como preceito indiscutível, sem o qual não poderá ser considerada cristã.

Muito bem, se sem isso não posso ser cristão, paciência. Então, é porque não há espaço para mim ali.

Não há, pois, como sustentar a divindade de Jesus, mas o recuo está sendo adiado. Enquanto isso, continua tudo a funcionar como dantes, como se nada houvesse de grave na teorização que deveria sustentar a prática religiosa. Prosseguem os ritos, as cerimônias, as pompas, os sacramentos, as missas e tudo o mais, enquanto as naves vão ficando despovoadas e vazios os seminários.

Como dizer a toda essa gente que Jesus não é Deus?

VIII. RESUMO E CONCLUSÕESEm verdade, em verdade, vos digo: Antes que Abraão fosse feito, eu era. (João 8:58)

* A historicidade de Jesus acha-se hoje irreversivelmente estabelecida e consolidada. A despeito da exígua informação documental existente, não há dúvida de que ele foi uma personalidade real que viveu em contexto conhecido de tempo, espaço e condições históricas, geográficas, sociais, humanas, enfim. Não é um mito, como alguns desejaram, sem êxito, demonstrar. Existiu, de fato.

* Há objeções muito sérias à informação de que Jesus tenha nascido em Belém. Ao que tudo indica, nasceu em Nazaré, ou, pelo menos, nas suas imediações, na Galileia, e não na Judeia, onde fica Belém.

* As genealogias preparadas para convencer ao leitor da ascendência davídica de Jesus são conflitantes e irreconciliáveis. Além do mais, chocam-se frontalmente com o conceito do nascimento virginal, também interpretado como condição messiânica. Se José não é o pai de Jesus, para que traçar-lhe a genealogia?

* A ideia da concepção e a do nascimento virginais são acomodações posteriores e foram incompetentemente introduzidas no texto, forçando-o a dizer, em alguns versículos, o que outros contradizem, explícita e implicitamente.

* A anunciação pode ter ocorrido, em face fenômenos semelhantes em todos os tempos, remotos e modernos, dos quais Antigo e Novo Testamentos dão testemunho, mas se torna inexplicável ante o procedimento da família de Jesus, durante a sua vida.

* São inquestionáveis e bem documentadas as evidências textuais de que Jesus tenha sido filho de José e Maria e de que teve irmãos de sangue, sendo ele, provavelmente, o mais velho (primogênito).

* No estrito sentido judaico, é evidente que Jesus não preenche as condições previstas para o esperado Messias, sempre caracterizado como um líder belicoso e carismático, com função claramente político-militar. Para os gentios, o conceito judaico não fazia sentido e não oferecia o menor apelo. E certo, contudo, que no âmbito meramente semântico da palavra Messias = enviado Jesus é, em verdade, um messias, ou seja, um enviado, um emissário de elevadíssima condição, formulador de uma mensagem libertadora, no sentido espiritual.

* Não há dúvida de que Jesus jamais pretendeu passar por Deus. Nem seus seguidores imediatos apóstolos, discípulos e pregadores da primeira hora, como Paulo admitiram ou, sequer, cogitaram dessa possibilidade.

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4. PAUSA A DOCE MENSAGEM DA

MADRUGADA NO JARDIMVai porém, a meus irmãos e dize-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus. (João 20:17)

São compridas e lentas as horas mortas da noite, quando o coração parece ter explodido de dor no peito e o mundo inteiro é um só quarto escuro, onde, de cada canto, espreita uma angústia vigilante.

Por isso, enquanto rolava seu corpo no catre humilde, rolava também pela cabeça atormentada de Maria um tropel alucinante de imagens, de sons e de dores que se corporificavam como fantasmas. E ela não conseguia livrar-se daquele turbilhão, dominada e arrastada como frágil penugem de um pássaro na crista do furacão. Nem lágrimas tinha mais, ao que parece, pois elas haviam cessado de correr pelo rosto abaixo.

E voltava a repassar as cenas de sua vida, num processo mágico incompreensível, desde que Jesus expulsara de seu corpo os demônios que a atormentavam sem cessar. Em verdade, ela só existia a partir daquele momento. Antes, vivera um tumulto dentro de um pesadelo e, a não ser nas pausas, cada vez mais raras, de consciência e lucidez, fora tudo uma permanente irrealidade, na qual ela como que se via a cometer desatinos, sem poder impedi-los, subjugada a vontades que eram mais poderosas do que a sua e que pareciam divertir-se com seus tormentos.

E não haveria de segui-lo daí por diante? Claro, até os confins do Universo, onde quer que ele fosse, neste mundo ou em outros, além das estrelas...

No entanto, estava tudo acabado... Mataram-no! Sepultaram-no naquele mesmo dia e, como já se acendiam as primeiras luzes da vigília, não houve sequer tempo para cuidar de seu corpo, segundo os rituais da morte, como ele tão bem os merecia, o Mestre amado. Limitaram-se a envolver seu corpo macerado e sangrento numa peça de linho, depois de prenderem-lhe os pulsos com uma tira e o maxilar com outra. Sobre cada pálpebra depositaram uma pequena moeda para ajudá-las a se manterem fechadas. Junto dele puseram os óleos e as essências destinadas às últimas homenagens no preparo do cadáver. Isto, porém, somente poderia ser feito depois de decorridas muitas e agoniadas horas, pois a lei vedava o trato de cadáveres enquanto perdurasse o sabá.

Fora muito difícil arrancar-se dali. Maria contemplava-o através de suas lágrimas para guardar bem no fundo da memória cada traço de seu rosto, no qual se fixara a paz imperturbável dos justos e dos puros. Não havia aí nem o mais leve toque de angústia, revolta, inquietação ou decepção. Nem de dor. Serenidade, era a palavra, se é que palavras ainda serviam para descrever aquele momento. Ele estava em paz com Deus, consigo mesmo e com o mundo que acabara de rejeitá-lo. Como sempre esteve, aliás.

| agora? Para onde ir, o que fazer, como viver sem ele, sem a sua presença, a sua voz, a sua palavra, o seu olhar penetrante, lúcido, tranquilo? Que fariam as multidões que o procuravam em busca de alívio para os males do corpo e da alma? Quem daria prosseguimento à sua tarefa, ainda que imperfeitamente, mas, pelo menos, para manter viva a chama que ele acendera no coração de muitos?

Só restavam o desalento, a solidão e a dor. Ele partira para sempre. E certo que costumava dizer que iria adiante para cuidar de que todos ficassem bem acomodados no Reino do Pai, quando lá chegassem, mas até quando? Mesmo sabendo disso e confiando na sua palavra, ele deixara de ser uma presença, uma voz que a gente ouve, um gesto que se vê,

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um olhar que nos contempla e nos entende. Ele se fora...Maria voltou a chorar, baixinho para não incomodar ninguém, mas quem ali estaria

esquecido da dor? Quem ali conseguira adormecer, sabendo que ele partira para sempre do convívio? Que não mais caminharia com a gente e que não mais responderia às nossas perguntas? Ele que conhecia todas as respostas...

Estava ainda escuro e fazia frio, mas, pelo menos, aproximava-se a hora primeira da nova semana. Já se podia ir ao túmulo e ela queria ser, se possível, a primeira a chegar e esperar, em pranto, até que fossem iniciados os rituais da dor, do amor sofrido, por aquele que partira. Queria estar lá, fazer alguma coisa por ele, cuidar das suas feridas como se vivo estivesse, beijar-lhe as mãos sangrentas, contemplar-lhe, o quanto pudesse, o rosto em paz. Era isso.

E foi. Levantou-se em silêncio, esgueirou-se para fora enquanto era ainda noite, para que ninguém a visse. Iria fazer a sua vigília da saudade, junto ao túmulo dele, à espera das luzes do dia, do cântico dos pássaros, do colorido das flores. Quem sabe, então, se um pouco daquela alegria da vida que retorna à natureza adormecida, não lhe traria, também a ela, uma singela migalha de consolo e paz? Um pouquinho que fosse da paz que vira no rosto dele...

Quando chegou ao jardim já os primeiros clarões disputavam espaço com as sombras que começavam a retirar-se. Aproximou-se do túmulo, ajoelhou-se, pousou a cabeça afogueada na pedra e ali ficou a chorar. E enquanto chorava olhou para dentro do sepulcro e viu, através da torrente de lágrimas dois seres de alvíssimas vestimentas, tranquilamente sentados no lugar onde fora colocado o corpo dele, um à cabeceira e outro aos pés. Um deles olhou-a compassivamente e lhe perguntou:

- Por que choras, mulher?- É que levaram o meu senhor e não sei onde o puseram...Os dois nada disseram. Estavam também mergulhados em estranha e inexplicável paz.

Pareciam indiferentes ao sofrimento dela. Como se a morte nada fosse! Quem seriam? Maria achou que nada mais poderia esperar deles.

Voltou-se e entreviu o jardineiro que deveria estar se preparando para as primeiras tarefas do dia. Também ele lhe perguntou:

- Mulher, por que choras?- Se foste tu que o levaste disse ela, sem responder à sua pergunta dize-me onde o

puseste e eu irei buscá-lo.E foi então que ele disse:- Maria!- Mestre querido! Então és tu!E não soube mais o que dizer, tanto queria abraçá-lo novamente, beijar as suas mãos,

atirar-se aos seus pés, gritar a sua alegria para despertar o mundo inteiro para a realidade que tinha diante dos olhos estupefatos. Mas ele lhe pediu mansamente que não o tocasse. IMão quis dizer que não tinha mais o seu corpo físico. Vivia agora no seu corpo de luz, indestrutível, para o qual a morte não existe.

- Vai a meus irmãos e dize-lhes que estou vivo e os amo! Vai!Era tão bom estar ali com ele, que ela hesitou, pela primeira vez, em obedecer-lhe, mas

em um momento ele estava e no momento seguinte não estava mais...Não importa. Ele vivia, ele não morrera, ele cumprira a sua última promessa e fizera o seu

último milagre, mostrando que a vida continua depois da morte. Tal como sempre ensinara.Maria de Magdala levantou-se de um salto e não sabia mais se ria ou se chorava, pois era

tudo uma só felicidade, um só amor, uma só certeza, na pungência das suas emoções. As últimas sombras se retiravam quando ela saiu, em louca disparada, pelo morro abaixo.

Chegou esbaforida, assustando toda a gente e gritou, de longe, a grande mensagem da vida imortal:

Eu vi o Senhor! Eu vi o Senhor! Ele está vivo! Eu o vi!

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Só depois que retomou o fôlego, pôde falar sobre "as coisas que ele lhe dissera". Lembrava-se bem. De cada palavra, de cada traço no seu rosto iluminado, de cada expressão do seu olhar, de cada vibração do seu amor.

Jesus acabava de mandar-lhes o recado da imortalidade. E os chamara de irmãos, pois eles também eram filhos de Deus e também imortais, como sempre lhes dissera.

5. REALIDADES IGNORADASI. MILAGREEntão, lhe perguntaram: Que sinal realizas, para que vejamos e creiamos em ti? (João 6:30)

Um dos aspectos mais desconcertantes da pesquisa histórica destinada a colocar ordenadamente, num contexto moderno e inteligível, a personalidade e os feitos de Jesus é se me permitem o paradoxo a irracionalidade dos racionalistas perante o milagre, atitude essa que acabou contaminando até mesmo os teólogos contemporâneos.

É difícil acreditar-se, mas aí está a evidência para todos quantos queiram vê-la: pessoas inteligentes e dotadas de razoável bagagem intelectual, mostram-se obstinadamente cegas perante os fenômenos inabituais que constituem ponto crucial no entendimento do fenômeno maior que é o próprio Jesus. Mesmo porque não deixou ele a menor dúvida de que a essência da sua mensagem está precisamente na realidade extrafísica que demonstrou, vivendo-a.

Devo acrescentar que a palavra extrafísica, aqui utilizada, já constitui uma concessão para melhor entendimento, pois o que, em verdade, ocorre é que Jesus, com os chamados milagres, não operou na faixa do sobrenatural, mas sim demonstrando que há uma interseção, um ponto de encontro, onde as duas faces de uma só realidade, a física e a não física, a visível e a invisível, a material e a espiritual, reagem uma sobre a outra, num sistema fechado de interpenetração e de complementação.

Não estou propondo que essa interação, ou mesmo possibilidade de constar a realidade de duas faces complementares uma visível, material, sensorial e outra invisível, imaterial e extra-sensorial seja aceita aprioristicamente, sem exame crítico, na base da mera crença, dado que a crença nem sempre exige a demonstração, por vezes impraticável. Isto ocorre mesmo em termos de ciência física. Temos, por exemplo, razão de sobra para saber da existência dos 'buracos negros'. Figuramos hipóteses razoáveis e admissíveis acerca de como se portam, condicionados a um conjunto de suposições inteligentes, por certo, mas não muito diferentes do que consideramos como crença. Cremos, por exemplo, que o fluxo do tempo se apresente, ali, com sinais trocados, ou seja, no sentido futuro/passado, em vez de passado/futuro. Cremos que sejam eles vórtices energéticos com alguma finalidade específica porque nada se faz na natureza sem um fim útil. Cremos que haja na sua gênese um mecanismo disparador que ainda não compreendemos, como cremos que haverá também um dispositivo frenador, igualmente ignorado.

Não estamos propondo insistimos a aceitação da realidade espiritual como objeto de fé ou de crença; ao contrário, a nossa perplexidade vem exatamente do fato de que pessoas tão lúcidas e cultas, empenhadas na busca de uma verdade histórica, a partir de um critério básico de nada aceitar aprioristicamente, tenham conservado no seu equipamento de pesquisa o preconceito que mais gravemente lhes obstruiu a visão do problema que buscavam resolver, ou seja, a impossibilidade do milagre. Mas não apenas isso: a de que o milagre é impossível, mas o sobrenatural é admissível, ainda que colocado na categoria teológica ou metafísica.

E o que se depreende de Renan: "Que os evangelhos são em parte lendários, isso é evidente diz ele -, porque estão cheios de milagres e de sobrenatural".

Poder-se-á objetar que Renan e outros como ele não aceitam nem o milagre, nem o sobrenatural. Guignebert é menos radical, pois mesmo rejeitando o milagre em si, e

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admitindo sua sobrenaturalidade, não vai ao ponto de negar que eles ocorreram, de fato, pelo menos para os espectadores e beneficiários deles. Não que tenha explicações a oferecer, mas não resta dúvida, para ele, de que fenômenos dessa ordem ocorreram na presença de Jesus.

Praticamente todos esses autores, no entanto, cometeram o mesmo engano dramático e fatal de não examinarem criticamente o próprio conceito de milagre e o de sobrenatural antes de se aplicarem ao estudo dos fatos considerados milagrosos e sobrenaturais. Os que acharem o termo fatos muito definitivo, substituam-no por outro de sua preferência, como episódio, fenômeno ou alucinação. Temos, no entanto, de enfrentar um problema: há nos textos evangélicos e complementares narrativas de ocorrências que colocam insistentemente diante do leitor a questão do milagre. São falsas as narrativas? Ou os episódios relatados? Por que? Como se demonstra essa presumida falsidade? São autênticas, como também genuínos os episódios? Por que? Que mecanismo os dispara? São possíveis?

Este seria o esquema básico da pesquisa, a estrutura de uma metodologia confiável, idêntica, aliás, à que os mesmos senhores adotaram para estudar o fenômeno Jesus. Ou seja: Existiu mesmo uma personalidade histórica de nome Jesus? Onde nasceu? Quando? Quem foi ele? Um mito? Uma ficção sobre a qual se montou uma religião? Era Deus? Pode um homem ser Deus? Deus é um ser encarnável?

São essas as perguntas de quem deseja chegar à verdade, qualquer que ela seja. Do contrário, acontece o que se deu com Binet-Sanglé. Primeiro decide que Jesus é um paranoico e daí sai em campo para "provar" a sua tese. Ou os teólogos de antanho, que primeiro resolvem que Jesus é o Messias ou que é o próprio Deus, vivendo uma experiência humana e, de tais hipóteses, tidas como inabaláveis, partem para demonstrar suas teses prediletas, nem que seja preciso como foi feito fraudar os textos que expunham uma realidade diferente daquela que já estava decidida como sendo a melhor, ainda que falsa.

E assim, a esmagadora maioria dos historiadores do cristianismo e até mesmo a dos mais modernos cristólogos, as duas maiorias interessadas no problema, esqueceram-se ou não quiseram desmontar e examinar, peça por peça, as palavras milagre e sobrenatural.

O resultado foi simplesmente desastroso, de vez que até pessoas tidas por irredutíveis racionalistas, como Strauss ou racionalistas mais mitigados, como Renan, aceitaram docilmente, sem exame, o conceito artificioso, medieval, irracional e anticientífico de que o milagre é uma derrogação das leis naturais ou divinas. E mais: admitiram, implícita ou explicitamente a possibilidade de ocorrências sobrenaturais no próprio âmbito da natureza, ou seja, acima, além, à margem e em desafio ou contradição a ela.

Entendiam os teólogos que, para "provar" a natureza divina de Jesus era indispensável que ele demonstrasse ter poderes divinos para revogar ou modificar leis naturais. Ou seja: sendo essas leis criação de Deus o que é verdadeiro somente Deus poderia operar ao arrepio delas, fazendo milagres. Logo, Jesus, tem de ser Deus. Nessa ordem de ideias, o milagre fica automaticamente situado na categoria de fenômeno sobrenatural, isto é, operado e ocorrido fora do contexto da natureza.

Nesse mesmo espírito, os contemporâneos de Jesus lhe pediam um "sinal", ou seja um evento portentoso, dito sobrenatural como condição para que nele acreditassem como enviado de Deus.

No entanto, o que é impossível não é o milagre em si, mas a ocorrência de um fenômeno no âmbito da natureza, do qual participa e no qual vive o próprio ser humano, mas que, ao mesmo tempo, não seja natural. O que, longe de ser mero paradoxo para debate filosófico ou ginástica intelectual, é uma contradição, um absurdo, uma proposição ininteligente. Não obstante, isso foi tomado como dogma, como ponto de partida para a pesquisa que, precisamente, tinha por meta racionalizar os eventos relacionados com a personalidade histórica de Jesus.

Em outras palavras: "Vamos-nos empenhar na busca dessa racionalidade, pois chega de

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fantasias" parece terem pensado os estudiosos. "Quanto aos conceitos de milagre e de sobrenatural, contudo, não é preciso examiná-los porque já estão suficientemente consolidados, ou seja, o milagre é uma derrogação das leis naturais e o sobrenatural um evento para o qual não há encaixes no sistema operante em a natureza".

Mas não há mesmo? Ou ninguém cogitou de verificar se isso era verdadeiro? Acresce que o fato de não conhecermos os encaixes, não quer dizer que eles não existam; apenas indica que não conseguimos identificá-los. O critério ordenador e predominante aqui não é o de rejeição ou aceitação apriorísticas, mas o de que se o fenômeno existe, se o evento ocorreu, e se o testemunho sobre ele é válido ou, pelo menos, admite o exame crítico da situação, tal fenômeno só pode ter acontecido no contexto da natureza, por mais estranho e fantástico que pareça. Alguma lei que desconhecemos, ou que ainda não identificamos, esteve presente para torná-lo possível, para produzi-lo no seio da natureza.

Não obstante, em lugar de uma atitude analiticamente construtiva e criativa, a preferência quase unânime dos estudiosos tem sido a da rejeição sumária do fenômeno em si, o que, no final de contas, não difere muito, em essência, da atitude imatura dos povos primitivos ante o insólito que, para eles, se afigurava tão milagroso quanto hoje, uma das inúmeras curas comprovadas em Lourdes.

Lembro-me, em conexão com isto, do curioso e didático episódio da História do Brasil, do qual resultou o apelido que consagrou a personalidade de Diogo Alvares Corrêa como Caramuru. Este cidadão, como sabe o leitor, embrenhou-se pela selva brasileira primitiva como simples ser humano no papel de desbravador, com vistas à colonização das imensas terras descobertas pelos navegantes seus patrícios. Saiu de lá praticamente divinizado pelos índios, perplexos e literalmente apavorados ante o seu incompreensível e milagroso poder, simplesmente porque fulminou, a distância, com um raio trovejante e inexplicável, um pássaro pousado nas alturas de uma árvore. Aquele homem que tinha poderes sobre o raio e o trovão a ponto de comandá-los à sua vontade com um pequeno instrumento preto de cano comprido, só poderia ser um dos muitos deuses da natureza, ou, no mínimo, filho predileto de um deles. Foi, assim, com a impressionante "perfomance" daquele ato sobrenatural, que o nosso querido Diogo Corrêa ganhou seu lugar na História, nome indígena e a mão da bela filha do cacique local.

Suponhamos, agora, que a colonização portuguesa não "vingasse" no Brasil e que o imenso continente ficasse preservado de ondas migratórias e de influênciás culturais exógenas. Em suma: que a civilização indígena fosse abandonada à sua própria sorte e deixada desenvolver-se segundo critérios espontâneos. E bem provável que, sob tais circunstâncias, fosse engendrado a partir da morte do pássaro, a tiro de trabuco, um verdadeiro culto, com rituais, posturas e demais petrechos indicados para o caso, pois assim aconteceu com remotas civilizações terrenas sob a influência de seres provindos de misteriosas culturas desconhecidas. Com o tempo, poderia surgir uma espécie de teologia, que, aos poucos, iria complicando as coisas, como é de seu hábito. Caramuru acabaria sendo promovido definitivamente à categoria divina, no panteon local e estaria encerrado o ciclo, após construída uma fina rede de lendas em torno dele.

Suponhamos, ainda, que cerca de dois mil anos mais tarde, algum pesquisador racionalista resolvesse desmitificar a personalidade de Caramuru e os eventos tidos como ocorridos com ele. Estaria tal estudioso em trilha totalmente falsa se adotasse, sem exame, o critério fixado pelos próprios formuladores das lendas. Consideravam estes o gesto histórico de Caramuru pois não havia dúvida de que o fenômeno ocorrera mesmo como milagre, como acontecimento sobrenatural, algo que desconsiderou as leis naturais vigentes, convertendo-se em fenômeno insuscetível de apreciação no contexto da natureza e, portanto, intocável, irrecusável nas suas consequências teológicas, ou indigno de exame por pessoas razoavelmente instruídas.

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A atitude do hipotético estudioso, para ser coerente com os objetivos da pesquisa, teria de ser esta: o fenômeno ocorreu, de vez que os relatos sobre esse ponto são confiáveis, ainda que adornados por detalhes fantasistas, aqui ou ali. Não faz sentido o conceito do sobrenatural e não é racional ou lógica a ideia de que leis naturais, que prevalecem para todo o universo, possam ter sido tão obviamente derrogadas. Qual seria a explicação para o fenômeno no âmbito de tais premissas? De que recursos teria ele se utilizado para produzir o fenômeno que, naquele contexto, fora tão insólito e maravilhoso? Havia algum instrumento em seu poder? O pássaro fora atingido por algum objeto material, físico? Ou por uma emissão puramente energética? E a explosão, como teria sido provocada?

Essas e outras cogitações poderiam ser invocadas na armação do problema suscitado pelo fenômeno tido por milagroso (derrogação de leis naturais) e, portanto, sobrenatural (acima, à margem, fora da natureza).

Em lugar de começar questionando, pois, o próprio conceito de milagre e sobrenatural, é como se os estudiosos do problema o abordassem da seguinte postura metodológica: o milagre, como derrogação da lei natural é uma incongruência e o sobrenatural, conceito meramente metafísico, que nada tem a ver com o problema que temos aqui. Portanto, não há milagre algum, apenas um mito, ou, na melhor das hipóteses, um evento mal observado e mal preservado na tradição, além de profundamente influenciado pela crendice, a superstição, a ignorância, a boa ou a má fé. Conclusão (apriorística): Nada disso aconteceu, ou foi tudo um artifício bem montado, ou, então, esse Caramuru nunca existiu.

O trabalho, portanto, consistiria apenas em demonstrar a opção predeterminada, arranjando os dados da questão de forma a produzirem o resultado desejado.

E note-se, ainda, que, no caso figurado, estamos cuidando de um episódio único, isolado, de uma personalidade historicamente comprovada, mas que não proclamou nenhuma mensagem ética ou religiosa, filosófica ou científica. Que não teria, portanto, acarretado as vastas repercussões e implicações suscitadas pelos atos e pelos ensinamentos de Jesus, a personalidade histórica mais pesquisada, discutida e questionada de todos os tempos conhecidos na Terra. Teria esse ser causado tamanho impacto sobre a humanidade se aqui tivesse vindo apenas para derrogar leis naturais e morrer assassinado para dar testemunho de ideias que esses cavalheiros nem sequer estão muito preocupados em debater? Será que só interessa ao contexto histórico de Jesus confirmar que ele, de fato, existiu e que não fez milagres porque milagres não existem? Alguém procurou confrontar o que ele ensinou com os episódios tidos por milagrosos ou sobrenaturais? Haverá uma correlação entre os ensinos e os episódios? Ou seja, o que ele ensinou está demonstrado no que ele fez? Ou, reversamente, os fenômenos que ele produziu não há como recusá-los, como ainda vimos e ainda veremos mais de perto explicam ou confirmam suas ideias? Ou as desmentem?

Vamos ser mais específicos e objetivos. Não há dúvida de que ele pregou o conceito da sobrevivência do ser à morte corporal; do contrário, nada daquilo que ele recomendava faria sentido. Como diria Paulo, mais tarde, se não havia uma vida depois desta, então "comamos e bebamos que amanhã estaremos todos mortos". "Tudo me é lícito (permitido) diria o mesmo Paulo mas nem tudo me convém". Portanto, se convinha como convém até hoje e sempre ser bom e justo para galgar melhor posição evolutiva, então é porque o problema central da pregação de Jesus é o da realidade espiritual, isto é, a existência de um princípio sobrevivente no ser humano, seja qual for a nossa concepção acerca dessa vida póstuma.

Como se coloca, portanto, a questão da chamada ressurreição, no contexto da sua convicção acerca da sobrevivência do ser? Não será aquela a demonstração, a evidência desta?

Mas aí tropeçam os senhores eruditos nos mesmos obstáculos de sempre (milagre, sobrenatural) e mais um: a ressurreição, cuja conceituação também não examinaram com suficiente espírito crítico e a lucidez intelectual que os conhecimentos de ciência deveriam

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ter-lhes proporcionado. Mas ainda é cedo para falar de ressurreição.Vejamos outro exemplo. Ao expulsar demônios, não estaria Jesus mostrando, com fatos

concretos, a existência deles? Não eram estes "daimon" precisamente homens e mulheres que, tendo vivido na Terra, estavam agora numa condição de invisibilidade, mas não de aniquilamento e ainda atuantes?

Ao curar o cego de nascença da sua cegueira, não estaria Jesus chamando a atenção para o fato de que, em paralelo com as leis conhecidas da natureza, que decretavam a incurabilidade da cegueira congênita, existiam outras que, devidamente manipuladas por quem lhes conhecesse o mecanismo operacional, poderia produzir a cura?

Um oftalmologista medieval que restituísse a visão a alguém com um transplante de córnea, estaria, literalmente, fazendo um milagre ante seus contemporâneos.

Tomemos este aspecto, em particular, para um exame mais atento.Vejamos, de início, o que desejo dizer, ao declarar que os estudiosos, em sua

impressionante maioria, partem para o problema já armados de conclusões próprias.Renan abre o capítulo XVI Milagres, de seu livro sobre Jesus (11), com a seguinte

observação:- Não havia senão dois meios de prova, os milagres e a realização das profecias, que

pudessem, segundo a opinião dos contemporâneos de Jesus, estabelecer uma missão sobrenatural. Jesus e, especialmente, seus discípulos, empregaram estes dois processos de demonstração com perfeita boa fé.

Antes de tudo, uma pergunta dirigida ao Sr. Renan: a missão de Jesus é mesmo sobrenatural? Que tenha havido certa ênfase admito até exagerada sobre os milagres e na aplicação das profecias, não há como contestar, mas é fazer muito pouco de uma figura humana do porte de Jesus declarar arrogantemente, como o faz Renan, que "Quase todos os milagres que Jesus julgou praticar parecem ter sidos milagres de cura".

Quanto à chamada expulsão dos demônios, é outra coisa que Renan acha de um ridículo atroz, embora não a descreva com essas palavras:

- Era opinião universal, não só na Judeia, mas em todo o mundo, que os demônios se apoderavam do corpo de certas pessoas e as faziam agir em sentido contrário à sua vontade.

Não deixa de ser um espetáculo curioso observar alguém que opina com tanta superioridade e convicção e até com ironia sobre assunto que ignora mais do que os xamãs primitivos. O ilustre autor francês confessa que melhor mesmo seria 'dar ouvidos às nossas (dele) repugnâncias' e suprimir tais episódios que, a seu ver, só tiveram valor para os contemporâneos de Jesus. Ou então segunda opção considerar as narrativas nesse sentido, como meras "aditações de discípulos muito inferiores a seu mestre, que, não podendo conceber a sua verdadeira grandeza, pretenderam sublimá-lo por prestígios indignos dele". (Parece-me que a palavra aqui não é prestígio e sim prodígios, mas não disponho do original francês para conferir. Em tempo: no original, a palavra é mesmo prestige...)

O problema é que os milagres não podem ser ignorados ou rejeitados porque são insistentemente relatados nos quatro Evangelhos, sendo que muitos, senão todos, com características tais que podem abrir espaço a algum enfeite fantasioso posterior, mas guardam, em essência, a força da autenticidade. Para Renan e tantos outros, essa autenticidade é relativa, por considerarem que os milagres somente são autênticos para aqueles tempos ignaros, em ambientes primitivos, da mesma forma que, para Guignebert, somente para os seus beneficiários.

Tem Renan, contudo, o mérito de ressalvar aspecto semelhante ao que há pouco examinamos na simulação do fictício desenvolvimento da divinização de Caramuru.

Um simples nigromante escreve ele à maneira de Simão, o Mago, não teria feito uma revolução moral como a de Jesus.

No que estamos de acordo, ainda que consideremos precipitado e apriorístico botar

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Simão, o Mago, sumariamente na categoria de nigromante. Não sei o suficiente de seus métodos e de seus feitos, de fontes confiáveis, para julgá-lo dessa maneira. Já nas consequências que Renan infere disso, não vejo como acompanhá-lo. Vejamos:

Se o taumaturgo se tivesse avantajado em Jesus ao moralista e ao reformador religioso, criaria uma escola de teurgia e não o cristianismo.

As objeções são várias e graves. Jesus não foi um moralista e reformador do tipo milagreiro (taumaturgo) e sim um pregador que dispunha de faculdades hoje tidas como paranormais, com as quais demonstrou vários dos mais importantes aspectos dos seus ensinamentos.

Mas ficaríamos muito tempo por aqui a botar reparos na arenga do Sr. Renan, se fôssemos examinar, uma por uma, suas proposições. Creio que já ficou bem caracterizada a sua aversão quase alérgica pelo que entendia (ou melhor, não entendia) como milagre. Ainda há pouco, vimos que ele empregou, a propósito, o termo repugnância. Já no final de seu capítulo, diz ele que "nunca as leis da história da psicologia teriam sofrido tão forte revogação".

Começa que a revogação não pode ser fraca nem forte; ela é revogação ou não o é. Em segundo lugar, não são as leis da HISTORIA da Psicologia que estão em jogo aqui, mas a própria Psicologia. E, finalmente, que sabe o Sr. Renan das leis psicológicas para dizer que foram revogadas? Conhece-as todas? E são leis ou meras hipóteses de trabalho? Se ainda hoje, com toda a pompa acadêmica e sua terminologia rebarbativa, a Psicologia continua sendo uma ciência praticamente especulativa...

Se, no entender do Sr. Renan, as leis da Psicologia vamos conceder que ele se tenha equivocado ao citar a História da Psicologia foram revogadas é porque não eram leis, no sentido sólido e concreto das leis naturais. Uma só lei natural revogada, ou seja, desrespeitada ou contraditada, acarretaria uma situação caótica, dado que o universo é um todo solidário.

Mas os nossos queridos perquiridores insistem em postar-se como conhecedores de todas as leis naturais.

Sustenta, por exemplo, uma lei da Física que, abandonados a si mesmos, os corpos densos caem, atraídos pela força gravitacional da Terra, da mesma forma que um equilíbrio sutilíssimo de forças mantém a Terra na sua órbita, nos seus ritmos e ciclos. O corpo celeste a que chamamos Terra, por sua vez, contribui com a sua cota de energia magnética ou gravitacional para o equilíbrio de outros corpos celestes, como a Lua. Se, por qualquer motivo, se rompesse tal rede energética em algum ponto, ela se despenharia no imenso vazio cósmico, para, eventualmente, espatifar-se contra algum "colega" do espaço.

Não obstante essa lei irrevogável, é bom que se lembre -, há evidência documentada de que corpos mais pesados do que o ar se desloquem em sentido contrário ao empuxo da gravidade terráquea e se mantenham flutuando por algum tempo, em aparente desafio a essas leis. Tais fatos não constam apenas de vidas de santos, como Tereza de Ávila ou João Cupertino que, com frequência e à vista de muita gente, levitavam sem nenhum apoio físico, material. Algumas dessas comprovações foram obtidas, inclusive, nos insuspeitos laboratórios soviéticos de pequisa e em outros pontos do lado de dentro da chamada cortina de ferro. Se há alguém que gostaria de provar que isso é pura lenda, aí estão eles. Mas que fazer? O fato não pede licença aos nossos preconceitos para acontecer. Ele simplesmente, é.

Quer isso dizer que foi revogada a lei cósmica da gravitação universal? Obviamente, não. Isto apenas significa que há leis paralelas, também naturais, é claro como poderiam ser sobrenaturais? que, sob determinadas condições, ainda em estudo e relutantemente admitidas, produzem tais efeitos, tão naturais quanto os produzidos pela gravitação, da qual não constituem exceção, mas ampliação.

A propósito, não custa lembrar que os camaradas estão descobrindo também os tais "nigromantes" ou taumaturgos do Sr. Renan, que curam doenças reais com imposição de

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mãos e parecem expulsar "demônios", tal como os "ignorantes" e crédulos da época de Jesus...

Aliás, não é de hoje que tais fatos acontecem e não somente na União Soviética. A julgar-se pela variedade de fenômenos que, no mundo inteiro, alcançam os veículos de comunicação e são divulgados, todas as leis naturais, conhecidas e desconhecidas, estão revogadas, pois há gente que cura, que movimenta objetos sem tocá-los, que mergulha no futuro e no passado, que vai ao mundo póstumo e volta (morte clínica sem extinção da "vida"), que materializa e desmaterializa objetos, plantas, animais e até seres humanos, pasmem! Há os que praticam cirurgias, removendo órgãos ou excrescências do corpo humano vivo, com o emprego ou não de instrumentos apropriados. Há os que se movimentam desdobrados, produzindo o fenômeno que se chamou, de início, bilocação estar em dois lugares ao mesmo tempo. Há os que veem e conversam com seres humanos que não mais vivem em nossa dimensão habitual, em seus corpos físicos, ou seja, que oficialmente já morreram. Há mortos que, através dos vivos, escrevem livros, compõem música, pintam quadros. Há os que falam línguas desconhecidas, vivas e mortas. Há os que curam doenças reais, cientificamente diagnosticadas, com a mera (se é que isto pode ser assim qualificado) "expulsão dos demônios" que ali estavam a suscitar a sintomatologia patológica no paciente. (O Dr. Cari Wickland estudou, somente este aspecto do problema psíquico, durante 30 anos (24).

Enfim, todo mundo sabe disso, muitos aceitam, outros não, uns acreditam, outros negam, como se o fato de aceitar ou não, de crer ou não, alterasse de alguma forma a realidade.

Há algum tempo me dizia alguém, para demonstrar como era cético 1 parece que o ceticismo extremado é tido como sinal de inteligência e superioridade 1 que não acreditava nem se o Sol iria nascer no dia seguinte.

Ainda bem que o Sol não depende da sua crença para nascer comentei eu -. Já imaginou?Na mesma categoria, podemos colocar o problema da sobrevivência do ser. E uma

questão de crença, de fé? Claro que não. Tanto faz crermos nisso como não, rejeitar ou aceitar, a coisa simples é assim.

Reiteramos, pois. Todo mundo sabe disso, menos certos eruditos, sábios, especialistas, cientistas, pensadores. Não é sem razão que Jesus afirmava que a verdade se oculta aos sábios e se revela aos chamados ignorantes. O primeiro testemunho que ela impõe àquele que a busca é o de aproximar-se dela com o senso da verdadeira humildade intelectual, o que nada tem a ver com a aceitação servil e irracional. Como poderá aprender alguma coisa aquele que julga saber tudo?

Dessa maneira, são bastante variáveis as atitudes pessoais ante os problemas suscitados pela vida e pelos ensinamentos de Jesus em palavras e atos. Quanto ao aspecto particular do milagre, contudo, a faixa de variação é bem mais reduzida, causando ao observador atento a impressão de que os críticos são todos formados na mesma escola, laboram em cima das mesmas premissas, partem dos mesmos princípios apriorísticos e, naturalmente, chegam às mesmas conclusões previsíveis. Em outras palavras: o milagre continua sendo pedra de tropeço e escândalo para muitos, e, surpreendentemente, para teólogos nominalmente cristãos.

Quando surge um que demonstra possuir uma concepção algo diferente, parece 'desafinar', passando a ser considerado com evidentes reservas pelos demais companheiros da fechada comunidade dos 'iniciados', como se trabalhasse contra os interesses da confraria.

Já os historiadores são bem mais tolerantes e flexíveis quanto às opiniões dissonantes que contradigam as suas, mas, numa visão de conjunto, não oferecem espectro muito amplo de divergências acerca do problema do milagre.

Para não alongar demais, tomemos apenas um teólogo representativo Hans Kung que não fugiu ao exame do problema. Citando Goethe, para o qual o milagre era "o filho mais querido da fé", ele reformula o conceito do grande pensador, ao dizer que "na era da ciência natural e

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da tecnologia (o milagre) tornou-se o filho mais fraco de fé". Ou seja, o aspecto problemático, doentio, vexatório é uma realidade que muitos identificam no milagre, mesmo considerando-se que a fé precisa das muletas do maravilhoso para caminhar, o que está longe de ser verdadeiro.

Kung é um pensador inteligente, dono de admirável cultura e poder de comunicação, pois, ao contrário da ininteligível linguagem usualmente empregada pelos seus colegas, escreve claro e com elegância.

Acha ele que a extraordinária amplitude modernamente atribuída ao conceito de milagre "facilitou as coisas para o teólogo", pois há milagre econômico, milagres de tecnologia, milagres da energia nuclear, enfim, por toda a parte, e não, certamente, produzidos por Deus, adverte ele, mas pelo ser humano ou pela natureza, palavra que, caracteristicamente, ele põe entre aspas. Tão amplo ficou o conceito de milagre, acha o eminente Prof. Kung, que "se tornou completamente inofensivo". Do que se conclui que era "ofensivo" antes, ou seja, incômodo e perturbador, exatamente porque não havia e ainda não há uma explicação racionalizadora aceitável para ele. (Não há mesmo?)

Pode-se dizer, é claro, que os milagres de Jesus são explicáveis em termos de ciência moderna, tomando-se uma das opções à disposição de cada pensador, segundo seu gosto pessoal: hipnotismo, sugestão, fé, dispensação de recursos energéticos, paranormalidade e que sei eu. Ficam, porém, certas perguntas, das quais Kung formula algumas. Por exemplo: em face dos textos, os milagres ali narrados "foram contrários às leis da natureza, foram fatos históricos ou não?" Ou, no dizer de Stuart Mill, que Kung vai buscar: os milagres são "intervenção sobrenatural?"

Acha ainda o eminente teólogo que nem o Antigo nem o Novo Testamento faz distinção entre os milagres que "correspondam às leis da natureza e aqueles que desobedecem às leis" (Destaque meu).

Meu Deus, onde estamos? Como pode uma pessoa razoavelmente instruída e experimentada conceber que haja eventos que desobedeçam a leis naturais? O fato de serem caracterizados como produzidos à revelia das leis naturais é que os exclui dos domínios da História?

São colocações despropositadas, diria mesmo insensatas, não fosse o respeito devido à opinião alheia, por mais estranha que nos pareça. O objetivo é o de mostrar mais um especialista, obviamente do mais alto nível intelectual, que raciocina dentro dos rígidos limites das mesmas categorias de sempre, ou seja: o milagre, como fator de desrespeito à lei natural, como fenômeno sobrenatural. O Prof. Kung abre uma pequena brecha, ao admitir que o milagre possa ocorrer também de acordo com essas leis, mas isto não sei como ele explicaria, porque, nesse caso, não seria milagre, no estrito sentido teológico. Não lhes parece?

Observa, ainda, ele que, no caso dos milagres relatados nos Evangelhos, não há depoimentos de testemunhas oculares, nem documentação científica verificada, nem registros históricos, médicos ou psicológicos. Tais narrativas estariam, portanto, "totalmente a serviço da proclamação do Cristo", isto é, para convencerem o leitor de que Jesus foi mesmo o Messias, ou o próprio Deus encarnado, tanto que fez milagres...

Voltemo-nos agora para os historiadores, que, como dizíamos há pouco, parecem mais tolerantes com as variações e discordâncias em torno da espinhosa questão do milagre.

Tomemos Guignebert por algumas páginas.Por um momento, alimentamos a impressão (ou seria ilusão?) de que o erudito historiador

francês iria expor uma abordagem mais criativa ao problema do milagre, mas o equívoco logo se desfaz.

Também ele parte da premissa básica, admitida, aliás, nos Evangelhos, de que o povo pedia "sinais", ou seja, milagres, para acreditar nos profetas, e não há dúvida de que os textos

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preservados relatam grande número de ocorrências desse tipo. O autor declara honestamente que essa evidência tem sido "algo perturbadora para os críticos" e que para os conservadores "ainda constitui argumento conclusivo".

A seguir, recai ele na mesma postura de sempre, declarando que "os teólogos nos informam que o verdadeiro milagre 'contraria as leis da natureza' ". Ou seja, parte do conceito mumificado dos teólogos, dandoo, aparentemente, como válido, ou, pelo menos, não se propõe a examiná-lo, ou sequer comentá-lo, o que leva o leitor à conclusão de que o autor concorda com essa colocação. No entanto, ressalva, a seguir, que "infelizmente, não podemos nos vangloriar de conhecer as leis da natureza suficientemente bem para estarmos certos de que uma ocorrência em particular as contrarie ou não".

Até aí, muito bem. E mais específico, ainda, e mais lúcido, é pouco adiante, ao observar que o nosso processo de conhecimento resulta da observação pessoal dos fatos. Uns tantos deles nos são compreensíveis, outros não, mas, uma vez que ocorrem, é porque são parte da natureza. "Se não fossem naturais, não existiriam".

Perfeito. De pleno acordo estamos. E mais: se a contravenção ãs leis naturais constitui critério para caracterização do milagre, então ele não passa de "mera ilusão fundada numa falácia". Sua conclusão é arrasadora para o conceito tradicional de milagre: "Dizer que um fato é contrário à natureza é uma proposição sem sentido".

É nesse ponto que ele chama a atenção de Renan para o equívoco cometido pelo seu colega e compatriota do século passado de que nenhum milagre jamais tenha sido realizado perante observadores céticos. Sugere ele que bastaria a Renan dar uma chegada a Lourdes para verificar que, contrariamente ao seu ponto de vista, os milagres independem da credulidade das testemunhas. E acrescenta: "A verdade é que a interpretação do fato como milagroso é que depende da credulidade da testemunha, não a ocorrência do fato em si".

Depois de montar esse quadro preliminar, contudo, Guignebert conclui, de maneira inesperada, declarando, em suma, algo que não difere substancialmente da posição de Renan, que ainda há pouco criticara, com toda razão.

IMão há dúvida para ele de que, tanto Jesus como seus contemporâneos, aceitaram as curas operadas como miraculosas. Jesus as considerava, segundo o autor, como uma forma de energia divina que trazia em si. É um tipo de energia curadora que, até hoje, se manifesta sob idênticas circunstâncias, "exercendo seu poder sobre as doenças de origem nervosa".

Ou seja, Jesus somente teria curado doenças hoje tidas como psicossomáticas, o que, aliás, reitera, declarando que "não há evidência confiável que nos leve a crer que Jesus tenha curado qualquer outro tipo de doença".

Eis aí uma afirmativa ampla demais. Como sabe Guignebert que as doenças curadas por Jesus e ele admite que ele as tenha curado fossem todas de origem nervosa? Em primeiro lugar, que são doenças de origem nervosa? E mais: há atestados, exames, documentos autorizados que nos garantam tais características? Recaímos, portanto, na hipótese da fé, combinada com a da sugestão ou da auto-sugestão indireta, comandada por alguém com autoridade.

Essa conclusão, estreita demais, é até admissível em certos casos paralisia, por exemplo mas restam outros em que a hipótese é obviamente forçada, gratuita ou insustentável. Por exemplo: as cegueiras curadas resultavam, todas, de doenças psicossomáticas que cediam simplesmente á sugestão ou ao comando? Haveria lesões óticas, usualmente irrecuperáveis? Como saber disso hoje, com a segurança necessária para afirmar taxativamente, que eram doenças nervosas? E a recomposição de membros atrofiados? Digamos que os leprosos apresentassem apenas uma alergia ou afecção cutânea suscitada por causas psicossomáticas, mas disso não temos comprovação. Naquele tempo a lepra era terrível estigma, que submetia o doente a uma impiedosa segregação. Não era, certamente, sem estar bem convicta da existência da lepra que uma família despachava um doente querido para o vale dos imundos.

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O leproso era uma criatura identificada com nitidez, implacavelmente rejeitada pela sociedade que nada queria com ela, nem o mais leve contacto direto. Eles morriam abandonados literalmente à míngua. Como confundir uma simples irritação da pele com a lepra?

Quanto aos endemoninhados, possessos e sujeitos a ataques epilépticos, é prudente não fechar a questão, decretando, sem apelo, que eram todos, sem exceção, alienados mentais. Suponhamos e isto é muitíssimo mais do que mera suposição que haja mesmo ali uma vontade estranha, autônoma, impondo-se ou sobrepondo-se à personalidade do doente? Absurdo? Impossível? Crendice? Para negar, qualquer coisa serve, pois a ignorância tem muitos nomes e apelidos. O caso evangélico do possesso mudo é típico de uma situação em que a hipótese de uma personalidade invasora não deve ser sumariamente descartada, em face do respeitável acervo de dados acumulados pela pesquisa psíquica no último século. Eliminada ou neutralizada a influência, a pessoa volta prontamente a falar. E cômodo dizer que se tratava de uma doença nervosa, mas a influenciação exógena deve ser também considerada como hipótese, tanto quanto a causação dita nervosa.

Podemos, ainda, invocar outro aspecto. Mesmo que todas as curas praticadas por Jesus abstraídos certos "enfeites" e fantasias que podem ter contaminado o texto primitivo de suas narrativas sejam de doenças nervosas, ainda assim constituiriam questão de considerável importância ao nosso entendimento de sua personalidade e de seus ensinamentos. Ainda assim, a teologia e a história, bem como a ciência, teriam de ocupar-se do fato.

E já que falamos em "enfeites", é bom lembrar o caso dos "demônios" que tomaram a iniciativa de pedir a Jesus que os expulsasse e os mandasse para uma grande manada de porcos cerca de 2.000, segundo Marcos que estourou de pavor e se precipitou no despenhadeiro que ia dar no mar. Voltaire, sempre sarcástico, acha estranho tanto porco e, naturalmente, tanto espírito de num país onde não se comia a carne desse animal. Essa é uma narrativa que pode conter elementos posteriores destinados a produzir efeito mais espetacular, ainda que baseada em algum episódio nuclear autêntico.

A despeito de suas ironias e sarcasmos e até mesmo de suas descrenças e dúvidas, Voltaire via claro o fundo das coisas e expunha com 92 idêntica clareza o seu pensamento. Sobre o milagre, por exemplo (22), depois das brincadeiras usuais "Milagre, segundo a dinâmica da palavra, é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre". -, coloca a questão em termos inequívocos e lúcidos: partindo do pressuposto de que, se o milagre é uma violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas, então, "é uma contradição em si mesma, pois, uma lei não pode ser, ao mesmo tempo, imutável e violada".

Para resumir e concluir todo este debate: o entendimento racional da questão, que foi deliberadamente irracionalizada, exige atenção no encaminhamento do problema, tanto pelos teólogos, quanto pelos historiadores do cristianismo. Igual atenção terá de ser dispensada às conclusões que nos oferecem, senão continuaremos todos com a agulha fonográfica a reproduzir a mesma trilha sonora, de vez que obrigam-na a passar sempre no mesmo sulco danificado. No caso das especulações teológica e histórica, há outros sulcos. O que acontece é que após séculos de condicionamento, cada vez que tomamos o termo milagre para examinar o que nele se contém, nem percebemos que, junto dele, vem, simbioticamente, o conceito infantil, ingênuo se a palavra não fosse um tanto "grossa", eu diria, burro de sobrenaturalidade, porque assim o definiram teólogos do passado.

A análise estrutural do mecanismo revela os seguintes pontos ou etapas:1. Deus criou as leis naturais (O que é certo).2. Portanto, só ele pode alterá-las ou derrogá-las (Sofisma. Poder, em princípio, ele

pode ou não seria onipotente. Mas se as derrogasse, estaria dando, como assinalou Voltaire, "testemunho de fraqueza e não do seu poder", para fazer fora da lei algo que não conseguiu fazer com o mecanismo da lei).

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3. O milagre é uma derrogação das leis naturais (Falso).4. Jesus fez milagres, ou seja, coisas admiráveis (Certo).5. Logo, Jesus é Deus (Falso).E até possível compreender a postura dos que tropeçam no problema do milagre e o

considerem questão vexatória ou embaraçosa.O caminho (ou descaminho) que seguem é este:1. O milagre é derrogação das leis naturais (Falso).2. É impossível a derrogação de tais leis (Certo).3. Logo, o milagre é pura fantasia, resultante de observação insuficiente, inadequada

ou incompetente; ou4. O fenômeno tido por milagroso deve ter uma explicação racional, dentro dos

quadros da ciência (Certo).O problema, contudo, permanece de pé e desafiante, mesmo para aqueles mais lúcidos

que concluem pela proposição de número 4. Sim, há explicações alternativas, racionais e cientificamente aceitáveis, uma das quais, no caso das curas, pode até ser produzido por sugestão, em doenças psicossomáticas. Esta, contudo, é uma das explicações possíveis, não a única, porque não consegue ser universal, ou seja, não é suficiente para explicar todos os casos comprovados de cura, no passado e hoje. E quer queiram ou não, tais fatos continuam a ocorrer em plena era da tecnologia. Para tomar conhecimento deles, basta abrir os jornais e as revistas. Ou ler um dos muitos livros que cada dia se somam à pilha de documentos-testemunho.

Que posição tomar, por exemplo, perante o relato confiável de uma operação cirúrgica competente feita sem instrumentos apropriados, sem anestesia, sem assepsia, por alguém que não tem formação médica, nem treinamento profissional? As reações a esse fenômeno são as mais estalpafúrdias. Há os que negam, pois é melhor tapar os olhos do que ver o que não queremos ver. Há os que pregam no fato o rótulo torto de fraude. Também é cômodo. Há os que botam o operador na cadeia, pelo exercício ilegal da medicina. Não deixa de ser uma "solução". Há os crédulos, que consideram o operador um semideus a fazer milagres. E no sentido teológico rígido, milagre é, de fato, e, por conseguinte, fenômeno sobrenatural, de vez que, pelas leis conhecidas da Física, é impossível abrir a barriga de alguém sem um instrumento cortante, tanto quanto é impossível, à altura em que escrevemos isto, curar qualquer tipo de câncer, o que é completamente ignorado em Lourdes.

Eu já vi uma mulher deitada numa improvisada maca, com um tubinho metálico metido na barriga, na altura do umbigo, a drenar um tumor interno. Enquanto escorria a substância, ela estava perfeitamente lúcida e conversava com os presentes. Terminada a operação, saiu dali andando normalmente, como se apenas houvesse tomado um comprimido para dor de cabeça.

Em mim mesmo, um quisto abdominal cuja presença havia sido, mais de uma vez, detectada pelo médico, desapareceu misteriosa e inexplicavelmente após uma "operação", durante a qual uma das pessoas presentes apenas me tocava com as pontas de seus dedos no local que, aliás, eu não havia indicado. Teria ocorrido isso na sala asséptica de algum hospital moderno? Nada disso. Era um barraco humilde de madeira e eu estava deitado num banco tosco e estreito. A pessoa que realizou o trabalho (gratuito, aliás) era acolitada por alguns companheiros que se mantiveram imóveis, como que concentrados, em meditação e prece. Eram homens e mulheres rudes e singelos como o próprio barraco.

Cabe-me acrescentar que não fui lá, onde se reunia regularmente um pequeno grupo de pessoas, em busca de cura para minhas mazelas. Não era dia, nem hora de atendimento e eu nem sabia que faziam tal coisa aji. Nada foi planejado ou previamente combinado. Havia lá umas 20 ou 30 pessoas, se tanto, e eu fora convidado, aliás por um colega de 94 profissão que dirigia os trabalhos, a dizer-lhes algumas palavras, o que fiz. Em seguida, a maioria retirou-

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se, rumo aos seus lares e eu permaneci por mais alguns minutos a conversar numa pequena roda. Inesperadamente, um cidadão moreno, de baixa estatura, acima dos 50 anos de idade, olhou-me e disse que eu tinha um problema no ventre e precisava "operar". Não me recordo, a esta altura, que palavras exatamente usou para dizer isso.

Organizou-se logo um grupinho de 5 ou 6 pessoas, mandaram-me deitar num dos bancos, desabotoei a camisa, afrouxei o cinto para descobrir o "campo cirúrgico" e a "coisa" começou. Permaneci lúcido e consciente. Não houve anestesia de espécie alguma, o homem não tinha instrumentos nas mãos, não senti dor e não foi feita incisão.

Em poucos minutos estava concluída a operação. Levantei-me, um tanto cético, devo honestamente confessar. Passado algum tempo, de volta ao médico, pedi-lhe que conferisse a existência do quisto. Ele o procurou e, não o encontrando, disse que, provavelmente, teria sido absorvido, com o que concordei, com um pensamento de gratidão pelo grupinho humilde do interior de Santa Catarina, que realizou a "operação". É até possível que o quisto tenha sido naturalmente absorvido, como diz o médico e eu não lhe disse o que acontecera no barraco de madeira. Não deixa de ser estranho, contudo, que depois de tantos anos e já se cogitando até da possibilidade de uma cirurgia normal, em hospital, o tumor tenha resolvido absorver-se. E, por curiosa coincidência, aconteceu isso depois que o simpático e rústico 'médico' do interior realizou sua misteriosa operação sem bisturi, sem anestesia, sem sangue e nada.

Enfim, outro milagre aí a derrogar leis naturais, outro evento sobrenatural que coloca o caro patrício nitidamente na categoria divina, segundo os critérios teológicos vigentes. E assim, a despeito dos que julgam que a decadência da civilização greco-romana encerrou o ciclo dos deuses está muito enganado. Por toda a parte há deuses e semideuses a fazerem milagres incríveis. Nunca os houve tão abundantes, mesmo porque nunca houve tamanha concentração de gente na face da Terra e, principalmente, gente que sofre... Talvez por isso. Deus nos tenha enviado tantos semideuses, muitos deles analfabetos, de mãos calejadas, pés no chão, vivendo anônimos, em barracos humílimos, com mulher e filhos, empenhados todos na luta áspera da sobrevivência física. Quanto à espiritual, está garantida, ante o testemunho vivo do Cristo, na doce e fria manhã de domingo, quando se apresentou inesperadamente à ex-obsidiada de Magdala.

Mas, isto é outra história, como diria Kipling.Hans Kung prega, como tantos Renan também a volta a Jesus a fim de procurarmos

entendê-lo ali, no seu contexto, no que ele disse, foi e realizou. Schweitzer, resumindo opiniões de muitos e combinando-as com a sua, também conclui de maneira semelhante, embora não idêntica. É indiscutível que o sentido da mensagem de Jesus está nos Evangelhos, por mais acomodados e manipulados que tenham chegado até nós. Temos de buscar a mensagem ali, portanto, nas suas origens, nas sua fonte, no filete de água que escorre límpida, fresca e pura, como um dos diminutos riachos da Galileia que ele amou.

Dentro da mesma ordem de ideias, poderemos, se assim o desejarmos, continuar colocando suas curas na categoria de milagres, mas vamos voltar, também, às origens semânticas da palavra coisas admiráveis de se ver -, em vez de continuarmos agarrados ao conceito inaceitável de sobrenaturalidade, que jamais foi uma explicação e sim uma espécie de maldição que tem bloqueado a visão de tanta gente, ao longo de tantos séculos.

Quando dizia ele que não veio revogar a lei, mas dar-lhe cumprimento, falava da lei mosaica, pela qual era regulado o sistema de relacionamento dos judeus entre si e entre eles e Deus, mas não parece despropositado estender o seu conceito de forma a abranger também as leis divinas, ou seja, naturais. Realmente, ele não as derrogou e nem podia fazê-lo, dado que o próprio Deus não o faz ele as confirmou, mostrando, contudo, que há fenômenos que ocorrem dentro de outros conjuntos de leis que, evidentemente, ele conhecia.

Até nisso, há uma mensagem a examinar-se: a abertura de amplas janelas panorâmicas

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para o futuro, quando o ser humano deixará de ser tão contraditório e imaturo a ponto de admitir que possa haver fenômenos sobrenaturais na natureza!

O objetivo da mensagem do Cristo não é só levar-nos até lá e sim além, sempre além...Na questão do milagre o que é irracional não é o milagre em si, mas a abordagem a que

tem ela sido submetida. Estou informado de que a definição do milagre como derrogação de leis naturais é de David Hume, o que muito me surpreende. Muito mais perplexo fico de ter sido tão universalmente adotada por teólogos e pensadores, crentes e descrentes, pois a tentativa de definição traz, em si mesma, sua contradição, ou seja, que dentro do contexto da natureza algo possa acontecer que não faça parte desse contexto, que o transcenda, que o ignore. Em que universo absurdo ocorrem tais fenômenos, então? Existe o universo da sobrenaturalidade, onde leis naturais não funcionem? Se existisse, estaria em contradição com todas as leis divinas que são essencialmente ordeiras, disciplinadoras, funcionais, harmônicas, compatíveis umas com as outras. Teria de haver, portanto, um universo regido por leis naturais e outro por leis sobrenaturais. O que nos leva a um paradoxo insolúvel o de que num universo ou contexto sobrenatural, as leis reguladoras seriam naturais, ou melhor, de uma natural sobrenaturalidade... Dá para entender isso? É inteligente uma coisa dessas? O lógico é que uma só lei que fosse desrespeitada, ou derrogada por capricho, casuísmo ou acidente desarticularia todo o sistema. Se os mecanismos cósmicos e morais continuam a funcionar harmoniosamente, é porque as leis que produziram o fenômeno também fazem parte do mesmo contexto e não se chocam umas com as outras.

O fenômeno inadequadamente intitulado miraculoso é um fato, não há como contestá-lo a esta altura. Ele ocorre mesmo, à vista de testemunhas idôneas, quer tais pessoas creiam neles ou não. Mudemos o título para ver se dá para entender. Em vez de milagre, chamemo-lo fenômeno B. O fenômeno A seria o habitual, o rotineiro, aquele com o qual estamos familiarizados, como o nascer do sol, de um lado do horizonte e o pôr do sol de outro. Embora, a rigor, esse fenômeno cósmico seja realmente um milagre no sentido voltaireano de admirável de se ver, entrou na rotina e a gente só se dá conta de que o sol se pôs quando começa a escurecer. Suponhamos, contudo, que o milagre cósmico ou a germinação de uma semente, seja fenômeno A e a cura de uma cegueira, mediante imposição das mãos de alguém dotado de recursos magnéticos apropriados, seja considerado fenômeno B. Como se poderia dizer que um é natural e outro não? Desde que ocorram é porque são ambos naturais, ainda que ignoremos as leis que regem um e conheçamos as que regem outro, ou supomos conhecê-las.

IMão se pode, honestamente, acusar a ciência de ter negligenciado a pesquisa e o estudo de fenômenos B. Há montanhas de tais fatos observados, catalogados e evidenciados, ainda que poucos se arrisquem a explicá-los ou a deduzir as leis que os regem. O problema é que a ciência pensa com muitas cabeças e fato é uma coisa, enquanto sua interpretação ou explicação é outra bem diversa. O fato é evento observável, fenômeno objetivo, enquanto sua interpretação é a resultante de uma atividade subjetiva pessoal, enunciado de uma opinião. E enquanto as opiniões não se reunirem num consenso, praticamente em unanimidade, haverá vozes discordantes a clamarem que a questão ainda não está decidida.

Há, contudo, evidência confiável suficiente para demonstrar a ocorrência de fenômenos B tais como, curas por imposição de mãos, materialização e desmaterialização de objetos e seres vivos, intercâmbio entre "vivos" e "mortos", telepatia, deslocamento de objetos sem contacto físico aparente, levitação, fenômenos linguísticos inabituais, enfim, uma enorme variedade de eventos dessa natureza.

Seria preciso que a taxa de alienação mental fosse elevadíssima para que todos os seres humanos que observaram e atestaram fenômenos B fossem tidos, comprovadamente, como débeis mentais ou francamente imbecis. Será que somente os que negam são inteligentes, cultos, honestos, normais e equilibrados?

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- Por sua característica inacreditável escreveu Heráclito o verdadeiro escapa ao conhecimento.

- Isto é um tipo de coisa exclama um “sábio" moderno na qual eu não acreditaria mesmo que existisse!

Com um pouco menos de obstinação negativista seria possível entender que Jesus dispunha de recursos e conhecimentos suficientes para produzir fenômenos B e que, depois dele, continuam tais fenômenos a ocorrer por toda a parte, com muita gente. Rara a pessoa hoje, numa conversa descontraída, em noite de chuva, que não tenha algo a contar com relação a uma experiência pessoal dessas. O testemunho de Lourdes está aí para quem quiser examiná-lo. Em Fátima, Portugal, aconteceram fenômenos B, tanto reservados à visão e audiência de algumas crianças, como espetaculares, à vista de multidões. Já disse alguém que não é preciso provar que nem todos os corvos são pretos basta mostrar um corvo branco. Se um só fenômeno B houvesse ocorrido em qualquer ponto, no tempo e no espaço, então é porque são eles possíveis. Acho que qualquer pessoa de bom senso há de concordar que, a despeito do “slogan" popularizado para divulgar fatos insólitos, o impossível IMAO acontece.

Seria temeridade afirmar que Jesus produziu exatamente aqueles fenômenos B, naquela sequência, exatamente como constam dos Evangelhos, mas que todos eles são possíveis é tolice negar. E mais que tolice, é ignorância mesmo, e, com o tempo, irá ficando tão berrante essa ignorância que muitos vão começar a aceitar a realidade dos fatos para não passarem pelo vexame de dizer que continuam a negá-los. Há os que não viram e creram, como disse Jesus a Tomé, mas parece ser maior o número dos que viram e continuam a não crer, pois duvidam até do testemunho de seus próprios sentidos. O raciocínio é, mais ou menos, o seguinte: "Não posso ter visto a minha avó ali porque ela morreu há mais de quarenta anos!" Acontece que a vovó pode mesmo ter estado ali, com o seu corpo espiritual, na condição de ser sobrevivente. Mas isso a obstinação da ignorância ou do preconceito não está preparada para aceitar.

Em suma: Jesus curou cegueira, paralisia, hemorragias, obsessões e possessões. Restaurou membros atrofiados, trouxe de volta ao corpo espíritos que se haviam afastado, restituiu a voz a quem estava mudo, limpou a pele de leprosos. E possível que algumas dessas fossem doenças psicossomáticas, mas não estamos falando de milagres e sim de fenômenos B. Qualquer pessoa que cure hoje um mal dessa natureza mediante hipnose, magnetização, tratamento psicanalítico ou homeopático estaria realizando milagre? Certamente não. Um dia saberemos que recursos mobilizar para restaurar um membro atrofiado, fazer andar um paralítico, restituir a visão a um cego. Um dia vamos entender ou aceitar o fato, já cientificamente demonstrado (Dr. Cari Wickland (24), de que um espírito que, em vida, sofreu de asma, por exemplo, pode causar sintomas da asma em uma pessoa sadia e que o seu afastamento acarreta cura instantânea com imediato desaparecimento dos sintomas. Da mesma forma, o espírito de um ser que foi mudo ou que se obstina em não falar, transmite seus bloqueios psicológicos a uma pessoa sadia e a converte num mudo, como ele. Afastado o espírito, a pessoa volta a falar, pois nenhuma lesão orgânica ou inibição cerebral apresenta que justifique a paralisação das suas cordas vocais.

Nada tem, pois, o fenômeno B chame-o milagre se assim quiser de embaraçoso, ou de vexatório. São possíveis, viáveis, regidos por leis naturais que um dia entenderemos e colocaremos em operação, tal como o fez Jesus. Ele próprio assegurou-nos que poderíamos fazer não só aquilo, como muito mais.

Alguém aí acha que ele não sabia o que estava dizendo?Como ficamos, então, perante a vexatória questão do milagre?Muito simples. Tudo o que estamos aqui a debater, "boils down", como se diz em inglês,

ou seja, resume-se no seguinte: Não há derrogação alguma de leis divinas, e, portanto, não há

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fenômeno sobrenatural, uma tolice que já durou demais. Há, sim, milagres no velho sentido semântico da palavra, isto é, coisas e eventos admiráveis de se ver. E como diz Voltaire, com ironia e sabedoria, tudo é milagre, pois é tudo admirável.

E mais. Houvesse ou não produzido milagres, a mensagem de Jesus é válida, é mais admirável e, portanto, mais milagrosa do que os prodígios que operou, como observa Will Durant. Não nos devemos esquecer, ainda, que ele os praticou relutantemente, como assinalam os Evangelhos e reconhece Renan. Achava Jesus, com justa razão, que não era o milagre que confirmava a sua mensagem, era a sua mensagem que explicava o milagre.

Muitos, porém, viam aquilo tudo de maneira ainda vaga e inconclusiva, como imagem refletida num espelho baço, como diria Paulo. Assim: "Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem a fé, a esperança e o amor, estas três coisas. A maior delas, porém, é o amor.

As versões católicas preferem a palavra caridade, em lugar de amor (o que também é válido), a fim de conservarem intacta a trilogia pauliniana adotada sob o título de virtudes teologais. O termo original grego é agape, que é amor, na sua acepção fraternal, pura, desembaraçada de conotações eróticas (de eros).

O que diz Paulo, portanto, é que, enquanto não dispomos da convicção, conservemos a fé sustentada pela esperança, mas não deixemos de praticar a caridade, a dinâmica do amor. Adquirida a convicção, a fé se vitaliza na razão e transcende até a esperança, de vez que esta é superada pela certeza. O amor se transfigura e permanece, pois é o maior de todos. Ou, para dizer de outra maneira: o milagre final.

II. RESSURREIÇÃOE se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, vã também é a vossa fé. (I Cor. 15:14)Nosso próximo assunto é a questão não menos espinhosa, perturbadora e vexatória da

ressurreição, pois assim continua esse episódio a ser considerado por muitos, inclusive, e principalmente, pelos teólogos e comentaristas modernos.

Já vimos alhures, neste livro, a opinião de Guignebert, para quem o dogma da ressurreição, que foi, de início, a viga mestra do cristianismo, acabou sendo uma carga pesada demais para as resistências da estrutura. Acha mesmo o historiador que "Não haveria cristianismo se a crença na ressurreição não houvesse sido formulada e sistematizada".

Paulo, o primeiro sistematizador do cristianismo nascente, escreveu precisamente isso, como podemos ver no pórtico deste capítulo. Sem a ressurreição, para que esforçar-se por ser bom e puro, privar-se das mordomias da matéria? Ou deixar de exercer o poder, a vingança? Uma grande tolice e um grande logro seria a vida para os bons e corretos. Melhor comer e beber à vontade, pois a morte acabaria colocando o ponto final em tudo, sem recompensas, mas também sem responsabilidades.

Em matéria de interpretação de textos evangélicos, não obstante, parece que vale tudo. Ambrogio Donini, professor de História das Religiões na Universidade de Bari e livre docente da mesma cadeira na Universidade de Roma, entende, à vista desse mesmo texto de Paulo, o seguinte:

- O próprio Paulo não aceitava a ressurreição de Jesus como um dado histórico, mas apenas uma exigência de fé, posta em dúvida por muitos de seus correligionários.

Sem comentários...Ao chegar à questão da ressurreição, a palavra de Hans Kung fica próxima de um

lamento, ou, pelo menos, de uma resignação, como a dizer: "Temos, afinal, de cuidar disto também". Kung não procura, contudo, escamotear suas dificuldades.

- Atingimos o ponto mais problemático do nosso estudo sobre Jesus de Nazaré escreve ele na abertura do Capítulo V A Nova Vida -. Mesmo alguns daqueles que vêm

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acompanhando nosso debate com simpatia até agora prossegue ele talvez hesitem neste ponto. A razão para essa sensibilidade está em que o mais problemático ponto de nossa própria existência está igualmente sob exame.

Ou seja, o brilhante teólogo suíço não acha difícil apenas a questão mais ou menos especulativa de saber se o Cristo ressuscitou ou não; o problema para ele ainda vai mais fundo e consiste em saber se, ao chegarmos às alfândegas da morte, emergimos 'vivos' do outro lado, ou se ali termina tudo.

Pouco adiante, na Introdução, começa ele a exibir as amarras que contêm o estudioso, ou seja, as inibições, tão apriorísticas e condicionantes quanto as que vêm obstruindo, durante tantos séculos, uma visão mais inteligente do problema do milagre. Acha ele que a morte do Jesus "abandonado por Deus" palavras suas "não pode ser reinterpretada".

Como e por que não pode? Em princípio, os fenômenos históricos, os fatos ocorridos, serão sempre suscetíveis de reinterpretação à vista de novos informes, pesquisas ou descobertas, mas o Prof. Kung acha que tanto faz encarar a questão com os recursos da fé como com as armas da psicologia, em busca de uma explicação lógica, aí é que ela fica mais complexa, perante 'obstáculos insuperáveis'.

Em resumo, o Prof. Kung prepara-se para estudar o problema, antecipadamente convicto de que não dá para resolvê-lo satisfatoriamente, nem com a fé e nem com a ciência como instrumentos de avaliação. Depois de muito especular, regressa ele ao abrigo da fé, que, a meu ver, já havia recusado de início. A resolução me parece mais uma renúncia, um gesto de desalento, um recuo à única opção admissível, ainda que duvidosa, ante outras que ele não quis ou não pôde examinar com olhos críticos e mente aberta.

Uma vez que o homem encontra-se aqui tratando com Deus, o que, por definição, quer dizer com o invisível, o impalpável, o incontrolável, somente uma atitude é apropriada e exigida: crença confiante, fé confiante. Nenhum caminho nos leva ao Cristo ressuscitado e à vida eterna sem passar pela fé. A ressurreição não é um milagre autenticador da fé. Ela é o próprio objeto da fé.

Em outras palavras: renunciemos à tentativa de racionalização do problema e voltemos à fé, onde não é necessário ser racional. Mas, e os que não conseguem aceitar esse tipo de fé, por mais confiantes que sejam? Segundo o Dr. Kung, jamais trilharão o caminho que leva ao Cristo e à vida eterna.

Com o que estamos em total e irrecuperável desacordo, a despeito de toda a brilhante inteligência do eminente teólogo, ao qual me into no direito de apresentar algumas questões. Esta, por exemplo: Estou excluído de entender o Cristo se não aceitar esse conceito de ressurreição? Está fechado para mim o acesso à vida eterna? Mas, como espírito imortal, já não estou na eternidade? Tenho de acreditar nisso tudo para sobreviver? Somente porque invisíveis e impalpáveis, certas coisas têm de ser, também, incontroláveis ou inabordáveis à especulação intelectual?

Ademais, como devo entender a ressurreição se não é um "retorno a esta vida no espaço e no tempo" e se não é, também, "uma continuação desta vida no espaço e no tempo?" Que é, então? "Uma transformação em Deus" diz ele. Que é isso? Que é "morrer em Deus"?

Não é difícil, contudo, perceber que as dificuldades do Dr. Kung nascem não apenas das suas duvidosas premissas e de algumas conclusões apriorísticas, mas também de rejeições fatais à clarificação do seu raciocínio. Ele não sabe, por exemplo, em que categoria colocar o corpo do Cristo ressurreto. Em outras palavras: a figura objetiva que se mostrou após a morte na cruz a tantas pessoas, em que tipo de corpo o fez? Carnal? No chamado "corpo de glória" ou "corpo espiritual" de que nos fala Paulo?

O Prof. Kung parece rejeitar essas alternativas, mas sem uma decisão inteligente, não há como racionalizar o problema, pois é aí que está a chave de todo o enigma, o aspecto crucial da questão. E como pode alguém chegar a uma conclusão satisfatória se já decidiu que

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somente pela fé podemos chegar lá?Estou convencido, porém, de que a teologia é, em verdade, uma especulação difícil e

traiçoeira e muita gente cai no poço antes de perceber que caiu. E a impressão que nos causam certos postulados contidos em 0 NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA (18), obra pensada e executada no âmbito do protestantismo (Verbete RESSURREIÇÃO).

Também os queridos irmãos da Reforma demonstram não saber direito o que fazer da ressurreição de Jesus. Primeiro, porque partem da mesma e cansada premissa de sempre, de que a ressurreição é o retorno da vida ao cadáver. Como os companheiros do catolicismo, eles acham que com o mesmo corpo físico com que participamos das mordomias da vida terrena, iremos gozar das celestes, no Reino de Deus. Conceito, aliás, que herdaram ambos, sem tirar nem pôr, de religiões anteriores.

Voltaire informa que os fariseus adotaram o dogma da ressurreição muito depois de Platão. No debate entre Paulo e os judeus, narrado em Atos 23, como também assinala Voltaire (Verbete RÉSSURRECTION, de seu Dicionário Filosófico), Paulo declara que é fariseu e estava ali em julgamento precisamente por acreditar na ressurreição (do Cristo, obviamente). Logo em seguida, o texto diz isto: "Os saduceus, com efeito, dizem que não há nem ressurreição, nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus professam uma e outra coisa".

Do que se conclui que a doutrina dos saduceus era essencialmente materialista e a crença dos fariseus na ressurreição era recente, como nos assegura Voltaire, e não muito bem definida. Seja como for, mesmo crendo na ressurreição, os fariseus não ficavam distanciados do materialismo saduceu porque só entendiam uma vida futura com corpo físico e tudo. Exatamente como aqueles que se consideram cristãos hoje no seio das religiões tradicionais.

Não obstante tudo isso, os redatores do NOVO DICIONÁRIO afirmam que "toda a evidência que possuímos demonstra que não havia qualquer pensamento de ressurreição nas mentes dos discípulos, e que eram homens desesperançados na noite da primeira Sexta-feira da Paixão".

Por outro lado, especulam, ainda, os redatores desse verbete, que devemos rejeitar também a teoria de que a manifestação de Jesus se deveu a uma aparição, como muitos julgam, porque "as alucinações sobrevém a pessoas que de alguma maneira esperam por elas, e não há qualquer evidência (de) que isso tenha acontecido aos discípulos".

Aí está uma novidade: alucinações esperadas.Não é, pelo menos, o que se evidencia do relato da Sra. d'Espérance, para citar apenas ela

como representativa de outros testemunhos.Às 15 horas do dia 14 de fevereiro de 1897, em experiências realizadas com ela, a câmera

fotográfica captou dois rostos: um de mulher e outro que "fez-nos recordar Huss ou alguma outra personagem da IdadeMédia, a julgar pelo seu modo de trajar. Na terça-feira seguinte ficamos surpreendidos com o aparecimento, nos jornais, de artigo relatando a vida e a obra de Philipp Meianchthon, nascido a 16 de fevereiro de 1497, e então reconhecemos a semelhança existente entre o retrato de Meianchthon e a fotografia que tínhamos obtido".

Primeiro, portanto, que não se trata de uma alucinação, pois não consta que máquinas fotográficas sofram de tais distúrbios. Segundo, que a imagem não era esperada, dado que nem foi identificada, a não ser fortuitamente, pela imprensa, a posteriori.

A foto está reproduzida no livro e, semelhantemente a outras ali estampadas, dá para observar que não se trata de reprodução de algum retrato existente de Meianchthon, mas do próprio, ao vivo. Desnecessário acrescentar que não havia câmeras fotográficas no século XVI, quando ele viveu uma de suas existências na carne.

Os autores do DICIONÁRIO desejam consolidar a tese de que a manifestação de Jesus foi realmente em corpo denso, material, físico, pois rejeitam igualmente a hipótese de ter sido uma visão (enviada por Deus, naturalmente), o que deslocaria a questão para a área psicológica, mais digerível hoje. Pois não é. "Se adotarmos a teoria da visão escrevem eles é

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difícil desculpar a Deus por haver iludido os discípulos, o que é uma conclusão inconcebível".

Em suma: a manifestação de Jesus aos discípulos após a morte e sepultamento, constitui, como estamos observando, um problema complexo, posicionado no centro mesmo da nova teologia que ali começa a lançar suas primeiras radículas. Se o Cristo não ressuscitou, como diz Paulo, então é tudo vão e continua tudo na mesma, ou seja, todos mergulhados no pecado, sem ter quem os salve.

O que aconteceu, porém, é que a fé se impôs no coração de muita gente e acabou espalhando-se pelo mundo todo. Que misteriosos atrativos oferecia a nova fé às multidões que não conheceram Jesus em pessoa, nunca o ouviram falar, nunca foram beneficiados pelos seus milagres e dele sabiam apenas o que diziam os pregadores, muitos dos quais já eram discípulos dos discípulos? Não há dúvida de que o argumento central dessa convicção era a ressurreição do Cristo. A vida póstuma era, quando muito, uma esperança ou uma remota e mal definida doutrina, como a dos fariseus. Esperavam estes retomar, um dia, os seus corpos e voltar à antiga vida que aqui tiveram, numa terra convertida em paraíso e toda ela submetida ao domínio do Povo de Deus. Como se daria essa retomada, não estava na cogitação de ninguém. De que maneira reconstituir-se o corpo decomposto, virado pó, com os seus átomos dispersos por toda parte e ajudando até a compor outros corpos? E, afinal de contas, que parte do ser retomava o corpo? O Espírito, certo, mas por onde andaria ele nesse ínterim, que poderia durar milhares e milhares de anos, se somente se podia sentir e viver unido ao corpo material?

A nova religião se propunha definir melhor a questão. Não apenas pregava a sobrevivência, apresentando-a como esperança ou possibilidade, mas garantia aos que "não viram e cream", como se diz em João, que o Cristo fizera exatamente isso: morrera e ressuscitara, partindo, em seguida, com o seu corpo físico para o céu. Estava, afinal, liquidado o temor da morte, o mais antigo, persistente e tenebroso medo atávico. De fato, a morte fora sempre o grande castigo e a vida o prêmio máximo. A recompensa prometida aos que honrassem pai e mãe, no Decálogo, é o prolongamento "de teus dias na terra que Javé, teu Deus, te dá". Nada de paraíso espiritual.

Finalmente, surgira uma religião que prometia a ressurreição e cumpria. Não somente isto, o Cristo assumira por nós as nossas culpas e as resgatara com a sua própria vida, vencendo a morte, o último inimigo. Para alcançar tão importantes concessões era preciso ter fé, mas a fé acabava sendo graça divina e para propiciar a Deus, a fim de obtê-la, era necessário um procedimento reto e fraterno.

Se as dificuldades da doutrina da ressurreição não foram suscitadas antes, ao tempo de Paulo, por exemplo, é uma boa razão para se crer que ela foi pregada de maneira diferente da que mais tarde se consolidaria como dogma, ou seja, a de que a vida é restituída ao cadáver que se levanta e vai cuidar de si. Certamente haveria uma fórmula mais aceitável de expor a questão aos simpatizantes e profitentes da doutrina cristã primitiva, porque, depois de dogmatizada, acarretou problemas insolúveis. Diz Voltaire que, segundo Santo Agostinho, as pessoas mortas na infância ou natimortas ressuscitariam com corpo adulto, o que é bastante estranho, mas vá lá. Já Orígenes, Jerônimo, Atanásio e Basílio também segundo Voltaire não acreditavam que as mulheres ressuscitassem com o sexo que lhes é próprio.

A dificuldade insuperável, no entanto, que faz da ressurreição o mais embaraçoso problema da teologia moderna não é tão moderna assim, pois já Voltaire a formulava, recheando-a com seus sarcasmos habituais. Falamos disso há pouco: como os corpos se decompõem e devolvem à natureza o material de que foram elaborados, esse material é reutilizado e não será nada estranhável que corpos humanos dos viventes venham a conter certa quantidade de antigos corpos descartados pelos ex-viventes, depois de terem passado pela condição de "legumes ou trigo", como diz Voltaire. Daí a sua conclusão de que Caim

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ingeriu parte de Adão, Enoque alimentou-se com um pouco de Caim, e, assim por diante, o que leva muita gente a achar que somos antropófagos. Chegado o juízo final, como vai ser? Como vamos devolver parte dos corpos alheios que constituem os nossos? pergunta Voltaire preocupado.

Em verdade a situação é ainda mais complexa, porque a troca atômica do material que constitui o nosso corpo físico se dá ainda no decorrer da própria existência, como nos assegura a ciência moderna, segundo a qual todo o organismo de cada pessoa se renova a cada cinco anos.

Brincadeiras à parte, o problema aí está posto cruamente. Não é, pois, sem razão que a teologia moderna considera a questão da ressurreição tão espinhosa e embaraçante ou mesmo vexatória, como dizem alguns. Se a Igreja levou séculos para desdizer-se e admitir que o sol é o centro do sistema planetário, imaginemos quanto tempo levará para reformular racionalmente o dogma da ressurreição que está incorporado ao Credo...

O problema é grave do ponto de vista teológico, porque o conceito que se coloca no dogma torna-se irretocável, cristaliza-se para sempre, haja o que houver. A doutrina geocêntrica não era tão importante na formulação teológica. Foi possível sacrificá-la sem provocar desastres arrasadores. Já o dogma da ressurreição é muito mais sério, pois ocupa posição central na teologia, condição mesma da sua viabilidade.

Há, contudo, uma solução, do ponto de vista doutrinário, ainda que com substancial perda de prestígio, pois não deixa de ser desagradável rever uma posição tão longa e bravamente sustentada. Por mais hábil que seja, o abandono de uma antiga convicção fica sempre com o amargo sabor de derrota, além do natural traumatismo do recuo.

Deixe-me ver se consigo explicar isto.Semelhantemente ao conceito de milagre ou de sobrenaturalidade que discutimos em

páginas anteriores deste livro, o da ressurreição sofre do mesmo mal de origem: conclusões apriorísticas e formulação defeituosa de premissas resultantes de aceitação cega, sem exame crítico, do conceito preliminar. Em outras palavras: parte-se da premissa de que o corpo dito ressuscitado é o físico, porque a felicidade póstuma prometida somente pode ser gozada com o corpo, da mesma forma que a punição eterna, se for o caso, tem de ser sofrida com o corpo. Mesmo porque foi no corpo que se conquistou o direito à glória ou se mereceu a condenação. Estamos ainda presos ao conceito materialista de Aristóteles, encampado pelos teólogos medievais, de que nada alcança a nossa mente a não ser que passe pelos sentidos. Como os sentidos estão no corpo pelo menos assim pensa muita gente boa até hoje então precisamos do corpo para sentir. Pois não acha o Prof. Hans Kung que, segundo a antropologia moderna, não se pode mais conceber a alma separada do corpo? Pois é o que ele diz à página 351 de seu livro, na tradução inglesa. Vamos reproduzir a observação, a ver se a entendemos corretamente:

Paulo faia dessa nova vida escreve Kung em termos paradoxais que indicam, eles próprios, os limites do que pode ser dito: um "corpo espiritual" imperecível, "corpo de glória" que surgiu de uma radical "transformação" do corpo perecível de carne. Paulo simplesmente não pode dizer com isso que se trate da alma-espírito, no sentido grego (liberada da prisão do corpo), que a moderna antropologia não pode mais conceber isolada.

Mas, Senhor, somente porque o critério arbitrado pela antropologia impõe, temos de aceitá-lo como ponto de partida para enveredar por novos labirintos teológicos? Posturas como essas podem ser até admissíveis, ou seja, a de que as formulações teológicas e filosóficas não podem ignorar postulados científicos ou contraditá-los; antes, porém, é imperioso que temos de estar convictos de que os critérios científicos antropológicos, no caso sejam, de fato, verdadeiros, testados, indiscutíveis e, portanto, aceitáveis. Sem isso, temos apenas mero palpite, como qualquer outro. Que sabe a antropologia de alma ou espírito, por enquanto? Pelo que temos visto, ela está procurando a alma no lugar errado, precisamente

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porque já parte para a pesquisa decidida a não encontrá-la, decisão resultante de outra premissa não menos arbitrária e pessoal a de que a alma não pode existir, quanto mais sobreviver ou manifestar-se.

O preconceito contra as manifestações póstumas da alma é de comovente imaturidade intelectual à vista da massa de dados hoje acumulada pelas ciências especializadas. Que os pesquisadores bloqueados pelos seus conceitos materialistas continuem obstinadamente a negá-las é direito que lhes está assegurado, mas que teólogos, que são, em última análise, porta-vozes de suas comunidades religiosas, se deixem intimidar e se recusem a examinar a evidência e a rejeitem sem apelo é algo difícil de entender. Principalmente porque tais comunidades se caracterizam, pelo menos nominalmente, como espiritualistas, ou seja, estruturadas em cima do conceito de que o ser humano é, basicamente, espírito, qualquer que seja o seu destino póstumo. Ou, então, chegaremos ao seguinte primor de sofística: "Creio num princípio espiritual no ser humano; creio que esse princípio sobrevive à morte corporal (do contrário, a própria religião não faria sentido), mas não admito que tal princípio espiritual alma ou espírito possa existir, a não ser acoplado ao corpo físico, porque a antropologia moderna não concorda com isso”.

Por outro lado, manifestações póstumas das almas dos santos são admitidas, enquanto seus corpos andam por aí venerados como relíquias. Aliás, o Dr. Kung acha, um tanto encabulado, que, de certa forma, os santos católicos não são mais do que os antigos deuses do paganismo, no que, a propósito, concorda com Voltaire. Não há dúvida que representam mesmo um resíduo pagão, pois aos santos o crente ora, faz oferendas e promessas, atribuindo a cada um a guarda de certo aspecto da vida, tal como nos antigos cultos pagãos. Assim como havia um deus para o trovão, outro para o raio, outro para o lar, ou para as colheitas, a fertilidade, o amor, etc, há santos para proteger os olhos (Luzia), as crianças (Cosme e Damião), a medicina (Lucas), bem como para controlar as chuvas (Pedro), promover casamentos (Antônio), e assim por diante.

Mas este não é o ponto aqui. Desejamos apenas lembrar que a hagiografia está repleta de fenômenos, nos quais ficou documentada a manifestação objetiva de almas ou espíritos dos santos da Igreja. Não me consta que estivessem na posse de seus corpos materiais naquele momento, como não é possível a alguém em seu juízo perfeito achar que Jesus encontre-se hoje sentado à direita de Deus, revestido do mesmo corpo material aqui utilizado, que foi crucificado e com o qual teria ressuscitado. Mesmo porquê, como dizia Lutero, Deus não tem direita nem esquerda.

- Que é, então, a direita de Deus? escreveu o Reformador, em momento de belíssima inspiração. Será um céu de teatro, como o imaginam as crianças, onde Jesus Cristo assenta-se à direita do Pai, com uma coroa de ouro na cabeça? Não. A direita de Deus é a sua onipotência incompreensível, incomensurável, em parte alguma e em toda parte; em nenhum lugar fixada porque, se pudesse ser limitada, encerrada em qualquer local, não seria ele onipotente; fora e acima de todas as coisas criadas e, contudo, substancialmente presente nelas.

E mais adiante:- Incompreensível mistério esse e, não obstante, artigo de fé. E a marca da sua eterna

majestade de Deus fazer-se tão pequeno que um grão de trigo o contém e tão grande que preenche e excede todos os mundos reunidos. Como pode ele estar, ao mesmo tempo, todo inteiro, na menor das suas criaturas e além das coisas perceptíveis? Como pode o corpo conter o espírito? Quem pode dizer quem é Deus? Corpo, espírito, mais ainda que espírito. Ele é o incompreensível que nos cumpre adorar; ele tudo contém e nada o contém. Pobres homens, quem sois vós para medir o seu poder?

Não há o que retocar aí.Mas voltemos ao nosso tema, do qual isto foi apenas uma digressão.

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* * *E bem verdade que, questionando-se ou considerando-se embaraçoso o problema do

milagre em Jesus, antes e depois da crucificação, mais grave se torna o embaraço com os milagres atribuídos aos santos, muitos dos quais na mesma categoria, ou seja, curas, aparições, manifestações objetivas, durante as quais são transmitidos ensinamentos, notícias, observações ou conselhos e testemunhos de variada natureza.

Mesmo admitindo-se que alguns sejam fantasiosos, ou, no mínimo, bordados com a linha sutil da ficção, não há dúvida de que há um acervo concreto, documentado, testemunhado, de episódios autênticos em que pessoas "mortas" pois os santos são pessoas, são gente, como qualquer de nós manifestam-se objetivamente para falar aos "vivos", provando a continuidade da vida consciente em outra dimensão ou re.ilidade. Pouco adianta retrucar que tais manifestações só ocorrem porque Deus as permite. Claro. Tudo o que acontece é permitido por Deus, no sentido de que se processa através das leis cósmicas naturais, cabendo ao transgressor a responsabilidade e a consequente reparação e ao cumpridor da lei o prêmio da paz espiritual. "Tudo me é lícito escreveu Paulo mas, nem tudo me convém".

Há, pois, permissão de Deus, ou seja, há espaço na leis naturais para que os seres oficialmente mortos, segundo o critério predominante entre os seres humanos, manifestem-se aos que ficaram na carne. E não apenas os santos, não. Muito pelo contrário, sintonizados, como ainda nos encontramos, com as faixas vibratórias da imperfeição, estamos mais expostos à pressão dos seres perturbados à nossa volta do que à salutar influência dos bons. É como se o botão do nosso "dial" particular não conseguisse rodar até às emissoras da faixa mais elevada e ficasse nas de mais baixa expressão vibratória, no caso, evolutiva.

No entanto, cada vez que se toca na viabilidade de um intercâmbio entre vivos e mortos, os teólogos assumem uma posição hierática e despacham para o interlocutor um sorriso condescendente, quando não um anátema. O Prof. Kung liquida o assunto com inequívocas palavras, mesmo na interpretação daquilo a que Paulo chama de carismas, na Epístola aos Coríntios.

O eminente e genial Dr. Albert Schweitzer (9) atribui a rigidez severa do racionalismo de Paulus, "a regime de espiritismo compulsório" imposto pelo pai, na sua infância e adolescência.

Seu pai escreve Schweitzer Deão em Leonberg, metade místico, metade racionalista, experimentava secretas dificuldades com a doutrina da imortalidade e, por isso, fez sua mulher prometer, no leito de morte, que, se possível, ela apareceria a ele sob forma corporal, após a morte. Depois que ela morreu, ele julgou tê-la visto elevar-se até sentarse e abater-se de novo. A partir daquele momento, ele acreditou firmemente estar em comunicação com os espíritos dos que se foram e tornou-se de tal forma dominado pela ideia, que, em 1771, teve de ser exonerado da sua função (eclesiástica).

Cabe, logo, uma pergunta oportuna: como sabe o Dr. Schweitzer que o velho Paulus apenas julgou ter visto a esposa movimentar-se num segundo corpo, ou melhor, numa réplica do que estava estendido no leito mortuário? Outra observação não menos oportuna: curiosa atitude da Igreja à qual servia Paulus. Enquanto ele teve suas "dificuldades" com o "espinhoso" problema da imortalidade da alma, presume-se que tenha servido bem aos interesses de sua igreja. Depois, no entanto, que adquiriu a certeza da sobrevivência e, por extensão, da imortalidade, aí teve de ser exonerado... E isto numa instituição espiritualista por definição, pois prega a existência e a sobrevivência da alma. Uma vez atingida essa convicção, que só pode ter sido produzida pela metade racionalista que o Dr. Schweitzer lhe atribui, o pobre Deão deve ter sido tomado por um louco pacífico, inadequado para as tarefas que dele esperava a sua Igreja.

Não devemos, honestamente, ignorar o problema que o Deão Paulus suscitou para a sua Igreja. E fácil imaginar os "embaraços" e "vexames" que ele estaria criando, na melhor

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intenção possível, ao falar do púlpito, como deve tê-lo feito, acerca de espíritos e, principalmente, do que lhe diziam eles. Que não havia por lá nenhum céu ou inferno, por exemplo, mas apenas a continuidade da vida, numa dimensão nova.

Que continuasse a pregar a sobrevivência do ser e a estimular suas ovelhas à prática do amor, do bem e da caridade para merecerem uma vida melhor, do lado de lá, tudo bem. Mas tinha de fazê-lo sem estar convicto da imortalidade. Uma vez convicto, por experiência pessoal, não servia mais...

Ao que tudo indica, o Dr. Schweitzer também concorda com esse critério esdrúxulo, tanto que atribui às estranhas ideias do velho Paulus a rigidez racionalista do filho, como que uma espécie de represália. Este morreu, aos 90 anos, em 1851, e suas últimas palavras foram reveladoras: "O outro mundo existe!" exclamou ele. Ainda bem que foram as últimas; do contrário, teria, provavelmente, perdido sua cátedra de teologia, como o Dr. ICung, se bem que por diferentes razões filosóficas.

Enfim, são azares profissionais, acidentes de trabalho... E estranho, contudo, que um teólogo só se convença da realidade póstuma ao morrer. E que outro deixe de merecer a confiança de seus superiores porque se convenceu disso ainda em vida.

O que deixa perplexa a pessoa descondicionada das posturas preconcebidas e apriorísticas, no entanto, é o fato inexplicável de que no mesmo texto de Paulo, do qual são extraídos os argumentos para sustentar o dogma da ressurreição do corpo material, está escrito que não é o corpo material que ressuscita, e não é com ele que vamos para o outro lado da vida. Não é curioso isto?

Vamos ver de perto todo o capítulo 15 o último, aliás da 1 Epístola aos Coríntios, que cuida precisamente do problema da ressurreição.

Confirma ele, de início, o que já ensinara, ou seja, que realmente o Cristo "morreu pelos nossos pecados", foi sepultado e, no terceiro dia, ressuscitou. Esse texto foi transplantado, com ligeiras modificações, para o Credo. Que, em seguida, apareceu a Pedro, e, depois aos doze e a mais de quinhentos, dos quais muitos continuavam vivos, ao passo que outros já haviam "dormido", ou seja, estavam mortos àquela altura em que se redigia a carta. E que logo apareceu a Tiago e aos doze apóstolos.

O texto exibe aqui cicatrizes de uma operação de acomodação, muito embora a impressão que nos fica é a de que as cartas de Paulo foram os documentos que menos sofreram com as manipulações. Parece, contudo, haver aqui uma enxertia. Em primeiro lugar, porque sequer menciona Madalena, um dos poucos pontos em que não apenas os sinóticos, mas os quatro evangelhos estão de acordo, ao informarem ter sido ela a primeira que viu o Cristo ressurreto e falou com ele. Parece que a intenção foi a de colocar Pedro como o primeiro a ver, dado que era considerado o primeiro entre os doze e, mais tarde, tido como primeiro Papa. Tornara-se necessário, a certa altura, abrir espaço para Tiago, que ficou sendo o líder da comunidade cristã em Jerusalém, ainda que conservando na íntegra os rituais prescritos na lei e a doutrina dos antigos profetas de Israel.

A Dra. Elaine Pageis (43) chega a sugerir importantes conotações políticas decorrentes da ressurreição, lembrando a ênfase posta nas qualificações dos líderes da Igreja Primitiva. Em outras palavras: tiveram prioridade sobre os demais aqueles que testemunharam pessoalmente, ao vivo, os episódios da ressurreição.

Os textos preservam esse aspecto, como se vê em Atos 1:22. Ao cuidar da substituição de Judas Iscariotes, Pedro propõe que seja alguém que tenha estado com eles desde o batismo de Jesus, conferido por João, ate a crucificação e mais: alguém que pudesse ser, como os demais apóstolos, "testemunhas da sua ressurreição".

Daí o cuidado de citar nominalmente todos aqueles que tiveram o privilégio de uma convivência, ainda que efêmera, com o Cristo póstumo. Era mais que um privilégio isso, um

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titulo de glória e autoridade.Depois de dizer que a manifestação ocorreu a Pedro, aos doze e a mais de quinhentos,

surge, solta, a frase "Posteriormente, apareceu a Tiago e, depois, a todos os apóstolos". Paulo reitera, a seguir, a realidade da ressurreição, pois ouviu dizer que estava sendo questionada em Corinto a ideia em si e não especificamente a ressurreição de Jesus. Aparentemente, aceitavam-na esses questionadores quanto a Jesus, mas não como rotina, para todo o mundo. Paulo foi sempre hábil e lúcido em identificar os desvios doutrinários e liquidar com eles ainda ao nascedouro, a fim de que a jovem teologia que começava a emergir não entrasse por algum atalho perigoso e irreversível.

Nesse sentido, diz ele, enfático como sempre, que, se não há ressurreição dos mortos em geral, então o Cristo também não ressuscitou e, por conseguinte, toda a pregação é uma tolice, como também a fé, caso em que permaneciam todos mergulhados, sem esperança e remédio, no pecado. A verdade, porém, é outra: a da ressurreição, tanto para os vivos como para os que já haviam "adormecido", ou seja, os mortos. Todo mundo ressuscitaria no momento adequado, como diz e repete incansavelmente. O Cristo fora o primeiro a derrotar a morte, para mostrar que ela não era invencível, para ensinar que, com ele, todos também a derrotariam, mesmo porque se a ressurreição fosse uma balela e a morte o fim de tudo, então, que cada um cuidasse de gozar a vida à sua maneira. Mas que não se iludissem, porque as coisas não se passavam assim.Depois desse preâmbulo doutrinário, põe-se ele a explicar o que entende por ressurreição e como funciona o seu mecanismo, o que faz com excelente metodologia, em afirmativas bem graduadas, bem encadeadas e lógicas.Primeiro a questão básica: Com que corpo voltam os mortos? E dá logo o tom da sua maneira de pensar com uma só palavra, severa e contundente: Insensato! Então você não sabe que aquilo que se semeia só pode voltar à vida se morrer? A semente que se coloca na terra não vai constituir o corpo da planta que dali nascer. Ela é apenas uma semente, nada mais, como um grão de trigo ou qualquer outro, da mesma forma que as carnes são diferentes nas diversas espécies animais: homens, bois ou peixes. Até o brilho dos corpos celestes difere uns dos outros: o do sol e o da lua ou o das estrelas entre si.Com a insistência na diversidade das manifestações físicas, na forma, Paulo deseja enfatizar que há muitas maneiras de se apresentarem os corpos celestes e os terrestres, não apenas uma. Assim também é a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível. Como semear, enterrar, sepultar, são praticamente sinônimos, é evidente que o Apóstolo deseja dizer que o corpo que vai para a cova na terra é putrescível, decompõe-se, desaparece, desintegra-se, da mesma forma que a semente. Levanta-se dali ressuscitar é suscitar outra vez, ou seja, levantar de novo um corpo não mais sujeito à decomposição e que, obviamente, estava contido ou unido ao que apodreceu, tanto quanto a planta que vive estava contida na semente que morreu. Desaparece, assim, um corpo material desprezível, transitório, frágil, e permanece outro corpo, o espiritual, cheio de vigor, ou seja, um corpo energético, imaterial, permanente. Ao primeiro ele chama de corpo animal, para caracterizar bem que é o corpo de carne; ao segundo chama de corpo espiritua., não sujeito à decomposição, "pois há um corpo animal e um corpo espiritual" diz ele com irretocável clareza didática. Há, portanto, dois corpos e não um só, no ser humano; um morre e se desintegra, o outro continua vivo, inteiro, livre. Um é terreno, outro celestial. Assim como conservamos, por tradição genética, a imagem terrena de Adão, que, segundo o simbolismo bíblico, foi feito de barro, ou seja, dos elementos materiais da própria terra, temos também o princípio espiritual, sopro de Deus em nós. Aliás, tanto a palavra espírito como sopro ou vento traduzem-se pelo mesmo termo grego pneuma. Está aí, pois, interpretado o simbolismo bíblico do Gênesis, segundo o qual, do barro, Deus fez Adão, soprando nele o espírito, ou seja, dotando-o de espírito. Criou, pelas leis naturais, um corpo físico, no qual colocou o

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princípio espiritual, centelha de sua própria essência, o que explica a incompreendida expressão "à sua imagem e semelhança".

Na concepção de Paulo com a qual concordamos esses dois corpos convivem, ora ajustados um ao outro e interpenetrados, na vida de vigília, ora desdobrados em dois, um grosseiro e pesado, preso às contingências do mundo físico e outro leve, como que feito de luz, capaz de desprender-se, deslocar-se no espaço (e no tempo), para retornar, posteriormente, à prisão material, como um balão cativo.

Aos discípulos de Corinto que parece serem os que melhor entendem suas colocações espirituais ele diz que foi arrebatado ao terceiro céu, onde ouviu "coisas inefáveis", que, aliás, não comenta. Curiosamente, não diz que é ele o visitante do céu, mas alguém que ele conhece. Como também não deseja deixar decidido se a excursão foi com o corpo ou não, isto é, com o corpo denso ou o espiritual, mas é claro que, assim como sabe quem é o homem de quem fala, sabe também que ele não poderia ter sido arrebatado pelos espaços a regiões superiores de outras dimensões que, obviamente existem, em um pesado corpo material.

Mas, o genial Apóstolo ainda não esgotou o seu tema. Para aqueles que acham possível ir com o corpo físico para o céu, para o Reino de Deus, ou, em linguagem mais atualizada, para o mundo póstumo, ensina ele com extraordinário e enfático poder de síntese: "A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus". Bem entendido? O corpo corruptível decompõe-se e fica na terra; o que segue para o mundo póstumo é o outro corpo, o incorruptível, ou seja, o corpo espiritual. Como poderia a corruptibilidade participar da incorruptibilidade? Mesmo porque, como disse ele no versículo 46, a prioridade é do espírito-; o corpo de carne é apenas veículo, instrumento de trabalho, vestimenta animal de carga que serviu ao corpo espiritual. O terreno e o celeste podem coabitar, viver em paralelo, mas não se confundem. Há limites bem definidos entre eles, há distinção nítida entre o que podem ou não podem fazer. No Reino de Deus, por exemplo, nada tem a fazer o corpo animal. Como poderia ser de outra maneira?

Havia, ainda, uma questão a decidir. Os primeiros cristãos Paulo inclusive acreditavam que o Cristo fora embora apenas por um breve tempo e logo voltaria para levar para o Reino de Deus aqueles que lhe foram fieis. Sendo assim, quando voltasse, ainda encontraria vivos, isto é, na carne, grande parte de seus seguidores. Paulo dissera, contudo, ainda há pouco, nessa mesma Epístola, que só ressuscita aquele que morreu, tal como a semente, que precisa "morrer" enterrada para que dela surja uma planta viva. Como resolver o problema daqueles que continuavam vivos? Não era preciso morrerem primeiro?

Não, diz o Apóstolo. Nem todos morreriam a tempo de serem levados em seus corpos celestes, mas a solução era simples: os vivos passariam por uma transformação que ele não define. Obviamente, porém, a transformação consistiria em descartar-se do corpo animal para ficar somente o corpo espiritual, sem ter passado pelo processo habitual de dissociação provocada pela morte e sepultamento. O certo é que com o contrapeso do corpo animal ninguém poderia ir para o céu. Era preciso que o ser mortal ficasse apenas com a sua condição imortai, como espírito, livre da carne, em um corpo permanente. Quanto aos mortos, não havia o menor problema: ao soar da trombeta, bastava levantarem-se novamente (ressuscitarem) com os seus corpos espirituais, pois os corpos materiais já estariam desintegrados.

Só então estaria tudo cumprido, segundo profecias de Isaías, de Oséas e do Apocalipse de João, ou seja, "A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?"

Acabou-se, pois, para sempre, o medo de morrer. O que morre é apenas o corpo corruptível, não o corpo espiritual, que, vitalizado pelo sopro divino, para Deus retorna, enquanto o de carne, feito de barro, para a lama volta.

A última frase doutrinária, antes da saudação final, é de uma beleza e profundidade

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transcendentais:- 0 aguilhão da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei.Enquanto insistirmos no pecado, enquanto não nos libertarmos

dele pela purificação total, somente alcançada nos mais avançados estágios do processo evolutivo, estaremos sujeitos ao seu aguilhão, subordinados aos seus caprichos, presos aos ciclos terrenos de vida e morte. Do corpo físico, bem entendido, pois, como já vimos, o corpo espiritual está a salvo dessa contingência, não depende da matéria, pode viver sem ela. Enquanto houver pecado em nós, ou seja, inferioridades e imperfeições a eliminar, a morte estará à nossa ilharga, com o seu aguilhão a espicaçar-nos.

A dicotomia lei/pecado é uma das prediletas de Paulo. Saído das hostes farisaicas, com formação rabínica esmerada, obtida "aos pés de Gamaliel", Paulo conhece a lei antiga como poucos. Convertido à doutrina de Jesus, conserva certos conceitos tradicionais, ainda que modificados, como o da cólera divina, a ideia messiânica, o do sacrifício expiatório, o da personificação do espírito do mal no demônio, sobre o qual, aliás, não fala muito. Quanto a outros, contudo, não somente os questiona ou critica, como rejeita-os e procura demonstrar que estão totalmente errados, ou, no mínimo, necessitados de profundas reformulações. A lei antiga precisa ser considerada, segundo Paulo, sob nova luz. Admite que ela tenha servido às suas finalidades, numa fase primitiva, em que nada se sabia da mensagem que Jesus traria, mas era necessário considerar, agora, que a lei por si só não redime e não salva a ninguém ela apenas indica o que considera errado ou pecaminoso. Evitar a prática do mal nunca foi o mesmo que praticar o bem. O indivíduo pode ser corretíssimo perante os dispositivos da lei civil ou religiosa e ser frio, indiferente, egoísta, vaidoso, fanático, miserável e, portanto, mau.

Por tudo isso, a lei se afigura a Paulo como simples catálogo de crimes, que muitos consultavam, não para deixar de cometê-los mas precisamente para aprender práticas ainda desconhecidas. "Da lei só vem o conhecimento do pecado" escreve aos Romanos: "A lei, então é pecado?" pergunta, ainda em Romanos. Não é bem assim, mas,

- ...eu não conheci o pecado senão através da lei, pois eu não teria conhecido a concupiscência se a lei não tivesse dito: Não cobiçarás. Mas o pecado, aproveitando a situação, através do preceito engendrou em mim toda a espécie de concupiscência, pois sem a lei o pecado está morto.

Daí porque achava ele que a força do pecado estava na lei. Se enquanto pecarmos estaremos sujeitos ao aguilhão da morte, só há uma condição para fugir à dor do aguilhão: abandonar o pecado para sempre. A ressurreição, contudo, ou seja, a sobrevivência é o mecanismo de que se vale a Providência Divina para renovar as nossas oportunidades de aperfeiçoamento.

Vejam agora como são as coisas e como é difícil interpretar corretamente o pensamento alheio. Acha Maurice Goguel (19) exatamente o contrário do que acabamos de expor, ao observar que “Paulo permaneceu incapaz de conceber a existência do espírito sem corpo, como demonstrou pelo argumento contido no capítulo XV da 1Epístola aos Coríntios".

Meu Deus! O argumento de Paulo consiste precisamente em convencer aos seus companheiros de Corinto de que o espírito precisa desembaraçar-se do corpo físico e conservar apenas o espiritual, a fim de "herdar o Reino dos Céus", ao qual não se poderá ir com o primeiro!

Ao que parece, Goguel não entendeu a distinção. E certo que Paulo ensinou que o espírito precisa de um corpo para manifestar-se após a morte. De outra maneira, como seria identificado ou reconhecido? E mais importante: como iria sobreviver? Mas esse não é, definitivamente, o corpo físico.

Isto me lembra o Dr. J. B. Rhine, ao qual eu havia escrito, para saber da sua posição, àquela altura (aí pela década de 60), em face do problema da sobrevivência. Muito gentil, ele me fez uma cartinha amável, junto à qual me enviava a separata de recente artigo seu sobre o

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assunto. Em suma, sua posição era a de que prevalecia a sua formação de biólogo, ou seja, a sobrevivência era inaceitável, cientificamente, porque a vida pressupõe pensamento, consciência, vontade, etc, e nada disso é possível sem cérebro, sem nervos, músculos e toda a instrumentação à nossa disposição no corpo físico. Certamente não admitia o Dr. Rhine a realidade de um corpo espiritual, energético ou bioplasmático, como pretendem hoje os cientistas soviéticos especializados no assunto.

Mas voltemos a Paulo, que ainda temos algo a dizer sobre as suas ideias neste contexto.Na 1 Epístola aos Tessalonicenses considerada a primeira carta que ele escreveu, ou, pelo

menos, a mais antiga conhecida declara em breve período a sua concepção do ser humano, que, segundo ele, apresenta-se sob três aspectos distintos e integrados: espírito, alma e corpo pneuma, psyche e soma. São várias e divergentes as conclusões interpretativas desta importante passagem, mas, em verdade, não há necessidade de complicar coisas simples. Ele está falando, na seguinte ordem, pois tudo ele procura colocar na hierarquia certa: do espirito, propriamente dito, concepção extradimensional, imortal, ser inteligente, dotado de razão e consciência; do corpo espiritual ou psíquico duplo etérico, corpo bioplasmático, ou o que se queira que, como vimos, é o corpo da ressurreição e, finalmente, do corpo físico, material ou animal.

0 problema mais sério para o ilustre Prof. Goguel é o do corpo espiritual.Os gregos escreve ele concebiam o corpo como algo espiritual. Paulo entendia ser ele a

forma de expressão da personalidade. Como poderia Paulo, de outra maneira, falar de um corpo espiritual? Esta é uma concepção impossível também para nós, cujas mentes foram formadas no âmbito de linhas platônicas e cartesianas (Grifei).

Logo Platão? Pois não é o FEDOIM autêntico tratado da imortalidade do espírito e da palingenesia, ou seja, da transmigração das almas em uma série de corpos e, portanto, de vidas? E logo Descartes, o pensador por excelência do raciocínio claro e lógico, que examinava as coisas e fenômenos com severidade precisamente para não tomar o falso pelo genuíno, a ficção pela realidade, a mentira pela verdade? Os que buscam a cobertura do procedimento cartesiano para justificar conclusões que não levaram em couta todos os dados do problema não fazem justiça ao eminente gênio francês.

O conceito de corpo espiritual não é objeto de crença ou de fé e sim de credibilidade das pessoas que deram dele o seu testemunho no passado e continuam a fazê-lo no presente e continuarão a dá-lo no futuro. Ainda que se ponha em dúvida o testemunho de Madalena, ou dos Apóstolos e de tantos outros, inclusive Paulo, de que viram e falaram com Jesus depois de oficialmente morto, não é Jesus o primeiro, e está longe de ser o último, que se manifestou concretamente, ou seja, objetivamente e até materializado a homens, mulheres e crianças, depois de "morto", em seu corpo espiritual. Ali estava ele vivo, consciente, demonstrando a realidade insofismável de tudo quanto ensinou "em vida". Como em vida continuava e continua até hoje, não em um pesado e perecível corpo de carne, sentado à direita de Deus, num trono de ouro, alhures no espaço, inatingível, divinizado, mas vivo, sim, tanto quanto estamos nós.

Aquele que morreu não deixou de ser gente, pessoa humana, com todos os seus atributos, menos o corpo físico. Tais aparições têm sido um dos fenômenos mais bem documentados nos anais da ciência psíquica. Não pelo testemunho de alucinados, de débeis mentais ou esquizofrênicos, mas de gente lúcida, saudável, normal, em plena vigília.

Só imagino como Ernest Renan deve ter-se sentido após a sua morte, â vista das suas enfáticas observações de autor "vivo". Estas, por exemplo:

A vida de Jesus para o historiador, acaba com o seu último suspiro. Mas tais eram os traços que deixara no coração dos seus discípulos e de algumas mulheres dedicadas que, por espaço de semanas, ainda foi para eles vivo e consolador. O seu corpo teria sido roubado, ou o entusiasmo, sempre crédulo, fez apresentar-se a desoras o todo de narrações pelas quais se

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quis estabelecer a fé na ressurreição? E o que, por falta de documentos contraditórios, havemos de ignorar sempre. Digamos, contudo, que a imaginação forte de Maria de Magdala desempenhou, nesta circunstância, um papel de primeira ordem. Divino poder do amor, momentos sagrados em que a paixão de uma alucinada dá ao mundo um Deus ressuscitado!

O texto pode até estar bem escrito e dramático, pelo menos no original, mas a tradução não é do meu gosto, tanto quanto não concordo com as posturas do Sr. Renan.

O que o autor deseja dizer, em outras palavras, é o seguinte:1) Não há possibilidade de apurar-se a historicidade das manifestações póstumas de

Jesus, coisa que "havemos de ignorar para sempre". Eu poria haveremos de ignorar para reproduzir com fidelidade o que quer dizer o autor, mas ao mesmo tempo, o contesto, pois aí está mais um dogma cultural, um preconceito, uma decisão apriorística. Como pode o sr. Renan saber que nunca será descoberto um processo confiável de reconstituir-se o passado?

Gostaria de discorrer um pouco sobre a metodologia da regressão de memória, mas iríamos alongar demais este livro, o que estamos tentando evitar, mesmo porque o assunto foi tratado demoradamente em outra obra minha, intitulada A MEMÓRIA E O TEMPO (25), à qual remeto o leitor interessado. Ainda assim, não diria que o processo da exploração dos arquivos da memória tem de ser o único possível. Não posso prever até onde irão as possibilidades e alternativas da ciência. Já há tempos trabalha-se, na União Soviética, na criação de instrumentos eletrônicos capazes de, literalmente, captar imagens do passado. O leitor voltado para esses e outros fascinantes aspectos da pesquisa deve recorrer ao livro de Gris e Dick (26).

2) Imperturbável na utilização de seus preconceitos, por meio dos quais tudo decide e julga, acha o Sr. Renan que os testemunhos do fenômeno que, evidentemente, ele considera impossível, provêm de gente simples e amorosa, além de crédula e entusiasta e, portanto, de escassa confiabilidade.

3) A finalidade dos relatos foi apenas a de estabelecer "a fé na ressurreição".4) Tudo isso teria começado com uma alienada mental, da qual sete "demônios"

haviam sido expulsos, tomada por um momento sagrado de paixão pelo Cristo.5) E, finalmente, que daí é que germinara a crença na divindade de Jesus. Uma vez demonstrada, porém, a realidade do corpo espiritual, de que nos falou Paulo, o

Sr. Renan fica falando sozinho e dizendo tolices, ainda por cima.Dizíamos que o problema da fé não se coloca neste ponto, no máximo o da credibilidade

das testemunhas. Se o fenômeno é possível, como tem sido exaustivamente observado, com inúmeras pessoas, é possível com Jesus. E sendo possível, ou seja, sendo fenômeno objetivo, observável, repetível, então deixa de ser questão de fé. O fato independe da fé. Tolice minha dizer, por exemplo, que tenho fé numa lei da Física ou no mecanismo de uma equação de segundo grau, ou, ainda, numa reação química.

Quanto a Madalena, que sabe dela o Sr. Renan para botá-la sumariamente no hospício? O fato de ter sido ela assediada por sete "demônios", ou seja, por espíritos perturbados e perturbadores não torna necessariamente suspeito o seu depoimento, aliás confirmado por outros, antes o explica. Obviamente dispunha ela de faculdades próprias para o trato com seres 'mortos', ou melhor, desprovidos de seus corpos físicos. Uma sensibilidade especial aguçada, mas não rara e que de muitas maneiras se manifesta em inúmeras pessoas. Esse, aliás, é o objeto dos capítulos 12,13 e 14 da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, que cuida precisamente dos "dons do espírito" ou carismas, isto é, das diversas manifestações da sensibilidade, hoje mais conhecidas sob o título genérico de mediunidade, de vez que o sensitivo serve de intermediário entre "vivos" e "mortos". Para que complicar coisa tão simples, ignorá-la ou negá-la por que nossos preconceitos não o admitem?

Se a manifestação póstuma de Jesus pode ou não ser comprovada historicamente é problema para historiadores resolverem. A evidência oferecida nos documentos existentes é

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aceitável e conclusiva para os que estão familiarizados com esse tipo de fenomenologia. Os testemunhos possuem o tom da honestidade, da sinceridade, e exibem as marcas do impacto emocional que constitui importante fator de autenticação em tais episódios. Pode-se até conceder que tenha havido algum enfeite ou exagero, mas é difícil descartar-se de um episódio que, obviamente, contém um núcleo de verdade, mesmo porque o fenômeno narrado não é impossível, segundo o testemunho frio, cumulativo e racional da pesquisa moderna, ainda que recusemos todos os inúmeros depoimentos documentais de antanho.

Isso quanto à historicidade, cujo problema continua em mãos dos historiadores que desejarem prosseguir especulando sobre ele. Para os que estão convictos da possibilidade ou viabilidade do fenômeno, há muito deixou ele de ser uma questão de fé. Não nos esqueçamos, contudo, de que continua sendo uma tolice inominável insistir na ideia de que ressuscitar é devolver a vida a um cadáver, ou seja, a um corpo físico morto, no qual todas as funções vitais cessaram e já entrou em decomposição ou está totalmente desintegrado.

O cadáver de Tereza de Ávila, por exemplo, ou melhor, o que de seu corpo físico resta, encontra-se partilhado: a mão num lugar, o coração em outro e assim por diante. Mas o espírito de Tereza, com seu corpo espiritual, continua a viver, pensar, agir e até mesmo a manifestar-se, como tem feito e continuará a fazê-lo. Certamente ela não está em nada preocupada com a ressurreição dos mortos no propalado dia do Juízo Final. Segundo crenças e dogmas, hoje insustentáveis e sempre irracionais, ela teria de levantar de novo (ressuscitar) aquele corpo ressequido e partilhado, após milénios de imobilidade e degradação material. Pela estrita letra das fantasias escatológicas, ela teria de ficar com um corpo mutilado ou sair á cata dos membros e órgãos que lhe faltam. Bem sei que os teólogos resolvem isso, dizendo que o corpo será totalmente renovado, por processos um tanto mágicos, creio eu. Mas se é isso, para que disparar esse mecanismo renovador a partir de um corpo que já virou pó? Precisaria Deus de matéria bruta para conceder-nos a continuidade da vida? O ser humano não é espírito, à imagem e semelhança de Deus? Não diz Paulo que "a carne e o sangue" não herdarão o Reino de Deus? Para que corpo físico lá?

Assim sendo, no problema da ressurreição do Cristo há duas categorias distintas de fé uma positiva e outra negativa. A primeira constroi assim o seu postulado: "Creio (ou seja, tenho fé) em que Jesus ressuscitou realmente em seu corpo material e com ele subiu aos céus, onde está à direita de Deus".

E o que diz o Credo e se a pessoa deseja ser cristã precisa aceitar esse postulado, tal como está, sem retoques, sem discussões, nem ressalvas. E um puro ato de fé "quia absurdum".

A segunda categoria é a dos que rejeitam a autenticidade do evento. Com este raciocínio: "Não creio (isto é, não tenho fé) nessa ideia de que Jesus haja ressuscitado com seu corpo material e que tenha subido aos céus, onde estaria à direita de Deus".

Em ambos, portanto, o problema se reduz a uma questão de fé, ou crença um crê, outro não, um tem fé, outro não. Um não deseja, sequer, examinar os testemunhos documentais, por julgar tal medida desnecessária, uma vez que a fé já lhe resolveu a questão. O outro, depois de examinar os documentos, julga-os insuficientes para produzirem uma convicção.

Má, contudo, um terceiro grupo que se comporta racionalmente e não fica na dependência da fé para aceitar ou rejeitar o evento. Estes examinaram os antigos documentos, mas consultaram também fontes e testemunhos de experiências semelhantes em tempos mais recentes, feitas por pessoas às quais devemos, no mínimo, a predisposição para admitir como verdadeiro aquilo que dizem e que pesquisaram para nós com os recursos de competência e metodologia que nos faltam. Nunca fiz pessoalmente nenhuma experiência de laboratório para certificar-me de que mergulhando uma esponja de platina numa mistura de oxigênio e hidrogênio produz-se água, por catálise. Seria de um ridículo comovente se me obstinasse a negar a possibilidade da reação simplesmente porque não tenho o meu testemunho ocular, pessoal, fatual. Não disponho de nenhuma razão aceitável, inteligente, honesta, para dizer que

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rejeito a realidade do fenômeno porque desconfio dos cientistas que realizaram a experimentação por mim, o que seria uma obstinação burra.

A terceira categoria de observadores, portanto, poderá estar razoavelmente convicta de que o fenômeno da "ressurreição", nas condições em que a ciência verificou ser viável, pode perfeitamente ter ocorrido com Jesus, uma vez que tem ocorrido com inúmeras pessoas "mortas", segundo testemunho confiável de pesquisadores cuja honestidade não temos como questionar.

O cientista russo Alexander Aksakof que, aliás, escreveu um livro vigoroso para contestar o mesmo von Hartman sobre o qual falamos alhures, neste estudo, participou ativamente das experiências paranormais relatadas pela sensitiva Elisabeth d'Esperance, em seu livro (44). Produziram-se com ela inúmeros fenômenos de "ressurreição", ou melhor, manifestações de pessoas fisicamente mortas, sepultadas, decompostas, que foram vistas e até fotografadas, como já vimos aqui mesmo neste livro.

Quem teria sido esse Aksakof? Algum débil mental, alucinado, ingênuo, ignorante, crédulo? Acho que não. Pelo menos não consta que o Czar russo conservasse junto de si algum ministro com um "curriculum" desses... Aliás, já seria mais que tempo de acabar com o lamentável costume de exigir-se credenciais e atestados de sanidade mental da pessoa que se declara convicta da autenticidade de tais fenômenos. Quem duvidar que os estude, examine e conclua, certo de que os que admitem a realidade do fenômeno não irão exigir certidão de sanidade àqueles que não o aceitam. Os teólogos acham que Jesus subiu ao céu em corpo material e lá está sentado num trono junto de Deus e nem por isso irá alguém dizer-lhes que são doidos ou irresponsáveis. O máximo que se poderia alegar é que estão mal informados ou que são ingênuos, mas não desonestos ou faltos de inteligência, mesmo porque a inteligência produz aquilo que é solicitada a produzir. Se a pessoa a empenha em descobrir argumentos para demonstrar que Jesus ressuscitou em corpo material, ela se põe a alinhar docilmente os argumentos desejados. Pois se já lhe entregaram uma programação pronta e acabada! Só lhe resta cumprila. Numa situação dessas, contudo, ela deveria ser programada da seguinte maneira: "Vamos estudar tal fenômeno sem ideias preconcebidas e concluir com os fatos e não com meras suposições arrancadas à força. O que for, será".

A Sra. d'Esperance, há pouco citada, conheceu, na sua longa experimentação com a fenomenologia inabitual, muitos tipos de investigadores, todos honestamente convictos de estarem no encalço da verdade, qualquer que fosse ela. O mais comum, porém, é aquele que trabalha "com o fim de estabelecer alguma teoria favorita, ou de sua própria lavra", como diz ela. Tais cavalheiros "apoderavam-se com ardor dos fenômenos que justificavam suas ideias preconcebidas, desprezando todos aqueles que não tinham o alcance necessário ou as contradiziam. Contentando-se geralmente com as teorias, a sua imaginação fornecia o resto".

Alguns dizem até que, à exclusão de si mesmos, todos os outros investigadores são desonestos, ou incompetentes, observadores desatentos ou vítimas de fraudes grosseiras ou mais sutis. Se, na observação de algum fenômeno em particular, descobrem a fraude, concluem logo, irrecorrivelmente, que todos os fenômenos daquela categoria são também fraudulentos. O que equivale dizer perante uma moeda falsa, que todo o dinheiro em circulação é igualmente falso.

Restaria, contudo, um aspecto a examinar no âmbito do problema da ressurreição de Jesus, ou seja, o desaparecimento do corpo depositado no túmulo.

Aqui também creio que todas as hipóteses pensáveis foram já consideradas e apresentadas por inúmeros escritores. Já se falou praticamente de tudo sobre o corpo de Jesus. Que teria sido um corpo aparente, não físico, ou seja, imaterial e, por isso, simplesmente evolou-se. (Opinião da seita que levou o nome de Docetismo, ressurgida, aliás, entre os Cátaros, na Idade Média). Que o corpo teria sido furtado, segundo uns, pelos próprios apóstolos; segundo outros, pelos romanos, ou, ainda, pelos judeus. (Cada uma das opções tem suas justificativas

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próprias e suas motivações). Que Jesus teria sido recolhido, ainda com vida, e, posteriormente reanimado, fora viver alhures, na India, por exemplo, segundo uma das teorias. Que em vez de ter sido sepultado por Arimateia, conforme a tradição, tenha sido atirado ao poço destinado aos que eram executados. (É o que, sem muita convicção, aliás, supõe Guignebert). Ou que tenha ressuscitado com o corpo material, restituindo-lhe a vida, segundo deliberou a teologia, que marcou o que seria uma simples hipótese — hoje totalmente demolida — com o signo da fé dogmática, como versão oficial indiscutível, inquestionável, irretocável.

Ainda que algumas dessas hipóteses sejam até admissíveis, em princípio, porque possíveis, e não sei se me lembrei de todas a oficial, isto é, a que nos propõe a reanimação do corpo físico, é, nitidamente, a que menos atrativos oferece à mente racional, estando já condenada há muito tempo pelo bom senso e pelos desenvolvimentos posteriores da pesquisa científica.

Recentemente, contudo, tomou vulto e adquiriu expressão a hipótese de que teria ocorrido com o corpo sepultado de Jesus um fenômeno físico realmente inabitual, mas não impossível e muito menos milagroso o da desintegração súbita de seus componentes. É o que deixam entender os resultados das longas e sérias pesquisas feitas em torno do Sudário de Turim, que a tradição proclama como sendo o tecido que envolveu o corpo de Jesus ao ser retirado da cruz, o que a ciência moderna parece corroborar.

O leitor poderá recorrer ao sóbrio e bem pesquisado material que lan Wilson apresenta em seu livro (27), a fim de confrontar as várias especulações desenvolvidas sobre o sudário. Aparece no tecido, com relativa nitidez, e em negativo, a imagem de um homem despido, cujas características correspondem com impressionante justeza às que tradicionalmente são atribuídas a Jesus nos textos evangélicos que narram o seu martírio.

Pensaram alguns que a imagem havia sido gravada no tecido pelo sangue e pelos componentes químico-orgânicos que ainda fluíam do seu corpo, quando foi ali depositado. Também foi considerada a hipótese de ter sido pintada por algum artista plástico desconhecido. Com o tempo e estudos mais acurados, verificou-se a impraticabilidade de ambas. Os sinais que gravaram a imagem no tecido não apresentam as características conhecidas do sangue ou dos aloés contidos no suor e nos pigmentos coloridos de tinta. Além do mais, seria pouco provável que algum remoto artista tivesse conhecimento e técnica suficientes para pintar imagem tão perfeita, do ponto de vista anatômico, médico e artístico, respeitados, ainda, certos aspectos nem sequer mencionados nas narrativas evangélicas. E mais: tudo isso considerado, restaria explicar como teria sido concebida e executada uma reprodução do corpo humano em reverso, ou seja, em negativo, noção que somente surgiria no século XIX com o advento da fotografia. Acresce que a tonalidade que produz o desenho, além de não conter pigmentos nem vestígio de componente algum do sangue ou do suor, também não atravessa o tecido de um lado para outro. Os relatórios científicos mencionam, por analogia, o efeito produzido pelo chamuscamento, isto é, impacto rápido de calor, suficiente para marcar um lado do tecido, mas não para atravessá-lo e, muito menos, destruí-lo. Trata-se, sem dúvida, de um pano confeccionado com fibras de linho fiadas e tecidas artesanalmente, como se fazia na época do Cristo. Estão aderidos ao pano diminutos esporos de fungos, que o Dr. Frei, um especialista suíço, atestou terem provindo de plantas conhecidas nas regiões que a tradição indica como sendo as de sua origem e aquelas em que o sudário esteve guardado posteriormente.

Que se depreende, portanto? Que um corpo humano recém sacrificado pela crucificação ali esteve depositado por algum tempo. (Detalhe: os cravos que prenderam os braços não penetram a palma das mãos, como os figuram quase todos os artistas que pintaram ou esculpiram a imagem de Jesus, mas os pulsos, no chamado "espaço de Destot", por onde podem penetrar sem danificar osso algum).

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O corpo foi coroado com uma espécie de chapéu de espinhos, tem o sinal de uma lançada no tórax, os joelhos e os ombros muito feridos. O corpo, todo flagelado, especialmente nas costas, que mostram marcas inequívocas de chicotadas, não tem indícios de fraturamento de ossos. Dificilmente poderá ser recusada a hipótese de que se trata do corpo de Jesus ou, pelo menos, de alguém que, segundo os relatos evangélicos, tenha sido crucificado exatamente como ele o foi, chegando ao detalhe da coroa de espinhos.

Finalmente, a impressionante expressão do rosto que, inexplicavelmente, não aparece deformado ou irreconhecível, como a reprodução que se obteria se nele aplicássemos um pano que o envolvesse. Ao contrário, a imagem que ali aparece apresenta o aspecto natural e normal de uma autêntica "fotografia" moderna, de frente e em negativo.

Temos, portanto, rigorosamente investigada e conclusivamente apresentada, uma hipótese aceitável de que o corpo ali reproduzido teria sido mesmo o de Jesus. A ser tudo isso verdadeiro, a imagem foi impressa consciente e deliberadamente, visando a um efeito que normalmente não teria produzido o simples envolvimento do corpo com o tecido. Disto resultaria mero borrão disforme, e não a reprodução minuciosa da anatomia, o que tem deixado perplexos os médicos que a estudam, como o Dr. Barbet (28).

Desta vez, contudo, os teólogos parecem mais cautelosos e discretos. Em outros tempos, teriam logo bradado que ocorrera mais um milagre, mais um fenômeno sobrenatural, o que seria começar tudo de novo, com apoio no maravilhoso. Mais tarde, se ou quando a ciência explicasse de que maneira a imagem fora reproduzida, estaria demolido mais um milagre e novamente em ruínas o dogma correspondente.

Ao que tudo indica, portanto, a imagem teria resultado da ação, sobre o tecido, da energia liberada pela desintegração do corpo. Daí a aparência de chamuscamento (o termo de Wilson é scorching E nesse caso, nem o corpo ficou na sepultura e ali se decompôs, nem foi furtado, nem recuperado com vida, ou atirado a um poço e nem foi reanimado para manifestar-se aos apóstolos e depois subir ao céu ele foi desmaterializado. Seus componentes físicos foram reconvertidos em energia, liberados os seus átomos, desfeita a forma corporal física, que para nada mais servia senão para suscitar, como o fez, milenares controvérsias. Houve, por causa disso, até derramamento de sangue, pois morreu muita gente massacrada ou queimada, como os cátaros, porque não podia aceitar o dogma de que o Cristo subira para os céus num corpo de carne, ossos e sangue. Aliás, os cátaros estavam convencidos de que Jesus não o tivera, nem mesmo em vida, pois, segundo sua doutrina, o corpo de Jesus era imaterial, como que fluídico ou energético.

Temos ainda um aspecto a considerar antes de dar o assunto por encerrado.Mesmo admitida a hipótese de que o Sudário de Turim constitua testemunho aceitável e

idôneo de que o corpo de Jesus ali esteve e foi deliberadamente desmaterializado por ele próprio, e mais, a teoria de que tal desmaterialização se deu por um mecanismo que a ciência consegue explicar ou entender, mas ainda não reproduzir como informa Wilson remanesce o caráter singularmente excepcional do evento. Ou seja, somente Jesus, como Deus, teria condições de desmaterializar um corpo sólido, humano ou não. E de volta estaríamos ao conceito do sobrenatural. E novamente equivocados...

E certo que a desmaterialização de um objeto, de um corpo físico não é fenômeno habitual, corriqueiro, mas também não é impossível e nem sobrenatural. A literatura especializada contém relatos suficientes de pesquisas confiáveis e conclusivas que demonstram a viabilidade do fenômeno. Para não ficar ampliando demais a bibliografia de apoio, podemos recorrer, mais uma vez, às experiências da Sra. d'Esperance.

Em uma delas, por três vezes desapareceu de cima da mesa, à vista de todos, um par de abotoaduras que foi, da primeira vez, encontrado em outro cômodo (a porta de comunicação permanecera fechada), num vaso de plantas.

A terra não mostrava indício algum de ter sido mexida escreve a autora conservando-se

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dura e compacta; mas, removendo-a com dificuldade, vimos brilhar entre as raízes da planta as abotoaduras desaparecidas.

Da segunda vez, foram encontradas dentro de um bule de prata que, por sua vez, estava dentro de uma caixa fechada a chave que foi necessário apanhar em outro compartimento da casa. Da terceira vez, as buscas no encalço das abotoaduras fugitivas foram abandonadas como infrutíferas. Encerrou-se a reunião e os seus componentes foram tomar um café antes de partirem. Quando uma das pessoas levava a xícara aos lábios, o líquido espirrou e salpicou em seu rosto. Eram as abotoaduras, que alguma força inteligente e invisível fizera cair do alto, dentro da xícara, de onde foram pescadas com uma colherinha.

As abotoaduras foram, por conseguinte, desmaterializadas à vista de todos e rematerializadas imediatamente ou pouco depois, em locais diversos, atravessando portas ou paredes, bem como a estrutura da caixa fechada a chave ou a terra compacta do vaso plantado.

Mas não foi somente a Sra. d'Esperance que realizou ou viu realizar tais proezas. O astrônomo alemão Freidrich Zöllner, levou a bom termo experiências conclusivas, inquestionáveis, como as de interpenetração da matéria densa, negada por um dos sólidos princípios da Física de seu tempo. Com a Física Quântica de hoje, os físicos já não se sentem tão seguros de tais dogmas científicos... Aneis de madeira que ele mandou confeccionar especialmente para isso eram colocados em torno do pé de mesas sem levantá-las, naturalmente. Dois desses aneis, de madeiras diferentes, foram entrelaçados um no outro, de modo inexplicável. De tais experiências nasceu a expressão (e o livro de Zöllner) Física Transcendental.

Bem, dirá o leitor, mas não estamos falando de abotoaduras, nem de aneis de madeira removidos para a invisibilidade e restituídos e nossa dimensão, estamos falando de possível desmaterialização do corpo de Jesus, no túmulo. Não é bem isso: cuidamos da desmaterialização de corpos sólidos, vivos ou inanimados.

Em 1893, em Helsingfors, na Finlândia, em experiência realizada com a presença de testemunhas idôneas, a Sra. d'Esperance teve quase metade de seu próprio corpo, da cintura para baixo, completamente desmaterializada, ficando suas roupas dobradas sobre a cadeira em que estava sentada. O fenômeno está narrado por Alexander Aksakof, em UM CASO DE DESMATERIALIZAÇÃO (45).

O sensitivo brasileiro Carlos Mirabelli, segundo relato publicado em ZEITUNG FUR PARAPSYCHOLOGIE (agosto/1929), e verbete de responsabilidade do Dr. Nandor Fodor (29), produziu inúmeros fenômenos de materialização e desmaterialização em plena luz e à vista de testemunhas idôneas. Ele próprio teria sido "transportado" (desmaterialização e rematerialização), em dois minutos, da Estação da Luz, em São Paulo, à cidade de São Vicente, a 90 quilômetros de distância. Foi visto levitar em plena rua, a dois metros do solo, durante três minutos. Certa vez, amarrado e lacrado num cômodo, desapareceu e foi encontrado em outro, ainda em transe.

Depois de examinar atenciosamente a documentação sobre Mirabelli, o Prof. Dingwall confessou sua perplexidade e concluiu:

Seria fácil condenar o homem como uma fraude monstruosa e as testemunhas como tolos igualmente monstruosos. Não acho, porém, que tal suposição pudesse ser de alguma utilidade, mesmo àquele que a formulasse.

Como sempre ocorre em tais situações, outros investigadores contestaram os fenômenos porque não os testemunharam pessoalmente ou porque acharam que não foram cientificamente observados e estudados.

Em experiências realizadas sob a supervisão do Coronel Olcott, a sensitiva Elizabeth Compton, uma lavadeira americana, mãe de nove filhos, desmaterializou-se juntamente com todos os fios e a cera que o Coronel havia usado para amarrá-la à cadeira. Ela foi encontrada,

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após a experiência, perfeitamente amarrada e lacrada, em total catalepsia, sem pulso e sem respiração. Levou 18 minutos para começar a reanimar o corpo.

Não resta dúvida de que são casos um tanto raros esses, em virtude de condições especiais que exige a produção do fenômeno, mas nem por isso impossíveis. Se houvesse apenas um relato desses já seria suficiente para afirmar-se que o fenômeno é viável. São mais frequentes tais experimentos com pequenos animais e plantas vivas. A Sra. d'Esperance apresenta, no seu livro, fotos para documentar algumas destas experiências, numa das quais, no dia 28 de junho de 1890, foi trazido para dentro da casa, portas e janelas fechadas, naturalmente, um vaso com um belo pé de lírio dourado, medindo dois metros e 27 centímetros de altura, com folhas e flores, inteiramente vivo e sadio. Ali permaneceu por uma semana, durante a qual foram tomadas seis fotografias. Em seguida, desmaterializou-se e desapareceu tão misteriosamente como tinha vindo.

Conclusões:1. A ressurreição não constitui problema de fé ou crença e sim de credibilidade de

suas testemunhas.2. Não há dúvida de que ocorreu com Jesus, não, porém, como ficou dogmatizado o

evento, pela restituição da vida ao seu cadáver.3. Ao que tudo indica, o corpo de Jesus teria sido desmaterializado por um processo

que a ciência compreende e admite, mas não tem ainda condições de reproduzir.4. O ser humano apresenta-se "em vida" sob aspecto tríplice espírito (pneuma),

corpo espiritual (psyche) e corpo físico (soma), dispondo, por conseguinte, de dois corpos idênticos na forma, mas diferentes na substância. Um desintegra-se com a morte, o outro não.

5. A ressurreição, na sua conceituação revista, como acima, resume-se em dramático testemunho da sobrevivência do espírito, conceito que ela não apenas pressupõe, mas exige. Este último, por sua vez, e logicamente, pressupõe o da existência de um princípio espiritual extrafísico no ser humano.

Que impactos e consequências tem isto sobre a personalidade e os ensinamentos de Jesus? Podemos responder a isto em breves palavras. Nenhum impacto negativo. A personalidade de Jesus sai inteira, revigorada, humanizada, compreensível, lógica, racional. Seus ensinamentos, consistentemente de caráter ético, saem ratificados, demonstrados, testemunhados, consolidados.

Sem ressurreição (leia-se sobrevivência) não há cristianismo.

III. SOBREVIVÊNCIAMorte, onde está a tua vitória?Morte, onde está o teu aguilhão?(I Cor. 15:55)

A importante consequência filosófica da ressurreição não é a de que ela caracteriza e comprova ou corrobora a divindade de Jesus. Não é por ser Deus que ele venceu a morte e sim porque é um ser imortal, como todos os humanos. Ainda que não estivéssemos convencidos da imortalidade pessoal como atributo de todos, a ressurreição atesta, no mínimo, o princípio da sobrevivência do ser à morte corporal. Jesus ressurreto é um ser vivo, consciente, lúcido, identificável, reconhecido por aqueles que, em vida, o conheceram pessoalmente e com ele estiveram. O corpo, as feições, e, a crer-se na fidelidade das narrativas, até as marcas 'físicas' do suplício são a reprodução perfeita do que ele fora antes da morte. Além do mais, ele fala de coisas que fazem sentido com o que disse anteriormente, coerentes com o que de seu pensamento conhecem os amigos que o acompanharam durante a sua pregação.

É de admitir-se que sejam esses diálogos e ditos os que mais tenham sofrido com as enxertias destinadas, não mais a narrar pura e simplesmente o episódio, mas a convencer o

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leitor de uma doutrina. A ressurreição nos coloca perante um fato que os teóricos das segunda e terceira gerações desejaram converter numa questão de fé.

Não foi uma decisão feliz e bem inspirada. A fé é conceito subjetivo, ao passo que o fato é dado concreto, objetivo. Uma vez estabelecida a autenticidade, a crença nele ou descrença sobre ele é reação secundária que não lhe afeta a realidade. Tanto faz acreditarmos ou não no curso do sol, ele continuará o seu roteiro até que forças cósmicas poderosas interfiram para alterá-lo. A ressurreição de Jesus, tal como acabou cristalizada sob forma de dogma de fé, tornou-se inaceitável ao pensamento moderno enriquecido por um acervo de conhecimentos inexistentes ao tempo em que foram dela extraídas as formulações teológicas. Criou-se uma situação artificial que, ao impacto da lógica informada pela ciência, desarticulou-se, ficou insustentável. Duas opções apenas restaram aos formuladores de dogmas e àqueles que, por dever de ofício, estão incumbidos de defendê-los ou justificá-los com a finalidade de preserválos: 1) admitir, honestamente, que, na sua expressão formal, o dogma está destruído, ou 2) sustentá-lo artificialmente como artigo de fé, insuscetível de discussão e rejeição.

Tais opções se reduzem, para muitos, em última análise, num confronto entre razão e fé. Há que considerar, contudo, que também esse confronto é artificial, pois não existe a menor contradição entre uma e outra. Para aquilo que podemos, lógica e racionalmente, aceitar não precisamos recorrer à fé. Precisamos da fé para aceitação do que não podemos compreender ou racionalizar, o que não é o mesmo que dizer: para aceitar o absurdo, o irracional.

O muito caluniado Voltaire, verdadeiro demônio ímpio, herético, ateu e demolidor para tantos que nem sequer o leram, faz esta lúcida, inteligente e bela confissão de fé, no verbete FOI (FÉ) no DICIONÁRIO:

- Que é a fé? Está em crer no que parece evidente? Não. É evidente para mim que existe um Ser necessário, eterno, supremo, inteligente; isso não é fé, é razão. Não há em mim mérito algum em pensar que tal Ser eterno, infinito, que conheço como a própria virtude e a bondade, deseje que eu seja bom e virtuoso. A fé consiste em crer, não no que parece verdadeiro, mas no que parece falso ao nosso entendimento.

Não vejo como contestar o eminente enciclopedista. O pensamento de Paulo, aliás, não está muito distanciado disso; pelo contrário. A fé é um dos temas prediletos do Apóstolo, que fez dela um dos pilotis da sua doutrina, mas em nenhum lugar foi ele mais feliz no trato do tema do que na Epístola aos Hebreus, tão autêntica, a meu juízo, quanto as que escreveu aos coríntios ou aos romanos. O Capítulo 11 daquela singular Epístola é um ensaio filosófico em ritmos e imagens da mais bela poesia.

- A fé diz ele é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades invisíveis.

Segue-se um longo inventário de situações em que, pela fé, "os antigos deram o seu testemunho". Conceitos que não podiam ainda e muitos não podem até hoje ser absorvidos e entendidos com a ajuda da razão, ficaram em nós com o aval da fé, em custódia, em posse provisória até que pudéssemos entendê-los racionalmente. Exemplos: a formação dos mundos, dado que o "mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas". Sustentados pela fé é que eclodiram grandes episódios históricos na vida do povo hebreu: a oferenda de Abel, o desaparecimento de Henoc, a construção da arca de Noé, a migração de Abraão, a missão de Moisés, etc., etc.

Diz ele, até, que "algumas mulheres encontraram seus mortos pela ressurreição". Vale a pena, a propósito disto, uma digressão.

Os episódios invocados neste ponto (I Reis 17:23 e li Reis 4:36) não se referem a casos semelhantes ao de Jesus, que ressurgiu no seu segundo corpo, o espiritual. Os livros dos Reis narram duas situações em que as crianças haviam sido dadas como mortas, mas, como ocorreu ao próprio Paulo, em Atos 20, com Êutico, a alma ou espírito, com o seu respectivo corpo imaterial, ainda não se havia desligado completamente do corpo físico, sendo possível

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fazê-la retornar, restabelecendo-lhe a vida orgânica. Essa é uma ressurreição autêntica, apoiada no conteúdo semântico do termo, como retorno do Espírito ao corpo físico. No primeiro episódio (I Reis), Elias ora pelo morto, procedendo da seguinte maneira:

Estendeu-se por três vezes sobre o menino e invocou Javé: "Javé, meu Deus, eu te peço, faze voltar a ele a alma deste menino”.

O contacto físico entre o profeta e o cadáver em II Reis Eliseu procede da mesma maneira em caso semelhante destina-se a fazer uma transfusão de energia, de modo que a alma, já parcialmente desligada do corpo físico, volte a encontrar neste um mínimo de recurso energético que lhe permita reassumir o controle dele. Foi o que aconteceu em ambos os casos os corpos reviveram, literalmente por ressuscitação, ou seja, devolução da vida ao corpo físico, que se levantou e retomou suas funções normais. "As carnes do menino se aqueceram diz-se em II Reis e ele acabou espirrando (talvez respirando fosse melhor) e abriu os olhos". Aliás, Eliseu parece fazer a respiração boca-a-boca.

Não dispomos de boas razões para recusar sumariamente a autenticidade dos episódios, mesmo porque tais casos são muito mais comuns do que parecem á primeira vista. Demonstra-se isto hoje com a boa safra de livros que relatam experiências confiáveis do ponto de vista pessoal e do ponto de vista da observação médica ou uma combinação de ambos. Um deles passou por uma crise de morte clínica, retomou o corpo e, depois, como médico, relatou a experiência. (46)

Aliás, a medicina desenvolveu boas técnicas de ressurreição. Ressurreição mesmo, na realidade semântica do termo e por isso tais relatos começam a surgir com maior frequência.

Há, portanto, situações em que se dá a ressurreição, isto é, a volta da alma ou espírito para o corpo físico depois de considerada a pessoa clinicamente morta. Episódios destes não acarretam problema algum de fé; apenas o de credibilidade dos seus relatores e testemunhas. Se estamos razoavelmente convictos de que são fatos reais, que necessidade temos de fé para aceitá-los?

Da mesma forma, se nos convencermos de que existe um corpo espiritual que sobrevive à desintegração do corpo físico, o problema escapa ao domínio da fé para situar-se no terreno livre da lógica, da racionalidade, onde aceitamos ou rejeitamos as coisas pelo que elas são.

Atenção, porém: isso não quer dizer que a fé seja desnecessária ou que esteja superado o seu conceito: quer dizer, ao contrário, que a fé não exclui a razão e nem a razão destroi a fé, que esta só será legítima quando os princípios formulados por ela forem racionais. A fé no absurdo é uma incongruência, é mera fantasia, quando não alienação. Como vimos em Voltaire, nem mesmo ao considerar a existência de Deus precisamos aceitá-lo na base da fé cega, irracional, e nem sequer devemos fazê-lo, pois está implícito nas leis naturais e na ordem e disciplina do universo físico & moral que existe atrás disso tudo uma vontade criadora, consciente, inteligente, racional, acima e além de nossa capacidade de defini-la. A dificuldade está em que se torna inviável para nós, seres limitados por contingências espaciais e temporais, apreender e compreender conceitos que, por sua natureza, nos escapam com os de infinito e eternidade. Mas não apenas esses, de vez que a própria ciência os tem. Os formuladores da moderna física quântica estão confessando honestamente suas perplexidades e dificuldades perante certos enigmas e aparentes contradições de fenômenos que se passam na profunda intimidade do microcosmos subatômico.

Se, porém, a existência de um Ser Supremo, como assinala Voltaire, é, não apenas evidente, como necessária e, portanto, lógica, racional e natural, por que iria preocupar-me com os conceitos de infinito e de eternidade? Se creio nos atributos acessíveis da divindade porque os tenho por lógicos e racionais, os demais, inacessíveis ao meu entendimento, me serão aceitáveis, ainda que na base da fé pura, substância das coisas invisíveis, como diz Paulo, ou seja inapreensíveis.

É como se existisse uma fé decorrente da própria dinâmica dos fatos evidentes e racionais

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e uma fé resultante de razoável e aceitável inferência, ainda que não possa eu apoiá-la em fatos concretos, como são, na apreciação da ideia de Deus, os conceitos de infinito e eternidade. Mesmo aí, contudo, a lógica me diz que eles são necessários, pois um Deus limitado à contingência de tempo e espaço seria uma incongruência num ser que, obviamente, criou o ilimitado e o eterno, ainda que não o compreendamos, nem a esses aspectos específicos da criação.

Acho, pois, tolice inominável a tentativa de definir Deus. Um conceito definível ou que seja definido já está fora da categoria de infinito, ilimitado e eterno. Deus é, então, um ser que inferimos pela lógica e que podemos abordar apenas pelas consequências do que ele realizar através do maravilhoso conjunto de leis que regem a vida no universo e o próprio universo, desde o micróbio até às galáxias e além...

Posso dizer que, na abordagem ao problema de Deus, a razão não me leva até à sua essência e à apreensão de todos os seus atributos. Mesmo aí, contudo, estou tranquilo porque, até o ponto a partir do qual a fé tem de seguir sozinha, ela não veio às cegas e sim pela mão da razão.

Pois bem. Estamos, assim, em condições de dizer que Jesus demonstrou com fatos a sobrevivência de um princípio espiritual no ser humano, pois ele era e é um ser humano. IMisso está um dos fundamentos da sua mensagem. Em princípio, não importa, no âmbito dessa realidade, que se nos afigura aceitável, sequer se o corpo de que ele se utilizou com essa finalidade era físico (soma) ou espiritual (psyche), o que importa, basicamente, é que estava ali, vivo, sobrevivente, seu espírito (pneuma). Foi considerado físico, parecia-se com o físico, do qual era uma reprodução fiel até o detalhe das chagas e ferimentos. Seja como for, ali estava ele e quem o conheceu "em vida" identificou-o e falou com ele.

Mais tarde verificou-se que aquele corpo não poderia ter sido o físico, que se desintegrara no túmulo, em algum ponto no decorrer das 36 horas em que ali permanecera, desde a sexta-feira ao cair da tarde até o domingo pela manhã.

As narrativas que nos dão conta disso poderiam, de fato, ter sido enfeitadas, mas é difícil imaginar que tenham sido sistematicamente inventadas, mesmo porque os fenômenos todos que Jesus demonstrou nesse período são possíveis, segundo pesquisas modernas, por mais incríveis que pareçam à pessoa não afeita.ao exame desse tipo de fenomenologia. Nada existe aí, portanto, de milagroso ou sobrenatural. Apenas a ocorrência de fenômenos possíveis e naturais, conhecidos antes dele e repetidos depois dele, por toda parte, em todas as épocas, com toda espécie de gente. O fenômeno nada tem de fantástico, de excepcional é apenas a maneira, um tanto dramática, talvez, de que se vale Deus para nos mandar o recado da sobrevivência do ser.

Não afirmaria eu, como vimos em O NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA, que os discípulos de Jesus sequer estavam pensando em ressurreição. Que estavam moralmente abatidos, chocados e saudosos, sim, não há dúvida, mas não há evidência de que a aparição haja sido inesperada, embora recebida com verdadeira explosão de alegria e felicidade.

Há suficiente evidência nos textos a indicar que os apóstolos, pelo menos os mais chegados a Jesus, tinham clara noção de tais fenômenos. Paulo, sim, foi surpreendido com a manifestaçao nas proximidades de Damasco, pois até ali sua formação fora a de um rabino fariseu ortodoxo e não devia ter noção bem nítida de certos aspectos transcendentais da vida. Quanto aos apóstolos, há indícios veementes de que, acima e além das informações que Jesus distribuía pelo povo, nas suas prédicas e parábolas, ele os ensinava, em particular, sobre aspectos mais reservados e, quase diríamos, secretos da vida.

Quando perguntado pelos apóstolos por que falava em parábolas, ele respondeu: "Porque a vós foi dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não". Após a parábola do joio, que não foi entendida, os discípulos pediram-lhe, em particular, que lhes fosse explicada, o que ele fez. De outra vez, quando Pedro lhe teria solicitado comentasse uma das

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suas expressões, Jesus teria dito: "Nem mesmo vós tendes inteligência?" E esclareceu o que dissera. Consta ainda em Marcos (4:34), que "a seus discípulos, porém, explicava tudo em particular".

Por mais de uma vez diz ele aos discípulos que João Batista revive na Terra a personalidade de Elias e isso, sintomaticamente, os discípulos não questionam e nem lhe pedem para explicitar. O que indica que eles sabiam perfeitamente do que se tratava: Elias-espírito sobrevivera e retornara, em outro corpo, como João.

Havia, portanto, um ensinamento reservado, mais íntimo e certamente com aprofundamento de aspectos que, em público, Jesus não tinha por hábito abordar, a não ser simbolicamente, como nas parábolas. A mensagem total, contudo, jamais foi sonegada, dado que permaneceu sutilmente na cifragem das parábolas e dos ditos que, por algum tempo (e para muitos, até hoje) continuam enigmáticos e até indecifráveis, precisamente porque faltam certas chaves apropriadas.

Para resumir, portanto, diremos assim:1) Jesus pregou e atestou com a sua "ressurreição" o princípio da sobrevivência do

ser, independentemente do corpo físico.2) A realidade da sua sobrevivência não é decorrente de um evento sobrenatural,

excepcional, devido à sua proclamada condição divina, e sim confirmação de uma verdade experimental, de um fenômeno natural que ocorre com todos os seres humanos indistintamente, quer se manifestem ou não após a morte do corpo físico.

3) Sem termos como justificar a utilização do seu corpo físico após a morte, especialmente para subir com ele aos céus, e ante a evidência de que se manifestou num corpo reconhecível e identificável, é certo que o princípio inteligente e consciente, a sua própria essência individual, ou seja, seu espírito (pneuma) ali estava vivo depois da morte,no seu corpo espiritual (psyche).

4) A ressurreição de Jesus não é, portanto, um problema de fé e sim a demonstração de uma lei natural: a da sobrevivência do princípio espiritual, ligado a um corpo sutil, energético.

Muito estranho, pois, que pessoas que se dizem cristãs não consigam digerir ou conviver confortavelmente com o conceito de que somos todos seres espirituais sobreviveis. Mais estranho ainda raiando pelo absurdo que teólogos cristãos se sintam intimidados e embaraçados perante a questão da sobrevivência do ser, que Paulo considerou acertadamente como a própria fundação sobre a qual se apoiava toda a estrutura do pensamento teológico e ético.

Na medida em que o problema da ressurreição foi-se convertendo de evento inabitual, mas real, em postulado de fé, intensificaram-se as complexidades. Dentro de algum tempo, se tornaria impraticável botar ordem na questão e racionalizá-la. Infelizmente, o tumulto estabelecido nessa fase perdura até hoje, à vista das várias conotações suscitadas.

Com a expansão da cristologia escreve Goguel tornou-se cada vez mais difícil pensar no Cristo vivendo uma vida de glória no céu, e, ao mesmo tempo, aparecendo continuamente aos seus discípulos na Terra.

Entende esse mesmo autor que as palavras finais de Jesus, nas suas últimas aparições, ao dizer aos apóstolos que pregassem o arrependimento dos pecados, pois foram eles as testemunhas "dessas coisas", já refletem acomodações no sentido apologético, "para mostrar que os discípulos não acharam fácil acreditar na ressurreição e liquidar com todas as possibilidades de terem estado na presença de um fantasma".

A grande dúvida que ficou, portanto, para os historiadores e que os teólogos procuraram esclarecer um tanto desastradamente, foi sobre a natureza do corpo ressurreto. Goguel continua em dúvida, pois a aparição do Cristo aos discípulos reunidos a portas fechadas pressupõe uma natureza imaterial para o seu corpo, enquanto, a seu ver, a manifestação em,

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que exibe os ferimentos seria com o corpo físico "com o qual ele morreu na cruz". Com o que demonstra ignorar que as chagas podem ser reproduzidas voluntariamente no corpo espiritual, tanto quanto a indumentária e características físicas que a pessoa trazia em vida, na carne.

Já ao considerar o aspecto da fé na ressurreição e não mais a ressurreição em si mesma, como fenômeno, Goguel vai ao extremo de admitir que a tradição tenha sido influenciada, pelo menos em alguns pontos, pelo "velho mito do deus que morre e ressuscita".

Ou seja, uma complexa rede de suposições e especulações que nem mesmo se entrosam e acabam eliminando-se umas às outras.

Não há evidência de qualquer conteúdo lendário de deuses ressurretos nisto. A ressurreição pode e deve ser contestada na maneira pela qual acabou virando dogma de fé, isto é, a revivescência de um cadáver, de um corpo material, não, porém, como fenômeno natural devido à aparição de uma individualidade em seu corpo sutil. Os testemunhos neste sentido são abundantes e convincentes ao longo do tempo. Goguel e outros como ele não conseguem aceitar a existência de um corpo espiritual e, menos ainda, que um corpo dessa natureza pudesse apresentar-se com cicatrizes e ferimentos. Pois estão novamente enganados. Em experimentações já seculares, por toda parte, os "mortos" apresentam-se com suas características "físicas". Do contrário, não seriam reconhecidos. Mostram-se com a calvície, barba longa, ou defeitos físicos, tanto quanto metidos em roupas típicas, portando objetos que usaram, precisamente com a finalidade de se identificarem, de serem reconhecidos como aqueles mesmos seres que aqui viveram, mas que se acham em outro contexto não menos real e objetivo.

O que o fenômeno da "ressurreição" propõe não é que o fato seja transformado em dogma, em princípio de fé, mas que seja aceito como demonstração visível e, às vezes, até palpável, bem audível, da realidade da sobrevivência do ser à morte corporal, dado que são muitos os que somente admitem como válido o testemunho dos cinco sentidos.

Por tudo isso, é surpreendente verificar como e por que Hans Kung considera a nova vida, como ele a chama, não apenas o ponto mais problemático no estudo de Jesus, mas, também, "o mais problemático de nossa própria existência..."

Dificuldade semelhante julgamos entrever nas colocações do Dr. Albert Schweitzer, ao comentar as convicções do velho Paulus acerca da sobrevivência: morreu convicto de que conversara com espíritos dos mortos. E, certamente, conversou mesmo!

Exemplo ainda mais dramático é o do eminente James Pike, bispo da Igreja Anglicana Americana, conforme seu relato autobiográfico (47). Ao perder o filho jovem, que se matara num quarto de hotel, em New York, depois de trágicas experimentações com as drogas, ele, um bispo cristão, nada tinha a dizer à sua família e nem a si mesmo, pois não estava convencido da sobrevivência! A realidade póstuma não passava, para ele, de um tema para dissertações filosófico-teológicas e talvez para sermões, ou seja, um tema especulativo, mas não um aspecto da realidade mesma. Considerava-a como ponto de fé, não algo que deva ou possa ser aplicado à vida real.

E assim, lamentavelmente, o testemunho pessoal que Jesus proporcionou da sua sobrevivência acabou não servindo como demonstração da realidade concreta de cada um e de todos e sim como tema teológico ou ponto de fé irracional.

Em suma: há casos legítimos de literal ressuscitação, ou seja, de reativação de um cadáver. Ou, mais precisàmente ainda, reanimação de um corpo em estado de morte aparente, clinicamente comprovada, como se pode ver de pesquisas recentes. Com Jesus, porém, não é isso que ocorre. O corpo físico desintegrou-se, mediante um processo natural de seu conhecimento, sobre o qual ainda é densa a nossa ignorância, enquanto que, com o corpo psíquico ou espiritual, ele seguiu vivendo, já liberado da condição material.

Jesus não é, por conseguinte, um ser ressuscitado e as suas manifestações póstumas não constituem problema de fé, de crença, mas a demonstração de uma realidade espiritual que o

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ser humano tanto tem relutado em aceitar.O grande testemunho da cruz é o da sobrevivência do ser à morte corporal. A partir do

momento em que este conceito incorporar-se ao acervo cultural de cada um, ficará muito mais fácil entender os maravilhosos processos da vida, um tantinho misteriosos sim, e até enigmáticos, mas que se deixam decifrar quando abordados com a dose certa de curiosidade, humildade e inteligência. Com indiscutível razão dizia Einstein que Deus é sutil, mas não malévolo...

IV. PREEXISTÊNCIAAntes que Abraão existisse, eu sou. (João 8:58)

No processo da divinização de Jesus procurou-se atrair para o seu bojo conceitos destinados a proporcionarem à estrutura e expressão do dogma correspondente alguma aparência de aceitabilidade. Com o passar do tempo, contudo, o sentido semântico de opinião (dogma) tem sido sacrificado para transformar-se, de fato e de direito, num conceito de fé, e, portanto, indiscutível e irrecusável por aquele que desejasse ser tido como cristão.

A questão é que certos aspectos levados em conta na formação do dogma da divindade de Jesus tornaram-se embaraçosos mais tarde, à vista da evolução natural do pensamento, que, por sua vez, foi impulsionada pela expansão da ciência. O tecido de fábulas foi aceito, ou pelo menos, era admissível, enquanto os que tinham suas dúvidas não podiam expressá-las sem pôr em risco todo um contexto e status social e até a vida, ao passo que os demais a maioria, por certo aceitavam-no sem exame. Para que examinar e questionar? Já os teólogos autorizados não haviam pensado tudo para a gente? A obrigação do cristão ficava praticamente limitada à frequência regular dos cultos e sacramentos, como demonstração externa da fé, mesmo que não houvesse resposta alguma na intimidade do ser. Judeus foram obrigados a converterem-se de qualquer maneira, o que muitos faziam para preservar a vida dos seus e a própria. Em separado, porém, e às ocultas, mantinham suas práticas milenares. E como iriam deixar de fazê-lo se era naquilo que estava a substância de sua fé e a força aglutinadora da tradição?

Acontece ainda que certos dogmas, como se descobriu mais tarde, chocavam-se uns com os outros. Se Jesus era Deus, consubstanciai com o Pai, como postula um dos preceitos, e se subiu aos céus com corpo físico, como ensina outro, então Deus, além de um ser tríplice segundo o dogma da Trindade é também, em parte, material. Por outro lado, sendo Deus onipotente, Jesus também o seria; no entanto, um tem autoridade sobre o outro, porque o envia a cumprir determinada tarefa entre os homens e ele obedece. Se Jesus é filho unigénito de Deus ou seja, único como pode Deus ser pai de todos nós? E ainda, se Jesus é filho, então foi gerado ou criado a posteriori, caracterizando-se uma nítida relação pai/filho, criador/criatura. Mas, ao mesmo tempo em que Jesus é filho de Deus é, também, descendente de Davi; do contrário não poderia ser o Messias, segundo as profecias que a ele foram aplicadas. Como se o maravilhoso trabalho que o mensageiro do amor realizou entre nós precisasse de um currículo político e dinástico. O homem é aquilo que realiza, não o que dizem os títulos que exibe. Não bastava ser filho de Deus, tinha de sê-lo também de Davi porque assim queria uma profecia que nem se aplicava ao caso.

Para tentar escapar a algumas dessas contradições e à ideia da subordinação de Jesus a Deus situação, aliás, que ele próprio é o primeiro a declarar enfaticamente foi preciso convocar a doutrina da preexistência de Jesus. Aliás, uma doutrina basicamente racional e inteligente, como ainda veremos. A questão é que a preexistência dogmática de Jesus foi recuada ao infinito, à eternidade, ou seja, ao próprio Deus. Para ser Deus, ele tinha de ser coexistente com Deus, isto é, também um ser incriado, sem começo, também infinito e onipotente.

Para essa doutrina esdrúxula, buscou-se apoio, basicamente, no Evangelho de João. E

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certo que o Prólogo, em João, diz que "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus". No contexto da mística joanina, o Verbo (Logos) seria o próprio Cristo, mas não vejo aí a afirmação de que Jesus tenha sido coeterno com Deus. “No principio era o Verbo...", diz ele, mas não é da condição divina não ter princípio? O máximo que o texto nos autoriza a concluir é que na formação do mundo em que vivemos Jesus seria já um ser de extraordinária estatura espiritual (o que é perfeitamente concebível e admissível) e foi incumbido de promover ou supervisionar a formação da Terra. Aliás, é precisamente isso que diz o texto, em seu versículo 10 "Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele’’. O mundo, não o universo.

Nem se diz ali que era filho único de Deus, mas que sua tarefa entre nós, no mundo que ele formou "Veio para o que era seu", diz o versículo 11 -, consistiu em proporcionar a todos a mesma condição de que ele desfrutava, isto é, a de participar do pensamento de Deus, como um filho participa das ideias e vontades de seu pai. Jesus propunha-se, portanto, a levar-nos a todos para a intimidade de um Pai amoroso e generoso que nunca daria pedras ao filho que lhe pede pão.

Vê-se também aí a dualidade do ser humano, que tem um componente material, físico, que em João se chama "carne e sangue", bem como um princípio espiritual, imaterial, que independe da vontade humana criar. Os pais carnais proporcionam apenas o instrumento físico, o veículo, ou seja, o corpo material. O princípio inteligente, espiritual, vem de Deus. Este módulo do Evangelho de João, contudo, termina incongruentemente sob suspeita de enxertia, como, alias, considera Guignebert. Informa-se, primeiro, que todos os que crerem que não são apenas nascido da carne e do sangue, nem da vontade do homem, podem tornar-se filhos de Deus e que, para isso, o Verbo se fez carne e habitou entre nós; termina, no entanto, esse trecho, dizendo que o Cristo é o Unigénito. Ora, unigénito é filho único, o único que o Pai teria gerado. Neste caso, os outros não poderiam também ser filhos, senão adotivos. Quem os teria criado, então?

No exame dessa passagem, Guignebert não lhe dá a interpretação que acabamos de expor, é claro. Ao contrário, conclui ele que João acreditava ser o "logos (verbo) coeterno com Deus". Assinala, contudo, o historiador francês, que .João "nunca deixa passar a oportunidade de declarar que Jesus é 'o filho de José' e que "longe de dar seu apoio à lenda de Mateus e Lucas, definitivamente opõe-se a ela".

Coerente com essa postura, fica bem claro, em João, que, mesmo admitindo-se a doutrina da coeternidade com Deus o que seria inaceitável o nascimento de Jesus é considerado sob condições normais da geração humana, ou seja "de acordo com a carne".

Aliás, a despeito da opinião de Hans Kung, de que Paulo também pregou a doutrina da coexistência de Jesus, não é isso que ali vemos, como também não o vê Guignebert, embora este ache que Paulo acreditou na divindade de Jesus, o que não tem o menor apoio nos textos das epístolas.

Segundo Guignebert, Paulo não teria concebido a doutrina de que Jesus fora um Adão redentor, enquanto o verdadeiro Adão fora o introdutor do pecado no mundo, o que também é apenas uma lenda e, portanto, simbólica e mitológica. Uma coisa é certa, porém: Paulo não postula, de forma alguma, a concepção virginal de Jesus. Parece ignorá-la, certamente porque não era doutrina corrente no seu tempo e não devemos nos esquecer de que ele percorreu uma parte considerável do mundo então conhecido. Tê-la-ia encontrado nalgum ponto e um pronunciamento seu nesse sentido estaria em uma ou mais de suas Epístolas, pois foi sempre muito atento na observação de desvios doutrinários. Ele acha, realmente, que Jesus foi o Messias, não no sentido estritamente judaico, e sim, salvacionista, mas não que tenha tido qualquer nascimento fantástico. Em Gálatas (4:4) diz que "Deus enviou seu filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para redimir aqueles que estavam sob a Lei".

Mesmo o conceito de redenção tem aí uma conotação inusitada, no sentido de que

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constitui um resgate específico do povo judeu à servidão da lei antiga, considerada superada, àquela altura e, portanto, inadequada.

Não se vê aí, por outro lado, vestígios de concepções trinitaristas. Deus teria enviado um de seus filhos que aqui nasceu sob as condições normais prescritas para o processo da reprodução humana, no seio do povo judeu, sob a lei mosaica. Sua tarefa imediata era a de resgatar da estéril observação estrita da lei aqueles que estavam como que imobilizados nela e por ela. E, eventualmente, e por extensão, a todo o gênero humano.

Assinala Guignebert que, se Paulo acreditasse no nascimento virginal, ele teria escrito que Jesus nascera de uma virgem e não de uma mulher, pois ele emprega a palavra gynaichos e não parthenou.

Para dizer coisa diferente, Kung invoca Colossenses (1:15), mas ali está dito que "Ele (Jesus) é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis..."

Imagem de Deus somente é admissível como figura de retórica, mesmo porque se há um povo que não admitia (e não admite) imagens concretas de animais ou seres humanos e muito menos de Deus, é e foi o judeu. Podemos estar certos de que Paulo não imaginava Deus como um velho de barbas longas e brancas, sentado num trono. Já examinamos a questão da imagem e semelhança de Deus noutro ponto deste livro.

Aspecto importante, contudo, como se observa, é o de que Jesus não é o UNIGÉNITO, como está em João, ou seja, o filho único, mas o PRIMOGÊNITO, o primeiro, o mais velho, o mais experimentado, o mais evoluído. Ambos concordam, porém, em que Jesus tenha presidido à formação do mundo "todas as coisas nos céus e na terra”, diz Paulo, não no universo, que Paulo não ignorava estar povoado de corpos celestes ao infinito, como diz alhures, aos coríntios.

A mesma ideia, basicamente, é exposta em Hebreus, também citado por Kung, em apoio do seu argumento. Diz-se ali, em 1:2, que "nestes dias, que são os últimos, falou-nos Deus por meio de seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos”.

Não se vê aí uma afirmativa de que Jesus seja coeterno com Deus e tenha criado, junto deste, ou com ele, o universo todo e, em última análise, criado a si mesmo. A própria Bíblia de Jerusalém afirma, em breve comentário a esse versículo, que a "expressão hebraica (fazer os séculos) (serve) para designar o mundo” (Destaque e parênteses meus).

Finalmente, ainda segundo Kung, Hebreus 13:8 "Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje; ele o será para a eternidade". Ora, dizer que alguém é o mesmo hoje do que foi ontem e assim continuará sendo pela eternidade, não significa que se trata de um ser coeterno com Deus. O mais racional é concluir que esse ser é imortal, ou seja, uma vez criado, viverá para sempre, o que não é a mesma coisa que dizer que é eterno.

Curioso, porém, que Kung, que parece identificar o conceito de coeternidade em Paulo o que é falso, a meu ver confessa sua dificuldade com o conceito muito mais simples e até racional da preexistência, isto é, a existência de Jesus, "na eternidade divina antes da encarnação". Meu Deus! Uma vez criados, todos nós existimos no que ele chama de eternidade divina antes da encarnação... Não coeternos, mas na eternidade, sim. Na eternidade estamos todos, aqui e agora, mesmo no breve momento em que vivemos na carne, mesmo no segundo que passa, pois seja qual for a noção que temos da sua extensão, a eternidade é feita de átomos de tempo. E poderia alguém viver a não ser no seio da eternidade? E poderia alguém existir, em potência ou ato, senão naquilo a que chamamos "o seio de Deus"? Onde mais? Como? Viver, é, em si, um evento, um fenômeno que só pode ocorrer no contexto da natureza, do tempo e, portanto, da eternidade. Mesmo que não tenhamos condição de conceber o que seja eternidade, a não ser como manifestação contínua e ininterrupta do tempo, sem começo e sem fim, segundo o nosso tosco entendimento de

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seres aprisionados nas malhas do tempo.Cabe, não obstante, reiterar o conceito de que somos eternos depois de criados, não

coeternos com Deus, muito embora elaborados ou concebidos a partir de um principio inteligente universal e eterno que, em última análise, é o próprio Deus, de Vez que nada nem ninguém poderia existir senão nele.

Seja como for, é óbvio que para enviar-se alguém em tarefa específica à Terra, esse alguém deve, antes de mais nada, existir. Para que complicar ainda mais as coisas, imaginando que Deus envia alguém que ainda vai ser criado? E que só depois disso, portanto, poderá saber que instruções traz, o que deve fazer e como? Se, reversamente, o emissário tem de ser coeterno com ele, ainda mais complexo se torna o problema e, nesse caso, não se entenderia a vinda de Elias renovado ou renascido em João Batista, que, pelo testemunho de Jesus, foi o que aconteceu.

A despeito de tudo isso, a dificuldade permanece intransponível para os teólogos. Kung acha a ideia da preexistência "particularmente difícil de apreender-se hoje". Por isso, propõe considerá-la sob o aspecto teológico, como algo que "estava no ar”, por aqueles tempos. A teologia fica sendo, por conseguinte, um foro para discussão daquilo que não entendemos ou não aceitamos...

Lembra, contudo, que os gnósticos também admitiram a preexistência da alma, que mergulhava na matéria e, mais tarde, libertando-se dela, retornava a Deus. O que está absolutamente certo!

Mas, como se sabe, o gnosticismo sobre o qual falaremos alhures, neste livro foi considerado uma heresia, um desvio, um erro teológico, e o que hoje temos como cristianismo é a resultante das heresias que venceram e, portanto, por suposição, está com a verdade integral. Para o Prof. Kung não é bem isso, pois ele deixou, no seu livro, bem rachadas as bases da salvação exclusiva pela Igreja Católica. Em verdade, o gnosticismo é que tinha razão neste ponto, mas a Igreja preferiu optar pela ideia de que para cada pessoa que nasce é criado um espírito novinho em folha. Do que se conclui que também inocente, pois seria absurdo supor que Deus crie seres com pecado. Neste caso o próprio Deus lhes estaria atribuindo pecados, ou teríamos de ficar com a hipótese, não menos inaceitável, de que aquele indivíduo pecou antes de existir.

E Jesus, aliás, o primeiro a declarar, enfaticamente, sua preexistência, como se lê em João: "Antes que Abraão existisse, eu sou".

A frase guarda um tom de autenticidade e convicção. Dificilmente poderia ter sido inventada, de vez que a preexistência é conceito que sempre foi de difícil assimilação por parte dos teólogos. Daí uma das razões pelas quais foi necessário divinizar Jesus. Sendo Deus, ficava explicada ou implicitamente admitida a sua preexistência.

A preexistência não é, portanto, um atributo apenas de Jesus, mas de todos nós, seres conscientes, dotados de razão. O Prof. Kung, contudo, envolve tudo num só período e liquida o problema de maneira radical:

Não podemos mais aceitar as ideias míticas daquele tempo, segundo as quais um ser que se apresentasse como descendente de Deus, existisse antes dos tempos e além deste mundo, numa condição celestial. Essa 'história de deuses', na qual dois (ou mesmo três) seres divinos estão envolvidos, não é para nós. Certamente, contudo, temos de considerar em nosso contexto mental, tão diferente hoje, exatamente o que as ideias daquele tempo queriam expressar.

Como se observa, o Prof. Kung está certo em rejeitar essa historinha de deuses no Olimpo, mas não em jogar fora também a ideia da preexistência, que é válida.

Para concluir este módulo do livro poderemos resumir o exposto da seguinte maneira:É insustentável o conceito de uma coeternidade de Jesus com Deus; não, porém, o de sua

preexistência, mesmo porque esta é atributo e condição de todos nós. A doutrina de que para

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cada ser é criado um espírito ou alma, é irreconciliável com a justiça divina.* * *

V. PALINGENESIAEm verdade, em verdade, te digo: quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus (João 3:3).

E de fácil identificação o porquê da dificuldade dos teólogos com a realidade da preexistência do ser humano. Admitida essa ideia, não há como rejeitar a do renascimento, e nenhum conceito básico acerca do homem é mais desastroso para a bizantina e arcaica estrutura da teologia dogmática, que ainda perdura, do que o das vidas sucessivas.

Podemos armar aqui um exercício especulativo que, no jargão da Informática, leva o nome de simulação. Consiste no seguinte: mesmo admitida como mera hipótese de trabalho, que consequências ou repercussões provocaria a palingenesia nas formulações teológicas, em geral, e nos dogmas, em particular?

Tomemos, por exemplo, os conceitos teológicos de céu e inferno.Céu é o lugar para onde vão, não propriamente as boas almas, cumpridoras de seus

deveres, humildes, caridosas, cheias de amor, mas as que pertenceram à "única e verdadeira Igreja" e praticaram escrupulosamente seus deveres religiosos, frequentaram os seus sacramentos, do batismo até a extrema-unção e aceitaram todos os seus postulados doutrinários, além de inúmeros outros deveres menos significativos. E o local onde se encontram os chamados "eleitos", santos, mártires, os apóstolos e, finalmente, Jesus e o próprio Deus, como numa corte terrena, tudo isso enfeitado com anjos, arcanjos e demais personalidades.

Em verdade, o acesso ao céu não depende rigorosamente da nossa vontade, segundo nos ensinaram, e parece que nem mesmo do nosso procedimento, o que se torna, no mínimo paradoxal, porque só entram ali os que foram dotados de fé em determinados postulados, mas como a fé é doação espontânea e inescrutável de Deus, nunca sabemos se vamos ou não ser distinguidos com essa graça.

Seja como for, o céu afigura-se prêmio exorbitante, porque eterno, em face de uma existência que foi apenas um segundo nessa mesma eternidade, ainda mais que muitos são os que morrem na primeira infância. Por oito ou dez anos de vida terrena, um céu pela eternidade parece exagero ou, no mínimo, uma desproporção incompreensível.

Dentro do nosso esforço habitual no sentido de não alongar demais este estudo, deixaremos de abordar outros aspectos do problema, como por exemplo: Que paz celestial poderia experimentar uma senhora, sabendo que seu marido, filha ou irmão foram despachados para o inferno? E se vamos para o céu com o corpo físico, ainda que, de alguma forma transformado, como vamos sustentá-lo ali? Existe algum tipo de alimentação?

Quanto ao inferno, é só trocar os sinais dos argumentos e questionamentos e em pontos de exclamação as interrogações suscitadas. Uma eternidade de sofrimento no fogo vivo por causa de uma vida curta e passageira, na qual não temos, às vezes, nem consciência do que fazemos!

Escreveu Voltaire, no seu já muito citado DICIONÁRIO, verbete EIMFER, que muitos Pais da Igreja não acreditavam nas penas eternas. "Parecia-lhes absurdo queimar por toda a eternidade um pobre sujeito só porque roubou uma cabra".

Verdadeira ou não, Voltaire relata uma historinha ilustrativa, dizendo que há algum tempo (no seu tempo) um ministro huguenote (Protestante) escreveu um trabalho para opinar no sentido de que lhe parecia, de fato, desproporcional o suplício, em relação ao pecado, sendo o erro de um momento punido com um castigo infinito na sua duração. Seus colegas, segundo o autor do DICIONÁRIO FILOSÓFICO (22) depuseram-no sumariamente e um deles comentou: "Meu amigo, tanto quanto você, eu não creio no inferno eterno, mas é bom

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que a sua empregada, o seu alfaiate e mesmo o seu procurador o creiam".Agora, vejamos bem. Se todo o esquema salvacionista está montado em cima de tais

bases, que será dele se os alicerces forem não apenas questionados, mas demolidos, explodidos, pulverizados? Começarão a ser questionados os próprios recursos salvíficos (palavra com a qual tenho solene implicância), a começar pelos sacramentos.

Honestamente devemos proclamar que a teologia moderna tanto protestante como católica sente-se cada vez mais desconfortável perante a ideia do inferno.

O NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA (18), verbete INFERNO, mostra-se algo constrangido ao confrontar a ideia de que "Deus é onipotente e Deus é amor" e a de que "a retribuição eterna, claramente ensinada nas Escrituras, levanta problemas em nossas mentes que, com toda probabilidade, não podem ser completamente solucionados".

Em tempos mais remotos ninguém ousava questionar os sacerdotes que pregavam tais doutrinas e não ficávamos sabendo, a não ser excepcionalmente, se os sacerdotes questionavam a si mesmos, porque muitos não emprestavam voz ao que pensavam, e os que o faziam eram advertidos pelo Senhor Bispo, os que insistiam excomungados ou, em casos extremos, incinerados para que calassem.

Hoje, porém, muita gente pergunta e quando não obtém resposta, ou a resposta é insatisfatória, sai a procurá-la alhures, em outros cultos, ou, pior, abandonam de uma vez suas expectativas religiosas.

Os teólogos protestantes também vêm-se esforçando para racionalizar o irracional, mas os resultados não têm sido promissores. O já citado DICIONÁRIO, não o de Voltaire, mas o da Bíblia, menciona que E. Brunner "invoca o conceito de paradoxo necessário na revelação de Deus, ao dizer que a palavra de Deus não tem a intenção de ensinar-nos fatos objetivos sobre a vida no além-túmulo, mas meramente procura desafiar-nos para que tomemos a ação correta".

Os autores do DICIONÁRIO, embora sem muita convicção, rejeitam essa teoria, optando por uma doutrina não menos esdrúxula, a meu ver (Que me relevem a franqueza). Segundo eles, é preciso "admitir que os conselhos de Deus ultrapassam a compreensão de nossas mentes finitas%

Mas, se Deus não consegue ensinar-nos coisa tão importante e, afinal de contas, tão simples, então quem vai ensinar-nos? E como é que Deus se revela incompetente para transmitir-nos ensinamentos de tão vital importância ao processo mesmo da nossa evolução? Se toda a metodologia e a dinâmica das igrejas estão voltadas para o problema básico da "salvação" das almas, ou seja, empenhadas em que os seres humanos ajam de maneira tal que mereçam a melhor destinação póstuma possível, como veicular conselhos que ultrapassam nossa capacidade de entendê-los ou desafiar-nos a tomar a ação correta, se não sabemos que ação correta Deus tem em mente?

O que está errado, pois, não é o ensinamento supostamente atribuído a Deus, é o nosso conceito de inferno, tanto quanto o de céu. O primeiro tem povoado de terrores irracionais e fictícios a mente e o coração de milhões e milhões de seres ao longo dos milênios; o segundo, tem criado expectativas totalmente infundadas e decepções arrasadoras em outros tantos.

E mais: quem nos garante que a palavra que lemos é mesmo de Deus? Não seria mera formulação humana de como certas pessoas entendem o que Deus estaria tentando ensinar-nos? E certo que as lições de Deus estão implícitas e explícitas nas suas leis e que a nós cabe descobrir o que querem tais leis dizer-nos com a sutileza que lhes é própria, mas seria tomar Deus como um ser pelo menos malicioso e não sutil, como dizia Einstein, se ele estivesse deliberadamente ocultando ao nosso entendimento o sentido daquilo que deseja transmitir-nos.

Isso tudo não quer dizer que não haja recompensas maravilhosas para aqueles que viveram com dignidade e amor, como também que não haja sofrimento mais ou menos longo

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que a muitos pode parecer eterno para aqueles que se recusam obstinadamente à prática do bem. E como o ser espiritual não é uma abstração, mas uma realidade, mesmo sem o seu corpo físico, ele tem de estar em algum lugar no espaço, em alguma dimensão, em alguma faixa vibratória, pois o universo é todo imensa escala gradativa, desde as manifestações mais pesadas e densas da energia concentrada, a que chamamos matéria, até transcendentes patamares, onde a matéria eleva-se às suas mais sutis manifestações, em estado puramente energético. Num extremo, portanto, a luz pura e livre, no outro, as mais compactas coagulações da luz, reduzidas a substâncias opacas e densas. Densas, bem entendido, para as limitações dos nossos sentidos. De certa forma, pode-se dizer que os seres da faixa superior encontram-se em pianos virtualmente celestiais de vida, enquanto, na outra extremidade, criaturas ainda aprisionadas no desespero vivem em regiões que se afiguram infernais. E preciso, contudo, estarmos bem conscientes de que céu e inferno são, antes de tudo, estados de alma, condições evolutivas que cada um carrega consigo, na intimidade do ser.

Não é sem razão que o Cristo dizia que o "Reino de Deus está em vós..." Ou seja, não é condição externa, não é local geográfico, nem estrutura política, social ou religiosa, é um estado de espírito, de pureza. Aquele que tem o seu mundo íntimo bem ordenado e em paz, onde quer que esteja estará no céu. De igual maneira, os que levam consigo as desarmonias, o desespero e a revolta, para onde forem, onde estiverem, estarão no "inferno".

Para transitar da sombra à luz, da angústia à felicidade, do inferno ao céu, ou seja, para construir o Reino de Deus em nós, não basta o exíguo espaço de uma só existência, nem a prática ritual de alguns sacramentos, posturas e crenças. A fé é bússola, ela aponta o rumo, mostra o caminho, mas não faz por nós o trabalho que nos compete. E possível possuir um ser humano toda a fé, no seu mais elevado grau, e, no entanto, como diz Paulo, ser apenas "um sino que tange", se não colocá-la em ação, na dinâmica da caridade que, na conceituação de Jesus, é amor ao próximo como a si mesmo, corolário do amor supremo, a Deus, "sobre todas as coisas".

O arrependimento é construtivo, por certo, e pode até provocar autêntico renascimento espiritual, como pregam os nossos queridos companheiros protestantes, mas também não basta. Primeiro, que não foi isso que o Cristo quis dizer quando falou em nascer de novo para partilhar o Reino dos Céus; segundo, que a renovação interior, por mais positiva e desejável, pode pôr em ação um programa regenerador realmente notável, mas as leis éticas desrespeitadas pelos erros praticados continuarão a exigir a reparação devida, pois não há ação sem a correspondente reação. A reação ao erro é a dor, tanto quanto a reação à prática do bem é a paz de espírito, que o Cristo preferia denominar Reino de Deus, isto é, a regência do nosso universo interior pelas leis divinas. As leis naturais se desincumbem impecavelmente na regulação do universo, macrocosmos e microcosmos, universo material e ético. Por que razão seriam incompetentes para regular e manter o equilíbrio do nosso universo interior?

Dessa maneira, o próprio perdão fica sob nova luz. O perdão é inesgotável, paciente, incansável; ele se repete todas as vezes em que errarmos. De nada serve a confissão, a não ser como desabafo, pois o perdão está implícito nas leis divinas. Ninguém em especial precisa no-lo conceder, que ele aí está ao alcance de todos, cristãos, judeus, ateus, muçulmanos. Quem mais precisa dele não são os puros e sim os que mais erram. O problema é que o perdão não nos repõe em estado de pureza instântanea por um passe de mágica ou graça divina; ele apenas e já é muito nos coloca de novo na trilha e diz: "Agora vocé vai e repare o mal que praticou". E quando não houver mais tempo disponível para a tarefa reparadora, como é que vamos fazer? Temos de ir para o inferno e lá ficar para sempre? E as oportunidades de correção?

O corolário do perdão não é, pois, a beatificação súbita da alma, que fica pronta para ir para o céu, é a oportunidade renovada para o trabalho retificador. Não é só dizer "Senhor!

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Senhor!" que o céu será nosso; é preciso retornar à condição de pureza, simbolizada pelo Cristo na atitude desarmada das crianças perante a vida.

Jesus não falava do que simplesmente acreditava, como acha, por exemplo, Guignebert, ao observar que ele "acreditava no duplo", ou seja, no corpo espiritual ele falava do que sabia. E é exatamente assim que ele diz a Nicodemos: "Falamos do que sabemos e damos testemunhos do que vimos, porém não recebeis o nosso testemunho. Se não acreditais quando vos falo das coisas da Terra, como acreditareis quando vos falar das coisas do céu?"

E isso, precisamente, a propósito de voltar para um ventre gerador, a fim de nascer de novo e não em renovar-se espiritualmente pelo arrependimento ou pela aceitação verbal de Jesus. Tais declarações enfáticas e inequívocas conjugam-se com a informação de que João Batista era Elias nascido de novo, em outro corpo e outra vida, com outro nome e personalidade, mas a mesma individualidade espiritual.

E oportuno insistir no dramático episódio da cura da cegueira congênita de um indivíduo em Jerusalém por ser ela de convincente singeleza didática. Não entraremos na discussão do mecanismo da cura em si, ou se a doença era psicossomática ou não, que já foi abordado quando cuidamos do problema do milagre. Mesmo porque, conhecendo como conhece (tempo presente), os recursos das leis naturais, Jesus sempre teve condições para aplicá-los no momento certo e da maneira apropriada. Focalizaremos nossa atenção apenas na lição que o episódio contém.

Jesus expôs repetidas vezes seu ponto de vista de que a doença e o sofrimento são resultantes do pecado, isto é, do erro. Não deixou passar a oportunidade de reiterar ali tal ensinamento, mas foi igualmente enfático ao declarar que a punição da cegueira não resultava de pecado cometido pelos pais, como criam muitos, nem do próprio cego, obviamente na sua personalidade ou existência como cego. Mas não negou a condição de erro anterior e nem o faria sem desmentir o que ensinara alhures, por mais de uma vez. ("Vai e não peques mais").

0 pecado existira, portanto, em alguma oportunidade anterior, daquela mesma individualidade (não as de seus pais), em outra manifestação ou experiência pessoal, ou seja, em outra existência terrena. Um espírito (ou alma) criado especificamente para aquele corpo, vivendo sua primeira e única vida, não poderia ter cometido pecado algum, muito menos da gravidade que acarretasse o penoso corretivo da cegueira, a fim de aprender a valorizar a visão.

Por isso, diz o Cristo que nele operavam as leis de Deus, ou seja, os dispositivos de reação que corrigem automaticamente, em nós, a ação do desvio, à desobediência à lei do amor. Não foi, porém, com aquele corpo físico cego que ele pecara, foi em outro, em alguma existência anterior.

0 corpo físico gerado na carne é carne e é devolvido à terra, de onde veio, e na qual ficará após a morte. De onde mais poderia ser retirado o material de que se forma ele senão dos componentes materiais da própria terra? E o alimento que a mãe ingere e digere que vai servir à construção do corpo em gestação. Mas esse corpo seria um aglomerado caótico de células, e, portanto, um monstrengo desarticulado e não um sistema coerente e operativo, se não estivesse ali presente um modelo organizador, um campo energético, um corpo sutil, que, aprisionando, em suas malhas magnéticas, os diminutos componentes orgânicos, elabora, segundo seu próprio molde, um corpo material. Esse corpo, durante toda a existência carnal será mantido e conservado, a despeito da espantosa quantidade de elementos materiais que fluem através dele, são absorvidos e, em seguida, expelidos. Durante seis ou sete décadas, em média, esse corpo vai renovar-se totalmente várias vezes a um ritmo aproximado de cada cinco anos, segundo recentes pesquisas mas não perderá a forma, a identidade, as funções. A programação espiritual, os comandos, a razão, o sentimento, os padrões éticos, a memória, condições permanentes que garantem a continuidade do ser, estão como que gravadas na contraparte imaterial, insuscetível de desgate e desintegração, ou seja, no corpo espiritual

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incorruptível de que falou Paulo. O corpo físico é instrumento de trabalho e, portanto, perecível, transitório, sujeito ao desgaste. Uma vez impróprio para as tarefas do ser espiritual, é abandonado à decomposição. E, portanto, descartável. O outro não, pois é abrigo do espírito imortal. Este é o que preexiste. Este é o que transita de uma vida para outra, este é o que mergulha inúmeras vezes no ventre generoso de uma mulher e dali dá início a mais uma experiência renovadora. Não, porém, do marco zero, da ignorância, da inocência, da pureza de supor-se em que teria sido acabado de ser criado por Deus, mas com experiências e virtudes que porventura tenha desenvolvido em si mesmo em jornadas anteriores, ou com a carga de erros, dores e angústias que para si mesmo tenha acumulado com o seu procedimento irregular, em conflito com as leis divinas.

Nesse sentido, de nada lhe servem os sacramentos, por mais sagrada que seja a "imagem" que deles se criou ao longo do tempo, se o indivíduo não renovar-se mesmo, decidido à firme observação e acatamento das leis naturais que são, por toda parte, o roteiro da ordem, da purificação, da evolução espiritual, ou seja, da salvação, se esse é o designativo preferido pelos teólogos. Por outro lado, uma vez adotado esse elenco de atitudes e ações construtivas para que servem os sacramentos se o que vale aqui é o procedimento e não os rituais porventura adotados?

Salvação não é, pois, um ato de graça ou de crença, de filiação e práticas religiosas específicas, mas uma conquista pessoal, uma questão de procedimento. Não que isto queira significar que a fé e a prática religiosa sejam completamente dispensáveis ou inúteis, mas que a fé resulte de uma decisão consciente, se apoie em premissas inteligentes, racionais, aceitáveis, lógicas e possa traduzir-se no espírito do que o Cristo dissera a Nicodemos: "Creio porque sei". E se sei e creio que isso é verdadeiro, como e por que iria cometer a tolice de agir ao arrepio das leis divinas? Pois não terei de repor o que tirei? De reparar o que danifiquei? De corrigir o que fiz errado? De sofrer a reação inexorável da ação agressora? Para que iria armar deliberadamente o mecanismo da dor reparadora, se posso, em seu lugar, armar o da felicidade e da paz?

Por isso, não é, sequer, inteligente persistir na trilha do erro, pois o caminho que leva ao que Jesus chamou Reino dos Céus é a estrada reta do procedimento reto. Pregação moral? Seja, se você assim o entender sua opinião ou rejeição não alteram os fatos, graças a Deus. E se o fato nos demonstra que a lei moral se cumpre na repetição da experiência na carne, em vidas e mais vidas sucessivas, de que vale negá-lo ou ignorá-lo? De que adianta recalcitrar contra o aguilhão, se recusamos o caminho reto? O problema é nosso. As leis naturais concedem todos os recursos necessários à reparação, à recuperação. O perdão está implícito nas leis divinas. Jesus recomendou perdoar não apenas sete vezes, mas quantas vezes fossem necessárias. As estradas para o Reino de Deus estão abertas diante de nós. Que nos falta para seguir por elas? Coragem, conhecimento, inteligência? Não; apenas o cumprimento dos postulados racionais que assim nos aconselham.

Quem rejeita a possibilidade das vidas sucessivas como iria adotar as decisões conscientes que lhe abreviarão a redenção espiritual, a chamada salvação? Isso não significa que ele precise crer para que o mecanismo redentor funcione e entre em ação. As leis atuam independentemente da nossa vontade ou crença na sua eficácia. Elas agem sobre crentes e descrentes ou indiferentes; seus objetivos se realizam conjugados com a nossa vontade, sem ela ou a despeito dela. Ai de nós se assim não fosse! Por isso, não é nada inteligente em quem pode e deve seguir o curso do rio que leva ao mar, tentar estupidamente subir a correnteza.

Depois do esforço frenético e milenar despendido a lutar contra o fluxo da corrente, o ser, exausto, abandona-se à evidência da verdade e descobre, afinal, que é assim, no respeito à ordem natural, que ele segue no rumo certo. Mas, a essa altura, quanto tempo perdido, quanta tolice cometida e, portanto, quanto reparo doloroso a fazer!

A graça de Deus está em proporcionar a todos os mesmos recursos, as mesmas

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oportunidades, a mesma paciente tolerância, tudo isso, contudo, acoplado à firme inexorabilidade da lei, que exige de nós a reparação.

Se, para realizarmos tal programa de ação, precisarmos aderir a uma comunidade religiosa, tudo bem, pois as religiões não são finalidades em si mesmas, e sim instrumentos, cabendo a cada um adotar a ferramenta adequada ao seu estado evolutivo, à sua formação e pendores. 0 que opta pelo violino ou pelo piano, produz um trabalho chamado música; o que escolhe o arado, produz alimento; o que toma de uma pena, escreve um livro e assim por diante. Da mesma forma, o que escolhe esta ou aquela religião, produz um trabalho chamado aprendizado, ficando, contudo, limitado às possibilidades do seu instrumento, da mesma forma que o tratorista não poderá tocar uma sonata em seu trator ou o escritor arar o campo com a sua pena ou sua máquina de escrever. Todos, porém, estarão realizando algum tipo de trabalho.

Não cometamos, contudo, o equívoco fatal de pensar que basta cumprir determinadas práticas ritualísticas ou sacramentais para assegurar nossa redenção ou salvação.

Atenção, portanto, para não valorizar desmedidamente os templos de pedra e ouro, assentos de mero poder político, terreno. Examinemos a mensagem e os roteiros que eles nos oferecem, pois o Reino de Deus "não se toma de assalto" e nem se compra com rituais vistosos, remunerados ou não. Sua realização em nós está no cumprimento das leis, que dispõem, todas elas, de mecanismos infalíveis de "feed back" auto-reguladores, tanto as leis da física com as da ética. A cada desvio para o lado errado, ocorre, fatalmente, um repuxo em sentido contrário, senão seria o caos total.

Jean E. Charon (30), eminente físico e matemático francês, observa com propriedade ainda que não concordemos com todas as suas conclusões que, ao contrário do que muita gente pensa, o universo tende para a ordem e não para a desagregação, a desarrumação. Curioso pensarmos que um corpo celeste que se desgarre da sua órbita é naturalmente destruído num choque que o desintegra e neutraliza. Mesmo causando certo distúrbio, a perturbação é circunscrita a local e não se amplia a ponto de pôr em xeque todo o cosmos.

Quanto ao suporte científico e experimental para o princípio das vidas sucessivas, pouparemos ao leitor uma longa e talvez repetitiva exposição. O assunto está estudado, com maior ou menor competência, mas sempre com interesse, em um número considerável de obras recentes ou mais antigas. Sobre esse aspecto, como em outros, o Cristo não impôs o seu ponto de vista a ninguém; limitou-se a expor o seu ideário. Quem quiser segui-lo, assuma as suas dores, fraquezas, potencialidades e virtudes e o faça, não confiando exclusivamente na prática externa de um culto irracional, mas vivendo a realidade espiritual, que ele não apenas pregou e ensinou, mas autenticou para sempre o seu testemunho pessoal.

Em que se resume esse testemunho? Muito simples: o ser humano não é um corpo material, apenas tem um corpo material, vive nele por algum tempo e depois o abandona por inservível. O corpo físico (soma) fica por aí, desintegrando-se quando mais não precisarmos dele. O ser humano é, em essência, uma individualidade consciente, racional, inteligente, imortal, criada simples e ignorante, mas dotada de todas as potencialidades da angelitude. Os atributos da permanência estão no corpo espiritual (psyche) que continua a servir de veículo à essência espiritual (pneuma), fagulha divina, efeito inteligente de uma causa inteligente a que chamamos Deus.

O roteiro da evolução aí está, os recursos para a conquista da paz redentora também. Não se espere, contudo, uma salvação instantânea por obra e graça de Deus, doação arbitrária que a uns beneficia desproporcionalmente aos seus méritos e a outros condena de maneira exorbitante em face de seus erros, tudo no curso de algumas décadas de vida na carne.

Não basta uma única existência para levar-nos das profundezas das sombras aos cimos da luz, mas lá chegaremos, não há dúvida, pois, como dizia Paulo, tudo se realiza na plenitude dos tempos.

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* * *Quanto ao problema específico da palingenesia, ou vidas sucessivas, uma boa leitura para

abrir espaço mental e desbloquear ideias preconcebidas, continua sendo o FEDON, de Platão, no qual Sócrates discorre desinibidamente sobre o assunto, com a autoridade que ninguém tem o direito de contestar ou questionar.

6. OS TEXTOSVisto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós conforme nolos transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste. (Lucas 1:1-14)

Preconizamos há pouco um retorno aos textos evangélicos, em busca de um entendimento novo ou renovado daquilo que neles se pretendeu preservar. É ali que temos de pesquisar os elementos primitivos que nos levem a uma reavaliação da personalidade e dos ensinamentos de Jesus. É neles que temos de identificar o joio e o trigo, a verdade e o erro, a realidade e a fantasia, a fim de separar um do outro.

Até que ponto é isso viável é o que nos cabe examinar, de vez que depende o possível êxito de tal propósito do estado em que os textos chegaram até nós.

I. DOCUMENTOS CANÓNICOSNão é nada fácil e nem deve ser empreendida sem graves considerações e senso de

responsabilidade a tarefa de "escrever de modo ordenado", como disse Lucas, um estudo acerca dos textos que compõem os Evangelhos que hoje conhecemos.

O primeiro obstáculo, talvez o mais importante, está em que, a despeito da escassa e praticamente nula base documental ou por isso mesmo os exercícios de especulação produziram uma torrencial literatura sobre o assunto ao longo de 18 ou 19 séculos. Torna-se difícil, pois, encontrar um caminho pelo qual possamos penetrar nesse território, on150de se chocam tantas e tão contraditórias opiniões, caminhar por ele em segurança e sair do outro lado com uma noção confiável do que realmente teria acontecido com os textos que pretendem preservar não apenas o pensamento de Jesus, como também, o que hoje chamaríamos de sua biografia.

E preciso considerar, de início, que Jesus pessoalmente nada deixou escrito. Seus apóstolos e discípulos mais chegados que, regular ou intermitentemente, acompanharam-no e ouviram-no pregar, continuaram, após a sua crucificação, a técnica da pregação oral, mesmo porque difundiu-se logo a ideia de que o Reino de Deus estava para ser implantado a qualquer momento, ainda naquela geração. Para que escrever sobre o que estava para cumprir-se dali a pouco?

Foi somente depois que começou a desaparecer a geração dos que haviam estado pessoalmente com Jesus e aprendido, com ele, a sua doutrina, que se cogitou de preservar, na palavra escrita, aquilo que ele ensinara. Quase meio século se passara, a essa altura, sobre a morte dele na cruz. Os primeiros escritos, foram, portanto, sumários registros de uma tradição oral, com base na memória dos que conviveram com ele.

Ao que tudo indica, quem primeiro anotou os ensinamentos do Cristo foi Mateus. Sem nenhuma preocupação biográfica ou sequer histórica. Eram conhecidos como "ditos do Senhor", algo semelhante ao que se pode encontrar hoje no Evangelho de Tomé, cujo texto foi encontrado, em 1945, no Egito, em língua copta. Não estamos aqui avalizando a autenticidade desse documento e nem teríamos autoridade para isso; buscamos apenas chamar a atenção para a sua feitura. Nem E. Hennecke, no seu erudito estudo sobre os

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apócrifos em gerai (41), resolveu assumir essa responsabilidade. Preferiu aguardar mais tempo e mais aprofundados estudos, informando, contudo, que "Sem dúvida, muitos (dos ensinamentos) mesmo agora parecem espúrios".

Não há ali referências biográficas, nem, obviamente, um relato sequencial. São frases e pensamentos soltos, iniciados com a expressão "Jesus disse", ou "Ele disse". Alguns deles são semelhantes aos textos conhecidos, como o de número 26 "O cisco no olho de teu irmão, tu vês, mas a trave no teu olho tu não vês. Quando removeres a trave de teu olho, então poderás tirar o cisco do olho de teu irmão". Ou a observação sobre o cego que guia o cego (Logion 34). Ou, ainda, o dito sobre vazar vinho novo em odres velhos (Logion 47). São, ao todo, 114 logia

Raras e brevíssimas são as cenas dramatizadas, nenhuma delas se poderia considerar biográfica.

O documento original de Mateus terá sido algo semelhante, como o primeiro registro escrito da tradição oral, a que se refere Guignebert.

É certo, contudo, que embora os textos que conhecemos hoje tenham incorporado possivelmente todas as togia preservadas por Mateus no seu documento primitivo, há divergências inexplicáveis ou irreconciliáveis. Como lembra Voltaire (Verbete ÉVANGILE, de seu Dicionário) "... nenhum dos primeiros Pais da Igreja, inclusive Irineu, cita qualquer passagem dos quatro Evangelhos que conheçamos”. E mais: "... citam muitas passagens que somente são encontradas nos Evangelhos apócrifos, rejeitados entre os canónicos”.

Isso quer dizer, simplesmente, que não eram os textos hoje conhecidos que aqueles comentaristas primitivos tinham diante dos olhos.

É também de considerar-se como dado importante na questão da historicidade dos textos evangélicos, que os estudos prosseguem á medida que novas descobertas ou informes sáo trazidos a público. As opiniões atuais, por conseguinte, ainda sào, em substância, especulativas, longe de sua eventual condição de decisivas.

Para não mergulharmos num retrospecto exaustivo, além de inútil, podemos tomar apenas como amostragem histórica o estado em que se encontrava o problema quando Ernest Renan escreveu seu livro V, da série HISTÓRIA DAS ORIGENS DO CRISTIANISMO, ou seja, OS EVANGELHOS E A SEGUNDA GERAÇÃO CRISTÃ (48).

E preciso, contudo, levar em conta, no exame deste material, que ele reflete, em essência, o pensamento de Renan e não a opinião generalizada de uma época, pois, neste campo, sempre houve muito espaço para especulações vás e, portanto, controvérsias irreconciliáveis. Mesmo com tais ressalvas, creio útil uma avaliação do que escreveu o historiador francês.

Segundo ele, "houve três variedades de Evangelhos”: 1) os originais. escritos com base na tradição oral, sem apoio de nenhum texto anterior; 2) relatos parcialmente originais, mas com aproveitamento de textos existentes e, finalmente, 3) evangelhos de segunda ou terceira mão, que Renan caracteriza como "compostos a frio sobre escritos, sem que o autor recorresse às fontes puras da tradição".

Na primeira categoria acha Renan que houve dois, um em hebraico, ou melhor, em siriaco e outro em grego, o de Marcos. Em ambos os casos ele se refere aqui aos textos primitivos, originais e não aos que hoje conhecemos.

Na segunda categoria resultante da combinação de elementos colhidos na tradição, com textos já existentes estariam os que ele diz serem os "falsamente atribuídos a Mateus e os de Lucas".

Na terceira, põe ele os apócrifos em geral, que teriam pretendido ampliar os textos já conhecidos com enfeites e fantasias, embora com um núcleo de autenticidade.

Acha Renan que a alteração arbitrária da redação foi a regra domínante, bem como o uso indiscriminado do material, sem o mínimo de seletividade crítica, mesmo porque, na sua opinião, "o plagiato (foi) a regra geral da historiografia" naquele tempo.

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Aos poucos começaram a avultar as especulações sobre a personalidade de Jesus. Como fora ele, de que maneira teria vivido, quais as suas origens, sua formação, sua biografia, enfim. A matéria prima desses escritos primitivos, contudo, continuava sendo a tradição oral, que Renan considera "essencialmente inconsistente". Ao lado de expressões autênticas provindas de Jesus, surgiam "dizeres mais ou menos presumíveis", imaginados ante situações novas.

No entanto, acha ele que os textos tinham uma "base sólida", uma vez que:- A tradição evangélica é a tradição da Igreja de Jerusalém transportada para a Pereia.

O Evangelho nasce no meio dos parentes de Jesus e é, até certo ponto, a obra de seus discípulos imediatos.

Somente depois da destruição de Jerusalém, ocorrida no ano 70, como sabemos, é que começaram a surgir os primeiros textos contendo anotações acerca dos ensinamentos de Jesus. Renan acha que foi no ano 75 que "apareceu o primeiro esboço" há pouco mencionado.

- Este importante trabalho prossegue deve ter sido empreendido na Bataneia, onde viviam os irmãos de Jesus e onde se refugiara o que restou da Igreja de Jerusalém.

O texto teria sido escrito na mesma língua que falou Jesus, ou seja, o siríaco-caldaico que Renan considera "abusivamente" confundida com o hebraico. Foi nesse dialeto obscuro e sem sofisticações literárias que teria sido escrito o primeiro texto evangélico "o esboço do livro que foi o encanto da alma". E nessa língua teria ficado sepultado não houvesse sido, algum tempo depois, vertido em grego, já um tanto modificado.

Esse prot-evangelho foi utilizado na sua língua original até o século V, entre os cristãos da Síria. Renan menciona um exemplar existente na biblioteca de Panfílio, em Cesareia, onde Jerônimo tê-lo-ia copiado e até traduzido. Hennecke tem sérias dúvidas sobre isto, porque não teria passado despercebida a Eusébio essa preciosidade e ele não a menciona. Aliás, Hennecke não deposita inteira confiança em certas afirmativas de Jerônimo. Seja como for, também ele admite um texto composto em língua semita, o siríaco-caldaico de que nos fala Renan e que ficou identificado como sendo o texto primitivo de Mateus, destinado às primeiras comunidades judeo-cristãs. No seu entender, seria prematura qualquer conclusão definitiva que resulte num posicionamento claro do que se chamaria o Evangelho dos Hebreus no contexto do cristianismo primitivo.

Mas voltemos, para prosseguir, a Renan, que lembra a opinião de alguns pais da Igreja, segundo os quais o Evangelho dos Hebreus "é muito semelhante" ao evangelho grego, conhecido como o de Mateus. Acha ele, contudo, que a composição do texto atribuído a Mateus é bem mais complexa.

De qualquer maneira, a extinção da comunidade de judeus cristãos, na Síria, resultou no desaparecimento do texto semítico. Sobreviveram traduções gregas e latinas algo discordantes. Segundo Renan, o nome de Mateus somente foi atribuído a esse Evangelho depois da redação final, em grego.

Quando a pregação cristã começou a expandir-se entre os gentios, ou melhor, fora do ambiente estritamente judaico, onde prevalecera, nos primeiros tempos, a necessidade de uma tradução grega tornou-se não apenas evidente, mas premente. Mesmo assim, o texto primitivo de Marcos, que resolveria esse problema, não parece ter surgido com a urgência desejada. Sabe-se que ele acompanhava Pedro, como seu discípulo e intérprete; Pedro fazia a pregação em sua língua nativa, enquanto Marcos, de origem grega, como sabemos, embora nascido, provavelmente, em Jerusalém, incumbia-se de traduzi-la para os ouvintes de língua grega.

Foi, portanto, João Marcos o redator mais credenciado para a tarefa. De tanto ouvir Pedro falar sobre aquelas coisas e de tanto repeti-las, em grego, para seus ouvintes, deveria ter de memória não apenas os ensinamentos de Jesus, segundo Pedro, mas também o relato sumário sobre a vida e a personalidade de Jesus. Não nos esqueçamos, ademais, que durante algum

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tempo ele trabalhou ao lado de Barnabé, seu tio, na divulgação da doutrina de Jesus.Barnabé e sua irmã, mãe de Marcos, eram originários de Chipre e, portanto,

familiarizados com a língua grega, embora judeus, pois ele era levita no templo, antes de conhecer Jesus. Marcos foi, assim, um autor predestinado. Suas anotações reportam-se, no mínimo, a dois depoimentos de discípulos imediatos, daqueles da primeira hora, testemunhas oculares de parte considerável do ministério de Jesus, ou seja, Pedro e Barnabé. Isto sem contar Paulo que, após um período de desentendimento com Marcos, menciona-o, numa de suas epístolas finais, como colaborador.

Em suma e voltamos a Renan "como documento histórico, o Evangelho de Marcos tem grande importância. Sente-se a impressão forte deixada por Jesus. Vemo-lo realmente vivo e em ação".

Sem dúvida, é a primeira tentativa de esboçar uma biografia de Jesus, além de conferir alguma sequência aos seus ensinamentos.

Surpreendentemente para um cético, Renan deposita confiança quase ilimitada no Evangelho de Marcos, embora reconhecendo alguma "influência retroativa" para acomodar determinadas passagens ao espírito de épocas subsequentes. E conclui:

Exceto em certos detalhes em que diferem dos manuscritos e os pequenos retoques sofridos por quase todos os escritos cristãos, não deveria haver grandes aditamentos depois de ter sido composto.

Tenho minhas dúvidas de que isso possa ser aceito sem reparos. Não é, pelo menos, a informação que temos hoje, mas é certo que o texto original de Marcos é fundamental na elaboração dos demais evangelhos, até mesmo o de João, conforme nos assegura Alfred Loisy (39).

Segundo informou o Presbítero João a Papias, no início do segundo século, "Marcos, intérprete de Pedro, escreveu exatamente, mas sem ordem, tudo o que se referia às palavras e aos atos do Cristo. Ele não viu nem ouviu ao Senhor, mas seguiu, como já tive ocasião de dizer, a Pedro, que fazia sua pregação segundo as indicações do momento e não segundo uma complicação metódica dos dizeres do Senhor. Assim sendo, Marcos nunca erra, mesmo porque, escrevendo apenas sobre reduzido número de fatos da vida de Jesus, fé-lo de memória e porque não querendo omitir coisa alguma do que ouvira, não deixou escapar nenhuma falsidade".

Ainda segundo Renan, contudo, o Evangelho de Marcos ressentiase de certa secura e frieza, por lhe faltarem as belas imagens poéticas dos textos siríaco-caldaicos, há pouco mencionados. Pedro terá sido mais prosaico, pouco interessado em episódios que talvez considerasse secundários, como os da infância de Jesus ou sua genealogia.

Daí teria surgido o texto mais ampliado que, com algumas alterações, é o que hoje conhecemos como sendo o de Mateus, não apenas baseado, mas praticamente copiado do de Marcos, do qual preserva a estrutura e muitos dos dizeres, quase que palavra por palavra. Muita coisa, contudo, lhe teria sido acrescentada, no decorrer desse processo de colagem. Renan procura identificar certas cicatrizes no texto e conclui que, retiradas as enxertias, ficaríamos com o texto primitivo de Marcos, o que me parece um tanto forçado. Acha ainda, que, "dessa maneira, foram acolhidas no texto evangélico muitas lendas que não constavam do texto de Marcos".

Também aqui eu não poria que foram muitas, nem que foram lendas. Parece mais correto atribuir-se uma parte de tais acréscimos a depoimentos outros, nem todos necessariamente fantasiosos, apenas lembrados posteriormente. A dificuldade consiste aqui em separar o falso do verdadeiro, o genuíno do fantasioso. Não há dúvida, porém, de que há arranjos visivelmente imaginativos para acomodar situações e dogmatismos subsequentes.

De qualquer modo, a conclusão de Renan acerca dessa interação Marcos/Mateus parece aceitável e digna de consideração. Segundo ele, o texto primitivo de Marcos seria o "único

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documento autêntico da vida de Jesus". O de Mateus, contudo, é, na sua opinião, "o livro mais importante do cristianismmo, o mais importante que se escreveu", isto por causa dos sermões de Jesus "fielmente reproduzidos e talvez na ordem cronológica em que foram escritos". O que, mais uma vez, nos leva à relativa convicção de que tenha sido mesmo de Mateus a primeira coletânea de "ditos do Senhor".

Houve, portanto, uma fertilização cruzada entre os dois textos. 0 Evangelho de Marcos incorporou importantes pregações de Jesus contidas em Mateus e este serviu-se da estrutura do relato de Marcos para introduzir as iogia originais, provavelmente com alguns inevitáveis bordados.

Renan procura demonstrar essa hipótese com os aramaísmos encontradiços em Marcos, ou seja, o redator final desse Evangelho tinha diante de si um texto em língua semítica, provavelmente o chamado Evangelho dos Hebreus, usualmente identificado como de autoria de Mateus.

Por outro lado, o Evangelho Segundo Mateus, ou seja, segundo as anotações atribuídas a Mateus, conferia ao texto uma autoridade apostólica que faltava ao de Marcos. Embora tendo resultado da pregação de Pedro, ou seja, como sendo o Evangelho que Pedro não escreveu, era de responsabilidade redacional de Marcos, logo, em segunda mão. Se isto é aceitável, então o Evangelho de Mateus, como o conhecemos, talvez tenha pretendido substituir nas igrejas do Oriente Médio, o texto de Marcos, que começava a penetrar por toda parte, por estar redigido em grego, o Esperanto da época, enquanto os "ditos do Senhor" ainda se encontravam em aramaico, ou melhor, em siríaco-caldaico, e, portanto, acessível apenas a um círculo bem mais reduzido de leitores e ouvintes.

Nas suas andanças pelo mundo, a pregar, alguns apóstolos levavam suas anotações em aramaico, inacessíveis à grande maioria de seus ouvintes e possíveis leitores. Eram notas pessoais, lembretes, esquemas, parábolas e ditos de Jesus.

É evidente que não somente a narrativa de Marcos e a de Mateus circulavam pelas comunidades cristãs; ao contrário, antes de encerrar-se o primeiro século da era cristã eram muitos os textos existentes, como se infere claramente da Introdução que aparece em Lucas e que transcrevemos na entrada deste módulo do livro. E de supor-se, ainda, que muitos desses textos fossem confusos, contraditórios entre si e em si mesmos, bem como de pouca confiabilidade histórica, como se pode atestar pela variedade de escritos que a Igreja rejeitaria como apócrifos, palavra que, neste contexto, tem a conotação de falsos.

Lucas resolveu botar um pouco de ordem nessa balbúrdia. Pesquisou documentos existentes e conferiu episódios e ditos com os remanescentes da primeira geração. Ele conheceu pessoalmente, pelo menos, a Pedro e a Barnabé e, provavelmente a outros apóstolos, uma vez que se integrou logo cedo na comunidade cristã de Antioquia. Não nos esqueçamos, ainda, de que ele foi intimo amigo e companheiro de Paulo que, embora sem ter conhecido pessoalmente a Jesus, foi, inegavelmente, o grande formulador da estrutura doutrinária da Igreja nascente, tal como entendia o pensamento de Jesus. Acresce que Lucas é o autor dos Atos dos Apóstolos, tendo, portanto, acompanhado de perto as primeiras movimentações de um organismo doutrinário e eclesiástico que nascia e crescia como um ser vivo.

Supõe Renan que, ao escrever o seu relato, Lucas tinha diante de si o texto de Marcos, além de outros documentos. Conclui que Lucas não dispunha do texto de Mateus. O que Lucas aproveitou de Mateus é o que já estava em Marcos, mas, nas passagens que faltam em Marcos, Lucas teria recorrido a textos diferentes dos de Mateus.

A seção que vai do versículo 51 do Capítulo 9 até ao versículo 14 do Capítulo 17, em Lucas, Renan supõe tenha sido transcrita de outra fonte. Supõe mesmo o autor francês que Lucas pudesse ter uma tradução grega do Evangelho dito dos Hebreus, mas isso é estranho, se considerarmos que esse documento é tido por muitos como o próprio texto primitivo de

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Mateus.Quanto à fecundação cruzada dos diversos textos, vale a pena recorrer a algumas

observações dos nossos amigos protestantes, sempre atentos aos números e ás formulações estatísticas.

Encontramos em O (MOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA referências interessantes: dos 661 versículos de Marcos excluídos Mc. 16:9-20 606 são encontráveis, sob forma condensada, em Mateus, enquanto 380 dos mesmos 661 aparecem em Lucas, ainda que com redação, às vezes, diferente.

Para dizê-lo de outra maneira: dos 1.068 versículos de Mateus, cerca de 500 contêm, em substância, o que se acha em 606 versículos de Marcos, ao passo que dos 1.149 versículos de Luca£, cerca de 380 estão em Marcos. Apenas 31 versículos de Marcos não são encontrados nem em Mateus, nem em Lucas.

Por outro lado, Mateus e Lucas contam, cumulativamente, com cerca de 250 versículos cujo assunto não é encontrado em Marcos. Cerca de 300 versículos de Mateus não figuram em nenhum dos outros evangelhos.. O mesmo acontece com 520 versículos, que somente em Lucas são encontrados.Às vezes notamos com clareza certas nuances mais óbvias que distinguem um texto de outro. Lembra Renan, por exemplo, que, em Ma157teus, Jesus é pouco amável com relação ao território da Samaria e chega a aconselhar seus discípulos a evitarem os samaritanos. Já em Lucas, pelo contrário, Jesus parece favoravelmente inclinado para eles. Vários episódios significativos em Lucas ocorrem na Samaria, ao passo que em Mateus e Marcos tais cenas têm por ambiente a Galileia.

Acha ainda Renan que Lucas inventou episódios como o da conversão do bom ladrão, ou o grupo dos 70. De minha parte, eu não poria as coisas dessa maneira, especialmente quanto aos 70. Será que Jesus limitou-se precisamente aos doze? Acho mais razoável admitir que isso foi um arranjo posterior para ajudar a divulgação de suas ideias entre os judeus, atribuindo, teoricamente, um apóstolo para cada tribo de Israel. E uma hipótese a considerar, creio eu, mesmo porque há dúvidas quanto à exatidão desse número nos próprios textos primitivos, como nas Epístolas de Paulo que não devemos esquecer foram escritas antes dos Evangelhos. Não apenas Paulo afirmava com veemência seu 'status' apostolar, como atribui o mesmo título a Barnabé. Em sua carta aos Gálatas, Tiago figura como apóstolo. Em Romanos, menciona ele, nessa posição, Andrônico e Júnia, o que também é de supor-se quanto a Silas, seu companheiro de trabalho, embora não explicitamente.

0 número doze, neste caso, seria muito mais uma exigência do contexto messiânico judaico do que uma realidade histórica. Era suposto ter o Messias doze apóstolos, um para cada tribo de Israel. Em mais de uma passagem, vemos alguns deles a disputarem tais ou quais posições num eventual governo messiânico, mas isto não quer dizer que fossem rigorosamente doze pessoas e sim que, no caso de implantar-se o regime político messiânico, apenas doze seriam escolhidos dentre os que acompanhavam Jesus.

Por isso parece seguro concluir-se que o número doze teve caráter meramente simbólico, enquanto o número real de discípulos diretos parece ter sido bem maior. Há mais de uma referência aos que iam a frente do grupo para preparar, em cada cidade ou região, a tarefa de Jesus. Em outro ponto são mandados, de dois em dois, a pregar e curar os doentes. Se o Cristo contasse apenas com doze, teria somente seis grupos de dois a enviar e ficaria praticamente sozinho. Acresce que o grupo que seguia a Jesus nas suas jornadas, incluía mulheres e, obviamente, muitos que nem chegaram a identificar-se com um rosto e um nome para a posteridade.O mais provável, portanto, é que tomando conhecimento desses fatos nas suas pesquisas, Lucas, sempre cauteloso e conciliador, preferiu manter o número doze, que a tradição consagrara, para não dificultar a pregação do Evangelho às comunidades judaicas, mas

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decidiu testemunhar sutilmente que o grupo não era de apenas doze. Para isso, o número mais indicado era, de fato, o 70, que conta com respeitável suporte na tradição bíblica, desde Moisés.

Creio legítimo, por conseguinte, concluir que se Lucas inventou algo aqui, foi apenas o número e não as personalidades históricas dos demais apóstolos, além dos doze especificamente mencionados.

Estaríamos alongando demais os comentários neste ponto se entrássemos a examinar a apreciação crítica de Renan acerca de Lucas. Convém, contudo, dizer um mínimo. O historiador francês considera "ebionismo puro" a doutrina de Lucas, na sua glorificação da pobreza. No mais, é tudo de uma suave poesia, obra quase de artesanato, na qual, no entender de Renan, foi sacrificada uma boa parte da verdade, em favor da beleza poética da narrativa, especialmente nos relatos sobre o nascimento e a infância de Jesus e sua paixão, morte e ressurreição.

Ao referir-se aos hebraísmos no relato da infância, tanto a de Jesus como a de João Batista, assinala o autor francês que esses trechos em nada se parecem com o prólogo, de puro estilo grego. "Esta parte da obra é mais judaica do que o resto" escreve ele.

Para ele, as narrativas de Lucas são "muito belas e pouco históricas" e seu texto "um evangelho emendado, completado e fortemente comprometido com a lenda". Em resumo: "O valor histórico do terceiro evangelho é menor do que o dos dois outros".

Como se vê, Renan é um tanto severo com Lucas, ou melhor, com o texto que hoje conhecemos com o nome desse autor. Chega mesmo a deixar sutilmente sugerido que Lucas teria inaugurado o período dos textos fantasiosos que iriam, logo a seguir, constituir os apócrifos, nos quais as coisas mais incríveis são narradas a sangue frio, em desrespeito evidente às fronteiras entre realidade e fantasia.

Ainda que se considere superada a posição crítica de Renan, podese dizer que não mudou muita coisa desde que ele escreveu seu estudo, há mais de um século. Não temos a mínima condição de repassar aqui todo o material existente sobre o assunto, por muitos e óbvios motivos. Vamos, pois, ignorar cento e poucos anos de debate e retomar o exame da questão em outra amostragem histórica, desta vez o livro de Hennecke (41), cuja primeira edição foi publicada na Alemanha, em 1959.

Na sua opinão, a teoria das duas fontes prevaleceu como a mais clara explanação aos problemas suscitados pela formação dos textos sinóticos.

Segundo essa teoria escreve ele o evangelho de Marcos é o mais antigo e foi usado por Mateus e Lucas, os quais, por sua vez, utilizaram-se também de outra fonte (a chamada Fonte dos Ditos, isto é, Q) ao comporem seus respectivos evangelhos. Posteriormente, Mateus e Lucas incluíram material cuja origem, em alguns casos específicos, é realmente difícil de ser explicada. Mateus e Lucas adaptaram, independentemente, esse material aos seus objetivos teológicos especiais. Marcos, contudo, ao qual é atribuída a honra de haver composto o primeiro evangelho escrito, também coligiu, arranjou e combinou tradições antigas. Se tais tradições estavam já fixadas por escrito não pode ser provado com rigor, mas que tinham tais características é de supor-se, sendo de admitir-se, de qualquer forma, que a Fonte Q já existia por escrito.

O quadro geral esboçado por Hennecke parece aceitável. Com uma única ressalva que exponho por convicção pessoal e não por autoridade, da qual não disponho. Continuo achando que os "ditos do Senhor", isto é, as primitivas e originais logia foram elaboradas por Mateus e, posteriormente, levadas ao texto de Marcos, no qual foram encaixadas, não por Marcos e nem por Mateus, pessoalmente, mas pelos relatores subsequentes. Se essas logia são ou não identificáveis com a Fonte Q é algo que não me cabe decidir.

Quanto às tradições orais, fontes primárias de todo esse material, Hennecke imagina a hipótese das "diminutas unidades", ou seja, fragmentos esparsos que iriam constituir o que

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ele chama de "pedras de construção", algo como tijolos que vão sendo penosamente reunidos e começam a ser montados para formarem o edifício evangélico.

Também me parece inteligente e aceitável a proposta de Hennecke sobre as posturas individuais de cada texto.

A forma literária conhecida como evangelho teria sido criada por Marcos com seu texto primitivo. Sua concepção foi a de um Jesus que traz a boa nova para a humanidade. Já em Mateus, a despeito de sua conexão com o texto de Marcos e com a chamada Fonte Q, a história de Jesus é apresentada sob ótica diferente, mais fiel a tradição judeo-cristã: "Jesus é o rei de Israel e comenta com autoridade a lei". Em Lucas, o material tradicional tem ainda outro arranjo, ao extrapolar seu relato de suas próprias fontes, com exclusão do problema da parousia, isto é, o retorno imediato do Cristo para lançar o tema da salvação.

Lembra Hennecke que, por uma questão de conveniência metodológica, Lucas deixou o problema da parousia para ser tratado nos Atos dos Apóstolos, onde, aliás, não poderia tê-lo ignorado, de vez que constituía aspecto relevante na pregação da época.

Sobre o evangelho de João, seu enfoque é totalmente diverso, embora reconhecendo que seja difícil determinar com precisão em que difere ele dos três sinóticos. E certo que o texto dos sinóticos não foi ignorado em João, ou, então, têm os quatro a mesma fonte comum. Nada disso está decidido a esta altura.

Ressalte-se, em Hennecke, sua cautela com o problema da autoria. Ele não se refere aos textos sob exame como sendo de Mateus, Marcos, Lucas ou'João e sim, com a expressão "o autor do Evangelho de... (Mateus, Marcos, Lucas ou João), pois sabe muito bem que nenhum dos textos de que dispomos pode ser atribuído, em sua integridade, àquele cujo nome ostenta. Mesmo admitindo que eles contenham um núcleo primitivo de autoria desses narradores, tornou-se impraticável identificar, com precisão, o que pertence a quem.

Para efeito de uma terceira e última amostragem que, somada ás demais, possa levar-nos a um consenso de opiniões acerca dos textos evangélicos, proponho que se recorra à Bíblia de Jerusalém.

Sabemos que a obra de Renan começou a ser publicada em 1863, com a sua VIDA DE JESUS, vimos que a de Hennecke é de 1959 e observamos que a BÍBLIA DE JERUSALÉM, sob o título LA SAIIMTE BIBLE, foi publicada em 1973, sob a direção da École Biblique de Jerusalem.

Ressalvadas certas posturas dogmaticamente católicas que permanecem no âmbito da fé as pesquisas realizadas pelos seus organizadores são da melhor qualidade e do mais alto nível. Citaremos, para ilustrar, um só exemplo: o da interferência pessoal do Espírito Santo como manifestação da Trindade Divina, na elaboração dos textos. Trata-se de questão doutrinária de fé católica, que, por certo, respeitamos como tal, mas que nos parece corpo estranho em exposição, digamos, científica, como pesquisa historiológica, da qual resultou o estudo oferecido pela erudita e competente Escola de Jerusalém.

Enfim, isto é simples opinião pessoal minha e não afeta a qualidade intrínseca do material expositivo contido nas várias introduções elaboradas para os diversos conjuntos de livros bíblicos, e nem nas inúmeras notas de rodapé, de que está referto o livro. Muitas destas últimas também oferecem interpretações puramente dogmáticas, como já temos visto, destinadas ao leitor católico. O que não impede que o leitor não-católico encontre nelas, como nas introduções, informações da melhor qualidade. É sempre possível ao leitor atento distinguir informação de opinião.

Quanto aos aspectos que estamos debatendo neste módulo do livro, a opinião exposta na Bíblia de Jerusalém não difere muito do que se tem hoje por consensual e pode ser resumida com certa brevidade.

Mateus, um dos doze, teria sido o primeiro a fixar, por escrito, os ensinamentos de Jesus. Fê-lo em aramaico, na Palestina, dirigindo-se, primordialmente, aos cristãos de origem

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judaica. Só posteriormente foi esse texto vertido em grego.Em seguida, escreveu Marcos, intérprete de Pedro, e que também serviu junto de Paulo e

Barnabé (As informações insistem em dá-lo como primo de Barnabé, mas reiteramos que foi sobrinho deste). Seu livro, redigido em Roma, em língua grega, fixava por escrito o que Pedro pregava oralmente.

Lucas foi o terceiro evangelista, em ordem cronológica. Escreveu em grego, apoiado no testemunho de Paulo, tal como Marcos apoiara-se no de Pedro. É também o autor dos Atos dos Apóstolos.

A Escola de Jerusalém acolhe, com algumas reservas, a teoria das duas fontes no processo de elaboração dos textos sinóticos. Uma das fontes seria Marcos, que servira tanto a Mateus como a Lucas. Estes dois, contudo, teriam se utilizado de outra fonte, em busca dos 'ditos do Senhor', ou seja, as logia, muito reduzidas em Marcos. Este seria o documento Q, que já serviu até de tema para uma arrojada novela tipo histórico-policial.

Acham, contudo, os autores da Introdução da Bíblia de Jerusalém que a Fonte Q não explica tudo. E mais: uma reconstituição da Fonte Q a partir dos textos hoje conhecidos produz um documento híbrido, sem identidade própria, sequer verossímil.

Para esses autores, a elaboração dos sinóticos passou por três fases distintas a partir da pregação oral dos apóstolos.

A primeira etapa constituída por quatro documentos básicos, montados com a ajuda do primeiro relato de Mateus, de uma fonte não identificada, à qual os franceses atribuíram a letra S (de source = fonte) e de um "evangelho arcaico", que se infere nas origens dos relatos sobre a paixão e ressurreição de Jesus, em Lucas e João.

Na segunda etapa, esses documentos foram recombinados, passando por arranjos e reformulações redacionais. Daí teria surgido um novo texto de Marcos, que ainda não é o que hoje conhecemos. Esta teria sido a forma intermediária que serviu para elaborar o texto atribuído a Mateus, bem como ao de Lucas. Acontece, porém, que a redação primitiva de Lucas o chamado Proto-Lucas, desconhecia o texto de Marcos, mesmo na redação intermediária há pouco referida.

Finalmente, na última das três fases, o Evangelho que levava o nome de Mateus foi totalmente refundido com auxílio do que então se conhecia como o de Marcos, que, por sua vez, não atingira também a sua forma atual. Acontece que o próprio Evangelho de Marcos acabou sofrendo influência do de Mateus. Finalmente, as pesquisas de Lucas e suas consultas aos textos então conhecidos e à tradição levaram seu relato a incluir passagens até então inéditas, ou, pelo menos, desconhecidas dos demais autores.

Há, pois, uma redação primária, bem elementar e embrionária, uma intermediária na qual os textos influenciaram-se mutuamente e uma terceira e final que é, aproximadamente, a que hoje conhecemos.

Isto para os sinóticos. O texto de João apresenta problemática diferente. A Bíblia de Jerusalém continua admitindo a autoria básica de João, ou pelo menos, de seus discípulos imediatos, tese que o Abade Loisy rejeita, como se pode ver do seu maciço livro (39). A Escola Bíblica de Jerusalém admite uma "influência bastante forte duma corrente de pensamento" judaico que encontrou sua expressão nos documentos descobertos na década de 40 em Qumrã. No entanto, reconhece honestamente o problema histórico que aí se põe:

- Mas não nos iludamos: a concepção da história, que o quarto evangelho supõe, difere profundamente da ideia que dela se faz o historiador moderno diz a Introdução aos textos de João.

Para esses estudiosos, no evangelho de Marcos o tema básico é o da manifestação do messias crucificado; para Mateus, é o drama, em sete atos, da expectativa do Reino dos Céus; para Lucas, o enfoque principal é o de uma "psicologia religiosa", ao passo que para João, é o mistério da encarnação do logos.

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Resulta do que ficou exposto nessa ligeira e reconhecidamente arbitrária amostragem que não é por acaso que os textos evangélicos, especialmente os sinóticos, concordam entre si e nem porque seus autores soubessem a mesma história e a relatassem da mesma maneira. Houve entre eles intensa e extensa interação e recíprocas influências. Por uma respeitável tradição, que se reporta a documentos primitivos de que não dispomos mais ou se acham cautelosamente escondidos conservou-se a identificação de cada um dos quatro evangelhos com uma personalidade do cristianismo primitivo: Mateus, Marcos, Lucás e João. Sabemos hoje, contudo, que há textos de Mateus em Lucas, Marcos e João, bem como textos de Marcos nos demais, ainda que praticamente nada de João nos sinóticos, dado que o quarto evangelho é de redação mais recente em relação aos três primeiros.

Nenhum dos textos de que dispomos hoje recua além das proximidades do ano 180 e nenhum deles pode ser identificado estritamente com os autores de que ostentam os nomes. São documentos escritos, no máximo, segundo anotações de cada um deles. Colhe-se em Ambrogio Domini (49) a informação de que...

— O manuscrito mais antigo que conhecemos destes textos remonta ao período final do século IV depois de Cristo; foi composto, pois, mais de duzentos anos depois da fixação do texto canônico.

Os eruditos da Escola Bíblica de Jerusalém supõem que os primeiros textos que serviram de base aos futuros evangelhos teriam sido escritos entre os anos 40 e 50. Seriam, pelo menos, anteriores ao ano 70. Isto, quanto aos sinóticos, ao passo que o de João somente teria sido divulgado, na sua redação primitiva, mais para o fim do século.

Daí até o ano 180, vai cerca de um século, durante o qual não sabemos o que aconteceu, pois nenhum dos primitivos textos da primeira fase sobreviveu ou foi até agora descoberto. Tanto a Fonte Q como a S continuam sendo, para efeitos práticos, ficções mais desejáveis do que prováveis, como a teoria do elo perdido na evolução humana. Algo de que se necessita para preencher uma lacuna inexplicável, mas que um dia poderá ter alhures a explicação definitiva ou, pelo menos, admissível.

Na opinião de Guignebert, os documentos que registram a tradição oral sobre Jesus tendem "progressivamente a descartarem-se da realidade histórica e a substituí-la pela lenda edificante".

Isto aconteceu, em certa extensão, principalmente com relação ao Evangelho de João, que até mesmo a Escola Bíblica de Jerusalém admite ter resultado "de uma lenta elaboração, incluindo elementos de diferentes épocas, bem como retoques, adições, redações diversas de um mesmo ensinamento, tendo sido publicado tudo isso, definitivamente, não pelo próprio João, mas após sua morte, por seus discípulos".

Por isso, o Quarto Evangelho se ressente de um plano lógico, ou pelo menos, sequencial, como também admitem os eruditos de Jerusalém. Loisy declara enfaticamente que o capítulo 21 de João é uma adição tardia.

De certa forma, isso é válido para os quatro textos, pois, como vimos, há acomodações à doutrina da Igreja nascente e suturas que indicam enxertias mais ou menos óbvias.

Isto, porém, não quer dizer que os textos se tornassem inaproveitáveis para sempre. Mesmo Guignebert, usualmente tão severo, admite que...

... fazendo toda e qualquer concessão à corrupção editorial, sempre admissível, é possível que as logia encontradas pelos evangelistas em Q eram substancialmente autênticas.

Isto significa, portanto, que, embora aspectos históricos ou biográficos sobre Jesus possam ter sofrido considerável distorção para acomodarem-se à imagem dele que começou a ser montada a partir do segundo século, a sua doutrina está substancialmente preservada nos textos.

Podemos até admitir como válida, ou pelo menos digna de consideração séria, a hipótese de Guignebert de que a própria metodologia da narrativa tenha sido alterada, de vez que

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"tornou-se necessário para eles (apóstolos) provarem a si mesmos e aos outros que Jesus era o Messias esperado pelos Judeus e que ele viveu, agiu e falou como tal". Em consequência, a elaboração dós textos teria sido feita "em reverso, da ressurreição para a natividade".

Um conceito tranquilizador se destaca, por conseguinte, do que acabamos de ver: é o de que, a despeito de ressalvas e incertezas mais ou menos graves, os textos evangélicos preservam as linhas mestras do pensamento de Jesus e de sua extraordinária personalidade. Segue-se uma conclusão lógica e óbvia: a pedra de toque para testar a autenticidade de qualquer doutrina que se intitule cristã foi e continua sendo o Evangelho. E no confronto com os textos que se decide a validade ou não de postulados, conceitos, rituais, sacramentos e recomendações de natureza ética. Foi precisamente por assim entender-se que, desde muito cedo, iniciou-se a prática condenável de reescrever textos que se chocavam com as teorias e dogmas nascentes, na tentativa de pô-los ao abrigo de ataques demolidores, sob a cobertura da autoridade evangélica.

Se não havia nos textos suportes para este ou aquele aspecto, esta ou aquela novidade doutrinária, era preciso modificá-los e alterá-los, suprimir ou acrescentar palavras, frases ou capítulos inteiros, se necessário, como diz Loisy a respeito do Capítulo 21 de João.

A vista dos textos de que hoje dispomos é possível, com certa paciência e habilidade, identificar, aqui e ali, onde foram batidas as estacas de apoio para os conceitos dogmáticos montados, principalmente nos dois primeiros séculos, bem como para introduzir procedimentos ritualísticos ou doutrinas subsidiárias, cujas enxertias são denunciadas de maneira quase gráfica nas cicatrizes.

Ao optar-se pela divinização de Jesus, por exemplo, e como os textos não a autorizavam, pelo contrário, desautorizavam-na explicitamente, uma fraude "piedosa" colocou na boca de Tomé a incrível exclamação: "Meu Senhor e meus Deus!", como já comentamos, em contradição com a coloração reformista, mas basicamente judaica, do cristianismo dos primeiros tempos. Não apenas Jesus frequentou regularmente as sinagogas, e até pregou nelas, como se vê em mais de uma passagem, mas também os apóstolos continuaram a frequentar o templo, mesmo depois que o Mestre partiu desta vida. E na porta do templo que Pedro cura o paralítico. A liderança da comunidade cristã em Jerusalém, assumida por Tiago, irmão de Jesus, confirmou práticas judaicas em todo o seu rigor ritualistico. Vimos um exemplo dramático disso na questão fechada em torno da circuncisão de Tito, quando Paulo e Barnabé lutavam pela universalização do cristianismo. Tiago assumiu não apenas a liderança, mas a postura de um autêntico "mestre em Israel". E preciso destacar, ainda, que as comunidades primitivas não dispunham dos textos que hoje conhecemos como integrantes do Novo Testamento. As primeiras epístolas de Paulo somente começaram a circular (e não como documentos, digamos, canônicos) a partir do ano 50 ou 51, na carta dirigida aos Tessalonicenses.

Os textos consultados, estudados e comentados na comunidade continuaram sendo os judaicos, ou seja, a Lei e os Profetas, que Jesus fizera questão de confirmar e acatar.

Que um judeu praticante, como Tomé, assumisse a responsabilidade de atribuir a divindade a Jesus, e ainda mais, contra o próprio testemunho de Jesus, é inaceitável; no entanto, a declaração foi introduzida nos textos, com a maior sem-cerimônia.

E já que tocamos no incidente da circuncisão de Tito, vejamo-lo mais de perto, dado que isso também acarretou problemas aos relatos sobreviventes.

Como se sabe, o episódio ocorreu em Jerusalém, no ano 49, quando se tratou de obter a chamada "Carta Apostólica", que autorizava a pregação do Evangelho aos gentios. Tiago acabou decidindo pela concessão, mas com a importante ressalva ritualística de que mesmo os gentios tinham de respeitar o preceito da Lei que vedava a ingestão de carne provinda dos animais sacrificados em rituais pagãos. Isso não foi tudo, porque Tiago impôs também a circuncisão de Tito, que, embora de origem grega e já integrado na comunidade cristã como

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um de seus devotados e fieis trabalhadores, teve de submeter-se ao ritual judaico da iniciação. Com o que se demonstra que ele estava sendo admitido ao judaísmo, em primeiro lugar.

Sei que a leitura do segundo capítulo da Epístola aos Gálatas, na forma em que está hoje redigida e onde Paulo narra o incidente, não autoriza tal conclusão, mas essa é a realidade que, aliás, pode ser demonstrada. Tito foi obrigado a circuncidar-se como precondição ao atendimento da reivindicação de Paulo e Barnabé.

O texto foi manipulado de maneira um tanto desastrada, o que se evidencia pelas fraturas que exibe. Diz lá que "Nem Tito, que estava comigo e era grego, foi obrigado a circuncidar-se". Justamente o oposto se deu, como se pode ver na versão correta da VETUS LATINA e que, no entanto, foi abandonada. Não consta desta última, a negativa com a qual é iniciado o período e nem a do versículo 5, ainda mais incongruente do que a precedente.

Na realidade, o que Paulo quis dizer foi que, por ser grego, Tito não era obrigado a circuncidar-se. Entretanto, o que estava em jogo era importante demais para ser sacrificado por causa de mero capricho ritualístico que, aos olhos de Paulo e de seus amigos, nada mais significava. Desencadeou-se verdadeira guerra de bastidores em consequência da pressão exercida peio grupo conservador para que Tito fosse circuncidado de qualquer maneira. A resistência de Paulo foi heroica. Por uma questão de princípio, entendia ele que os cristãos não estavam sujeitos ao ritual da circuncisão, precisamente porque não permaneceram sob a dependência e tutela da lei mosaica, uma de suas teses prediletas, aliás, e vital a toda a sua pregação. A Igreja de Antioquia, onde a experiência fora testada e aprovada, estava em condições de demonstrar a viabilidade do conceito da universalidade do cristianismo.

Ademais, isso era fato consumado, porque Paulo e Barnabé vieram buscar em Jerusalém não a autorização formal para começar a pregar o cristianismo aos gentios mas para prosseguir e ampliar a divulgação nesse sentido. Desejavam libertar o cristianismo do contexto judaico ortodoxo, observado com rigor pela Igreja de Jerusalém, mas não queriam e não podiam, àquela altura, cortar, de uma vez, os vínculos que o prendiam ao núcleo dos apóstolos primitivos, dos quais emanava sempre a palavra final de autoridade. Ali ficava a Igreja-mater, como se sabe, o "Vaticano" da época, o que caracteriza Tiago como primeiro "Papa" e não Pedro, mais tarde, em Roma, como vimos alhures, neste livro.

Em vista de tudo isso, Paulo cedeu, "por deferência, para que a verdade do Evangelho fosse preservada para vós" (gentios). Não deixa ele, porém, de manifestar sua justa indignação quanto aos "falsos irmãos que se infiltraram para espionar a liberdade que temos em Cristo". Isso porque uma comissão inspetora fora a Antioquia para ver, ou antes, para espionar, como se passavam as coisas por lá e achou que "as liberdades em Cristo" estavam indo longe demais. Entendiam os responsáveis pelo pensamento dominante no movimento, que era imperioso conservar as características judaicas do cristianismo.

Não restou, portanto, a Paulo senão a alternativa de submissão aos rígidos preceitos da Igreja de Jerusalém, que se tornara, ou melhor, se conservara como seita judaica, ainda que não muito bem vista no seio da comunidade que pretendia integrar. Na opinião de Paulo, os intrusos desejavam simplesmente reduzir a comunidade de Antioquia à escravidão, isto é, às práticas do judaísmo, do qual, a duras penas, estavam se libertando. Concordar com esta servidão era renunciar a todas as conquistas da comunidade de Antioquia, ou então, decidir-se pela única opção restante: a da cisão pura e simples, nitidamente indesejável, àquela altura.

Que Paulo estava certo, a história o provou. A seita dos ebionitas, surgida da tendência judaizante do cristianismo nascente, apagou-se com o tempo, enquanto a interpretação liberal de Paulo, literalmente "explodiu" por toda a parte e se consolidou no correr dos séculos.

Talvez tenhamos nos expandido demais na derivação deste comentário que apenas pretendia ilustrar uma concreta e identificável alteração textual no Novo Testamento, mas o exemplo é significativo.

Retomando o fio da exposição, vale considerar que, num grupo no qual são praticamente

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desconhecidas as características pessoais dos apóstolos que são apenas esboçadas em alguns casos é sintomático que Tomé, a imagem do cético, do descrente, do que duvida e contesta, tenha sido, precisamente, o escolhido para dizer que Jesus era Deus, bem como para testar a materialidade do corpo ressuscitado do Mestre. Este aspecto, aliás, conflita com o conceito exposto insistentemente por Paulo, especialmente na sua Primeira Carta aos Coríntios, Capítulo 15, que examinamos em outro local deste livro. E que em lugar da semimaterialização do corpo espiritual de Jesus, como ensina Paulo, a Igreja preferiu optar pela ressurreição do corpo material, ou seja, pela volta da vida ao cadáver. Era preciso, então, fazer alguém como Tomé tocar fisicamente o corpo e introduzir sua mão na chaga lateral do ressuscitado, que os textos vão a ponto de obrigar até a tomar alimento sólido, para deixar bem evidenciado que era mesmo o corpo que morrera na cruz, coisa diametralmente oposta ao que ensina Paulo nas suas epístolas.

Exemplos dessas acomodações textuais são muitos e não teríamos a pretensão de achar que todos estejam identificados ou sejam identificáveis. E pouco provável, contudo, que Jesus tenha, por exemplo, instituído uma Igreja, ou melhor, a sua Igreja, conforme consta em Mateus 16:18. Essa é a única referência específica nos Evangelhos, ressaltandose, naturalmente, que a palavra original grega ekklesia quer dizer comunidade, reunião de pessoas, religiosas ou não. E com essa conotação que começou a ser aplicada, nos Atos e nas Epístolas, ou seja, um local onde se reuniam os cristãos, não como uma Igreja fundada e institucionalizada por Jesus, com a sua estrutura administrativa, ritualística, sacramental e doutrinária.

Em suma, Jesus não fundou a Igreja e nem mesmo igrejas, como Paulo e outros apóstolos. Pregou as suas ideias e deu o seu testemunho. Não estava cogitando de templos de pedra e nem de hierarquias sacerdotais, dogmas ou normas de direito canônico. Sequer de uma teologia, no sentido em que hoje conhecemos esse conceito. Para que igrejas, se ele não cuidara, sequer, de ter uma pedra sobre a qual pousasse a cabeça?

Aliás, essa não é a única incongruência no capítulo 16 de Mateus. Até mesmo a interpelação inicial de Jesus aos discípulos ("Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?"), parece ter sido colocada ali apenas para oferecer encaixe à ideia do "primado" de Pedro, ainda que a pergunta, em si, possa ter sido verdadeira em outro contexto ou oportunidade.

Falamos acima em incongruência e vamos demonstrá-la.É inexplicável que os apóstolos hajam respondido à indagação dizendo que Jesus pudesse

ter sido João Batista ou Elias, além de Jeremias e outros profetas. A ideia subjacente aqui é a do renascimento de fato e não simbólico, discutido alhures, neste livro, mas como iriam os apóstolos admitir a suposição de que Jesus fosse João Batista renascido se este fora seu contemporâneo e, segundo relatos sobreviventes, conheceram e foram tidos até como parentes? Pois não começa todo o ministério de Jesus com João Batista, que o confirma como enviado de Deus e o batiza? De que maneira poderia Jesus ser João Batista?

Seja como for, lá está, em Mateus, a formal instituição da Igreja (minha Igreja), a ideia do inferno e a de que Pedro teria em suas mãos as "chaves do Reino". Do que se depreende que o texto não é somente de duvidosa autenticidade, mas também incompetente, pois não é crivei, nem lógico, que após ter estabelecido as condições, segundo as quais o ser humano herdaria o Reino dos Céus, ou o mereceria por seu procedimento reto, suas virtudes e tudo o mais, Jesus resolva, diferentemente, que a recompensa máxima de um bom cristão não seria mais a resultante de um esforço pessoal na prática do bem e no exercício do amor a Deus e ao próximo, e sim, uma condição aleatória indefinida, que ficaria inteiramente ao arbítrio de Pedro e, por extensão, de seus sucessores, somente porque a Igreja, mais tarde, considerou-o seu primeiro Papa.

Resta, ainda, um importante aspecto nessas deformações textuais: escamoteou-se a

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realidade histórica de que o primeiro dirigente da comunidade cristã a despeito de sua rigidez tradicional judaica foi Tiago, irmão de Jesus e não Pedro. Como, porém, o ramo do cristianismo que desejava permanecer no âmbito do judaísmo perdeu-se pelos caminhos da História, e o centro de decisões deslocou-se para a Roma dos Césares, tornou-se conveniente introduzir no texto o dispositivo constante do capítulo 16, de Mateus, para assegurar que Jesus havia fundado a sua Igreja, que Pedro fora quem primeiro atestara sua condição messiânica e, por isso, ficava como preposto do Cristo, com poderes sobre as "portas" do Inferno e as do Reino dos Céus. Em suma: com o controle pessoal da salvação, conceito que fica implícito em todo esse arranjo de palavras que mal disfarça um dispositivo de poder terreno, político.

Insisto em dizer que o episódio pode conter um núcleo de verdade.E de presumir-se que Jesus haja desejado saber, em algum ponto de seu ministério, que opinião tinham as pessoas a seu respeito, mas que daí haja extrapolado toda a consagração de Pedro como dirigente supremo da sua Igreja, com todos os poderes que lhe são conferidos pelo texto, é tão inaceitável como confundir, infantilmente, o próprio Cristo com João Batista, seu contemporâneo.

Não deixa, pois, de ter razão Guignebert, ao declarar que o texto foi escrito retroativamente, ou seja, depois de montada, em escala mundial, a estrutura da Igreja, da qual Pedro é colocado como primeiro Papa, sintomaticamente junto à sombra política dos Césares, então, voltase aos textos para fazê-los dizerem precisamente o que interessa à nova imagem que se pretende para a instituição, com o que se procura autenticar a situação vigente como outorga direta e explícita de Jesus. Não deixa de ser estranho, contudo, que somente em Mateus conste o registro de tão importante evento, ao passo que Marcos, amigo pessoal de Pedro e que o seguiu durante tanto tempo, desde a juventude, em Jerusalém, haja deixado passar a oportunidade de contar episódio de tão transcendental importância para seu mestre e amigo, em particular e para a Igreja, em geral.

Como as versões originais das narrativas evangélicas foram deliberadamente destruídas ou desapareceram no correr dos séculos, ficamos sem condições de identificar com precisão tais discrepâncias, a fim de tentar restaurar acomodações, expurgar interpolações ou reconduzir expressões excluídas. Em alguns casos, como no episódio da circuncisão de Tito, é possível detectar uma comprovada deformação, quem sabe até involuntária, mas que ainda persiste nos textos em uso hoje e os confunde. Há, porém, uma interpolação claramente deliberada não menos comprovada, como se pode ver no capítulo 5 da 1a. Epístola de João, que menciona Jesus como vencedor do mundo e prossegue:

- 6. Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo; não com a água somente, mas com a água e o sangue. E é o Espírito que testemunha, porque o Espírito é a verdade. 7. Porque três são os que testemunham: 8. O Espirito, a água e o sangue, e os três tendem ao mesmo fim.

Essa é a versão moderna, expurgada, da Bíblia de Jerusalém. Na tradução de Antônio Pereira de Figueiredo encontramos o seguinte texto, para os versículos 7 e 8:

- 7. Porque três são os que dão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo; e estes três são a mesma coisa. 8. Porque três são os que dão testemunho na terra: o Espírito, a água e o sangue e estes três são uma mesma coisa.

A versão do Padre João Ferreira d’ Almeida é semelhante a essa, aproximando-se mais, contudo, da versão inglesa do Rei James. Assim:

- Porque três são os que testificam no céu: o Pai, o Verbo, o Espírito Santo e estes três são um. 8. E três são os que testificam na terra: o Espírito e a água e o sangue, e estes três concordam num.

Ora, segundo esclarece honestamente a Bíblia de Jerusalém, as palavras em destaque NÃO figuram nos manuscritos gregos e em outras antigas versões e nem nos manuscritos

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mais confiáveis da Vulgata Latina. É lícito, portanto, concluir-se que as expressões sobre a Trindade foram introduzidas

posteriormente, como admitem os eruditos pesquisadores de Jerusalém. As manipulações ocorreram em exemplares da Vulgata que iriam servir a inúmeros tradutores para outras tantas línguas, propagando a alteração promovida com o piedoso propósito de consolidar o dogma da Trindade.

Certamente não é essa a única.A despeito dessas turbulências textuais, insistimos em reiterar que as linhas mestras do

pensamento de Jesus estão preservadas nos Evangelhos e não são tão difíceis de serem claramente identificadas.

Isto nos motivou a uma breve incursão pelo problema do gnosticismo.É o que iremos fazer a seguir.

* * *

II. COMO SE VÊ O CRISTIANISMO PRIMITIVO REFLETIDO NO GNOSTICISMO

As torrenciais especulações em torno do que realmente teria Jesus ensinado na sua pregação oral giram em torno dos mesmos e escassos documentos básicos conhecidos e uns poucos fragmentos descobertos, aqui e ali, mas que não nos levaram, ainda, aos textos primitivos que se supõem elaborados por alguns daqueles que conviveram com ele. Mesmo quando se descobre um esmaecido e remoto papiro ou pergaminho soterrado na poeira dos séculos, é uma tradução de tradução de duvidosa confiabilidade.

Permanece viva a esperança de que, um dia, possamos ter a ventura de localizar, no desvão de uma vetusta biblioteca ou vaso de barro enterrado em esquecidas paragens, textos originais primitivos, virgens de retoques e interferências mutiladoras. Imagino que haja uma razoável probabilidade de que isto ocorra, de vez que, à medida que as comunidades cristãs começaram a difundir-se pelo mundo a fora, difundiam-se também cópias dos documentos primitivos. Mesmo assim, contudo, não poderemos ignorar o processo deformador das traduções, que começou bem cedo e se desenvolveu em paralelo, de vez que era preciso trasladar logo os textos para a língua local.

No que respeita ao Antigo Testamento, por exemplo, um jovem árabe, por nome Muhammed ad-Dhib, suscitou verdadeira agitação internacional entre os eruditos, ao descobrir, numa gruta nas imediações de Qmram, preciosos textos, que se tornaram famosos sob a categoria geral de Manuscritos do Mar Morto.

Pouco antes, em 1945, outro Muhammed (Muhammed Ali al-Samman) desenterrara uns papiros encadernados em couro, no Alto Egito, nas proximidades de um lugarejo chamado Nag Hammadi.

Desta vez, os documentos interessavam mais de perto aos estudiosos do Novo Testamento por causa dos importantes informes que continham sobre a doutrina dos gnósticos e, por extensão, sobre certos aspectos do cristianismo primitivo.

Ao contrário do que pensa muita gente, o cristianismo dos primeiros tempos não foi um movimento monolítico, nem constituiu um corpo doutrinário unânime.

Exceção feita aos postulados básicos escreve Will Durant (38) os seguidores do Cristo, durante os primeiros três séculos, fragmentaram-se em centenas de credos diferentes.

0 gnosticismo foi uma das mais expressivas dissidências da época. 0 movimento surgiu aí pelo início do segundo século e adquiriu sua expressão máxima na segunda metade desse mesmo século, quando entrou em decadência. Em meados do século seguinte (o terceiro) foi substituído pelo maniqueísmo, no qual algumas semelhanças com o gnosticismo podem ainda ser identificadas.

Dissemos alhures, neste livro, que aquilo que conhecemos como cristianismo é, em boa

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parte, resultante das heresias bem sucedidas; as que não conseguiram vencer ou convencer com as suas ideias foram severamente rejeitadas, quando não esmagadas implacavelmente. Conceito semelhante vamos encontrar em Durant, ao informar que a tarefa da História é a de "iluminar o presente por meio do passado", não lhe cabendo detalhar minuciosamente as inúmeras modalidades de crenças religiosas "que falharam na tentativa de empolgar a Igreja em expansão". Na opinião do eminente historiador, o gnosticismo foi, mais do que uma heresia, um verdadeiro rival da corrente que se definiria como ortodoxa.

Basicamente, o gnosticismo propunha a busca de um conhecimento (gnosis, em grego) dos mecanismos da vida e da morte, por processos místicos.

A descoberta dos documentos de Nag Hammadi veio trazer importante contribuição ao melhor entendimento de certos aspectos, ainda obscuros, quanto à estratificação dos textos evangélicos que hoje conhecemos.

Sempre que documentos dessa importância emergem das sombras de um enigmático e multissecular passado, arma-se um agitado quadro de interesses internacionais que nada fica a dever às mais movimentadas novelas policiais e de aventura. Decorrem, usualmente, alguns anos até que os achados cheguem às mãos de quem tenha condições culturais suficientes para avaliar o seu grau de importância histórica. Segue-se verdadeira batalha campal com antiquários, falsários, intermediários, burocratas e autoridades, a fim de reunir, num só ponto, toda a documentação que, a essa altura, espalhou-se e está sendo sonegada, à espera de melhor preço. Só depois de vencida essa "guerra", pode-se pensar na montagem de uma equipe de especialistas e eruditos para se debruçarem, por mais alguns anos, sobre as preciosidades. E chegado o momento dos anos silenciosos de decifração e interpretação, quando não da armação do vasto quebra-cabeças formado por pilhas de fragmentos de todos os tamanhos e formas, como foi o caso com os Manuscritos do Mar Morto. Ao cabo de tudo isso, fica, ainda, o leitor comum à espera de um ou outro pesquisador que resolva escrever para o grande público, em vez de dirigir-se apenas aos seus colegas, dentro do círculo mais ou menos iniciático da erudição internacional.

Por tudo isso, somente no início da década de 80, começamos a dispor, fora dos circuitos fechados da erudição especializada, dos primeiros estudos sobre os preciosos achados de Nag Hammadi, destinados ao público leigo.

Um desses livros é o da Dra. Elaine Pageis, THE GIMOSTIC GOSPELS (43), inteligente pacote histórico de alto poder explosivo quanto a alguns impactos mais fortes.

Entre outras importantes revelações, a Dra. Pageis nos informa o seguinte:1 Os cristãos gnósticos rejeitavam enfaticamente a ressurreição do Cristo em seu corpo

físico. (ALiás, é o que está também em Paulo, capítulo 15 da la. Epístola aos Coríntios, como vimos alhures, neste livro).

2 Não aceitavam a notícia de que o Cristo havia investido Pedro da autoridade de seu sucessor, com os poderes que conhecemos.

3 Não reconheciam a autoridade sacerdotal, nem a intermediação do clero no processo da chamada salvação. Para eles, o ser humano é depositário de uma centelha divina, sendo a salvação a resultante de um contínuo trabalho pessoal de autoconhecimento.

4-0 poder criador de Deus emana de sua condição simultânea de Pai e Mãe, ou seja, da perfeita harmonização e integração dos princípios feminino e masculino.

5 Mulher e homem são seres espiritualmente equivalentes.6 A pregação de Jesus centra-se nos temas da ilusão e do esclarecimento e não de pecado

e arrependimento. "Em lugar de ter vindo para nos salvar do pecado escreve a Dra. Pageis -, ele veio como um guia, que abre o acesso à realidade espiritual".

7 Em vez de apresentar-se como um ser à parte na criação, inimitável e inatingível pela sua própria divindade, Jesus é um ser de elevada condição evolutiva, mas um ideal possível, um modelo viável para todas as criaturas.

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Em suma, a imagem que emerge desses remotos documentos é a de que o cristianismo dos primeiros tempos é bem diferente do que muitos estavam supondo.

Começamos a perceber agora diz a Dra. Pageis que aquilo a que chamamos cristianismo e aquilo que identificamos como tradição cristã na realidade representam apenas reduzida seleção de fontes específicas, escolhidas entre dúzias de outras. Quem fez tal seleção e por que razões? Por que outros escritos foram excluídos e banidos como "heresias"? O que os tornou perigosos? Pela primeira vez, estamos, agora, tendo a oportunidade de examinar as primitivas heresias cristãs; pela primeira vez, os heréticos podem falar por si mesmos.

Em verdade, muita gente vinha já desconfiada da forma de cristianismo que nos tem sido servida ao longo de todos esses séculos. Ressurreição da carne, inferno, céu, e tantos outros aspectos tornaram-se conceitos inaceitáveis para a mentalidade moderna. Além disso, a teologia cristã tradicional falhou na sua tentativa de explicar racionalmente a contradição entre a ideia de um Deus justo, bom e perfeito, em todos os seus aspectos, e a existência do mal, da dor, da injustiça. Não conseguiu, sequer, demonstrar satisfatoriamente a realidade de uma vida póstuma, em primeiro lugar porque os próprios teólogos e pensadores cristãos de hoje não se mostram convencidos disso.

As divergências entre o que predominou e foi imposto como boa doutrina cristã e o pensamento gnóstico são muitas, portanto, e essenciais. Diria, contudo, que a controvérsia básica centra-se em torno do problema da ressurreição e suas vultosas implicações.

As diversas seitas gnósticas desenvolveram interpretações diversas da ressurreição, mas em dois aspectos parecem concordar: primeiro, não punham em dúvida o fato em si; segundo, não concordavam, de forma alguma, com a ressurreição corporal, ou seja, a restituição da vida ao cadáver de Jesus. Alguns gnósticos consideravam cruamente essa visão literal da ressurreição como a "fé dos tolos". Só um tolo, no entender deles, poderia aceitar como verdade nuclear do cristianismo o conceito de que Jesus retomara a vida, depois de morto, no seu corpo físico, com o qual subira aos céus. Acrescentavam tais pensadores gnósticos que a ressurreição não foi evento singular, único no mundo, a exceção, e sim, a norma, o que implica admitir que conheciam em maior profundidade a questão da sobrevivência do espírito e suas manifestações póstumas. Afirmavam, além disso, que muitas testemunhas dos feitos de Jesus ressurreição inclusive não entenderam o sentido do que estavam presenciando.

O EVANGELHO DE FELIPE, um dos documentos descobertos em Nag Hammadi, chega a ridicularizar os cristãos ignorantes, que consideram a ressurreição literalmente, como revivescência do cadáver.

A presença póstuma de Jesus é fato inquestionável para os gnósticos; não, porém, como uma pessoa viva, na carne, e sim, como manifestação do espírito imortal. É nessa condição que ele continua a revelar-se a certos discípulos dotados de faculdades específicas, por certo e a instruí-los, como o fizera em vida. Paulo, aliás, não faz segredo algum disso; pelo contrário, proclama-o várias vezes e com a veemência habitual de seu estilo vigoroso. O que sabia e pregava não aprendera de nenhum vivente, como ele, mas do próprio Jesus, que só conhecera depois de oficialmente "morto", nas vizinhanças de Damasco, na dramática visão do deserto. Observa-se claramente que o Cristo lhe fez importantes revelações, algumas das quais ele deixa escorrer para os textos das suas cartas. Sutilmente, contudo, informam também que muito do que assim aprendeu, guardou para si mesmo, seja porque teria sido assim instruído, seja porque ele próprio julgara inoportuno dizer tudo quanto sabia.

Em verdade, os textos tidos como de Evangelhos gnósticos, em vez de tentar a biografia de Jesus, do nascimento à crucificação, começam onde os demais terminam, ou seja com os relatos das aparições e colóquios de Jesus depois de morto, com os seus discípulos. O APÓCRIFO DE JOÃO, por exemplo é o que nos informa a Dra. Pageis -, começa com a revelação da profunda tristeza experimentada pelo seu autor ante a crucificação e morte de seu Mestre. Prontamente, Jesus se manifesta a ele e o consola da sua dor e lhe assegura sua

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presença.Fenômenos semelhantes são narrados na CARTA DE PEDRO A FELIPE, também

encontrada em Nag Hammadi, bem como em a SABEDORIA DE JESUS CRISTO. Os relatos são consistentes e concordantes: Jesus se apresenta, usualmente, como uma voz que parece provir de intenso foco luminoso.

O chamado EVANGELHO DE MARIA, segundo a mesma autora, "sugere que a sua revelação procede de uma comunicação direta e íntima" com Jesus, ao que se depreende, por força de faculdades especiais de que era dotada Madalena.

Também o APOCALIPSE DE PEDRO dá notícia do intercâmbio do apóstolo "in deep trance" (em transe profundo), segundo a Dra. Pageis, com Jesus, o que, aliás, se confirma claramente nas duas Epístolas conhecidas de Pedro, no Evangelho Canônico.

Não é difícil, portanto, identificar, agora, com relativa segurança e precisão, onde, como e por que duas correntes poderosas do cristianismo nascente entraram em choque por uma dramática e vital questão de -princípio, fundamental à definição dos conceitos ordenadores da Igreja em formação. O núcleo central das controvérsias está fortemente concentrado naquilo a que venho caracterizando como realidade espiritual, ou seja, a ideia básica de que o ser humano é, essencialmente, espírito (ou alma, se quiseram), inquilino temporário de um corpo físico perecível e descartável, para o qual não há espaço, nem condições de vida póstuma.

Esse espírito preexiste, sobrevive, renasce em novos corpos, comunica-se com os que permaneceram na carne, responsabiliza-se pelos seus erros pessoais, que lhe incumbe resgatar e aperfeiçoa-se lentamente, no correr dos milênios, rumo à perfeição.

A rejeição dessa realidade espiritual constituiu desvio fatal e irremissível, não, porém, impensado e involuntário. Foi, ao contrário, deliberado, no sentido de que representa o dramático desfecho da luta travada entre os primeiros "doutores" e os chamados "profetas". Para colocar a ideia em termos atuais: entre teólogos e sensitivos ou médiuns.

Nos tempos iniciais, logo após a crucificação, os verdadeiros orientadores da comunidade nascente eram o próprio Cristo e outros seres de elevada condição, habitantes do mundo invisível. Ao extinguirem drasticamente o intercâmbio com o mundo espiritual, os sacerdotes que, até então, se conservavam na relativa obscuridade do segundo plano, assumiram os controles, para nunca mais abandoná-los. Condição vital para essa permanência no poder, que se transferia das regiões espirituais para a Terra, foi a sistemática negação das oportunidades de intercâmbio mediúnico. Começara o processo da materialização da doutrina cristã.

O primeiro passo consistiu em transformar o episódio da ressurreição ! dramática demonstração da sobrevivência do espírito imortal numa cena incongruente e impossível, de retorno da vida a um cadáver. A este lamentável equívoco, atrelaram-se outros, em cadeia, pois um cadáver reanimado manifestara-se, teria sido testado e acabara subindo aos céus.

As consequências foram espantosas, pois o centro de gravidade da doutrina deslocou-se do espirito para o corpo de carne. O ser humano não era mais um espírito autônomo na posse eventual de um corpo, mas um espírito condicionado, que só podia viver, integralmente, atrelado a um organismo físico. Daí, outras doutrinas funestas, como a da ressurreição da carne, o juízo final, e outras fantasias incompatíveis com aquilo que Jesus ensinou.

Montou-se, de fato, uma admirável estrutura de poder, que vem resistindo ao embate dos séculos, mas em evidente sacrifício da realidade espiritual.

...em termos de ordem social, como vimos escreve a Dra. Pageis o ensinamento ortodoxo sobre a ressurreição teve um efeito diferente: produziu uma hierarquia de pessoas, através de cuja autoridade todos os demais deveriam ir a Deus. O ensino gnóstico, como bem entenderam Irineu e Tertuliano, era potencialmente subversivo em relação a essa or176 dem: propunha oferecer a todos os iniciados acesso direto a Deus, que sacerdotes e bispos poderiam até ignorar.

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Outro texto gnóstico, O EVANGELHO DA VERDADE, rejeita, sumariamente, o conceito de que a morte de Jesus tenha sido um sacrifício redentor, em favor da humanidade. Para os gnósticos, a crucificação é tida como uma oportunidade de revelar o divino dentro de cada um, não um resgate vicário.

Outras diferenças fundamentais vieram à tona em consequência do atento exame da documentação de Nag Hammadi. O cristianismo ortodoxo, ou seja, aquele que prevaleceu, adotou critérios meramente quantitativos de iniciação, pois queria crescer rapidamente.

Quem quer que confessasse sua crença escreve Pageis aceitasse o ritual do batismo, participasse do culto e obedecesse ao clero era aceito como cristão.

Já os gnósticos não se mostravam interessados em quantidade e sim em qualidade. Preferiam um processo consciente de adesão, uma disposição consciente de auto-aperfeiçoamento, através do conhecimento, da racionalização e do melhor entendimento da realidade espiritual. 0 que distinguia uma comunidade falsa de uma autêntica, para os gnósticos, não era o bom relacionamento com o clero, a marca da servidão obediente, mas "o nível de compreensão dos seus membros e a qualidade do relacionamento entre eles", segundo avaliação feita pela Dra. Pageis.

A rejeição da hierarquia sacerdotal, ou, pelo menos, o posicionamento nitidamente secundário em que foi colocada pelos gnósticos, foi fatal aos destinos do gnosticismo. E aí que está marcada, no antiquíssimo mapa da História, a encruzilhada de muitos destinos e de dramáticas consequências. Foi a partir daquele ponto que os "doutores" da época optaram pelo formato de cristianismo que hoje conhecemos, mais interessado na quantidade e no poder, que se constroi com as maiorias, do que na qualidade e na realidade espiritual, que se contentam com as minorias porque as deseja esclarecidas. Maior milagre não há do que este: que, mesmo dentro dessa estrutura sufocante, a mensagem do Cristo sobreviveu nas entrelinhas, nos textos sofridos e, principalmente, no coração de milhões e milhões de criaturas humanas.

Realmente, o Cristo não fundou igrejas e não pregou a salvação exclusiva, nem atribuiu a ninguém o poder de ligar e desligar. Como pensavam os gnósticos, o ser humano é o artífice da sua própria glória espiritual, que se realiza no ritmo e na medida da sua própria vontade e esforço, à sombra da generosa misericórdia divina e à luz da grande e imperecível mensagem de Jesus, que é, fundamentalmente, a doutrina do amor universal.

No EVANGELHO DE TOME, quando os discípulos perguntam para onde iriam, Jesus responde:

- Há luz dentro do homem de luz e o mundo todo se ilumina. Se ele não brilha, está em trevas.

Em outras palavras, é a doutrina do reino de Deus, como realização pessoal, dado que todos nós já o trazemos, em potência, como herança inalienável, por direito de nascença, pelo simples e maravilhoso fato de sermos todos filhos de Deus.

Encontramos aí, por outro lado, o mesmíssimo conceito formulado por H.G.WelI, referido alhures neste livro: uma vez realizado no ser humano, o reino de Deus estará realizado fielmente no mundo, por inevitável reflexo. Daí a trágica inocuidade de reformas sociais, morais e políticas de fora para dentro; elas têm de vir de dentro para fora, como consequência e não como motivadora da transformação íntima de cada um.

Para muita gente, portanto, são impactantes e desconcertantes as revelações que começam a emergir dos documentos de Nag Hammadi. Sem procurar dramatizar ou enfatizar suas conclusões básicas, a Dra. Elaine Pageis as apresenta com a eloquência natural e singela da verdade.

- Podemos ver, portanto diz ela -, que o gnosticismo foi mais do que um movimento de contestação do cristianismo ortodoxo. O gnosticismo adotou também uma perspectiva religiosa que, implicitamente, se opunha ao desenvolvimento do tipo de instituição em que se

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tornou a igreja católica primitiva.E, mais adiante, no capítulo final:-... as descobertas de Nag Hammadi reabrem questões fundamentais. Elas sugerem que o

cristianismo poderia ter-se desenvolvido em direções bastante diversas.Entende a ilustre pesquisadora que o formato de cristianismo que hoje conhecemos

poderia perfeitamente nem ter sobrevivido como instituição, caso permanecesse multiplicada em inúmeras e complexas seitas, como no início, e ainda rivalizando com os vários cultos pagãos da época. Acha ela que se deve tal sobrevivência às estruturas organizacional e teológica que a Igreja montou para si mesma.

É certo, em princípio, que a Igreja primitiva criou, à sua maneira, condições que garantissem a sua sobrevivência na História, mas isto foi feito com incalculável prejuízo ao verdadeiro conteúdo da doutrina pessoal de Jesus. A Igreja ganhou e, talvez, a História, mas não o ser humano, como indivíduo, que, além de oprimido por séculos de intolerância e dogmatismo obscurantista, perdeu contacto com a realidade espiritual e acabou, sob muitos aspectos, perdendo até o endereço de Deus, por entendê-lo, distorcidamente, como responsável direto ou indireto pelo caos ideológico e teológico de que somos todos testemunhas vivas no presente.

Seria insensato, por outro lado, ignorar a óbvia inferência de que o gnosticismo também se compõe de um conjunto de conceitos selecionados de um universo mais amplo de ideias, mesmo porque, na sua condição de movimento paralelo e rival, como assinala Will Durant, alguns postulados fundamentais eram comuns às várias correntes de pensamento. Igualmente inaceitável seria concluir, maniqueistamente, que todas as ideias acolhidas pelo gnosticismo são boas, válidas e lógicas, enquanto as que contribuíram para elaboração da teologia católica e da estrutura da Igreja, como instituição, fossem todas irracionais. Ante o que começa a emergir dos documentos de Nag Hammadi, contudo, não é difícil inferir-se que prevaleceu, na elaboração da doutrina gnóstica um critério predominantemente qualitativo, ao passo que, na montagem da doutrina ortodoxa, a opção foi quantitativa, dado que o poder de que a hierarquia precisava e desejava para assumir o controle que entendia necessário sobre as massas, tem de apoiar-se no volume, na quantidade, mais do que na qualidade. Era preciso um salvacionismo indireto, a ser exercido, com exclusividade, por uma específica instituição, à exclusão de todas as demais, através de seus próprios organogramas de funções e de poder temporal.

Para os gnósticos, a redenção é tarefa pessoal, intransferível, indelegável e independe de rituais, sacramentos, filiações a esta ou àquela instituição, bem como da cega obediência a um corpo sacerdotal que, aliás, insistia em ignorar importantes aspectos da realidade espiritual ensinada e demonstrada pessoalmente e de maneira inequívoca por Jesus.

Entendiam claramente os gnósticos que todos aqueles que alcançassem nível adequado de conhecimento (gnosis), transcenderiam os ensinamentos ortodoxos e a autoridade da hierarquia eclesiástica. Não é difícil concluir-se, por isto, a razão pela qual a Igreja denunciou a gnose como seita perigosa e tratou de sufocá-la, tanto quanto possível, antes que ela consolidasse sua posição na preferência de muitos.

Se, em lugar de vinte séculos de cristianismo dogmatizado, ritualístico e hierarquizado ignorando deliberadamente a realidade espiritual -, tivéssemos tido outros tantos séculos de um cristianismo qualitativo, como o queriam os gnósticos, certamente estaríamos vivendo outro modelo de civilização.

Com o objetivo de tornar-se verdadeiramente católica universal escreve a Dra. Pageis a Igreja rejeitou todas as formas de elitismo, na tentativa de envolver tantos quanto possível em seus braços. Nesse processo, seus líderes criaram um claro e singelo esquema de estrutura doutrinária, de ritual e de política que demonstrou espantosa eficiência como organização.

Não me parece que o termo elitismo esteja bem aí, dado que a ideia diretriz que produziu

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o modelo eclesiástico que hoje conhecemos só se tornou possível precisamente porque uma elite obstinada e objetiva de dirigentes assumiu consigo mesma o compromisso de pensar, elaborar, expressar e implementar todas as fórmulas de procedimento para aquele que se filiasse à instituição. Mais do que isso, pôs em ação um vigoroso programa de proselitismo que visava, obviamente, à total catolização do mundo, se é que me perdoam o pleonasmo. Criou-se uma estrutura religiosa para ser, não apenas a melhor, mas a única e, que, portanto, não podia ser rejeitada.

Seria desonesto ignorar o fato de que, mesmo dentro desse rígido esquema doutrinário e político, preservou-se alguma coisa dos ensinamentos de Jesus. Não, porém, pelos méritos da instituição ou da sua metodologia de trabalho, mas porque a palavra do Cristo tem, em si mesma, o peso específico e o poder invencível da verdade e a força dinâmica da convicção. A essência de tal mensagem ficou preservada nas entrelinhas dos textos evangélicos, a despeito de mutilações e interferências. Não é sem razão que, por muitos séculos, a Igreja tenha feito o possível para que os textos "torturados" não chegassem às mãos do povo, na língua de cada um. Já não estava tudo pensado e arrumado? Tudo decidido e consolidado? Era só cumprir as determinações canônicas.

A partir do momento em que, em clima de liberdade de opção, na busca individual da verdade, começaram certos postulados básicos a ser questionados, a ortodoxia passou a sentir-se acuada. Tendo optado, anteriormente, pela quantidade, em sacrifício da qualidade, viu-se a Igreja forçada a ignorar preceitos que hoje lhe fazem falta e a deixam sem ter o que dizer ante aspectos de capital relevância ao entendimento dos mecanismos da vida, como sobrevivência, preexistência, intercâmbio espiritual e a doutrina das vidas sucessivas ou dos renascimentos. Basta considerar a singular amplitude, profundidade e implicações deste último aspecto, no entendimento do problema do mal, bem como na controvertida questão livre arbítrio/determinismo, para se ter uma ideia dos conflitos doutrinários subjacentes.

A incongruência obstrutiva de postulados como céu, inferno, divindade de Jesus, concepção virginal e outros, longe de consolidar monoliticamente a comunidade em torno de uma filosofia de vida e um roteiro de ação, está criando controvérsias e embaraços, para os quais a única solução viável é o recuo, de vez que não há espaço ou condições para pregar remendo novo em pano velho, como advertiu o próprio Cristo.

Esta brevíssima incursão pelo pensamento gnóstico proporciona condições para uma oportuna mudança na ótica sob a qual tem sido estudado o processo formador do que hoje se entende por doutrina cristã. É que, em vez de partirmos da complexa teologia moderna para tentar remontar aos seus princípios motivadores, estamos, pela primeira vez, podendo ir ao contexto original, a fim de contemplar, de lá, as estruturas teológicas e institucionais que se ergueram, no correr dos séculos, com a aparente finalidade de explicar e implementar os ensinamentos de Jesus.

Essa visão retrospectiva, mesmo fragmentária, é instruída por um aspecto que ainda não havia ocorrido, como bem assinala a Dra. Pageis o de que estamos, afinal, ouvindo o que têm os próprios heréticos a dizer. Duas observações significativas, podem ser agora alinhadas como preliminares à formulação de uma nova metodologia para uma reavaliação do edifício teológico que temos diante de nós:

1. O cristianismo institucionalizado que chegou até nós é uma das várias ou muitas opções e versões possíveis, mas não a única e não, necessariamente, a melhor.

2. Mesmo nos textos sacudidos pelos vendavais de paixões que ainda não se abateram e marcados por manipulações que persistem, preservou-se a essência dos ensinamentos de Jesus, sobre os quais uma nova leitura é viável, se levarmos em conta realidades espirituais que se vão tornando cada vez mais dramáticas e irrecusáveis e que têm sido deliberadamente rejeitadas ou mal compreendidas pelos formuladores dos modelos cristãos vigentes.

Com isto em mente, vamos resumir, para concluir mais este módulo do livro.

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O cristianismo que hoje conhecemos é mais uma doutrina sobre o Cristo do que a doutrina de Jesus. A ênfase maior deslocou-se para a figura pessoal de Jesus, como Deus e Messias, nascido sob condições excepcionais e ressuscitado depois de morto, de maneira incongruente, para ser, finalmente, situado no céu, ao lado de Deus-Pai, com o qual seria coeterno. Para alcançar o reinado da paz e da felicidade espiritual que Jesus proclamou, mais uma vez, a ênfase não repousa no exato teor da sua pregação, mas num conjunto de rituais, crenças e sacramentos, administrados e ministrados pela Igreja que ele teria fundado e entregue a Pedro e, por sucessão, aos seus herdeiros, de um reino bem terreno e temporal.

Na verdade, chega a ser isto mais do que simples ênfase, para tornar-se prioridade exclusivista, de vez que, por melhor que sejam praticados os ensinamentos de Jesus, a salvação pessoal só será admissível para aquele que se torne membro de determinada Igreja. E, lá estando, tem de aderir a todo o procedimento que lhe for prescrito e aceitar todos os conceitos, ainda que lhe pareçam duvidosos ou inadmissíveis. Crer, ainda que seja no absurdo, no ilógico, no irracional, é a palavra de comando.

Do que se conclui que não é exatamente a prática daquilo que Jesus ensinou, em primeira mão, que está sendo proposto, mas daquilo que os teorizadores entendem ser o que ele quis dizer com o que disse. Ou do que jamais tenha dito, apenas inferido ou suposto.

Nos nossos dias, não apenas hereges e cismáticos, ou infieis e ímpios estão contestando certas formulações básicas; os próprios teólogos o fazem, sugerindo concessões ou, no mínimo, o abrandamento de posturas, hoje insustentáveis.

Dentre esses conceitos já muito abalados, alguns até embaraçosos ou vexatórios, temos aí uma pequena lista de amostragem: demônio, inferno, divindade de Jesus, ressurreição, nascimento virginal, salvação exclusiva, milagres, justificação pela fé, trindade, infalibilidade bíblica ou papal, etc. Além do mais, permanecem em debate posturas políticas e sociais que se agitam dentro das próprias instituições, como, por exemplo, direita, centro ou esquerda? Opção pelos pobres? Teologia da libertação? Dentre as tendências em debate, qual a certa? A conservadora? A progressista? A moderada?

Se os próprios teólogos se revelam algo aturdidos, que dirá a pessoa que somente é cristã uma ou duas horas por semana, quando vai à sua igreja cumprir seus deveres religiosos, para estar em paz com a sua pouco exigente consciência?

Quem parar um pouco para pensar, poderá acabar perguntando a si mesmo: "O que estou fazendo aqui? Que é isto que estou aceitando sem exame? 0 que é mesmo ser cristão? O que é cristianismo, afinal? Alguém aí que possa dizer-me algo aceitável, lógico, racional?"

As respostas estão no próprio ensinamento do Cristo, num retorno a ele, às fontes do cristianismo; é o que pensam alguns, mas ainda é possível isso?

Claro que é possível. Por mais deformados e manipulados que estejam os textos os únicos de que dispomos não é impossível formular juízo adequado acerca do que ensinou Jesus. Sua palavra, mesmo distorcida, abalada pelas reformulações e soterradas pelas demolições e reconstruções a que foram submetidos os textos, é recuperável, na sua essência.

É possível identificar um consenso, uma tônica, uma diretriz, chegar ao núcleo do seu pensamento renovador. Mesmo porque os ensinamentos de Jesus não se erguem diante de nós como um complexo maciço de edifícios teológicos inabordáveis, inacessíveis, indecifráveis. A rigor, não precisamos de teólogos profissionais que nos levem pela mão ou que tenhamos, nas nossas, um guia impresso cheio de setas, marcas, símbo182 los e gravuras. Ao contrário, a doutrina de Jesus é simples, quase singela, clara, lúcida, desarmada, de fácil acesso. A dificuldade que ela propõe não está, absolutamente, em entendê-la, mas em assumir as renúncias que ela exige, em tomar a cruz e segui-lo. Até aqui, tomara cruz tem sido mero tema para dissertações oratórias e dialéticas. Mesmo preservando seu simbolismo, contudo, é bem mais do que uma figura de retórica. Enquanto houver um jeito de permanecer na ilusão de que o estamos seguindo somente porque frequentamos determinados rituais e sacramentos,

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não estaremos maduros para o que ele espera de nós. Aquele que tomar o arado e olhar para trás não é digno do Reino de Deus, advertiu ele.

E aqueles que ainda nem tomaram o arado ou nem cogitaram de saber se existe algum arado por aí?

7. PAUSA II: EXERCÍCIO DE FICÇÃO CIENTÍFICA

Afasta-te de mim. Senhor, pois sou um pecador!(Lucas 5:8)

Como os seres humanos não podem ser deuses, inventaram a ficção científica, nos domínios da qual tudo é possível e o autor é onipotente perante as suas criaturas e as situações que deseje suscitar, mesmo as anacrônicas.

Imaginemos, pois, que, buscando socorro na técnica da ficção cientifica, tomássemos, com o devido respeito e muito carinho, a figura humana de Pedro, tal como ele era ao tempo em que conheceu e serviu ao seu Senhor e, ignorando todos os séculos intercorrentes, trouxéssemos o querido pescador à grande praça, em Roma, que tem o seu nome.

Um tanto perplexo, o homem de Cafarnaum sente-se perdido no amplo espaço que se abre diante dele. Faz algumas perguntas, aqui e ali a ficção pode fazé-lo falar italiano moderno, com sotaque, talvez.

Dizem-lhe que aquilo é a Piazza San Pietro e que o imponente conjunto de edifícios, ao fundo e em torno, integra a Igreja que dá o nome à piazza e que lá dentro do mais imponente deles, está sentado, num trono, aquele que o herdou, em linha direta do patrono da igreja e da praça. Que dali, aquele homem governa milhões de seres humanos que trazem o mesmo designativo que se usou pela primeira em Antioquia cristãos. É possível até que lhe expliquem que há outros cristãos que não reconhecem a autoridade do sucessor direto de Pedro, mas isso já seria outra história.

O pescador resolve ir até lá para conhecer melhor o edifício. A primeira coisa que se nota é que é um tanto diferente da Casa do Caminho, na antiga estrada de Jerusalém para Jope, onde tudo começou, depois que tudo acabou, ou seja, depois da partida de Jesus. Enfim, estamos 184 numa era de progresso e tecnologia. Pelo que se observa, a Igreja cresceu muito e, em princípio, parece justo dispor de instalações condignas para abrigar aqueles que foram incumbidos de orientar a comunidade dos fieis disseminados pelo mundo a fora.

Ao entrar pelos portais imensos, que contempla com simplória curiosidade, o visitante verifica que as instalações não são exatamente condignas, mas palacianas, ostentosas, recobertas de ouro e decoradas com incríveis obras de arte. Mesmo isso, contudo, pensa ele, talvez seja admissível: afinal de contas, isto aqui não é Cafarnaum e nem estamos vivendo mais no tempo de Augusto ou Tibério, numa poeirenta província distante.

Olhares curiosos e até divertidos acompanham a perambulação do pescador pelas imensas naves, por onde circulam multidões de turistas apressados, coloridos e falastrões. Parece que ele nem percebe que a sua figura distoa ali, na sua sandália desgastada e rústica, na qual ainda há vestígios do barro deixado pelas últimas chuvas, nas trilhas que ele percorreu. O manto que o cobre é limpo e claro, mas igualmente rústico e sem atavios. Uma bolsa de couro cru e pobre pende do cordão amarrado à cintura. IMão que traga grande coisa: um pedaço do pão que sobrou de hoje, pela manhã, e algumas dracmas escassas, mas isso não o preocupa, dado que o Mestre dizia que não era preciso levar ouro nem prata, nas tarefas que confiara aos seus amigos mais próximos.

Simão bar Jonas vai de surpresa em surpresa. Segundo informes que continua a colher com um e outro, aquela estátua de bronze ali, á direita de quem entra, representa sua própria

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figura humana. Está sentada, ricamente vestida, com todos os adornos da realeza. O pé tem um brilho mais intenso, que ele logo descobre resultar do polimento de muitos lábios humanos que ali depositam beijos. Aquilo o comove, é certo, mas o deixa também profundamente embaraçado. Por que razão estariam beijando simbolicamente os seus pés? Que teria feito ele? Será que o haviam transformado em algum deus desconhecido? Ou num imperador, como Tibério ou Nero?

Olhando as sandálias mal ajustadas aos seus pés de verdade, ficou, por um instante, a pensar se aquela gente os beijaria, se, em lugar da estátua de bronze coberta de adornos ricos, se sentasse ele, ao vivo...

Que coisa mais fantástica tudo aquilo! Que estranha sensação de irrealidade, de pesadelo, de alienação! Que multidão de perguntas sem respostas lhe acorriam à mente perplexa! Haveria alguém por ali que soubesse (e pudesse) respondê-las?

Foi então que ele se lembrou do homem sentado no trono. Ele deveria saber, tinha de saber. Pois não era o chamado herdeiro direto da tradição? O mais acertado, portanto, seria falar com ele.

De pergunta em pergunta, chegou a imponente cidadão abrigado atrás de não meno.s imponente escrivaninha, numa sala que ficava nalgum ponto daquele labirinto de naves, corredores, portas e salões.

0 homem nem sequer o convidou a sentar-se e o visitante bem que o desejava, pois já sentia o peso do cansaço de todas aquelas andanças. Não que houvesse sido maltratado; pelo contrário, foi muito bem recebido, com um sorriso polido e palavras mansas. Infelizmente, dizia-lhe o cidadão, o Santo Padre (Santo Padre?) não poderia recebê-lo tão cedo. Era preciso marcar entrevista, dizer ao que vinha, aguardar o chamado e, finalmente, comparecer condignamente vestido, observou, com um olhar significativo, o homem em dia e hora que deveriam ser rigorosamente observados.

O pescador concluiu que era tudo muito complexo e demorado e o seu tempo ali era escasso. Uma pena! Ficaria, então, para outra oportunidade. Agradeceu ao cavalheiro imponente, fez uma mesura desajeitada ( o homem parecia tão importante!) e se pôs à disposição do secretário que o trouxera até ali, de vez que jamais encontraria, sozinho, o caminho de volta à luz do sol que brilhava lá na praça que tinha o seu nome.

Já na praça, olhou, mais uma vez, o edifício gigantesco e pensou:- Que pena! Nunca precisamos marcar entrevista para conversar com Jesus... Não há

dúvida que ficou tudo muito complicado e estranho...E, sem saber como nem por que, Simão bar Jonas viu-se novamente em Cafarnaum, a

consertar a sua rede.André, seu irmão, olhava-o de maneira curiosa e interrogativa.- Que há com você, Simão? Foi preciso chamá-lo três vezes! Você estava

dormindo?Simão ficou em silêncio por alguns momentos. Em seguida, sacudiu a cabeça e comentou

enigmaticamente:- E... Acho que dormi.Parou novamente e completou:- E que pesadelo, meu Deus!A brisa mansa, a rede nas mãos, a água plácida do lago, ali à frente, trouxeram-no de

volta à realidade presente. (Mas que seria mesmo o presente?) André não fez novas perguntas. O irmão sempre fora dado a esses raptos e "ausências", desde menino, quando parecia alhear-se de tudo, esquecido de todos. Nesses instantes, via coisas que ninguém mais via.

Passados alguns momentos a mais, André repetiu a frase que Simão não ouvira por causa da sua "ausência" (e como estava longe, ele!):

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- Eu te disse que temos de sair logo para o mar, porque, à tarde, vai chover.Simão correu o olhar experimentado pelo céu e disse: Também acho. Iremos assim que acabar o conserto da rede. Falta pouco.Lá no fundo da sua memória do futuro, contudo, via gente estranha beijando seus pés de

bronze e aquilo o perturbava mais do que ele gostaria de admitir.Sacudiu a cabeça novamente e resmungou algo que André não entendeu. Afinal de

contas, fora apenas um pesadelo sem sentido. Nada mais.

8. CORPO E ESPÍRITO DA IGREJA

Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforjes para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois o trabalhador é digno de seus sustento.(Mat. 10:9-10)

Pequeno e modesto exercício de ficção científica tem por objetivo dramatizar o contraste entre a pobreza e simplicidade do cristianismo primitivo e a pompa do que hoje dois milênios e muitos dogmas depois é tido como cristianismo.

Mas não foi apenas essa a finalidade da nossa fabulinha, pois há nela um sentido, não necessariamente oculto ou secreto, porém, subjacente, para o qual é necessário ter os olhos de ver de que falam os evangelhos. E que os seres que conheceram Jesus pessoalmente, ouviram sua palavra, ao vivo, fizeram-lhe perguntas ou foram por ele curados de mazelas físicas e espirituais, continuam vivos, conscientes, atuantes, na carne, em outras vidas no mundo, ou em dimensões que ainda nos escapam aos sentidos habituais. Não desapareceram, nem se desintegraram juntamente com seus corpos físicos.

E eles sabem do que se passa, não apenas nas aparências, mas pelos bastidores e até na intenção de homens e mulheres que herdaram o corpo físico da "ekklesia", mas não o seu espírito. E que, no correr do tempo, o corpo tornou-se muito pesado e grosseiro do alimento do mundo e, sem poder movê-lo convenientemente, o espírito abandonou-o. Quando a pompa entrou pela porta da frente, Jesus saiu pela lateral, a fim de cuidar dos que precisam dele, gemendo sob a dor do abandono, da penúria, da aflição. Os que ficaram lá dentro estavam na opulência.

Vamos pois, tentar uma espiada rápida no que há lá dentro, na Igreja de hoje. No que ali se pensa e se faz.Para o meu gosto e alcance, a visão crítica mais objetiva e síntese mais lúcida sobre os problemas que afligem a Igreja contemporânea, estão colocadas num livro que conseguiu fazer de ficção e realidade um só tecido de aspecto plausível e inteligente. Falo de THE LAST CONCLAVE, de Malachi Martin (36), autor que demonstra impressionante conhecimento de certas intimidades da Igreja, inclusive do mecanismo secreto para escolha de um novo Papa.

Livro mais recente sobre tema semelhante é o de Gordon Thomas e Max Morgan-Witts (42), no qual é estudado o curto período em que a Igreja teve três papas em sequência: Paulo VI, João Paulo e João Paulo II. Outro livro, bem mais contundente, é IN GOD'S NAME, de David Yallop (50).

Fiquemos somente com o de Martin.No módulo "non-fiction" de seu livro, o autor pinta, em poucas pinceladas, um quadro

realista e algo chocante das diversas tendências internas do colosso político-religioso sediado no Vaticano.

A exposição parte de uma dicotomia bem conhecida daqueles que seguem com certa atenção o noticiário que nos chega através dos veículos modernos de comunicação e que

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divide ou separa as tendências básicas em conservadora e progressista, dentro das quais há vários matizes.

Três grupos compõem a facção progressista, segundo Martin: os marxistas cristãos, os novos teólogos e um alentado número de carismáticos.

Os marxistas pregam uma aproximação maior entre cristãos e comunistas; os novos teólogos e intelectuais acham que, praticamente, tudo na Igreja tornou-se obsoleto e precisa, com urgência, de uma boa modernização, desde a ideia de Deus até à maneira de enfrentar problemas humanos, como o do homossexualismo, o do aborto ou das drogas. Entre um extremo e outro, divindade e ressurreição de Jesus e inúmeros outros aspectos são igualmente debatidos e questionados. Os carismáticos estão partindo de uma reinterpretaçâo dos textos para entregaremse de corpo e alma ao exercício dos chamados "dons do Espírito Santo". Acham eles que suas práticas deveriam abranger, com urgência, todos os setores da Igreja, se é que esta pretende fortalecer-se. A dificuldade aqui está na banalização do "Espírito Santo", que se põe a falar por intermédio de qualquer um, não poucas vulgaridades e incongruências.

Na outra ala, ficam os tradicionalistas, protestando contra o desgaste da Igreja nos últimos tempos, principalmente pela ação dos marxistas cristãos e dos novos teólogos. Os conservadores combatem com o mesmo ardor, tanto os tradicionalistas, como os marxistas e os novos teólogos. A proposta deles consiste em viabilizar uma gradual adaptação da Igreja aos novos tempos, sem, contudo, promover mudanças drásticas, nem na estrutura da instituição, nem na doutrina.

Em último lugar ficam os radicais, que acham que a Igreja deveria abandonar, de uma vez por todas, atividades político-sociais e interesses financeiros para exercer apenas o seu poder espiritual.

Sintomaticamente, o autor conclui a parte fictícia de seu livro, elegendo um Papa radical. Não sei se podemos considerar uma solução realista essa, de vez que, para exercer um poder espiritual, a Igreja precisava tê-lo à sua disposição, incontestável, reconhecido, aceito, não como resultante de uma imposição, mas de uma acolhida consciente e convicta, no mínimo, da parte dos católicos. Ela teria de convencer, pela força mesma dos postulados, caso em que estes teriam de estar integralmente apoiados na racionalidade, na lógica, no bom senso. Estaria a Igreja disposta a lutar por objetivos tão nobres, vestida apenas com as túnicas de linho artesanal e calçada com as sandálias barrentas ou empoeiradas dos seus primitivos pregadores?

É difícil imaginar tal postura em face do que ora presenciamos. 0 brilhante escritor consegue dar credibilidade à sua história, pois a ficção é, também, um veículo muito poderoso de ideias, mas ela termina quando o novo Papa radical está sendo eleito. Embora já tenha ele exposto o seu programa e é precisamente por isso que ele é escolhido, fica o leitor a perguntar-se o que teria acontecido depois. Como foi o "day after"... Que tipo de reação teria ocorrido, não apenas nas estruturas da Igreja, em si, mas nas estruturas sociais, políticas e econômicas do mundo.

Difícil nos é, também, avaliar a extensão do verdadeiro abalo sísmico que provocaria o abandono sumário dos interesses financeiros.

| um segredo aberto escreve Martin que o grosso dos investimentos do Vaticano está sendo transferido para o continente norteamericano, a fim de ficar em segurança, fora do alcance de qualquer desastre europeu. Este é um sinal de "retirada" que não escapa à observação de cardeais e bispos na Itália.

Subentende-se por "desastre", neste contexto, o eventual domínio da economia europeia pelas matrizes de pensamento marxista.

Por isso, continua sendo bastante difícil imaginar uma Igreja desvestida do seu poderio econômico, político e social. Só com um prodigioso esforço de especulação poderemos visualizar a chegada do Papa em Brasília, ou em Washington, pelo avião de carreira, em vez

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de ser num jatão especial da Alitália, com o escudo do Vaticano. Ou, de ônibus, em Paris, Varsóvia, ou até mesmo a pé, em Nápoles ou Milão.

Quem lê Yallop fica ainda mais convicto do conteúdo fantasioso de tais hipóteses, ao tomar conhecimento das fantásticas jogadas internacionais de bolsa, em operações bancárias, nem sempre das mais ortodoxas, praticadas pelos que manipulam as volumosas carteiras de títulos e valores do Vaticano, através de seus bancos e de alheios bancos.

Continuo achando, pois, que a hipótese é meramente especulativa, romântica e irreal. Não tanto pela rejeição do poderio econômico e político em si mesmos, mas principalmente porque a ênfase maior da contestação à Igreja está precisamente na mensagem espiritual que ela tem a oferecer ou melhor, que não tem a oferecer. Mesmo desvestida da sua pompa e de suas riquezas o que diria a Igreja àqueles que contestam o próprio modelo de cristianismo que ela tem para servir às multidões espiritualmente desnutridas?

A não ser que começasse ela a dar ouvidos aos "novos teólogos", em vez de cassar-lhes a palavra e a cátedra ou o púlpito.

Malachi Martin coloca na boca de uma de suas personagens a observação de que o catolicismo "atravessa um período de máxima desorientação".

Já na década de 70 prossegue a aludida personagem tornarase claro que muitos cardeais, bispos, sacerdotes e intelectuais, além dos leigos, não mais acreditavam nos conceitos fundamentais ressurreição de Jesus, sua divindade, a realidade histórica de seu sacrifício no Calvário, a alma humana, a eucaristia e outros sacramentos.

Sim, dirá o leitor, mas isso é ficção. Ou, no mínimo, exageros do ficcionista, para emprestar força ao caráter de suas personagens. Pois não é e o melhor é começar a pensar seriamente no que os novos teólogos estão dizendo.

Hans Kung, por exemplo.Uma pesquisa paciente em seu maciço ON BEING A CHRISTIAN (6), revela os

seguintes pontos principais:IGREJA Jesus não fundou uma Igreja, em vida. A passagem invocada para isso, em

Mateus, é "um dos textos mais controvertidos do Novo Testamento". O objetivo único da Igreja, hoje, seria o de "servir à causa de Jesus Cristo", ou pelo menos, "não obstruí-la, mas defendê-la, efetivá-la, concretizá-la no espírito de Jesus Cristo na sociedade moderna". Não há uma Igreja no sentido de ekklesia (assembleia, congregação) a não ser num contexto dinâmico. "Não existe Igreja somente porque algo foi, certa vez, instituído, fundado e permanece sem alterações". Kung suscita, igualmente, o aspecto da legitimidade e coloca três perguntas impactantes: Justifica-se o primado de Pedro? Deve esse primado persistir? O Bispo de Roma é o herdeiro do primado de Pedro?

À vista de tantas complexidades, parece, às vezes, que "Jesus é mais popular fora da Igreja do que dentro dela e, para suas autoridades, de vez que, na prática, o dogma e a lei canônica, a política e a diplomacia mais a política do que a diplomacia frequentemente desempenham papel mais relevante do que ele (Jesus)".

Reações contraditórias à Igreja resultariam "não apenas de atitudes diferentes das pessoas, mas da ambivalência do fenômeno da Igreja em si mesmo”. (Os grifos estão no original).

A seguir, fala o teólogo suíço da carga de "maus sermões, liturgia monótona, piedade repulsiva, tradição desatenta, autoritarismo, dogmática ininteligível e pouco prática, estreita e casuística moral teológica, oportunismo, intolerância, legalismo e arrogância dos funcionários eclesiásticos e teólogos em todos os níveis, em contraste com a escassez de mentes criativas e a chatice da mediocridade". E mais: a cumplicidade com o poder, a negligência pelos desprezados, oprimidos e explorados. Em suma: "uma religião usada como 'ópio do povo', um "cristianismo inteiramente ocupado consigo mesmo, em conflito consigo mesmo, uma comunidade dividida".

Se o autor é incisivo nessas observações, mais ainda o é na seguinte: "Se investigarmos a

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razão da atual ausência de liderança e de ideias na Igreja, observaremos que a Igreja não somente está atrasada no tempo, mas, também, e mais importante, falhou na sua própria missão”. (Novamente o destaque é do autor).

Veremos adiante, neste livro, para conferir observações muito semelhantes a essas, de um sacerdote secular americano, cujo trabalho causou considerável impacto á época de sua corajosa publicação.

Segundo Kung, sempre que a Igreja resolveu fazer do Evangelho uma imposição dogmática, ética e disciplinar, abandonou a trilha do serviço ao próximo e a liberdade para implantar a servidão pela força e pelo sofrimento alheio, queimando gente, por exemplo, "...a Igreja teve de tornar-se a Grande Inquisidora e Jesus, silenciosamente, abandonou-a".

BÍBLIA "A Bíblia não é, simplesmente, a palavra de Deus: é, antes de tudo, e em sua total amplitude, a palavra de indivíduos bem específicos".

SACERDÓCIO Ao contrário do pagão ou do crente judeu, o cristão não precisa de sacerdote, além do Cristo, como mediador, na profunda intimidade do templo, com o próprio Deus.

QUESTÃO SOCIAL "...Jesus nunca propagou o despojamento dos ricos, nem uma espécie de 'ditadura do proletariado'. Ele não exige a vingança sobre os exploradores, ou a expropriação dos expropriadores, nem a repressão aos opressores, mas a paz e a renúncia ao poder".

Sua mensagem acerca do Reino de Deus "não foi um programa de ação político-social". Além disso, teme Kung que a teologia da libertação possa tornar-se apenas uma "casca vazia" a ser preenchida com um "conteúdo político mais violentamente contrastante", desde a opinião de alguns teólogos conservadores até aos argumentos explicitamente marxistas dos revolucionários.* * *

Os aspectos acima abordados, contudo, são mais estruturais do que filosóficos e éticos, embora definições filosóficas e éticas estejam neles implícitas. O problema se torna mais grave, a meu ver, na reavaliação dos preceitos doutrinários, dos quais tomaremos alguns, por amostragem, a seguir.

FE "A fé não deve ser cega, mas responsável. O homem não deve ser mentalmente coagido, mas racionalmente convencido, a fim de poder tomar uma decisão justificável sobre a fé". Ou, "Somente a fé e o conhecimento combinados uma fé que sabe e um conhecimento que crê são capazes de entender o verdadeiro Cristo na sua amplitude e profundidade". Ou, ainda, "O que se deseja não é a fé em milagres, mas fé em Jesus e naquele que Jesus revelou" (Deus).

Quanto ao chamado conflito entre católicos e protestantes, acha Kung que se tornou irrelevante no aspecto da "justificação pela fé apenas", desde que se formulou uma redação aceitável a ambas as partes e que é a seguinte: "Pois julgamos que o homem é justificado somente pela fé, independentemente das obras da lei".

NASCIMENTO VIRGINAL Kung propõe uma retomada "sem apoio na lenda do nascimento virginal que, como nunca, tornou-se mais suscetível à incompreensão nos dias de hoje". (O destaque desta vez é meu).

MARIOLATRIA — Kung sugere um reexame crítico em posturas mais recentes, como o dogma da Imaculada Conceição e o da ascensão de Maria, em seu corpo físico, ao céu. Pio XII, "o último Papa a agir com autoridade absoluta, ao arrepio das reservas de todos os protestantes, ortodoxos e até de católicos", trocou a palavra assunção (de Maria) por ascensão, em 1950.

O Concílio Vaticano II teria agido com maior prudência, recusandose a definir novos dogmas, do que se depreendeu uma condenação tácita, mas inegável, dos "excessos de marianismo".

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DIVINDADE DE JESUS A divinização de Jesus é atribuída pelo teólogo suíço a uma educação inadequada, instrução religiosa superficial e a uma liturgia e uma arte que superexaltaram a figura de Jesus. "Como é frequente diz ele vermos crianças a apontarem um crucifixo e dizerem: 'Aquele é Deus, pendurado na cruz'. "Não há menção alguma, em todo o Novo Testamento, à encarnação do próprio Deus".

Numa redação em que procura ser conciliatória, o máximo que Kung pode dizer é que "o verdadeiro homem Jesus de Nazaré é, para a fé, a verdadeira revelação do único Deus verdadeiro”. (Grifos do autor).

TRINDADE Como fórmula de aproximação com outros credos, propõe Kung certas concessões, pelo menos no campo interpretativo, quanto ao conceito trinitário do hinduísmo e ao do taoísmo, cabendo aos cristãos, ao mesmo tempo, "questionarem criticamente a doutrina cristã da Trindade".

A conceituação mais recente da Trindade estabelece não que Deus seja uma pessoa, mas uma "natureza em três pessoas, das quais uma delas (Jesus) é uma pessoa divina em duas naturezas humana e divina". 0 problema é que "essa terminologia vai se tornando, progressivamente, mais aberta ao desentendimento e até ininteligível", acha Kung.

RESSURREIÇÃO Debatemos tal aspecto alhures, neste livro, levando em conta, inclusive, as opiniões de Kung que, como vimos, considera esse "um dos mais problemáticos do estudo sobre Jesus", porque aí está igualmente envolvido o que, a seu ver, é também, "o ponto mais problemático de nossa própria existência", diante do qual, "toda prognose e planejamento, interpretação e identificação, ação e paixão chocase contra uma fronteira absoluta, insuperável: a morte, que é o fim de tudo” (Destaque meu).

SALVAÇÃO "Na verdade, portanto, há salvação fora da Igreja". Sem comentários.MILAGRE Também já o examinamos em outra secção deste livro. Basta dizer aqui que

é um dos vários conceitos junto aos quais o teólogo moderno sente-se pouco à vontade, pois não consegue libertar-se de certa ótica imobilista acerca de alguns aspectos. Kung acha que "mesmo hoje, há casos ainda inexplicáveis, do ponto de vista médico".

A teologia certamente é que não tem para eles uma explicação, a não ser a da sobrenaturalidade, se é que isso é uma explicação, mas Kung não propõe tal alternativa. A seu ver, alguns ficam explicados ou são explicáveis como resolução de doenças psicossomáticas e assim deveriam ser entendidas como "histórias de fé".

Ante aspectos que lhe parecem não-resolvidos, Kung acha melhor, atualmente, "evitar a ambígua expressão 'milagre'. Pouco adiante declara ele, mais enfático, que "Os milagres, por si só, nada provam". O que se pede não é fé em milagres, mas fé em Jesus e naquele que o revelou".

Com algumas dessas posturas concordamos, mas é preciso saber que os milagres demonstram uma realidade da maior relevância, que o Dr. Kung não parece preparado para aceitar.

Concordamos com ele quando diz que "Jesus seria mal compreendido se fosse considerado como curandeiro e especialista em milagres..." Acha mesmo que podemos correr o risco de interpretar sua atividade, erradamente, em termos de ciência. Também aí estamos de acordo. O fato de ficarem explicados os seus milagres em termos científicos, não quer dizer que Jesus fique, de repente, reduzido à condição de mero curandeiro. Ele tem uma mensagem de vital importância para a humanidade, da qual o milagre é apenas um "documento" vivo de testemunho.

EUCARISTIA "Mesmo hoje, em famílias judaicas, o pai parte o pão em pedaços, com uma prece, no início da refeição, de forma que todos partilhem, através do fragmento, da prece pronunciada".

"Naturalmente está exposta à crítica a ideia de que Jesus haja 'instituído’ a ceia". E mais: "A última ceia, refeição de despedida de Jesus, só pode ser entendida no contexto da longa

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série de refeições, às quais os discípulos deram continuidade, mesmo depois da páscoa" (...) "Diante do que ficou dito, é claro que Jesus não tenciona fazer dessa refeição o fundamento de uma nova liturgia".

INFERNO Não é para ser entendido "mitologicamente, como um local nas regiões inferiores ou superiores, mas teologicamente, como exclusão da presença de Deus".

O demônio, por sua vez, não é uma das preocupações de Jesus. "Ele prega a jubilosa mensagem da autoridade de Deus e não a ameaçadora mensagem da autoridade de Satã". "Ele não está manifestamente interessado na figura de Satã, ou do diabo, ou em especulações sobre o pecado e a queda dos anjos".

SACRIFÍCIO Entende Kung que, se o conceito de sacrifício, em si mesmo, já é tão problemático hoje, ainda mais o é o conceito de sacrifício da Missa, o qual é deduzido do sacrifício na cruz.

IMACULADA CONCEIÇÃO Não é mencionada no Novo Testamento, tendo sido rejeitada por Bernardo de Clairvaux e por Tomás de Aquino. Kung considera a discussão irrelevante hoje, em consequência da intensificação da crítica ao ponto de vista de Santo Agostinho, para o qual o "pecado original" era transmitido pelo ato da procriação.

REINO DE DEUS Jesus colocou, como elemento central de sua pregação, "o Reino de Deus e não o seu próprio papel, pessoa ou dignidade".

Diante de tudo isso, a que conclusões chega o Prof. Hans kung e que propostas tem ele a oferecer? Tentemos resumir o seu pensamento.

1 Deveremos começar, modestamente, segundo ele, com os ditos individuais e certamente autênticos (logia) e atos de Jesus.

2 Nas suas parábolas estão os alicerces da tradição evangélica.3-0 amor é a tônica de sua pregação, mas não como um mandamento. Não podemos amar

somente porque devemos amar. O amor é, "realmente, o critério básico de todas as virtudes, princípios, normas e expressão de comportamento humano". "Como vimos, Jesus reduziu todos os mandamentos, com simplicidade e objetividade sem precedentes, ao duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, preceito que abrange, sem reservas, toda a vida do homem e, no entanto, aplica-se, com precisão, a cada caso em particular".

4 Para chegar-se à essência de tais conceitos fundamentais, Kung entende ser "o caminho mais simples e melhor o de tornar os Evangelhos inteligíveis ao homem moderno e, por conseguinte, (por meio de) uma radical desmitificação, eliminando-se todos os elementos mitológicos e lendários, arrancados pelas raízes”. Acha que os Evangelhos devem "ser purificados de tudo isso e racionalmente parafraseados".

Minha dúvida, neste ponto, está em conceituar corretamente o que o Prof. Kung, ou o que entende cada um de nós por racionalização dos textos. Em princípio, é claro, todos nós devemos estar de acordo com isso, mas sob que critérios? E como parafraseá-los preservando suas verdades? Já não foi essa mesma intenção de parafraseá-los e torná-los inteligíveis ao homem e à mulher de outras eras que os textos acabaram todos mutilados?

Depois do que aí ficou exposto, vejamos como Hans Kung entende um cristão:- De acordo com o Novo Testamento (...) o teste final da condição de cristão não está

assentado neste ou naquele dogma por mais sublime que seja acerca do Cristo, nem de acordo com uma Cristologia ou teoria do Cristo, mas de acordo com a aceitação da fé em Cristo e na imitação do Cristo.

Nas duas páginas finais do seu livro, Hans Kung volta ao tema anunciado no início, como o "dal capo" em algumas sonatas e sinfonias famosas. "Por que deve alguém ser cristão?" perguntava ele. "E a resposta é igualmente direta: A fim de ser verdadeiramente humano".

Em suma, nas palavras últimas da sua obra, escreve ele a sua fórmula:- Seguindo Jesus Cristo, o homem no mundo de hoje pode verdadeiramente viver, agir,

sofrer e morrer humanamente, na felicidade ou na infelicidade, na vida e na morte, sustentado

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por Deus e útil aos homens.*

* *Em princípio, estamos todos de acordo quanto à sua conclusão programática. No dizer do

Quarto Evangelho, Jesus é caminho, é verdade e é vida. Nos Evangelhos é que se encontra o roteiro da paz, o "mapa" do Reino de Deus e é aos seus textos que temos de recorrer, se é que desejamos decifrar os mistérios da vida.

O problema reside em que os textos foram desfigurados, descaracterizados, em muitos pontos de vital importância, e mesmo restaurados à possível pureza primitiva, ainda estaremos perante o problema da interpretação adequada dos informes e diretivas que eles contêm.

E nesse ponto que a questão é mais delicada e crítica. Hans Kung, que tomamos como representativo da nova teologia mencionada por Malachi Martin, produziu uma crítica objetiva, inteligente, conclusiva e, até mesmo, contundente, sob certos aspectos. Tão contundente, na verdade, que lhe cassaram a cátedra. Tanto quanto podemos ver, ele conceitou bem o cristão.

Estamos de pleno acordo com a sua proposta de desmitificação dos Evangelhos, a fim de tentarmos chegar de volta à sua perdida essência. Lamentavelmente, contudo, temos nossas dúvidas quanto à viabilidade de concordarmos com critérios objetivos, uniformes e satisfatórios sobre a maneira de proceder a essa arqueologia textual. Uma boa e segura metodologia para essa busca exige definição prévia de algumas premissas, é claro, mas tem de haver espaço para alternativas, para opções, até mesmo nas premissas. E tem de haver cuidado em não se tomar como premissa ou hipótese de trabalho o que é, de fato e de direito, mera pressuposição que nos conduza ao atalho, em vez de nos manter na via principal de acesso ao âmago do problema.

Deixem-me ver se consigo explicitar melhor o que desejo dizer com isso.Tenho justificado receio de que um reexame a partir de um trabalho sério e honesto, como

o que propõe o Prof. Hans Kiing, deixe de considerar certas opções e considere superficialmente ou erradamente, outras. Com uma instrumentação assim duvidosa, jamais chegaremos lá.

Como todo teólogo de formação dogmática protestante ou católica por mais que rejeite praticamente todos os conceitos que considere embaraçosos, difíceis ou francamente inaceitáveis, Kiing demonstra guardar, não apenas resíduos de sua formação o problema da graça, por exemplo -, como parece ter-se deixado envolver por certos postulados, senão materialistas, pelo menos tidos, pela corrente cética do pensamento moderno, como indignos de apreciação séria ou já considerados suspeitos, ou mesmo rejeitados em definitivo.

Estão nessas categorias alguns conceitos vitais à exata compreensão do pensamento de Jesus. Por exemplo: como poderemos armar um quadro inteligível e lógico da vida e dos ensinamentos de Jesus, se rejeitamos sumariamente, até mesmo para exame, noções como a da existência da alma como ser objetivo, imaterial, dotado de um corpo energético, capaz de viver, pensar, agir e até comunicar-se com os humanos depois da morte do corpo? Como rejeitar, aprioristicamente, a possibilidade da preexistência do ser e, portanto, a do renascimento, de que fala Jesus? (Ele não fala de renascimento simbólico, e sim daquele que nos leva a reentrar no ventre de uma mulher e gerar um novo corpo físico, para viver de novo). Como partir do pressuposto de que o problema do milagre deva ser minimizado, evitado, ou mesmo ignorado, porque já está decidido que os milagres que ele praticou não foram cientificamente testemunhados e documentados? Há ou não há possibilidade de curar-se alguém com imposição de mãos? Quem afirma que aparições são alucinações visuais e/ou auditivas sabe realmente o que está dizendo? E o que afirma que é impossível desmaterializar-se um corpo ou objeto físico já examinou os fatos, para dizer o que diz? O

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milagre é derrogação de leis naturais?Em princípio, e para efeito de exame crítico e com mais razão, para reexame tudo é

válido, até mesmo ideias que, à primeira vista, nos pareçam absurdas. Tomemos um exemplo algo extremado: o conceito da divindade de Jesus. Pessoalmente não o aceito, mas não seria correto recusá-lo liminarmente, porque já decidimos, ou alguém, por nós, que ele é falso, ou não merece atenção. Será que nada temos a aprender com ele? Se se trata de um reexame, vamos começar tudo de novo. Pode um ser humano tornar-se Deus? Ou ter dupla natureza a divina e a humana? Deus é humanizável? Que argumentos têm os partidários da ideia? E os que a negam? Em que ditos, preceitos, fatos ou hipóteses está assentada a doutrina da divindade de Jesus? São válidos? Em que? São admissíveis? Por que? Há neles algo defensável? E as consequências e implicações? Para ser cristão, tenho de aceitar, de qualquer maneira, a divindade de Jesus? Que argumentos existem para me convencerem de que essa é uma precondição? Com que outros aspectos e problemas está a divindade em conexão? Ou em contradição? Existe algum caminho aceitável, que leve à racionalização da ideia? Qual? Ou não existe, e como devemos, então, enfrentar o problema? E necessário que Jesus seja tido como Deus para que suas ideias tenham conteúdo?

No final de todas essas expeculações preliminares e, certamente, de inúmeras outras que nem ficaram aí indicadas, devemos estar razoavelmente convictos de uma coisa ou de outra. Ou a ideia se confirma, na sua inaceitabilidade ou a aceitamos ou finalmente botamo-la em quarentena, sob reserva, como questão ainda pendente, indefinida.

Qualquer que seja a conclusão, pelo menos demonstramos um esforço honesto de busca, submetemos a exame crítico todos os dados do problema que nos foi possível reunir ou que nos tenham ocorrido. Rejeitamos o caminho fácil e apressado da ideia preconcebida. Não partimos de conclusões apriorísticas para montagem seletiva de uma estrutura de apoio baseada apenas nos aspectos que, a nossa ver, demonstram a nossa tese: Isto é, não saímos em busca de argumentos para demonstrar ou provar especificamente este ou aquele ponto de vista, para produzir esta ou aquela conclusão, mas para chegar a uma conclusão, qualquer que seja ela.

Se concluirmos pela tese da divindade, muito bem. Pode ser que esteja completamente errada, pois faltou considerar aspectos decisivos do problema, mas aquela será, pelo menos, uma conclusão honesta.

9. JESUS: TRADIÇÃO E REFORMULAÇÃO

Não penseis que vim revogar a lei e os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento.(Mat. 5:17).

O cristianismo escreve Maurice Goguel não é a religião pregada ou ensinada por Jesus. Seu conteúdo é o drama da redenção realizado pela sua morte e ressurreição.

Jesus foi um reformador, no mais puro sentido do termo. Em mais de uma oportunidade ele afirma aceitar os postulados básicos da religião existente, ao mesmo tempo em que procura decididamente expurgá-la de casuísmos e contestar-lhe certos rituais e observâncias. Sua óbvia intenção é a de mudar o enfoque doutrinário, no esforço de espiritualizar a vivência religiosa, que se convertera no mero cumprimento de umas tantas prescrições sobre a maneira de viver, sem nada ou quase nada a dizer sobre o que acontecia depois da vida e por que.

Ao declarar não ter vindo derrogar a lei, mas cumpri-la, ele o demonstra repetidamente. Quando dele se aproxima o moço rico para perguntar-lhe o que deveria fazer para desfrutar as alegrias da vida eterna, Jesus lhe responde com a citação dos Mandamentos da Lei mosaica.

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Embora convicto de que o culto precisa desvincular-se do excesso de ritualismo, parece compreender que isso não deve e não pode ser feito abruptamente. Ao recomendar a conciliação com o irmão magoado, antes de fazer a oferenda prescrita, no templo, não condena a prática da oferenda em si mesma. Em Jerusalém, é ao Templo que se dirige, com seus discípulos, para falar e cumprir certos procedimentos da lei. Até que tenha sido caracterizado como perigoso à estabilidade do regime político-religioso vigente, pregou nas sinagogas, como se lê nos Sinóticos. Marcos (1:39) diz que ele "saiu pregando em suas sinagogas por toda a Galileia...", o que está, também, em Mateus e Lucas. Jamais seria ele admitido a pregar nos templos judaicos se não fosse fiel à doutrina tradicional e às normas prescritas na lei, ou, pelo menos, não as atacasse.

Não obstante, é também um corajoso, ainda que pacifico reformador. Ao confrontar a lei antiga com o seu pensamento renovador, longe de questionar a sua validade, ele a reforça. Não é só o assassinato que condena, ao lembrar o "Não matarás", são também a cólera e o rancor. Não é só o ato específico do adultério, é também o olhar impuro dirigido à mulher alheia. O divórcio só lhe parece admissível em consequência da falta máxima do adultério, nitidamente caracterizada e não por simples declaração de repúdio. 0 perjúrio não é condenável apenas quando cometido em nome do Senhor, mas é cortado pela raiz, eliminando-se o próprio juramento em si: "Não jureis, em hipótese alguma". Palavra é palavra, bastando um sim ou um não. Em lugar do "olho por olho", recomenda oferecer uma face a quem já bateu na outra, ou seja, renunciar ao revide bárbaro, que poderia lavar a honra, no conceito da época, mas deixar a criatura com a marca indelével do sangue do irmão. Em vez de amar ao próximo e odiar o inimigo, recomenda ele que se ame também e, principalmente, ao inimigo. Amar o amigo é simples e óbvio. Nenhum mérito decorre disso. Amar o inimigo, a partir do esforço em compreendê-lo, é que ficava sendo a nova meta. Se o comportamento dos que o ouviam falar dessas coisas não fosse melhor do que o dos escribas e fariseus, não tinham, sequer, condições de merecer o Reino de Deus.

Do que se conclui que, realmente, ele propunha uma reformulação da lei, não a sua extinção, queria uma clara humanização de seus princípios básicos, certo deslocamento na ênfase, que a caracterizaria como ainda mais rigorosa para com o próprio indivíduo e, ao mesmo tempo, tolerante em relação ao próximo.

Ao mesmo tempo, pouco se importava ele com certas proibições, a seu ver, inexpressivas, como curar no sábado, sentar-se à mesa com publicanos e pecadores, ou comer sem o cumprimento dos rituais exigidos pela lei. Admitiu até mesmo o pagamento do tributo a César, gesto incompreensível num Messias ao estilo da expectativa judaica.

Convivem nele, portanto, sem se chocarem, mas complementandose harmoniosamente, o respeito à lei, naquilo que ele considerava básico e permanente, e a renovação, naquilo que era preciso mudar. Seja como for, contudo, seus ensinamentos são vazados em matrizes judaicas de pensamento, com seus conceitos e imagens, ainda que com uma abordagem nova, predominantemente ética e religiosa, sim, mas não literal, ritualística, exterior.

Por isso, muita coisa, no entendimento da mensagem de Jesus, depende de como conceituamos ética e religião. Se prestarmos bastante atenção, veremos que são tênues e mal definidos os limites entre uma e outra ideia. Ambas têm por objeto o comportamento humano. Onde uma se distingue da outra é na prática. Enquanto a ética é uma especulação filosófica, um estudo teórico, uma formulação estática, a religião propõeconverter suas teorizações em ação, introduzindo o fator dinâmico no processo, que teria sido apenas especulativo. A vulnerabilidade das religiões fica por conta dos excessos de sistematização, da hierarquização, da dogmatização, da irracionalidade.

Entendemos, pois, Goguel, quando declara que "as religões usualmente degeneram em teologia racionalista, moralidade formal e culto ritualístico". O reparo que poríamos aí é o de que, pelo menos em termos de cristianismo, não me parece valer a ideia de uma teologia

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racionalista. 0 que vemos é, ao contrário, uma teologia irracional, embora utilizando-se de terminologia e estruturas de pensamento filosófico. Seja como for, é legítimo considerar a teologia como um esforço ou uma tentativa de racionalização, ainda que nos pareçam frustrados tais esforços. Cabe dizer, contudo, que, em hipótese alguma, consideramos a teologia como um ramo do conhecimento insuscetível de racionalização; muito pelo contrário, ela só será aceita sem resistências ou rejeições precisamente quando for colocada nos quadros da racionalidade.

Não há dúvida, portanto, de que Goguel identificou bem o problema, ao condenar simultaneamente a desastrada tentativa de racionalizar a religião, formalizar a ética e traduzir tudo isso num conjunto de rituais que acaba sendo identificado com a própria religião e a substituí-la. Ou seja, saímos da teorização estática dos conceitos éticos para voltarmos, ciclicamente, à teoria dos ritos, como fator de progresso espiritual. Não é por cumprir rigorosamente determinados ritos, cultos, sacramentos e posturas que estaremos avançando moralmente.

Há disso exemplo expressivo no sacramento da confissão instituído pela Igreja. Cumprida a formalidade de uma minicatarse junto ao sacerdote, o crente recebe, literalmente, a absolvição de seus pecados, em nome de Deus, e volta aos seus afazeres limpinho, novo em folha, pronto para nova safra de pecados que serão, também, perdoados. O problema é que um mero ritual engendrado pelo ser humano não tem como reparar ou corrigir desvios que os erros provocaram na observância das leis divinas desrespeitadas. Isto sim, seria autêntico e verdadeiro milagre, no sentido teológico do conceito de milagre, ou seja, como derrogação da lei divina.

Sabemos muito bem que há toda uma tentativa de "racionalização" teológica para explicar e justificar o procedimento, mas a lei aceita o perdão concedido pelo sacerdote, por procuração de Deus, como reparação, no sentido cósmico? Não que estejamos contestando, com isto, a validade do perdão em si mesmo. O perdão existe, é válido, está e estará sempre à nossa disposição, mas isto não nos exime da reparação à lei desrespeitada. O que feriu com ferro, com ferro será ferido. Até mesmo o preceito antigo do "olho por olho" parece ter trazido, no seu bojo, esse sentido e não o de vingança, como lhe foi atribuído por intérpretes e aplicadores. O que, certamente, quis dizer a expressão originária é que aquele que, por exemplo, vazasse o olho do seu irmão, em alguma oportunidade, no tempo e no espaço, teria o seu igualmente prejudicado, numa vida ou noutra. Isso, aliás, está explicitado, com nitidez incontroversa, no caso do cego de nascença, que Jesus curou, ensinando que erro havia, sim, não daquele homem, ali, daquela personalidade que, naquela existência, não tivera oportunidade de pecar tão gravemente para arcar com o sofrimento reajustador. Não vinha de seus pais, por herança, o erro praticado e a consequente punição. Aquele ser, contudo, errara, em algum ponto de sua trajetória espiritual. Sua individualidade era responsável por algum erro trágico, de vez que, nele, se manifestavam, como assegurou Jesus, as leis divinas que, obviamente, perdoam, mas exigem a reparação, o resgate.

Para entender isto, é indispensável distinguir personalidade de individualidade. A primeira, no sentido etimológico, como máscara de apresentação do ser no plano humano, caracterizado por um nome, uma determinada aparência física, uma identidade social, histórica, geográfica, humana, enfim, enquanto a individualidade é o aspecto permanente. A personalidade é a manifestação externa, visível, identificável da individualidade. Transposto isto para o conceito das vidas sucessivas, teríamos as personalidades representativas das diversas existências na carne, como contas de um colar, sendo este a individualidade, com todas as suas aquisições e conquistas, virtudes e defeitos. Como um livro de muitos capítulos, em cada um dos quais se conta um episódio diferente, mas encadeados, no conjunto, formando um todo coerente, de sentido nitidamente evolutivo. Um seriado, uma novela imensa a desdobrar-se pelo futuro a fora, de capítulo em capítulo, ou seja, de vida em vida.

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Cada capítulo, uma personalidade, no contexto de uma só individualidade, resultante, esta, da soma de todas as experiências anteriores.

No caso do cego de nascença, portanto, a personalidade o cego daquela existência não cometera nenhum erro para merecer a cegueira, mas, se os conceitos de dor, de sofrimento e até de doença, estão intimamente ligados ao de pecado, de erro ou falta grave, como nos assegura Jesus, em mais de um exemplo, então, pecado houve ali. O perdão ritualístico e sacramental do confessionário não exime o pecador da reparação perante a lei divina.

Aspecto que também não deve ser esquecido nos episódios das curas é que Jesus recomenda ao miraculado que cumpra as formalidades da lei vigente, apresentando-se ao templo. Istoé especialmente observado no caso dos leprosos que, alienados do convívio social e religioso, pela doença, precisavam recuperar o "status" anterior. A reintegração na comunidade teria de ser decidida pelas autoridades religiosas da época, investidas do poder de concedê-la ou não, segundo suas observações do caso e conclusões. Aqui também Jesus demonstrou seu respeito a certas formalidades da lei antiga. Não, porém, que ele pregasse o cumprimento da lei pela lei em si mesma, como o faziam escribas e fariseus. Para estes, a rigorosa observação de mais de seiscentos preceitos constituía a única obrigação, sem necessidade de qualquer demonstração de amor ao próximo, ou até mesmo de sincera convicção da eficácia da própria lei. O comportamento ético não acarretava implicação alguma sobre a destinação póstuma do ser. Uma parte, como os saduceus, não acreditava na sobrevivência e outra, a dos fariseus, tinha noção vaga de continuidade, sem nenhum aprofundamento quanto à validade do conceito e suas possíveis implicações e consequências, o que o reduzia à mera condição de uma hipótese ou suposição provável, mas não provada. Não era, pois, necessariamente por ser bom que o ser humano ia para o "seio de Abraão", mas porque cumprira rigorosamente as normas da lei.

Jesus demonstrou perfeita consciência de todos esses matizes conceptuais e sabia muito bem que a simples observância de um conjunto de preceitos ritualísticos, por mais rigorosos que fossem, jamais poderia levar alguém às metas da perfeição espiritual, que ele tinha situadas no cerne da sua pregação. Ele não viera propor uma nova religião, ainda que com menor número de dispositivos ritualísticos. Estes apenas engrandeciam os homens aos olhos de seus contemporâneos. O que ele pregava era uma ética que tornasse melhores as criaturas no âmbito dos valores permanentes da vida e não quanto aos transitórios. Em suma: ele desejava a prioridade do espírito sobre a matéria. Que adiantaria a alguém ganhar o mundo se perdesse a oportunidade de elevar-se espiritualmente, ou seja, de ganhar, literalmente, a sua vida, utilizando-a como valiosa oportunidade de reajuste e maturação espiritual? E quantas dessas oportunidades leia-se vidas não acabam desperdiçadas, perdidas, porque nos recusamos a entender e aceitar a importância que representam elas no encadeamento progressivo das contas, dos capítulos que constituem, cumulativamente, nossa individualidade...

Já vimos, alhures neste livro, ser, não apenas duvidosa, mas inaceitável, a passagem textual, em Mateus, segundo a qual Jesus teria formalmente instituído a sua Igreja e, no seu governo, investido a Pedro da autoridade correspondente. Não pregou ele uma religião e nem fundou uma igreja. Nem mesmo instituiu uma teologia, no sentido técnico e moderno da palavra. Suas ideias acerca de Deus foram simples, como acerca de outros importantes aspectos da vida. Longe estão de constituir um sistema, ou até mesmo úma estrutura especulativa. Sua abordagem ao problema de Deus, por exemplo, é direta, sem artifícios ou ginástica mental. Em vez do antigo Jeová iracundo e temível do Velho Testamento, ele o concebe como um Pai, poderoso, sim, mas bom, respeitável, sob todos os aspectos, compreensivo e justo, rigoroso, mas sempre aberto ao perdão. Deus não é para ser buscado através da especulação filosófica, pela comprovação impraticável, pela definição autocontraditória, mas pela vivência do amor total e recíproco, na retribuição do seu amor por

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nós, em nosso amor por ele. Não que o nosso culto acrescente algo a Deus, ou que nossos erros retirem dele algo, mas porque o amor por ele acrescenta algo a nós mesmos, tanto quanto o erro nos degrada e retira um pouco de nós, retardando o encontro final com a paz tão desejada.

Não há em Jesus recomendações propiciatórias ou ritualísticas. Não sugere oferendas, embora tolere as que a tradição ainda consagra e exige de sua gente. Não propõe sacramentos, nem frequência a missas. 0 amor a Deus e ao próximo é o fundamento da sua ética. Fazer na Terra a vontade do Pai é a sua recomendação para todos, indistintamente. Essa vontade se realiza no cosmos, cujo equilíbrio seria impossível sem o poder criador e sustentador de Deus, princípio inteligente do universo. Se essa vontade está expressa e operativa nas leis cósmicas (no céu, como ficou no texto do Pai Nosso) é claro que estaremos todos em paz e num verdadeiro paraíso, quando decidirmos cumpri-las também aqui na Terra, mesmo porque as leis divinas regulam, com o mesmo poder e precisão, o aspecto material do universo e o ético. O ser humano inverteu a pirâmide do conhecimento. As leis gravitacionais que mantêm os corpos celestes nas suas órbitas, no âmbito imenso das sinfonias siderais, são a mera representação visível, evidente, de leis muito mais sutis, com igual força de atração e coesão, no campo magnético do amor. Os seres, como os astros, em inúmeras humanidades espalhadas pelo infinito, vivem e se movimentam em Deus, como dizia Paulo. Estão sujeitos às mesmas leis reguladoras e, por isso, a cada ação de desvio na rota, surge uma reação em sentido contrário e de igual intensidade para trazer a criatura de volta ao roteiro de sua progressiva harmonização cósmica. Enquanto insistirmos em adotar o comportamento errático dos cometas, aparentemente desgovernados, estaremos a colidir nosso núcleo espiritual com os obstáculos naturais que a lei tem de colocar em nosso caminho para evitar o caos. Também nós participamos e integramos um universo ordenado e que tem de ser mantido em harmonia. Qualquer desvio é corrigido, não porque é pecado que ofenda à majestade de Deus, mas porque desafia leis divinas que não podem admitir a degradação da ordem, embora concedam espaço para o reajuste voluntário ou compulsório.

No âmbito ético, o perdão está sempre implícito no erro, como se a receita médica já nos chegasse juntamente com a doença. Isso não quer dizer, porém, que possamos deixar de tomar o remédio para restabelecer a saúde. Poderemos até adiar por algum tempo o tratamento, que, certamente, nos desagrada, mas um dia nos veremos perante a alternativa irrecusável de ingeri-lo, doa onde doer, seja qual for o seu paladar, custe o que custar.

Não é, portanto, o ritual algo ingênuo de alguns sacramentos que nos vai eximir das faltas cometidas e dá-las como inexistentes. O nosso próprio bom senso nos diz que umas tantas fórmulas recitadas, uns tantos gestos e posturas não bastam para retificar os desvios, não apenas de nosso comportamento, mas, principalmente, naquilo em que esse comportamento provocou, ao desafiar leis inderrogáveis. Deus não estaria certo de suas leis se as fizesse suscetíveis de acomodações, reajustes e até inobservâncias inconsequentes pelo petulante ser humano que ele considera compassivamente, mas com a seriedade que exigem os mecanismos cósmicos. Claro que, em princípio, e em vista de seus atributos de onipotência, ele poderia alterar e até derrogar, ou desconsiderar algumas de suas leis ou todas, mas aí já não seria também onisciente, por não ter previsto situações em que as leis teriam de ser contornadas ou ignoradas para atender a situações peculiares, autênticos casuísmos que, aliás, ele teria de julgar pessoalmente, caso por caso.

Para corrigir os desvios éticos lá estão, portanto, não apenas a lei do perdão, mas as que colocam à disposição do ser humano os instrumentos e recursos necessários ao reajuste. Do contrário, o perdão seria inócuo. Logicamente isso não pode ser ministrado sob forma de um perdão de confessionário, seguido de umas tantas penitências e certas fórmulas verbais pré-fabricadas, tudo arbitrado pelo próprio homem. Este se declara representante de Deus na Terra, por delegação de delegação, muito extensa, no seu desdobramento, a partir de um

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incongruente versículo em Mateus que teria concedido a Pedro a faculdade de "ligar e

desligar", acima e à margem da lei divina e até em oposição a ela.

10. SACRAMENTOSChamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda a sorte de males e enfermidades.(Mateus 10:1).

Examinamos, há pouco, um dos sacramentos o da confissão por causa do seu envolvimento natural e espontâneo na temática que vínhamos debatendo, mas convém dizer logo que Jesus não instituiu esse, nem qualquer outro sacramento, no que se inclui a eucaristia e o batismo.

E o que poderemos ver a seguir.O problema do batismo é de relativa simplicidade. Os Evangelhos contam que ele foi

batizado por João, identificado como o precursor anunciado nas profecias. O episódio do batismo, em si, oferece indícios de autenticidade, o que não ocorre com os fenômenos com os quais foi adornado o ato: a voz de Deus reconhecendo Jesus como filho e a figura do Espírito Santo, sob a forma de uma pomba. Além do mais, ao que consta de João (4:2), Jesus nunca batizou ninguém, embora o texto admita que os discípulos o fizessem. A informação de que os discípulos batizavam quando ainda vivia Jesus entre eles é tida por francamente duvidosa. Como suspeitas, também, as últimas recomendações do Evangelho de Mateus que prescrevem o batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, óbvio aditamento posterior para ajudar a consolidar o sacramento e, ao mesmo tempo, o dogma da Trindade (Mateus 20:19-20).

Esta, aliás, é uma das manipulações que costumo qualificar de incompetentes, pois no mesmo Evangelho de Mateus (10:1) conta-se que Jesus "Chamou os doze discípulos e deu-lhes autoridade para expulsar os espíritos imundos e de curar toda sorte de males e enfermidades". Nem aí, nem nas minuciosas considerações que se seguem, há qualquer menção ao batismo.Não obstante, como sabemos, o batismo era regularmente praticado nas primitivas comunidades, já ao tempo de Paulo. Vimos, também, que isso era um ritual de iniciação de admissão à comunidade cristã e não um sacramento destinado a libertar a criatura do pecado original. Aliás, o qualificativo original não figura uma só vez, associado ao termo pecado, nos Evangelhos. A expressão é invenção posterior, e está sendo seriamente contestada hoje, mesmo entre os teólogos.

Não estamos esquecidos de que Paulo considerou Adão como introdutor do pecado no mundo e Jesus como seu redentor. Nada encontramos em suas epístolas, contudo, que atribua ao batismo a faculdade de libertar a criatura do pecado de Adão.

Em suma: Jesus não instituiu o batismo como sacramento e nem mandou que fosse praticado por toda a parte, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Quanto e eucaristia, embora tenha merecido o tema bibliotecas inteiras de obras especulativas, o problema não oferece grandes complexidades.

A refeição comum era prática antiga, não apenas no contexto em que viveu Jesus, mas difundida alhures, entre os essênios, por exemplo, como nos asseguram autores bem informados. Os judeus mantêm até hoje o gesto ritual de partir o pão e distribuir os pedaços por todos os presentes, a fim de que todos partilhem das bênçãos invocadas pela prece recitada antes de dar início ao repasto propriamente dito.

Como a ceia com os apóstolos foi a última reunião íntima, é natural que os presentes desejassem, após a sua morte, rememorar o Mestre durante as refeições que tomavam juntos.

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Ninguém estava cogitando de comer um pedaço do corpo de Deus e nem de beber um pouco do seu sangue, ainda que simbolicamente. A ideia em si era e continua inaceitável à mentalidade judaica. E não devemos esquecer que mesmo convertidos aos ensinamentos de Jesus, os apóstolos componentes do núcleo central e primitivo, em torno do qual se desenvolveu a comunidade de Jerusalém, continuavam a raciocinar e a viver, em grande parte, senão em tudo, no âmbito dos conceitos judaicos tradicionais, com os esclarecimentos e correções que neles introduzira Jesus.

No ano 49, Tiago ainda exige que os gentios respeitem a lei de não consumir carnes de animais sacrificados em rituais pagãos e impõe a circuncisão a Tito como precondição às negociações em torno da autorização para pregar o evangelho aos gentios.

Guignebert acha simplesmente fantástico que Jesus haja instituído a eucaristia, afirmando que aquilo era o seu corpo e o seu sangue.

A ideia da teofagia (ingestão de deus) só vamos encontrar em grosseiros e primitivos cultos, segundo os quais um animal, previamente divinizado por meio de um ritual próprio, era sacrificado e comido pelos crentes, convictos de que absorviam propriedades divinas, com a carne e o sangue do animal convertido em deus. Repugna-nos, contudo, admitir que isso possa estar nas origens da eucaristia, embora o resultado que se impôs tenha sido precisamente esse: a ingestão simbólica da carne e do sangue de um ser divinizado. Tal conclusão, contudo, não é recente. Guignebert assinala que, algum tempo depois de Paulo, até mesmo autores cristãos surpreenderam-se com a identificação dada à ceia eucarística com os rituais dos mistérios primitivos.

Não era essa, porém, a concepção vigente ao tempo de Paulo. No ato simbólico, reunidos em torno de uma mesa comum de refeição, os cristãos se sentiam como que componentes de um só corpo, unidos em Cristo, como as diversas parcelas distribuídas integraram e se originavam de um só pão, tanto quanto a porção de vinho atribuída a cada um provinha de um só vinho. Essa participação no repasto em comum era prática comemorativa para lembrar Jesus e falar dele e repassar seus ensinamentos, não, porém, um sacramento no sentido teológico salvacionista, instituído e recomendado por ele.

A refeição em comum era, também, uma forma de agradecimento sentido da palavra grega original eucharistai em conexão com o costume hebraico de invocar as bênçãos de Deus (berakhah) para os alimentos sobre a mesa. Até hoje, eucharisterios corresponde ao nosso "muito obrigado".

Para Paulo, segundo observa aos Coríntios, aquilo era uma das maneiras de conservar bem viva, na memória de todos, a ideia de que o Cristo fora sacrificado, mas que voltaria sobre seus passos para nós.

Embora Paulo pareça convencido de que Jesus instituiu mesmo o procedimento, para que dele se lembrassem e, logicamente, de seus ensinamentos, a refeição em comum não assumia as proporções de uma liturgia e sim de uma prática formal.

É difícil entender e aceitar que todos ali estivessem convictos de que, mesmo simbolicamente, ingeriam a carne e bebiam o sangue de Jesus, ou melhor, de Deus. Isto só viria mais tarde, por deformações sucessivas.

A atenta observação dos textos evangélicos nos revela que os sinóticos não trazem a recomendação de Jesus de que a prática seja implantada, exceto em breve passagem em Mateus, no que os exegetas consideram uma interpolação retirada das epístolas, sendo consideradas, por conseguinte, adições posteriores as palavras atribuídas a Jesus: "Fazei isto em memória de mim". E o que informa, por exemplo, Johannes Weiss (31).

É certo, porém, que as refeições em comum, em Corinto, estavam degenerando em balbúrdia e comilanças. Como se lê no capítulo 11 da Primeira Epístola, em vez de partilharem uma refeição em comum em memória de Jesus, para lembrarem-se de que ele morrera, mas que voltaria, "O que fazeis não é comer a Ceia do Senhor, cada um se apressa

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em comer a sua própria ceia... e enquanto um passa fome o outro fica embriagado. Não tendes casa para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm?".

Como se vê, o Apóstolo não fala de um ritual eucarístico, tal como seria mais tarde estilizado, mas de uma refeição mesmo, coletiva, durante a qual se reunia a comunidade cristã para orar, falar de Jesus e rever seus ensinamentos enquanto se comia.

Apoiada no discutível critério dessas inseguras referências, a Reforma Protestante aceitou, como sacramentos, duas práticas primitivas batismo e ceia eucarística -, mas recusou os demais: confirmação (crisma), confissão (penitência), matrimônio, ordenação sacerdotal e extrema-unção, sob a alegação de que não havia, para os demais, suporte textual.

Em verdade, as passagens que a Igreja invoca para justificá-los são igualmente discutíveis, mas não vamos, aqui, entrar nas minúcias de tais debates, que pouco teriam de útil a acrescentar ao nosso estudo e estão amplamente expostas em livros especializados. O que desejamos destacar, neste ponto, é o fato de que diferem as duas principais correntes cristãs em face dos sacramentos. A Igreja Católica entende ser necessária e mesmo indispensável a prática à salvação, enquanto a comunidade Protestante adotou o enfoque da fé, como condição e fator gerador da salvação.

Como tantos outros problemas humanos, o da chamada salvação está mal posto no contexto teológico. Salvar, todos se salvam, na plenitude dos tempos, como assinalou Paulo. Algum dia vamos todos entender essa verdade elementar. Salvar-se é realizar o Reino de Deus na intimidade de cada um, resultante de um procedimento responsável, pessoal, indeleyável. Na medida em que os conceitos tradicionais de céu e inferno se tornam obsoletos e insustentáveis, degenera-se e desmorona o de salvação, no sentido ortodoxo ou reformista. Céu e inferno não são lugares geográficos, são estados de espírito, ainda que, pela atração dos semelhantes, bons e maus se reúnam, por sintonia, em algum ponto, no tempo e no espaço, segundo a gradação evolutiva.

Pelas implicações no que estamos debatendo, parece-me oportuna uma palavra acerca da ordenação sacerdotal.

A tradição conservou uma prática que se converteu em mero símbolo de uma perdida significação a da imposição das mãos. Nos tempos primitivos isso não era gesto meramente simbólico, e sim transmissão de recursos magnéticos que suscitavam ou confirmavam, naquele que recebia a imposição, faculdades hoje tidas como extra-sensoriais. 0 sacerdócio não resultava de uma formação curricular em teologia e conhecimentos afins. Eram distinguidos e separados para aproveitamento aqueles que revelassem condições peculiares ao desempenho de faculdades paranormais. Como ainda veremos, mais adiante, a Igreja primitiva foi uma comunidade essencialmente carismática, ou seja, devotada a práticas medianímicas, por meio das quais mantinha intenso intercâmbio com o mundo espiritual, como se pode ver, entre outros textos, nos capítulos 12, 13 e 14 da Primeira Epístola aos Coríntios.

Johannes Weiss parece ter sido dos poucos a perceber a relevância dessa particularidade do movimento cristão primitivo, embora não tenha conseguido penetrar em suas verdadeiras motivações e implicações. No seu entender, Paulo considerava a adesão ou conversão não como mera vocação, a partir do Evangelho: era o próprio Deus que convocava o ser, chamando-o à tarefa cristã.

O sinal característico desse chamamento, contudo escreve Weiss (31) não residia somente na confissão da nova fé, mas na posse do espírito. Pelo menos para Paulo, a conversão só era considerada completa quando as operações do espírito surgiam entre os novos conversos; estas é que seriam aquelas "alegrias do Espírito Santo" (I Tess. 1:6), vagas e difíceis de definir, ou fenômenos bem definidos e distintos, como a extática exclamação "Abba, Pai". Durante a prece, etc... ou poderiam ser "milagres", como os que ocorreram na Galácia, em

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seguida às conversões (Gal. 3:4-5). (Os destaques são meus).Chegam a ser comoventes a inibição e o despreparo dos mais brilhantes comentaristas,

perante tais aspectos, mesmo aqueles, como Weiss, que têm nítida intuição de sua importância. Isto, porém, veremos mais adiante.

Como assinalam competentes estudiosos das origens do cristianismo, a influência do pensamento grego foi decisiva e marcante nessa fase. Ao contrário dos judeus, entre os quais o enfoque básico era sobre a vida na matéria, permanecendo mal definida ou indefinida a eventual vida póstuma, os gregos e judeus da diáspora, sob influência grega, não encontraram dificuldades insuperáveis em acolher a realidade da ressurreição do Cristo. Bem entendido, porém, não em termos de restituição da vida ao corpo físico, inanimado, morto e sim, como continuidade da vida, em outro corpo mais sutil, que serve de veículo ao princípio imortal, espiritual, consciente, no ser humano.

Mesmo os sacramentos ou certos aspectos ritualísticos primitivos tiveram no contexto grego uma conotação mais profunda, o que não é difícil de evidenciar-sje. Enquanto, segundo a tradição latina, a palavra adotada para alguns ritos ficou sendo sacramento, os gregos preferiram adotar mistério Sacramento como desdobramento de sagrar, da mesma forma de ornamento, de ornar, ao passo que, adotando a palavra mistério (mysterion), preservava-se a conotação secreta, oculta, quase iniciática das três práticas primitivas: batismo, eucaristia e imposição de mãos, sendo que esta última figurava não exclusivamente no procedimento destinado a consagrar pregadores e diáconos ou profetas (leia-se médiuns), mas também, no ritual do batismo. A ciência levaria quase dois milênios para se convencer de que dois ou mais corpos humanos ligados ou postos em contacto direto, principalmente pelas mãos, funcionam como vasos comunicantes de energia, que fluem de um que a tenha em abundância para outro que a tenha deficitária. Essa energia está, hoje, fotografada e filmada, a circular em torno do corpo ou a fluir num sentido ou noutro, de uma pessoa para outra.

Rememoremos, aqui, as duas cenas dramáticas, em que os profetas do Antigo Testamento "ressuscitaram" crianças clinicamente mortas, deitando-se sobre elas, a fim de transmitir-lhes energias, tal como uma bateria elétrica carregada ou outra fonte geradora pode repor certa carga na que se exauriu. Daí a exaustão do doador após o esforço.

Nesse sentido, pois, tais rituais eram realmente práticas dicotômicas, ou seja com um aspecto aparente, material, visível, exotérico e outro secreto, oculto e, portanto, misterioso, no sentido de que desconhecido da maioria dos crentes e, portanto, esotérico, tal como nos antigos templos egípcios. Por isso eram chamados mistérios.

Posteriormente, com a introdução de outros rituais na mesma categoria, não havia como considerar mistério a prática, por exemplo, do casamento, da confissão ou da extrema-unção. Há que reconhecer que a palavra sacramento, ainda que imperfeitamente aplicada à situação, torna-se mais aceitável do que o termo mistério. E sacramento ficou sendo, enquanto o conteúdo esotérico de mistério se perdia. Hoje, quando vemos sacerdotes e bispos impondo as mãos em alguém, como ainda prescrevem as práticas tradicionais, podemos estar certos de que deconhecem ou não admitem suas antigas conotações ditas ocultas.

O assunto será tratado mais adiante, neste estudo, mas, para não ficarmos aqui apenas com a afirmativa do autor, tomemos um texto para testemunhar o relevo dessas práticas na Igreja primitiva.

Vemos em Atos, capítulo 13, de que maneira deslanchou-se a propagação da doutrina cristã pelo mundo, a partir da igreja de Antioquia. Mantinha-se, ali, assídua prática mediúnica, o que se depreende claramente do texto, que fala em doutores e profetas.

Certo dia, enquanto celebravam o culto do Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo: Separai-me Barnabé e Saulo para a obra a que os destinei. Então, depois de terem jejuado e orado, lhes impuseram as mãos e despediram-nos.

Mesmo ao risco de uma digressão maior, desejamos aproveitar o ensejo para alguns

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comentários adicionais. Primeiro, sobre a expressão Espírito Santo. Certamente não era suposto ali que o próprio Deus, através de sua manifestação trinitária que não havia, ainda, sido formulada pela teologia da época falasse aos homens e mulheres da comunidade cristã. Carlos Torres Pastorino (32), professor de latim e grego da Universidade de Brasília, chama a atenção, nos comentários que elaborou à sua tradução dos Evangelhos, diretamente do grego, para o fato de que a expressão, no original, não autoriza a tradução com o artigo definido O ESPÍRITO SANTO, mas sim indefinido: um espírito santo, ou simplesmente, um espírito.

E o caso, entre outros, de Lucas 1:35: "Respondeu-lhe o anjo: um espírito santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; e por isso, o nascituro será chamado Santo, Filho de Deus".

- O anjo comenta o Prof. Pastorino explica que ela conceberá um espírito santo (já santificado). Em grego, aqui também não aparece o artigo, denotando a indeterminação: UM espírito santo.

A intenção do redator, nesse texto, foi a de assegurar que Jesus seria gerado pelo próprio Deus, por intermédio do "Espírito Santo", como desejava a Igreja. Na realidade, porém, não é difícil depreender que a ideia primitiva, original, foi apenas a de informar que um espírito de elevada condição viria encarnar-se por intermédio de Maria.

São várias as passagens em que o texto preservou a singela expressão um espirito ou o espírito. Em Atos 8:29, por exemplo: "Disse o espirito então a Felipe: Avança e apanha aquele carro".

Curiosamente, a palavra espirito ficou consagrada para identificar os malfeitores da invisibilidade, os demônios, os seres chamados imundos. Quando se trata, porém, de um espírito que traz uma mensagem ou advertência, que provoca um fenômeno de vidência ou de efeito físico, passa a ser Espírito Santo.

Nos Atos e nas Epístolas muitas dessas manifestações são do próprio Jesus, já na condição póstuma, ou seja, de espírito imortal sobrevivente. Os textos são, às vezes, explícitos e claros, ao se referirem ao Espirito de Jesus.

Na Segunda Epístola de Pedro, o autor observa que aproveita a oportunidade para transmitir algumas admoestações porque não se demorará muito mais "nesta tenda terrena" o corpo físico -, pois sabe que "em breve hei de despojar-me dela, como aliás Nosso Senhor Jesus Cristo me revelou".

A natural espontaneidade do texto indica que não se trata de revelação sobrenatural, maravilhosa, teofânica, mas simples informação, colhida nos habituais colóquios que Pedro mantinha com Jesus, de alguma forma que a Igreja posterior abandonaria. Aliás, a antiga tradução de João Ferreira d'Almeida conservou a ideia de continuidade e habituabilidade no relacionamento direto de Pedro com Jesus, após a morte do Senhor, ao traduzir o texto da seguinte maneira:

- Sabendo que brevemente hei de deixar este meu tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus Cristo já mo tem revelado...

Antônio Pereira de Figueiredo preferiu traduzir assim: "...segundo o que também me deu a entender nosso Senhor Jesus Cristo".

0 segundo aspecto que desejamos considerar nesta digressão é o nome Barnabé, ou seja Bar Nabas, filho da profecia, hebraísmo que significa pessoa dotada de faculdades proféticas ou mediúnicas, disposto ou preparado para isso. O nome real dessa pessoa era José, como dizem os Atos. José Bar Nabas fica sendo, portanto, algo como José, o Profeta, José, o Médium, da mesma forma que temos José, o Carpinteiro, ou Estêvão, o Diácono. Nabas, de antigas raízes, cuja conotação semântica significa estar em ebulição, em efervescência, agitação, foi certamente aplicado a José para caracterizar nele o que hoje se chamaria de estado alterado de consciência, ou, simplesmente, transe.

Ficamos, portanto, com as seguintes conclusões:

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1 Jesus não instituiu o batismo e não batizou pessoalmente a ninguém. E possível que seus discípulos hajam implantado a prática enquanto ele ainda vivia, mas não há evidência confiável disso. O texto em que ele, supostamente, manda batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é interpolação posterior e das mais incompetentes, pois essa não é linguagem de Jesus, que nada falou da Trindade.

2 E certo que a ideia básica da eucaristia tem suas raízes no hábito estabelecido por Jesus de fazer suas refeições juntamente com os discípulos e apóstolos. Após um dia de caminhada e de trabalhos, de pregação e atendimento ao crescente número de pessoas que o procuravam, é natural que reservassem uma hora para estarem juntos e a sós, para conversar, debater problemas, propor questões e colher ensinamentos com ele. Autores mais recentes estão percebendo que a última ceia deve ser colocada nesse contexto de continuidade, sem conotações transcendentais ou singulares. Percebendo a aproximação do fim daquela convivência amiga, Jesus diz uma ou outra palavra de encorajamento, cujo sentido ficaria mais claro somente depois que ele partiu. A cena do lavapés pode não ter sido autêntica em todos os seus pormenores, mas é coerente com o pensamento de Jesus e com a sua metodologia didática de transmiti-lo. Ainda que seja uma interpolação, sem nenhum suporte inicial de verdade acontecida, é compatível com a tônica de sua pregação. Nada há, contudo, no relato da ceia, que justifique a instituição de um sacramento, sem o qual a alma não se "salvaria". O que ele sugere é que se fizesse aquilo em sua memória, que fosse mantida a tradição de se reunirem para falar das coisas que, juntos, conversavam naqueles momentos de relaxamento e aprendizado. Não se vislumbra aí nenhum suporte para se concluir dos textos, mesmo adulterados, ou interpolados, que Jesus haja instituído a eucaristia como sacramento de conteúdo salvífico. Não vemos, pois, o que retocar no pensamento do Abade Loisy, que assim se expressou a respeito:

As pretensas palavras de instituição da eucaristia somente fazem sentido na teologia de Paulo, que Jesus não ensinou, e na economia do mistério cristão, que Jesus não instituiu.

Em suma: Jesus não atribuiu ao batismo e nem à eucaristia as virtudes que a esses dois ritos ficaram associadas posteriormente, pela razão muito simples de que ele não os instituiu, por não terem sentido nem espaço naquilo que ele ensinou.

3 Quanto aos demais sacramentos, creio desnecessário especular sobre a possibilidade de terem sido instituídos por Jesus. Se os textos invocados para suporte dos dois anteriores são altamente problemáticos, que dizer dos cinco restantes?

Não há dúvida, pois, de que os textos foram acomodados para dizer o que convinha às estruturas teológicas e administrativas desejadas para a Igreja, numa fase posterior. Era preciso consolidar o conceito de que nenhum ato social de certo relevo estaria perfeitamente acabado e consagrado, a não ser que fosse passado pelo crivo e recebesse a explícita aprovação da Igreja, que decidira falar, com exclusividade, em nome de Jesus divinizado. Do nascimento até à morte, do casamento à investidura sacerdotal e à dos reis, só tinham validade os atos aprovados pela autoridade eclesiástica competente. Por isso, foi necessário reescrever os textos, a fim de mostrar que a investidura de Pedro, considerado o primeiro Papa, fora promovida pessoalmente pelo Cristo e especificamente para a sua Igreja.

Se os dados históricos tivessem de prevalecer, o primeiro Papa teria sido Tiago, irmão de Jesus, e a primeira sede apostólica (o primeiro "Vaticano") seria a comunidade cristã de Jerusalém, que, como vimos, exercia sua autoridade incontestável sobre as demais. O exemplo de Antioquia é decisivo neste passo. A autorização para pregar aos gentios resultou do que se chamaria posteriormente de Concílio de Jerusalém, no ano 49. Não havia Papa em Roma naquela época para decidir se a Igreja de Antioquia deveria ou não seguir o caminho que escolhera para si. E não havia Papa algum em Jerusalém, diga-se também, e sim a autoridade de um dirigente escolhido, por consenso, mais pelas suas ligações de parentesco com Jesus, do que pela adesão desde a primeira hora ao que ele pregara. Ao contrário, o que

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se viu foi a rejeição da família, que tentou mesmo afastá-lo da tarefa para a qual viera. Não vai nisto, por favor, nenhuma censura. Qualquer família amorosa e pacata tentaria recolher e abrigar no seu seio o membro que, obviamente, marchava para o centro da tormenta. O que se quer dizer de Tiago, bem como dos demais irmãos de Jesus é que não foram seus discípulos de primeira hora, como Pedro, André e outros.

Seja como for, o papado também não foi instituído pelo Cristo e, a prevalecerem os critérios iniciais da tradição, o primeiro dirigente da Igreja foi Tiago e a primeira sede, Jerusalém e não Roma.

Isto, porém, é observação ocasional e não deve ser inflada, além de suas exatas e modestas dimensões.

A severa análise exegética a que foram submetidos os textos evangélicos nos últimos cem anos e a abordagem à personalidade de Jesus, como a de um vulto histórico e não de uma figura divinizada, além, acima e à margem da metodologia historiográfica, causaram surpresas, perplexidades e reações, tanto quanto exageros iconoclásticos.

Houve tempo em que foi quase de bom tom, intelectualmente, considerar Jesus segundo uma das várias opções demolidoras: ele teria sido um mito solar, um paranoico, um aldeão ignorante e inculto, um milagreiro, um megalomaníaco, um messias fracassado, um hipnotizador, um socialista subversivo, um revolucionário contido e executado a tempo...

A dúvida maior, contudo, girava em torno da sua historicidade. Teria mesmo existido aquele ser de que davam notícia os Evangelhos? Como explicar o silêncio de outras fontes, contemporâneas ou imediatamente posteriores?

Lembra Will Durant que, ao encontrar-se com o sábio alemão Wieland, em 1808, Napoleão deixou de lado cogitações de menor porte sobre política e guerra, para perguntar-lhe se ele acreditava na historicidade de Jesus.

Ao tempo em que o Dr. Albert Schweitzer escreveu seu erudito estudo acerca do problema havia nada menos de 30 mil livros sobre esse aspecto, segundo informa Joel Carmichael, prefaciador da tradução inglesa do JESUS, de Guignebert.

Depois de tanta agitação, a questão asserenou-se. Não há mais quem ponha em dúvida a historicidade de Jesus, a não ser que esteja mal informado ou não queira, por obstinação, reconhecer a validade do trabalho realizado nesse sentido, especialmente pelos meticulosos e escrupulosos eruditos alemães.

Enquanto isso, um grupo não menos disposto a encontrar a verdade, focava sua atenção sobre os aspectos religiosos da mensagem de Jesus em confronto com as teologias cristãs predominantes.

Uma centena ou duas de anos e alguns novos milhares de livros após esse trabalho gigantesco de vasculhamento textual, emergiu uma dupla conclusão: 1) a de que Jesus realmente existiu, como personalidade histórica, o que não foi surpresa espetacular; 2) a de que, em aspectos relevantes, vitais mesmo, não é possível afirmar que Jesus seja o instituidor, o fundador do que hoje conhecemos com a denominação de religião cristã. Isso porque, mesmo a despeito dos esforços hábeis e inábeis, competentes ou não, de um número indeterminado de escribas e manipuladores de textos, não há como justificar, com os Evangelhos em punho, importantes posturas e preceitos adotados pelas igrejas que se dizem herdeiras diretas ou indiretas do seu mandato e das tradições apostólicas.

Montou-se, em seu nome, uma teologia, com toda a instrumentação ritualística, dogmática, salvacionista, exclusivista julgadas necessárias e, em seguida, foram retomados e reescritos os textos originais que se limitavam, até então, a contar singelamente, seus principais feitos e seus ditos mais importantes. Assim, em lugar de um conjunto de normas simples e humanas de procedimento, passamos a ter uma religião, montada para impor determinada filosofia de vida, que, no entender da Igreja, era a que convinha ao ser humano. E não a melhor, mas a única. A instituição foi criada para gerir o poder decorrente da

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manipulação de massas e, apenas secundariamente, para instruir o ser humano no pensamento de Jesus, mesmo assim, pasteurizado para atender prioritariamente àqueles interesses basicamente mundanos.

11. PAULO — UMA REFLEXÃO

I. FÉ, ESPERANÇA E CARIDADEAgora, portanto, permanecem fé, esperança e caridade, estas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade (I Cor. 13:13).

Se o que temos hoje com o nome de doutrina cristã não é, precisamente, o que Jesus ensinou e pregou, então o que aconteceu? Quando, onde, como e por que o movimento que tomou o seu nome como bandeira começou a afastar-se de suas origens? Por que razão, remontando, hoje, a correnteza caudalosa do movimento cristão, não estamos conseguindo identificá-lo nas fontes de onde pensávamos que ele estivesse jorrando todos esses séculos? Como foi que Jesus acabou divinizado e por que ficou o seu pensamento obstruído por um sistema de ideias que nada têm a ver com ele? A que manipulações foram submetidos os seus ensinamentos a ponto de transformá-los numa teologia irracional? Com que finalidade foram inventados ritos, sacramentos, exclusividade salvacionista? Como foi que, em vez da doutrina do amor, que ele colocou como pedra de toque de tudo quanto ensinou, tenha começado, de repente, a ser imposta uma teologia, literalmente, a ferro e fogo, sangue e lágrimas? Que loucuras foram essas?

O nosso Mestre parecia dizer a Igreja medieval pregou a doutrina do amor universal. Somos todos irmãos, pois o Pai é um só. Por isso, você, meu irmão, e você, minha irmã, são OBRIGADOS a praticar a religião instituída por ele. Ou vocês concordam em ser cristãos ou enviaremos todos para a fogueira, e daí, para o inferno.

Volvidos os tempos, contudo, o irmão ou a irmã que não sentira, ainda, nas profundezas do ser, o chamamento do Cristo, abre os Evangelhos e descobre que Jesus não impôs a ninguém suas ideias. No caso do moço rico, por exemplo, limitou-se a lamentar que ele ainda não estivesse preparado e ensinou que era difícil a alguém, preso ao fascínio dos bens materiais, construir em si o Reino dos Céus. Que o caminho era áspero e difícil, sabia ele. Não disse ele que aquele que tomasse o arado e olhasse para trás ainda não estava preparado para segui-lo?

Então, a aceitação da sua filosofia de vida não se resume num movimento de vontade e nem mesmo de aspiração ou desejo. Esses matizes também ajudam a compor o quadro, mas o elemento decisivo é a aceitação, certa predisposição, a ânsia de paz, certo grau de maturidade emocional mínimo, que nos convença a aceitar "a leve tribulação do momento" que passa, como disse Paulo, em troca de "um enorme caudal de glória eterna". O que acontece é que muitos ainda não estão dispostos a assumir, nem mesmo a tribulação transitória. E nisto está certíssimo Paulo, que coloca a tônica da sua pregação no conceito da fé. Quem iria garantir que, aceitando a tribulação, teríamos a felicidade prometida assegurada? O argumento decisivo de Paulo foi sempre o da ressurreição de Jesus, resposta final dada ao problema da morte. A partir daquele amanhecer de domingo, a morte tombava, para sempre, como ilusão do espírito imortal. Vencido estava o que ele chama de "o último inimigo". Por isso, pergunta ele empolgado: "Onde está, ó morte, a tua vitória?" "Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" E responde, ele próprio: "0 aguilhão da morte é o pecado".

Ou seja, enquanto estivermos vinculados ao erro, a morte se utilizará do próprio erro para fustigar-nos. Libertados dele, estaremos livres dela também.

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O problema estava em que, naqueles tempos primitivos, tanto quanto hoje, foram poucas as testemunhas da ressurreição. Paulo, um deles, porque viu o Cristo vivo e recoberto de intensa luz, depois de oficialmente morto. Maria de Magdala o vira primeiro. Em seguida, Pedro e outros. A morte era uma tolice muito grande, uma ilusão, afinal desmascarada, mito, espantalho, que um dia a gente descobre ser um simples lençol pendurado numa forquilha a balouçar ao vento dos nossos temores.

Essa era a grande novidade, a notícia mais espetacular, mais sensacional de todos os tempos, ou seja, a convicção de que ninguém morre para sempre e acaba. Há um reino de glórias e alegrias à espera de cada um de nós. Ele vira pessoalmente o Cristo como luminoso ser desse mundo ainda difícil de conceber e de aceitar, mas tão real quanto este aqui, no qual vivemos, metidos num denso corpo de carne e de muitos e tormentosos desejos. Ao reino superior não se vai com o corpo pesado e corruptível, o soma grego, mas com outro, leve, luminoso, imaterial, capaz de subir aos céus, atravessar paredes e portas fechadas, mostrar-se à vidência de muitos e até assumir momentânea consistência ao toque, ou reproduzir ferimentos que ficaram no outro corpo, o corruptível. Este segundo corpo (psyche) incorruptível era o veículo, o instrumento com o qual o pneuma (espírito) galgava as regiões da incorruptibilidade.E quando falava ou escrevia sobre isso a romanos, coríntios, gaiatas ou tessalonicenses, a tônica de seu pronunciamento ficava posta no esforço de convencer ouvintes e leitores dessa realidade espiritual que ele próprio testemunhara, primeiro às portas de Damasco, e, depois, em inúmeras ocasiões em que o Cristo apresentara-se nitidamente à sua vidência e ihe dissera palavras de consolo, encorajamento e instrução.

Ao mesmo tempo, compreendia ele que o seu testemunho pessoal era bom para ele, mas aproveitava apenas a ele. Como transmitir essa convicção maravilhosa, sobre a qual assentavam-se tantas e tão imponentes realidades, a todos quantos o ouviam ou liam? O que pedia, portanto, não era muito, ou, peio menos, não impossível que acreditassem na sua palavra porque chegaria o momento em que cada um teria a sua experiência pessoal daquilo que, por ora, era apenas uma confiança no seu testemunho. Por isso, dizia ele aos hebreus, irmãos de raça e crença: "A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se véem".

E para demonstrá-lo, discorreu longamente sobre todas as coisas maravilhosas que os hebreus haviam aceitado, no passado, peio puro e singular testemunho da fé.

Escorava-se a fé na retidão do homem, pois o justo vive pela sua fé, sustentado nela, confiante nela. IMão, contudo, uma fé passiva, de braços cruzados, nem uma fé apoiada simplesmente nos velhos preceitos da lei de Moisés. A fé precisava ser ativa, construtiva, fraterna, atuante, fortalecida na esperança, dinamizada na caridade. De que adiantaria a obediência cega aos preceitos da lei antiga? A lei era apenas um catálogo de pecados, um dicionário de erros, não uma norma de vida, não um roteiro vivo de felicidade.

Fé, esperança e caridade, a trilogia que a Igreja adotou, sob o nome de virtudes teologais, são as torres elevadas da arquitetura ideológica de Paulo. O resto é comentário. Não é sem razão que os dois mais belos textos de sua autoria sejam, precisamente, o Capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios, sobre a caridade ou amor, e o Capítulo 11 da Epístola aos Hebreus, sobre a fé. Não nos esqueçamos, contudo, de que, balanceando as duas, em sua mente privilegiada, ele conclui que o amor ainda é mais importante do que a própria fé, especialmente a dinâmica do amor, que se expressa na caridade, no serviço ao próximo, a tônica do pensamento de Jesus.

Identificamos, assim, nas chamadas virtudes teologais, as estruturas que dão forma e conteúdo à mensagem pauliniana: fé na sobrevivência do ser, que Jesus demonstrara. Morto na cruz, à vista de todos, em dores atrozes, apresentou-se, mais tarde, aos seus amigos, para consolidar a fé no coração dos que ainda ficavam na carne. Ele iria à frente, mas voltaria

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sobre seus passos para recolhê-los, um a um, promessa que João documentou no versículo 3 do capítulo 14 do seu Evangelho. Essa a esperança, que assumia as proporções de uma convicção. Fé e esperança, porém, embora pessoais e, muitas vezes, incomunicáveis, intransferiveis por simples tradição, não seriam conquistas inativas, estáticas e infrutíferas. Na dinâmica do amor, convertido em caridade, elas poderiam expandir-se, acendendo em outros corações o fogo sagrado. Da esperança primeiro, para, só mais tarde, chegar à terceira irmã: a fé, como um retorno sobre si mesma.

Um tamborete precisa de três pés, no mínimo. Com apenas dois, não se sustenta. A fé e o amor devem contemplar o futuro com o olhar da confiança e, portanto, da esperança. A fé, unida à esperança, pode ser apenas egoísmo. A esperança e o amor podem não ser suficientes para construir a fé e, nesse caso, a felicidade seria apenas uma hipótese. É preciso as três, como acentuou Paulo, e que todos aspirassem às três, "mas a maior delas é o amor..."

Foi para dar testemunho dessas coisas que Jesus morrera na cruz, como um criminoso. Ante a dura e fria rigidez da lei, ele estava perdido, pois o que morre pendurado ao mastro de uma árvore não tem perdão, nem recuperação perante os homens e perante Deus. E, no entanto, acontecera essa coisa espantosa que, precisamente, o condenado é que voltava vivo da morte e recoberto de glória, para mostrar que a misericórdia de Deus paira acima das leis humanas. Os homens que fizeram aquelas leis, em nome do Senhor, não sabiam, ao certo, do que falavam e sobre o que legislavam. Deus, sim, era e é o supremo Senhor da vida e da morte.

Nesse sentido é que Jesus fora o precursor da salvação de nossas almas das sombras da morte. Escrevera o salmista acerca do temor de quem caminha solitário, pelo vale das sombras, mas confiante em que o Senhor estava ali, junto dele. Jesus viera demonstrar a realidade dessa confiança, transformando-a em convicção. Depois dele, a morte tornavase apenas uma passagem que se abria, não para as trevas, mas para a luz, não para o vazio incompreensível do nada, mas para a plenitude de uma vida ainda mais bela. Isto, bem entendido, para aquele que acreditou, esperou e amou.

Paulo sabia, contudo, que nem todos aceitariam as renúncias implícitas no processo libertador da alma, confiantes apenas no seu testemunho pessoal, ou seja, na base da fé. Mas nem esses estariam perdidos para sempre: dariam mais voltas para chegar e levariam mais tempo. Desde a criação do mundo, os seres destinados a esta habitação cósmica haviam sido confiados aos cuidados do filho mais velho, o mais experiente, o mais sábio e perfeito. Todos seriam pacientemente instruídos e recolhidos ao território da paz e da felicidade, um dia, "na plenitude dos tempos". Deus incumbira a Jesus de resgatar, em primeiro lugar, àqueles que viviam sob a lei, como diz Paulo aos gálatas, ou seja, aos que, na sua condição étnica e religiosa de judeus, estavam já convencidos da existência de um Deus único e onipotente.

Inesperadamente, contudo, foram seus irmãos de crença e raça os mais difíceis de convencer dessa realidade, mesmo para Paulo, formado nas suas tradições, doutor da lei, e dos mais brilhantes, que lhes falava na sua própria linguagem, usava suas próprias imagens, citava os mesmos textos e demonstrava a mesma realidade, apenas em roupagens novas.

Paulo entendia, não obstante, que, sozinho, o homem era impotente para aceitar convictamente a validade de tais ensinamentos. Precisaria da graça divina, sendo mínima e desprezível, no processo, a contribuição pessoal de cada um. E necessário entender bem as razões que suscitaram, no espírito de Paulo, tais conceitos.

Não teria eu a pretensão de conhecer, senão insignificante fração de toda a vasta literatura acerca de Paulo e de sua teologia (muitos até contestam que ele haja formulado uma teologia). Schweitzer, paciente e competente especialista no assunto, escreveu um livro pára cuidar exclusivamente dos intérpretes de Paulo, e outro sobre a sua mística. Ao que li sobre este aspecto particular do cristianismo nascente, quem melhor nos proporcionou elementos para entender como e por que Paulo desenvolveu o seu conceito de graça, foi Johannes

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Weiss, muito embora não tenha ele próprio entendido a dramática manifestação às portas de Damasco.

Realmente, só por uma singular concessão de sua graça inesperada e generosa, poderia Deus ter propiciado as condições necessárias para que, tombado sobre a face escaldante do deserto, como perseguidor dos discípulos do Cristo, Paulo tenha se levantado dali com a disposição inabalável de tornar-se um dos mais dinâmicos divulgadores da jovem doutrina.

O ponto vital escreve Weiss (31) foi a descoberta de que os pré-requisitos da salvação não seriam mais para ser penosamente assegurados pelo esforço humano, de vez que Deus já os havia concedido graciosamente a ele (Destaques meus).

Não é difícil, por certo, acompanhar o raciocínio de Paulo para chegar à conclusão aceitável, em princípio, que Weiss formula para ele. De fato, na sua perplexidade inicial, e convencido subitamente daquela realidade extraordinária que minutos antes lhe teria sido inaceitável, Paulo pode ter pensado: "Que méritos tenho eu para tão importante convocação, vinda diretamente de Jesus?" E mais: "A graça já estava concedida por Deus, faltava-me apenas aceitá-la".

Isto explicaria, no seu ideário, a doutrina da graça que passaria a pregar insistentemente, pois foi por meio de um "flash" inexplicável, inesperado e imerecido que ele se viu arrojado de um pólo a outro, do ódio ao amor, da posição de promotor público, de acusador da causa cristã à de um dos seus mais dinâmicos, eficientes e valentes advogados.

Em verdade, o fenômeno da chamada 'conversão' de Paulo tem razões subjacentes que os textos paralelos e suplementares sugerem sem, contudo, enfatizar.

Em Atos, Capítulo 9, em manifestação semelhante, Jesus envia o relutante Ananias a curar Paulo de sua cegueira, ainda em Damasco, dizendo-lhe que aquele homem era "um vaso escolhido". O ato de escolher pressupõe, obviamente, uma decisão anterior, ou seja, Paulo estava destinado, já ao nascer e isso ele próprio confirmaria mais tarde à tarefa de divulgar a palavra de Jesus. Andara transviado, não apenas esquecido dela, mas temporariamente hostil a ela. Como sua formação cultural precisava ser desenvolvida, em toda a amplitude de seu potencial, nos círculos tradicionais que lhe competiria, mais tarde, contestar, parece ter-se ele deixado empolgar transitoriamente por aqueles conceitos. Mesmo porque se muitos deles estavam superados e eram até obstrutivos, alguns continuavam perfeitamente válidos e aproveitáveis, como se veria mais além, em seus escritos doutrinários.

Ante a figura majestosa de Jesus, revestido do seu corpo de luz, ele prontamente se decide a assumir ou reassumir seus compromissos espirituais. Uma vez que num grosseiro corpo de matéria densa, perdera, de certa forma, a visão da realidade espiritual, aquilo só poderia ter resultado de uma graça incompreensível de Deus. Em verdade, estava ele diante de uma programação cuidadosamente planejada, no contexto de uma realidade que só agora ele podia perceber, do seu difícil ponto de vista, atrás do denso véu da carne.

Estou bem consciente de que o leitor cético ou obstinadamente materialista poderá ter, nos lábios, o sorriso fugidio da descrença irônica, pois estou, com isto, propondo uma visão espiritual do evento, o que confirmo explicitamente. É uma visão espiritual! Quero dizer precisamente isso: que Paulo viu, de fato, o Cristo imortal nas vizinhanças de Damasco e que Paulo, também espírito imortal e preexistente, trazia para aquela vida o compromisso de aqui trabalhar pela causa de Jesus. Do contrário, não teria sentido a informação transmitida a Ananias de que ele, Paulo, era um "vaso escolhido".

Momentaneamente esquecido do que prometera antes de nascer, tivera de ser convocado de maneira algo insólita e dramática para realizar a tarefa que aceitara ainda como espírito.

Semelhantes esquecimentos e até transviamentos ocorreriam várias vezes na História subsequente do cristianismo. Com Francisco de Assis, por exemplo, ou com Agostinho, que, antes de assumirem suas tarefas, também experimentaram outros caminhos ou descaminhos,

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até que fossem despertados para os compromissos acertados no mundo espiritual, de onde provinham. Um ser da envergadura moral e intelectual de Paulo, de Francisco ou de Agostinho não se improvisa. Ele resulta de longa maturação, de uma sedimentada experimentação de muitas vivências, de lutas, aprendizados e realizações, o que não impede que, por um momento, em termos cósmicos, sintam-se aprisionados por certas inibições e equívocos que, cedo ou tarde, acabam por ser corrigidos e superados.

Já que citamos nominalmente três seres de elevada condição evolutiva que hesitaram e claudicaram, de início, e até chegaram a trilhar, por algum tempo, perigosos atalhos, é bom lembrar que outros, não menos evoluídos e preparados, falharam por se deixarem levar pelos envolvimentos do mundo. Maomé é um destes últimos. Como valoroso trabalhador espiritual, foi investido de uma tarefa de alta responsabilidade e de vital importância para a renovação do cristianismo e, no entanto, rompeu com os compromissos assumidos, alienou o apoio de seus fiadores espirituais e acabou arrastado pelo vendaval que ele próprio desencadeou.

Estou, sim, propondo uma visão mais inteligente e ampla do problema da conversão de Paulo, obstáculo que se tem revelado de tão difícil transposição até mesmo para aqueles que se dizem TEÓLOGOS, ou seja, seres devotados a um ramo do conhecimento humano especializado na investigação das coisas de Deus

E precisamente essa visão que tem faltado aos que se dedicam ao estudo do processo formador do cristianismo. Já é tempo de dizer alguém que a doutrina de Jesus está baseada exatamente nessa realidade espiritual, que se tornou, com o passar do tempo, embaraçosa, inaceitável, ridícula e até sintoma de alienação mental para muitos dos que levaram a vida a pontificar como verdadeiras autoridades no assunto. Pois não diz Renan que o cristianismo é a resultante da visão alucinatória de uma doida, que pensou ver o Cristo ressuscitado? A verdade pura e simples, no entanto, é a de que ela viu mesmo o Cristo vivo depois de "morto". E o Sr. Renan deve estar, até hoje, curtindo a embaraçosa decepção de que ele, sim, é que não estava bem nos seus conceitos e nas suas informações para decidir que Jesus fora, naquele momento, apenas uma figura alucinatória na percepção desvairada de uma histérica.

Schweitzer afirma que Paulus "julgou" ver o corpo espiritual da mulher recém-falecida. Weiss acha que isso são "experiências visionárias" e, como tal, devem ser consideradas, ou seja, como fenômenos que ocorrem sem "um correspondente objeto externo". Quer dizer, o Cristo não estava ali e sim na cabeça perturbada daquela gente. Mas e Paulo, que nem o conheceu pessoalmente? Para saber de quem se tratava teve de perguntar! Guignebert e Goguel não se mostram mais compreensivos ante o problema, têm as mesmas inibições e apelam para o mesmo "argumento" de sempre (alucinação), dado que não há como ignorar de todo o problema, que se tornou "embaraçoso".

Eis o que entende Goguel:- ...chegou um momento (para Paulo) em que a atividade inconsciente adquiriu tal

força que acabou triunfando sobre todos os obstáculos e encontrou uma conclusão positiva. Explodiu, então, no campo da consciência e se objetivou numa visão, que o apóstolo julgou ter sido uma presença direta do próprio Cristo. Tentando avaliar o que, de fato, lhe acontecera, achou ele que o Cristo havia interferido pessoalmente em sua vida e causado sua conversão. (Destaques meus).

Hans Kung não pensa diferente. Schillebeeckx (33) parece ainda mais radical. A expressão visão do Cristo aparece entre aspas no seu volumoso tratado de Cristologia. Num exame específico desse aspecto da conversão de Paulo, ele considera muito frágil ("thin", na versão inglesa) o núcleo central da narrativa da visão, mas...

- ...cheia de símbolos luminosos: luz, cegueira. A luz cegante que envolve Paulo completamente diz-lhe imediatamente que ele tem estado cego, na sua perseguição a Jesus. Deve tornar-se contrito, ou seja, 'jejuar durante três dias'.

Diante de coisas como essas, não há dúvida de que até mesmo os teólogos e

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principalmente eles parecem envergonhados ao confrontarem-se com uma realidade que não conseguem digerir, uma vez que já decidiram que essa história de visão é fenômeno alucinatório, subjetivo, patológico e inconsistente e, portanto, fora do contexto do cristianismo, quando é precisamente da sua essência

Guignebert assinala que o Cristo acreditava no "duplo" etérico (ou seja, no corpo espiritual), no milagre e em coisas semelhantes. Não era só nisso devemos esclarecer e não era apenas crença: era e continua sendo certeza. O Cristo não acreditava, ele sabia que era assim que se passavam as coisas, como disse no diálogo com Nicodemos.

É, pois, um estranho espetáculo intelectual acompanhar as especulações de teólogos e historiadores em torno de questões de natureza espiritual, sem a mínima noção do que seja espírito e sem aceitar nem mesmo a hipótese de que ele possa existir e sobreviver. São, contudo, as pessoas que falam e escrevem e ensinam sobre o cristianismo. Que tipo de imagem pode resultar de tão esdrúxulas opiniões?

Que pensaríamos de um físico que fosse escrever um tratado sobre sua especialidade sem aceitar, de forma alguma, a existência da matéria?

Paulo é, assim, não apenas o Apóstolo dos Gentios, mas também o da fé, o da esperança e o da caridade, mas principalmente, o pensador cristão familiarizado com aspectos essenciais ao entendimento da vida e, consequentemente, daquilo que Jesus ensinou e exemplificou. Já que não pode mostrar a todos o Cristo ressurreto, dá o seu testemunho e o de outros e pede para ser aceito na base da fé. Tempo viria em que todos teriam idêntica convicção. E a esperança, que nasce, não de uma ilusão, mas da fé que, por sua vez, vem do testemunho daqueles que viram e falaram com um ser oficialmente morto. Não prega, contudo, uma fé cega e passiva, conformada à espera de que tudo aconteça em nosso proveito, sem trabalho pessoal. Propõe uma fé ativa, dinâmica, devotada ao serviço da coletividade, tanto quanto de cada um em si mesmo. Uma fé que deve e precisa conviver com reto procedimento, com a paciência, com a aceitação de dificuldades, com a prática do amor ao próximo.

Paulo considera esse tipo de fé uma dádiva de Deus e nada mais tem com as centenas de preceitos da lei antiga, que ditam um procedimento que, supostamente, nos preserva do mal, mas nada constroem em nós das arquiteturas do bem. Isso não quer dizer que Paulo tenha passado, súbita e radicalmente, a uma rejeição do judaísmo, como um todo. Muita coisa se preserva nele das antigas crenças, a começar pela existência de um Deus único e onipotente. Em Atos 21:39, ficou documentada sua enfática declaração: “Sou judeu, natural de Tarso, cidade de algum renome..." Em Filipenses (3:5) é ainda mais específico: "Circuncidado no oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu efilho de hebreus, quanto à lei, fariseu..."

Em mais de uma oportunidade declara, nas suas Epístolas, que a mensagem de Jesus se destina, em primeiro lugar, ao judeu e, em seguida, ao gentio. Já de séculos, vinha o povo judeu sendo consolidado na convicção do Deus único, estando, em consequência, mais predisposto à aceitação dos ensinamentos de Jesus, que falava em nome de um Deus único, do que gregos e romanos, que ainda viviam a era mitológica da multiplicidade dos deuses.

Não obstante, Paulo foi bem lúcido para saber que, no fundo, eram todos iguais perante o Cristo: judeus, gregos e bárbaros. Aos Romanos (10:12) diz que "...não há distinção entre judeu e grego, pois ele (Jesus) é Senhor de todos..."

O conceito da justificação exclusiva pela fé, independentemente das obras e da ação dinâmica da caridade é um dos mais lamentáveis equívocos de seus intérpretes. Isso não está em Paulo. Ao contrário, escreve ele, repetidamente, que as conquistas espirituais são resultantes daquilo que fazemos, ou seja, das nossas obras. E esse, aliás, o tema de todo o capítulo 2 da Epístola aos Romanos, onde ele lembra antigos textos que exprimem claramente a posição de que Deus "retribuirá a cada um segundo suas obras" e continua, explicitando: "Tribulação e angústia para toda pessoa que pratica o mal, para o judeu em primeiro lugar,

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mas também para o grego; glória e paz para todo aquele que pratica o bem, para o judeu em primeiro lugar e também para o grego, porque Deus não faz acepção de pessoas".

E volta ao assunto, em 3:20, para reiterar:...porque diante dele (Deus) ninguém será justificado pelas obras da lei, pois da lei só

vem o conhecimento do pecado.É preciso entender que Paulo faz distinção bem nítida entre a lei de Deus, que deve e

precisa ser observada por aquele que almeja à paz, e a lei dos homens (a mosaica) que nada acrescenta a não ser a identificação do erro. Daí a sua insistência em pregar que a obediência à lei de Deus, na prática do bem, traz, como consequência, a felicidade permanente, ainda que a troco da tribulação momentânea, pois o que é a vida na Terra colocada na perspectiva da eternidade? Da mesma forma, a desobediência à lei divina produz a angústia, a infelicidade, a aflição.

Já a lei humana, nada disso produz. Tanto faz ao crente ser circuncidado ou não, fazer ou não alguma coisa no sábado, cumprir ou não certos preceitos ritualísticos, como lavar as mãos antes da refeição, que pode ser, no máximo, um hábito de higiene, mas não uma rotina salvacionista, em busca de recompensa divina.

A fé é um dos matizes desse quadro, e dos mais importantes, mas não o mais importante, pois, em destaque, Paulo botou o amor ao próximo, como sabemos. Dizer que a fé salva com exclusividade é revelar desconhecimento da intimidade das concepções teológicas de Paulo. De que serviria a fé, se o indivíduo se obstinasse na prática do mal? Já a prática do bem, mesmo sem fé, produz benefícios a quem o pratica e a quem recebe os seus efeitos.

Parece ter resultado esse mal-entendido, de uma tradução defeituosa de antigos textos. Três vezes Paulo reproduz a expressão na qual se baseia o entendimento da justificação pela fé, retirando-a do texto de Habacuc (2:2-4), onde o antigo profeta diz:

Eis que sucumbe aquele cuja alma não é reta, mas o justo viverá pela sua fidelidadeClaro que fé e fidelidade são termos semanticamente aparentados, pois a raiz é a mesma

e, claro, também é que ter fé é ser fiel a algum princípio, da mesma forma que ser fiel a determinado preceito é ter fé nele. Em verdade, porém, o que o profeta deseja enfatizar é que o homem bom, justo e correto, viverá a sua fé na fidelidade aos preceitos divinos, ou seja, no respeito e obediência à Lei de Deus. Trata-se, pois, de uma fé viva, dinâmica, prática e não teórica e morta. Em outras palavras: não basta a fé, é preciso vivê-la.

Segundo esclarece a Bíblia de Jerusalém, os tradutores da Setuaginta versão do Antigo Testamento em grego trocaram o termo fidelidade por fé.

Albert Schweitzer acrescenta um informe, ao dizer que o texto hebraico diz, realmente que "O justo viverá pela sua fidelidade", mas que os tradutores da Setuaginta mudaram também o sentido, em mais de um aspecto, convertendo 'sua fidelidade' em 'minha (de Deus) fidelidade'. Acha o eminente pensador alsaciano que Paulo chegou à sua fórmula ao combinar o texto hebraico com o grego da Setuaginta, do que228resultaria o seguinte sentido: "O justo que crê, viverá", ou, ainda, "Aquele que crê, viverá".

Isto nos leva a cogitar, em maior profundidade, do conceito de salvação, implícito e explícito naquilo que vimos debatendo aqui.

E o que faremos a seguir.

II. SALVAÇÃOAquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo. (Mat. 24:13)

A fé não é, na concepção de Paulo, um instrumento absoluto de salvação por si mesma. Não basta crer, mesmo porque, no seu entender, a fé é graça divina, o que tornaria confuso o seu conceito, se tomado exclusivamente nesse contexto. Se é graça divina, já estamos salvos, porque Deus nos distinguiu com seu favor gratuito; se não recebemos a graça, estaríamos

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condenados, mas sem culpa caracterizada, porque Deus nos recusou aquilo que a outros concedeu, decidindo, portanto, a quem ele desejava salvar e a quem pretendeu condenar, independente de culpas, o que seria monstruoso e totalmente incompatível com os atributos mesmos da divindade.

E certo que Paulo considera as coisas de seu ponto de vista pessoal, apoiado na sua experiência, pois, a não ser por uma graça enormíssima e imerecida de Deus, como poderia um rancoroso perseguidor da jovem seita cristã, como ele, converter-se subitamente num dos seus mais destacados propagandistas? E igualmente certo que essa visão estreita de salvar-se apenas aquele que crê, não era a de Paulo, como se viu, pois ele deixa bem claro alhures que, na plenitude dos tempos, TODOS se salvariam, ou seja, conquistariam a felicidade permanente, a glória espitirual.

Isto nos leva, a propósito, a um dos seus famosos e fundamentais conceitos: o da predestinação, também vitimado pela mesma interpretação estreita e defeituosa, que confunde importantes aspectos de sua pregação, tão decisiva na formação das estruturas teológicas do futuro, que é o nosso presente.

Em Romanos 8:28, ele expõe com clareza e lucidez o que a Bíblia de Jerusalém denominou "O Plano da Salvação":

E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio. Porque de antemão os que ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de ser ele o Primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou, e os que justificou também os glorificou.

Ensinando aos Efésios (1:3-12), retomaria ele o tema, explicitandoo de maneira semelhante. Assim:

Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele, ele nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor. Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo.

Isto se realizaria, contudo, não por um "fiat" da vontade divina, mas na plenitude dos tempos. Ou seja. Deus nos concede todos os recursos para realizarmos em nós o trabalho da redenção espiritual, que acabou ficando com o rótulo inadequado de salvação; não, porém, realizando-a por nós e sim conosco. A graça está nas suas concessões, nas possibilidades e potencialidades que colocou à nossa disposição, mas o trabalho é de cada um, pessoal, intransferível, ainda que adiável no tempo. Insiste o Apóstolo, contudo, em que fomos eleitos de antemão, "predestinados pelo propósito daquele que tudo opera" a nos convertermos, no tempo devido, em seres de porte evolutivo semelhante ao de Jesus, modelo, meta e cabeça, filho mais velho, mais experimentado, mais perfeito do que todos nós. Somos dele, irmãos menores, em luta contra imperfeições e mazelas de toda sorte. Estamos, pois, predestinados por Deus a sermos "conformes à imagem de seu Filho", não unigénito, mas, explicitadamente, "primogênito entre muitos irmãos". Conceito, aliás, que Jesus é o primeiro a afirmar, em mais de uma oportunidade. Uma vez, por exemplo, dizendo que com uma simples migalha de fé, do tamanho de um grão de mostarda, "nada nos seria impossível". De outra, declarando que os discípulos poderiam fazer tudo aquilo que ele fazia e muito mais. Não pretendia ele, assim, o monopólio da verdade, da perfeição espiritual, dos dons carismáticos, da sabedoria, do amor. Ao contrário, sua presença entre nós resultou de decisão sua de nos convencer de que em todos os que aqui se encontram, existe, intacto, o potencial da perfeição.

Essa é a imagem que Paulo tem do Cristo: um ser maravilhosamente bem dotado, conhecedor dos mistérios da vida, dono de uma sabedoria insondável, capaz de um devotamento que ultrapassa as fronteiras do compreensível, mas um ser humano, não divino,

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e, como tal, modelo viável de realização, meta possível de alcançar-se.Precisamos, contudo, aprofundar um pouco mais as razões implícitas no plano

salvacionista de Paulo, correto na sua formulação original, mas posteriormente destorcido e deformado, na sua adaptação à teologia dogmática adotada pelas igrejas cristãs.

Em primeiro lugar, é necessário examinar o conceito mesmo de salvação.Embora Paulo insista, em várias passagens, na ideia de que a morte de Jesus na cruz tenha

um conteúdo salvacionista, ou salvífico, segundo o jargão teológico profissional, não vejo nos seus escritos a ideia de que o sofrimento do Cristo nos resgate por si mesmo, como se apagasse com uma esponja todos os nossos erros. Se assim fosse, para que tanto insistiria ele nas boas obras, no procedimento correto, na prática da caridade, no amor ao próximo? Se o Cristo nos salvou para sempre com a sua dor, nada disso faz sentido, o que seria simplesmente inaceitável, primeiro porque o inocente não é destinado a assumir a responsabilidade pela falta alheia, lavando-lhe a mancha do erro. Onde ficaria o preceito de que "a cada um (é dado) segundo suas obras"? E que mérito, ou necessidade teriam as obras ou a fé, se estivéssemos já resgatados pelo sofrimento do Cristo? E que sentido teria o próprio pecado, como falta pessoal, se alguém acaba resgatando-o por nós? Não está repetidamente reiterado, até mesmo no Antigo Testamento, que cada um responde pelo que faz? Não é o que come uvas verdes que fica com os dentes estragados?

O que se vê, em Paulo, é que o Cristo veio à Terra pregar uma doutrina salvacionista, sim, no sentido de que, cumprindo determinadas práticas ditadas pelo preceito supremo do amor, na sua mais pura expressão humana, estaríamos nos redimindo nós mesmos, com o procedimento reto de erros e crimes.

A morte do Cristo é um testemunho, a confirmação de uma realidade, a evidência de uma abertura para o alto, para a imortalidade, o correr de uma espessa cortina que nos impedia a visão panorâmica do futuro que nos aguarda a todos. Nesse contexto, a fé é, como a conceituou Paulo, em sua carta aos irmãos hebreus, a posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar o indemonstrável por outros meios, ou seja, as realidades que ele chama de invisíveis.

Jesus veio, ensinou uma doutrina redentora e demonstrou, com a sua morte e sobrevivência, as metas superiores da vida, uma realidade desconhecida ou ignorada, mas não menos legítima do que a visível, a qual, até então, era a única de que, aparentemente, dispúnhamos. Nesse sentido, sim, a sua vida, como um todo, possui um conteúdo eminentemente salvador, não a sua morte em si e por si mesma.

Aliás, como assinala Raymond Brown (7, pág. 402), Lucas emprega o termo salvador uma vez, (1:47), referindo-se a Deus, ao reproduzir o Magnificai, mesmo assim, reportando-se a textos antigos. Em 1:69 coloca na boca de Zacarias, em outro cântico, o Benedictus, a expressão, segundo a qual Jesus seria "a força da salvação", o que está longe de significar que ele foi o Salvador. Lembra Brown que nem em Mateus, nem em Marcos aparece o termo SOTER (Salvador) relacionado com Jesus.

231A ideia de Jesus como Salvador, portanto, é posterior e, a meu ver, não está também em Paulo, no sentido de que, por si mesma, a morte do Cristo nos devolva ao estado de pureza, precondição de admissão ao Reino de Deus. A salvação que Paulo propõe é pela fé, ou melhor, pela fidelidade aos preceitos da lei divina, não a mosaica. Mesmo assim, acrescenta, como também vimos, que, a despeito de nós mesmos, estamos todos predestinados à felicidade e à paz, na plenitude dos tempos. Informa, ainda, que antes da formação da Terra, como uma das moradas cósmicas. Deus nos entregara à competente e amorosa liderança de Jesus, que, sendo "mais velho" (primogênito), adquirira experiência, conhecimento e sabedoria suficientes para nos conduzir às supremas realizações evolutivas.

Claro que isso pressupõe o conceito da preexistência do ser, não apenas a de Jesus, entidade espiritual muitíssimo evoluída, antes mesmo que a Terra fosse elaborada, como, por

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extensão, a preexistência de todos nós.A vida não é, pois, um breve segmento que começa com o nascimento na carne e termina

com a morte. Não é mero piscar de um vagalume na solidão cósmica. Certamente tem suas origens, porque não poderíamos ser coeternos com Deus, ou seríamos também deuses, mas, enquanto numa das pontas ainda que distante ela tem princípio, a outra se abre para a própria eternidade, como demonstrou Jesus. Em outras palavras, uma vez criados e ainda não sabemos como se desenvolve o processo, nas suas remotas origens já os primeiros passos do ser, por mais rudimentar que seja, são dados na rota infinita da eternidade.

A ficção científica habituou o público leitor à ideia de mundos mais evoluídos do que o nosso, conceito que a ciência não mais põe em dúvida e até busca evidenciar com a sua instrumentação. A imaginação dá voltas sobre si mesma ante a simples especulação acerca do nível em que estarão, espalhadas pelo universo, civilizações e, portanto, seres inteligentes que se encontrem não apenas a 500 ou mil anos à nossa frente, mas a um ou dois milhões de anos, medidos pela escala astronômica da Terra.

Um ser desses, com a experiência acumulada de milhares de séculos, sustentado por elevadíssimos critérios de moral e na posse de inconcebível conhecimento, terá, por certo, sabedoria suficiente para assumir as responsabilidades de conduzir imensa leva de seres inexperientes e "mais jovem" às mais fantásticas realizações espirituais. É tudo uma questão de tempo e que é o tempo para quem dispõe da eternidade? Um dia esse tempo estará cumprido e, na sua plenitude, se dará também a plenitude evolutiva de todos os seres confiados aos cuidados fraternos de Jesus. Não há nisso nenhuma fantasia transcendente, visionária ou mística apenas uma realidade que Paulo nos solicitava a aceitar pela fé, enquanto não tivéssemos maturidade suficiente para entendê-la pela razão. No fundo, o que diz ele é o seguinte: "Creiam que é assim, pois um dia vocês todos saberão que é mesmo assim. Nesse ínterim, estejam tranquilos e caminhem ao sabor das leis divinas e não ao arrepio delas, pois todos nós estamos predestinados à felicidade total, por Aquele que nos criou e nos entregou às mãos competentes de um irmão mais velho".

Estou igualmente alertado para o fato de que tal esquema nos pede outra importante condição, além da preexistência individual a da multiplicidade das experiências na carne, ou melhor, das vidas sucessivas.

Seria tolice supor que podemos dar um salto qualitativo tão grande, no contexto de uma só existência na matéria, a ponto de, após uma única vida, alcançarmos a realização plena do Reino de Deus. Essa estreiteza angustiante de concepção torna inexplicável fenômenos e realidades que não temos como ignorar, como o sofrimento daquele que, aparentemente, não errou, da mesma forma que a manifesta impunidade e prosperidade do criminoso.

Num universo eminentemente causal, isto é, onde causa e efeito estão acoplados um ao outro, não seria possível explicar o efeito da dor, sem uma causa determinante, a não ser admitindo o sofrimento ou a punição do inocente, o que estaria em desacordo com a justiça e a misericórdia divinas. Como iria a vontade de Deus, operando através das leis imutáveis da vida, impor sofrimento ao que não errou ou, vice-versa, isentar da responsabilidade de seus erros aquele que os cometeu? Em todas as oportunidades oferecidas, Jesus reitera a vinculação clara entre dor e erro, sofrimento ou doença e culpa. Após curar o paralítico, junto à Porta das Ovelhas, diz ele "Vai e não peques mais, para que não te suceda algo ainda pior". Coisa semelhante disse ao paralítico trazido num catre (Mat. 9:2): "Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te são perdoados".

Há, pois, uma conexão entre pecado e dor, erro e sofrimento. Como explicar, contudo, o sofrimento daquele que, aparentemente, não pecou, pelo menos naquela existência conhecida, como é o caso do cego de nascença? E se estamos todos predestinados à chamada salvação, isto é, à redenção final, temos de dispor de tempo suficiente para resgatar nossas faltas, no processo mesmo da redenção e não sofrer por elas pela eternidade a fora. E as oportunidades

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e condições de fazê-lo. O perdão está implícito na lei divina, mesmo porque Deus não poderia sentir-se ofendido com o nosso erro de seres falíveis e imperfeitos. Se o objeto da misericórdia divina e de sua sabedoria está precisamente em assegurar a felicidade de todos, as leis divinas têm de proporcionar-nos todas as oportunidades e a instrumentação necessária para cumprirmos seus próprios desígnios a nosso respeito. Como admitir a criação de seres já destinados à condenação eterna? Como admitir que Deus perdoa, mas não nos concede os meios de recuperação? Em verdade, o Reino de Deus não se toma de assalto, ele é construído pela difícil e lenta aniquilação de impulsos negativos em nós, ao mesmo tempo em que vamos construindo, com tenacidade e esforço, as estruturas do bem. É tudo uma questão de opção, de decisão, de livre escolha.

Isto nos leva ao problema do livre arbítrio.

III. LIVRE ARBÍTRIOTudo me é lícito, mas nem tudo me convém (I Cor. 6:12).

Não é necessário um tratado para especular acerca da interação livre arbítrio/determinismo. Paulo sintetizou a questão numa só frase. A lei divina nos concede uma amplitude quase infinita de opções, pois viver é escolher. Em princípio, tudo é permitido. Posso odiar ou amar, assassinar ou perdoar àquele que me causou uma aflição maior. Na hora da opção pela atitude agressiva ou negativa, a lei não interfere para forçar a paralisação do braço assassino ou para calar a boca que calunia; ela vai atuar depois, mais tarde, um dia, para exigir a reparação do erro cometido. Em outras palavras: a lei permitiu ou admitiu a opção pelo erro, mas aquele que erra descobrirá, mais adiante, que não foi de sua conveniência tomar a opção que tomou. Ao errar, assume, qualquer pessoa, responsabilidade pelas consequências que irão pedir a reparação; assina uma promissória, que, um dia, lhe será apresentada para resgate. Raramente o vencimento dessa promissória se dá naquela mesma existência em que o erro foi cometido. O mais comum é o que errou beneficiar-se, aparentemente, do seu crime, ficando na posse dos bens da vítima, de sua mulher, ou de seu esposo, de sua posição de mando ou, pelo menos, aparentemente, livre para gozar das coisas que julga de seu interesse gozar. Mas a cobrança virá um dia, fatal e inapelável, numa existência ou noutra e, então, parecerá que o inocente está respondendo por pecados que não cometeu.

Jesus ensinou que será ferido a espada aquele que, anteriormente, haja ferido alguém com a espada. É preciso considerar, contudo, que a cobrança não tem sentido punitivo e sim educativo. Aprendida a lição de que ao ato negativo segue-se um sofrimento, uma dor, uma aflição, uma doença, um defeito físico ou mental, o ser acaba aprendendo a libertarse da dor pelo singelo e eficaz expediente de não cometer mais erros, pois àquele que nada deve não há como e o que cobrar.

Em suma: escolhemos livremente a ação, mas a reação nos é imposta, da mesma forma que, numa área de terreno, podemos plantar flores, legumes ou plantas venenosas, certos, contudo, de que iremos colher exatamente o que plantarmos. Ao semear o que o nosso arbítrio escolheu, precisamos estar conscientes de que determinamos, simultaneamente, qual será a colheita. Como vamos querer lírios onde plantamos espinheiros?

Logo, o determinismo de hoje é a resultante da livre escolha de ontem, da mesma forma que as nossas escolhas de agora estão determinando, inexoravelmente, o nosso destino amanhã.

Perguntado quem teria errado aquele cego de nascença conhecido de todos, ou seus pais Jesus respondeu, corretamente, ensinando que não fora ele (o cego daquela existência, naquela personalidade) e nem seus pais, pois não pagam uns pelos pecados de outros. A explicação era simples: estavam manifestas, ali, as leis divinas, que prescrevem que a cada erro corresponde uma cobrança, a cada desvio, um reajuste, a cada pecado, uma dor. E como

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o sofrimento da cegueira não se explicava por crimes daquela existência, pois o homem já nascera cego, e nem podia ser imputada aos seus pais e, ainda, como a dor está sempre acoplada ao pecado, erro havia e, portanto, em outra existência.

Esse o mecanismo da lei que ali operava e continua a operar e vai continuar em operação, pois é um dispositivo universal, natural, irrevogável, retificador; flexível, mas inexorável. Em verdade, a lei pode adiar a cobrança, mas não deixará jamais de ser cumprida, nas penitenciárias da dor o mais comum para os rebeldes renitentes ou no campo do amor ao próximo.

Isso quer dizer que não será, forçosamente, necessário que alguém seja assassinado porque, no passado, cometeu um assassinato. Não é preciso que alguém cometa contra ele crime semelhante ao seu para que o antigo criminoso se liberte do seu erro, o que seria incongruente, isto é, o resgate do crime pela prática de outro crime. Não apenas pode ele sofrer um acidente, aparentemente fortuito, no qual seja traspassado o seu coração com uma barra de ferro, por exemplo, ou decepada sua cabeça num desastre involuntário de tráfego, como pode ele, devotado ao próximo, cuidar de que outros não cometam desatinos ou sejam aliviados de dores físicas e morais. O resgate também se faz na dinâmica do amor.

Não é, pois, absurdo admitir-se que o espírito que animou a personalidade de Judas Iscariotes tenha "nascido de novo" para animar a personalidade de Joana d'Arc, na qual, em vez de cometer a traição que resultou na morte de um justo, é sua vez de ser traído, julgado, condenado e executado, também inocente daquela acusação específica que lhe era imputada. Teria sido aquele ser, como Joana, que pecou ou foram seus pais que pecaram e ela estaria respondendo por estes erros?

A resposta correta é esta: "Não, não foi Joana que pecou (como Joana), mas pecou, sim, (como Judas) e o que ora lhe acontece é o exercicio da lei divina que lhe cobra, não por vingança, mas para libertá-la da carga negativa do erro".

A lei, portanto, não impediu que tal espírito escolhesse livremente ninguém o obrigou a opção do erro, mas, no tempo devido, apresentou-lhe a conta para resgate, para reequilíbrio do seu mundo íntimo, para retranquilização de sua consciência atormentada, para proporcionar-lhe condições de, novamente, contemplar o sereno olhar de Jesus. E, acima de tudo, para que, aprendida a lição, não voltasse a cometer crime semelhante.

Por conseguinte, tudo nos é lícito, mas antes da ação criminosa, um segundo de pausa para pensar se aquilo realmente nos convém pode livrar-nos de séculos de angústia e remorso.

Como explicar, de outra maneira, o incompreensível sofrimento de Joana, de quem todos fugiram e contra quem muitos se voltaram para condená-la ao terrível tormento das chamas? Nem o rei que ela havia posto no trono, nem os sacerdotes da Igreja que ela considerou, até o fim, como a sua Igreja, estenderam-lhe as mãos para ajudar e sim, o dedo em riste para acusar. Tanto foi inocente seu sofrimento, em relação àquela vida, que foi logo revisto o seu processo com o objetivo de converter sua imagem de uma endemoninhada numa santa, passando-a do inferno para os altares. E tanto era culpada de alguma falta anterior que a lei permitiu seu sofrimento, porque o Espírito precisava, para purificar-se e serenar a consciência aflita, de sentir na própria carne, aflições que, com o seu antigo gesto, acarretara a outro ser.

Em suma: fora-lhe lícito trair Jesus, pois a lei não o impedia, mas não lhe convinha fazê-lo.

Resta um aspecto: a condenação e morte de Jesus não teriam sido atos programados por antecipação? Não teriam mesmo de acontecer?

Não sei se teriam de acontecer exatamente daquela maneira que aconteceram. Mas poderiam ter ocorrido sem a participação de Judas, por um conjunto outro de circunstâncias. Ao deliberar vir trazer pessoalmente sua mensagem renovadora, Jesus sabia muito bem dos riscos e dificuldades que o aguardavam. Não sabe o domador de feras que se expõe a ser

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dilacerado, quando penetra na jaula dos animais selvagens? Até o tratador, que apenas lhes traz o alimento, pode ser trucidado e devorado... Não, contudo, que alguém precise instigar os leões ao ataque.

Há, pois, um quadro esboçado com as cores do determinismo e embora não as possamos ignorar ou modificá-las ao nosso arbítrio, continuaremos com direito de escolha sobre a maneira de resolver certos aspectos particulares.

Judas não viera para a vida programado para trair o Cristo. Pelos componentes da sua personalidade e dos seus compromissos, bem como de seus propósitos, havia um risco de que falhasse no desempenho de sua missão, como aconteceu, mas não necessariamente. Conseguisse ele superar suas deficiências, teria resgatado erros anteriores, em vez de comprometer-se com novos e graves equívocos que se debitavam à sua conta para futuro ressarcimento.

IV. AS EPÍSTOLASDei-vos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar. Mas nem mesmo agora podeis, visto que ainda sois carnais. (I Cor. 3:2-3).

É difícil avaliar toda a extensão e profundidade da teologia de Paulo à base de suas epístolas. Como tem sido dito e reiterado, elas não constituem tratados de teologia e é bom que não o sejam e sim cartas de instrução sobre alguns aspectos gerais e específicos ou particulares da igreja à qual são dirigidas. Já se observou, por exemplo, que Paulo não escreve sobre episódios da vida de Jesus, seus ditos, seus milagres e atos, concentrando-se no prodigioso fenômeno da ressurreição. Ele não fala de um Cristo pregado à cruz, sofrido e agonizante, batido e derrotado, mas de um Cristo vivo, recoberto de luz e glória, que o buscou no caminho para Damasco e que com ele se entendia pessoalmente em momentos de crise mais grave, para dar-lhe uma palavra de consolo, de estímulo ou de instrução. Não sabemos, ao certo, sobre o que pregava ele de viva voz, aos que buscava, nas suas incansáveis andanças, mas não teria sido muito diferente do que dizem suas cartas, nas quais escrevia sobre a Teologia da Ressurreição, ou seja, da sobrevivência do espírito imortal.

É certo que estava ele convencido, pelo menos de início, de que Jesus voltaria logo para implantar o Reino de Deus religioso, sim, mas inevitavelmente político, social e econômico enquanto ainda vivesse a geração que o conheceu pessoalmente ou foi sua contemporânea. Esta noção deve ter ele recebido como que de herança dos demais apóstolos. (Estamos longe de admitir que Jesus também pensasse dessa maneira, mas sobre isto falaremos mais adiante).

Achava, ainda, ele que Jesus morrera por nós, pelos nossos pecados, de vez que ele considerava o pecado contingência humana herdada de Adão, o introdutor do pecado no mundo. Honestamente, contudo, não se pode concluir de seus textos que o sacrifício supremo de Jesus elimine de cada um de nós a mancha do pecado. O Cristo dá um testemunho, mostra um caminho, quebra um tabu, demonstra uma realidade espiritual, mas não vemos em Paulo a ideia de que lava os nossos pecados com o seu sangue. A não ser simbolicamente, Jesus não é o cordeiro ou o bezerro que antigas práticas religiosas entendiam necessário sacrificar para propiciar a Deus ou aos deuses, aplacar-lhes a cólera, a fim de livrar-se a criatura de culpas e castigos.

O raciocínio de Paulo não é assim primitivo, embora ele ainda admita o conceito de um Deus iracundo e severo, como o do Antigo Testamento. Ele é mais sutil e complexo, mas não difícil de interpretar.

Observamos em Romanos, que ele entendia que "antes da lei havia pecado no mundo; o pecado, porém, não é levado em conta quando não existe a lei”. Seja como for, foi pela desobediência de Adão, que ele parecia tomar ao pé da letra, que o pecado implantou-se no mundo e "todos se tornaram pecadores". Para isso bastava nascer. Não tinha o ser humano como escapar desse círculo de fogo. Veio, porém, Jesus e, obediente ao Pai, deixou-se imolar

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para libertar-nos desse jugo terrível, não,.porém, resgatando-nos com o seu sofrimento pessoal, pois o trabalho da purificação, da santificação é da responsabilidade pessoal de cada um. "De modo que, como pela desobediência de um só (Adão), todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só (Jesus), todos se tornarão justos".

A abertura para a libertação, mas não a libertação em si mesma, resulta da vitória sobre a morte, como vimos. Catalogava a Lei antiga como maldito, criminoso irrecuperável, aquele que morresse pendurado a um madeiro. Demonstrando que voltara coberto de glória, Jesus quebrou para sempre a validade do preceito. Por isso, é tão destacada, na teologia de Paulo, a ressurreição. Não nos deixara, porém, o Cristo a herança gratuita da salvação, da redenção, e sim um caminho pelo qual podemos seguir, rumo à libertação total do pecado.

Nem mesmo o próprio Paulo, tão severo consigo mesmo, tão austero e ascético, julgava-se livre do pecado. A lei é espiritual, mas "eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto" (Rom. 7:14).

... sou eu mesmo que pela razão sirvo à lei de Deus, e pela carne, à lei do pecado. (Rom. 7:25).

Era preciso, contudo, vencer o pecado, não permitindo que ele imperasse no corpo mortal, "sujeitando-vos às suas paixões". Com o testemunho de Jesus, não estávamos mais sujeitos irremediavelmente à lei e, portanto, ao pecado. Isso não queria dizer que poderíamos pecar à vontade. Aquele que se oferece a alguém como escravo, tem de obedecer ao seu senhor. Jesus nos demonstrara que essa escravidão estava em nossa vontade interromper, partindo as vinculações com o pecado. E se o pecado continuava em nós é porque ele não os resgatara em nosso nome, purificando-nos de erros passados e futuros. Nem por isso seu gesto fora menos generoso, mesmo porque deixara a cada um a possibilidade de realizar com suas próprias forças o resgate de seu espírito e, portanto, cada qual com seus méritos e responsabilidades.

... se viverdes segundo a carne escreve Paulo aos Romanos morrereis, mas se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis.

Não são a morte e a ressurreição de Jesus que nos liberam, mas o nosso próprio esforço na tarefa de dominar o corpo e suas paixões, pelo Espírito, realizando suas potencialidades evolutivas.

A metodologia de tais conquistas? A pureza, o amor fraterno, a caridade, a fé. "A caridade é a plenitude da lei", diz ele, ainda aos Romanos.

Não era, portanto, através da fé exclusiva, nem de sacramentos, cultos, ou ritos especiais que iríamos trilhar o caminho indicado por Jesus. A eucaristia, por exemplo, não tem conotações salvíficas. E o ritual sagrado da saudade, da lembrança, da comemoração. Tomava-se um único pão, que era repartido por todos, para que "embora muitos", fossem "um só corpo, visto que todos participamos desse único pão". Não perpassa pelo texto a ideia subjacente de que aquele pão fosse, iiteralmente, o corpo de Jesus e sim, um símbolo da união de todos nele, uma forma peculiar de recordá-lo.

Coríntios, Romanos, Gálatas representam um só período do pensamento de Paulo, aí por 57/58. Se acompanharmos o desenvolvimento posterior de sua teologia, nas epístolas de 61 e 63 (Efésios, Colossenses), encontramos modificações substanciais. Jesus não é mais esperado a qualquer momento, para implantar o Reino de Deus entre os que tiveram fé, mas o irmão mais velho que, -recebendo de Deus, desde remotas eras, a incumbência de nos guiar os passos, há de conduzir todos os seus irmãos menores às metas mais elevadas da perfeição espiritual, não num "flash" da vontade divina, mas ao cabo de um lento escorrer de milênios, na plenitude dos tempos, segundo nossas disposições pessoais.

Em suma: estamos todos entregues a ele, desde antes da "fundação do mundo" e todos predestinados à glória, para "sermos santos e irrepreensíveis diante dele, no amor" (Ef. 1:4). Nesse sentido é que Jesus nos resgata com o seu sofrimento, pois foi através da dor que ele

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trouxe para nós, pessoalmente, sua mensagem redentora. Não, porém, arrebatando-nos, imperfeitos e pecadores, a uma glória imerecida, para a qual não estamos ainda preparados. A palavra e o sacrifício de Jesus foram um chamamento, um apelo, um testemunho, a fim de que realmente o conhecêssemos. Estávamos todos escravizados ao pecado ("mortos em vossos delitos e pecados"), quando a misericórdia de Deus nos enviou Jesus, que, ressuscitado, abriu caminho para todos, não porque o merecêssemos, mas porque Deus se compadecera de nós. A felicidade das boas obras já há muitíssimo tempo estava criada para nós, à nossa espera, mas continuávamos a chafurdar no pecado, sem condições próprias de libertação pessoal, ou seja, incapazes de sair do atoleiro sem ajuda, por maiores que fossem nossos esforços (obras).

Esse estado de pureza e perfeição, contudo, não é gratuito, pois o Apóstolo continua a recomendar, com insistência, o procedimento correto, a prece, a imitação de Jesus e a união com ele.

- Operai a vossa salvação com temor e tremor escreve aos Filipenses ... fazei tudo sem murmurações nem reclamações, para vos tornardes irreprováveis e puros...

- Vós éreis outrora estrangeiros e inimigos pelo pensamento e pelas obras más 1 adverte aos Colossenses mas agora, pela morte, ele vos reconciliou no seu corpo de carne, entregando-o à morte, para diante dele vos apresentar santos, imaculados e irrepreensíveis, contanto que permaneçais alicerçados e firmes na fé e sem vos afastar da esperança do evangelho ...

A redenção em Cristo dependia, portanto, do procedimento de cada um, da vivência, da prática da caridade, do "vínculo da perfeição". Era esse o pensamento de Paulo.

E preciso bem entender, por conseguinte, que Paulo não prega uma salvação gratuita, um resgate do pecado que nos coloque imediatamente na posição de santos, dignos da glória eterna. Continuamos expostos ao pecado, ao erro, às fraquezas da carne, às imperfeições, enfim, mas a partir de então, ficamos livres das imposições da lei antiga que, ao mesmo tempo que tentava regulamentar cada ato ou gesto da vida em comum, pouco se importava com as metas evolutivas do espírito imortal. Por isso, fala tanto Paulo na circuncisão, que, como simples operação no corpo de carne interessada basicamente no homem, aliás 1 não poderia revestir-se da eficácia de um procedimento salvacionista. Nem o lavar as mãos, respeitar o sábado, comer ou não comer este ou aquele alimento, ter ou não contacto com determinadas pessoas. Tudo isso eram prescrições para o corpo, para a vida material, que aprisionava e escravizava multidões de seres humanos sem nenhuma aspiração superior ou transcendental. Disso viera libertar-nos o Cristo, mostrando-nos que o sábado foi feito para o homem e não este para o sábado; que a refeição com o publicano não contaminava ninguém; que a morte no madeiro poderia ser até título de glória, em vez de testemunho de maldição. Que toda a lei e as veementes admoestações dos profetas poderiam ser substituídas, com enorme vantagem, pela lei universal e única do amor, na sua plenitude, de Deus à mais ínfima criatura.

Jesus não erradicava o pecado como que por um passe de mágica, mas colocava em nossas mãos o instrumento da libertação e ensinava como usá-lo a serviço da causa suprema do amor universal. Nisso consistia o plano da salvação.

Na sua última epístola conhecida (II Timóteo), ele continua convicto de que tudo o que lhe acontecera fora graça imerecida de Deus, especialmente à vista da enormidade de seus erros e de suas prevalecentes fraquezas e imperfeições. Mas Deus não parecia assustado com a enormidade de nossas faltas e nem o Cristo que, a despeito de nós mesmos, de nossas obras do pecado, viera trazer-nos pessoalmente sua mensagem, dar-nos, ao vivo, o seu testemunho, mostrar que a morte era, de fato, o último inimigo, deixando-o, comprovadamente, derrotado.

Mesmo sabendo de nossas imperfeições, e exatamente por isso. Deus nos convidava por intermédio do Cristo para o banquete da felicidade eterna, um dia, na plenitude dos tempos,

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quando fôssemos bons e puros como Jesus, a quem deveríamos imitar em tudo e por tudo.Era isso uma graça enorme e imerecida, por certo, mas não recente. Nós apenas a

ignorávamos, pois ela sempre existira. Deus nos acenava com uma "vocação santa, não em virtude de nossas obras, mas em virtude do seu próprio desígnio e graça. Essas graças que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos, foi manifestada agora pela aparição de nosso Salvador, o Cristo Jesus. Ele não só destruiu a morte mas também fez brilhar a vida e a imortalidade pelo evangelho, para o qual eu fui constituído pregador, apóstolo e doutor".

A graça sempre existiu, portanto. Só com a vinda de Jesus, contudo, e sua ressurreição, tornara-se manifesta, pois, ao demonstrar a sobrevivência do espírito, "fez brilhar a vida".

Assim, nas epístolas finais, Jesus não é mais esperado para dali a pouco, a fim de dar início ao Reino de Deus na Terra com os que acreditaram nele e o aceitaram, mas é aquele que nos deu, com a sua vida, o testemunho da sobrevivência do espírito, e mostrou-nos que o túnel da morte se abre para as claridades eternas da imortalidade. Ele sobreviveu a cruz não porque era Deus, mas por ser imortal, como todos nós, irmão mais velho, mais experimentado, mais sábio, imensamente mais puro e aperfeiçoado do que nós. Seu compromisso com o Pai é o de levar-nos todos à glória dessa pureza, sabedoria, perfeição e amor.

Nas Epístolas Pastorais, como assinala Maurice Goguel, a "redenção é concebida como transformação moral, revelação de um novo modo de viver". Já não mais pensa o Apóstolo que uma vida santificada resulte da "morte do homem velho" em nós. Prevalece, nos últimos tempos, a convicção de que a "salvação se realiza numa vida póstuma".

Como observa Goguel, "a graça divina não é mais o poder que cria uma nova personalidade; sua função agora consiste apenas em ensinar e persuadir os homens a mudarem de vida, a fim de que sejam salvos. A salvação é o resultado e não a causa de uma vida sóbria, reta e devota, à qual a graça divina nos conduz".

V. 0 SISTEMATIZADORCombati o bom combate, terminei minha carreira, guardei a fé.(2 Tim. 4:7)

Um livro lido há muitos anos, do qual guardei apenas o título (THE FIRST CHRISTIAN) cometi a imprudência de emprestá-lo a alguém dizia que Paulo foi o primeiro cristão. Há quem diga até, creio que foi Renan, que ele foi também o primeiro protestante. De modo geral, desconfio dessas frases muito engenhosas, mesmo admitindo que possam ter um conteúdo de verdade.

Vejo o quadro da seguinte maneira: realmente, Jesus não pregou uma religião, no sentido usual do termo, ou seja, uma estrutura hierárquica para gerir uma instituição devotada a determinada prática religiosa explicitada numa doutrina e dotada de cultos, rituais e regras de filiação e obediência. Ele pregou uma ética de profundas implicações religiosas, mas não especificou que teria de ser praticada nesta ou naquela estrutura eclesiástica. O importante para ele era o cumprimento da lei divina, que ele procura caracterizar como prática do amor universal. Uma vez obedecido esse roteiro, esse esquema básico, que cada um seguisse o caminho de sua escolha. Não atribuiu a nenhuma organização ou instituição a posse total da verdade e muito menos a exclusividade dos meios de ministrar a "salvação". Não é seu e não faria o menor sentido na sua pregação o "slogan" posterior de que "Fora da Igreja não há salvação".

Que Paulo haja sido o primeiro sistematizador do idéario ético de Jesus, não há como negar. Sacudido até às raízes do ser pela dramática visão, no deserto da Síria, voltou-se ele para os ensinamentos do Cristo e focalizou ali a sua atenção e a sua inteligência perscrutadora, habituada à disciplina e à ordenação de ideias. Não havia dúvida para ele de que ali estava uma valiosíssima mensagem renovadora, uma saída, uma abertura para os

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"impasses" que o ser humano criara em si mesmo e à sua volta. A vida se transformara numa busca inglória e sem horizontes, de satisfação pessoal, de conquistas materiais, de poder civil, religioso ou econômico. A realização desses objetivos meramente terrenos e, portanto, transitórios, resultava num exercício de egoísmos, de vaidades, de angústias, de crueldades, de rancores e, portanto, de desgraças e tormentos, tanto para os que eram tidos como vencedores como para aqueles que amargavam a derrota, a miséria, a ignorância, a humilhação.

Jesus trouxera uma nova proposta de vida. A seu ver, não eram os ricos, os poderosos, os que se consideravam "donos" de. Deus, que constituíam a elite dos vitoriosos, mas os pobres, os deserdados da sorte, os humildes, os sinceros, os puros.

Não que ele declarasse que a paz estivesse fora do alcance do rico, mas que, no seu envolvimento com as riquezas materiais, era difícil ao rico distinguir o caminho que leva à paz e segui-lo consistentemente.

Para uns e outros, para cada um e todos, o caminho é um só a prática universal do amor ao próximo, hierarquicamente abaixo apenas do amor a Deus, que ele colocava não como um Deus terrível, vingativo, ciumento, severo, mas como Pai amoroso, justo e bom, disposto a ajudar o ser humano nos seus esforços na escalada da felicidade.

Estudando esses preceitos básicos, Paulo viu prontamente o alcance e as implicações universais daquela filosofia de vida, que, no correr do tempo, teria condições de gerar não apenas a paz entre os homens, mas a paz dentro dos homens, de vez que uma não pode existir sem a outra.

O problema que então se colocava foi o seguinte: Como pôr em prática aquelas ideias? Como traduzir aqueles pensamentos em ação? Como transmiti-los e propagá-los entre aqueles que não tiveram o privilégio de recebê-los diretamente de Jesus?

A estrutura que Paulo começou a esboçar com a sua pregação não é, de fato, a que Jesus propôs, dado que este nada propôs nesse sentido. Não é, pois, a religião de Jesus, no sentido hierárquico e estrutural ou sistêmico, que ele começa a montar, mas um sistema religioso sobre aquilo que Jesus pregara, um desdobramento, no plano da realização, daquilo que ele ensinara.

Paulo não é um pensador de gabinete, um teórico ele é um homem de ação, um espírito pragmático, dinâmico, criativo, um líder nato, que sabe o que quer e sabe como obtê-lo de si mesmo e dos outros. Suas cartas não são tratados de teologia, como dizem todos e repetem, são roteiros de ação, instruções, fórmulas dinamizadoras dos conceitos doutrinários que ele destilou do que ensinou Jesus.

Entendeu ele que, para implementar tais ensinamentos, era necessário um mínimo de estrutura de apoio, em pequenas comunidades, que espalhou pelo mundo, nas suas andanças, e um mínimo de estrutura doutrinária. Era preciso haver um local onde se reunissem as pessoas para falar de Jesus, aprender e ensinar o que ele ensinara e praticar os conselhos que ele deixara gravados no coração de muitos.

Se cometeu enganos? Podemos ver, agora, situados na perspectiva dos séculos, que sim. Enganos muito mais graves, contudo, cometeram aqueles que, depois dele, expandiram e sofisticaram as estruturas materiais e doutrinárias a tal ponto que elas passaram a ser, não mais implementos de trabalho para divulgação dos ensinamentos de Jesus, mas objetivos em si mesmas, instrumentos de conquista de poder pelo poder. Em nome desse poder, para ampliá-lo e consolidá-lo, a fim de criar-se um núcleo imbatível e incontestável, foi necessário até mesmo voltarem-se para os próprios textos originais e fazê-los dizerem aquilo que convinha à nova realidade e não a verdade singela que lá estava originariamente.

Pois nem assim conseguiu-se sufocar o espírito da mensagem de Jesus, que continuou a espreitar das entrelinhas, com um olhar de piedade e não de rancor ou censura, os novos donos do poder. Não disse ele que era difícil ao rico entrar no Reino dos Céus? Continuou

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sendo, ainda que não impossível. Só que a nova Igreja, poderosa e rica, achou que a advertência não se aplicava às suas próprias riquezas. O argumento sutil era o de que tais riquezas eram do próprio Cristo, sendo seus supostos continuadores e prepostos, meros administradores dela.

Sim, Paulo cometeu alguns enganos na formulação das estruturas religiosas que ele imaginou necessárias à difusão dos ensinamentos de Jesus. Um desses enganos talvez nem tenha sido de sua própria responsabilidade o conceito de que Jesus voltaria dentro em breve, naquela mesma geração, para dar início às tarefas de implantação do Reino de Deus na Terra. Por isso, suas primeiras Epístolas têm um colorido escatológico tão intenso. A volta do Cristo era iminente. Nada de permanente, de definitivo precisava ser empreendido, pois o mundo vivia uma situação transitória, de expectativa.

Daí a importância da fé, como antecipação de uma realidade esperada, mas ainda em ser, em potencial, invisível. A ressurreição do Cristo, realidade incontestável para aqueles que a testemunharam, era o núcleo gerador dessa expectativa, a evidência de que estava para raiar uma era nova para toda a humanidade, a partir do povo judaico e, em seguida, entre os gregos. Os primeiros, porque tinham um antigo convênio com Deus e que agora se confirmava, transformado, convertido em outro convênio, através de Jesus. Os segundos porque o novo convênio incluía e abrangia a todos, universalizava-se, transcendia limitações étnicas, geográficas, históricas, sociais, econômicas e até religiosas.

Era simplesmente uma nova era a implantar-se numa nova Terra, em novos contextos humanos.

Na Segunda Carta a Timóteo, contudo, observa-se que permanece viva a sua convicção na eventual implantação do Reino de Deus, mas não mais na Terra e não mais imediatamente:

o Senhor me libertará de toda obra maligna e me levará salvo para o Reino Celeste.A obra maligna é, certamente, a prática do mal, e sua libertação, a vitória sobre o pecado,

o domínio do espírito imortal sobre a matéria corruptora. A Bíblia de Jerusalém observa que, em vez de "me levará salvo", uma tradução, também aceitável, seria "me aguardando para". Esta me parece mais apropriada ao contexto, de vez que Paulo não mais situa a época da libertação em termos coletivos ou de tempo predeterminado, mas que cada um terá o seu ritmo próprio.

Aliás, nessa Epístola, ele parece ver muito mais longe esse tempo:... virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os

seus próprios desejos, como que sentindo a comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão seus ouvidos da verdade, orientando-se para as fábulas.

Já entrevia, portanto, um futuro em que a doutrina original de Jesus seria trabalhada, em suas minúcias, pelos "mestres" enfatuados, em torno dos quais sempre se reúnem grupos de curiosos, ansiosos por novidades. E pouco a pouco, muitos se afastariam da verdade (que não mais conviria aos interesses, ambições e vaidades de cada um) para ficarem com as fábulas.

A nitidez e o realismo do quadro revelam bem mais do que simples temor do velho apóstolo, à espera da morte, a convicção profética que se realizou na íntegra, infelizmente para todos nós. Os "mestres" afastaram-se das verdades simples do Evangelho, preferindo elaboradas e fantasiosas fábulas, como a da Trindade, a da divindade de Jesus, a do castigo eterno, a dos sacramentos salvacionistas, a da exclusividade na posse da verdade, a do primado papal ou de sua infalibilidade.

O desvio da verdade rumo às fantasias e fábulas foi tão radical que, até hoje, nem os "mestres" da teologia, nem os da história ou do pensamento leigo conseguiram descobrir de que lado, realmente, estão as fábulas e de que lado a verdade.

Quando se fala e se acredita, por tempo suficiente e com insistência bastante, em determinado conceito, mesmo fantasioso, ele parece adquirir autonomia quanto às suas origens e passa a ser tido como verdade indiscutível, irrexaminável, incontestável, como

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ocorre no processo formativo do dogma. A verdade que o contradiga é ajeitada, acomodada ou, simplesmente, eliminada para que a fábula, travestida de verdade, não seja questionada.

Por essas e outras é que os Evangelhos foram reescritos e cuidadosamente destruídos os textos primitivos, nos quais nenhum indício havia para confirmar, por exemplo, a divindade de Jesus e muitos havia para negá-la enfaticamente. Felizmente, porém, as manipulações e acomodações foram realizadas com desastrada imperícia e tão grosseiras e incompetentes, que se tornou relativamente fácil, hoje, identificá-las e, por exclusão, nos textos que ofereçam um teor mais concentrado e confiável de autenticidade, como vimos alhures neste livro.

O que desejamos enfatizar, neste ponto, é que, no confronto com as fábulas convertidas em postulados dogmáticos, ainda que artificiais, verdades autênticas assumem, ao olhar inexperto ou míope de grande parte dos observadores modernos, aparências de fábula, de fantasia. E assim, práticas, fatos e episódios legítimos, verdadeiros e autênticos foram despachados sumariamente para os porões escuros dos conceitos inservíveis e, quando, hoje, ressurgem com insistência e com a obstinação da verdade, são tomados como vexatórios, embaraçosos, incômodos, como se fossem ideias ridículas, pecados de juventude que é preciso esquecer e esconder.

Por isso, gente singela e pura, simples e honesta que viveu aquela realidade é hoje tida como um bando ignorante e crédulo, sem o menor senso crítico para distinguir o fato da fantasia.

Na realidade, os ignorantes e incultos de então demonstraram maior lucidez e inteligência do que os "mestres" de hoje, que continuam a ignorar, envergonhados, mas superiores, a realidade do milagre, da sobrevivência do ser, da comunicabilidade entre "vivos" e "mortos" ou das vidas sucessivas.

Há uns poucos anos (setembro de 1976) um jornal americano de circulação nacional dava "status" de manchete principal a uma entrevista, na qual famoso pregador, pastor e escritor protestante, mensageiro, portanto, da palavra de Jesus, declarava-se, afinal, convicto de uma realidade póstuma: THERE IS LIFE AFTER DEATH (Existe vida após a morte). Vinha essa convicção em um episódio que ele classificou como experiência "sobrenatural", ou seja, sua avó moribunda conversara com o espírito do marido "morto", avô do eminente pregador.

Para mim, contudo, o fato espetacular aí não está em que o famoso pastor de almas tenha tido uma experiência dessas, que nada contém, aliás, de sobrenatural, mas que somente aos 63 anos de idade, após milhares de sermões e milhões de exemplares de livros, pronunciados uns e vendidos outros em torno da temática evangélica, sobre ideias de Jesus, um pregador cristão se convença da realidade póstuma e, portanto, da sobrevivência do espírito humano!

Por isto, eu reescreveria a manchete, que ficaria assim: FINALMENTE: PASTOR CONSEGUE ACREDITAR NAQUILO QUE PREGA!

Afinal de contas, qual a essência mesma da pregação de Jesus? Que realidade demonstrou ele, com a sua ressurreição, senão a da sobrevivência do ser à morte do corpo físico? Se a ressurreição é fantasia, e, portanto, a sobrevivência, então para que tudo isso? Comamos e bebamos, como diz Paulo, que amanhã tudo estará acabado...

Sem a sobrevivência do ser não é só o cristianismo que não faz sentido, é a pregação de Jesus, é o seu testemunho pessoal na dor, é a essência de inúmeras religiões, é a própria vida que não faz sentido. A prevalecer isto, a criatura humana passaria à condição de um ser descartável, marionete de Deus, como diz Morris West. Deus teria criado um boneco e uma boneca para brincarem, por alguns momentos, de viver e sofrer.Tudo o que ensinou Jesus e selou com o sinete indelével da sua morte e sobrevivência é um programa de realização espiritual, não parao espaço de uma única e precária vida na carne, mas para um rosário delas, a desdobrarem-se pela eternidade a fora, até aos píncaros da perfeição espiritual.

Se o conceito da ressurreição, tal como hoje entendido, está errado e está vamos

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reformulá-lo, torná-lo inteligível e inteligente. Aí está uma realidade incontroversa, pois o fato não depende de nossa opinião para existir ele, simplesmente, é. E se o fato ocorreu não há como escamoteá-lo mais o que está errado é a interpretação que sobre ele desejam impor-nos os "mestres" de que falou Paulo a Timóteo. Não há nada de sobrenatural, vergonhoso, vexatório, fantasioso, ou fruto da imaginação exaltada de pobres e ignorantes pescadores galileus. O que está faltando hoje é a dose certa de humildade intelectual para aprender com os supostos ignorantes uma verdade que eles conheceram e aceitaram, não pela credulidade, mas pela evidência e porque faz sentido no contexto de tudo aquilo quanto Jesus lhes ensinara e demonstrara.

Se há ignorantes, na apreciação do episódio da ressurreição, uma coisa é certa: não são os apóstolos, nem Madalena, nem Paulo. Paulo não foi um débil mental, sujeito a alucinações. Nem induzido a fantasias por admiração ao Cristo, ou exaltação sentimental causada pela sua inesperada e trágica partida. Paulo era um doutor da lei, homem culto, objetivo, dinâmico, inteligente, solidamente implantado na realidade. Não era um louco. Ele viu Jesus, identificou-o, conversou com ele e renunciou a tudo quanto até então havia planejado, para segui-lo, à custa de humilhações e sofrimentos triturantes. Teria sido mais cômodo para ele, do ponto de vista meramente humano, ignorar ou negar o episódio de Damasco e projetar-se na sua promissora carreira de brilhante rabino, formado "aos pés de Gamaliel". Não lhe teria sido difícil consagrar-se como um dos grandes Mestres em Israel, não apenas pelos seus dotes intelectuais e sua cultura, como também pela espetacular vitória que poderia ter alcançado no esmagamento da nova seita que surgia e punha em xeque a lei e as tradições de seu povo. Sem tardança e com essas credenciais, seria ele o líder inconteste de sua gente, que vivia sob regime claramente teocrático. Em vez disso, ele opta por uma vida de penúria, sustentando-se com o trabalho manual de tecelão, batido e escorraçado daqui para ali, contestado por toda parte, desprezado e odiado por amigos, parentes e irmãos de raça. Tudo isso por causa de uma alucinação? Ou de um ataque epiléptico, como querem outros? Ou de uma miragem, um jogo ótico de luzes e ofuscamentos?

Muito frágil é o argumento da ilusão alucinatória para sustentar, pelos próximos trinta anos, um homem, na duríssima batalha pela implantação de uma doutrina. Ademais, não demonstraria ele, nessas três décadas que lhe restaram, nenhum desequilíbrio emocional, debilidade mental ou incoerência intelectual. O que vemos nele é uma inquebrantável força de vontade, dinamismo e coerência, servidos por uma inteligência privilegiada, criativa, formuladora de conceitos e estruturas filosóficas e administrativas, um líder respeitado, firme, convicto, não um visionário ridículo, sem credibilidade. É um homem de marcante personalidade, que enfrenta governantes e autoridades religiosas corajosamente, destemidamente, para dizer aquilo que pensa e que causa defende. Não para dizê-lo na desarrumada linguagem do místico desvairado, mas na do pensador lúcido, que tem diante de si uma realidade, como fator ordenador de sua vida e de sua obra de pregador, quer creiam nela ou não os que lhe ouvem ou leem. E um homem que não recua, nem ante a temeridade de falar ao próprio César e não apenas como advogado em causa própria, mas como portador de uma denúncia, para advertir a Nero das atrocidades que, em seu nome, estavam sendo cometidas com massas indefesas de cristãos, que apenas queriam estar juntos para orar e estudar os ensinamentos de Jesus.

E possível até aceitá-lo como um temerário, não, porém, como um irresponsável, dado a alucinações. E por que teria a pessoa que dispõe de faculdades que lhe permitem ver o que outros não percebem, de provar, a cada momento, que não é doida? Ou débil mental? Ou alucinada, como diz Renan, de Madalena?

Suponhamos que Madalena tenha mesmo visto Jesus recém-morto, revestido de seu corpo espiritual, naquela manhã de domingo, junto ao túmulo? Quem está alienado aí? Os que admitem, ainda que como hipótese, essa realidade, ou aqueles que, para fugir à aceitação do

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episódio, que acarreta inexoravelmente profundas reformulações, preferem passar a ela o atestado de debilidade mental? Então, tudo isso que ai está, a ideia, mesmo distorcida e acomodada, que revolucionou o mundo, mudou o curso da história, deu conteúdo ao pensamento religioso da humanidade, resulta de mera visão alucinatória? Não teria outros títulos, ainda que o fosse?

Suponhamos que isso seja verdadeiro. E é. Que o ser humano seja dotado de um princípio inteligente, imaterial, preexistente à vida na carne e sobrevivente a ela. Suponhamos que o ser humano seja mesmo espírito, dotado de um corpo energético e outro físico. Suponhamos que se possa, de fato, manter intercâmbio com os seres que aqui viveram entre nós. Suponhamos que os que já partiram, deixando aqui, em decomposição, o corpo material, possam manifestar-se em seus corpos espirituais, conscientes, reconhecíveis, identificáveis. Suponhamos, enfim, que isso que hoje é tido como fábula foi, antes, considerado como realidade, seja mesmo realidade?

Que consequências acarretariam tais suposições nas estruturas do nosso pensamento e procedimento?

Deixo o exercício de simulação para que dele faça o leitor o uso que desejar. E aproveito para lembrar que toda a filosofia de vida de Jesus está baseada precisamente nesse conjunto de realidades que figuramos acima como meras suposições, mas que estão amplamente demonstradas por toda parte na vivência de milhões e milhões de pessoas, em todos os tempos.

Paulo é o sistematizador das consequências e implicações dessas realidades, inferidas da evidência e dos ensinamentos de Jesus.

VI. PNEUMATISMOTodos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os impelia que falassem(Atos 2:4).

A Igreja primitiva viveu, no seu dia-a-dia, a realidade do intercâmbio espiritual, que nada tem de fantástica ou sobrenatural. E que, situados hoje, a distância, sob a ótica do ceticismo auto-suficiente, do materialismo vaidoso e da ciência presunçosa dos nossos dias, poucos são os que têm os olhos de ver, de que falava Jesus, e menos ainda, os que desafiam a pecha de loucos ou débeis mentais, para admitirem aquela realidade, implícita e explícita nos ensinamentos de Jesus.

Vamos fazer uma incursão por esse inexplorado aspecto do cristianismo primitivo, dado que sua notícia chegou a nós deformada pela teologia posterior surgida dentro das fronteiras da Igreja ou por aqueles que, observando-a de fora, também não viram e não entenderam ou viram e não quiseram entender.

A verdade é que a Igreja primitiva, durante todo o primeiro século, desenvolveu e expandiu a prática do pneumatismo. A simples tradução desse nome para uma língua moderna nos leva a uma nítida realidade: espiritismo (pneuma = espírito), isto é, um sistema ou uma técnica de intercâmbio entre homens e espíritos, entre "vivos" e "mortos".

Essa é a razão da grande força, é o segredo da institucionalização do cristianismo, que, a partir de um pequeno grupo inicial de gente rude e provinciana, desorientada com a perda de seu mestre e líder, mantevese coeso e unificado em torno de uma doutrina que, a despeito da fragmentação geográfica e da relativa autonomia das várias igrejas que começaram a brotar, aqui e ali, foi a mesma doutrina fundamental.

... as primeiras comunidades escreve Guignebert (13) vivem na familiaridade do espírito santo; é quem as guia, esclarece e complementa a fé, por uma influência constante. Esse pneumatismo prático irá prolongar-se, tanto que não será possível constituir-se um clero comatribuições bem determinadas e hostil às fantasias dos inspirados. Como recusar autoridade às

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revelações múltiplas que favoreciam os santos e que vêm da mesma fonte das comunicações autênticas do Cristo aos seus discípulos durante a sua vida terrestre?

É certo que, naqueles tempos primitivos, a pessoa dotada de faculdades e sensibilidades que permitissem servir de intermediária entre o mundo visível e o invisível, sobrepunha-se aos dirigentes da comunidade desprovidos de tais recursos. Era natural que se criassem aí, não apenas rivalidades e ciúmes, mas uma hostilidade surda e deliberada que acabou, com o correr do tempo, eliminando os sensitivos. A partir do segundo século, os sacerdotes assumiram o controle da situação, sufocando as manifestações pneumáticas.

Que tenha havido fantasias, não há como duvidar, mesmo porque os textos, com frequência, se referem aos cuidados que era necessário ter para não deixar as comunidades cristãs nascentes envolverem-se em doutrinas e práticas fantasiosas e heresias perniciosas.

A dificuldade que encontra a maioria dos autores modernos para apreender a importância desse fenômeno e entendê-lo adequadamente é impressionante. Falta-lhes o dado mais importante, sem o qual torna-Se impraticável a interpretação correta do que ocorreu ali: a aceitação de um princípio inteligente, imortal, preexistente e sobrevivente no ser humano. Sem isso, é tudo alucinação, ilusão, loucura, misticismo, epilepsia, histeria, fantasia, efeito ótico e que sei eu. O que não quer dizer que não haja também fenômenos alucinatórios, místicos, óticos, etc, e sim, que, mesmo com margem de concessão para fenômenos ilusórios demonstrativos de outros tipos de realidade sobra ainda muito espaço para fenômenos autênticos, pois a realidade espiritual insistimos em reiterar — é da própria essência da mensagem de Jesus, a grande realidade esquecida e quem não estiver preparado para admiti-la, está igualmente despreparado para entender e aceitar a mensagem, em toda a sua amplitude e profundidade.

É uma tolice comovente, portanto, declarar o Sr. Renan, como na Introdução de OS APÓSTOLOS (34): "Em outras palavras, não há milagre senão quando se crê em milagre; o que faz o sobrenatural é a fé".

Ou então: "O milagre não é aquilo que não se pode explicar; é uma revogação formal de leis conhecidas, em nome de uma vontade particular".

Exemplos típicos de como pessoas inteligentes podem dizer (e escrever) sandices. Na sua ingênua presunção, ele se põe como espírito forte e corajoso e vai ao extremo de recomendar que será melhor para os tímidos não o lerem...

Como o Cristo não poderia ter revivido, porque a morte éo fim, foi o acendrado amor de Madalena, segundo ele, que fez "reviver o fantasma do mestre". O amor de uma desvairada (palavra sua, como vimos) estaria, portanto, nas origens do cristianismo, bem como de outras 'tocantes possessas' e 'pecadoras convertidas'. No seu entender, a razão deve calar-se diante disso, quando, ao contrário, é precisamente aí que a razão tem declarações vitais a fazer.

A dramática cena do pentecostes, para Renan, não passa de um fenômeno atmosférico.- Um dia escreve ele estavam reunidos os irmãos e estalou uma trovoada. As janelas

foram abertas por forte ventania; o céu parecia arder. As trovoadas naqueles países são acompanhadas de prodigiosa descarga de luz; toda a atmosfera é atravessada por fitas inflamadas. Ou porque o fluido elétrico entrasse mesmo no aposento, ou porque um relâmpago deslumbrante iluminasse de súbito a face de todos, convenceram-se de que o Espírito havia entrado e se derramara sobre a cabeça de cada um na forma de língua de fogo.

E dizem que isso é História! E o próprio Renan se faz veemente promotor de acusação aos que fantasiaram os textos evangélicos para imporem suas ideias!

Um relâmpago com essa intensidade, penetrando pela casa a dentro, teria fulminado inapelavelmente toda aquela gente! E como poderia Renan saber que houve tempestade naquele dia e raios que iluminam céus e terra, mas a ninguém fulminam? Como se arrisca alguém a falar do que não entende?

Aliás, a ideia do Espírito Santo como terceira pessoa da Trindade está aderida a essa

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fenomenologia. Manifestava-se, naquelas reuniões, relizadas com pessoas dotadas de faculdades adequadas, um espirito santo, que dava instruções, trazia consolo, sugeria planos de ação, explicava pontos obscuros de doutrina ou dirimia dúvidas surgidas na comunidade. Dos inúmeros espíritos santos, ou melhor, santificados, já vivendo em condições mais tranquilas, no mundo póstumo, a Igreja acabou fazendo o Espírito Santo, manifestação objetiva do próprio Deus, tal como a de Javé, ao tempo de Moisés.

Seja como for, as manifestações do espírito, ou melhor, dos espíritos, nas diversas comunidades, foram o que Guignebert chama de "fermento vivo da fé" e, de fato, o foram.

- Eis-nos, portanto escreve ele bem longe da impressão que nos deixou a lenda apostólica; a de uma comunidade governada, desde o início, pelo Colégio dos Doze, sob a presidência de Pedro. Nada disso ocorreu, em realidade, mas uma assembleia de pietistas que regula sua vida pela inspiração. Nada de neolegalismo, nem sombra de clericalismo: ainda não se sabe que Jesus havia fundado a Igreja.

0 eminente autor francês vê claro nesse ponto. As comunidades eram literalmente conduzidas pelos espíritos.

Segundo Goguel, duas forças dominavam a Igreja primitiva: o pneumatismo e as convicções escatológicas, isto é, o intercâmbio com o mundo espiritual e a convicção de que estava para raiar, a qualquer momento, uma nova era, com a volta de Jesus à Terra para as decisões finais quanto aos rumos da humanidade.

O pneumatismo, que Goguel considera uma força criativa, atuando dentro das comunidades cristãs, foi um fenômeno característico da primeira geração de cristãos, especialmente junto aos gregos, em vista da predisposição destes para uma conceituação mais adequada sobre o ser humano.

Não há dúvida de que, acima da autoridade dos dirigentes locais, nas igrejas, impunha-se a palavra recebida dos espíritos, por via mediúnica. Era tamanha a influência desses intermediários e tão grande o respeito de que eram cercados, que cabiam a eles as primícias das colheitas e não aos presbíteros ou dirigentes. Muitos desses intermediários, pelo menos nos primeiros tempos, eram residentes; mais tarde, começaram a escassear, sob a pressão contínua dos primeiros clérigos e sobreviveram apenas alguns, que iam de comunidade em comunidade colocando sua sensibilidade e faculdades à disposição dos espíritos manifestantes.

Preservou-se nos Atos o nome de um deles: Agabo:- Naqueles dias, alguns profetas desceram de Jerusalém a Antioquia. Um deles,

chamado Agabo, levantou-se e, sob a ação do espírito, pôs-se a anunciar que viria uma grande fome em todo o mundo. Os discípulos decidiram então enviar, cada um conforme as suas posses, auxílios aos irmãos que moravam na Judeia. Assim fizeram, enviando aos anciãos, por mãos de Barnabé e Saulo (Atos 11:27-30).

Em Atos 21, encontramos outra referência a esse mesmo profeta:- Como passássemos aí vários dias, um profeta chamado Agabo desceu da Judeia.

Veio ao nosso encontro e, tomando o cinto de Paulo, amarrou-se a si mesmo de pés e mãos dizendo: 'Eis o que diz o Espirito Santo: Assim os judeus hão de amarrar em Jerusalém o homem ao qual pertence este cinto e entregá-lo-ão às mãos dos gentios'.

Como se observa, o texto anterior refere-se apenas à manifestação do espirito; o segundo menciona o Espírito Santo. Relembramos aqui a observação do Prof. Pastorino, de que esta é uma das passagens em que a tradução O ESPIRITO SANTO não corresponde ao original, em vista da indefinição do artigo, o que se converteria em UM ESPÍRITO SANTO, isto é, um espírito santificado, purificado.

Aliás, a comunidade de Antioquia realizava regularmente suas reuniões pneumáticas, como se lê no início do Capítulo 13 dos Atos. Havia ali profetas e doutores, sendo Barnabé um daqueles. Foi em obediência à recomendação de um espírito que Paulo e Barnabé

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partiram, na primeira missão apostólica, com a finalidade de difundir pelo mundo a fora a experiência de Antioquia, marcada pelo êxito. Foi ali a sementeira, o viveiro de uma nova concepção a da universalidade do cristianismo, que começava a soltar suas amarras e afastar-se das praias do pensamento judaico tradicional, rumo ao mar alto.

Eram anos decisivos, aqueles, na formação do cristisnismo. As fontes de sustentação doutrinária tinham algo em comum. Certamente que um grupo de espíritos supervisionava, da invisibilidade, o movimento nascente, dando-lhe conteúdo e orientação, e ajudando a solucionar os problemas surgidos. Uma decisão da maior envergadura, como vimos, foi a de recomendar a divulgação da doutrina cristã por toda parte, entre os gentios.

Goguel chama a atenção do leitor para uma valiosa informação de Harnack (com a qual concorda) de que o texto original do "Pai Nosso", em Lucas, não dizia "Venha a nós o teu Reino", mas "Que o Espírito Santo (um espírito santo?) venha sobre nós e nos purifique".

Lembra, ainda, o escritor francês que a última recomendação de Jesus, em Lucas 24:49, é a de que os seus discípulos aguardem, em Jerusalém, a prometida manifestação do (seu) espírito, o que eles fizeram.

Em vista da decisiva influência exercida pelo intercâmbio dos "vivos" com os "mortos", nessa fase, é que os Atos e algumas passagens nas Epístolas estão repletas de manifestações desse tipo. Em vez de procurarem entender a fenomenologia ocorrida nesse período, autores modernos, tidos por eruditos, continuam a tropeçar lamentavelmente na interpretação dos fatos, que insistem em demonstrar aquilo que Jesus ensinou e sobre o que deu o seu testemunho, ou seja, a realidade espiritual, a atividade consciente, inteligente, responsável do ser no mundo póstumo, servindo-se de um corpo energético, para intercâmbio com os que ficaram ainda presos a corpos físicos, no mundo da matéria.

Por causa desse bloqueio apriorístico ou seja, o de que a morte é o fim de tudo nem os mais inteligentes e eruditos estudiosos conseguem entender e aceitar coisas inabituais, é certo, mas naturais, como manifestações de seres humanos, que continuam vivos depois da morte. Aliás, não foi o Cristo quem primeiro sobreviveu e o demonstrou. O ser humano sempre nasceu, viveu, morreu e sobreviveu, para tornar a nascer e reabrir novos ciclos de vida na carne, até à perfeição. Tanto quanto o Novo, o Antigo Testamento é um repositório interminável de fenômenos espirituais. Despojados de seus adornos literários e convertidos em linguagem moderna, episódios tidos por miraculosos e maravilhosos na Bíblia são meras, ainda que importantes manifestações do intercâmbio entre vivos e mortos. Nada mais, nada menos que isso, desde a captação, por escrita automática isto é, mediúnica do Decálogo.

Tanto quanto o cristianismo nascente, a nação hebraica foi sustentada, orientada e dirigida por instruções vindas do mundo espiritual, principalmente através de Moisés, que funcionava como sensitivo ou intermediário. Mais tarde, já cansado e sentindo a proximidade do fim, ele próprio cuida de formar um grupo maior de medianeiros.

A suposta proibição bíblica ao exercício das faculdades extra-sensoriais é lenda que já durou demais. O que houve, na realidade, foi um esforço contínuo em regulamentar o intercâmbio com os espíritos, a fim de que o povo de Israel, transplantado para ambientes culturais e religiosos tão diferentes dos de origem, não se deixasse contaminar por ideias e práticas contrárias aos seus princípios étnicos, sociais e religiosos.

Vemos isso, com clareza, no Capítulo 18 de Deuteronômio, onde se proíbe o contacto com adivinhos, feiticeiros, magos, etc, alheios, de modo que o intercâmbio espiritual já existente fosse sempre através de um medianeiro da confiança do povo judeu.

Eu suscitarei um profeta semelhante a ti diz o espírito que falava em nome de Javé porei minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que eu mandar.

Lamentavelmente essa informação acabou assumindo "status" de profecia e foi, mais tarde, tida como menção à vida de Jesus.

O que vemos, portanto, não é proibição, é apenas uma ordem para que fosse considerado

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aceitável apenas um profeta "semelhante a ti", ou seja, da mesma raça, crença e costumes. Aliás, mais claro ainda está em Números, Capítulo 11, quando Moisés, contraditando Josué, afirmou categoricamente ser de sua vontade que houvesse maior número de medianeiros como ele, a fim de ajudá-lo no intercâmbio com o mundo espiritual, de onde vinha a orientação para ele e para o seu povo.

Mas não é só aí, pois toda a história antiga de Israel é a história do relacionamento entre vivos e mortos.

Um dos grandes óbices ao melhor entendimento dessa realidade indiscutível está em que a terminologia para descrever os fenômenos envelheceu demais e se tornou confusa no contexto moderno.

Tomemos, por exemplo, a palavra profeta, aplicada modernamente ao indivíduo, homem ou mulher, que prediz o futuro. A conotação antiga podia conter também esse sentido, mas não era o único. O termo hebraico nabi, de origem um tanto obscura, como já vimos, trazia, no seu bojo, conotações como "intensa excitação", em vista de sua conexão com antigas raízes assírias, empregadas para descrever estados de "transporte", isto é, de transe. Ao passar de textos hebraicos para o grego, o termo nabi foi traduzido como prophetes, que tem sentido restrito para caracterizar aquele que profetiza, prevê ou prediz. Com isto, perdeu-se a conotação original que era bem mais ampla, de vez que nabi não era apenas o que profetizava acontecimentos futuros, mas o que dispunha de uma ou mais das várias faculdades e sensibilidades exigidas no trato com o mundo espiritual. Em suma, nabi era um intermediário, ou médium, que poderia até profetizar, mas não um profeta no sentido grego do termo.

Por causa dessa impropriedade de tradução, até hoje permanece o bloqueio que, uma vez removido, levaria a um entendimento melhor da fenomenologia envolvida.

Na Primeira Carta a Timóteo, por exemplo, Paulo escreve isto:- Não descuides do dom da graça que há em ti, que te foi conferido mediante

profecia, junto com a imposição das mãos do presbítero.Nessa mesma Epístola (1:18), Paulo relembra ao seu filho espiritual o que lhe disseram

"as profecias leia-se instruções pronunciadas outrora sobre ti".Em nota de rodapé acerca do primeiro texto citado (I Tim. 4:14), Goguel confessa

honestamente não entender o sentido da passagem:- E difícil escreve ele dizer exatamente qual a função da profecia aqui. Parece nada

mais do que a sobrevivência da concepção carismática do ministério.Claro que, no seu sentido moderno e restrito, o texto nada tem a ver com profecia e, por

isso, Goguel não o entende. No entanto, tem a ver com os chamados carismas, que ficou traduzido em português, como "dom da graça".

A Bíblia de Jerusalém não é menos vaga no seu comentário. Sobre 1:18, diz que "Paulo lembra a Timóteo a intervenção dos 'profetas' no momento de sua investidura apostólica". Em outra nota, acerca de 4:14, informa que a "imposição das mãos, rito de transmissão de uma graça ou carisma, pode ser um gesto de simples bênção, o meio de operar uma cura, de comunicar aos batizados a plenitude do Espírito Santo, enfim, o rito que consagra um homem em vista de uma particular função pública.E neste último sentido que é preciso entender este versículo e 5:22, 2 Tim. 1:16. Desde o dia ao qual alude Paulo, Timóteo possui em si de modo permanente um 'carisma' que o consagra para o ministério".

Afinal de contas, que quer dizer tudo isso? Que é carisma, no entendimento real dos comentaristas? Que é ministério? Que se deve entender por função pública? Que significa intervenção de "profetas"?

Um quadro claro e objetivo é o seguinte: em reunião promovida com a finalidade de manter o intercâmbio espiritual entre vivos e mortos, qualquer que fosse a terminologia então

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usada (pneumatismo, por exemplo) um espírito manifestado ou incorporado em um sensitivo intermediário, anunciou que Timóteo dispunha, em potencial, de faculdades para exercer também a tarefa de medianeiro. Que devidamente desenvolvidas a imposição de mãos era um dos recursos para isso ele poderia exercer tais atividades, o que foi feito.

É isso que está dito ali, com a diferença de que, em vez de manifestação verbal de um espírito através de um médium treinado, o texto informa que o "Espírito Santo" falou através de um "profeta", recomendando os carismas que Timóteo trazia em potencial.

A narrativa de Atos está pontilhada de fenômenos dessa natureza, desde a dramática cena do Pentecostes, que Renan, na sua obstinação em reinterpretar, a seu modo, os fenômenos, prefere imaginar como tempestade violenta, com raios por toda parte. Para o fenômeno das línguas desconhecidas, opta por suposições e afirmativas que só se sustentam na sua palavra incerta e inciente.

A faculdade de falar, em transe, línguas desconhecidas, vivas ou mortas, é um fenômeno espiritual devidamente estudado hoje pela ciência, sob o nome de xenoglossia, tendo merecido do eminente pesquisador italiano Ernesto Bozzano uma das suas excelentes monografias. A glossolália, referida em conexão com as antigas práticas cristãs e hoje em franca retomada, pode apresentar aspectos semelhantes à xenoglossia, esta, porém, não é um confuso e ininteligível fluxo de palavras desconexas e até inexistentes e sim a expressão normal e ordenada de ideias que fazem sentido para aquele que está em condições de compreender a língua utilizada.

A xenoglossia é um fenômeno disciplinado e inteligente, segundo o qual um ser espiritual fala através do sensitivo, utilizando-se da língua que aqui lhe serviu como forma de expressão de seu pensamento, e que o médium desconhece. Em verdade, o pensamento pode expressar-se também por escrito ou através de textos, que o sensitivo parece ter diante dos olhos, ainda que invisíveis para outrem. Para os textos escritos, a palavra adequada é xenografia e para a leitura de textos visíveis ao sensitivo, propus, alhures (25), o nome xenótica.

Parece mais cômodo inventar um temporal, com todos os raios possíveis, do que estudar em profundidade e com humildade o fenômeno, para saber, em primeira mão, se ele existe mesmo, que tipo de pesquisa há sobre ele e como se situa no quadro geral da fenomenologia espiritual. Várias línguas estranhas ouvi eu da boca de sensitivos que as desconheciam em estado de vigília, tanto quanto algumas que eles conheciam, embora não lhes fosse a materna.

O problema da fenomenologia narrada em Atos, portanto, se resume numa questão de bom senso. E possível que algumas narrativas estejam um tanto exageradas ou adornadas com detalhes dispensáveis e até fantasiosos, mas a pergunta que cabe aqui é a seguinte: são eles possíveis ou não? E a resposta honesta, objetiva, destemida é uma só: Sim, são possíveis. Tanto que é possível, sempre foi e continuará sendo possível a manifestação visível e até materializada de um ser oficialmente "morto", como Jesus, ou a captação de seu pensamento coerente e reproduzível em linguagem humana.

Não é sem razão, pois, que o Cristo dizia não ter vindo destruir ou derrogar a lei, mas fazê-la cumprir. Nas suas manifestações póstumas, que a tanta gente incomoda e causa embaraços, temos a evidente manifestação de leis naturais que se repetem por toda a parte, com muita gente, sob as mais variadas condições. Tanto faz crer como não, o fenômeno aí está, pois o fato independe de nossas posturas filosóficas ou religiosas, sociais ou culturais.

Uma rápida passagem pelos Atos nos revela alguns desses fenômenos, que nada têm de miraculosos, fantásticos, impossíveis ou sobrenaturais.

Em 12:15, Pedro, recém liberto da prisão, vai à residência de Maria Marcos, bate à porta e é atendido por uma jovem de nome Roda. Ela volta ao interior da casa para anunciar que é Pedro quem está à porta. Como tinham-no por morto, acharam que não era o amigo em pessoa, ou seja, vivo, mas o seu anjo, ou melhor ainda, Pedro em seu corpo espiritual, referido por Paulo, em Coríntios. A Bíblia de Jerusalém observa, contudo, tratar-se de "uma

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crença popular, a respeito dos anjos da guarda, considerados uma espécie de 'cópia' espiritual do seu protegido".

Nada disso. A doutrina dos anjos da guarda é mais do que uma simples lenda popular, dado que a própria Igreja a adota. A questão é que o chamado anjo da guarda, ou espírito protetor não é uma cópia espiritual de seu protegido. Aliás, a palavra, na mesma nota da versão espanhola da Bíblia, é doble (duplo), mais adequada e mais amplamente utilizada para designar o corpo espiritual dos seres humanos, que é, de fato, uma duplicata, reprodução fiel do corpo físico. A ser verdadeira a suposição da Bíblia de Jerusalém, o corpo no qual Jesus se manifestou postumamente seria também o do seu anjo da guarda, o que é inaceitável. que a Igreja prefere, neste caso, a aparição do Cristo em seu corpo físico, outra incongruência igualmente inaceitável. Falta acrescentar que a suposta aparição em casa de Maria Marcos era Pedro mesmo, ao vivo, em pessoa, pois havia escapado da prisão.

Em Atos 16:6, conta-se, com a terminologia da época, talvez retocada posteriormente, que um espírito havia desaconselhado a pregação na Ásia, como desejava Paulo. Quando se preparavam para entrar na Bitínia o texto é claríssimo aqui o Espirito de Jesus não lho permitiu.0 que quer dizer simplesmente o que diz: Jesus manifestou-se pessoalmente aos seus trabalhadores e lhes recomendou que não fossem adiante. Tinha, certamente, razões para fazê-lo.

Naquela mesma noite (versículo 9) Paulo teve uma visão, na qual o espírito de um macedônio que ele deve ter reconhecido pelo vestuário ou porque o espírito identificou-se pediu a ele que fosse pregar na sua terra, com o que Paulo concordou.

Note-se um pormenor interessante que deve ser referido de passagem: estes episódios são testemunhados ao vivo pelo narrador (Lucas), pois estamos aqui perante uma das passagens escritas na segunda pessoa do plural: “Atravessaram então a Mísia diz o versículo 8 e desceram a Trôade". Em seguida, no versículo 10: "Imediatamente após essa visão, procuramos partir para a Macedônia...".

Lucas juntou-se ao grupo em Trôade, por isso eles "desceram", mas "(nós) procuramos partir..."

Em Atos 16:16 consta o interessantíssimo e instrutivo episódio da pitonisa, que Renan, na sua erudita superioridade, resolve facilmente, dizendo tratar-se de uma ventríloqua. Dotada de "espírito de adivinhação" (?!), ou seja, sensibilidade mediúnica, a moça foi tomada de um espírito que, com o objetivo de seduzir com seus elogios os pregadores de Jesus, começou a proclamar em altas vozes as excelentes virtudes de Paulo e de seu companheiro Silas. A coisa durou vários dias.

- Por fim diz o texto Paulo, aborrecido, voltou-se e disse ao espirito: 'Eu te ordeno, em nome de Jesus Cristo: sai desta mulher'. E o espirito saiu no mesmo instante.

Em Corinto, os problemas foram tão graves, de início, que Paulo parece ter tido um momento de vacilação e pensou em abandonar tudo aquilo.

- Uma noite escreve Lucas -, em visão, o Senhor disse a Paulo: 'Não temas; porém, continua a falar, não te cales, porque eu estou contigo, e ninguém porá a mão sobre ti para te prejudicar, pois tenho um povo numeroso nesta cidade'.

E lá ficou Paulo um ano e meio e implantou, afinal, uma das suas mais vigorosas comunidades cristãs. Jesus sabia que viviam ali muitos dos que estavam predispostos à aceitação da jovem doutrina e interferiu pessoalmente, no momento oportuno.

Em 18:13 e seguintes, alguns exorcistas não cristãos, que invocavam o nome de Jesus para expulsar "espíritos malignos", deram-se mal com um deles, que os interpelou destemidamente, como tantas vezes tem acontecido, contestando-lhes a autoridade:

- Jesus eu o conheço, e quanto a Paulo, sei quem é. Mas vós, quem sois?E, ao que parece, nem esperaram resposta, mesmo porque, tomados de surpresa, os

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bisonhos exorcistas nada tiveram a dizer. O confronto degenerou em grossa pancadaria, da qual a muito custo conseguiram escapar os desmoralizados exorcistas, com as roupas e o moral em frangalhos.

Ainda em Trôade, Paulo, literalmente, ressuscita um 'morto'. O jovem Êutico ouvia, sentado no parapeito, a pregação do Apóstolo, quando adormeceu e tombou de certa altura. Foram socorrê-lo e deram-no como morto. Na verdade, estava apenas desmaiado, sem sentidos. Paulo examinou-o e disse com simplicidade: "Não vos perturbeis: a sua alma ainda está nele”.

E estava mesmo, ou seja, não havia ainda se desligado, como ocorre na morte real. Quando ela voltou à posse do corpo físico, o jovem despertou.

Em Atos 21, consta que, em viagem por mar, já em Tiro, Paulo foi advertido de que não fosse a Jerusalém. Dali partiram para Ptolemaida, e, em seguida, para Cesareia, onde vivia Felipe, um dos sete diáconos, com suas filhas, todas dotadas de faculdades mediúnicas (profetisas). Foi ali que Ágabo, também tomado do espírito, transmitiu um recado do Além. Sem desaconselhar a ida a Jerusalém, talvez porque Paulo se obstinara mesmo a ir, disse o espírito que Paulo seria feito prisioneiro lá, para ser entregue aos seus adversários. Foi o que aconteceu.

Episódios como este, em que um evento futuro é anunciado e realmente ocorre, são tomados como exemplos típicos de profecia, cabendo ao sensitivo que o veiculou o título de profeta.

O fenômeno da profecia é uma realidade que a ciência moderna admite, como se sabe dos casos bem documentados de precognição, a partir de exaustivas experiências do Dr. J. B. Rhine e outros. Na manifestação de Ágabo, contudo, embora possa, de fato, tratar-se de uma profecia, a explicação talvez seja mais simples: o espírito que a transmitiu por intermédio do sensitivo poderia estar bem informado acerca do que se tramava em Jerusalém contra Paulo e tratou de preveni-lo.

Como disse Jesus, o espírito sopra onde quer e tem condições, pela sua invisibilidade, de testemunhar os mais secretos conchavos.

Em Jerusalém, em prece, no templo é o próprio Paulo quem conta caiu o Apóstolo em êxtase (leia-se transe) e manteve o seguinte diálogo com Jesus:

- Apressa-te, sai de Jerusalém disse-lhe o Cristo porque não acolheram o teu testemunho a meu respeito. (Ou seja: os judeus não conseguiram aceitar pacificamente a conversão de Paulo ao cristianismo).

- Mas, Senhor respondeu Paulo eles sabem que, de sinagoga em sinagoga, eu mandava encerrar na prisão e vergastar os que creem em ti, e ao ser derramado o sangue de Estêvão, tua testemunha, eu estava presente como cúmplice daqueles que o matavam, e guardava as vestes deles.

- Vai longe insistiu Jesus -, aos gentios é que eu quero te enviar.Na acidentada viagem de barco, nas vizinhanças de Creta, a tempestade marítima foi

horrenda. Paulo, que havia desaconselhado aquela rota, estava sereno, o que não ocorria com os demais passageiros e tripulantes. Dirigindo-se a todos, ele disse que tivessem confiança, porque nada de fatal lhes aconteceria. Numa visão noturna, um espírito lhe dissera que ele, Paulo, tinha ainda de comparecer perante César e que Deus lhe concedia a vida daqueles que com ele viajavam.

Tais episódios não trazem o colorido berrante da fantasia. Fazem parte de um contexto, integram um cotidiano, são narrados com singeleza e convicção que lhes atesta a autenticidade. Revelam uma realidade sem artifícios, sem gestos dramáticos, rituais misteriosos ou secretos, cabalísticos ou ocultos. Falam do interesse de Jesus pelo que ocorria com os seus mensageiros, das instruções que lhes transmitia nos momentos críticos, dos recursos que lhes eram proporcionados para resolverem situações mais complexas ou

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delicadas, e até da tragicômica situação dos falsos exorcistas, ou magos, como em Nea-Pafos. Não são episódios inventados para produzir efeitos especiais, nada têm de fantásticos ou sensacionais. Paulo se refere com a maior naturalidade aos seus diálogos com aquele que identifica claramente como Espirito de Jesus, o que evidencia ser o próprio Paulo dotado de faculdades "proféticas", ou seja, mediúnicas. Às vezes, porém, os informes vinham-lhe por outros medianeiros, como Ágabo ou as filhas de Felipe. Chegavam-lhe também abordagens das sombras, como no caso da pitonisa, através da qual, espíritos maliciosos tentaram envolvê-lo na trama sutil do elogio barato.

Não se deixe de observar, contudo, que os espíritos o ajudam, orientam, consolam e instruem, mas não o livram das dificuldades e tropeços naturais da jornada e da sua condição humana falível. Ele passa fome, fica doente, é batido, escorraçado, contestado, humilhado e perseguido. A convivência com amigos e discípulos atentos são como clareiras em densa floresta de perigos e surpresas, pequenos oásis num vasto deserto em que a rotina são as canseiras e as aflições.

Não obstante, ele segue em frente, pregando destemidamente, firme, convicto, lúcido, enérgico, atento ao apoio que o intercâmbio espiritual lhe proporcionava. Ele sabe que, naquilo que constitui a essência da sua tarefa, nada lhe acontecerá, mas quanto ao resto está sujeito às contingências da vida. O Cristo não prometeu facilidades e comodidades aos que se dispõem a servi-lo, ou melhor, à sua causa. Pelo contrário... Nem ele as teve!

A narrativa contida em Atos e nas Epístolas desvela precisamente isso: alegrias, realizações, dificuldades muitas, sofrimentos, dores físicas e morais e, no final, a convicção do dever cumprido:

Quanto a mim, já fui oferecido em libação escreve Paulo e chegou o momento de minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça.

Já condenado, esperava apenas a execução da sentença. Olhando para trás, revia o bom trabalho realizado; olhando para frente, entrevia o prêmio que o aguardava. Desciam sobre ele as sombras do crepúsculo da vida, mas o seu olhar penetrante podia perceber, na longínqua fímbria do horizonte, clarões inequívocos de uma nova madrugada de luz.

Por toda parte, guiara-o a mão de Jesus e o Mestre estaria à sua espera, no vestíbulo da outra vida. Estava na hora de plantar na terra o corpo corruptível para que, dele descartado, levantasse o outro, o corpo espiritual, incorruptível, luminoso, com o qual atravessaria, em breve, os portais da glória, aureolado pela vitória sobre si mesmo para que vencesse o Cristo.

VII.OS CARISMASQuanto aos dons espirituais, irmãos, não quero que estejais na ignorância (I Cor. 12:1).

A rivalidade entre os dirigentes administrativos da Igreja nascente e os profetas foi desastrosa para o desenvolvimento do cristianismo. As comunidades cristãs foram-se desligando das suas origens, ao abandonarem a tutela espiritual que foi, de início, o segredo de sua força, de sua unidade, de sua expansão.

Os administradores mantinham-se limitados aos aspectos como que "gerenciais" da instituição, para que tudo funcionasse a contento, em ordem, dentro dos recursos materiais da comunidade. E certo que ministravam também os sacramentos existentes batismo e eucaristia -, pregavam a palavra evangélica, dirimiam questões de âmbito local, mas, perante os profetas residentes ou visitantes, ocupavam posição nitidamente secundária, porque tinham estes a palavra quase sagrada dos espíritos. Não se admira, pois, que, desde muito cedo, os espíritos manifestantes passassem a ser considerados santos, mesmo porque os próprios crentes eram assim chamados, como se vê nas Epístolas e nos Atos.

A próxima etapa consistiu em considerar tais manifestações como do próprio Deus, sob a designação de Espírito Santo, da mesma forma que os judeus antigos acreditavam falar a

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Deus, sob o nome de Javé ou Eloim. Os hebreus, contudo, mantiveram a concepção unitária de Deus, que jamais poderiam conceber desdobrado em três pessoas distintas, com uma delas convertida em ser humano.

O prestígio da palavra do espírito como que se comunicava à pessoa que lhe servia de veículo e muitos devem ter assumido posturas realmente superiores aos demais, porque pela sua boca falavam os seres invisíveis e seus olhos podiam contemplar coisas que poucos percebiam.

Não estariam, aliás, inovando com atitudes dessas, dado que pessoas dotadas de faculdades extra-sensoriais sempre gozaram de prestígio e foram cercadas de cuidados e admirações especiais. Assim eram as antigas vestais de templos egípcios, gregos e romanos, tanto quanto pitonisas ou pessoas dotadas do poder de curar enfermidades, prever o futuro, falar do passado ou tramar situações do interesse deste ou daquele. A coisa não mudou muito, pois mudou pouco o ser humano; suas paixões continuam dominadoras, bem como suas vaidades e ambições. Ainda hoje, muitos, que são apenas portadores de faculdades, veículos de mensagens, colocam-se como fontes de tais mensagens, julgando-se capazes de operar prodígios por si mesmos, quando são meros instrumentos de poderes que nem sempre têm condições de entender.

Não é difícil, portanto, imaginar a tensão criada entre os primeiros sacerdotes profissionais e os arautos do mundo espiritual. O êxito dos primeiros foi pronto e radical. Mal encerrado o primeiro século, os dons do espírito, como então eram chamados, foram sendo extintos ao nascedouro. Começaram a escassear os sensitivos. Uns tantos deles viviam de cidade em cidade, como embaixadores itinerantes da palavra dos invisíveis. E de supor-se que não fossem recebidos sempre de braços abertos, senão pelos crentes em geral. Os dirigentes locais não podiam ver com bons olhos aqueles intrusos que passavam logo a polarizar as atenções de todos. Isso não é mera suposição ou vã especulação porque textos primitivos recomendam que, na ausência dos profetas, as primícias fossem distribuídas aos pobres e não aos sacerdotes, como vimos.

Por tudo isso, já no segundo século o pneumatismo era residual, preservado apenas em algumas comunidades mais conservadoras. Mesmo aí, contudo, estava sujeito a distorções e degenerações, não somente nas práticas, como pela infiltração de espíritos enganadores que vinham pregar doutrinas exóticas e implantar estranhos rituais. Daí as recomendações para que fossem testados os espíritos, a fim de assegurar-se a comunidade de que vinham da parte do Senhor, ou seja, eram de boa estirpe. Uma vez que sua pregação extrapolasse os preceitos fundamentais da doutrina cristã, não podiam ser senão mistificadores, tentando ludibriar a comunidade, assumir falsas lideranças ou desviar os fieis do caminho reto das práticas consagradas e tradicionais.

A questão é que, com a extinção dos profetas, reduziu-se o risco de doutrinas fantasiosas, vindas do mundo espiritual desajustado, mas, igualmente, extinguiu-se a orientação sadia e o apoio que as pequenas comunidades recebiam de amigos espirituais de elevada condição evolutiva interessados na implementação harmônica dos ensinamentos de Jesus.

Nunca mais a Igreja iria reconstituir a prática pneumática; pelo contrário, tomou-se de santo horror por ela e as faculdades que possibilitavam a ligação com os espíritos foram duramente perseguidas. Não se tem conta dos sensitivos expurgados como verdadeiros demônios, somente porque nasceram dotados de recursos que os habilitavam como intermediários entre um mundo e o outro. Os espíritos que por eles falavam ou que a eles falavam ou se mostravam visualmente como é o caso de Joana d'Arc, entre muitos eram tidos, sumariamente, por emissários do demônio, quando não o próprio. A valente menina de Domrémy teve sua imagem restaurada pela mesma Igreja que a condenou à fogueira e acabou passando-a para os altares. Seu caso, contudo, é exceção, apenas para confirmar a regra geral, que mandava eliminar todos aqueles que surgiam como veículos de manifestações inabituais.

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Ainda que espíritos da mais elevada condição evolutiva viessem transmitir uma palavra de advertência, de aconselhamento ou de orientação, ai daquele que lhe servisse de instrumento!

Teresa de Ávila bordejou, a vida toda, pelas fronteiras da suspeita e esteve às voltas com a Inquisição, sendo que muitos a tinham, declaradamente, por endemoninhada por causa das suas notáveis sensibilidades. Seus confessores tiveram com ela grande trabalho para tentar convencê-la de que tinha parte com o demônio. Um deles mandou-a fazer figa toda vez que Jesus se manifestasse à sua vidência, na pressuposição de que se tratava de um óbvio disfarce do diabo. Seus escritos foram minuciosamente escrutinizados, expurgados e ajeitados para demonstrar não a realidade que ela vivia, mas aquela que convinha aos interesses da época.

Teresa conseguiu ficar do lado considerado "certo" das fronteiras traçadas pela teologia de seu tempo, mesmo porque contava com poderosos protetores, entre eles, o próprio Felipe II. Muitos não tiveram tal sorte ou cobertura: cruzaram a fronteira e por lá ficaram.

O que acontece é que Joana d'Arc, Teresa e muitos outros, eclesiásticos ou não, dispunham de faculdades hoje chamadas de extra-sensoriais ou mediúnicas. Nos tempos primitivos, eram chamadas carismas, palavra grega que quer dizer precisamente isso: presente, dom, dádiva, donativo, talento e, por extensão, faculdade. Tais sensibilidades são hoje estudadas, testadas, pesquisadas e começam a ser entendidas mais inteligentemente, em vez de serem sufocadas como um estigma. Após tantos séculos de incompreensão, contudo, não é de admirar-se a generalizada desconfiança e a predisposição de considerá-las liminarmente como artes do demônio, fenômenos sobrenaturais ou grosseiras fraudes, ilusões, alucinações, histeria, doença mental, desequilíbrio emocional.

Suponhamos, porém, que ali esteja realmente uma faculdade nobre, real, capaz de estabelecer ligação entre "vivos" e "mortos". Suponhamos que, por intermédio de uma pessoa dotada de tais recursos, seja possível conversar com alguém que já morreu, curar uma doença, dar um conselho, pronunciar uma palavra de consolo, provocar um fenômeno de efeito físico. Quando é que as pessoas ditas inteligentes e cultas vão entender que o ser humano não desaparece nos abismos do nada somente porque lhe morreu o corpo físico? Estamos aqui incluindo, é claro, cristãos inteligentes e cultos. Será que precisam todos de uma vida inteira e de um fenômeno relativamente corriqueiro para se convencerem de que é verdadeira a mensagem fundamental do cristianismo, ou seja, de que o ser humano sobrevive à morte corporal?

Que haja também fraude, alucinação ou perturbação emocional ou mental, ninguém poderá negar, mas seria tudo fraude, alucinação ou perturbação? E tudo fantasia, arte do demônio, ilusão? A moeda falsa aniquila a credibilidade da boa?

Extraordinária é a verdadeira ginástica mental que teólogos e historiadores do cristianismo fazem hoje e vêm fazendo há algum tempo para "explicar" episódios, como o da conversão de Paulo, nas proximidades de Damasco.

Guignebert, professor de História do Cristianismo, na Sorbonne, acha que aquilo não passou de um "drama psicológico" de um homem já muito trabalhado pelos seus conflitos interiores, um homem, no qual "imaginação e sensibilidade extravazavam da razão". A visão seria uma projeção interior de uma síntese ideológica que, no fundo, nenhuma alteração fundamental lhe acarreta, apenas uma "mudança de fanatismo e direção".

Goguel, Doutor em Letras, cinco vezes Doutor em Teologia, Deão honorário da Faculdade Livre de Teologia Protestante, em Paris, Diretor de Estudos da Escola de Altos Estudos, Professor Honoris causa do Colégio Reformado de Debreczen, diz (19) que tais visões costumam desempenhar papel importante nas religiões nascentes e "apresentam notáveis analogias com fenômenos de indisputável caráter patológico, resultantes de um autêntico desequilíbrio mental".

Renan, que escreveu sete volumes sobre as origens do cristianismo, não pensa diferente. Gunther Bornkamm (15) prefere não analisar o problema da visão de Damasco, conservando

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os "pés firmes no chão", limitado a seguir o que o próprio Paulo diz, sem desviar-se do que para ele, Paulo, "foi o cerne da questão". Do que se depreende que para comentar tais coisas é necessário perder o contacto com a realidade.

Hans Kung (7), embora demorando-se um pouco mais na análise do problema da visão de Paulo, em conjunto com outras visões, faz abundante uso de aspas em termos e expressões como "aparição", o Cristo "foi visto", Paulo "viu" o Cristo ressurreto, etc. E toma seus cuidados para não parecer que, tendo-se desembaraçado dos problemas dos milagres, esteja ali admitindo "intervenção sobrenatural", tudo entre aspas.

Johannes Weiss (31), rejeitando a interpretação sobrenatural, acha que a "experiência visionária" de Paulo que assim deve, a seu ver, ser considerada decorre de ação conjunta de um colapso físico e de efeito objetivo resultante da visão interior que ele trazia da mente.

Poderíamos invocar outros testemunhos e outras tantas "explicações" (também entre aspas). Não obstante, por mais que variem estas e não são muitas as variações a rejeição é uma constante: não pode ter ocorrido a aparição de Jesus, simplesmente porque Jesus estava morto e morto não aparece. Ponto final. Qualquer outra hipótese, teoria, ou suposição é digna de exame e sobre elas muitas e muitas páginas são escritas. Só não estão preparados os senhores teólogos e historiadores para admitir a explicação mais simples, lógica, óbvia e verdadeira: a de que se trata de manifestação pessoal de Jesus, que falou realmente a Paulo.

A insistência em torno do problema da conversão de Paulo aqui não resulta de nenhuma preferência pessoal ou fixação minha. E apenas o exemplo mais dramático e mais bem documentado. A experiência de Madalena ou a dos demais apóstolos também serviria para evidenciar o fato de que se romperam as ligações da teologia e da historiografia modernas com as realidades espirituais, não apenas daqueles tempos, mas também com as de hoje, pois fenômenos desse tipo continuam a ocorrer, ininterruptamente, por toda parte. Há testemunhos esmagadores, coerentes, compatíveis com inteligência e conhecimento, bom senso e lucidez.

Por algum tempo, a teologia cristã admitiu o fenômeno, ainda que colando nele o rótulo de sobrenatural e, como tal, considerando-o puro milagre. Mas, pelo menos, ali estava, no caso de Paulo, a manifestação objetiva de Jesus "ressuscitado". Os teólogos modernos, como que envergonhados do conceito do sobrenatural, agarram-se às mais estranhas e complexas teorias psicológicas para "explicar" que tudo aquilo não passa de uma objetivação de conflitos que se agitavam em mentes desequilibradas. Ainda bem que as leis naturais da vida ignoram tais teorias e, por isso, as visões continuam a ocorrer por toda parte. Em alguns, realmente perturbados emocionalmente, em outros, porém, lúcidos, brilhantes, dinâmicos, como Teresa de Ávila, Francisco de Assis, ou o Papa Pio XII.

Toda essa digressão tem por objetivo enfatizar o dramático impasse criado no seio da teologia moderna. Como podem esses cavalheiros reformular doutrinas medievais, que a mente moderna não quer mais aceitar, e não pode, se eles próprios não têm sensibilidade suficiente para buscar nas origens do cristianismo o testemunho da realidade espiritual? Que estão, afinal, pregando esses eminentes pensadores? Onde desejam chegar?

Propõem alguns o retorno às fontes primitivas.Kung, por exemplo, acha, com toda razão, que as raízes do cristianismo estão em Jesus, no que ele ensinou, praticou, viveu e pelo que ele morreu. Parece, e é um truísmo, mas quando nos perdemos, como se perdeu a civilização, no emaranhado das suas descrenças, é preciso reiterar o óbvio, reexaminar o conteúdo dos truísmos, desmontar os raciocínios emperrados, para ver o que está falhando, onde está a ferrugem, a peça quebrada, o mecanismo desarranjado. A verdade pura e simples é a de que a teologia está toda "enguiçada", cava buracos imensos girando sobre si mesma, sem sair do lugar. Claro que não pode sair, pois não está aceitando como válida a sua premissa básica a de que somos seres imortais! Quando essa gente toda vai entender que imortalidade é fato e não dogma? Que sobrevivência é realidade e não crença? Se Deus criasse seres descartáveis, como as embalagens modernas, produzidas por sofisticadas técnicas de "merchandizing", não

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haveria o que discutir em teologia. Teologia, a despeito das inevitáveis limitações semânticas da palavra, é um debate, presumivelmente inteligente, em torno do relacionamento bidirecional Deus/ser humano, Criador/criatura ou, na terminologia de Jesus, Pai/fiIhos.

Se, de fato, desejamos retornar às fontes, às nascentes do cristianismo para reexaminá-las e buscar nelas as respostas de que a humanidade atual está necessitando desesperadamente, precisamos desarmar os preconceitos, as falsas premissas, as conclusões preestabelecidas, os prejulgamentos. Vamos ver, primeiro, antes de qualquer conclusão, mesmo preliminar, o que dizem os fatos. E não se alegue que não dispomos de fatos, pois se os temos para montar uma doutrina responsável por essa montanha teológica que aí está, eles existem também para uma nova arrumação, uma reclassificação, um expurgo do que é, sem dúvida alguma, incongruente, ilógico e inaceitável.

E evidente, por outro lado, que falta nesse contexto, na aridez dessas discussões eruditas e brilhantes, mas estéreis, algum elemento vital que se esvaiu, que se perdeu pelos caminhos, que degenerou, mas não irremediável e irrecuperavelmente.

O pneumatismo original, que deu forma, conteúdo e sustentação à Igreja primitiva, contém elementos valiosos, dignos de um reexame atento, mesmo porque seu objeto é um daqueles elementos vitais, sem o qual nenhuma religião digna de seu título pode subsistir o da realidade espiritual, o conceito fundamental de que o homem é espírito, preexistente, sobrevivente e imortal, responsável, perfectível e em evolução, rumo à perfeição. Em lugar de abrir espaço para o espírito, a teologia construiu masmorras e celas, botou grades, apagou as luzes e lá ficou encerrada, sem horizontes, sem aberturas para o alto, sem criatividade, prisioneira de si mesma.Na medida em que os conceitos que ela resolveu eleger para suas fundações começam a ser contestados e nem sempre validamente ela se perde mais na sua esterilidade, na sua perplexidade. Já se está considerando vexatório e com razão conceitos como o de céu e inferno, demônio ou pecado original. O problema, contudo, é que estão sendo igualmente rejeitados conceitos válidos, como o do milagre, o da ressurreição, o do intercâmbio espiritual que precisam de reformulação, de tradução em termos inteligíveis e inteligentes, mas não de rejeição envergonhada.

E certo que, em alguns aspectos, a reformulação tornou-se insuficiente para resolver a questão e o que houve, de fato, foi um recuo, como no caso do choque entre a teoria geocêntrica e a heliocêntrica que, aliás, jamais deveria ter sido arrastada para o debate teológico. A antiga teologia não podia entender a Terra como simples planeta (e dos menores), girando em volta de uma estrela de quinta grandeza, porque entendia que como berço de Deus, tinha de ser o centro do universo. Quando se tornou, afinal, insustentável tal hipótese, a Igreja refutou ainda por alguns séculos, mas acabou, senão admitindo que se enganara, pelo menos abandonando à sua sorte as consequências que disso havia tirado a teologia.

Já o problema da identificação da doutrina cristã com as suas origens e das reformulações que isto ensejaria, é muitíssimo mais complexo porque envolve aspectos de vital importância, não apenas para as estruturas teológicas, mas também para o movimento e as estruturas terrenas da Igreja. Desses aspectos, avulta sobremaneira o conceito da realidade espiritual.

Goguel diz que o cristianismo não é a religião pregada ou ensinada por Jesus. Seu conteúdo é o drama da redenção consumado pela sua morte e ressurreição.

Em princípio, não é difícil concordar com ele, neste ponto. Realmente, antes de encerrar-se o primeiro século da era cristã, o cristianismo se tornara uma comunidade mundial mais preocupada com a salvação pessoal, ou seja, com a obtenção de uma vaga no Reino de Deus, do que com a essência dos ensinamentos de Jesus. Ao que parece, até mesmo dos ensinamentos e testemunhos só interessava aquilo que, a juízo dos líderes da época, trouxesse alguma contribuição para uma tomada de assalto do Reino. E igualmente certo que Jesus não

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pregou uma religião do formato que hoje conhecemos com esse nome católica, protestante ou ortodoxa, ou seja, uma Igreja hierarquicamente organizada, com sete sacramentos, missas, ritos, dogmas, exclusivismo salvacionista e preceitos semelhantes. Ele pregou um código de ética para sustentação de uma doutrina de amor universal. Ele ensinou que o ser humano se redime ao libertar-se da dor, e, portanto, ao alcançar a felicidade plena, a partir do momento em que se liberta do erro. Há, na sua doutrina, uma estreita conexão entre erro e sofrimento, pecado e doença (física e moral). Que ele tenha morrido pelos nossos erros é compreensível, mas isso não é o mesmo que dizer-se que, com a sua morte, apagaram-se para sempre os nosso pecados. Eles são de nossa intransferível responsabilidade pessoal e deles teremos de dar conta« mais cedo ou mais tarde, numa vida ou noutra.

A ressurreição e as aparições póstumas são a maneira de nos demonstrar a realidade da sobrevivência do espírito. Não foi Jesus o primeiro espírito a sobreviver à morte física, nem o último. Todos nós vivemos sob a mesma lei natural. Tanto quanto a sua morte, sua ressurreição é um testemunho, uma exemplificação, a ratificação do que ele pregara "em vida". E em vida ele continuou e continua.

Teólogos e historiadores contemporâneos, contudo, ao focalizarem seus binóculos do tempo nas origens do cristianismo, não conseguem ver lá certas realidades, simplesmente porque pregaram nas lentes maiores do binóculo imagens pré-fabricadas, tais como: o ser humano é um corpo material; morto o corpo, morto está o ser; se há alguma forma de sobrevivência, é apenas psicológica, um impulso magnético na memória dos seres, um traço na terra, uma página escrita, um ensinamento transmitido, um sorriso ou um gesto de crueldade, de cólera, de bravura, ou de arbítrio. Não o ser em si mesmo.

E, assim, até mesmo com relação aos primeiros intérpretes da mensagem de Jesus, aqueles que procuraram traduzi-la em ação, como Paulo e outros, teólogos e historiadores modernos estão cometendo o mesmo tipo de erro que censuram nos redatores dos Evangelhos, ou seja, colocando na boca desses homens palavras que não pronunciaram e, nas suas mentes, pensamentos que estiveram longe de formular.

Vamos a um exemplo concreto, retomando, em outro tipo de abordagem, o problema da ressurreição, tratado alhures neste livro.

O Capítulo 15 da Primeira aos Coríntios discute, como sabemos, o problema da ressurreição do Cristo, em particular, e dos seres humanos, em geral. Segundo se depreende do texto, é certo que não todos, mas um grupo de coríntios estava questionando a realidade da ressurreição e, consequentemente, negando a possibilidade de vida após a morte. E mais: que, em oposição aos coríntios que admitiam a sobrevivência da alma e não a do corpo, entende Goguel que Paulo considerava a sobrevivência apenas da alma, sem o corpo, totalmente impensável. Ou seja, que Paulo entendia que a alma não poderia sobreviver sem o corpo. (De que corpo fala Goguel?)

E conclui:- Duas concepções, portanto, confrontavam-se ali: a da imortalidade da alma e a

da ressurreição.... que o autor considera não apenas insuscetíveis de combinação, mas irreconciliáveis!E continua:- Desenvolveu-se, dessa maneira, em Corinto, uma espécie de espiritismo, que

Paulo considerou-se incapaz de aceitar e até mesmo de entender.Essa estarrecedora conclusão é de inteira responsabilidade e formulação do eminente Prof. Goguel e nada tem a ver com Paulo, nunca foi expressa por ele nos seus escritos. O pensamento de Paulo é outro, inteiramente diverso disso que Goguel lhe atribui, não restando dúvida de que o ilustre autor está, praticamente, reescrevendo a Epístola no que ela tem de mais essencial, pensando, com isso, torná-la inteligível, pelo menos a ele. Nada disso, porém, está em Paulo.

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Em primeiro lugar, Paulo deixou bem claro que, para viver sua vida após a morte, a alma precisa de um corpo semelhante ao corpo físico (e realmente, o tem) não, porém, o CORPO físico. Ele o chamou de corpo espiritual ou incorruptível; diferente, portanto, do que foi sepultado. Em segundo lugar; onde está dito, em Paulo, que os coríntios em dúvida só acreditavam na sobrevivência da alma, sem corpo? Em terceiro lugar: imortalidade e ressurreição mesmo tomando-se este último termo, semanticamente inadequado ao caso não se chocam, não se excluem, não são irreconciliáveis, como denuncia Goguel. Ao contrário, eles se completam porque se explicam mutuamente. A ressurreição é um testemunho de sobrevivência do espírito revestido de um corpo diferente, em substância, do corpo físico, mas não na forma, na identidade e até em certas funções. Enquanto o corpo físico é um instrumento de trabalho no campo da matéria densa, no ambiente físico da Terra e nela remanesce decomposto, após a morte, o corpo espiritual é o mesmo tipo de instrumento de trabalho no campo invisível da energia, uma forma de matéria infinitamente menos densa, mais sutil, que prossegue servindo de veículo à manifestação do espírito imortal, agora em outra dimensão.

Atribuir ao Apóstolo a rejeição e a incompreensão das atividades pneumáticas que se desenvolviam em Corinto é ignorar a evidência veemente dos capítulos 12, 13 e 14 dessa mesma carta, nos quais Paulo não apenas revelou profundo conhecimento do que ali se passava, como aprovou certos procedimentos e condenou outros, procurando regulamentar e disciplinar a atividade pneumática em Corinto, como veremos mais adiante.

Enquanto a Epístola aos Romanos é o documento que mais se aproxima de uma exposição teológica entre os vários escritos de Paulo, as demais especialmente Coríntios e Gálatas são as que melhor expressam o estilo epistolar, conservando um tom de intimidade, às vezes severas, mas afetuosas e claramente elaboradas em resposta a dúvidas doutrinárias e desvios de comportamento.

Não ficamos sabendo se Paulo instituiu, em Corinto, as práticas pneumáticas, se as encontrou lá, ou se elas se desenvolveram posteriormente. E certo, porém, que, pelas notícias que teve, as coisas andavam algo tumultuadas e não apenas no âmbito das tarefas de intercâmbio espiritual, como em dissensões, divergências, escândalos (incesto, fornicação, infidelidade conjugal e até homossexualismo), bem como desvirtuamento na prática da eucaristia e vários outros aspectos de menor relevo.

Das mais graves é a questão dos "carismas", em vista dos problemas euscitados na prática do intercâmbio entre vivos e mortos. Paulo dedica-lhe três capítulos da sua carta, 12, 13 e 14. Meticulosamente, ele classifica, ordena e hierarquiza as diversas funções mediúnicas, para que cada um saiba o que tem a fazer e se integre num conjunto harmonioso de tarefas que, certamente, ele considera de fundamental importância para a vitalidade da Igreja de Corinto.

Em primeiro lugar, lembra aos seus pupilos o tempo que, como gentios e politeístas, eram atraídos pelos ídolos que adoravam. Estes, contudo, eram mudos, nada lhes falavam de doutrina ou de prática religiosa. Já ali, em Corinto, eles estavam em contacto com seres invisíveis, que falavam pela boca dos profetas, agiam por suas mãos e se manifestavam à sua vidência: Não eram, pois, figuras estáticas e inanimadas. 0 primeiro cuidado, portanto, consistia em examiná-los com espírito crítico alertado para definir suas intenções pelo que diziam e faziam. Os espíritos bem-intencionados e integrados na doutrina cristã não pregariam contra Jesus e não falariam mal dele. Por outro lado, os mal-intencionados não reconheceriam Jesus como Senhor e Mestre. Tinham, todos, de ser julgados pelo conteúdo das suas comunicações e não pelos nomes com que se apresentassem ou pela suntuosidade literária do que diziam. Critérios esses que foram e continuam válidos no trato com os seres que vivem do outro lado da vida.

Quanto ao carisma em si, ele surge como doação de mais alto, pois não basta desejá-lo para possuí-lo uns o têm, outros não; em alguns se manifesta de determinada feição, em

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outros, de maneira diferente, mas, utilizados ordenadamente, todos são úteis à comunidade e devem ser julgados segundo esse critério de utilidade coletiva. De que serviria uma faculdade, por mais espetacular, que a ninguém aproveitasse?

Afirma, a seguir, que, na diversidade de manifestações, identificase a mesma origem espiritual dos fenômenos.

Havia espíritos que discorriam sobre temas elevados, revelando grande sabedoria e serenidade; outros preferiam falar sobre temas de natureza mais objetiva. Paulo emprega o termo ciência neste ponto e não sabemos, ao certo, o que entendiam seus leitores (e ele) por ciência, naqueles tempos. Imagino que fosse uma tentativa de interpretação da vida, do mundo em que vivemos, do mecanismo das leis naturais. Outros preferiam a temática da fé, ou seja, instruções e comentários de natureza teológica. Por intermédio de outros, os espíritos promoviam curas ou faziam "milagres". A distinção entre curas e milagres indica que constituem coisas diferentes no entendimento da época. Suponho que curas fossem as de natureza espiritual, mental, ou seja, distúrbios psicossomáticos e emocionais, obsessões, possessões, etc, enquanto milagres seriam curas de doenças nitidamente físicas, como lepra, cegueira congênita, atrofias musculares, febres e coisas desse tipo. Paulo não detalha o modus operandi de tais carismas curadores, porque, obviamente, seus leitores sabiam precisamente do que faiava ele, mas é de supor-se que fossem exercidos por meio de imposição de mãos. Modernamente se chama passe, a essa técnica, uma vez que se trata de uma passagem de recursos magnéticos (energéticos, curativos, vitalizantes) de uma pessoa para outra, da mesma forma que, ligando-se uma bateria exaurida numa fonte de energia elétrica, ela se recarrega e volta a funcionar, se ainda oferecer condições mínimas de operação.

Prossegue ele especificando mais quatro funções: a da profecia, a do discernimento dos espíritos e o dom de falar línguas, bem como o de as interpretar.

Já examinamos, alhures neste livro, o conteúdo e o significado da palavra profecia, que não é, nesse contexto, como muitos pensam, o dom de predizer o futuro e sim o de ceder o médium o seu corpo físico ao espírito manifestante. Utiliza-se este, prioritariamente, do aparelho fonador do seu intermediário, falando por ele ou ela em linguagem acessível ao entendimento de seus ouvintes. Incidentalmente pode um profeta ou médium, em tais condições, formular uma profecia, isto é, prever algum acontecimento futuro, mas não que seja essa a sua condição permanente. O manifestante é um instrutor, um orientador, um guia espiritual, não um profeta a derramar previsões toda vez que toma o médium para falar por seu intermédio.

Há, em seguida, o sensitivo ou médium que dispõe da faculdade que Paulo classifica como "discernimento dos espíritos", ou seja, vidência. Estes, literalmente, veem os espíritos presentes como veem os seres humanos à volta deles, da mesma forma que Madalena e os apóstolos viram Jesus ressuscitado (sobrevivente).

O terceiro desta série é o discutido "dom de línguas", sobre o qual tanta impropriedade tem sido escrita. A primeira confusão que neste contexto se estabelece é a de que o "dom de línguas" seria a glossolália.E o que pensam, por exemplo, os comentaristas da Bíblia de Jerusalém.

E, também, o que entende Ernest Renan que, julgando apressadamente e sem estar familiarizado com o problema, escreve em OS APÓSTOLOS, que Paulo, em Antioquia, "deixou-se levar pela corrente carismática", mas "depois veio a mostrar-se contrário à glossolália", como consta, a seu ver, do capítulo 14 da Primeira Carta aos Coríntios.

Mão é nada disso. O chamado "dom de línguas", hoje praticado com certo entusiasmo e até indisciplina, em seitas protestantes e em grupos católicos ou independentes, é uma liberação de sons vocais que podem ou não fazer sentido, apresentar-se coerentemente ou não, caso em que é apenas um amontoado de sílabas desconexas que a ninguém aproveita,

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nem ao que as diz nem aos que as ouvem. Daí, precisamente, as reservas de Paulo, ainda mais que, segundo se depreende do seu

texto, fora informado de que todos falavam ao mesmo tempo, o que deveria provocar enorme confusão e alarido dentro da igreja. Para combater esse tumulto, ele resolveu tratar o assunto em separado no capítulo 14, que ainda veremos.

Infelizmente o chamado "dom de línguas" continua mal entendido e mal praticado. Continuam vozes em tumulto a falar de maneira incompreensível. Mesmo que naquela balbúrdia alguém estivesse afizer algo coerente ainda que em língua estranha e houvesse quem entendesse tal língua de nada serviria o que estaria sendo dito, pois a gritaria não permite o aproveitamento da comunicação. É o que então ocorria e se dá ainda hoje, nas comunidades em que o dom carismático das línguas está sendo retomado como exercício regular.

Em princípio, qualquer pessoa que abrir a boca e deixar que saiam sons, sob forma de sílabas, está em condições de "falar línguas". Que isto seja, contudo, um pronunciamento do Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade, é inaceitável, ainda que essa história de Trindade fosse mesmo real. Estaria Deus manifestado ali, a balbuciar sons desconexos? Que o sensitivo esteja, a seu turno, falando com Deus, naquela algaravia, é outra incongruência. E certo que, em princípio. Deus entenderia, pois ele nos entende quando apenas pensamos, e até quando não pensamos, mergulhados em silêncio mental, na profunda intimidade do ser. Por que razão iríamos tentar comunicar-nos com Deus numa "linguagem" inexistente, na qual não sabemos o que falamos, precisamente porque nada falamos coerentemente?

Há genuínas manifestações espirituais em línguas estrangeiras, vivas ou mortas, conhecidas ou desconhecidas do sensitivo, mas isso nada tem com a glossolália, que se limita, basicamente, à emissão de sons sem sentido. O fenômeno autêntico tem sido estudado, é relativamente comum e tem alto valor evidenciai no testemunho da sobrevivência do ser, como elemento identificador do espírito manifestante. Já referimos aqui o estudo do cientista italiano Ernesto Bozzano, sob o título de XEIMOGLOSSIA.

IMa narrativa de suas experiências com a jovem Rosemary, pseudônimo de Ivy Beaumont, Frederic H. Wood (51) descreve fenômenos xenoglóssicos, através dos quais foi possível ouvir, pela primeira vez, em tempos modernos, a língua falada no Egito dos faraós, da qual se preservaram os hieróglifos nas esteias, monumentos, túmulos e papiros, mas não, obviamente, a pronúncia.

E, sem dúvida, fascinante presenciar alguém que somente fale português, por exemplo, discorrer, fluentemente, em latim, inglês, húngaro ou hebraico.

Para que isso seja proveitoso, contudo, é preciso que haja alguém por perto que entenda a língua falada pelo espírito através do sensitivo. Daí a insistência de Paulo em prover sempre um intérprete, para que pudesse ser transmitido aos demais o teor da comunicação em língua estranha. Não que o intérprete seja dotado também de um carisma no sentido profético, mediúnico, mas sim que possua sólidos conhecimentos da língua, na qual, incidentalmente, o espírito se manifeste, por tê-la usado enquanto viveu na carne. Nada mais, nada menos do que isso.

Depreende-se, ainda, do texto de Paulo que estavam surgindo rivalidades entre os diversos sensitivos ou profetas, em Corinto. Havia os que se julgavam mais importantes e superiores, portanto, aos demais. Por isso, Paulo aproveita para uma digressão, desenvolvendo o tema abordado de início, de que, por trás de toda a fenomenologia ali observada, operavam os espíritos, e que nada provinha de cada um dos intermediários. Eram todos meros instrumentos e nada tinham de que se orgulhar ou vangloriar. Os espíritos é que decidiam como falar, sobre o que falar e que faculdade movimentar em cada um. Os profetas ou sensitivos eram como membros de um só corpo, declara Paulo, em felicíssima imagem. Não os havia melhores nem piores, mais exaltados ou mais humildes. Se o corpo precisa dos

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pés para andar, é através deles que vai movimentar-se e não da cabeça. Se o olho achar que, por não ser mão, não pertence ao corpo, "nem por isso deixará de fazer parte do corpo". "Se o corpo fosse todo olho, onde estaria a audição?"

Essa imagem o Apóstolo desenvolve pacientemente para marcar com absoluta nitidez o seu competente ensinamento. Nem um pormenor é deixado sem menção. Aos que se jactam de faculdades que consideram mais nobres, Paulo mostra que elas são tão boas quanto as outras; o Espírito manifestante é que decide como utilizá-la e para que. Aos que se sentem diminuídos ou humilhados por faculdades consideradas inexpressivas, lembra o Apóstolo que "os membros do corpo que parecem mais fracos, são os mais necessários". E mais: exatamente aqueles que parecem menos dignos de honra, são os que mais honramos com o recato, como ocorre com os "menos decentes", de vez que os "decentes não precisam de tais cuidados". (Antigas versões falavam em "partes desonestas..."). Disso aproveita-se ele para dizer que "se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham sua alegria".

Expandindo ainda mais e transcendendo sua imagem, ele lembra que todos ali constituem "o corpo de Cristo" e "seus membros", cada um com sua tarefa e função. Apenas por uma questão disciplinar, ficara estabelecida certa hierarquia necessária, colocando-se, em primeiro lugar, o apóstolo, ou seja, o portador da palavra de Jesus; em segundo lugar, os profetas, isto é, médiuns, ou sensitivos; em terceiro, os doutores (sacerdotes, presbíteros, diáconos, etc) e, em seguida, os que operavam "milagres" e curas, os que cuidavam do trabalho assistencial e da administração material da comunidade. Em último lugar, na sua hierarquia de funções não todas, necessariamente, carismas, veja-se bem vinham os que tinham o "dom de línguas".

Não podiam, evidentemente, ser todos apóstolos, ou todos profetas, doutores ou instrumentos de milagres e curas. Nem todos falarem línguas ou as interpretarem. Cada qual na sua função, na sua tarefa, no seu posto. Todos necessários por igual.

Observamos que, tomando a comunidade como um sistema articulado, um organismo vivo, um corpo, Paulo enumera, classifica e hierarquiza as tarefas, inclusive as administrativas e não apenas os dons carismáticos, ou seja, mediúnicos. Entendia ele que a comunidade não poderia funcionar satisfatoriamente se todos fossem pregadores ou todos médiuns. Era preciso que cada um desse sua contribuição, pois eram todas necessárias aos objetivos em vista. Esta, aliás, é uma das confusões habituais suscitadas pelos comentaristas desses textos. As tarefas administrativas e mesmo as de pregação apóstolos e doutores não são funções carismáticas, e sim uma espécie de credenciamento, de mandato, de investidura, de escolha, do ponto de vista humano.

Lamentavelmente, os "doutores" posteriores a essa época não se conformaram com o espaço que lhes fora reservado no terceiro escalão da hierarquia eclesiástica e acabaram galgando o primeiro, onde se estabeleceram para sempre. Depois que morreram os apóstolos diretos de Jesus, tornou-se mais fácil eliminar, por rejeições sistemáticas e sucessivas, os profetas, com o que ficou desobstruído o caminho para o poder. Uma vez assumido este, começou a reformulação doutrinária do cristianismo, montando-se caprichosamente um mecanismo adequado que garantia o domínio de todo o sistema. Em evidente impulso de autopreservação, o novo regime cuidou logo de ocupar todos os espaços, para que o pneumatismo jamais voltasse a incomodar os donos do poder. Se os espíritos insistissem com as suas severas advertências, como tantas vezes fizeram ao longo dos séculos, o sensitivo era impiedosamente castigado como instrumento do demônio e, portanto, inimigo da Igreja e, por extensão, do próprio Cristo e de Deus.

É que os carismas são dons que permitem e possibilitam intercâmbio com os habitantes do mundo invisível, ou melhor, com os habitantes invisíveis do mundo. Diversamente das demais tarefas, não se apoiam em mandato humano, mas em faculdades que alguns têm e outros não.

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Depois de discorrer sobre as funções de cada um, Paulo faz uma pausa e escreve uma das mais belas páginas da literatura religiosa em todos os tempos o elogio da caridade.

Não propõe aí que se abandone a prática dos carismas e a busca dos "dons mais altos", mas um caminho, a seu ver, é superior a todos: o do exercício da caridade, a dinâmica do amor. Nenhum carisma, dom ou faculdade vale alguma coisa senão que seja utilizado a serviço do próximo. Não adianta falar a língua dos homens ou a dos anjos, se não praticarmos a caridade. De nada serve, sem ela, o dom da profecia, o conhecimento dos mistérios e da ciência. Até mesmo a fé, sem o substrato da caridade, é morta para o Apóstolo. E mais: o próprio exercício da caridade tem de ser caridoso, ou seja, amoroso, pois não adianta doar, nem mesmo todos os bens, sem amor. A principal tarefa da caridade, a seu ver, não é material, que constitui apenas um dos seus aspectos e não o mais relevante. O importante para ele é a caridade espiritualizada, paciente, prestativa, sem invejas e sem ostentações, mansa, humilde, desinteressada, sem rancores, numa atitude de quem tudo desculpa, tudo crê, tudo suporta, tudo espera.

No seu entender, os próprios carismas são transitórios, são meios e instrumentação e não finalidade em si mesma. Com o que antecipa ele o tempo em que, atingida a perfeição, estaremos todos transcendendo nossas atuais limitações. No estágio evolutivo em que nos encontramos, ainda vemos confusamente as coisas, como se através de um espelho e certamente não muito polido. Percebemos apenas o vago reflexo das coisas, aparências e imagens delas, e não a coisa em si mesma, na sua essência e realidade íntima. Mais tarde, "veremos face a face", não a Deus, por certo, pois Deus não tem face, mas a intimidade da realidade, a própria verdade em nós. Para veicular esse profundo pensamento, Paulo emprega uma expressão muito curiosa e feliz, dizendo que, então, sim, "conhecerei como sou conhecido".

Nesse transitório universo de realidades parciais, desse confronto do permanente com o passageiro, do momento que transita, para a eternidade, que permanece, Paulo via três conceitos fundamentais participando dos atributos da eternidade: a fé, a esperança e a caridade.

A fé, segundo sua definição em Hebreus 11, como "posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades invisíveis"; a esperança para sussurar na intimidade do ser a constante palavra de consolo e estímulo, como a dizer-lhe que há sempre algo melhor um pouco mais à frente, e, finalmente a caridade, como instrumento da construção do Reino de Deus em nós. Das três fé, esperança e caridade Paulo põe a caridade como a "maior delas", pois não é apenas um caminho para a realização pessoal, um recurso transitório e perecível, dado que, uma vez chegados à perfeição espiritual, não iremos cruzar os braços na indolência e na ociosidade e sim continuar servindo e amando, na plenitude do amor universal, cósmico, que Dante colocou, com justeza e elegância, como a força que move o sol e as demais estrelas.

Encerrado o seu poema sobre a caridade pode-se ler também amor onde está escrito caridade Paulo retoma o tema dos carismas.

Reitera sua preferência pelo dom da profecia, ou seja, pelo tipo de mediunidade que permite aos espíritos falarem em linguagem que todos os presentes entendam, pois a quem fala no confuso linguajar dos sons inarticulados, só Deus entende, ninguém mais. O que fala a linguagem comum edifica, exorta e consola. Não proíbe ele a glossoláiia, mas prefere a fórmula que permita a todos o entendimento do que está sendo dito, faculdade que ele denomina profecia. Os que falam em línguas ininteligíveis insiste ele só podem ser úteis quando alguém traduza, para compreensão geral, aquilo que estejam dizendo.

Pouco abaixo, no versículo 18, Paulo revela que também ele dispõe do dom de falar línguas estranhas e até "mais do que vós", ou seja, com maior proficiência, mas de que serviria levantar-se ele numa assembleia e falar dez mil palavras em línguas que ninguém

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entendesse? Prefere dizer cinco palavras apenas, mas que todos compreendam. Que utilidade tem um discurso ou sermão que não transmita conhecimento, revelação alguma, ciência nenhuma? Que adianta orar em língua que nem o próprio carismata ou médium entenda e, por isso, nenhum proveito tira da sua prece? Acresce, ainda, o efeito nulo ou negativo sobre quem ouve. Suponhamos que alguém se levante e pronuncie, em voz alta, o que julgue ser uma prece, mas em linguagem ininteligível. O ouvinte que nada entendeu, como vai dizer "Assim seja"? A prece pode ter seus méritos assim, mas nada constroi naquela pessoa que a ouve.

Vem, a seguir, um trecho que os comentaristas da Bíblia de Jerusalém consideram obscuro, bem como insatisfatórias as diversas soluções propostas ao seu entendimento. Vejamo-lo:

Por conseguinte, as línguas são um sinal, não para os que creem, mas para os que não creem. A profecia, ao contrário, não é para os incrédulos, mas para os que creem.

Não há dificuldade em entender o texto, desde que se tenha noção exata do que Paulo quer dizer com o termo profecia. Tomado no seu sentido habitual de previsão do futuro precognição, na terminologia parapsicológica realmente fica obscuro o texto. Profecia, aí, contudo, é uma forma de mediunidade ou carisma, segundo a qual o espírito comunicante fala coerentemente através do sensitivo, utilizando-se da língua falada pelo próprio instrumento, de forma a ser compreendido por aqueles que o ouvem, em contraposição à glossoláiia, confuso emaranhado de sons sem sentido, que ninguém entende. Claro, portanto, que aquele que está habituado à fenomenologia, frequentador assíduo dos cultos, isto é, os crentes ("os que creem"), sabem do que se trata. Para os que estão assistindo pela primeira vez, contudo, como visitantes ou curiosos, mas ainda não integrados na comunidade dos crentes ("os que não creem"), aquilo não quer dizer nada. Mas, veja-se bem, mesmo para os crentes, o fenômeno é apenas um sinal, na precisa linguagem de Paulo, não um fenômeno edificante ou proveitoso.

Ele ainda desdobra melhor o seu pensamento, figurando uma situarão específica: que irão pensar os visitantes, ao entrarem subitamente numa assembleia em que estejam todos a deblaterar em linguagem ininteligível? Que estão todos loucos, assinala Paulo. Se, ao contrário, o visitante assistir a uma manifestação lúcida e coerente, durante a qual o espírito se dirija a ele e lhe diz coisas da sua intimidade, que só ele ou os mais chegados conheçam, então, sim, o impacto será grande e o "incrédulo” passará a crer que "Deus está realmente no meio de vós".

Após essa teorização, Paulo conclui com uma exposição prática e objetiva sobre como conduzir as reuniões carismáticas. Que cada um exerça sua faculdade própria: o cântico, o ensinamento, a revelação ou as línguas (desde que interpretadas, insiste ele), mas que se faça tudo para edificação de todos. Esse o critério normativo, o princípio dominante.

Se alguém falar em línguas ininteligíveis, reitera ele ainda uma vez, que haja, por perto, alguém que as interprete. Se não há intérprete, que se cale o medianeiro, de vez que de nada serviria seu linguajar. Que fale consigo mesmo (meditação) e com Deus (prece). Quanto aos "profetas", isto é, médiuns hoje chamados de incorporação, pelos quais se manifesta a palavra falada, que dois ou três falem e que os demais julguem. Isto é, não aceitem qualquer coisa sem exame crítico, apenas porque seTrata de pretensa revelação espiritual. Quando um está falando, os outros devem caiar-se para que fale apenas um de cada vez, a fim de evitar o tumulto, dando, ao mesmo tempo, oportunidade a quantos disponham de tais faculdades.

Profundo conhecedor do problema, contudo Paulo sabe que podem certos espíritos menos avisados tentar tumultuar o ambiente, impondose à vontade do intermediário e fazendo-o falar, enquanto outro ainda está com a palavra. E por isso que lembra ele que "os espíritos dos profetas estão submissos (melhor seria sujeitos) aos profetas". Isto significa que os espíritos manifestantes também devem sujeitar-se à disciplina do trabalho ou, melhor ainda, os médiuns não devem permitir que falem ou se manifestem senão no momento oportuno. Os

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espíritos elevados não são rebeldes ou indisciplinados.Também aqui os comentaristas da Bíblia de Jerusalém não foram muito precisos na

redação da nota de rodapé, ao dizer que "... se o profeta parece ter perdido o controle do seu comportamento, é um falso profeta".

Não é isso. Não se trata de controlar o seu comportamento, mas o do espirito manifestante, para que não seja inoportuno, expressando-se extemporaneamente ou de maneira inconveniente. Não que ele seja um falso médium — é um médium indisciplinado, que abre espaço para a indisciplina do espírito que nele se manifesta. Paulo é bem claro ao enfatizar que o espírito comunicante também precisa e deve obedecer à disciplina do grupo, uma vez que venha para colaborar e não para tumultuar. E acrescenta, com toda razão:

Deus não é um Deus de desordem, mas de paz.Se, portanto, o espírito manifestante não se porta ordeiramente e em paz, não vem da

parte de Deus, nem lhe tem respeito e amor, mesmo porque tudo quanto diga o espírito deve ser avaliado pelos presentes, como aconselha o autor da epístola.

Segue-se uma palavra sobre o comportamento das mulheres em tais reuniões.Paulo vive num contexto em que, embora sem espaço para movimentar-se na sociedade, a

mulher deixou de ser objeto, pois o cristianismo não a considera um ser inferior ou desprezível. Jesus deu disso eloquentes testemunhos. Em vez de condenar a adúltera, já em vias de apedrejamento, como mandava a lei, ele conteve os executores da sentença, autorizando que atirasse a primeira pedra o que se julgasse sem culpa. O adultério é falta cometida a dois; há, portanto, um adúltero e uma adúltera envolvidos. Por que razão castigar uma das partes e deixar impune a outra? Se é que a falta é passível de punição, ambos estão expostos a ela. Em outras oportunidades, conversou pacientemente com a samaritana, acolheu entre os seguidores várias mulheres curadas de obsessões, enxugou lágrimas e minorou sofrimentos de muitas esposas e mães, curando-lhes maridos, filhos e parentes outros.

Seja como for, porém, ao tempo de Paulo, a mulher ainda era a parte silenciosa da sociedade. Eram para ser vistas (de longe e vestidas com decoro rigoroso), mas não para serem ouvidas (falar em público, debater, fazer perguntas). Na igreja deveriam manter-se em silêncio. Dúvidas seriam resolvidas na intimidade do lar, perguntando-se ao marido coisas que, porventura, não houvessem entendido.

Quanto aos carismas, que todos os que se julgassem profetas ou "inspirados pelo espírito", tomassem suas palavras de esclarecimento como "preceito do Senhor". "Todavia, se alguém não o reconhecer é que também Deus não é reconhecido". Ou seja: não era de Deus aquele que assim não pensasse.

Depois disso, a palavra final:Por conseguinte, irmãos, aspirai ao dom da profecia e não impeçais que alguém fale em

línguas. Mas que tudo se faça com decoro e com ordem.Não há, portanto, como informa Renan, manifestação de Paulo contrária à glossolália, ou

melhor, à xenoglossia, e sim ao tumulto que o falatório de línguas estava provocando sem proveito para ninguém. Desde que fosse feito tudo em ordem, que houvesse intérprete e que cada um falasse a seu turno, tudo bem. É oportuno observar, ainda, que a proibição talvez fosse inócua, não, porém, a exigência de um intérprete para o confuso linguajar dos falastrões de línguas ininteligíveis. Podiam falar à vontade, desde que alguém traduzisse aquilo em termos compreensíveis. Com isto, creio que Paulo eliminou, de vez, a balbúrdia das línguas. Onde iriam os coríntios encontrar gente que entendesse todaa aquela algaravia?

Não há dúvida, portanto, de que Paulo é profundo conhecedor da fenomenologia pneumática da Igreja primitiva. Ele sabe como distinguir os diversos "carismas" ou faculdades, conhece seus macanismos, propõe uma disciplina rígida para coibir abusos e tumultos, recomenda o exame crítico do que dizem os espíritos manifestantes e coloca as reuniões desse tipo no contexto da comunidade, como unidade de serviço, exercício prático

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de caridade moral e material. O teste da validade para a fenomenologia é a sua utilidade, o seu proveito, a edificação de todos e não para um ou dois. Em suma: a prática da caridade, como suprema e permanente virtude é o fator dominante.

Mas, além de conhecer os fenômenos em sua intimidade, alinhando regras e preceitos, que continuam perfeitamente válidos até hoje, ele é também um carismata, sensitivo, profeta, vidente, ou seja, um médium, na acepção moderna do termo.

Começa tudo com a dramática visão do Espírito de Jesus no deserto. Com o tempo, integrado na comunidade, também pneumática de Antioquia, ele não apenas se instruiu no estudo da fenomenologia, mas desenvolveu seus próprios carismas. Aos coríntios informa que também fala em línguas desconhecidas. Não se deve entender isso como glossolália, pois ele próprio diz e insiste que a ninguém edifica, nem ao próprio médium, o falatório sem sentido. Sua faculdade deveria ser a que ele chama de "profecia", de vez que por ele falavam espíritos nas línguas que usaram enquanto vivos, como seres humanos (xenoglossia). "Dou graças a Deus por falar em línguas mais do que todos vós".

Em inúmeras oportunidades, o Cristo se manifesta à sua vidência ou fala com ele, em sonhos e êxtases (desdobramentos). Pelo menos uma vez, ele é retirado, em espírito, do corpo físico e levado a regiões superiores, onde, ao que tudo indica, recebeu instruções e testemunhou "coisas inefáveis". Também dispõe do dom de curar, como o demonstrou com Êutico, cujo espírito afastado, mas ainda ligado ao corpo físico, ele deve ter visto, para assegurar aos circunstantes de que não estava morto o jovem, de vez que sua alma ainda estava nele. Com a imposição das mãos, ajudou Timóteo a despertar seus próprios carismas.

Deu, pois, demonstração e testemunho de várias faculdades ou dons espirituais. Entendia, portanto, dos carismas e sabia como discipliná-los em si e nos outros. Não há, por conseguinte, como concordar com a afirmativa de Goguel, segundo a qual Paulo "não aceitou e nem entendeu (aquela) forma de espiritismo" que se desenvolveu entre os coríntios. Ao contrário, ele aceitou e entendeu muitíssimo bem, tão bem que lhes escreveu três capítulos de instruções minuciosas, precisas, objetivas e inteligentes, produzindo um verdadeiro manual para orientar a prática dos diversos carismas em benefício de todos.

O que é lamentável é que modernos teólogos, historiadores e estudiosos do cristianismo se revelem tão ignorantes da fenomenologia pneumática, que nos tempos primitivos foi elemento vital à consolidação e expansão das comunidades cristãs.

Como importante elemento na compreensão do que então se passava nas comunidades cristãs, esse conhecimento constitui fator relevante na armação de um quadro inteligível que sirva de ponto de partida para uma retomada, uma restauração, uma reidentificação do cristianismo com as suas origens que nos levem, afinal, à condição de uma releitura mais inteligente dos textos evangélicos.

Não estamos propondo, necessariamente, um retorno às práticas carismáticas da Igreja primitiva pelo menos da maneira incompetente pela qual estão sendo retomadas mas um reexame honesto, lúcido e inteligente, não apenas no contexto em que elas surgiram e se desenvolveram, mas, principalmente, das verdades que elas trouxeram no seu bojo e daqueles em que se apoiavam ou que a explicavam, ou seja, das realidades que demonstram.

0 quadro pode ser assim armado: Jesus pregou uma realidade espiritual com todas as suas óbvias e inevitáveis implicações. Depreende-se dos seus ensinamentos que o ser humano é, em essência, espírito, preexistente, sobrevivente, imortal, responsável pelos seus atos, perfectível, dotado de potencialidades praticamente ilimitadas. Desvestido da divindade, que lhe foi atribuída à sua revelia e em oposição a tudo quanto ensinou, vemo-lo como espírito de elevadíssima condição evolutiva, que já existia desde tempos imemoriais e que decidiu trazer pessoalmente sua mensagem à humanidade, consciente de todas as dificuldades e sacrifícios que a missão implicava. Sabendo até que seriam precários os resultados iniciais, admitindo desvirtuamentos, distorções e incompreensões, certo de que, como semeador, que era, não

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podia contar com a pronta germinação de todas as sementes, bem como com a floração e frutescência imediatas. Isso iria depender do terreno em que as sementes fossem lançadas e ele sabia da agreste aridez de muitos corações, dos espinheiros que havia em outros tantos, dos predadores que atacariam muitos, mas sabia, também, que, em uns tantos, o terreno estava preparado, era fértil e responderia à sementeira com abundante colheita, no correr dos tempos.

A terrível agonia e os tormentos físicos e morais da cruz não correspondem à imolação de um ser inocente (ou de um Deus, como quer o dogma), para que os pecadores se salvem, ou seja, para que recebam, de graça, uma carta de alforria, um certificado de irresponsabilidade. A cruz é um testemunho de coragem, de devotamento, de convicção. E a demonstração viva de uma realidade que tanto tem custado ao ser humano entender e aceitar a de que somos seres imortais, indestrutíveis, partícipes da eternidade, desde que fomos criados simples e ignorantes.

A atividade pneumática da Igreja primitiva é a viva demonstração dessa realidade. A chamada ressurreição ressalvada a impropriedade do termo é testemunho não de que Jesus é Deus, mas da sobrevivência do ser aos trâmites da morte. Morto o corpo físico, emergimos, do "outro lado da vida", em um corpo que já tínhamos antes de nascer aqui, tivemos enquanto aqui vivemos e que prossegue sendo nosso instrumento e veículo, máquina sutil de viver, tanto na carne, como despojados dela.0 que será que existe nisso tão difícil de entender e aceitar?

O pneumatismo primitivo, portanto, é a comprovação dessas verdades, a demonstração prática dos princípios básicos da vida, a dinâmica de uma realidade inquestionável, óbvia, elementar, e, ao mesmo tempo, transcendental, ainda que natural e espontânea. IMão é preciso crer que assim é, basta saber observar e praticar os carismas. Ali está a evidência: homens e espíritos se entendem, os mortos conversam com os vivos, a vida é uma só realidade contínua, incessante, sem hiatos ou fraturas, um desdobrar-se ininterrupto de causa e efeito, de ação e reação, de responsabilidades pelos erros e de méritos conquistados pelos acertos.

O exercício dos carismas, como bem assinalou Paulo, não traz'méritos em si mesmo, não é um fim, é apenas um meio; não meta, é veículo, para chegar-se às metas, por sucessivas etapas. Não é nem permanente, algo a ser praticado pelo resto da eternidade, se é que eternidade tem resto. Uma vez convictos dessa realidade, redimidos todos, dos nossos erros e loucuras, pacificados, desembaraçados, para sempre, dos liames da matéria pesada, no convívio permanente com os demais seres, nossos irmãos e irmãs, envolvidos todos numa atmosfera de amor, de paz, de equilíbrio, de felicidade, para que manter o intercâmbio entre mortos e vivos se estaremos todos juntos, no mesmo nível evolutivo. Estaremos, por esse tempo, todos convivendo uma só realidade, sem as separações vibratórias que ainda criam entre nós, agora, biombos, que a muitos parecem intransponíveis, opacos, proibitivos. Pois se a maioria, após dois milênios do testemunho vivo do Cristo, continua achando que do outro lado do biombo nada existe e ninguém se move no silêncio escuro do nada!

VIII. REAVALIAÇAOPois para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro.(Fil. 1:21).

A que conclusões nos levariam uma reavaliação, um balanço naquilo que Paulo ensinou? Com a ressalva de que temos dele apenas o relato de Lucas, em Atos, e o texto das Epístolas, que são, em grande parte, escritos de ocasião e não a exposição sistemática de uma teologia ou de uma filosofia de vida, podemos, ainda assim, traçar um quadro inteligível.

Paulo é homem de seu tempo, limitado, em alguns aspectos, às contingências de sua época e, no entanto, transcendendo-a em muitas. A mulher, por exemplo, é, para ele, um ser

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inferior, ou, pelo menos, sujeito ao homem, a quem deve obedecer e servir. Ele parece aceitar, sem discussão, lendas e simbolismos bíblicos. Para ele, é verdade histórica que Adão foi criado do barro terreno, no qual Deus soprou o espírito, enquanto a mulher é um incidente imprevisto, improvisado a partir de uma costela. Daí a sua subordinação. Adão é, por sua vez, o introdutor do pecado no mundo, servidão à qual Jesus, com a sua morte e ressurreição, viria pôr fim, mostrando que atitudes tomar e que caminhos seguir, de modo a libertar-se. A propagação da espécie pela união dos sexos é mais um estigma, se possível a ser evitado, do que um processo natural e necessário à renovação da vida. O demônio parece ser, para ele, uma figura real, espécie de líder e comandante de demônios menores. Deus, um ser superior e onipotente, eterno e justo, mas também iracundo, ciumento e pronto a castigar exemplarmente o transgressor de suas leis. 0 povo judeu tem a prioridade da salvação e, em seguida, o grego.

Ao lado e acima desses arcaísmos, contudo, desses resíduos de antigas crenças e preconceitos, abre-se para o infinito a espiral de seu pensamento renovador. Rompe corajosamente com a circuncisão, a observância do sábado, o cumprimento minucioso das inúmeras regrinhas de procedimento tradicional e prega abertamente, não só a renovação das estruturas religiosas do seu povo de origem, mas o abandono quase total delas, preservando-se apenas conceitos fundamentais, como o da existência do Deus único. A lei teve .sua utilidade e sua época, exerceu a função de pedagogo, que apenas tomou conta de crianças imaturas. Chegado o Mestre, não tem mais o que fazer. Pelo contrário, virou tropeço, porque é apenas um mostruário de pecados e, por conseguinte, estímulo e indução ao erro. O antigo convênio do povo de Israel com Deus está superado pelo novo convênio com o mesmo Deus, através do Cristo.

Ainda que aceitando, de início, a iminência da era messiânica, eie evoluiu para uma posição mais liberal e realista. Parece ter compreendido, no correr dos anos, que se deixara empolgar, sem muita análise, pelo sentimento predominante entre os primitivos apóstolos. A realidade foi outra, e ainda que tivesse ele mantido tal convicção por algum tempo, mesmo ante o fato irrecusável da morte de tantos adeptos antes da vinda gloriosa do Cristo, ele acabou compreendendo seu próprio equívoco. Também sofreram consideráveis modificações e adaptações seus conceitos de justificação pela fé e o de graça divina, como vimos.

Alguns dos seus mais importantes conceitos, contudo, são criativos, originais e revolucionários. Foi dos poucos — talvez o único até hoje a colocar adequadamente no âmbito da teologia o entendimento acerca da ressurreição, como se lê no capítulo 15 da 1a. aos Coríntios. Jesus morreu no seu corpo material e manifestou-se postumamente, em seu corpo espiritual, veículo e instrumento do espírito sobrevivente e imortal.

Pregava, com indiscutível convicção, a ideia da preexistência, não apenas com relação a Jesus, mas para todos os seres humanos. Entendia a Terra como criação específica de Deus para que Jesus nela conduzisse o rebanho humano à felicidade. Tudo havia sido criado neste recanto do Universo, nele, por ele e para ele, a fim de que desse boa conta de sua tarefa. No que coincide, neste passo, com o pensamento expresso no Quarto Evangelho.

Mesmo assim, não confunde Jesus com Deus. E um ser humano semelhante a nós (nascido de mulher, diz ele), apenas em estágio evolutivo avançadíssimo, filho mais velho, mais experimentado de Deus, ao qual foram confiados os mais jovens e imaturos para que ele os educasse para a vida. Todos nós estamos predestinados à perfeição, à felicidade, às paragens celestiais idealizadas de tantas maneiras diferentes pelos diversos pensadores e teólogos.

Por isso, dizia aos Romanos que "o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça (retidão), paz e alegria no espírito" (lamentavelmente, mais um ponto em que o termo espírito aparece deformado no sentido, em consequência do esforço irracional em transformar o conceito de espírito, como realidade intrínseca do ser humano, em Espirito

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Santo, terceira pessoa da Trindade).O "Reino de Deus não consiste em palavra, mas em poder", escreve aos Coríntios, aos

quais declara, também, que os "injustos" (leia-se iníquos, ímpios, pecadores) não o herdarão. E insiste mais adiante, já nos versículos finais (15:50):

Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino dos Céus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade.Do que se conclui que a posse do Reino não resulta de uma graça, de uma preferência divina pelos eleitos, mas de um esforço aturado e pessoal de cada um por merecê-lo, o que se daria, um dia, na plenitude dos tempos, para todos os seres humanos confiados ao grande tutor cósmico Jesus. A graça poderia ter sido o ato gerador do despertamento inicial, que põe o indivíduo a caminho das suas conquistas, mas não faz por ele o trabalho que ele deve e precisa fazer.

Fé, caridade e esperança são os instrumentos dessa conquista, mas não a conquista em si. Se bastasse crer para merecer a glória celestial, para que o bom procedimento? Para que o exercício da caridade? Até mesmo a esperança tornar-se-ia dispensável, passando à condição de convicção, como se Deus tivesse mesmo obrigação de salvar aqueles aos quais distinguiu com a sua preferência. Vemos Paulo, no final de sua existência, certo de sua vitória espiritual, pois conta com a "coroa da justiça", ou seja, o prêmio pela sua retidão. Embora para ele a fé tenha assumido, de início, as proporções de graça divina pois ele passou da condição de um perseguidor à de "prisioneiro do Cristo" -, ele não se limitou a cruzar os braços na expectativa de que a fé realizasse por ele o trabalho que lhe competia fazer. Era, realmente, um homem novo, ou, pelo menos, renovado, mas o Reino de Deus não é herança, por direto líquido e certo, independente do nosso autoburilamento íntimo. Para todos, é claro, há uma expectativa de direito, mas a posse do bem final tem de resultar do trabalho pessoal de cada um, como o pai que doa a terra nua para que o seu herdeiro construa nela a sua fortuna. Esse trabalho consiste em um contínuo aperfeiçoamento do espírito, no combate a fraquezas e imperfeições, no serviço ao próximo, na entrega de tal maneira às normas de vida pregadas pelo Cristo, ao ponto de se poder dizer, um dia, como o fez Paulo, que não nós, mas o Cristo é que vive em nós.

Alguns desses conceitos Paulo deve ter deduzido por sua própria conta do estudo de textos originais as anotações de Mateus, por exemplo e de suas conversas com aqueles que pessoalmente conheceram Jesus, e com ele conviveram, como Pedro e Barnabé, amigo da primeira hora de incertezas e conflitos. Em outros, porém, não conseguimos identificar as origens, como, por exemplo, o conceito da preexistência do ser ou aquele outro, amplíssimo, da predestinação na plenitude dos tempos. Aliás, em mais de uma oportunidade, Paulo menciona não apenas seus contactos diretos e pessoais com o Espírito de Jesus, mas também o fato de que muito da sua instrução nas coisas do Evangelho e nos mistérios da própria vida, ele colheu no intercâmbio que mantinha com seres espirituais de elevada condição evolutiva. Aos coríntios informa que, certa vez, foi arrebatado em espírito a regiões celestiais, onde lhe falaram de "coisas inefáveis", que não revela. Insiste, com certa frequência, em declarar-se apóstolo de Jesus, embora não tenha participado do grupo inicial. Diz aos gálatas que o seu apostolado não decorre de mandato humano. E acrescenta:

Com efeito, eu vos faço saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo.

Por mais de uma vez fala ele de tais revelações, sem, contudo, explicitá-las. É certo que, além e acima das instruções básicas e preliminares colhidas do convívio com aqueles que são amigos comuns de Jesus e seus, ele recebeu instruções e informações mais amplas e precisas de seres espirituais incumbidos de ajudá-lo na sua tarefa, inclusive do próprio Jesus. Por isso, fala com tal convicção e autoridade sobre aspectos que não constam dos textos evangélicos

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conhecidos. Há nestes, contudo, indícios e até declarações formais de que, à margem da pregação normal, dirigida a todos, Jesus instruía em particular, aos discípulos, sobre certos aspectos específicos ou obscuros. Observa-se, por exemplo, que eles não revelam surpresa alguma quando o Cristo lhes diz que João Batista é o mesmo espírito que animou Elias, em existência anterior. Ou que as leis divinas se manifestavam no caso do cego de nascença, em consequência de erro anterior, também em outra vida. A tranquila aceitação deles quanto ao conceito das vidas sucessivas contrasta com a perplexidade de Nicodemos, membro do Sinédrio e, supostamente, bem versado no conhecimento de certos mecanismos da vida.

O que não se encontra em Paulo, definitivamente, é apoio para alguns dogmas e práticas posteriores que acabaram por desfigurar e descaracterizar o cristianismo: divindade de Jesus, sua ressurreição física, e, subsequente ascensão, bem como trindade, rituais, missas, etc. Sua atenção concentra-se no comportamento do cristão e não na teologia que lhe deve ser ensinada. Ele deseja uma ética religiosa, não uma religião infestada de conceitos abstratos e ilógicos.

Outros postulados podem, bem ou mal, reportar-se a conceitos e crenças suas, como o messianato, a descendência davídica, o pecado original, o juízo final e outros, ainda que seja difícil determinar hoje, com precisão, se estas são formulações pessoais de Paulo ou ideias que ele encontrou já formuladas e aceitou como válidas. Ou ainda, que tenham sido sub-repticiamente introduzidas, por enxertia, em seus textos, para dar apoio e coerência a "arranjos" posteriores.

Lamentavelmente, porém, a Igreja pós-pauliniana fechou os olhos, com obstinação, àquilo que venho chamando de realidade espiritual, isto é, verdades que emergiam com espontaneidade da prática saudável do intercâmbio entre vivos na carne e vivos em espírito. A ambição e a disputa ao poder levaram o clero, incipiente e relegado a plano secundário, a forçar a rejeição dos chamados "profetas", seres dotados de faculdades especiais que possibilitavam o relacionamento com o mundo espiritual, que até então fora a fonte de onde provinham instruções e consolo, orientação e convicção, apoio e esperança.

0 grande segredo de Paulo, portanto, e a sua força estão no conhecimento minucioso e na aceitação racionalizada da realidade do espírito. Dispõe ele próprio de faculdades extra-sensoriais e sabe como desenvolvê-las nos outros (Timóteo é um deles), bem como administrá-las com lucidez e ordem. É certo que conviveu, por alguns anos, com o pneumatismo declarado da florescente Igreja de Antioquia, onde, como vimos, realizavam-se sessões regulares de intercâmbio entre vivos e mortos, ou seja, entre homens e espíritos.

Durante sua peregrinação pelo mundo, com seus companhuros de pregação, amigos espirituais os acompanhavam, da invisibilidade, e manifestavam-se ocasionalmente, para transmitir-lhes instruções, trazerlhes uma palavra de consolo e estímulo e ajudá-los na prática de curas, tanto quanto na pregação em si mesma.

Volvidos os anos, já em plena atividade supervisora sobre as diversas igrejas que fundou, Paulo irá implantar ou estimular, em várias delas, as mesmas práticas pneumáticas da sua antiga e querida comunidade de Antioquia, onde fortaleceu as asas para os voos que iria emprender como arauto da mensagem cristã.

Sua ida a Jerusalém, em busca da autorização oficial para pregar o Evangelho aos gentios foi motivada por uma recomendação de iniciativa dos espíritos, a que ele chama de revelação, conforme está na Epístola aos Gálatas. Aliás, há nessa mesma carta uma veemente censura aos seus destinatários por terem permitido se deteriorasse lamentavelmente a atividade local do pneumatismo, ou seja, do intercâmbio espiritual.

O gálatas insensatos escreve com vigor quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado? Só isso quero saber de vós: foi pelas obras da lei que recebestes o Espírito ou foi pela adesão à fé? Sois tão insensatos que, tendo começado com o espírito, agora acabais na carne? Foi em vão que experimentastes tão

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grandes coisas? Se de fato foi em vão! Aquele que vos concede o Espírito e opera milagres entre vós o faz pelas obras da lei ou pela adesão à fé?

A situação, portanto, é a seguinte. Implantara-se na igreja da Galácia a prática espiritual regular. Ocorreram ali fenômenos maravilhosos de efeitos físicos, curas e manifestações visíveis e materializadas, além de ensinamentos e orientação espiritual. Ao que se depreende, o próprio Cristo manifestara-se visivelmente à comunidade reunida para a prática do pneumatismo ("foi desenhada a imagem do Cristo"). E de supor-se, contudo, que, sutilmente, começaram certos espíritos mistificadores a se infiltrar entre eles para desviá-los da boa doutrina cristã e levá-los de volta às práticas já abandonadas da lei antiga ("quem vos fascinou?"). A igreja da Galácia recaíra, portanto, no contexto tradicional judeu, depois de ter sido distinguida com manifestações inequívocas da realidade espiritual que a nova doutrina cristã demonstrara.

Daí a justa indignação de Paulo, que os chama duramente de insensatos, lembrando-lhes que não foram as antigas práticas judaicas que os levaram ao conhecimento de aspectos tão importantes da vida, contidos na nova fé em Cristo e na sua pregação. Jesus trouxera ao conhecimento de todos uma nova realidade e a demonstrava pessoalmente e através de seus mensageiros espirituais já despojados de seus corpos físicos. Como é que, depois de alcançada essa convicção, fruto de evidências irrecusáveis, recaíam eles nas antigas práticas e crenças?

A Epístola aos Gálatas é contemporânea à dos Coríntios, ambas escritas aí pelo ano 57. Talvez por causa do lamentável retrocesso doutrinário na Galácia, Paulo tenha resolvido desdobrar em minúcias as instruções sobre o problema do intercâmbio espiritual, ao escrever sua primeira carta aos Coríntios, pois é nesta que revela seus sólidos conhecimentos do mecanismo regulador da comunicação entre os dois mundos o visível e o invisível. Era preciso evitar que os coríntios também se deixassem envolver pelos equívocos ocorridos na Galácia. O detalhamento tornou-se não apenas aconselhável, mas crítico, inadiável, porque também em Corinto as práticas pneumáticas começavam a degenerar em tumulto, como vimos. Além do mais, a experiência dos Gálatas punha à mostra o grande risco que representavam tais práticas sem uma rígida disciplina e, principalmente, sem atenção, vigilância e senso crítico. IMos escritos primitivos são frequentes as advertências quanto aos falsos profetas-sensitivos ou médiuns invigilantes, desatentos, sujeitos a mistificação ou mistificadores conscientes, de olho nos privilégios e regalias da função | tanto quanto aos próprios espíritos também mistificadores.

- Caríssimos consta da Primeira Epístola atribuída a João não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto reconheceis o espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus; este é o espírito do anti-Cristo.

Vê-se claramente, do texto, que o autor distribui igualmente a responsabilidade pelas mistificações, com o sensitivo ou médium (profeta) e com o espírito manifestante, pois começavam a pulular os "falsos profetas".

Veja-se, ainda, que a solução não consistia em extinguir sumariamente o intercâmbio com os espíritos, como o fez a Igreja logo em seguida, mas examinar criticamente os sensitivos, os manifestantes e o material que eles produziam.

- Não extingais o Espírito escreve Paulo aos Tessalonicenses (5:19) -, não desprezeis as profecias. Discerni tudo e ficai com o que é bom.

Os escritos sobre Paulo, nos Atos dos Apóstolos, e os de sua própria autoria (Epístolas) parecem ser os mais bem preservados de interferências deformadoras. Sob vários aspectos, portanto, é ele a figura humana que mais nitidamente se destaca no contexto do cristianismo primitivo. Temos dele e sobre ele o que mais se aproxima do que hoje entendemos por vida e

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obra de uma personalidade histórica de relevo. Há fragmentos históricos e biográficos sobre ele, tanto quanto uma doutrina coerente, por ele formulada e vigorosamente disseminada. E pelos seus olhos, pela sua inteligência e sensibilidade que podemos contemplar e estudar, com relativa segurança, o que realmente se passou nos primeiros três ou quatro decênios após o sacrifício de Jesus.

Por tudo isso, há, neste ponto, um consenso que praticamente corresponde a unanimidade é ele, depois de Jesus, a figura dominante daqueles tempos, naquele contexto. IMão obstante, não encontramos no cristianismo posterior e hoje predominante, as estruturas mestras do seu pensamento teológico, tais como: a preexistência do espírito, as vi das sucessivas, a comunicabilidade entre "vivos" e "mortos", sua clar;> rejeição à divindade de Jesus, a ausência de uma formulação trinitária di: Deus, bem como sua nítida e inteligente compreensão não só do exato mecanismo da chamada ressurreição, como de sua importância na fo> mulação da doutrina cristã.

Em suma: pouco temos do ideário de Paulo no cristianismo vigente e o que dele temos sofreu um processo praticamente irreversível de deformação. Por isso, o que pensou o primeiro cristão não está contido no que pensam e praticam os de hoje.

12. CRISTIANISMO E DOUTRINA DE JESUS

I. O AMOR COMO PRINCÍPIO ORDENADOR- Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o grande e primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo (Mat. 22:37-39)- Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. (João 13:35)

A não serem os que aceitam os textos bíblicos, em geral, e os evangélicos, em particular, como palavra direta e indiscutível de Deus, sabem todos que principalmente estes últimos foram manipulados e deformados para dar sustentação a determinadas teses, teorias e dogmas.

Da mesma forma que estamos convictos de que a biografia real e autêntica de Jesus será um dia reconstituída, a partir do testemunho dos que conviveram com ele na Palestina, também seus ensinamentos serão recuperados em sua pureza primitiva e reapresentados em todo o seu esplendor original.

O que temos diante de nós, por enquanto, são textos que contém, de um lado, a essência do seu pensamento, ainda que não expresso com as exatas palavras de que se tenha ele utilizado e, de outro lado, observações, episódios e ditos interpolados ou modificados posteriormente para dizerem aquilo que convinha a interesses questionáveis.

Como distinguir uns dos outros? Como identificar, em documentos sobre os quais ficou abalada a confiança de muitos, aquilo que realmente Jesus tenha dito e feito? Seria possível uma tentativa de arqueologia textual relativamente segura, que resultasse numa identificação razoável do que é legítimo?

Estou convencido de que isso é possível, desde que se estabeleçam alguns critérios e premissas com o maior cuidado e espírito crítico, evitando, decididamente, qualquer ideia preconcebida, qualquer conclusão antecipada antes de um exame desapaixonado da questão. As conclusões resultarão espontâneas, do exame crítico, desde que se evite partir de formulações preestabelecidas, em busca de apoio para elas no texto.

Optaremos por um critério seletivo, ao qual chamaremos princípio ordenador.

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Uma premissa deve, a meu ver, ser considerada na armação da metodologia desta busca: a de que Jesus é um ser de elevada condição evolutiva e, por conseguinte, seus ensinamentos são de inquestionável pureza ética. 0 que se chocar com essa premissa, não digo que seja sumariamente rejeitado, mas deve ser posto severamente de quarentena. Não se coadunam com o que dele sabemos a belicosidade, a violência, a agressividade, o fingimento, a mentira, a falsidade, a acomodação, a meia verdade. Quanto ao que chamo princípio ordenador, proponho a adoção do muito citado "novo mandamento": "Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração..." Colocado esse preceito figurativamente TIO alto de uma página, poderíamos escrever, de um lado, os textos que se compatibilizam e, de outro, os que se chocam com ele ou nos pareçam duvidosos, pois é melhor rejeitar várias verdades do que aceitar uma só dúvida ou falsidade.

Examinemos primeiro o preceito em si mesmo.Mateus informa que a cena se passa com os fariseus, logo após haver Jesus feito calar os

que o haviam provocado com as sutilezas de um teste acerca da ressurreição, na qual eles não acreditavam. (Leia-se sobrevivência do ser, em lugar de ressurreição). Interpelado por um fariseu, que também queria pô-lo à prova acerca de qual seria "o grande mandamento da lei", Jesus respondeu com o texto do primeiro item do Decálogo, no que ninguém poderia contestá-lo. Esse era o "grande e primeiro mandamento". "O segundo prossegue ele é semelhante a esse: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo".

Ele não diz que o segundo é maior ou menor do que o outro diz que é semelhante; igual, portanto, com a mesma força. Ademais, também este consta dos textos sagrados tradicionais (Levítico 19:18). Embora emprestando-lhes novo vigor e combinando-os num só princípio diretor, Jesus não inova e, portanto, não põe em xeque a tradição, dado que citava dois autorizados trechos bíblicos.

Desses mandamentos acrescenta ele, segundo Mateus 1 dependem toda a Lei e os Profetas. Estava tudo resumido ali. Aliás, já na Regra de Ouro (Mateus 7:12) pregara ele o mesmo princípio: "Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os Profetas".

Em Marcos (12:28-31) o tema é mais desenvolvido e o diálogo é com um escriba. Na resposta, Jesus cita mais extensamente o primeiro mandamento do Decálogo, como está em Deuteronômio (6:4-5): "Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Deus e amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e com todas as tuas forças". Em seguida, acrescenta o outro sobre o amor ao próximo. O escriba teria respondido, também mais extensamente, concordando com o ensinamento de Jesus, e foi tão convincente, ao colocar aquele proceder, até mesmo acima de todos os holocaustos e sacrifícios, que Jesus lhe disse: "Tu não estás longe do Reino de Deus".

Em Lucas, quem se levanta para interpelar Jesus é um legista. A pergunta é formulada diferentemente das anteriores: "Mestre, que farei para herdar a vida eterna?" Jesus responde com outra pergunta: "Que está escrito na lei?" E o próprio doutor responde com as duas citações conhecidas. Jesus comenta com simplicidade: "Respondeste corretamente; faze isto e viverás".

Em João, a colocação é algo diferente na forma, mas não muito no sentido. Jesus fala aos discípulos em tom de despedida e propõe-lhes "um novo mandamento" — "que vos ameis uns aos outros. Como vos amei, amai-vos também uns aos outros. IMisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros".

Quanto ao amor a Deus talvez não julgasse ele necessário reiterar, uma vez que constituía preceito básico de toda a lei.

Seja como for, portanto, o amor a Deus e ao próximo são os fundamentos da doutrina de Jesus. Isso ele não apenas pregou, ensinou e demonstrou, no exercício da sua compaixão e caridade, como testemunhou com o sacrifício da cruz para mostrar a todos que a vida imortal

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é doação do amor e ao amor deve ser devotada.Ensinamentos seus que estiverem ajustados ao novo mandamento são aceitáveis, a meu

ver, ainda que, eventualmente, possam não ser originários diretamente dele, ou expressos com as exatas palavras de que ele se utilizou. O que estiver em desacordo ou dissonância com isso deve ser considerado suspeito ou francamente rejeitado.

IMão vejo, por exemplo, como aceitar que ele tenha recomendado não se desse o que é santo aos cães e pérolas aos porcos, pelo menos, segundo a exegética habitual, de que a doutrina do amor não deveria ser pregada ou oferecida aos que fossem incapazes de compreendé-la. O texto parece interpolação posterior de quem achou que só o povo judeu estaria preparado para a mensagem, caracterizada como um novo convénio com Deus.

Não me parece partida dele a dura advertência de que não reconheceria como seus amigos aqueles que um dia alegassem que em seu nome haviam profetizado e expulsado demônios. E ele, então, lhes diria: "Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade". Aliás, pouco adiante declara ele que não veio chamar os justos, mas os pecadores. Como iria rejeitá-los mais tarde, precisamente aqueles que mais precisavam do seu apoio?Também não sinto a presença de Jesus nas explosivas manifestações acerca dos escribas e fariseus raça de víboras! hipócritas! Em contraposição a essas maldições incompreensíveis na boca de Jesus, parecem admissíveis e sensatas as observações em Mateus 15:10 e seguintes, no mesmo contexto. Os discípulos vêm dizer-lhe que os fariseus, ao ouvirem-no sobre determinado ponto, ficaram escandalizados. Ao que Jesus responde placidamente: "Deixai-os. São cegos conduzindo cegos. Ora, se um cego conduz outro cego, ambos acabam caindo no buraco".

Não me parece resistir ao critério de aferição proposto o episódio da figueira estéril. Mesmo simbolicamente, como iria Jesus amaldiçoar uma pobre figueira porque estava sem frutos em época na qual não podia tê-los? E como iria recusar-se ao aflitivo apelo da mulher cananeia, sob a alegação de que viera apenas para os judeus? E que sentido faria, num contexto desses, uma das suas mais belas parábolas a do samaritano? A ninguém exigiu ele certificado de crença religiosa ou nacionalidade para atender nos seus males físicos e espirituais. Ao contrário, vai ao encontro de publicanos e elogia o procedimento do centurião que demonstrara mais robusta fé do que muitos em Israel.

Em Lucas, constam ainda maldições aos ricos, aos saciados, aos que riem, aos que são abençoados, tudo inspirado em Isaías e Habacuc, mas nada disso compatível com a doutrina do amor. Aliás, ainda em Lucas, logo após essas maldições incongruentes na boca de Jesus, há ensinamentos que trazem o sinete da legitimidade: "Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te ferir numa face, oferece a outra, a quem te arrebatar a capa, não recuses a túnica. Dá a quem te pedir, e não reclames de quem tomar o que é teu. Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. Se amais os que vos amam, que graça alcançais? Pois até mesmo os pecadores amam aqueles que os amam..."

Curiosamente, o Evangelho de João não cuida de maldições e de ásperas censuras a escribas e fariseus, nem de recusa a curar ou ensinar quem quer que seja, judeu ou não. Nos seus debates com os judeus o texto é escrito em ambiente predominantemente grego -, extensos e minuciosos, não há deblateração; apenas respostas normais e as serenas contestações próprias de um debate mantido em nível adequado, ainda que veemente, em certos pontos.

Não vejo, também, uma contundente exclusividade em pregar aos judeus a sua palavra. É certo, porém, que os tem como ouvintes prioritários, porque os sabia mais preparados pelo monoteísmo tradicional ao entendimento da sua doutrina. De outra forma, não teria decidido nascer entre eles, naquele povo específico e não alhures, em centros de civilização mais

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desenvolvida e mais rica.Podemos encontrar marcas inconfundíveis da sua doutrina toda vez que ele fala

compassivamente das fraquezas humanas, da misericórdia de Deus, da tolerância, do amor ao próximo, do perdão incansável, da prece no recolhimento e no silêncio, do valor espiritual da simplicidade, em contraposição à arrogância petulante dos pseudo-sábios, do poder da fé e da confiança em Deus, bem como da renúncia ao fascínio do ouro, da irrelevância de certos preceitos, como guardar com rigor o sábado, evitar a companhia de pessoas socialmente desprezíveis. É bem ele, ainda, quando recomenda portarem-se as criaturas com a inocência e a espontaneidade das crianças, manterem-se todos unidos pelos vínculos do amor fraterno, tanto quanto ao pregar a compreensão pelos inimigos e pelos que nos causam danos. Ou quando adverte dos sacrifícios que assume aquele que opta pelo caminho da redenção. Ou, ainda, quando fala da humildade, da obrigação em servir e não da exigência de ser servido, que incumbe aos que estão investidos de autoridade e assim por diante.

Sua pregação é, portanto, a de uma ética profundamente humana, sem especificar esta ou aquela crença, este ou aquele ritual, esta ou aquela prática, este ou aquele alimento. O samaritano é mais digno e humano do que os mais ortodoxos fariseus e escribas porque passou pelo teste da caridade. Zaqueu, o publicano, é distinguido com a alegria inesperada de tê-lo como hóspede, poucos têm em Israel a fé demonstrada por um centurião romano; os mendigos são os que se sentam à mesa das bodas porque os convidados se recusaram a comparecer; o que sai da boca do homem é que o incrimina e mancha, não o que entra; as verdades profundas da vida se revelam com mais facilidade aos simples e se ocultam aos que se julgam sábios e inteligentes.

Sabe ele, no entanto, como é difícil difundir a verdade. IMo meio do trigo, mete-se o joio, que não pode ser sumariamente arrancado sem sacrifício do bom grão. A sementeira é ampla e generosa, mas depende da qualidade do solo e do trato à terra. A alegria da paz espiritual vale qualquer sacrifício a parábola da pérola. Há mais alegria entre os redimidos quando se recupera um pecador do que por noventa e nove que não se extraviaram. E o que nos custa perdoar um deslize, se Deus nos perdoa de tão graves ofensas? IMa parábola dos trabalhadores da vinha, lembra a igual recompensa que aguarda os que somente à última hora resolveram servir. A mesma alegria pelo pecador recuperado está figurada numa das suas mais belas historinhas a do filho pródigo. O outro filho resmunga, à vista de toda aquela festa ao que dilapidou a parte que lhe tocava na fortuna e retorna, cansado e humilhado, mas o pai, acima de tudo isso, recebe com genuíno júbilo o filho transviado, ao mesmo tempo em que consola o que ficou, dizendo: "teu irmão estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi reencontrado". É o que importa. Entre o fariseu, que proclama em voz alta todas as suas excelentes virtudes, e o publicano, que apenas lamenta os seus pecados e pede misericórdia, ele prefere este, porque é humilde e sincero.

Não é, pois, uma religião nova, nem a conservação da antiga o que propõe Jesus. Ele recomenda um esquema de comportamento que servirá, em princípio, dentro dos quadros de qualquer religião condigna. Não distingue o judeu ortodoxo, colocando-o acima do publicano ou do samaritano honesto, humilde e caridoso. Ele próprio não sente o menor constrangimento em viver entre publicanos convidou até um deles para integrar o grupo dos doze gente humilde, sem instrução e pecadores. No seu entender, não apenas estes precisavam muito mais dele e eram mais sensíveis à sua mensagem de valorização da criatura humana, os deserdados de todos os matizes, do que aqueles outros que exibiam por onde andassem a transitória grandeza do mundo. Não que ele condenasse o rico ou a riqueza, como vimos; apenas achava difícil a alguém em tais posições adotar as renúncias necessárias e fazer o bom uso das suas posses para servir ao próximo, meta prioritária de toda a sua filosofia de amor.

0 teste final da sua ética sempre foi o amor, em toda a sua amplitude, o amor que

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compreende, que perdoa, que serve, que espera.

II.REINO DE DEUSNão se poderá dizer: Ei-lo aqui! Ei-lo ali! pois eis que o Reino de Deus está dentro de vós.(Lucas 17:21)

Exegetas e teólogos, historiadores e pensadores, estudiosos e simples leitores, em significativa maioria, parece concordarem em que a pregação de Jesus gira em torno da noção básica do Reino de Deus, que ele estabelece como meta a atingir, objetivo para o qual devem convergir todos os esforços, sacrifícios, renúncias e anseios. O caminho para o Reino de Deus não é largo, amplo e fácil, contudo; é estreito e difícil. O instrumento para sua realização é o amor a Deus e ao próximo, tanto quanto a si mesmo, um amor total, universal, paradoxalmente uma extensão modificada do egoísmo, uma transcendência, uma sublimação do egoísmo, pois amando aos outros tanto quanto amamos a nós mesmos, estaremos doando o máximo, em termos humanos, tão poderosa é a força da auto-estima em nós. Acima disso "de todas as coisas", disse ele só o amor a Deus.

Esse o programa, o roteiro, a metodologia que nos levam à conquista do Reino de Deus, que outro paradoxo está em nós mesmos.

Podemos, portanto, dizer que há duas tônicas, duas dominantes, no pensamento de Jesus: a busca do Reino de Deus, como finalidade, como objetivo da vida e a prática do amor como programa para essa busca, como seu instrumento e veículo.

Quanto ao amor, não há muito que discorrer sobre ele, depois que Paulo escreveu o Capítulo 13 da Epístola aos Coríntios, pois a caridade é amor em ação, amor-agape do qual o amor-eros é apenas um aspecto e não dos mais importantes, porque transitório.

Mas e o Reino de Deus? Como conceituá-lo, defini-lo, compreendê-lo, a fim de poder alcançá-lo através do amor?

Vimos alhures, neste estudo, que o historiador inglês H. G. Wells (35) foi, a meu ver, quem melhor captou o sentido profundo, a essência do conceito que Jesus formulou acerca do Reino de Deus.

A doutrina do Reino dos Céus escreve Wells principal ensinamento de Jesus e que desempenha papel tão insignificante nas seitas cristãs é, certamente, uma das mais revolucionárias que jamais tenham agitado e modificado o pensamento humano.

Não é de admirar-se que o mundo daquela época não tenha conseguido alcançar seu verdadeiro sentido, nem mesmo seus discípulos, segundo Wells, porque Jesus "foi grande demais" para eles.

Em verdade, o que propunha Jesus com a imagem do Reino de Deus? Era a implantação de uma nova ordem, de um novo conceito de vida e de relacionamento entre os seres humanos. A partir do momento em que nos integrarmos, de fato, na convicção de que é do nosso interesse pessoal obedecer às leis divinas, estaremos seguindo no rumo da correnteza da vida e não tentando o desesperado e irracional esforço de remontá-la. A paz está no oceano, onde desemboca o rio e não nas fontes de onde ele procede, solitário, frágil e sem nenhuma consciência de sua futura grandeza.

Observadas as leis criadas pela sabedoria infinita, estaremos vivendo em nós o Reino de Deus.

Não obstante, foram tão amplas as suas implicações, eram tão veementes os seus desafios, tão radicais as mudanças de comportamento e de enfoque pessoal exigidos que, lamentavelmente, a ideia derivou para uma noção simplista de que o Reino seria implantado de fora para dentro, seria uma instituição político-social de conotações religiosas. Enquanto embalados por essa expectativa, que, lentamente, foi-se esvaindo da sua substância, porque não era autêntica, os que ouviram falar do Reino de Deus recuaram, no dizer de Wells, "para as velhas e familiares ideias de templo e altar, de uma divindade severa e de práticas

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propiciatórias, sacerdotes consagrados e bênçãos mágicas". Retomava-se, enfim, o antigo modo de vida, com seus "ódios e proveitos, competição e orgulho".

Como seu livro é um documento de historiografia e não de teologia, Wells sugere ao leitor que vá pessoalmente aos Evangelhos para tomar conhecimento "de tudo que se preservou desse tremendo ensinamento". Quanto a ele, como historiador, está interessado no impacto que esse aspecto da pregação de Jesus causou nas ideias estabelecidas da época.

Os judeus estavam persuadidos de que Deus, o único em todo o mundo, negociara uma boa barganha com Abraão, segundo a qual o povo eleito seria, no tempo devido, senhor da Terra. Causou, pois, total e zangada decepção perceber que Jesus liquidava com todas essas expectativas. Deus não era nenhum negocista, achava Jesus e não havia povo eleito e nem favoritos no Reino dos Céus. Deus é Pai amoroso de todas as manifestações da vida, e, como o sol, não tem preferências, derramando suas benesses sobre todos, indistintamente. Todos os seres humanos são irmãos, pecadores ou santos. No Reino de Deus não há privilégios, nem desculpas.

Mas não era só isso. Em contraposição ao acendrado espírito tribal, ao intenso patriotismo dos judeus, Jesus ampliava a limites inaceitáveis para eles as fronteiras do Reino de Deus, onde todos seriam uma só família, ignorando e transcendendo vínculos sanguíneos e genealógicos, raciais e nacionais. Ele pregava e exemplificava tais ideias, pois não hesitou em dizer que sua mãe e seus irmãos eram todos aqueles que faziam a vontade de Deus, ou seja, cumpriam suas leis.

A noção do Reino de Deus estendia ainda suas implicações sobre os sistemas político, social e econômico vigentes. Não estava ele propondo um nivelamento súbito de classes, nem condenava o rico ou a riqueza em si, mas desejava uma sociedade justa e achava difícil ao rico convencerse a fazer o que dele exigiam as expectativas do Reino de Deus. Nesse reino diferente, os poderosos, os dirigentes, as autoridades, os líderes deveriam servir e não ser servidos. A pirâmide do poder estava invertida.

Por isso, tal estado de espírito não se alcançava com a mera observância de uns tantos ritos e o cumprimento de algumas regras, como o respeito ao sábado e coisas desse teor. Nem mesmo pela prece pública, em altas vozes, a preferência nos lugares sagrados, a atitude untuosa e santarrona para uso externo. Nada disso produzia em ninguém as condições exigidas daqueles que pretendiam a paz do Reino de Deus.

Wells observa que essa pregação trazia, de fato, implicações políticas das mais importantes, ainda que não explícitas, pois, onde quer que o Reino de Deus se implantasse no coração das criaturas, em número suficiente, "o mundo exterior estaria, naquela mesma extensão, revolucionado e renovado".

Não há como nem em que discordar do brilhante historiador e ficcionista inglês. A evidência dramática dessa realidade continua diante dos nossos olhos. Basta abrir o jornal do dia ou ligar o aparelho de rádio ou TV. Reformas sociais, econômicas, ou políticas, de fora para dentro, sempre estiveram e continuarão fadadas ao fracasso, de vez que uma sociedade de celerados será tumultuada pelo crime e pela violência, enquanto uma sociedade de seres pacificados e fraternos será pacífica e fraterna.A ordem continuará sendo imposta pelo poder de polícia até que seja aceita por consenso geral, como decorrência mesma da disciplina íntima de cada um. Para que polícia onde não há crimes a prevenir? Para que tribunais onde não há conflitos a decidir? Para que prisões onde não 296há pessoas atormentadas por inclinações anti-sociais? Para que manicômios onde não há loucos? Para que riquezas onde todos tém tudo o que é necessário a uma vida decente, digna, farta e livre? Para que exércitos onde não há guerras a disputar, nem inimigos a rondar as fronteiras, se nem fronteiras existem?

Não há dúvida portanto, para Wells, cujas ideias desenvolvemos aqui um tanto ao nosso jeito, de que Jesus propunha mesmo uma revolução de caráter mundial. É fácil compreender,

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contudo, que não era essa uma revolução violenta, sangrenta e nem imediata. Ela exigia um longo processo de maturação e resultaria espontânea, no mundo exterior, como consequência do estabelecimento do Reino de Deus em cada ser humano.

É de supor-se, ainda, segundo Wells, que, embora muitos não tenham entendido onde queria chegar o Cristo com o que ensinou, em todas as suas impactantes implicações, as lideranças político-religiosas de seu tempo captaram perfeitamente bem o fato de que um programa daqueles poderia causar às estruturas do poder civil e religioso imprevisíveis modificações e, por via de consequência, à vida pessoal de cada um. Como ficou dito, alhures neste livro, se alguns resolveram considerar Jesus o Messias prometido para libertação política de Israel, tanto melhor para os líderes religiosos da época, pois assim ficava mais fácil livrarem-se dele, e do perigo que representavam suas ideias para a acomodada e confortável situação em que viviam. Daí porque a sentença de morte de Jesus resultou da caracterização jurídica de um crime político.

Lamentavelmente, Messias político ficou ele sendo para os que passaram a esperar por ele vindo sobre as nuvens, como diziam antigas profecias, a fim de implantar, paradoxalmente, o Reino de Deus de uma forma que ele próprio considerava inviável e inócua, ou seja, a partir de uma ação externa, antes que, na profunda intimidade do ser humano se processassem as modificações que lhe constituíam indispensável pré-requisito.

O Reino de Deus é, ao mesmo tempo, consequência, efeito, resultado, tanto quanto causa e origem da paz entre os homens. Será uma paz interna a projetar-se, refletida, na realidade externa, tal como um ser diante do espelho. Se a criatura a contemplar o espelho é bonita, a imagem devolvida também será bonita. Mas, como produzir belas imagens com originais ainda rudes, imperfeitos e inacabados?

Assim, Jesus foi condenado porque as autoridades religiosas da época entenderam bem as implicações do seu conceito acerca do Reino de Deus, mas a ideia em si ficou deformada, porque, depois que ele partiu, os que ficaram com a sua herança continuaram a não entendê-lo. Graças a Deus, porém, estes o amavam e conseguiram manter aceso o fogo sagrado, preservando para gerações futuras a essência dos seus ensinamentos, que mesmo historiadores leigos, como Wells, reconhecem que continua preservada nos Evangelhos.

- É de admirar-se pergunta Wells, ao encerrar suas observações acerca do Reino de Deus que até hoje esse Galileu seja grande demais para os nossos acanhados corações?

Vamos, pois, acatar a sugestão do brilhante escritor e focalizar nossa atenção sobre os textos evangélicos, naquilo em que eles nos falam do Reino de Deus.

Jesus enfatizou com suas palavras, demonstrou com a sua vida e selou com a sua morte a ideia de que o Reino de Deus não seria um novo regime político-social implantado a força de decretos e editos, pela dinâmica de uma intervenção messiânica movida por impulso de vontade alheia. Era e é, ao contrário, uma revolução íntima, uma reforma pessoal, condição que cada um terá de criar dentro de si mesmo, e, em seguida, nas correspondentes estruturas políticas, sociais, econômicas e, principalmente, éticas do mundo.

Elaine Pageis (43), apoiada nos textos de Nag Hammadi, examina atentamente as divergências e controvérsias suscitadas entre ortodoxos e gnósticos acerca do Reino de Deus.

No Evangelho de Tomé, sobre o qual falamos alhures, neste livro, é considerada ingênua "a ideia de que o Reino de Deus seja um acontecimento real esperado na História".

Quando os discípulos, na equivocada expectativa de uma realização futura, insistem em pedir a Jesus uma explicitação, trava-se o seguinte diálogo:

- Quando virá o novo mundo?- O que vocês aguardam já veio disse Jesus -, mas vocês não o reconheceram.- Quando virá o Reino? insistem eles.- Não virá só porque vocês o esperam. Não será um modo de dizer: Aqui está ele ou ali

está ele. Ao contrário, o Reino do Pai está espalhado por toda a Terra e os homens não o

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veem.Lamentavelmente essa controvérsia lançou raízes nos textos evangélicos que hoje

possuímos, dado que neles encontramos ambas as concepções, em choque uma com a outra.Não adianta, por conseguinte, procurar definições em versículos que nos falam de

fenômenos cósmicos, de trombetas, de profetas que ressurgem, de mortos que deixam seus túmulos. Pelo mesmo critério, é difícil aceitar versículos que atribuem o início do Reinado de Deus para dali a pouco, antes que morressem os que ouviram Jesus pregar.

Nada disso aconteceu e, por conseguinte, a autenticidade desses versículos é questionada pelos próprios eventos, ou melhor, pela ausência de eventos que os justificassem.

Se os fenômenos cósmicos são o sinal da proximidade do Reino, em termos temporais e não ocorreram até hoje, então o Reino não era mesmo para breve, dentro da geração contemporânea de Jesus. Por isso, não se pode conciliar Lucas 21:32 "Em verdade vos digo que esta geração não passará sem que tudo aconteça" com Atos 1:7 "Não vos compete conhecer os tempos e os momentos que o Pai reservou a seu poder"., ou, com o próprio Lucas (17:20), quando, em resposta aos fariseus que lhe perguntaram quando chegaria o Reino de Deus, Jesus informou: "A vinda do Reino de Deus não é observável Não se poderá dizer: Ei-lo aqui! Ei-lo alu, pois eis que o Reino de Deus está dentro de vós”. Ou seja, é para ser construído, realizado, implantado no íntimo da criatura. O que, aliás, confere com o Evangelho de Tomé, como vimos. E isso não se faz no espaço de uma geração. Aliás, é nesse sentido o ensinamento a Nicodemos, em João 3:3: "Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus".

Para alcançar o Reino de Deus consta em Atos 14:22 "é preciso passar por muitas tribulações".

Nada disso, portanto, indica a imediata implantação do Reino entre os homens por um "flash" de vontade e poder de um Messias e sim, sua lenta, penosa e trabalhada construção ao longo de muitas e muitas existências, dado que o Reino de Deus é estado de espírito, de pureza, de bondade, de felicidade, de amor, estado de graça que se comunica ao ambiente. Suas matrizes já existem na intimidade do ser humano.

Ao que parece, a ideia de certo imediatismo e proximidade na implantação do Reino partiu de João Batista. Pelo menos é o que se depreende dos textos. Há até quem suponha que, depois de batizado, Jesus teria permanecido por algum tempo junto do Batista, pregando com ele. Acho isso pouco provável, mas é certo que os redatores definitivos dos Evangelhos desejaram, de certa forma, manter a conexão de Jesus com João, que gozou de enorme prestígio junto das massas, pregando uma austera preparação para o estabelecimento do Reino. Ainda em plena época da pregação de Paulo, encontramos discípulos de João que, portanto, deixou uma seita, um grupo de seguidores, cujo número não temos como estimar.

O certo é que Mateus, por exemplo, estabelece bem nítida conexão de Jesus com João, como que a indicar, não que Jesus fosse um continuador, mas aquele que João anunciara: Em 3:2 fala ele do Batista, que pregava no deserto da Judeia, dizendo: "Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. Pouco adiante (4:17), escreve: "A partir desse momento, começou Jesus a pregar e dizer: "Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” Acho que o paralelismo das proclamações de João e de Jesus tem por objetivo apenas configurar que Jesus era realmente o Messias anunciado, não que ele tivesse pregado especificamente a proximidade do Reino, uma vez que isso não está substanciado na sua pregação, constando apenas de pronunciamentos seus de escassa ou nula credibilidade, como temos visto aqui.

Referência desse mesmo tipo está em Marcos. Em João, também, sendo, contudo, de enfatizar-se que no Quarto Evangelho, como nos alerta Loisy, as alusões ao Batista foram visivelmente "encaixadas", incrustadas, pois o texto exibe evidentes cicatrizes de tal cirurgia.

A impressão que nos fica dessas passagens é a de que houve uma tentativa de emprestar a

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Jesus, ainda desconhecido, o apoio de João. Só depois se verificou que Jesus lhe era imensuravelmente superior. Daí a contradição entre os textos que colocam Jesus como continuador, quase um discípulo de João e os que identificam este (corretamente) como precursor, indigno, até, de desatar as sandálias do Mestre.

A ideia da proximidade não deve, portanto, ser atribuída a Jesus. Podemos ver isso num confronto dos versículos duvidosos ou francamente inaceitáveis, observando as contradições e incoerências, com os que trazem as marcas da autenticidade e do bom senso, compatíveis e coerentes com as tônicas da pregação de Jesus.

Em Mateus, no meio de longa exposição sobre a prática da caridade, a prece, o ensino do Pai Nosso, o jejum, os tesouros do céu, a confiança na Providência Divina, a abstenção de pronunciar-se qualquer julgamento, a regra de ouro, o caminho estreito, o cuidado com os falsos profetas, a característica dos bons discípulos tudo isso, consta, em 6:33, o seguinte preceito: "Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e todas essas coisas vos serão acrescentadas". Ou seja, uma vez construído, em nossa intimidade o Reino de Deus, tudo o mais viria naturalmente, sem preocupações, aflições e temores. O que, aliás, é o pensamento de Wells.

Em Mateus, 7:21, consta que não basta dizer "Senhor! Senhor!" para entrar no Reino dos Céus, do qual participa apenas "aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus". Em 18:3, a condição prescrita é a de tornar-se a criatura humana simples, pura e espontânea como a criança.

Em Marcos, no qual são mais escassas as referências específicas, Jesus declara ao escriba, que respondeu acertadamente às suas perguntas, que ele não estava "longe do Reino de Deus".

Em Lucas (10:9), diz-se que não está próximo o Reino no tempo, mas que está "próximo de vós". Em 17:20, uma das mais nítidas conceituações do Reino, está implícito nas declarações que ele não se apresentaria objetivamente, ou como um acontecimento, um local, um regime.

Mesmo em Paulo, se, de início, pode ter-se deixado envolver pelo clima geral de expectativa messiânica a curto prazo, com o tempo mais 300dilatado, ele entendeu perfeitamente que o Reino de Deus era uma realização íntima e pessoal:

- ... o Reino de Deus não consiste em comida e bebida escreve aos Romanos (14:17) mas é justiça (retidão), paz e alegria no espírito (ou seja, espiritual).

Como sempre, o texto foi obrigado a dizer "paz no Espírito Santo", mas já sabemos das razões que a isso levaram.

- Pois o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder ensina ele aos Coríntios (I Cor. 4:20).

E insiste, ainda mais enfático, em 6:9:- Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino dos Céus? Não vos iludais!

Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os avarentos, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino dos Céus.

E reitera, de outra forma, seu pensamento em 15:50:- Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a

corrupção herdar a incorruptibilidade.E aos Gálatas (5:21 e seg):- Ora, as obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria,

feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni: os que tais coisas praticam não herdarão o Reino de Deus.

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E aos Efésios (5:5):- Pois é bom que saibais que nenhum fornicário ou impuro ou avarento 1 que é um

idólatra, tem herança no Reino de Cristo e de Deus.Na Segunda aos Tessalonicenses (1:5) observa que as tribulações "são o sinal do justo

juízo de Deus: é para vos tornardes dignos do Reino de Deus, pelo qual sofreis".O Reino de Deus não é, pois, uma dádiva graciosa, um regime político mundano a ser

implantado em breve, mas a resultante da lenta e penosa montagem de um sistema íntimo de pureza, retidão e de amor.

Tem razão, portanto, Wells, quando nos fala das perplexidades e hesitações dos primeiros tempos, em relação ao Reino de Deus e menciona o recuo de muitos às posições mais confortáveis da tradição vigente, da rotina simples do cumprimento de leis, fórmulas, e ritos que, por incrível que pareça, dura até hoje, preservado no que veio a ser considerado cristianismo.

Como se vê, a conquista do Reino de Deus é uma verdadeira guerra íntima, combate sem descanso contra as mil sutilezas e artifícios que o erro encontra para implantar-se e justificar-se em nós, utilizando-se das "tomadas" desprotegidas que lhe oferecemos. Por isso o Reino está vedado a todos aqueles que Paulo caracteriza nas suas cartas, como ainda escravos, submetidos ao aguilhão da morte: idólatras, adúlteros, depravados, ladrões, etc.

O Reino de Deus fica sempre do outro lado das renúncias, além de muitas aflições e dores, de pequeninas conquistas, que se somam umas às outras, de lutas íntimas desenroladas no correr dos milênios. Não nos apresentaremos aos seus portões simbólicos com a carne e o sangue, como dizia Paulo, mesmo porque ele não tem portões, nem fronteiras, não está aqui, nem ali. Sua eventual existência, no tempo e no espaço, é apenas projeção, reflexo. Realidade II, consequente da Realidade que tenhamos criado dentro de nós.

E por isso que Jesus não foi entendido naquela época. Estranho como possa parecer, ele continua sem ser entendido, como assinala Wells, certamente porque é muito grande para nós, mas também porque nos obstinamos em continuar pequeninos demais, a rastejar sobre erros milenares repetidos, quando temos em nós todas as potencialidades do crescimento espiritual, da expansão incessante rumo à perfeição, aos primeiros escalões evolutivos. "O Reino de Deus esiá em vós". O tempo da sua realização depende de cada um, do esforço que fizer, das renúncias que aceitar, das batalhas que vencer na sua própria intimidade. Mas, atenção, ele já está em nós.

Enquanto isso, vamos nascendo de novo até aprender, porque, como disse ele, "Quem não nascer de novo NÃO PODE ver o Reino de Deus".

Está bem claro? NÃO PODE...

III. UM BRAVO E HONESTO DEPOIMENTONisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros (João 13:35).

Limitados, por opção pessoal, a uma reavaliação do cristianismo como um todo e não desta ou daquela seita, em particular, preferimos concentrar a atenção sobre textos de autoria de teólogos e historiadores profissionais. Não podemos, contudo, ignorar o envolvimento do padre secular ou do pastor com a vida que se movimenta no contexto de sua igreja, dentro dela, à sua margem, em torno e além dela. E essa a maneira de sentir mais de perto os problemas suscitados pela interação do que hoje conhecemos como cristianismo com as diversas categorias de fieis. Em outras palavras: como está chegando às pessoas que se consideram cristãs a mensagem de Jesus? (ou não está...)

Recorri, com esse objetivo em mente, ao livro do padre americano James Kavanaugh (52). O enfoque teológico é irrelevante para ele, dado que seu interesse específico vai para o opressivo legalismo e arrogância da sua igreja (os termos são dele) e a consequente atitude

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de rigidez e frieza com as quais se choca o fiel, precisamente nos momentos em que se encontra em crise e mais precisa de ajuda espiritual.

0 Padre Kavanaugh não cogita de abandonar tudo, em sinal de protesto ou por força de total inadaptação ao formato da sua Igreja. Ao contrário, deseja continuar sendo cristão e sacerdote, mas confessa bravamente que se recusa ao constrangimento de crer que "a atual estrutura da Igreja seja uma adequada representação do Cristo do Evangelho e da História".

Não é difícil concluir-se pelo seu documento que o ideal pregado por Jesus tornou-se irreconhecível nas práticas que se cristalizaram ao longo do tempo. Com o aparente objetivo de implementar aquele ideal, foi tecida uma fina malha de legalismo que paralisou e descaracterizou a doutrina de Jesus. Passou a ser mais importante o cumprimento minucioso de normas, posturas e preceitos canônicos do que a prática da doutrina básica do amor, ensinada, de viva voz, pelo grande Nazareno. Trocou-se uma espécie de farisaísmo por outra, o que "leva os católicos a se sentirem santificados, quando são apenas dóceis, e cristãos, quando estão sendo apenas escrupulosos observadores de regras."

São trágicas as consequências desse alheamento, porque, ante situações penosas vividas pelos crentes, os representantes oficiais do cristianismo, que seriam, por extensão, os de Deus na Terra, só disponham de textos obsoletos e atitudes padronizadas a repetir, ou não possam dizer o que realmente desejariam, ao irmão ou a irmã em Cristo, que sofre.

E penoso para ele negar as bênçãos do matrimônio à moça que se apaixonou pelo jovem não-católico, a não ser que o noivo se converta, confesse e comungue. Ou recusar os sacramentos que, teoricamente, livram a pessoa do inferno, à mulher divorciada e casada em segundas núpcias, ainda mais com homem de outras crenças ou descrenças. E ter de recusar-lhe não apenas a missa fúnebre, que seria um passaporte para o céu, mas também o sepultamento em cemitério católico, porque ela "morreu em pecado".

Quando uma senhora em tais condições o procurou, disposta a uma reconciliação, ainda que precária, com a sua Igreja (sempre o terror do inferno e a vergonha social da exclusão formal) ele conseguiu para ela o "privilégio" do chamado arranjo irmão-irmã. Consiste isso em readmitir a pessoa aos sacramentos "salvadores", desde que ela se recuse radicalmente ao relacionamento sexual com o esposo ou esposa. Ela concordou. Pois a alternativa não eram as penas eternas do inferno? Ela optou pelo inferno em vida. Mesmo assim, teve o padre de aconselhá-la a assistir missa e comungar em outra paróquia, nas vizinhanças, onde sua situação "irregular" fosse desconhecida.

Que tem isso a ver com a doutrina de Jesus? Como amar a um Deus que abandona seus amigos na primeira curva do caminho e os condena sumariamente a um inferno implacável?

Entende o Padre Kavanaugh que o ser humano deva ser servido, onde quer que necessite de ajuda, seja católico ou não, casado regularmente ou não, assistindo ou não às missas e aos sacramentos.

Temos de reexaminar nossos objetivos escreve ele -, não importa a que custos. Não estamos aqui para converter o mundo, mas para servi-lo. Não estamos aqui para salvar almas, mas para amar a todas as criaturas. Deus as converterá e as salvará no seu devido tempo.

Não é, pois, teológica a preocupação do bravo sacerdote, mesmo porque, na sua opinião, é a teologia que está morta e não Deus. Não acha o autor que o "defunto" precise do seu óleo consagrado para ir ao encontro de Deus; tem honestas dúvidas acerca do purgatório, bem como de indulgências, anjos, demônios, devoções especiais a este ou àquele santo. Quanto à Trindade, na qual é obrigado a crer, sente Deus em seu coração, onde também sente a presença de Jesus, mas não consegue "fazer-se amigo da pessoa número três", mera abstração teológica.

Eis porque o depoimento do Padre kavanaugh amplia para nós a visão do relacionamento de uma religião dita cristã com uma comunidade que igualmente assim se considera. Poucos percebem, nesse contexto, como estão afastadas ambas as partes do que realmente ensinou

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Jesus com a sua doutrina universal do amor, essência de Deus e, portanto, da própria vida.Testemunhamos, assim, a inaceitável incongruência de uma teologia medieval que ainda

insiste em conceitos como céu, inferno, demônio, salvação exclusiva e outras obsoletas fantasias, somado tudo isso, na prática, à arrogante rigidez de um legalismo que chega a ser desumano e que já nasceu condenado pelo próprio Cristo.

IV. A MENSAGEM ESQUECIDASe os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos (I Cor. 15:32).

Chegamos, assim, às últimas páginas deste livro que propõe um reexame, uma reavaliação do que estamos habituados a considerar como Doutrina Cristã. Milhões e milhões aderiram, por tradição ou escolha, aos preceitos doutrinários, certos de que estavam entrando para as hostes cristãs. Limitaram-se a aceitar, sem exame, o que lhes foi dito ser o cristianismo do Cristo, tal como ele teria ensinado e exemplificado na Palestina, há quase vinte séculos.

Pois não é.As grandes realidades, a essência mesma da pregação de Jesus, continuam ignoradas,

porque foram deliberadamente esquecidas para que interesses mesquinhos e transitórios, embora duradouros, tivessem prioridade sobre os objetivos finais da vida. Para que por um tempo (e infelizmente, alongou-se demais esse tempo), continuasse o ser humano no livre exercício das suas paixões, no uso e gozo do poder passageiro, e, portanto, atado aos seus erros e, em consequência, à dor, como ensinou Jesus.

O majestoso Espírito que nos veio trazer essa mensagem renovadora e testemunhá-la perante os olhos atônitos do mundo com a sua morte, continua incompreendido e, para muitos, incompreensível. Uma vez considerado difícil e áspero o acesso ao Reino de Deus, tema central da sua pregação, preferiram os atalhos, aparentemente mais fáceis, dos ritos, dos sacramentos, das missas, da justificação pela fé, dos dogmas e dos exclusivismos, enquanto se espera que Jesus volte sobre seus passos e nos venha buscar para o céu.

Achou-se preferível concentrar todos os esforços na elaboração de um corpo doutrinário e na sistematização de uma prática que conservassem para nós a mesma exausta fórmula multimilenar de deuses irados aos quais devemos propiciar e com os quais temos de barganhar, os mesmos gestos, posturas e ritos sem sentido, sem nenhum esforço de auto-renovação.

E com isso ficaram deslocadas as prioridades e subvertidas. Se o que importa é construir o Reino de Deus em nós, para que ele se reflita e se projete no mundo em que vivemos, se a metodologia dessa conquista é o exercício do amor universal, do perdão sem limites, da caridade desdobrada sob todas as suas manifestações, por que concentrar a ênfase em esdrúxulas e inúteis formulações dogmáticas?

As tônicas da mensagem esquecida de Jesus continuam ignoradas, enquanto dele fizermos um Deus que morreu para nos purificar de nossos erros. O Reino de Deus deixou de ser uma realização pessoal, uma conquista, um trabalho íntimo de auto-realização, para depender do arbítrio daquele que, em nome de Jesus, se senta num trono, como herdeiro, em linha direta, de uma dinastia de delegados divinos na Terra. 0 que também é incongruente, pois ele já não nos teria redimido?

Que aconteceu com as realidades ignoradas, mas não desconhecidas? Continuaram rejeitadas, sufocadas, escondidas, temidas e até perseguidas. A cura de leprosos, cegos e possessos, paralíticos e obsidiados fenômenos naturais que uma pessoa bem dotada e ligada aos poderes superiores da vida (leia-se Deus) pode exercer e tem exercido por toda parte acabou conceituada como evento sobrenatural, derrogação de leis divinas e, portanto, só possíveis ao próprio Deus.

A manifestação pessoal de Jesus, após a tragédia da cruz, foi mascarada de ressurreição,

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ou seja, uma restituição da vida ao seu cadáver. E com esse corpo teria ele subido aos céus! Sufocou-se a mais dramática das suas mensagens à humanidade temerosa e sofredora: a radiosa realidade da sobrevivência do espírito imortal. Nenhum grande pensador ou profeta antes dele fez isso para que todos vissem e se certificassem dessa consoladora realidade. Suas aparições têm este significado tão simples e, ao mesmo tempo, tão transcendental: a vida continua, a morte não existe, o espírito vive sempre. Ninguém, antes dele, deu esse testemunho, documentou dessa maneira a doutrina que ensinou.

Ele demonstrou também que não fora criado aqui, ao nascer, ao formar-se o seu corpo. Trouxe tarefas a realizar, deu testemunho de experiências adquiridas, conhecimento consolidado, sabedoria ainda incompreensível para nós, em todas as suas consequências e implicações, amplitudes e belezas. E ele, portanto, de elevadíssima condição evolutiva, e, portanto, de um passado de vivências que se perde nos longes do infinito. "Antes de Abraão existir, já existia eu", disse ele. Paulo o coloca como construtor da Terra, como pai adotivo dos espíritos que aqui estavam destinados a viver e evoluir. Compete-lhe levar-nos todos (TODOS mesmo) à realização do Reino de Deus, não AO REINO de Deus como um território regido por um Messias.

João Batista, no seu testemunho inequívoco, é um ser sobrevivente e preexistente. Ele é o Elias que tinha de vir. E veio. Não era um espírito inexperiente, novato, recém-criado, com uma vida única na carne. Morrera como Elias e nascera de novo. Seu espírito, dotado de um corpo incorruptível, entrara, de novo, no ventre de uma mulher e renascera. Mesmo porque, sem o renascimento não há como realizar em nós as condições de pureza e amor que nos confere o Reino de Deus, em nossa intimidade. Como vamos conseguir a perfeição exigida, no período de uma só vida? Como tomar de assalto o Reino?

Todas essas realidades são hoje motivo de embaraço e vexame, quando deveriam ser, muito pelo contrário, verdades prioritárias, proclamadas por toda parte, comprovadas, demonstradas, documentadas. Já os teólogos se sentem embaraçados e sem condições de admitir que o espírito humano sobrevive, que o milagre é possível...

O exercício dos "carismas" da Igreja primitiva, que poderia servir para esclarecer tais realidades e manter aceso o fogo sagrado da verdade que representam, foi também sufocado. Como persistissem, pois os mecanismos divinos da vida não se submetem às paixões humanas, os carismas que, com o tempo teriam muitos nomes — profecia, mistérios, necromancia, histeria, mediunidade, sensibilidade extra-sensorial ou o que seja -, passaram a ser sumariamente considerados como artes do demônio, fraude, alucinação, debilidade mental, alienação, objetivação de fenômenos subjetivos da mente. Num caso assim, tão "embaraçoso" como o da sobrevivência do ser à morte corporal, tudo serve, desde que o fenômeno continue a ser rejeitado. É que as realidades ora ocultas ou rejeitadas e esquecidas têm no seu bojo um irresistível potencial contestador perante o que aí está como doutrina cristã.

Não é que as igrejas que se dizem do Cristo ignorem tais realidades. É que as temem, por saberem de suas consequências e implicações. Ocorre aqui uma dramática simetria histórica: ao tempo de Jesus os poderes religiosos, instalados no tope da pirâmide social e política, compreenderam tão bem as implicações contidas na ideia do Reino de Deus que manobraram para fazer calar aquele que a preconizava. Nos tempos modernos, o drama não é menos impressionante: uma vez admitidas as realidades que tais fenômenos demonstram as igrejas se desarticulam estruturalmente, como corpo e como espírito, ou seja, nos seus organogramas político-administrativos e nos fundamentos do que se persiste, obstinadamente, em apresentar como doutrina cristã. Por outro lado, se não aceitarem tais realidades, dentro de algum tempo não terão mais o que dizer ao ser humano que sofre, que busca, que espera, que anseia.

Dizer o que àquele que busca? Que creia e espere, que Jesus virá buscá-lo, um dia, desde que ele se filie a determinada Igreja e cumpra determinados rituais?

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Essa não é a realidade que o crente irá encontrar no mundo póstumo, para onde seguimos todos, ao término de cada existência na carne. Estimular com o que aquele que vive cercado de dificuldades e problemas, sem comida sobre a mesa, sem roupa sobre o corpo e sem esperança dentro do coração? Que lute pelas transformações sociais, por bem ou por mal, pelo voto ou pelo crime, se preciso for? Consolar como, ao que anseia pela paz e vive atormentado, que deseja o amor e vê o ódio por toda parte, que se esforça por praticar o bem que deseja, mas reincide no mal que não deseja? Com o sacramento catártico da confissão e com o outro, ilusório, de que está se alimentando da carne de Deus e bebendo o seu sangue?

Embora muita gente não tenha percebido, ou não queira perceber, o embaraço e o vexame estão nessas e em inúmeras outras perguntas, para as quais as respostas vão ficando cada vez mais vagas, imprecisas, hesitantes e sem convicção precisamente porque lhes falta o apoio insubstituível da verdade. "Seja o vosso falar sim, sim; não, não — disse ele. "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará". "Em verdade, em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém não recebeis o nosso testemunho. Se não acreditais quando vos falo das coisas da Terra, como acreditareis quando vos falar das coisas do céu?"

Se os que hoje falam em nome de Jesus ainda não acreditam nas coisas do céu, então o momento é grave e crítico, porque aí estão as realidades rejeitadas, a verdade que se tornou vexatória exatamente para aqueles que se dizem seus dispensadores, seus guardiães, seus arautos. Há muito que se mudou o enfoque e reverteram-se as prioridades, e das coisas do céu passou-se a cuidar das coisas da Terra. E como cegos, dirigindo cegos, armou-se o espetáculo lamentável da insensatez. Têm olhos mas não querem ver.

O tema central da pregação de Jesus, portanto, não é o da sua divindade, o do messianato, da descendência davídica, do nascimento excepcional, ou a prática de sacramentos e rituais é o do Reino de Deus, que incumbe a cada um realizar pessoalmente na intimidade do ser, com a instrumentação do amor universal, sem limites ou ressalvas.

Jamais poderíamos entender a amplitude das implicações de seus ensinamentos se ele não houvesse demonstrado, como o fez, a continuação da vida. Por isso, escreveu Paulo aos coríntios, com veemência e convicção: "E se Cristo não ressuscitou (leia-se sobreviveu), vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé". E mais adiante: "Pois se os mortos não ressuscitam (sobrevivem), também Cristo não ressuscitou". E ainda: "E se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos".

A grande mensagem esquecida do cristianismo é, pois, a da realidade espiritual com tudo o que nela está implícito e explícito.

13. 0 MOÇO RICO E A VELHA MILIONÁRIA

Eu vivo, más já não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim. (Gál. 2:20)Uma visão retrospectiva, como a que empreendemos neste livro, evidencia que aspectos

relevantes dos ensinamentos de Jesus apresentam-se irreconhecíveis ou nem figuram na doutrina que lhe é atribuída hoje. Conceitos outros, que nada têm a ver com o que ele ensinou, ou até se opõem a tais ensinamentos, aparecem com destaque no que hoje conhecemos como cristianismo.

IMenhum esforço especial de observação é necessário, por exemplo, para concluir-se que Jesus não cogitou de fundar uma seita religiosa ou igreja, nem de propor um novo código de legalismo.

No seu entender. Deus não faz questão de templos de pedra e ouro. Enquanto o culto não se realizar, por toda parte, em espírito e verdade, ele sugere a prece na intimidade do lar, que

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é onde conversamos com os amigos. Deus inclusive. O templo é apenas um abrigo, onde se reúnem as pessoas para ensinar, aprender, conviver e até orar. Templo por templo, ele preferiu as sinagogas mesmo, nas quais pregou regularmente, como nos informam os textos evangélicos. Se lhes permitiam falar nelas é porque sua palavra era aceita ali. Os temas seriam os mesmos de sempre: a infinita misericórdia de Deus, as belezas da fraternidade, a força generosa do perdão, o privilégio de servir...

E certo, porém, que combateu, com vigor, o legalismo dos escribas e fariseus e, assim como não propunha substituir um templo por outro, também não desejou trocar um conjunto de fórmulas vazias por outras igualmente inúteis.

A cena com o moço rico ilustra com transparente clareza essas posturas. O jovem lhe pergunta o que é necessário fazer para conquistar a vida eterna. Jesus não lhe recomenda ritual, sacrifício, sacramento, nem filiação a esta ou àquela instituição e sim o comportamento ético tradicional: não matar, não cometer adultério, não furtar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe e amar o próximo como a si mesmo.

Como tudo aquilo já vinha praticando, desde a infância, deseja o moço saber, segundo Mateus, o que Binde lhe faltava. Faltava, na opinião de Jesus, o desapego e a renúncia aos bens materiais. É o que lhe sugere. Nem uma palavra sobre práticas ritualísticas.

Como se sabe, o jovem rico não passou pelo teste e seguiu, entristecido, seu destino, ao verificar que ainda não estava preparado para abrir espaço íntimo para o Reino de Deus. Preferiu ficar com a riqueza material. Tipicamente, Jesus não o pressiona, nem o ameaça com as chamas do inferno ou castigos outros. Limita-se a observar aos circunstantes que é muito difícil a conquista de uma boa posição espiritual àqueles que ainda se acham aferrados aos bens terrenos.

Nada tem a ver, por conseguinte, com práticas eclesiásticas a busca da perfeição e sim com o comportamento do indivíduo enquanto ser humano. Por isso, após identificar com lucidez a doutrina do Reino de Deus, como "principal ensinamento de Jesus", H. G. Wells lamenta que tão revolucionária ideia desempenhe papei tão irrelevante nas seitas cristãs, quando deveria ser o princípio diretor de todas elas.

De fato, a realização espiritual, que não se alcança senão por um firme propósito de renúncia, de aprimoramento pessoal, de conversão de tendências negativas em aspectos positivos de caráter, revelou-se bem mais difícil do que parecia. Eram mais cômodos os antigos e familiares modelos religiosos que apenas pediam um sistema de ritos, práticas propiciatórias, oferendas e simbolismos, sob uma hierarquia sacerdotal posta na regência de uma estrutura eclesiástica que acabou por atribuir a si mesma a posse e uso das "chaves" do Reino de Deus.

Em verdade, não é fácil avaliar prontamente e com a precisão necessária a importância e as consequências mais remotas de um desvio doutrinário, no exato momento em que ele começa a derivar para um lado ou para outro. A meditada análise retrospectiva nos leva, contudo, á identificação de, pelo menos, três momentosos (e desastrosos) desvios na trajetória do cristianismo nascente:

1º) A ressurreição como ressuscitaçãoEm lugar de ver no fenômeno uma dramática demonstração da sobrevivência do espírito

imortal, optou-se por considerá-lo milagroso retorno da vida ao cadáver de Jesus. Derivou daí o conceito da ressurreição da carne, que acabou dogmatizado e introduzido no Credo, a despeito de chocar-se frontalmente com a correta conceituação de Paulo, em sua Primeira Epístola aos Coríntios, como vimos.

2º) Adoção do critério quantitativoResultou desta opção a montagem de um modelo eclesiástico, fora do qual todos estariam

irremediavelmente condenados ao fogo eterno. Iniciava-se o processo da descaracterização da mensagem cristã, mediante a adoção de conceitos, posturas, rituais e procedimentos que

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jamais estiveram nas cogitações de Jesus, como pecado original, teofagia, "sacrifício" da missa, concepção miraculosa, trindade divina e outras complexidades destinadas a criarem a imagem do exclusivismo religioso, autêntico monopólio da verdade e da "salvação". Ao mesmo tempo, promovia-se gradual paganização do cristianismo. Will Durant é preciso e enfático ao escrever que "o cristianismo não destruiu o paganismo adotou-o". Minorias, quantitativamente inexpressivas, como a dos gnósticos, que se mostraram capazes de entender e praticar um processo de renovação interior, dissolveram-se na massa maior dos que apenas cumpriam as formalidades do culto externo. A esta altura, já se substituíra a doutrina do amor pela do temor.

3º) O abandono do pneumatismo Talvez tenha sido esta a decisão mais grave de todas, porque excluiu a participação dos

espíritos na formulação do cristianismo. Eram eles que traziam às comunidades cristãs a palavra de esclarecimento, instrução e orientação, conforme está abundantemente documentado nas Epístolas de Paulo, Pedro e João, bem como nos Atos dos Apóstolos. É o que se vê, para citar um único exemplo, no Capítulo 13 dos Atos, que nos fala das práticas pneumáticas na igreja de Antioquia, onde a proposta de sair a pregar o cristianismo partiu dos espíritos, que indicaram nominalmente Barnabé e Saulo para a tarefa. Sabemos hoje das verdadeiras razões que levaram a essa desastrada opção: a classe sacerdotal, que ocupava lugar secundário na hierarquia primitiva, ansiava pelo pleno exercício do poder. Daí em diante, foi a visão estreita e interesseira dos homens e não a sabedoria atemporal de espíritos de elevada condição que passou a "guiar" o rebanho, já transviado.

O cristianismo nunca mais seria o mesmo após essas traumáticas decisões que tão profundamente alteraram suas prioridades. Há nelas uma característica básica essencial e comum a de que representam, todas, nítido desvio para aspectos terrenos e materiais da vida, em sacrifício do que a doutrina de Jesus tinha de essencial e revolucionária ou seja, a ênfase posta na imanência e transcendência da realidade espiritual.

Assim se explica por que os caminhos do cristianismo institucionalizado foram dar na opulência económico-financeira do Vaticano, em vez de levarem o cristão à soleira do Reino de Deus, onde prata e ouro são ,lastro morto a ser alijado e não passaporte para a paz definitiva. Como sempre acontece é o testemunho consistente da História os núcleos de poder atraem precisamente aos que ambicionam o exercício do poder e não aos que se empenham nas renúncias que Jesus recomendou ao moço rico.

Até mesmo a crise moderna suscitada pela chamada teologia da libertação, a pregar sua opção pelos pobres, tem suas remotas raízes naqueles equivocados desvios. A opção de Jesus não é pelo pobre, nem pelo rico, é pelo ser humano, onde quer que ele esteja, seja éle quem for, pense ele da maneira que pensar, seja qual for o seu problema. A riqueza pode ser uma provação como outra qualquer, tanto quanto a pobreza.

Ademais, o Evangelho não é um c'ocumento político e sim espiritual, ao passo que a realização do Reino de Deus um processo centrífugo de doação, o esforço daquele que procura sair de si mesmo para servir ao irmão em dificuldade.

Há muito vêm os pensadores responsáveis propondo um retorno do cristianismo às suas origens, em busca da sua perdida identidade, mas que procedimentos e critérios adotar para esse fim? A distância entre o Vaticano e a Casa do Caminho é infinitamente maior do que o espaço meramente geográfico ou cronológico entre Roma e a antiga Jope.

Alguém, com autoridade e carisma, precisaria, não só pensar o impensável, mas dispor de poderes e coragem suficientes para repensar tudo o que hoje conhecemos com o nome de cristianismo. O primeiro passo consistiria em admitir a óbvia realidade de que o próprio termo se tornou irreconhecível. Só então se poderia partir para uma reformulação radicei, separando a doutrina que se apresenta com o nome do Cristo, daquela que Jesus pregou. E isto sem racairmos numa nova categoria semântica de terminologismo.

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A etapa seguinte seria a m; is dramática: despojar-se o que hoje conhecemos por cristianismo da sua opulência material, tanto quanto das fantasias dogmáticas, das complexidades teológicas, das pompas ritualísticas, do obsoleto legalismc, da arrogância da infalibilidade, tanto quanto a da exclusividade, a fim de retomar, se ainda possível, a túnica singela e as sandálias empoeiradas de antanho.

Enquanto isso não ocorre, seja per um improvável impulso de autorenovação, ou por um progressivo desgaste da autoridade espiritual, a Igreja se esvazia irremediavelmente, em mais de um sentido. Prisioneira de seus próprios impasses, nada tem a dizer sobre as questões que se agitam hoje em tantas mentes mais perceptivas, ou, então, o que diz recai na monotomia das fórmulas ideológicas armadas para a obsoleta e extinta civilização medieval. Conceitos que, antes de serem cristãos, budistas, ou científicos, são indispensáveis ao entendimento da natureza humana e, em consequência, da vida, são sumariamente rejeitados ou postos em dúvida, como o da sobrevivência do ser, o do renascimento, o do intercâmbio entre vivos e mortos e outros.

E evidente que nunca esteve nos planos de Jesus ou de seus seguidores imediatos o modelo vigente de cristianismo, segundo o qual a instituição que se apresenta como depositária exclusiva da sua mensagem espiritual se convertesse numa potência empresarial, empenhada em transações bilionárias que se agitam nos sistemas financeiras internacionais.

Se, por um rasgo de destemida e improvável humildade, as lideranças da Igreja perguntassem a Jesus o que é necessário fazer para mudar a situação, ele diria à velha e rica instituição o mesmo que disse outrora ao jovem rico:

Vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me.

Atenção: não antes; só depois...Como segui-lo, arrastando atrás de si tanto ouro e tantos equívocos? Como abrir espaço

para Jesus em mentes e corações obstruídos pelos cuidados do mundo?Deve confessar honestamente que não nutro a ilusão de que as igrejas cristãs em geral se

resolvam por um processo catártico dessa dimensão, intensidade e dramaticidade, que corresponderia a um verdadeiro suicídio institucional daquilo que hoje conhecemos como cristianismo.

Provavelmente continuai ão tentando ser o que são, pela simples e poderosa força da inércia cinética que os mantém em atividade há séculos. O que sigrifica que a mensagem de Jesus deverá ser buscada alhures, ou, mais especificamente, nas páginas silenciosas e imortais do Evangelho que, mesmo maltratadas pelos temporais de milenares paixões humanas, conservam a essência da sabederia eterna e continuam à espera de uma releitura adequada e inteligente por parte dos que se apresentarem a essa abordagem munidos das chaves apropriadas, não aquelas que, supostamente, foram colocadas nas mãos rudes e honestas de Pedro.

Só então seria possível falar das Chaves do Reine... Para que, tomando-as em suas mãos, o Cristo abra os portões de nossa alma e a li se instale e viva em nós, como passou a viver em Paulo.

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