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BENS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO S andra Cureau 1 There are places I´ll remember all my life, though some have changed, Some forever not for better, some have gone and some remain. (Lennon e Mc Cartney)). I. Introdução – Ao tratar do tema, pode-se, desde logo, afirmar que, do ponto de vista histórico, não se trata de assunto novo. De fato, desde a Idade Média, e mesmo antes disso, o choque entre desenvolvimento e preservação de bens culturais se fazia sentir. Segundo Le Goff 2 , as cidades medievais eram lugares de renovação. Ao mesmo tempo que a população urbana mudava quase que inteiramente em duas gerações, o mesmo ocorria com a aparência das cidades, e a destruição não causava qualquer 1 Subprocuradora-Geral da República, Vice-Procuradora-Geral Eleitoral, Coordenadora da 4ª CCR/MPF de 2002 a 2010, Vice-Presidente da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente, Diretora Cultural do Instituto O Direito por um Planeta Verde, membro do Conselho Nacional de Política Cultural, doutoranda pela Universidade de Buenos Aires – UBA. 2 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998, p. 139.

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BENS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO

Sandra Cureau1

There are places I´ll remember all my life, though some have changed,

Some forever not for better, some have gone and some remain. (Lennon e Mc

Cartney)).

I. Introdução –

Ao tratar do tema, pode-se, desde logo, afirmar que, do ponto de vista histórico,

não se trata de assunto novo. De fato, desde a Idade Média, e mesmo antes disso, o

choque entre desenvolvimento e preservação de bens culturais se fazia sentir.

Segundo Le Goff2, as cidades medievais eram lugares de renovação. Ao mesmo

tempo que a população urbana mudava quase que inteiramente em duas gerações, o

mesmo ocorria com a aparência das cidades, e a destruição não causava qualquer

comoção, a menos que se tratasse de algum objeto “quase que totêmico”.

Choay3, por sua vez, observa que os homens da antiguidade e da Idade Média

não tiveram o mesmo olhar sobre os objetos de arte e os monumentos do passado. As

coleções de obras de arte antigas, que anteciparam o aparecimento dos museus,

surgiram no final do século III A. C. Ao mesmo tempo, a indiferença diante dos

grandes monumentos da colonização romana, cuja utilidade havia deixado de existir,

levou a que muitos fossem totalmente desnaturados, como ocorreu com o Circus

Maximus, em Roma, que foi ocupado por habitações alugadas pela Congregação de 1 Subprocuradora-Geral da República, Vice-Procuradora-Geral Eleitoral, Coordenadora da 4ª CCR/MPF de 2002 a

2010, Vice-Presidente da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente, Diretora Cultural do

Instituto O Direito por um Planeta Verde, membro do Conselho Nacional de Política Cultural, doutoranda pela

Universidade de Buenos Aires – UBA.2 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998, p. 139.3 CHOAY, Françoise. L´allégorie du patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1992, p. 26/30.

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Saint-Guy, ou com as arenas de Arles, na Provença (França), cujas arcadas foram

fechadas e, sobre suas arquibancadas, construído um quarteirão de casas, com uma

igreja no centro.

Acrescente-se que toda a Antiguidade e a Idade Média não conheceram senão

monumentos intencionais, quais sejam, aqueles dedicados a manifestar às gerações

futuras a glória ou a pujança de determinada civilização. Isso levava as civilizações

seguintes a utilizá-los para qualquer finalidade, ou mesmo a mutilá-los, sem que a

ninguém interessasse a sua restauração. Foi necessária uma mudança de enfoque

em relação aos bens culturais, cujo apogeu se deu no século XIX, quando o peso do

seu valor histórico aumentou consideravelmente, para que se estabelecesse um

vínculo com os múltiplos e fundamentais interesses da coletividade.4

Este artigo pretende abordar os impactos do desenvolvimento sobre os bens

culturais, móveis, imóveis e imateriais. No que diz respeito aos bens imóveis, é

importante falar da pressão exercida pela especulação imobiliária, pelo

desenvolvimento urbano e pelos grandes empreendimentos. Quanto aos móveis, a

sua subtração, para venda em antiquários ou tráfico para outros países é um dos

aspectos de maior relevância, assim como a influência de grandes empreendimentos

no processo de destruição do patrimônio arqueológico. Por fim, quanto aos chamados

bens imateriais, os impactos causados pelo fenômeno da globalização e pela

remoção compulsória de populações tradicionais, em decorrência de grandes

empreendimentos do Poder Público, têm levado à sua perda e à conseqüente perda

da identidade cultural das comunidades atingidas.

I. Bens culturais imóveis versus especulação imobiliária, desenvolvimento urbano e grandes empreendimentos –

O entendimento de Mário de Andrade, desde a elaboração, em 1936, do

anteprojeto da lei de criação do atual IPHAN (então SPHAN), era de que o patrimônio

4 Veja-se, a respeito, RIEGL, Aloïs. Le culte moderne dês monuments. Son essence e sa genèse. Paris: Éditions Du

Seuil, 1984.

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cultural “está relacionado à idéia de arte, como fruto do engenho humano.”5

Conforme já foi expressado em outro artigo6, embora a noção de patrimônio seja

dinâmica e vasta, englobando desde obras de arte, até bens de natureza imaterial, é

necessário que tais bens tenham relação com a identidade, a ação e a memória dos

grupos formadores da sociedade brasileira e, para tanto, não é possível prescindir da

intervenção humana.

Portanto, será examinada a relação do patrimônio cultural com o

desenvolvimento, a partir deste enfoque: patrimônio cultural como fruto do engenho

humano. E, quando forem tratadas as paisagens culturais, isto se fará tendo em vista

a sua equiparação, pelo Decreto-lei 25/37, aos bens culturais, para fins de

tombamento.

Como observa José Eduardo Ramos Rodrigues7, o Decreto-lei nº 3.866,

de 29 de novembro de 1941, que permitiu ao Presidente da República, atendendo a

motivos de interesse público, determinar, de ofício ou em grau de recurso, o

cancelamento do tombamento de bens, realizado pelo Serviço do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional, hoje IPHAN, fossem eles pertencentes à União, aos Estados, aos

municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, surgiu no mundo

jurídico especialmente para facilitar a construção da Avenida Presidente Vargas, no

Rio de Janeiro. Pode-se, assim, dizer que, através de sua edição, criou-se o primeiro

dos muitos conflitos entre patrimônio cultural e desenvolvimento. Em decorrência da

aplicação do DL nº 3.866/41, foram destruídas as igrejas de São Pedro dos Clérigos e

do Bom Jesus do Calvário, além de parte dos jardins históricos da Praça da

República.

Nos dias atuais, seria possível, a partir do disposto no inciso III do § 1º do

art. 225 da Constituição Federal, discutir a constitucionalidade da alteração do DL

25/37, através de diploma legislativo da mesma hierarquia, que não constitui lei em

sentido formal. Ao criar-se situação menos favorável à preservação do patrimônio

cultural, surge a retrogradação ambiental, cuja proibição, contida no § 1º, III, do art.

5 RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007, p. 69/70.6 CUREAU, Sandra. Patrimônio, uma noção complexa, identitária e cultural. In Desafios do Direito Ambiental no

século XXI – estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 749.7 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. O canhão “El Cristiano” e o gentil estado brasileiro. Poiésis –

Literatura, Pensamento & Arte, nº 170. Saquarema (RJ): maio de 2010, p. 8.

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225 da Lei Maior, já foi objeto de estudo de diversos doutrinadores 8. Leve-se em

conta que os bens culturais integram o conceito de meio ambiente, conforme

escarecem, entre outros, por Celso Fiorillo9 e Ana Marchesan.

Ana Marchesan10 relata um exemplo prático relacionado às chamadas

Áreas Especiais de Interesse Cultural, criadas pelo art. 92 do Plano Diretor do

Município de Porto Alegre. Naquele caso, enquanto o projeto de lei, detalhando as

áreas a serem protegidas não fosse levado ao Legislativo municipal, optou-se pela

edição de um Decreto para, com base no princípio da precaução – um dos princípios

basilares do Direito Ambiental -, não autorizar a demolição e a subseqüente

construção de empreendimentos nas áreas já identificadas, visando evitar a

descaracterização das ambiências urbanas.

Tendo sido o tombamento criado apenas em 1937, através do Decreto-lei

25, o desenvolvimento urbano já havia sido responsável, no início do século, pelo

desaparecimento de grande número de valiosos prédios no Rio de Janeiro, como o

Convento da Ajuda, demolido em 1911, durante as obras de abertura da Avenida

Central, atual Avenida Rio Branco. O convento, representativo do Estilo Colonial

existente antes da abertura da avenida, ficava localizado onde hoje é a Cinelândia. Ao

seu lado, onde hoje é a Câmara de Vereadores, ficava o Conselho Municipal, em

Estilo Manoelino.

Concorrência, desemprego, modernidade, todos os argumentos foram e são

utilizados para justificar a destruição do antigo e a construção do novo. A Avenida

Central, por exemplo, “deveria transformar o Rio de Janeiro em uma capital digna do

século XX, fazendo com que o Brasil ingressasse no cenário internacional e

mostrasse a importância que ele possuía dentro da América Latina.”11 Em 1912,

passou a chamar-se Avenida Rio Branco. Poucos prédios ainda restam da época de

sua construção, pois a avenida, do início do século XX até hoje, já passou por quatro

estilos: Colonial; Eclético; de prédios arrojados com mais de 20 andares, a partir do

8 Entre eles, MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental. Proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2007.9 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23. 10 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 130/1,11 http://www.marcillio.com/rio/enceribr.html, acesso em 15 de junho de 2010.

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advento do concreto armado, e de grandes torres pós-modernas. Nada restou dos

imóveis de estilo colonial e poucos daqueles de estilo eclético conseguiram manter-

se até a atualidade.

Mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha jogado por terra o

“sagrado” direito absoluto de propriedade, ser proprietário era, e ainda é, para muitos,

inclusive na área do Poder Público, o direito de usar e fruir do bem como melhor lhes

aprouver.

A idéia de função social da propriedade, concebida inicialmente com a

doutrina social da Igreja Católica - Encíclicas Papais (Leão XXIII), Rerum Novarum

(1891); Pio XI, Quadragesimo Anno (1931); Pio XII, La Solemita (1941) e Oggi (1944);

João XXIII, Mater et Magistra -, evoluiu após o término da Primeira Guerra Mundial,

como uma das características do chamado Estado Social de Direito.

Com a tônica da Constituição Brasileira de 1988, desenhou-se o novo

Código Civil de 2002, em especial, o seu art. 1.228, prevendo, em parágrafos

inovadores, a função social da propriedade. O § 1º estabelece que: "O direito de

propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e

sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em

lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio

histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas."

Como já escrito anteriormente12, independentemente de entender-se a

função social da propriedade como elemento integrante da própria estrutura do direito

ou como consectária das limitações administrativas ao direito de propriedade,

importante compreendê-la, doravante, como dever imposto ao proprietário, tendente a

que atenda não apenas às suas necessidades, mas também, em certa medida, às do

corpo social.

Entretanto, situações reais mostram que a aplicação dos novos preceitos

não é fácil. A partir de 2001, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou Áreas de Proteção

do Ambiente Cultural - APACs, nos bairros de Laranjeiras, Jardim Botânico, Botafogo,

Ipanema, Leblon, Catete/Glória, Humaitá, Ilha de Paquetá, entre outros, visando

12 LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.34.

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preservar a ambiência e a identidade arquitetônica dos referidos bairros. Quaisquer

intervenções urbanísticas ou paisagísticas, dentro da APAC, devem ser submetidas

previamente ao órgão de tutela respectivo.

Em 2005, foi noticiado o tombamento municipal de duas casas, no bairro de

Ipanema, que haviam sido objeto de ação judicial, visando excluí-las das restrições

impostas. Conforme noticiado à época, a proprietária, “que não quis se identificar ou

revelar seus endereços”, acionou a Justiça em 2003, quando foi publicado o decreto

protegendo 290 imóveis de Ipanema. O pedido foi negado pela 6ª Vara Cível. Mas a

autora apelou para a segunda instância e, no dia 31 de agosto, a 2ª Câmara Cível do

Tribunal de Justiça acolheu o recurso13. Um ano depois, em 2006, foi novamente

noticiado que decisão da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,

julgando procedente ação popular, cancelou as Áreas de Proteção do Ambiente

Cultural de Ipanema e Leblon, que, desde 2001, vinham preservando cerca de 400

imóveis particulares.14 O mesmo jornal, no dia 28/07/2007, noticiou que a Prefeitura

do Rio de Janeiro fixou gabaritos no entorno das APACs de Ipanema, Leblon,

Laranjeiras e Catete.15 Em matéria recente16, foi divulgado que a Câmara de

Vereadores do Município insiste em rever as APACs de Leblon e Ipanema, porque

foram criadas sem a prévia discussão por parte dos interessados, através de

audiências públicas.

A respeito, cumpre que se diga que a vitoriosa experiência francesa, na

criação das Zonas de proteção do patrimônio arquitetônico, urbano e paisagístico –

ZPPAUP –, deve-se ao fato de que são os representantes eleitos pelo povo e a

comunidade quem define as regras para ordenar a utilização de tais espaços,

inclusive quanto a construções novas no seu interior. Os estudos, após concluídos,

são submetidos à comunidade, cabendo recurso administrativo em caso de recusa.

As ZPPAUD,17 tais como as APACs, podem acarretar servidões urbanas e limitações

ao direito de construir.18

13 http://augustoboisson.webs.com/apac.htm , acesso em 15 de junho de 2010. O advogado da recorrente era,

segundo fartamente noticiado, o Procurador Regional da República Paulo de Bessa Antunes.14 Jornal O GLOBO, edição de 16 de novembro de 2006.15 Jornal O GLOBO, edição de 28 de julho de 2007.16 Jornal O GLOBO, edição de 16 de junho de 2010, p. 17.17 Zones de protection du patrimoine architectural, urbain et paysager.18 Veja-se, a respeito, CUREAU, Sandra. O patrimônio cultural brasileiro e seus instrumentos de proteção. In O

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Conforme, entre outros, observa Martine Rèmond-Gouilloud19, que o ser

humano decida destruir o seu passado é uma questão grave, pois a legitimidade da

destruição está intimamente ligada aos valores da sociedade na qual ela ocorre. Do

mesmo modo, é correto afirmar que existe um vínculo estreito entre patrimônio

cultural e identidade cultural: Falar de patrimônio cultural é falar de valores e a sua

conservação ou a sua degradação são significativas da atitude das sociedades em

relação à sua própria história e aos seus próprios valores culturais.20 Sociedades que

não têm passado, não têm futuro.

Já foi tratado, em outras oportunidades21, sobre a verdadeira guerra que se

travou entre o espólio do proprietário do prédio situado na esquina da rua do

Riachuelo com a rua dos Inválidos, no Rio de Janeiro, RJ, e a decisão judicial que

determinava a sua recuperação. Em 4 de outubro de 1989, foi ajuizada ação civil

pública, visando a restauração do imóvel situado na rua dos Inválidos nºs 193 e 203,

Centro, Rio de Janeiro. Tratava-se de uma casa, datada do segundo quartel do século

XIX, tombada pelo SPHAN em 1938, de frente de rua, com três pavimentos, que

havia pertencido ao Visconde de São Lourenço e constituía, com o Paço Imperial, as

obras mais significativas, ainda existentes, do período.

Quando do ajuizamento, a casa encontrava-se em péssimo estado de

conservação, constituindo-se em “cabeça de porco”22, ou seja, abrigando habitações

coletivas e pequenas lojas de quinquilharias. A Juíza Federal Maria Tereza de Almeida

Cárcomo Lobo, em 14 de junho de 1991, julgou procedente o pedido. Sem o

oferecimento de recurso, a decisão transitou em julgado e iniciou-se a sua execução,

no curso da qual o proprietário veio a falecer. Em 1992, a casa sofreu parcial

desabamento, sendo interditada pela Defesa Civil.

Em 17 de junho de 1993, o Ministério Público Federal recebeu a informação

novo direito administrativo, ambiental e urbanístico – estudos em homenagem a Jacqueline Morand-Deviller. São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 175.19 RÉMOND-GOUILLOUD, Martine. Du droit de détruire. Paris: PUF, 1989, p. 43.20 LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Op. Cit. p. 123.21 CUREAU, Sandra. Op. Cit., p. 180.22 “Cabeça de porco” é nome dado a cortiço, ou seja, a um aglomerado de casas ou quartos que serve de habitação

coletiva para a população pobre.

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de que o imóvel estava sendo demolido internamente, sendo que cerca de ¼ do

telhado e quase todas as divisões internas já haviam sido retirados. Foram

requisitadas providências imediatas à Polícia Federal e ao então IBPC (hoje IPHAN).

Na mesma noite, a casa foi objeto de um incêndio, que somente foi

debelado, pelo Corpo de Bombeiros, na tarde do dia seguinte. Ingressou-se, então,

com ação de atentado.

O Juiz Federal Guilherme Couto de Castro concedeu liminar, para que os

sucessores do proprietário procedessem ao imediato escoramento do imóvel, sua

cobertura e guarda permanente, visando evitar seu desabamento total.

No mérito da ação, foi pedido o restabelecimento do estado do imóvel, tal

como era antes do parcial desmoronamento, da demolição interna e do incêndio, e, se

o imóvel viesse a desabar, fossem os proprietários condenados à proibição de edificar

no terreno pelo prazo de 20 anos.

O que ocasionou toda essa situação? Pelo menos quatro fatores: a) o

lastimável estado de conservação do imóvel e o dispêndio de dinheiro que seria

necessário para sua restauração; b) a ausência de cumprimento ao que dispõe o art.

19 do Decreto-lei 25/3723, tanto por parte dos proprietários ou responsáveis, quanto

por parte da administração pública; c) a especulação imobiliária, que tornou atraente,

23 Art. 19. O proprietário de coisa tombada, que não dispuzer de recursos para proceder às obras de

conservação e reparação que a mesma requerer, levará ao conhecimento do Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional a necessidade das mencionadas obras, sob pena de multa

correspondente ao dobro da importância em que fôr avaliado o dano sofrido pela mesma coisa.

§ 1º Recebida a comunicação, e consideradas necessárias as obras, o diretor do Serviço do Patrimônio

Histórico e Artistico Nacional mandará executá-las, a expensas da União, devendo as mesmas ser

iniciadas dentro do prazo de seis mezes, ou providenciará para que seja feita a desapropriação da

coisa.

§ 2º À falta de qualquer das providências previstas no parágrafo anterior, poderá o proprietário

requerer que seja cancelado o tombamento da coisa.

 § 3º Uma vez que verifique haver urgência na realização de obras e conservação ou reparação em qualquer coisa tombada, poderá o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tomar a iniciativa de projetá-las e executá-las, a expensas da União, independentemente da comunicação a que alude este artigo, por parte do proprietário.

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em área já bastante valorizada pela proliferação de prédios comerciais e de

escritórios, a venda do imóvel; d) a ausência de vontade política, no sentido de dar

uma destinação pública, compatível com a conservação do bem, visando com isso

preservá-lo.

No que tange às chamadas paisagens culturais, que o § 2º do art. 1º do

Decreto-lei 25/37 equiparou, expressamente, aos bens móveis e imóveis, abrangendo

os monumentos naturais, sítios e paisagens que importe conservar e proteger “pela

feição notável com que tenham sido dotados pela Natureza ou agenciados pela

indústria humana”, os problemas mais graves envolvendo a sua destruição decorrem

dos grandes empreendimentos levados a efeito pelo Poder Público.

O caso mais emblemático talvez seja o das Sete Quedas do Iguaçu, na

divisa do Estado do Paraná. Em 26 de outubro de 1982, as águas do lago que

formaram o reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu cobriram as Setes Quedas,

em nome do progresso, do conforto e da necessidade de geração de energia. Carlos

Drummond de Andrade, na edição de 9 de setembro do Jornal do Brasil, quando já se

anunciava o fechamento das comportas para a criação do lago da hidrelétrica,

publicou o poema “Adeus a Sete Quedas”, no qual manifestou sua desconformidade

com a destruição do Salto das Sete Quedas.24

A usina hidrelétrica de Itaipu começou a ser construída no rio Paraná, na

década de 1970, sendo fruto de uma parceria do Brasil com o Paraguai. A obra,

atualmente, seria considerada inviável, devido ao impacto ambiental causado, e “só

foi possível porque os governos militares da época não recuaram diante dos protestos

por todo o país. Em 1982, quando começou o enchimento do lago, cerca de doze mil

estudantes e manifestantes de movimentos rurais acamparam em torno da represa

para protestar.”25

Em ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público Federal no Estado

do Rio Grande do Norte26, o juiz federal da 3ª Vara concedeu liminar para determinar

a demolição dos 04 (quatro) últimos andares de um hotel, situado na Via Costeira,

24 http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/723042. Acesso em 19 de junho de 2010.25 http://www.miniweb.com.br/Geografia/Artigos/hidrografia/usina_itaipu.htm. Acesso em 19 de junho de 2010.

26 PROCESSO Nº: 2006.84.00.000011-9 – Seção Judiciária do Rio Grande do Norte.

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“em toda a parte que contém 08 (oito) andares, para que possa ser preservado o

direito estético e paisagístico do local e do ambiente onde se verifica a construção,

em benefício de toda a coletividade.”

Nos fundamentos de sua decisão, disse o julgador: “Sem dúvidas, o turismo

é algo importante para a economia local. Não há questionamentos quanto à

necessidade de boas instalações hoteleiras para o desenvolvimento da atividade

turística. Mas, em que pesem estes pontos, não se pode deixar de considerar que a

atividade turística deve ser contemporizada com o bem-estar da população local e

com bens que são caros à humanidade. Não é correto pensar, por mais lucrativa que

seja a atividade turística, que tudo deve ser feito, mesmo em detrimento da população

local e de bens de valor inestimável, para que se desenvolva esta atividade destinada

ao turismo.

Também não se pode pensar que a Via Costeira, por ser área turística,

deve ficar restrita apenas a esta atividade. Não há que se pensar que as belezas da

Via Costeira, aqui incluída a beleza estética e paisagística, é área restrita,

propriedade privada, dos que exploram o turismo e dos turistas que vêem nos visitar.

Esta é uma visão de natureza meramente patrimonial, calcada numa ética

tradicionalmente de cunho individual.”

Como já restou salientado, em outro artigo, existe, segundo Edgar Montiel27,

um falso dilema entre cultura e desenvolvimento. A afirmação de um direito não pode

levar à negação de outro: cultura e vida digna são complementares e não

excludentes. “O desenvolvimento não é um conceito prêt-à-porter” e seus modelos

não podem ser mecanicamente aplicáveis a qualquer meio ou corpo social.

II. Bens móveis – subtração, tráfico e destruição –

Poucos autores têm se preocupado, no Brasil, com o estudo dos bens

culturais móveis. Inês Virgínia Prado Soares, cuja tese de doutorado tratou da

proteção jurídica do patrimônio arqueológico brasileiro, observa, com propriedade que

27 MONTIEL, Edgar. La diversidad cultural en la era de la globalización. Hacia una mundialización humanista.

Paris: Unesco, 2003, p. 17.

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“até hoje, com raras exceções, a produção acadêmica e científica de material

arqueológico, bem como a sua divulgação ficam restritos a grupos de pesquisadores

e estudiosos, sem repercussão socialmente relevante, inclusive no plano jurídico”.28

Em consequência, criou-se um distanciamento, por parte da sociedade

brasileira, no que tange à proteção e preservação desses bens. O mesmo pode ser

dito em relação ao patrimônio cultural móvel em geral.

Outra observação a ser feita é a de que a quantidade de objetos antigos que

podem alimentar o comércio lícito é limitada e sua quantidade diminui a cada dia.

Logo, para abastecer a crescente demanda, cada vez mais são utilizados meios

ilícitos de aquisição29, já que não há como aumentar, do dia para a noite, o número de

objetos autênticos em circulação no mercado.

Os interesses em jogo são os mais diversos possíveis e nem todos visam,

unicamente, benefícios econômicos. Os arqueólogos, por exemplo, necessitam que

os vestígios materiais de nossa história sejam preservados no seu próprio lugar de

origem, para que não haja a destruição do conhecimento que eles revelam, para as

presentes e futuras gerações. Os historiadores de arte muitas vezes precisam

enquadrar um objeto desconhecido num determinado marco temporal ou geográfico,

para determinar sua significação, seu período ou seu estilo.

Já os colecionadores de antiguidades têm interesses bastante diversificados.

Enquanto alguns buscam enriquecer suas coleções, outros procuram objetos que

tenham para eles uma significação pessoal ou sirvam como elementos decorativos.

Existem, ainda, os museus, que possuem uma missão educativa. É importante

lembrar, como foi dito na introdução deste artigo, que colecionar objetos de arte é

uma prática muito antiga, que começou antes da era cristã.

Os negociantes de antiguidades e leiloeiros necessitam possuir um acervo de

objetos valiosos, suscetíveis de serem vendidos e a sua relação com os bens

culturais é sempre econômica. É nesta área que se encontram, talvez, as maiores 28 SOARES, Inês Virgínia Prado. Proteção jurídica do patrimônio arqueológico no Brasil. Fundamentos para

efetividade da tutela em face de obras e atividades impactantes. Erechim (RS): Habilis, 2007, p. 7.29 Conforme, entre outros, O´KEEFE, Patrick J. Le commerce dês antiquités. Combatre les destructions et le vol.

Paris: Éditions Unesco, 1999, p.9.

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dificuldades. O Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados nunca foi concluído

pelo IPHAN30, sendo certo que existem hoje mais de 1.500 bens artísticos procurados,

a maioria - cerca de 96% -, provenientes de instituições religiosas. A falta de

segurança das igrejas e instituições culturais, somada à ausência de um catálogo

único, com descrição e fotos dos bens desaparecidos, e à pequena parcela de bens

tombados existente nos acervos dos museus são circunstâncias que agravam esta

situação.31

Em relação aos bens bibliográficos e arquivísticos, ainda que o art. 1º do

Decreto-lei 25, de 1937, faça menção expressa a eles, ao definir o patrimônio

histórico e artístico nacional como sendo os bens móveis e imóveis de interesse

público, “quer por sua vinculação com fatos memoráveis da história do Brasil, quer por

seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, as

políticas de proteção sempre foram tímidas e, em geral, vinculadas a museus. Como

na época da entrada em vigor do Decreto-lei inexistiam definições conceituais, que

diferenciassem o tratamento dos acervos documentais e bibliográficos, de valor

histórico e cultural, os documentos historicamente dignos de cuidados eram,

geralmente, os manuscritos existentes nas bibliotecas públicas e privadas32. Ainda

assim, ao referir-se aos acervos bibliográficos, o legislador, certamente, incluiu os

documentais.

A especificidade dos acervos documentais reclama instrumentos outros,

além do tombamento, tais como o inventário e a catalogação sistemáticos, que

servem, inclusive, para um futuro processo de tombamento, que ainda é raro. Pode-

se dizer que o controle alfandegário de sua saída do país é praticamente inexistente e

que a falta de vigilância nas bibliotecas e arquivos públicos acarreta o furto de

litografias, partes de livros e mesmo de obras completas. Isso quando acervos

arquivísticos, guardados precariamente em depósitos e garagens, de forma

totalmente desorganizada, não vêm a sofrer a ação de insetos, fungos e bactérias, da

umidade e do tempo, que os levam à completa ruína. Exemplos disso são

30 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.31 Conforme dados extraídos de palestra realizada pela Procuradora da República em São Paulo, Ana Cristina

Bandeira Lins32 Veja-se, a respeito, SOLIS, Sidney Sergio Fernandes e ISHAQ, Vivien. Proteção do patrimônio documental –

tutela ou cooperação? Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional., nº 22/1987. Rio de Janeiro:

SPHAN, p. 186.

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encontrados em fotografias publicadas no nº 22, de 1987, da Revista do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, envolvendo a documentação da Light, na Ilha do

Governador, RJ, ou o arquivo do Sindicato dos Guardadores Autônomos do Município

do Rio de Janeiro.33

No que se refere ao patrimônio arqueológico, as populações mais pobres

vêm, na venda de antiguidades extraídas de sítios naturais ou monumentos locais,

uma maneira de sustentar suas famílias. A título de exemplo, cite-se o caso da

Chapada do Araripe,no Ceará.

Conforme dados do Governo do Estado do Ceará34, a Chapada do Araripe,

localizada em uma área de aproximadamente 10 mil km², que compreende os estados

do Ceará, Pernambuco e Piauí, tem um dos acervos paleontológicos mais

importantes do planeta, entre os quais mais de um terço de todos os pterossauros

(répteis alados) já descritos e mais de 20 ordens diferentes de insetos fossilizados,

com idade estimada entre 70 milhões e 120 milhões de anos.

É de conhecimento geral que, há anos, uma rede internacional de

contrabando vem prejudicando a exploração científica deste acervo por parte das

instituições brasileiras. Fósseis de peixes milenares são vendidos no mercado negro

até por quinze centavos cada. Quadrilhas recrutam pessoas simples da região,

conhecidas como “peixeiros”, para retirar os fósseis, que serão vendidos para

atravessadores por quantias de cinco a 10 reais. Conforme o sítio Instrumental Brasil,

“a supervalorização dos fósseis da Chapada do Araripe é hoje de conhecimento

mundial. Muitas espécies raras se encontram em museus da Europa e dos Estados

Unidos, material contrabandeado, e até podem ser vistas à venda da internet.”35.

Segundo informações da Polícia Federal, o tráfico internacional de fósseis

da Chapada do Araripe faz com que o Brasil perca, por ano, cerca de R$

7.000.000,00. Fósseis que saem da região do Cariri por cerca de R$ 10,00 chegam a

ser vendidos no exterior por US$ 1.000,00, conforme o tamanho. Estima-se que

33 Op. Cit., p. 178, 179 e 182.34http://www.funcap.ce.gov.br/noticias/contrabando-prejudica-producao-cientifica-na-chapada-do-araripe . Acesso

em 12 de junho de 2010.35 http://instrumentalbrasil.com/chapadadoararipe/category/geral/noticias/page/73/ . Acesso em 12 de junho de

2010.

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apenas 40% dos fósseis descobertos na Chapada do Araripe ainda permaneçam no

Brasil. A Sociedade Brasileira de Paleontologia calcula que há mais de 70 mil fósseis

da Chapada do Araripe em coleções estrangeiras, e apenas 3 mil em coleções

brasileiras.36

Somente um trabalho de conscientização, ligado a uma fiscalização efetiva

por parte dos órgãos governamentais e ao oferecimento de meios de subsistência à

população local, poderão ter alguma eficácia no sentido de combater o tráfico de bens

paleontológicos para fora do País. Lembre-se, por oportuno, que a Constituição

Federal de 1988, expressamente, atribui, no § 1º do seu art. 216, ao Poder Público,

com a colaboração da comunidade, a proteção do patrimônio cultural brasileiro.

É de salientar, por outro lado, que as atividades econômicas são, muitas

vezes, responsáveis pela destruição do patrimônio arqueológico brasileiro. Assim é

que mineradoras colocam em risco a preservação de sambaquis37, especialmente na

região Sul do Brasil; grandes empreendimentos podem levar ao desaparecimento

total de vestígios da passagem de povos que aqui viveram no período pré-colonial.

Na Volta Grande do rio Xingu, no Estado do Pará, por exemplo, na Terra

Indígena Paquiçamba do grupo Juruna, foram identificados vestígios arqueológicos

com fragmentos cerâmicos em toda a área de moradia. Também foi encontrado outro

sítio arqueológico, com muitos fragmentos cerâmicos e lâminas de machado. Com a

vazão reduzida do rio Xingu, a partir da construção do Aproveitamento Hidroelétrico

de Belo Monte, os petróglifos e os sítios cerâmicos ficarão permanentemente

expostos.38

Foram localizadas, ainda, duas áreas com gravuras rupestres inéditas. Tais

sítios arqueológicos são imprescindíveis para verificar as ocupações, migrações,

relações culturais entre os grupos pré-coloniais que viveram nessa região. Entretanto,

poderão sofrer impactos irreversíveis pela redução da vazão das águas do rio, em

decorrência da construção do AHE, porque as cachoeiras, que aparecem apenas na

36 Informação técnica nº 48/04 – 4ª CCR/MPF. Os dados são de 2004.37 Conforme http://pt.wikipedia.org/wiki/Sambaqui, sambaquis são depósitos construídos pelo homem,

compostos por materiais orgânicos calcáreos, que, empilhados ao longo do tempo e submetidos à ação das

intempéries, acabam sofrendo uma fossilização química. Acesso em 12 de junho de 2010.38 Conforme IT nº 294/09 da 4ª CCR/MPF.

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época da vazante, são as mais visitadas pelos turistas e os vestígios estão aflorando

à superfície. A construção da Hidrelétrica de Belo Monte, pela Eletronorte, é objeto de

disputa judicial desde 2001, quando o Ministério Público Federal no Pará ajuizou a

primeira ação civil pública contra o seu licenciamento.

A Lei nº 3.924, de 26 de junho de 1961, que dispõe sobre os monumentos

arqueológicos e pré-históricos, após afirmar, em seu artigo 1º, que “os monumentos

arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional

e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do

Poder Público”, nas alíneas do artigo segundo, considera inseridos neste conceito,

entre outros: os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos

paleoameríndios tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha; os sítios identificados

como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeiamento, nos

quais se encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou

paleoetnográfico; as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de

utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.

O artigo 3º proíbe, em todo o território nacional, o aproveitamento

econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas

ou pré-históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras

ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados nas alíneas

b, c e d do artigo anterior, antes de serem devidamente pesquisados.

Inês Soares39 lembra que “o IPHAN tem intervenção obrigatória na revisão

do licenciamento ambiental em todos os casos em que exista indício de risco ao

patrimônio arqueológico.” Nestes casos, cabe-lhe o dever de exigir que o

empreendedor cumpra condicionantes específicas para a proteção e preservação

destes bens.

O Decreto Presidencial nº 6.640, de 7 de novembro de 2008, alterando a

redação dos arts. 2º, 3º, 4º, 5º e 5º-A, do Decreto 99.556/90, que trata das cavidades

naturais subterrâneas existentes no território brasileiro, possibilitou que tais

“ocorrências geológicas sejam atingidas, mesmo em caráter irreversível, pelo impacto

39 Op. Cit., p. 157.

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de empreendimentos econômicos,”40 colocando em risco mais de 70% do patrimônio

espeleológico brasileiro. O novo Decreto dispensou o processo de licenciamento

ambiental para os estabelecimentos situados em áreas de potencial espeleológico;

permitiu a destruição de cavidades consideradas de “baixa relevância”, sem qualquer

tipo de compensação patrimonial ou ambiental e permitiu a destruição de cavidades

com base em critérios não corroborados por cientistas e especialistas na matéria, sem

qualquer discussão com a sociedade.

A redução protetiva ocorreu em decorrência de pressões econômicas

e políticas, levadas a efeito por empreendedores, em especial, por mineradores e

produtores de energia elétrica41.

Conforme o art. 1º do Decreto 99.556/90, as cavidades naturais subterrâneas constituem patrimônio cultural brasileiro, e, como tal, devem ser preservadas e conservadas. Por outro lado, o art. 3º do mesmo diploma

legal exige “a obrigatória a elaboração de estudo de impacto ambiental para as ações ou os empreendimentos de qualquer natureza, ativos ou não, temporários ou permanentes, previstos em áreas de ocorrência de cavidades naturais subterrâneas ou de potencial espeleológico, os quais, de modo direto ou indireto, possam ser lesivos a essas cavidades.” Dessa forma, aplicando-se o § 1º, inciso III, do art. 225 da Constituição Federal de 1988, somente através de lei formal, oriunda do Poder Legislativo, poderia ocorrer qualquer alteração ou supressão das garantias contidas no aludido decreto.

III. Bens imateriais - a perda da identidade cultural causada por grandes empreendimentos do Poder Público e pela globalização -

40 ADI nº 4218-1/600, de 2009.41 Conforme representação formulada ao Procurador-Geral da República, em 26 de novembro de 2008, pela

Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente – ABRAMPA. O aludido documento, fruto de

estudo elaborado em conjunto por MARCHESAN, Ana Maria Moreira; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza;

RODRIGUES, José Eduardo Ramos; SOUZA, Zani Cajueiro Tobias de, e CUREAU, Sandra, embasou a ADI

4218.

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Segundo Echeverría42, a cultura imaterial, também chamada de intangível,

de um ser humano é o conjunto de saberes, costumes, língua, valores que se

incorporam desde o seu nascimento e a partir do qual a comunidade constrói as suas

práticas sociais.

A preservação dos chamados bens imateriais, no Brasil, foi regulada pelo

Decreto nº 3,551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o registro, como forma de sua

proteção.

Como acentua Souza Miranda43, a proteção que o registro confere

materializa-se no reconhecimento da existência e do valor de determinada

manifestação cultural. É um ato protetivo, que visa não só dar suporte a ações que

visem impedir posterior utilização indevida dos conhecimentos e práticas envolvidos,

como também propiciar ao órgão encarregado da proteção do patrimônio imaterial

envidar esforços no sentido de preservar aqueles conhecimentos ou manifestações,

impedindo seu desaparecimento. A cada dez anos, o IPHAN deve fazer a reavaliação

de cada bem cultural registrado, encaminhando-a ao Conselho Consultivo do

Patrimônio Cultural. Se a revalidação for negada, porque o suporte físico não existe

mais, o registro será mantido apenas como referência cultural do seu tempo.

Nesta parte, será examinada, em primeiro lugar, a perda do conhecimento

tradicional das comunidades atingidas por grandes empreendimentos do Poder

Público, que levam ao deslocamento compulsório dos espaços territoriais por elas

ocupados há várias gerações, nos quais desenvolvem seus modos de fazer, suas

atividades sociais, culturais e de sobrevivência, seus laços de vizinhança e compadrio

e seus sistemas de trocas.

Raquel de Mattos Viana lembra que foi principalmente a partir do final da

década de 60, durante o regime militar, que o sonho de desenvolvimento e

modernidade teve como um de seus maiores símbolos as grandes barragens. Com a

necessidade de ampliação da oferta de energia elétrica, criada pela crescente

industrialização e urbanização, bem como pelo desejo de transformar o Brasil em uma 42 ECHEVARRÍA, Juan Cláudio Morel. Ambiente y cultura como objetos del derecho. Buenos Aires: Editorial

Quorum, 2008, p. 39.43 MIRANDA. Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Doutrina. Jurisprudência.

Legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 106/7.

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grande potência, foram elaborados e implementados alguns dos maiores projetos

hidrelétricos brasileiros, tais como as Usinas Hidrelétricas de Tucuruí e Itaipu,

finalizadas em 1984 e 1983, respectivamente.44

Cada um de nós, quando retorna à sua casa, a cada dia, realiza um ritual

inconsciente. O umbral da casa é o que separa o espaço exterior do interior. Dessa

forma, ao perder suas referências, o ser humano perde sua identificação. Os ritos,

sejam cotidianos ou não, não se realizam sem apoio na materialidade e na

espacialidade e essas formas expressam a lógica social da alteridade e do vínculo e,

ao quebrá-la, quebram-se os laços que nela se apóiam.45

Neste sentido, as referências culturais não se constituem em objetos

considerados em si mesmos, intrinsecamente valiosos. Falar em referências culturais

significa dirigir o olhar para representações identitárias simbólicas e para a construção

de sistemas que falem de um determinado contexto cultural, no sentido de

representá-lo.

Essas informações, portanto, só podem ser apreendidas a partir de

manifestações materiais – suportes – das quais fazem parte não só os sítios e

artefatos, mas o próprio ser humano, como autor das práticas, relatos e ritos, que são

marcas distintivas de um determinado grupo ou comunidade social.46

Será examinado, a título de exemplo, o aproveitamento hidrelétrico de Santo

Antonio e Jirau, o qual colocará em risco a preservação do patrimônio cultural

imaterial das populações tradicionais, que serão por ele atingidas, além de vir a afetar

a preservação do conjunto tombado da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o bem

cultural mais significativo do Estado de Rondônia.

44 VIANA, Raquel de Mattos. Grandes barragens, impactos e reparações. Um estudo de caso sobre a barragem de Itá. Dissertação apresentada ao Instituto de Pesquisa e PlanejamentomUrbano e Regional como parte dos requisitos para a obtenção dontítulo de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/RaquelDeMattosViana.pdf

45 BONNIN, Philippe. El umbral de La casa: dispositivos y rituales en los fundamentos de uma topología social. In

ESCOBAR, Juan Calatrava e ALCANTUD, José Antonio Gonzales, organizadores. La ciudad: paraíso y conflicto.

Madrid: Abada Editores, 2007, p. 17 a 42.46 LONDRES, Cecília. Referências culturais: bases para novas políticas de patrimônio. In O registro do patrimônio

imaterial – dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN,

2000, p. 59 a 69.

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Entre agosto e outubro de 2004 foram realizados estudos sobre terras e

povos indígenas da área de influência dos AHEs Santo Antônio e Jirau, com referência

explícita ao trabalho de campo em quatro terras indígenas: Karitiana, Karipuna, Lage e

Ribeirão. Na ocasião foram levantados dados secundários das Terras Indígenas Rio

Negro Ocaia, Pacaá Novas e Uru-Eu-Wau-Wau, esta última incluída parcialmente na

área de influência indireta dos empreendimentos.

A Terra Indígena Karipuna possui abundantes recursos naturais, revelando

uma ecologia local preservada. Contribuem para isso três fatores: a) a fronteira a leste

com a Resex47 do Jaci-Paraná; b) ao sul, a fronteira com o Parque Estadual do Jaci-

Paraná; e c) o seu limite oeste, que está definido como área com sérias restrições de

uso, segundo o ZEE48 de Rondônia. Não obstante, observam-se crescentes pressões

socioeconômicas que ameaçam esse equilíbrio.

Os índios Karitiana são os últimos representantes da família lingüística

Arikém, do grupo Tupi. Essa TI49 foi homologada pelo Decreto n. 93.068, de 06 de

agosto de 1986, com uma superfície de aproximadamente 90 mil hectares e perímetro

de 124 kms. A população Karitiana era de 234 pessoas, em 2003, com menos de 50

residências na TI. Os recursos naturais já se apresentavam escassos para a

reprodução do grupo. A TI Karitiana é a mais próxima da AID50 dos AHEs Jirau e Santo

Antônio, o que revela o seu maior grau de vulnerabilidade aos impactos do

empreendimento.

Segundo dados da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos,

Sociais, Culturais e Ambientais51, “há de se relevar ainda mais a condição desses

povos como povos tradicionais, que guardam uma relação própria com o rio Madeira,

com a Floresta Amazônica e cuja ocupação e manejo dos bens naturais são essenciais

para a preservação da biodiversidade da região. São populações ribeirinhas,

47 Reserva Extrativista.48 Zoneamento Ecológico Econômico.49 Passaremos, doravante, a utilizar TI, significando Terra Indígena.50 Área de Influência Direta.51 LISBOA, Marijane. Violações de direitos humanos e ambientais no Complexo Madeira. Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – DHESCA Brasil. Abril de 2008. In http://www.riomadeiravivo.org/docs/Relatorio%20Madeira.pdf. Acesso em 20 de junho de 2010.

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indígenas, extrativistas, seringueiros, pequenos agricultores, que serão atingidos no

uso dos seus territórios tradicionais pelas usinas de Santo Antônio e Jirau no Madeira,

comprometendo cultura, subsistência, rituais religiosos, práticas medicinais, entre

outros.”

Há notícias de possíveis impactos do AHE sobre a Estrada de ferro Madeira-

Mamoré, datada do final do século XIX, já que o primeiro grupo de engenheiros chegou

a Santo Antonio do Madeira em 6 de julho de 1872. Por cinco décadas, milhares de

pessoas enfrentaram as moléstias tropicais, os ataques de populações indígenas, o

medo e a morte. Estima-se em 5.000 o número de mortos durante a sua construção 52.

Quando foi finalmente concluída, a ferrovia ligava a futura Porto Velho a Guajará-Mirim,

na fronteira com a Bolívia, numa extensão de 364km.

“Grandes barragens produzem impactos negativos no patrimônio cultural

das comunidades atingidas, seja pela perda de recursos culturais tais como templos,

santuários, elementos sagrados da paisagem, artefatos e construções, seja pela

submersão e degradação dos recursos arqueológicos tais como fósseis de plantas e

animais e cemitérios.”53

Uma das maiores preocupações das comunidades atingidas, portanto, diz

respeito aos túmulos e cemitérios onde estão enterrados seus ancestrais.Desde os

primórdios da civilização, os cemitérios foram considerados lugares sagrados, por sua

significação de culto aos antepassados. Eram propriedade coletiva e inalienável das

famílias dos mortos que ali jaziam.54 Por isso, é importante destacar o

comprometimento do cemitério na AID do AHE Jirau e seu significado para as

populações locais.

Veja-se, a respeito, a seguinte matéria: “Ficou sem solução o problema de

alagamento de um trecho da área tombada da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré –

considerado o mais importante patrimônio histórico de Rondônia –, mas o Ibama

52 O Cemitério da Candelária, conhecido como Cemitério dos Heróis Esquecidos, está localizado a 2 kms do centro

de Porto Velho, próximo à linha férrea, e abriga os corpos de 1.593 trabalhadores, que vieram de 22 países de

todos os continentes, para trabalhar na construção da ferrovia e morrerem lutando contra a selva amazônica.53 VIANA, Raquel de Mattos. Op. Cit.54 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Palestra realizada em 18/6/10, no Seminário Efetividade do Direito

ao Meio Ambiente, em Goiânia, GO.

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considerou que nem este nem as demais deficiências do EIA seriam um impedimento à

sua disponibilização e à convocação das Audiências Públicas.”55

Apesar de não existir órgão de proteção do patrimônio cultural e histórico no

Estado de Rondônia, a Estrada de Ferro foi tombada integralmente pelo art. 264 da

Constituição Estadual:

“Art. 264 - Ficam tombados os sítios arqueológicos, a Estrada de Ferro

Madeira Mamoré com todo o seu acervo, o Real Forte do Príncipe da

Beira, os postos telegráficos e demais acervos da Comissão Rondon, o

local da antiga cidade de Santo Antônio do Alto Madeira, o Cemitério da

Candelária, o Cemitério dos Inocentes, o Prédio da Cooperativa dos

Seringalistas, o marco das coordenadas geográficas da cidade de Porto

Velho e outros que venham a ser definidos em lei.

Parágrafo único - As terras pertencentes à antiga Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e outras consideradas de importância histórica, revertidas ao patrimônio do Estado, não serão discriminadas, sendo nulos de pleno direito os atos de qualquer natureza que tenham por objeto o seu domínio, uma vez praticados pelo Governo do Estado, sendo seu uso disciplinado em lei.”

Entretanto, tanto o IPHAN, como a Superintendência Estadual de Turismo de

Rondônia, ao examinarem o Estudo de Impacto Ambiental, se limitaram à área

tombada, e não consideraram os outros vestígios encontrados no levantamento de

arqueologia histórica descrita no EIA. Não há avaliação, nesses estudos, dos impactos

que a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré poderá sofrer com a construção do AHE.

Aproximadamente 300 familias serão deslocadas compulsoriamente, com o

comprometimento dos núcleos urbanos de Mutum-Parana, Teotônio e Amazonas. Esse

movimento romperá laços afetivos com o local, com a modificação da paisagem e seu

significado cultural agregado. Também haverá perda dos laços afetivos entre as

famílias, dada a alteração na convivência com parentes e vizinhos.56

Poder-se-ia indagar se essas comunidades tradicionais - constituídas de

55 http://www.reporterbrasil.org.br/imprimir.php?escravo=1&id=739. Acesso em 20/6/10.56 Estes dados constam das Informações Técnicas 71/07 e 206/07 – 4ª CCR/MPF.

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ribeirinhos, povos indígenas, extrativistas, seringueiros, pequenos agricultores – são

formadoras de cultura, que possa ser considerada como bem cultural imaterial. Como

observa Edward W. Said57, “nenhuma identidade cultural aparece do nada; todas são

construídas sobre bases da experiência, da memória, da tradição (que também pode

ser construída e inventada) e uma enorme variedade de práticas e expressões

culturais, políticas e sociais.”

As ações humanas são atos que, para a produção da sobrevivência,

pressupõem saberes na elaboração de coisas, escolhas na forma de manifestá-los,

conjugando materialidades e imaterialidades que, sendo inseparáveis, forjam

identidades regionais58.

Por fim, não é possível deixar de fazer uma breve referência ao fenômeno

da globalização e à sua repercussão sobre a perda do patrimônio cultural imaterial.

As novas tecnologias de informação, a rapidez das comunicações

transmitidas através do mundo, a globalização da economia dão azo a que surja uma

cultura global, através da qual os habitantes de qualquer cidade do mundo tendem a

parecer-se cada vez mais uns com os outros, tanto no que diz respeito aos seus

costumes, quantos às suas idéias, seus gostos e seus hábitos de consumo. O

imaginário coletivo, como salienta Edgar Montiel59, “vai se articulando em função de

lugares, estéticas, programas de televisão, marcas de produtos, leituras, modos, entre

outras tantas formas simbólicas, que respondem a um denominador comum.”

O desenvolvimento de uma cultura de massas traz consigo o risco de que

os valores das minorias sejam progressivamente abandonados, até que venham a

desaparecer. As identidades se constroem ao longo da história e, como tal, são

constantemente reinventadas. O filme americano You´ve got mail60 (1998) gira em torno

da estória de uma pequena e tradicional livraria de bairro, que é obrigada a cerrar suas

57 SAID, Edward W. Cultura, Identidad y historia. In SCHRÖDER, Gerhart e BREUNINGER, Helga. Teoria de la

Cultura – un mapa de la cuestión. Buenos Aires: Fondo de la Cultura Económica de Argentina, S. A., 2005, p. 39.58 Ver a respeito MENESES, José Newton Coelho. Modos de fazer e a materialidade da cultura “imaterial”: o caso do queijo artesanal de Minas Gerais. In http://www.assis.unesp.br/cedap/patrimonio_e_memoria/patrimo-nio_e_memoria_v5.2/artigos/cultura-imaterial_queijo_minas.pdf . Acesso em 20/6/10.

59

? MONTIEL, Edgar. Op. Cit., p. 11.60 Adaptação para o cinema da peça de Miklós László (1903-1973) , The Shop Around the Corner.

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portas depois que uma mega bookstore vem instalar-se nas proximidades, oferecendo

vantagens e ofertas aos clientes que o pequeno negócio não tem condições de realizar.

Joaquim de Arruda Falcão, em entrevista concedida ao sítio Continente on

line, observa que “para que as empresas tenham escala, é necessário que os padrões

sejam mais e mais homogeneizados. Se eu consigo com que uma pessoa do

Paquistão tenha o mesmo hábito alimentar de uma pessoa do Texas, ou da Bolívia, a

minha empresa tem mais possibilidade de competitividade internacional. O grande

embate hoje em dia da globalização não é somente o controle das empresas, mas dos

hábitos do mercado, e esses hábitos são, basicamente, formados pela cultura.” (,,,) “Ao

eleger determinados tipos de bens imateriais, saberes e fazeres – o patrimônio da sua

cultura – a pessoa está dizendo para o mundo e para si própria que aquilo é importante

e que precisa ser protegido61

IV. Conclusão –

A valorização dos bens culturais decorre do fato de serem bens de interesse

público, institucionalmente destinados à fruição por parte da coletividade. Por isso,

deve-se propiciar ou melhorar a possibilidade de acesso ao seu conhecimento,

facilitando a apreensão pelo público dos valores a eles inerentes, e não o contrário.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, consagrou, como

patrimônio cultural brasileiro, os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Em seu § 4º,

dispôs que “os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da

lei.”

Patrimônio cultural e desenvolvimento não são conceitos antagônicos, nem

se pretende,neste artigo, defender a tese de que o ser humano volte a viver em

cavernas, para manter a incolumidade dos bens culturais.

61 http://www.continentemulticultural.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=578 . Acesso em

20/6/10.

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Entretanto, é inegável que, em nome do desenvolvimento, produziram-se e

continuam sendo produzidos efeitos nefastos sobre os bens culturais brasileiros, tanto

em relação aos bens materiais, móveis e móveis, quanto em relação aos chamados

bens intangíveis ou imateriais.

Ao contrário de outros bens, que são igualmente valorizados e protegidos

pela Constituição Brasileira, os bens culturais, uma vez que desapareçam, seja pela

sua destruição deliberada ou espontânea, seja pela perda dos suportes físicos que os

mantêm vivos – no caso dos bens de natureza imaterial -, seja pelo furto e tráfico para

o exterior, de onde dificilmente serão devolvidos, ou pela venda ilícita a colecionadores

– em se tratando de bens móveis -, não têm possibilidade de recuperação e perdem-se

para sempre.

Essa perda acarreta a perda da identidade e da memória dos grupos que

formaram a sociedade brasileira, seus modos de viver, de fazer, de criar, de viver e

suas formas de expressão.

Por isso, é indispensável que, em nome do desenvolvimento, não sejam

sacrificados, como têm sido muitas vezes, valores que são e foram igualmente

indispensáveis para a formação da nação brasileira.

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