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Os Colonos ESFERA CONTEMPORÂNEA | 2

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Os Colonos

ESFERA CONTEMPORÂNEA | 2

Título

Os Colonos

Autor

António Trabulo

Direitos Reservados Esfera do Caos Editores Lda e Autor

Design

DesignGlow

Impressão e Acabamento

Papelmunde SMG Lda

Depósito Legal

254291/07

ISBN

978-989-8025-20-3

1ª Edição

Fevereiro de 2007

ESFERA DO CAOS EDITORES LDA Campo Grande Apartado 52199 1721-501 Lisboa

[email protected]

www.esferadocaos.pt

António Trabulo

Os Colonos

À São AGRADECIMENTOS

À Cláudia, à Cristina, ao Fernando, ao Leston Bandeira e à Márcia, pela revisão do texto, críticas e sugestões. Ao Torrinha, pelas fotografias.

NOTA

QUANDO A FICÇÃO mergulha na realidade histórica, pode nascer uma zona de penumbra onde ambas se misturam. O autor pro-curou mantê-la estreita.

A actividade dos chefes militares referidos foi recolhida da literatura pertinente. Todos os outros personagens e aconteci-mentos pertencem ao domínio do romance, com uma excepção: a figura de D. José da Câmara Leme, fundador da Colónia, de que se narra em parte a vida real. No entanto, nunca mandou chicotear o Anjo, e o seu envolvimento com uma jovem colona aconteceu apenas na imaginação do autor.

I

ra tarde. Restavam na sala dois marinheiros ensonados. Pareciam espanhóis, mas podiam ser gregos ou bretões.

Quando as vozes se entaramelam, as línguas distinguem-se mal. Um homem ruivo empurrou a porta da tasca, entrou, acenou

ao taberneiro, ajeitou uma cadeira e poisou no chão o saco de lona.

Manuel Canejo, o dono da casa, colocou-lhe em frente um copo grosso com aguardente de cana. Pelo cheiro, via-se que era da boa. O recém-chegado sorveu um gole e pôs a bebida de lado.

Chamava-se Gonçalo Zarco, mas toda a gente o tratava por Pintarroxo. A alcunha assentava-lhe bem. O aspecto franzino, o rosto pequeno e o nariz encurvado como um bico, faziam lem-brar um pássaro. A cor do cabelo completava a caricatura.

Quando os últimos fregueses saíram, a cantarolar, o Canejo fechou a porta e apagou parte das luzes. Contra o seu costume, serviu uma cachaça para si mesmo, e sentou-se em frente do que ia embarcar.

Tinham vivido sempre junto ao cais. Na ilha da Madeira quem tem, tem. Quem não tem, faz por viver. Manuel herdou a taberna do porto e lá se foi arranjando. O pai de Gonçalo deixou--lhe apenas o gosto de sonhar.

A sonhar foi faltando às aulas, com as primeiras letras mal sabidas, e brincou à borda da água até lhe nascer o buço.

E

Foi também a sonhar que se esquivou ao trabalho e namorou uma inglesa gorda com o dobro da sua idade. Ela pagava-lhe os cigarros e a aguardente e oferecia-lhe camisas vistosas.

Na família, predominavam os olhos de um azul metálico, quase verde. Daí viera o apelido “Zarco”. A origem era fácil de traçar. Remontava a Jacobus, marinheiro holandês de cabelo cor de fogo, que se avezou ao vinho da ilha e fez um filho à Rosa, uma das putas do cais. Foi também ele quem trouxe a história das minas de prata. Haveria em Angola tesouros à flor do solo. Nem era preciso escavar para os recolher. O gentio ignorante desdenhava-os.

O holandês era bisavô do ruivo que se ia agora misturar ao grupo dos colonos. A mãe chamara-lhe Gonçalo, para aproximar o nome ao do descobridor do arquipélago.

― Então, sempre vais? ― Perguntou o Manuel, sabendo que a interrogação deixara de fazer sentido.

O Pintarroxo não respondeu. Tinham conversado muito sobre o assunto. Não vislumbrava futuro na ilha.

― E as febres? As cobras? O calor? O outro sorriu e calou. Sabia que o Canejo ia sentir a sua

falta. ― Sempre foste teimoso. Para aquele inferno só vão os degre-

dados! O dos olhos claros poisou o copo e olhou o amigo de frente. ― Sabes que o inferno é aqui! Vamos para terras altas e fres-

cas. Lá não há sezões. A água é farta e o chão rico. Semeia-se e colhe-se duas vezes ao ano.

― Tu nem te ajeitas a pegar num sacho… ― Tudo se aprende! ― Tens bom lombo, mas deste-lhe pouco uso… ― Falas do passado. Olha que começa outro dia… E esqueces

a prata… Foi a vez do Manuel se calar. Nunca acreditara na lenda e

tivera ocasiões de sobra para o dizer. Não era oportuno repetir--se.

Os relatos vinham de longe. No tempo do rei Manuel, chega-ram a Lisboa duas manilhas de prata como presente do soberano do Congo. Dizia-se que provinham de Angola. A cobiça arregalou olhos de nobres e plebeus, e a procura do metal precioso, em Angola e no Congo, prosseguiu durante décadas até que o sonho se desvaneceu e o interesse dos portugueses se voltou para bens reais: o cobre de Benguela e os escravos.

Baltazar de Castro partiu de Lisboa, em 1520, com o objec-tivo de explorar a costa angolana para sul da ilha das Cabras (ilha de Luanda). Foi capturado pelos negros. Ao ser libertado, informou que as notícias sobre a abundância do metal precioso não tinham fundamento: “as quais serras de prata eu em ses-senta anos que na dita terra estive nunca vi”.

Algum antepassado de Jacobus recuperara o sonho da prata. Chegara-lhe às mãos, ninguém sabe como, uma carta geográfica confusa com a suposta localização das minas. Identificavam-se facilmente mar e costa, e podia ler-se a inscrição “Angra dos Pretos”. Para Nascente, desenhavam-se montanhas que pare-ciam elevadas. Mais para o interior, figurava o que podia ser um planalto. A Sudeste, fora traçado o percurso de um rio sinuoso que corria para sul. Junto dele havia duas cruzes com a designa-ção “minas”. Era pouco para encontrar riqueza, mas bastante para alimentar um sonho. O Pintarroxo não estava para aí vol-tado. Recebeu o mapa das mãos de sua mãe e guardou-o no baú das coisas a esquecer.

Anos mais tarde, começaram a circular notícias sobre o envio de um grupo de colonos madeirenses para terras de África. O Zarco lembrou-se da carta. O interesse cresceu, ao identificar o porto de desembarque da colónia. Por baixo do nome “Moçâme-des” estava escrito “Angra dos Pretos”. A cobiça, velha de qua-trocentos anos, despertou e encheu-lhe a alma.

Inscreveu-se no grupo sem saber bem em que ia aquilo dar. Quando o amanuense lhe perguntou pela profissão, respondeu prontamente:

― Agricultor.

Estava agora a despedir-se do único amigo. A noite foi-se gastando. Memórias, confidências e alguns

copos, ocuparam-nos até o cansaço tomar conta de ambos. Às tantas, o Manuel deitou-se na enxerga que guardava atrás do balcão, e o Pintarroxo aninhou-se no sobrado, com o saco de viagem por travesseiro.

Não era o único lavrador falso, na leva de colonos. Chico Moniz também embarcava.

Chamavam-lhe Anjo. A tia Hermínia gostava de contar a peripécia que lhe dera a alcunha. A mãe vestira-o de anjinho na procissão do Senhor dos Milagres, no Machico. As asas brancas ficavam a matar ao menino de bochechas rosadas, cabelos loiros encaracolados e grandes olhos azuis. Choveu no dia da festa. O pequeno escorregou na lama e caiu, manchando a roupa e as asas.

― És um anjo caído. Foi assim que o diabo começou… ― Brin-cou a tia, enquanto lhe limpava os joelhos e as lágrimas.

As coisas iam mal na família. O pai deu em beber. A mãe engravidava cada dezoito meses.

Francisco era o filho mais velho. Quando fez doze anos, nin-guém se lembrou do aniversário. Nesse dia, descobriu que não reparavam nele. Pareceu-lhe que estava a mais. Na manhã seguinte, abalou, sem se despedir.

Caminhou até ao Funchal. Levava um taleigo com broa. Era Verão. Dormia à noite na berma da estrada. As estrelas pareciam sorrir-lhe lá do alto.

O pai só deu pela falta do primogénito decorridos três dias. Encolheu os ombros e encetou uma garrafa nova. Que mais podia fazer?

O Anjo cresceu na zona ribeirinha. Sobreviveu como pôde, roubando quando lhe não davam esmola. Ganhou corpo, mesmo com pouco alimento. Fez-se o mais alto dos rapazes do cais. Vencia todos, nas lutas a murro, e aprendeu que podia pôr a força a render. A dada altura, já não precisava de pedir nem de roubar: tinha quem o fizesse por si.

Namoradas, ninguém lhas conheceu. Amantes, teve algumas. Mulheres desenganadas, frágeis, sem ilusões nem amor-próprio, que ele empregava na única coisa que dava dinheiro certo no porto do Funchal: a prostituição.

Não tinha amigos nem amigas. Evitava ligar-se a alguém. Os sentimentos fragilizavam um homem e empeciam os negócios.

Entregava-se a devaneios, mas a sua bússola interior repu-diava ideias sem consistência. Acolhia apenas sonhos com alguma articulação lógica. Cuidava da imaginação como quem trata de um jardim: arrancava as ervas daninhas.

Sem família, percebeu um vazio no peito. Resolveu a questão como soube: afeiçoou-se aos cães. Só teve um de cada vez, e todos se chamaram Machico.

Coube ao Anjo um corpo de gladiador e um rosto de feições delicadas, seráficas. Dizia-se que era o rapaz mais bonito da Madeira.

Uma prima reconheceu-o na rua e falou-lhe. O Chico riu-se dela e apalpou-lhe as mamas.

De volta a casa, a rapariga contou: ― Continua a parecer um anjo, mas é um anjo mau. O Funchal é uma cidade pequena e quem se apega ao cais fá-

-la menor. O Moniz e o Zarco conheciam-se bem. Gonçalo era dois anos mais novo que o Francisco e, aos catorze, mal lhe dava pelos ombros. Ainda assim, era difícil de vergar.

Zangaram-se por causa dum jogo de cartas. A perder, o Pintarroxo acusou-o de fazer batota. Senhor da

sua força, o Anjo decretou: ― Quem fez batota, foste tu! Ele não sabia, mas também era verdade. O da cara de pássaro

afrontou-o: ― És um filho da puta! Chico Moniz, espantado com o atrevimento, esticou o braço

comprido e atingiu-lhe o nariz com as costas da mão. O puto caiu, mas levantou-se de imediato. Limpou o sangue

que lhe escorria das narinas e repetiu o insulto:

― Filho da puta! O Anjo deu-lhe dois murros na cara. O miúdo voltou a tom-

bar. Apoiou-se primeiro nos cotovelos e depois nas mãos, ergueu-se a custo, e repetiu:

― Filho da puta! O Moniz limitou-se a dar-lhe um empurrão. O orgulho do

Pintarroxo não foi suficiente para o aguentar em pé. O mais velho encolheu os ombros, como se fossem asas, e

voltou-lhe as costas. O passarito era duro. Não entendia a vida. Aprenderia, a seu tempo.

O mundo só é previsível até certo ponto. Três noites depois, ao virar uma esquina, o Anjo foi atingido com uma pedra na testa. Foi a sua vez de ir ao chão. Perdeu os sentidos durante uns segundos. Quando acordou, estava molhado e cheirava a urina. Tinham-lhe mijado em cima.

Colheu uma boa vergasta e vasculhou as ruas do cais e as redondezas. Repetiu a busca todas as tardes e todas as noites durante uma semana inteira. Nem sinal do Zarco.

Não desistiu. O sacana não podia sair da ilha. Mais tarde ou mais cedo, ia aparecer. O pássaro acabava depenado.

Perguntava pelo Pintarroxo aos pequenos rufias do cais, mas todos juravam não o ter visto.

― Se me estás a mentir, faço-te a cama… Não servia de nada. Delatar era impensável. Preferiam levar

alguns tabefes. Resolveu, um dia, ficar acordado até de manhã, e fez a ronda

costumeira à luz do sol. A dada altura, avistou o Zarco no Largo da Sé, a uns trinta metros de distância. O da cabeça de pássaro também o viu, e deitou a correr.

O Anjo era o mais rápido do cais. Poucos minutos depois, já o tinha encurralado num beco sem saída. Agarrou-o pelo pescoço.

NA PÁGINA ANTERIOR:

Era assim o porto do Funchal no final do século XIX.

― Chegou a altura de veres quem manda aqui, caganito! Quando largar a chibata vais ter de arranjar uma pele nova!

Ergueu a mão para a primeira chicotada, mas não chegou a descê-la. Sentia uma coisa dura nas costas.

― Que merda é esta? ― A merda és tu! Mexe-te, e até isso deixas de ser! Reconheceu a voz do Manuel Canejo. Nunca gostara daquele

cabrão. Era rico. Lembrou que o gajo tinha herdado um revólver. Ainda pensou em voltar-se. Era homem para os dois. Algum alarme lhe tocou na alma, dizendo que seria a última

coisa que faria na vida. Desceu o braço e a vergasta. ― Vão ter de se haver comigo, mais cedo ou mais tarde! ― Mais tarde, com certeza, respondeu-lhe a voz controlada do

Manuel. Quando se acabarem as balas… O tempo foge, e as coisas mudam. Na adolescência tudo se

altera depressa. O Pintarroxo espigou. Embora nunca chegasse a ter grande

físico, fez-se matreiro e ágil. Sendo pequeno, irmanou-se à nava-lha de ponta e mola que roubara a um marinheiro canário embria-gado.

Mudava-a rapidamente de uma mão para a outra, para que ninguém adivinhasse de que lado vinha o golpe. Treinou-se a lançá-la a uma árvore. Que diabo! Aquilo parecia bruxedo. A quatro metros de distância, espetava a lâmina onde queria.

O Anjo, quando se fez homem, aprendeu a evitar confrontos. Não era cobarde, mas verificou que os conflitos faziam perder tempo e dinheiro. Entendeu que o tamanho não era tudo. Havia outras forças no mundo. Quando a maré descia, viam-se os ratos nas pedras à beira-mar. Mordiscavam-se uns aos outros, mas raramente se feriam. Viviam e deixavam viver.

Havia galifões no bairro. Nenhum reinava durante muito tempo. O vinho, a tuberculose e a polícia deitavam-nos abaixo.

No Verão de 1880, o cais ficou vazio de chulos. Era a oportu-nidade dos mais novos. O Anjo e o Pintarroxo, arvorados em líderes, dividiram entre si a miséria do porto. Demarcaram uma linha de fronteira e respeitaram-na.

Do Largo da Sé para Leste, mandava o Pintarroxo. A Oeste, era o território do Anjo.

Raros barcos demoravam no Funchal, e poucos marinheiros buscavam diversão. Os da terra não se afreguesavam. O negócio era fraco.

Quando foi divulgado o convite para integrar a Colónia, jun-taram os nomes à lista de emigrantes. Não sabiam plantar uma couve nem enterrar uma batata grelada.

Para além de Câmara Leme, Chico Moniz era o único que embarcava com um projecto bem definido: mal chegasse, dei-xava os colonos e abria um prostíbulo. Levava duas mulheres consigo. Tinha-as inscrito no grupo para viajarem sem pagar passagem.

O Anjo deixou o terceiro Machico no cais do Funchal e cho-rou por ele as únicas lágrimas que se lembrava de ter vertido desde que fugira de casa.

II

m Angola, a presença portuguesa era antiga nas cidades costeiras, sobretudo em Luanda e Benguela, e nalgumas

regiões vizinhas. Dos grandes espaços interiores e das gentes que os habitavam, sabia-se pouco.

Em 1836, a vitória setembrista levou ao governo, entre outros, Passos Manuel e Bernardo de Sá Nogueira, visconde de Sá da Bandeira. Foi o visconde quem assinou, em Dezembro desse ano, o decreto que punha fim ao tráfico de escravos. Foi também o responsável pela elaboração de um projecto de desen-volvimento dos territórios coloniais. Pretendia-se que as coló-nias africanas abastecessem a “metrópole” com os seus produ-tos, em troca dos têxteis e dos vinhos portugueses. Cabia-lhes substituir o Brasil, que se tornara independente.

Entre 1870 e 1890, alguns países europeus deitaram olhares cobiçosos ao continente negro. Queriam garantir o fornecimento de matérias-primas e conseguir mercado para a produção indus-trial. Estas ambições iam contra os direitos que Portugal julgava seus, por prioridade nas descobertas.

Em 1885, a Conferência de Berlim instituiu o princípio da ocupação efectiva dos territórios como fonte de soberania. Tocou em Lisboa a sineta de alarme. A emigração para África ganhou prioridade.

D. José da Câmara Leme contava trinta anos, sete dos quais passados em África. Nascera no Funchal e optara pela Armada.

E

Em 1877, era aspirante de marinha. Inscreveu-se na Primeira Expedição de Obras Públicas do Ultramar, organizada pelo ministro Andrade Corvo, e tornou-se Condutor de Obras Públi-cas, com funções semelhantes às de engenheiro.

Trabalhou em Luanda e Benguela. Dirigiu, mais tarde, a montagem da ponte-cais de Moçâmedes. Decorridos poucos anos, o assoreamento já a tornara inútil. Supervisionou depois a cons-trução da estrada carreteira que nascia na Bibala, galgava a Chela pela portela da Cahunga, passava junto ao Lubango e ao Munhino Pequeno e seguia até à Huíla. A estrada não ficou lá grande coisa e a Chela continuou difícil de escalar. Os carreteiros queixaram--se e Câmara Leme foi repreendido pelo Governador-geral.

Existira uma proposta bóer melhor e mais barata, mas fora recusada. Curiosamente, D. José tinha-a defendido.

O desânimo durou pouco. O homem tinha um sonho. Desde que fizera a estrada, só pensava em povoar o Lubango com madeirenses.

Escreveu ao Governador-geral de Angola, Ferreira do Ama-ral, expondo-lhe as suas ideias. O ministro do Ultramar era quem podia decidir. D. José achava que o projecto lhe ia agra-dar. As colónias de África eram invejadas por ingleses e alemães. Ou se povoavam, ou se ficava sem elas.

Os portugueses mais à mão eram os da ilha da Madeira. A população crescera e a terra não chegava para todos. Havia muita gente disposta a partir.

Ferreira do Amaral apadrinhou o plano e apresentou-o ao governo de Lisboa.

A resposta à iniciativa do Condutor de Obras Públicas foi relativamente rápida. O decreto de Pinheiro Chagas, datado de 16 de Agosto de 1881, definiu o modo de recrutamento dos colo-nos madeirenses. Câmara Leme ficou encarregado de os acom-panhar. Foi nomeado Director da Colónia e, paralelamente, encarregado de construir dois troços de estrada para ligar o Lubango à Humpata e à carreteira que ia da Chela à Huíla.

D. José preferia contar apenas com agricultores, mas teve de aceitar o que lhe deram. O conjunto era heterogéneo. Predomi-

navam os homens, embora houvesse bastantes mulheres e crian-ças. Pouco mais de metade dos novos colonos trabalhava a terra desde sempre. Os outros eram marinheiros sem barco, pescado-res sem rede, artífices sem emprego, ladrões, umas tantas pros-titutas em idade da reforma e alguns chulos. Unia-os a pobreza e a esperança numa vida melhor.

O Director não esmoreceu. As pessoas modelam-se. Homens de mãos finas não dão bons cavadores, mas servem para a caça e para a segurança. Olhos sonhadores não se prendem à terra. Podem usar-se para explorar espaços novos. Cada um tem a sua valia, mesmo que a desconheça. A bem, ou a mal, virá ao de cima.

Câmara Leme tinha embarcado de véspera. Mal pregou olho. Sentia-se um pequeno Moisés que conduzia o seu povo à Terra Prometida. Aqueles pobres colonos madeirenses haviam de prosperar e mostrar aos pretos e aos senhores da Europa o que valiam. Já se via celebrado numa estátua equestre.

O Pintarroxo também dormiu pouco. À promessa de alvorada, entreabriu a porta da taberna e espreitou o cais. Saiu para urinar atrás da tasca e voltou a entrar. Pegou no saco, sem fazer baru-lho, e aproximou-se vagarosamente dos novos companheiros.

Os emigrantes juntavam-se em pequenos grupos com a baga-gem à mão. Alguns serviam-se dos taleigos e baús como assento. A madrugada estava fresca. Agasalhavam-se como podiam. O Zarco pensou que, dentro de um par de semanas, até daquele frio teriam saudades. As mulheres traziam lenços que lhes cobriam o cabelo e parte da cara. Os homens usavam chapéu ou boné. Alguns mostravam no rosto as dúvidas que levavam na alma.

Acenderam-se mais luzes no navio de transporte “Índia”. O cais despertou. Chegaram as autoridades. Toda a gente se deslo-cou para o local de embarque, transportando sacos e baús. Houve empurrões e trocaram-se palavras azedas.

A estrutura do porto não permitia a atracagem de navios de grande calado. O mar estava calmo. A embarcação que faria o vaivém balouçava mansamente.

Fez-se a chamada dos homens, por ordem alfabética. As famílias acompanhavam o primeiro parente nomeado. Em gru-pos de vinte, os colonos foram entrando no escaler. Ajeitavam os pertences, sentavam-se e deixavam-se conduzir a remo até à escada de portaló do “Índia”.

Quando o controlador chamou por Gonçalo Zarco, alguns miúdos riram-se. Era como se João Gonçalves Zarco, o desco-bridor da Madeira, cinco séculos depois desse a experiência por má e demandasse terras novas.

Poucos adultos sorriam. Os que conheciam o Pintarroxo, se pudessem escolher, não o teriam por companheiro. Circulavam histórias de facadas nas sombras do cais e falava-se de um mari-nheiro inglês que levara sumiço.

Quem se ria, era o destino. Os primeiros povoadores vinham fugidos da fome. As montanhas da ilha encobriam vales férteis e, em redor do porto, sempre crescia algum negócio. Os colonos deram-se bem e fizeram muitos filhos. Cultivou-se toda a terra que se deixou arrotear, mas o pão não chegava para tantas bocas. Os descendentes dos emigrantes tiveram de se fazer de novo ao mar.

Pouco antes do meio-dia tinham embarcado os 222 passagei-ros.

D. José observava-os da ponte de comando. Quase todos tinham olhos castanhos e cabelo escuro. O Anjo e o Pintarroxo eram algumas das excepções.

O navio levantou ferro. Caía uma chuva miudinha que limi-tava a visibilidade. Em terra, os familiares dos que partiam agi-tavam lenços. Respondiam-lhes os de cá, e havia lágrimas dos dois lados. Depressa deixaram de se distinguir os acenos. Minutos depois, a ilha não passava de mancha imprecisa no mar. Era um dia feio de Outubro de 1884.

BIBLIOGRAFIA

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DIAS, Gastão Sousa, A Cidade de Sá da Bandeira, Edição da Câmara Municipal, 1957.

LEBRE, António, África desconhecida, Cadernos coloniais nº 2, Editorial Cosmos, Lisboa, sem data.

LUCAS, Maria Manuela, Organização do Império in História de Portugal, Círculo de Leitores, 1993.

MORAES, J. A. da Cunha, Álbum photographico e descriptivo, África Occidental (Mossamedes, Huilla e Humpata), David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.

SÁ, Albino, A Portugalização do Sul de Angola in Boletim da Câmara Municipal de Sá da Bandeira, nº 22, Julho/Agosto/ Setembro 1968.