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“Tudo cheirava a África”: os clubes Africanos e os “maltrapilhos” no Carnaval de Salvador no fim do século XIX ao início do XX. Jéssica Santos Lopes da Silva 1 Carnaval de 1898, pelo quarto ano a “colônia africana” desfilou nos dias do reinado do momo com o Clube Carnavalesco Embaixada Africana. Naquele ano era ele o maior e mais esperado clube, os aclamados Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe não desfilaram, para o lamento de jornalistas e cronistas. A Embaixada Africana, por sua vez, levou por mais um ano as nobrezas africanas recriadas por eles para as ruas de Salvador. A Embaixada Africana não estava só, além dela mais outros três clubes que se intitulavam africanos desfilaram naquele ano, segundo os jornais do período. Eram eles: Chegada dos Africanos, Filhos da África e Pândegos da África. Como explicita Wlamyra de Albuquerque, estas foram atrações comuns dos carnavais entre os anos de 1895 e 1910, não sendo exclusivos à Bahia, no Rio de Janeiro eram muitos os grupos que de identificados como africanos, como aponta Maria Clementina P. Cunha. 2 A intenção nesse texto é entender os discursos públicos sobre esses clubes, revelados pela impressa, tomando como exemplo maior a repercussão dos desfiles do Clube Carnavalesco Embaixada Africana e da presença dos mascarados nas ruas. Podemos aqui analisar alguns debates que cercavam a tolerância e repulsa por certas manifestações negras e populares no carnaval. Buscando entender o quanto os discursos públicos tentavam dissimular sobre as intenções e relações sociais. Nossa principal fonte aqui são publicações dos jornais entre os anos de 1890 e 1910. Entre os órgãos da impressa os aqui utilizados são: o Diário de notícias, o Jornal de Notícias e o jornal chistoso A malagueta. Parte da imprensa era responsável por reverberar, saudar ou criticar aquilo que era apresentado nos desfiles carnavalescos. Entre os jornais aqui utilizados, o que mais dedicava notas e colunas para os dias do reinado de momo era o Jornal de Notícias, portanto grande parte das crônicas e dos comentários publicados no período e nesta pesquisa analisados foram retirados de suas páginas. 1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia 2 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p.198. Ver também: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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“Tudo cheirava a África”: os clubes Africanos e os “maltrapilhos” no

Carnaval de Salvador no fim do século XIX ao início do XX.

Jéssica Santos Lopes da Silva1

Carnaval de 1898, pelo quarto ano a “colônia africana” desfilou nos dias do reinado do

momo com o Clube Carnavalesco Embaixada Africana. Naquele ano era ele o maior e mais

esperado clube, os aclamados Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe não desfilaram, para o

lamento de jornalistas e cronistas. A Embaixada Africana, por sua vez, levou por mais um ano

as nobrezas africanas recriadas por eles para as ruas de Salvador.

A Embaixada Africana não estava só, além dela mais outros três clubes que se

intitulavam africanos desfilaram naquele ano, segundo os jornais do período. Eram eles:

Chegada dos Africanos, Filhos da África e Pândegos da África. Como explicita Wlamyra de

Albuquerque, estas foram atrações comuns dos carnavais entre os anos de 1895 e 1910, não

sendo exclusivos à Bahia, no Rio de Janeiro eram muitos os grupos que de identificados como

africanos, como aponta Maria Clementina P. Cunha. 2

A intenção nesse texto é entender os discursos públicos sobre esses clubes, revelados

pela impressa, tomando como exemplo maior a repercussão dos desfiles do Clube

Carnavalesco Embaixada Africana e da presença dos mascarados nas ruas. Podemos aqui

analisar alguns debates que cercavam a tolerância e repulsa por certas manifestações negras e

populares no carnaval. Buscando entender o quanto os discursos públicos tentavam dissimular

sobre as intenções e relações sociais.

Nossa principal fonte aqui são publicações dos jornais entre os anos de 1890 e 1910.

Entre os órgãos da impressa os aqui utilizados são: o Diário de notícias, o Jornal de Notícias

e o jornal chistoso A malagueta. Parte da imprensa era responsável por reverberar, saudar ou

criticar aquilo que era apresentado nos desfiles carnavalescos. Entre os jornais aqui utilizados,

o que mais dedicava notas e colunas para os dias do reinado de momo era o Jornal de

Notícias, portanto grande parte das crônicas e dos comentários publicados no período e nesta

pesquisa analisados foram retirados de suas páginas.

1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia 2 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:

Companhia das letras, 2009. p.198. Ver também: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma

história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Essas páginas eram as portas da divulgação, da glorificação e condenação das

brincadeiras momescas. O brilho que poderia ter ou faltar aos clubes era ela que destacava. E

são esses clubes que pareciam ter o maior interesse pela legitimação através da imprensa.

Através dela convocaram seus filiados, e nessas páginas se preocuparam de faz-se notar, de

anunciar os seus préstitos, seu itinerário, suas canções. Exibiram suas críticas, piadas, o luxo e

a animação, tudo o que de melhor lhes pudessem classificar. Seu maior palco eram as ruas,

mas as construções de suas melhores imagens estavam nos jornais.

Quando começava o ano as notas sobre o carnaval se intensificavam. A partir de

novembro e os primeiros meses do ano na Bahia já eram muito festivos. Entre elas a Festa do

Senhor Bonfim e Festa do Rio Vermelho, que já tomavam tons carnavalescos, com bandos

anunciadores, mascarados e lança perfumes.3. Nos jornais a chegada do carnaval era sentida

também pelos anúncios das lojas. O comércio se agitava com as chegadas de encomendas

para os festejos; as lojas de vestimentas, sapatos e adereços carnavalescos se mostravam

preparadas para receber os foliões. Enquanto isso os clubes já finalizavam seus preparos para

os desfiles, entre eles os clubes que se designavam africanos e que são, nesta primeira parte,

nossos objetos.

Albuquerque sugere uma análise dos desfiles desses clubes negros para pensar como

as memórias das áfricas exibidas nesses clubes revelam construções identitárias e

socioculturais e elevam de maneira alegórica suas zonas de circulação, normalmente

marginalizadas, em um contexto onde não eram tolerados pelas autoridades que se fizessem

batuques e troças livremente, sem nenhuma fantasia. Segundo ela, tratava-se de recriações de

uma África fragmentada, traçada a partir da experiência do cativeiro. E tendo como um

objetivo maior de sua obra os processos de racialização na sociedade pós-escravista, para

Albuquerque essas manifestações expunham principalmente as noções de raça desses grupos.4

A autora aborda como os debates entre intelectuais apontam para a ideia da existência

de áfricas aceitáveis, mesmo em um período onde as “africanidades” eram constantemente

atacadas e indesejadas. A Embaixada Africana representava uma dessas áfricas toleradas, pelo

menos por um período. As exaltações de intelectuais em relação aos desfiles desse clube

revelam uma classificação dos negros entre mais ou menos selvagem. Para Nina Rodrigues,

3 Sobre as festas religiosas e esse tempo festivo ver: COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a

Santa Bárbara, NS da Conceição e Sant'Ana em Salvador (1860-1940). Tese (Doutorado em História), UNESP,

Assis, 2004. 4 ALBUQUERQUE. Jogo da dissimulação. p. 197-210

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expoente do racismo científico, os reinos africanos teatralizados pela Embaixada, eram

aqueles dos negros mais valorosos, “pertencentes a um ramo da raça branca.” 5

É nesse contexto, das décadas posteriores à abolição e de início da República que esse

estudo se coloca. Esses processos de racialização das relações sociais também se revelam nos

dias carnavalescos. Os clubes carnavalescos brancos, fundados nas décadas de 80 do século

XIX, eram tidos como os grandes clubes, “civilizados” e modelos ideais. Enquanto os clubes

negros enfrentaram divergências de opiniões, que culminaram na proibição dos clubes de

costume africanos em 1906, pelo chefe de polícia José Maria Tourinho.6

Alguns anos antes, nos jornais, leitores manifestaram sua opinião sobre as mudanças

que passava o carnaval naqueles anos. Em carta enviada por um leitor, não identificado, ao

Jornal de Notícias, em 12 de fevereiro de 1901, este revelou sua indignação com a forma eu

tomava os dias dessa festa. Buscando a atenção da polícia para a tais atos, em trecho ele diz:

Refiro-me a grande festa do carnaval e o abuso que nela se tem introduzido com a

apresentação de máscaras malprontos, porcos e mesmo maltrapilhos, e também do modo

por que se tem africanizado, entre nós, essa grande festa de civilização.

Eu não trato aqui de clubes uniformizados e obedecendo a um ponto de vista de costumes

africanos, como Embaixada Africana, os Pândegos da África etc.; porém acho que a

autoridade deveria proibir esses batuques e candomblés que, em grande quantidade,

alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada, sem tom nem som, como

si estivéssemos na Quinta das beatas ou no Engenho Velho, assim como essa mascarada

vestida de saia e torço, entoando o tradicional samba pois que tudo isso é incompatível com

o nosso estado de civilização.7

O cronista aponta para a tolerância aos clubes uniformizados em contraposição ao

incomodo que as batucadas geravam. Mas o que de omitido está por detrás dos discursos?

Até que ponto e em quais sentidos esses os dois clubes citados – Embaixada Africana e os

Pândegos da África – eram realmente tolerados? Questões que podemos tentar elucidar, ou ao

menos refletir, através do confronto com outras fontes, além do acesso ao debate

historiográfico já realizado.

Voltando ao ano de 1898, a Embaixada Africana foi anunciada como a principal nota

do carnaval. Prenunciavam que seriam dela as honras e o os aplausos, que viria “numerosa e

chique” para eternizar as festa daquele ano. Dias depois foi publicado o programa do desfile

5 Idem. p.216-217 6 Jornal de Notícias. 07 de fevereiro de 1906. Nesta nota o Chefe de polícia recebe o agradecimento pela

proibição em coluna intitulada “O Carnaval”. 7 Jornal de Noticias. 12 de fevereiro de 1901. Ortografia atualizada.

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no Jornal de Notícias. Anunciaram que abrindo o desfile estariam dois clarins que

envergariam costumes tunisianos, diziam que assim estariam “como prova de que a

civilização não é utopia no continente negro (como propalam os maldizentes)”.8 Essa

declaração, logo de inicio do programa, claramente aparece com resposta às imagens de

barbárie e incivilidade cotidianamente associadas aos africanos e as sociedades africanas, que

além do discurso racista era também um discurso de poder, que desejava a manutenção de

uma ordem e de um projeto político embranquecido.

Portanto, mesmo sendo um clube que trazia uma recriação de África tolerada por

intelectuais como Nina Rodrigues, a Embaixada Africana não estava distante das tensões

sociais e das disputas pelo espaço festivo. Concordamos então, com a crítica que Albuquerque

faz à ideia de que, ao desfilar aos moldes dos grandes clubes brancos, os clubes negros

acomodavam-se aos moldes impostos, enquanto os batuques condenados e perseguidos

apresentavam resistência. Uma polarização que “deixa de lado o que me parece mais

interessante: os ajustes e tensões que envolviam a todos naqueles dias de incertezas.”9 Cunha

ainda atenta que a adesão as formatos difundidos pelos grandes clubes e pela elite letrada, não

se tratava de um processo mimético, onde os esses grupos eram passivos a uma política

pedagógica, que vinha em mão única. Formalizar-se foi muitas vezes maneira de se proteger

das repressões policiais que se intensificaram no fim do século XIX.10

Findado o carnaval de 1898, uma das publicações do jornal de caricaturas A

Malagueta pode nos ajudar refletir acerca das tensões que envolviam aquela sociedade e seus

os dias de momo. Na coluna carnavalesca escrita por um colunista denominado Xico Pronto,

foi feito o resumo dos préstitos daquele ano, mesmo elogiando os esforços da “afamada”

Embaixada africana, declarou que seu desfile foi pobre, e que mesmo o clube tendo oferecido

algo “digno de ver”, aquele não era tempo de achar graça de nada, dada a situação financeira

naquele ano, se referia ao aumento do câmbio.

Entre elogios e ponderações acerca dos motivos de um desanimado carnaval, e as

lástimas da falta dos grandiosos clubes Cruz Vermelha e Fantoches, o cronista também marca

a diferença da Embaixada a Africana em relação aos outros grupos africanos que o imitava.

Mas deu também nota de sua simpatia ao clube Filhos da Turquia. Em trecho dizia:

8 Jornal de Notícias. 19 de fevereiro de 1898. 9 Idem. 219 10 CUNHA. Ecos da Folia. p. 181

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Outro clube que conquistou o préstito as minhas simpatias foi o dos Filhos da Turquia.

Souberam manter-se acordes com seu título, e a assim como na Embaixada tudo cheirava a

África, nada se notava neles que não tivesse o cunho otomano.

Mas ressentiam-se da falta de pessoal (sempre a falta de pessoal!) ainda mais notável do

que nos embaixadores africanos. Foram estes clubes que , apesar de não “me encherem as

medidas”, melhor me satisfizeram.

Apareceram outros, alguns um tanto luxuosos, mas nada tendo de notável deste luxo – já

levado ao apogeu pelos Fantoches e Cruz Vermelha nos grandes carnavais passados.

Após os comentários sobre os desfiles, Xico Pranto, diante do “diluvio dos clubes

africanos”, colocou-se a lastimar acerca do “espírito da imitação” que reinava “até nas mais

insignificantes coisas”. A imitação a que ele se referia era a que se realizava entre outros

grupos africanos, que segundo ele copiavam a Embaixada Africana. Relembrou então as

primeiras presenças dos embaixadores:

Lembrei-me de que, no Carnaval de 96, quando a então original charanga do clube

Embaixada Africana tangia no interior daquele edifício os seus esquisitos instrumentos, os

foliões e mascarados punham-se a dançar um semi-camdomblesado e arrebatador maxixe;

presentemente, porém todos ouviam aquela enxurrada de tabaques com indiferenças e sem

entusiasmo...

Os imitadores conseguiram estragar a novidade apresentada pela singular Embaixada.

[...]

Estava, pois, o zabumba no auge do seu reinado, quando surgiu a Embaixada Africana com

outra inovação. Então os imitadores de todos os tempos, os incapazes de criar alguma coisa,

largaram a maceta do bombo e gritaram com toda a força dos pulmões: - Ao tabaque! – E,

si bem o disseram, melhor o executaram: atiraram-se ao tabaque com unha e dentes,

reduzindo o Carnaval ao candomblé que se viu.11

Sua comparação continuou lembrando de que tudo ficava às claras quando os clubes

se encontravam no concorrido baile do Politeama, onde notava a diferença entre o “original” e

“caprichado” Clube Embaixada Africana e os outros clubes africanos que caracterizou como

imitações “grosseiras”, associadas ao candomblé e ligadas a uma imagem selvagem

enfatizada principalmente nas danças, das quais dizia que os foliões que dançavam ao som

desses instrumentos de candomblé “mais pareciam cobras do que seres humanos”.

Apesar dos elogios ao capricho e esforços dos embaixadores, parece que para Xico

Pronto a associação do clube ao candomblé e as indesejadas “africanidades” era mais nítida,

ou menos velada, do que para o leitor do Jornal de Notícias. Para o colunista as danças dos

que se divertiam ao som dos “esquisitos instrumentos” eram algo próximo ao candomblé. As

exibições da Embaixada Africana e do outros grupos levavam às ruas seus espaços de

11 A Malagueta, em 15 de março de 1898.

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socialização e o candomblé era um deles. A própria fundação da Embaixada estava ligada a

uma importante figura de um terreiro que se situava no Engenho Velho. 12

Marcadas as diferenças entre os a Embaixada Africana e os outros grupos que Xico

Pronto aponta como imitadores, o que ambos os discursos revelam é o forte incomodo e

tensões causados por grupos negros, que se intitulavam africanos, mas não se encaixavam nos

moldes das Áfricas toleradas, ao contrário disso, aproximavam-se das “africanidades” que

eram cotidianamente coibidas. Para Cunha o aumento dos grupos carnavalescos negros e

pobres organizados em agremiações, de certa forma, era uma vitória do plano pedagógico dos

intelectuais para o carnaval. Entretanto, naquele momento do pós-abolição e recém-república,

“não se sabia muito bem quais os limites entre o aceitável e o desejável tanto no Carnaval das

ruas como no da política”. Aquela sociedade estava envolvida na configuração de novos

limites sociais, onde os significados de liberdade e a cidadania negra eram questões centrais.13

A autora ainda destaca como a circulação das manifestações negras nos dias do momo, como

os batuques, driblava o controle público e aproveitava de certa liberdade para levar às ruas

“práticas e valores que existiam semi-ocultos no cotidiano da cidade”.14

Nas páginas seguintes o jornal prosseguiu com os comentários sobre o Carnaval, desta

vez através de uma caricatura. Nela aparece um negro fantasiado com roupas momescas,

caído ao fim de uma escada, segurando um agogô e junto a ele outros instrumentos

percussivos também estavam caídos, um tambor e um agbê. À sua frente uma senhora

estendia um braço, suponho, diante de outras caricaturas do jornal, que representava a

intendência. No topo da escada o sol de 1888 e os nomes dos clubes Cruz Vermelha e

Fantoches. Abaixo estava escrito: “Depois que surgiu a original Embaixada Africana, que

trambolhão levaste, ó Carnaval das grandes eras.”15

12 Mario Carpinteiro, fundador da Embaixada Africana, segundo Edison Carneiro, ocupava importante cargo em

um terreiro de Candomblé, cita: ALBUQUERQUE. Jogo da dissimulação. p.210 – 212. 13 CUNHA. Ecos da Folia. p.155 14 Idem . 15 A Malagueta, 15 de março de 1898.

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Caricatura publicada no jornal de caricaturas A Malagueta, em 15 de março de 1898.

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Mais uma vez, mesmo diante do desfile da Embaixada africana, que segundo o a

crônica do jornal, merecia nota e congratulações, a ausência dos grandes clubes brancos no

Carnaval revelava sua decadência. Mas a nostalgia dos tempos áureos dos clubes Cruz

Vermelha e Fantoches da Euterpe não era algo incomum nas páginas dos jornais. O que aqui

nos chama a atenção é a associação ao ano da abolição, 1888. O mesmo sol aparece em outra

caricatura do jornal referente a uma cordial abolição realizada entre escravos e senhores.16Há

a necessidade de análises mais profundas, mas incialmente podemos inferir que o autor da

charge constrói uma ligação entre a abolição e a decadência do Carnaval, a qual muito pode

nos revelar sobre as relações raciais erguidas ou remontadas no pós-abolição.

Mesmo sendo um clube que desfilava uma África tolerada, e até mesmo digna de certa

admiração de intelectuais como Nina Rodrigues, ela ainda assim suscitava tensões

consequentes de um passado escravo e comum a uma sociedade em que as questões raciais e

referentes à cidadania negra estavam latentes. Assim como Albuquerque defende em sua tese,

a sociedade do fim do século XIX sofreu um processo de racialização velado, onde eram

construídos lugares sociais que eram “qualitativamente distintos”17. E o espaço festivo

também foi local de disputa e de uso da liberdade.

Os tais instrumentos “esquisitos”, novidade que para o colunista foi trazida com o

desfile da Embaixada de 1896, eram os mesmos que aparecem na caricatura. Ligados aos

proibidos batuques e candomblés esses sons levavam as ruas de Salvador o “barulho do

vatapá”. Era assim que os embaixadores anunciaram nos seus versos no segundo ano que

desfilaram, ano que Xico Pranto se referiu na lembrança:

A esse povo baiano,

Qui eu sariva cum aligria,

Pruque tudo tá contente

Cum a fessa d’esse dia,

Pide a Deu, vida saúde

Móde vê nossa fulia.

Qui pra ano nosso tá hi,

Conforme deu ajudá,

Cum prazê i aligria

Na fessa de cranavá,

Qué pá prova todo povo,

O baruio do Vatapá.

16 A Malagueta, 7 de junho de 1898. 17 ALBUQUERQUE. Op.cit. 242

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(Abedé – Ogan)18

A embaixada africana levou paras ruas de salvador a “colônia africana” da cidade,

com seus estandartes, símbolos e toda pompa de sua corte. A banda era a ultima parte do

desfile, conduzida pelo maestro Abedé, com seus “Agogôs, hilu, querebês, etc.”19

As máscaras do zé-povinho

Além dos grupos africanos, os mascarados avulsos e maltrapilhos se aprontavam para

os dias festivos, eles também preocupavam e incomodavam uma elite letrada e as autoridades

policiais. Segundo Cunha, pilhérias feitas por mascarados passaram a ser ligadas a crime e

violência, justamente em um período de intensificação da racialização das relações sociais. 20

Porém, figuras dos dias momescos que eram criminalizadas apresentavam “caráter de

liberdade de trânsito em diferentes espaços”, como aponta Eric Brasil Nepomuceno ao tratar

dos diabinhos no Carnaval carioca.21 Válido ressaltar que os autores em questão pesquisam a

cidade do Rio de Janeiro, portanto não devemos determinar que em ambas as cidades isso se

dessem das mesmas maneiras, mas talvez seja possível utilizar essa bibliografia para a análise

das dinâmicas do Carnaval de Salvador se pensarmos que havia um compartilhamentos de

ideias no período.

No caso da análise de Nepomuceno, seu argumento sobre esse “caráter liberdade de

trânsitos” é realizada ao se debruçar sobre fontes produzidas em momentos próximos à

abolição, mas ainda em um mundo escravista. O autor enxergar como os as crônicas permitem

perceber essas circulação e liberdade das personagens carnavalescos que figuravam pela

cidade nos dias de festa. Algo que se aproxima de uma de uma das crônicas aqui utilizadas,

que também deixava transparecer essas movimentações na cidade de figuras não tão desejadas

por uma elite letrada. Aqui guardada as devidas proporções, já que estamos tratando de uma

fonte produzida após abolição, ou seja, em uma sociedade que remodelava as suas relações

18 Jornal de Notícias, 22 de fevereiro de 1896. 19 Jornal de Notícias, 15 de fevereiro de 1896. 20 CUNHA. Ecos da Folia. p.26 -41. Sobre a criminalização de alguns tipos de pilherias e fantasias

carnavalescas, ver também: NEPOMUCENO, Eric Brasil. Diabos encarnados – carnaval, liberdade e

racialização (1880 – 1900). In: ABREU, Martha. PEREIRA, Matheus Serva.(orgs.) Caminhos da liberdade :

histórias da abolição e do pós-abolição no Brasil. Niterói : PPGHistória- UFF, 2011. 21 NEPOMUCENO. Op. Cit. p.457

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diante do fim da instituição escrava, mas que ainda conviviam com as memórias de uma

escravidão recente.

Em 15 de fevereiro de 1893, com o fim do carnaval, em uma coluna dedica à festa,

relatavam:

“[...] O numero de mascarados avulsos foi também maior, alguns fugindo espírito e raros

possuindo-o verdadeiramente.

Cedo principiou a afluência ás ruas. Ainda sol muito quente, já o Zé povinho saíra a

divertir-se, esquecido da carestia, esquecido das chulas e da careta. Careta porque ele mal

conhece o que é mascara.

Ele é o general, de chicote em punho; a crioula cheia de ouro batendo chinelinhas na

calçada: o caipora; o esteira; a mulher capona, etc, qualquer cousa enfim, que dê-lhe o

direito de á noite chegar em casa dizendo que divertiu-se muito, depois de ter gritado, de ter

corrido, de ter sambado, de ter visto a capital inteira.[...].”22

A animação desses personagens, nem mesmo o autor negou, declarou no texto que o

último dia de carnaval foi animado e que o “Zé povinho” sabe se divertir. Ao falar em “Zé

povinho” se referia a população em geral, dos mais pobres à classe média, tal classificação era

comumente utilizada nos periódicos23. A declaração da falta de “espírito” por figuras

indesejadas no projeto que se tinha de Carnaval civilizado também era recorrente, para ele o

que “Zé Povinho” usava nem chegava a ser máscara, “mal conhece o que é máscara”. Talvez

para o cronista estes também fossem “maltrapilhos”, como apareceu nas posturas que

regulamentava o uso das máscaras alguns anos depois.

Ainda assim, esse texto não nos deixa de revelar ricas figuras desses dias. Fantasiados

eles viam “a capital inteira”, faziam uso da “liberdade de trânsito”, que Nepomuceno fala.

Não sem disputas, o espaço festivo se tornou lugar para exercê-la. E mesmo em tom de

condenação o texto desse cronista nos dá a brecha pra entender a construção desse direito de

festejar o Deus Momo ao seu modo pela população mais pobre e negra. O que salta aos olhos

do historiador é justamente que o texto permite perceber a circulação desses grupos driblando

a intenções de coibi-los. Eles continuaram a correr e a sambar por toda a cidade, ainda assim

as tentativas de condená-los permaneceram os outros anos.

A mobilização para a organização das ruas para o carnaval começava semanas antes

do seu início. Todos os anos os jornais anunciavam as comissões carnavalescas distritais da

cidade. Nomeadas pelo chefe de segurança pública, as comissões eram encarregadas das

organizações dos festejos nos bairros. Os nomeados responsáveis por enfeitar a ruas para os 22 Jornal de Notícias, 15 de fevereiro de 1983. Ortografia atualizada. 23 LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas:

Editora da UNICAMP, 2001. p.125

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desfiles e promoviam festas nos largos com bandas e bailes. Seus trabalhos passavam pelo

crivo dos jornalistas também, que os elogiavam ou criticavam. Uma futura análise dessas

comissões podem nos ajudar a pensar em que mãos eram desejadas que estivessem os

carnavais e as tensões que envolviam esses espaços, mesmo que por muitas vezes acabassem

nos “desagradáveis” divertimentos do “zé-povo”.

No ano de 1902 o Jornal de Notícias, em notas sobre carnaval dos bairros na terça-

feira gorda, relata sobre como maxixou uma multidão no Jardim da Piedade:

Jardim da Piedade – Num dos seus elegantes pavilhões tocou uma das bandas de polícia e

Zé Povo, em falta de outros salões, maxixou em regra, até o cansaço dar-lhe com o basta.

A graça é que sem se conhecerem, a folião irmanou a todos e não houve em meio daquela

multidão uma leve desconfiança.24

A presença do povo nas ruas da Piedade durante o carnaval não eram de agrado aos

seus moradores. Em 1903, as vésperas dos festejos, o Jornal de notícias recebeu uma carta em

nome das Famílias moradoras no Portão da Piedade. Em tal, era pedida a intersecção do

jornal para a resolução de problemas que a as incomodavam. O jornal introduziu:

Recebemos a carta abaixo, que entregamos ao espírito generoso do povo e ao zelo do Sr.

Dr. João Pedro dos Santos. Há realmente mascarados, que abusam da tradicional diversão,

transformando-a, muitas vezes, em pelourinho, o que não é nem nobre nem civilizador.

Em trecho inicial da carta é dito:

Sr. Redator do Jornal de Notícias – A v., que tanto tem se esforçado para a elevação dos

créditos desta capital, por meio do conceituado Jornal de Notícias, recorremos hoje,

pedindo o seu valioso auxilio para conseguirmos do exm. Sr. Dr. João Pedro dos Santos

providencia contra os abusos que se dão em dias de Carnaval! Nada mais doloroso do que

famílias, que estão tranquilas nas janelas de suas casas, serem debicadas e até mesmo

insultadas por indivíduos mal educados. Que por estarem mascarados, se formam ousados a

esse ponto.25

As famílias incomodadas com o que descrevem como “cenas deploráveis”, ocorridas

pelo permitido uso das máscaras após as seis horas da tarde, acreditavam que o auxílio do

Jornal de Notícias traria medidas mais enérgicas por parte do chefe de segurança pública. A

imprensa é colocada aqui como parte essencial e reconhecida para a mudança desejada por

24 Jornal de Notícias. 4 de fevereiro de 1903. 25 Idem.

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uma parte da sociedade. A “ousadia” dos mascarados é colocada pelo jornal, porta-voz de

uma classe, como abuso da diversão que aproximava a festa a um pelourinho26.

A conveniência do uso da máscara no Carnaval em Salvador foi questionada por

posturas em 1905, que colocou imposição de horário, e proibiu a circulação dos que eram

considerados “maltrapilhos”.27 Segundo Fry, Carrara e Martins-Costa, essa medida teve

caráter disciplinar e individual. A máscara não era questionada como elemento carnavalesco,

mas criam-se regras de como e por quem devem ser usadas.28 Os mascarados não luxuosos,

presentes nas ruas eram ligados à desordem, entretanto, mesmo diante do perigo, da iminência

de cometer uma infração, esses sujeitos eram parte da construção desse Carnaval e suas

distintas significações.

Os sentidos que a população de libertos deram a liberdade após a emancipação nas

antigas sociedades escravista foi muitos e variados. Do mesmo modo se deram também as

maneiras de criminalizá-la. Eric Foner aponta como os conflitos gerados no pós abolição

giravam também em torno das questões sobre propriedade e trabalho. As leis e as coerções

policiais foram maneiras de redefinir as relações de classe, mantendo hierarquias e

engendrando uma nova disciplina de trabalho.29 Por isso a criação de leis que classificavam as

práticas e a circulação negra com baderna e vadiagem, dignas de repressão, eram articulações

que procuravam manter uma ordem conquistada ainda no período escravista. Assim, para as

autoridades as celebrações negras se “revertiam em uma lógica do não-trabalho, evidenciando

a sobreposição entre liberto/negro/vadio”. 30

Assim podemos encarar o carnaval como um palco da dramatização e construção das

relações sociais que nos oferece brechas para analisá-las. Quando a Embaixada Africana

anunciou que levaria as ruas uma civilização africana, contrariando a ideia de muitos que

26 Jornal de notícias. 17 de fevereiro de 1898

27 Jornal de Notícias, 24.02.1905. apud FRY, Peter. CARRARA, Sérgio. MARTINS-COSTA. Ana Luiza.

Negros e brancos no o Carnaval da Velha República. In: REIS, J. J.(org.). Escravidão e invenção da liberdade –

estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.253.

28 FRY, Peter, et al. Negros e brancos no o Carnaval da Velha República.

29 FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Brasília: Paz e Terra, 1988. p. 73-124.

Ver também: FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias e trajetórias de escravos e

libertos na Bahia, 1870-1910. Tese de doutorado. Unicamp: Campinas, 2004. Fraga trabalha em sua tese as

diversas significações de liberdade por libertos e descendentes de escravos no recôncavo baiano, vislumbrando

as construções de trajetórias individuais e familiares desses sujeitos no pós-abolição.

30 ALBUQUERQUE. O jogo da dissimulação. p.132. Ver também: FRAGA FILHO, Walter. Mendigos

moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/Salvador: Hucitec/Edufba, 1996.

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divulgavam uma África selvagem ou quando os mascarados maltrapilhos circulavam pelas

ruas com sua “ousadia”, era exposto as tensões de um debate que buscavam delimitar a ideia

de civilidade, decidadania e liberdade, mas também as resistências cotidianas às tais

tentativas.

Bibliografia

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