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WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR O cancioneiro popular brasileiro deslocando paradigmas de modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição deslocando o cancioneiro popular brasileiro OU A desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do cancioneiro OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o rádio, nós e Isaura. Rio de Janeiro 2009

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WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR

O cancioneiro popular brasileiro deslocando paradigmas de modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição deslocando o cancioneiro popular brasileiro OU A desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do cancioneiro OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o rádio, nós e Isaura.

Rio de Janeiro 2009

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WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR

O cancioneiro popular brasileiro deslocando paradigmas de modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição deslocando o cancioneiro popular brasileiro OU A desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do cancioneiro OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o rádio, nós e Isaura.

Tese apresentada ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.

Orientação: Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

Rio de Janeiro 2009

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WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR

O cancioneiro popular brasileiro deslocando paradigmas de modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição deslocando o cancioneiro popular brasileiro OU A desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do cancioneiro OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o rádio, nós e Isaura.

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e

Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e

Regional.

Aprovada por:

...............................................................................................................................

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo (IPPUR/UFRJ/Orientador) Doutor em Engenharia de Produção, pela UFRJ

............................................................................................................................... Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ) Doutora em Ciências Humanas, pela USP

...............................................................................................................................

Maria Angélica da Silva (UFAL) Doutora em História, pela UFF

...............................................................................................................................

Luís Antônio Batista (UFF) Doutor em Psicologia, pela UFF

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Resumo: Trata-se de um percurso, não se trata de um circuito, apesar de também operarmos por voltas, produzindo refrões, ritornelos. Trata-se de um jogo, não se trata de análise/interpretação do cancioneiro popular brasileiro, apesar de produzirmos uma miríade de comentários que especificam relações político-sociais entre canções e contextos historicamente propostos. Trata-se de ouvir/falar por alegorias do cancioneiro popular brasileiro, não se trata de um compêndio de autores e atores, apesar deles estarem em grande número presentes em citações e contextos. Trata-se de uma tentativa de re-qualificar a instância política, as possibilidades de participação na palavra e da palavra através da desconstrução de matrizes que prevalecem como paradigmas de percepção de sujeitos, ações e objetos. Não se trata de uma re-edição da dialética, apesar de não nos propormos à pretensão de desqualificar as instâncias do pensamento histórico-materialista, mas deslocá-las, até onde elas quase já não são, mas, ainda estão presentes, fio de inspiração, palavra que não se quer subverter, sonho franciscano em que homens e bichos na condição da delicadeza e não da cordialidade prometem não mais se destratar.

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Abstract: This is a journey, not a circuit, while also operating by turns, producing refrain, “ritornellos”. This is a game, it is not an analysis / interpretation of Brazilian popular songs, despite producing a myriad of comments that specify relationships between socio-political songs and historical contexts proposed. It regards listening / speaking allegories of popular Brazilian songs, this is not a compendium of authors and actors, despite their being in many contexts and in citations. This is an attempt to re-qualify a political body, the possibilities of participation in the word and the word through the deconstruction of matrices as prevailing paradigms of perception of subjects, actions and objects. This is not a re-edition of the dialectic, though not in the intention of proposing to disqualify the bodies of the historical-materialist thought, but move them to where they almost “are not”, but are still present, string-inspired word that does not want to subvert, Franciscan dream in which men and animals on the condition of delicacy promise never to mistreat each other.

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Sumário:

INTRODUÇÃO_________________________________________________7 LADO A_______________________________________________________10 INTERMEZZO_________________________________________________77 LADO B_______________________________________________________84 CONFETES E CONFLITOS DE UMA BELA ÉPOCA______________200 A INVENÇÃO E O CANSAÇO DO JOGO________________________219 A SAIDEIRA E A CONTA______________________________________224 RESSACA____________________________________________________226 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________________231

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Introdução: Trata-se menos de uma introdução do que de um tutorial que especifica certas regras de como

melhor aproveitar o seu jogo. Sim, trata-se de um jogo que é contido em/ao conter um

percurso rizomático por entre canções, papéis, sons, falas e subjéteis1 – nem, nem e, e, sujeito,

objeto, alegoria, suporte. Conceitos e não conceitos emergem e são abandonados. Outras

vezes emergem, mas pacientemente aguardam para serem tratados/analisados no momento em

que eu, nós, subjétil venham a considerar mais oportuno. Ou emergem já analisados e

desconstruídos, simultaneamente ao andar do papel e do som, leitura e escuta. Por isso,

orienta-se o jogador a não criar sérias expectativas a respeito do cumprimento de certas

formalidades acadêmicas e didáticas (já me desculpando com os acadêmicos didatas) que

dizem respeito ao circuito, apresentação, desenvolvimento e conclusão, nem no que configura

o corpus como um “não-todo”, nem no que diz respeito às categorias, idéias e formas que

comparecem ao jogo. Inclusive, há um descumprimento do que é dito aqui. Nem mesmo a

forma anacoluta, ruptura como forma, como padrão, nem mesmo ela é respeitada, mas, sim,

rearticulada, podendo até mesmo operar/dizer pela/na linearidade histórica e pedagógica, sem

o mínimo respeito por ambas, podendo a qualquer momento sofrer um golpe, uma traição do

subjétil e estancar o movimento. Porém, apelando à paciência do jogador, especifica-se que

estancar ou desenvolver linearmente, faz parte do mesmo movimento. O mesmo movimento

que articula e rompe. Articular/romper não se especificam como opostos, mas

complementares. Outra dica seria parar a leitura/escuta/escrita/fala nos momentos de ruptura

para imersão no corpus, a exemplo do que o cineasta Wenders experimentava na infância

assistindo nos cinemas da Berlin do pós-guerra os bangue-bangues de John Ford. Quando o

plano abria, a trilha sonora ganhava força e o Mojave estendia-se soberano, como

imagem/som livre de atores, diálogos, perseguições e tiros, os olhos do pequeno Wenders

sentiam-se convidados a entrar na tela e o pensamento a conspirar no respiro da narrativa

clássica perguntando-se, que deserto? Que Mojave? Ou talvez, se possa descumprir essa dica

e interromper o fluxo, criando seu próprio respiro que se impõe não como concessão à

1 Faremos menção e uso ao indecidível derridiano no decorrer desse corpus. Por hora vale destacar que o subjétil funciona como efeito de brizura (outro indecidível) que articula e separa sujeito de objeto em um suporte para além dos termos dialéticos, por isso mesmo, não se trata de um simples suporte. Mas, de um papel que fala e interfere no texto e que pode tomar o lugar do sujeito ou do objeto, mas, não é nem um nem outro. Considera-se ainda a possibilidade do subjétil trair, faltar à promessa, renegar o projeto, subtrair-se ao controle e revelar outra coisa, uma “verdade traída” que ele traduz e arrasta para a luz do dia, justo quando se tentava escondê-la (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, pp.23,24).

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narrativa, mas como reação ao texto – traição da traição do subjétil. E digo dessas

possibilidades porque se constata a presença de um labirinto que, não vamos entrar de fato,

mas, deixá-lo operar, como tal, ao redor e entre e adiante. Também não se tratam de brumas

que ao se dissiparem nos revelam as paredes e percursos. Paredes, corredores e passagens se

formam simultaneamente à leitura/escrita/fala/escuta do jogo, como ações que reinventam o

jogo que as erguem à medida que vai sendo jogado. Por fim, não se trata de uma dialética

entre pólos, mas da desconstrução da lógica, do logos, que os permitiu especificar-se

enquanto tais2. Não se trata de um jogo de anulação estético/ético, moderno/pós-moderno,

dominador/dominado, mas da rearticulação dessas palavras, termos, conceitos, lógicas sob

outra condição que apela à participação, à democratização do uso do pensamento expresso

como forma, como jogo político, atento às dominações que palavras e nomes operam, mesmo

na melhor das intenções, muitas vezes ao preterir o labirinto à linha reta, intencionalmente ou

não. O jogo, em termos gerais, diria então respeito a operar revoluções, para muito além do

materialismo-histórico, no entanto e, à primeira vista, paradoxalmente, sem desqualificá-lo

como prática e método de percepção e transformação das condições materiais que se nos

apresentam aqui e agora como origem inventada. Por outro lado, o papel nos desafiaria

perguntando se constatar essas condições e o exercício sobre elas já seria suficiente. Entre o

Lado A e o Lado B apresenta-se em termos gerais um percurso que aos poucos parece aceitar

a subtituição, assim como o amálgama, do método de inspiração bakhtiniana aos efeitos de

desconstrução que Deleuze e Derrida propõem articulando questões conceituais e

fenomenológicas, a ponto de re-qualificar inclusive as diferenças conceito/fenômeno ou

teoria/prática, ou a oposição substituir/plasmar, entre muitas outras diferenças e oposições que

se apresentarão ao longo do jogo. Rizoma ou khôra, no lugar de contexto, especificam-se

como formas de operação de espaço/tempo, propondo-se como movimento e efeito de

deslocamento entre as categorias de sujeito, identidade, fronteira, modernidade e tradição.

Entre o Lado A e o Lado B não se passa exatamente um abandono, substituição de um método

por outro, mas um efeito de contaminação do mesmo método que se repercute como um

movimento do corpus, do pensamento que eu que já seríamos ao menos dois se não três

pretendíamos e fomos re-pretendendo efetuar. Esse movimento não vai de um ponto A para

um ponto B, mas, se expressa na forma, ou não-forma, de um feixe, rizoma, que possibilita

entrar inclusive pelo Lado B, se a curiosidade for maior que a curiosidade do gato.

2 Por isso o neologismo “desurbaRuralidade” do título não se acomoda ao termo Rururbano de Gilberto Freyre, nem se especifica no debate entre Brasil urbano e agrícola como proposto por Milton Santos.

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Interrompem-se as explicações. Joguemo-lo ou não, afinal, pode-se sempre desistir, avançar,

retrucar, estancar, retroceder, pular partes, inclusive a partir daqui.

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LADO A

Alguns problemas se nos apresentariam de cara. Problemas que possivelmente não

resultariam em solução ao término desta apreensão. Mas, nos consideraremos parcialmente

satisfeitos em identificá-los como questões metodológicas que venham a contribuir aos

estudos sociais relacionados à música no campo específico da etnomusicologia

contemporânea3, com foco nas interpretações de discursos expressos na interseção dos

campos da política, no sentido amplo, e do cancioneiro popular como foco investigativo.

O primeiro problema, de ordem mais objetiva, diria respeito a como trabalhar, expor e

conceituar o objeto de investigação empírica, o dialogismo expresso nos discursos do

cancioneiro popular brasileiro, em seu caráter prosódico, ou para além dele, contemplando

manifestações sociais relativas ao ethos e ao contexto da canção. Isto é, a canção deveria ser

analisada discursivamente considerando, não só os elementos musicais que a compõem, o que

diz respeito à prosódia, relação música e letra, mas também seu ethos: os gestos, os

movimentos dos corpos, a performance e os ritos que se conjugam com e na canção,

constituindo um sobre-corpo que não se encerra nos limites prosódicos, nem no registro ou

leitura da música em si.

Caracterizada pela criação espontânea, pela potência de todos os sons na tensão de um fluxo constantemente renovado, a música seria destinada a ser sentida – vivida na sua experiência inefável – e não a ser pensada ou analisada. Seu sentido residiria menos nos próprios sons que nos estados afetivos suscitados pela audição (Queiroz, p. 25, 2006).

Sobre essa questão, podemos adiantar como premissa de leitura e atuação no jogo uma

sugestão importante que talvez devesse estar na introdução, no tutorial, mas, como o

problema foi destacado agora, entendemos que a sugestão deve responder a essa questão. A

dica é: o jogo deve ser operado também pela escuta. Apenas ler os versos das canções não

permitirá ordenar percepções para então fazê-las mover. Por isso as canções foram

disponibilizadas para escuta e desde já apelamos para que sejam ouvidas ou simultaneamente 3 A etnomusicologia no Brasil, como discurso que se inscreve no campo acadêmico da música legitimando-se com o poder de dizer o que é a música folclórica e popular, foi revisada no decorrer do século XX, obedecendo a um percurso que se desdobra desde o naturalismo determinista de olhar eurocentrado do inicio do século, deixando-se contaminar pelas propostas do modernismo de 20, pela sociologia da geração de 30, avançando ainda por uma leitura com base no materialismo histórico e na percepção de classes sociais. O que denomino de etnomusicologia contemporânea seria algo que procura romper o axioma que estabelece a percepção do objeto de investigação empírica como sendo a expressão do “outro” completamente diferente de mim. Um “outro”, cujo ethos em nenhuma medida se aproxima do ethos daquele que pergunta. Para essa etnomusicologia contemporânea a idéia de participação entre discursos da academia e das comunidades, ethos, culturas, atenta às pré-construções hierárquicas que um lado ou outro sempre podem incorrer, parece nortear as pesquisas no campo (Queiroz, Tugny, 2006).

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a leitura ou na forma que se achar conveniente. Aliás, essa decisão já especifica uma forma de

atuação no jogo. A partir do Lado B, retornaremos de forma mais detalhada a essa questão,

por hora, deixamos esse aviso, sugestão, indicação de como proceder/operar o jogo.

Um segundo problema apontaria para qual recorte analítico discursivo deveria ser

considerado, visto que, abarcar o corpo discursivo de todo o cancioneiro popular brasileiro

que, sob minha interpretação, teria por tema questões relativas à urbanidade, modernidade,

ruralidade e tradição operando também sobre o signo da Identidade Nacional, entre o início e

meado do século XX, diria respeito a um universo imensurável e, por isso, fora de questão.

Por outro lado eleger os discursos que mais se destacaram a partir dos meios hegemônicos de

divulgação ou de comunicação de massa equivaleria a ignorar os discursos que

correspondessem aos micro-poderes, às micro-físicas exercendo forças e produzindo efeitos

subversivos a certa ordem hegemônica de caráter comunicativo, difusor (imprensa, rádio,

televisão), seja do próprio campo da musica popular, seja pertencente ao contexto (de modo

mais geral, o corpus discursivo localizado nos campos da política, imprensa, academia, lei e

polícia que se transforma no período especificado ao mesmo tempo em que interfere no

dialogismo efetivo relativo aos discursos dos sujeitos discursivos das canções).

Terceiro problema: considerando, metodologicamente, que os sujeitos discursivos em

construção e deslizamento4 não se enquadram num esquema semiótico, fixo, estático, seria

necessário propor que ao mesmo tempo em que se aplica o método de inspiração bakhtiniana

de abordagem das relações dialógicas entre os sujeitos discursivos, já se faria necessário ir

desconstruindo, rasurando, esse mesmo método, considerando que os discursos deslizam

significados e sentidos sob a ótica desconstrutivista derridiana.

Tomemos como certas premissas metodológicas, o modo de inscrever, recortar e interpretar o

cancioneiro no discurso-tese. (1) Primeira premissa: não especificamos canção de nenhuma

região ou cidade do Brasil, tendo em vista que o cancioneiro recortado é aquele que lida com

categorias de âmbito nacional, que rasuram o signo Identidade Nacional pelos signos

modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição. Considerando o discurso como da ordem do

conflito interno da nação, não faria sentido privilegiar ou ignorar enunciados ou discursos

porque se originam daqui ou de acolá (mesmo porque o conceito de origem/autoria será

relativizado pela mesma fundamentação epistemológica que nos serve de alicerce). (2)

4 Os conceitos de Sujeito Discursivo, dialogismo, o próprio método referente à hermenêutica dialógica (construção) e a sua rasura (desconstrução, marca, sulco, deslizamento) serão explicitados e aplicados no decorrer dessa apresentação.

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Segunda premissa: o recorte do cancioneiro especificado é caracterizado no plano dos

significados, com caráter de enunciado, pela propriedade de inscrever aspectos da

modernidade, ruralidade, urbanidade e tradição e, no plano dos sentidos, com caráter de

discurso, pelas relações dialógicas que produz com alteres de dentro do campo da música sob

a interferência dos contextos abordados (Correndo o risco de produzir um caos na estrutura

dessa apresentação e, conseqüentemente, dificultando a interpretação do leitor, faz-se

necessário, porém, já especificar que essa definição de contexto, assim como a de campo, será

desconstruída no decorrer do discurso-tese, uma vez que ambas determinam fronteira rígida e

hermética entre o dentro e o fora, entre o campo e o contexto. Duas perguntas nos caberiam:

no recorte temporal já localizado, seria possível estar fora do cancioneiro? Seria possível ao

cancioneiro não dialogizar efetivamente com os discursos enunciados por vozes localizadas

no Estado, relativas ao poder político, à ordem, ou localizadas nos meios de comunicação de

massa, ou mesmo na Academia? E vice-versa. Seria possível aos discursos enumerados não

serem contaminados pelos discursos do cancioneiro popular? Por hora, retornemos à

hermenêutica dialógica).

Objetivamente, aquilo que denominamos como canção especifica enunciado e o que

denominamos como alegoria5, correspondente aos sujeitos discursivos eleitos (SD de dentro

do campo do cancioneiro), especifica discurso. De posse dessa informação cabe esclarecer

que não elegemos o cancioneiro de nenhum compositor, nem consta no corpo da tese, salvo

em notas, a autoria das canções ou grupos de canções, visto que canções ou conjunto de

canções devem ser interpretados nos moldes bakhtinianos como enunciados ou discursos no

mundo, como objetos significantes que passam a existir independentemente de sua origem

espacial, temporal ou mesmo autoral. Em suma, não analisaremos o cancioneiro de Lupcínio,

de Caymmi, de Gonzaga ou Noel Rosa, mas sim, interpretaremos enunciados-canções como

falas singulares que compõem determinado discurso no dialogismo pretendido. Ainda assim,

considera-se tais informações relativas a uma origem inventada, autoria, lugar e época, como

5 O termo alegoria é adotado com base no conceito desenvolvido por Walter Benjamin em Origem do drama barroco alemão como construção que rompe com a linearidade histórica, propondo a desmistificação do sujeito histórico e a desvelação das relações de dominação intrínsecas ao discurso historiográfico. “A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia ainda afirmar uma identidade coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que não são mais os depositários da estabilidade, mas se decompõem em fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas”. (GAGNEBIN, p.39, 2004) Sobre o isso, diria o próprio Benjamin que è sobre a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo (BENJAMIN, Walter, 1984).

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também constituintes de nossas interpretações, porém, como dito, sem especificar

marca/caráter original, único, unívoco ou fixo.

Com o propósito de começar a esquematizar como se dará a rasura derridiana na

hermenêutica dialógica, evitando assim excessos desnecessários de abstração, propomos focar

nossas primeiras atenções sobre as justificativas das escolhas dos sujeitos discursivos

propostos na tese e que objetivam as Posições (ou Estado)6 de Sujeitos relativas à

hermenêutica dialógica. Propomos no que tange a apresentação da tese, explicar o movimento

metodológico aplicando-o sobre o objeto de pesquisa, o que significa trabalhar a metodologia

de forma simultânea à construção dos sujeitos discursivos. Consideremos a principio que os

sujeitos discursivos estabelecem-se e emergem como tais de nosso campo investigativo

através de relações dialógicas entre si, sujeitos discursivos de dentro do campo da música sob

a interferência do contexto.

Mas, afinal o que exatamente se quer especificar com dialogizar ou com dialogismo?

Para efeito de aplicação nessa apresentação, o discurso dialógico diz respeito à forma como a

categoria discurso opera na tese, tomando por base a hermenêutica dialógica.

Bakhtin desenvolve (...) um novo campo de estudos que designa então como metalingüística, cujo foco central é o processo que denomina de relações dialógicas. (...) O dialogismo bakhtiniano tem por fundamento primeiro a consideração de que toda e qualquer idéia se constitui, objetivada por intermédio de código lingüístico, como um discurso, posto que destinado a outrem (ARAUJO et. al, 2007, p.3). A orientação primordial a outro sujeito discursivo é o que confere, a cada discurso, o caráter dialógico que nenhuma orientação a um objeto pode dar. Por mais que um enunciado se concentre em um objeto, não pode deixar de ser, essencialmente, uma resposta ao já dito acerca do mesmo objeto (...) Assim sendo, todo enunciado deve ser tomado como um elo em uma complexa trama de enunciados componentes da cadeia de comunicação discursiva em uma esfera determinada (idem, p. 4). O dialogismo (...) diz então das diversas relações de alteridade existentes em qualquer discurso. O destinatário, mais do que uma abstrata meta do enunciado, é, também, visto como autor deste, na medida em que é em função dele (...) que se define em parte o que será dito efetivamente (ibidem, p.5).

Seguindo na compreensão da hermenêutica dialógica, apresentaremos agora um percurso que

vai da explicitação de significado e sentido em Bakhtin à idéia de interpretação como

tradução rasurada em Derrida.

6 O termo “posição” por sugerir taxonomia e fixação necessitaria ser revisto de maneira a adequar-se às rasuras que os sujeitos discursivos sofrerão alhures. Por isso a adoção do termo Estado de Sujeito como algo que se transforma no tempo e não como algo fixado.

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Segundo Bakhtin, o significado diz respeito ao ato compreensivo expresso no domínio interno

do discurso. A compreensão do significado se dá através do isolamento das unidades

significantes, analisadas através das normas semânticas e sintáticas de um idioma. Por

exemplo: na expressão “Amélia que era mulher de verdade”, a compreensão semântica diz da

compreensão do significado isolado de: “Amélia”, “era”, “mulher” e “verdade”. A

compreensão sintática faz a junção das quatro palavras numa única oração. O significado do

discurso é dado pela articulação destas unidades. Nesse domínio interno, pode-se entender

ainda um discurso contendo vários discursos, como, por exemplo, um parágrafo, uma seção

de um artigo etc... Desta forma, essa possibilidade de um discurso contendo vários discursos

instituiria um dialogismo interno em um discurso composto assim por multisignificados.

No momento em que o discurso é considerado em uma externalidade, relação com alteres e

contexto do ponto de vista da hermenêutica dialógica, o processo de significação se fecharia

na idéia de sentido que completa a relação dialógica. O sentido é constituído sempre como

sentido de um discurso para outro discurso. É esse sentido, que, segundo Bakhtin, o sujeito

dialógico prevê, como um juízo, julgamento, ao emitir o discurso e imaginar/adiantar a

resposta ao seu altere.

Porém, já nos aproximando da rasura da hermenêutica dialógica e por isso da idéia de

interpretação, antes mesmo de problematizar a construção do sentido, referente à

externalidade do discurso, não nos parece possível falar de multisignificados internos ao

discurso sem que o intérprete esteja implicado. Uma “análise de discurso” pressupondo a

possibilidade de um sujeito do conhecimento distanciado e um objeto como unidade fechada

parece dificultada pela própria abertura elaborada por Bakhtin de que as palavras adquirem

expressividade transcendente em cada relação dialógica. Dessa forma, uma análise que

operasse a busca de significados internamente ao discurso apresentaria problemas, pois

buscaria a unidade fechada de um discurso (ainda que múltipla) como algo existente

independentemente do intérprete, sujeito discursivo eu. A minha “Amélia que era mulher de

verdade” pode ser outra, diferente da de outros, diferentes entre si. Ao analisar a relação

dialógica que constituo nessa tese apareço inescapavelmente como sujeito discursivo cujo

discurso observa relação dialógica com essa relação dialógica. Procedo assim a interpretações

supondo um intérprete implicado ativamente. Dessa forma, sentimos a necessidade de operar

uma transferência que abre o circulo hermenêutico dialógico de forma radical: a compreensão

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do significado, não mais nos termos bakhtinianos, mas, como um querer-dizer7 para o

intérprete.

Mais ainda, torna-se necessário marcar como operar esta interpretação. Uma interpretação é

sempre uma tradução, uma relação dialógica discurso-intérprete, marcada por um

anacronismo “estrutural” que, antes de ser visto como uma falha de método, um não-controle

do analista, deve ser pensado como parte da própria ação de traduzir. Traduzir um discurso,

fazer emergir dele um significado, seria, desta forma muito mais tratar de uma textura trópica,

de uma rede de interpretações possíveis, do que da precisão da análise de uma estrutura

fechada onde unidades significantes se revelariam em precisão como “si mesmas”: todas as

Amélias, a Amélia.

Ao me colocar, desta forma como “tradutor” dos significados-canções, estaria me

introduzindo na relação dialógica que vamos propor, operando uma dobra da interpretação

sobre mim mesmo – não um “eu” coeso e fechado, nem psicologizado, mas sulcado8 por

alteres e contextos. Esta transferência traz uma implicação para a compreensão dos

significados: se este, através dessa nossa rasura, diz respeito à relação discurso-sulcamentos-

álteres-intérprete-sulcamentos-álteres-tradução-..., ele nunca se fecha, está sempre em

possível movimento. Trata-se assim, não mais de significados ou multisignificados, mas de

interpretações, como cadeia aberta de possibilidades. As possibilidades dialógicas entre os

meus discursos, sulcados por meus outros “eus” e alteres, e dos sujeitos discursivos eleitos

por mim serão apresentadas e aprofundadas em momento posterior dessa apresentação. Por

hora, fica apenas apontada a minha participação como sujeito dialógico que produz

dialogismo no dialogismo que se manifesta nos discursos dos sujeitos discursivos por mim

eleitos como alegorias.

Essas rasuras produzidas na hermenêutica dialógica marcam as limitações desse método para

a interpretação de discursos ao mesmo tempo em que aludem às possíveis saídas aos limites

que vão sendo apresentados. A idéia é manter esse diálogo de apresentação e rasura da

hermenêutica dialógica simultaneamente a apresentação da base empírica que, por sua vez,

7 O querer-dizer para a rasura derridiana configura-se uma metafísica que sofrerá processo de desconstrução em dado momento no desenvolvimento dessa apresentação. 8 O termo sulcar ou sulcamento, da desconstrução derridiana, será devidamente explicitado para o leitor no momento em que operarmos a rasura da metodologia na especificidade de cada SD eleito do campo do cancioneiro. Por hora, pode-se pensar a rasura como uma marca uma interferência que um discurso provoca em outro, no caso específico, a marca que a minha interpretação, sulcada por meus alteres e contextos, deixa no discurso dos SD eleitos.

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também vai sendo rasurada ao ser submetida à passagem, que nunca se completa da

hermenêutica dialógica para a sua rasura com base na desconstrução derridiana.

De forma embrionária, tomei por objeto investigativo o cancioneiro popular brasileiro que

segundo minha interpretação tratava de questões relativas aos movimentos de significação que

os termos urbanidade, modernidade, ruralidade e tradição especificando signos de Identidade

Nacional sofreram segundo os dialogismos que sujeitos discursivos, de dentro e de fora do

campo da música, propuseram ao país na primeira metade do século XX. A partir do

levantamento das fontes primárias me foi possível eleger os discursos do cancioneiro popular

dialogizando entre si sob a interferência do contexto que propunha construções e formulações

relativas às bases identitárias do país, onde construções de urbano, moderno e novas

expressões de poder digladiavam-se com outras relativas à tradição e a manutenção de

modelos de dominação a muito estabelecidos. Em resumo, esse cancioneiro se constitui de

forma dialógica, isto é, através de discursos internos que dialogizam entre si sob a marcação

cerrada do contexto (discursos externos ao campo da música que também fazem referência às

mesmas questões temáticas: identidade, ruralidade, tradição, urbanidade e modernidade). A

construção discursiva do cancioneiro pode se dar tanto através de uma postura de adesão aos

discursos hegemônicos do poder quanto através de uma postura de transgressão a esses

mesmos discursos. O recorte dialógico-discursivo referente aos discursos que aderem e aos

que transgridem, dentro do campo da música popular, considerando, claro, o repertório

discursivo localizado como contexto, (discursos de ordem política, intelectual, acadêmica,

jornalística, literária, etc. expressando-se fora do campo da música, mas, interferindo no

dialogismo interno do cancioneiro) constitui o que tomaremos como campo investigativo. É

importante acrescentar que, os discursos localizados como contexto, isto é, fora do campo do

cancioneiro popular, serão considerados à medida que exercerem algum tipo de poder, relação

de dominação, sobre os discursos internos ao campo do cancioneiro popular. Por isso, serão

eleitos no contexto apenas os discursos localizados socialmente acima da fala do cancioneiro

popular. Estes seriam, grosso modo, os discursos políticos, literários, acadêmicos,

intelectuais, científicos, legais e midiáticos.

É importante atentar para o objeto investigado: o dialogismo produzido pelos discursos do

cancioneiro popular que trata da identidade, ruralidade, tradição, urbanidade e modernidade,

como algo que se constitui, não como representação9, mas, como campo reflexivo o que

9 Representação como algo que representaria um real dado, oposto e completamente outro em relação dicotômica com o que dele se diz, representação, mas, não se trata disso. Não se trata disso,

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significa entender esse campo do cancioneiro popular brasileiro como domínio de construção

de significações, signos. Os discursos que o campo reflexivo em questão compreende devem

ser entendidos como construções de signos.

Pode-se dizer que, para Bakhtin, compreender um discurso é compreender seu signo, ainda

que ele não use essa formulação. Entendendo signo como um constructo

em ruptura com as teorias da representação e com a lingüística tradicional, deriva da concepção de que a linguagem diz do mundo (em qualquer de suas dimensões: material, ideológica e axiológica) instituindo, de modo necessariamente associado, designações e atributos que podem ser considerados como constituintes de um signo. O signo assim suposto constitui-se de quatro domínios imbricados e inseparáveis, conformando totalidade: o dos objetos apontados no mundo; o dos significantes (...) que denotam os objetos e, ao mesmo tempo, os conotam como algo em si; o dos significados (...) que conotam ou atribuem significação aos significantes em contexto discursivo fechado (...) e o dos sentidos que concerne à conotação de significantes e seus respectivos significados enquanto assentados relacionalmente no mundo (...) (ARAUJO et. al, 2007, p.6).

Chamar o cancioneiro de campo reflexivo sugere pensá-lo como instância que constitui

objetos ao mesmo tempo em que sugere formas de ação e produz juízos. Essas inscrições são

contaminadas por, ao mesmo tempo em que contaminam inscrições de fora do campo do

cancioneiro popular. Por isso, o sentido dessa construção deve considerar além do dialogismo

expresso entre os discursos dos sujeitos discursivos dentro do campo do cancioneiro popular,

a interferência que os discursos desses mesmos sujeitos sofrem dos discursos localizados no

contexto. Enfim, devemos considerar como contexto as construções discursivas que são

produzidas fora do campo de investigação, no caso, o campo do cancioneiro popular

uma vez que não se considera, metodologicamente, o campo pesquisado como que cindido na forma dicotomizada de um real dado e concreto que se contrasta com a representação ou o discurso que se escreve como algo que fala desse real que existiria à priori. Mais que isso, não se trata nem de simples nomeação direta de referentes, nem de representação nominalista (nos termos da episteme clássica), nem de significado nos termos da lingüística tradicional. Mas, sim, construção reflexiva e dialógica entre os discursos da música pautados pelos temas da urbanidade, da modernidade, da tradição e da identidade e o discurso de seus alteres. Segundo a terminologia arqueológica de Foucault, não seria representação nos termos da episteme da tradição que separa o real dado da representação que tem o caráter de revelar o mundo, revelar o real; não se trataria também de representação nos termos da episteme clássica onde tudo é representação e tudo remete à idéia de representação. Sobre essa forma de interpretação de mundo, Foucault afirma que “Todo o sistema clássico da ordem, toda essa grande taxonomia que permite conhecer as coisas pelo sistema das suas identidades desenrola-se no espaço aberto no interior de si pela representação quando representa a si mesma: o ser e o mesmo tem aí o seu lugar. A linguagem não é senão a representação das palavras, a natureza não é senão a representação dos seres; a necessidade não é senão a representação da necessidade. O fim do pensamento clássico (...) coincidirá com o recuo da representação, ou antes com a libertação, relativamente à representação, da linguagem, do vivo e da necessidade” (FOUCAULT, 1966, P. 277).

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brasileiro, mas que interferem na produção do discurso desse cancioneiro ao, também, por sua

vez, lidar com as temáticas do urbano, do rural, do moderno, da tradição e da identidade

nacional.

Dentro do percurso metodológico sugerido pode-se agora partir para a caracterização mais

clara do que vem a ser ou se constituir um sujeito discursivo. Isso implica diretamente no

recorte do que será considerado como relação dialógica, a ser eleita para interpretação dos

discursos do campo enfocado. Pela hermenêutica dialógica caracteriza-se o sujeito discursivo

como um agente social concreto especificado enquanto Linguagem, Língua e Voz (LLV),

essa especificação constitui-se através da interpretação do discurso em termos do que é

dominante como LLV. No caso específico dessa apresentação, os SD não são mais do que

alegorias de discursos (estabelecidas por mim) que por sua vez estabelecem relações

dialógicas entre si. Assim sendo, essas alegorias expressam enunciadores-tipo de discursos

que se constituem em relação dialógica entre si sob a interferência de discursos localizados

nos contextos especificados no recorte temporal proposto entre a Belle Époque e o início da

ditadura militar nos anos 60, com ênfase na sociedade trabalhista da Ditadura Vargas.

Sob a orientação metodológica da hermenêutica dialógica, pode-se num primeiro momento

pensar os Sujeitos Discursivos como alegorias que sintetizam, enquanto campo reflexivo,

objetos, idéias, questões, modos de agir, refletir e existir, cujos discursos se constituem, como

já frisado, sempre em relação dialógica com o de seus alteres. A princípio pode-se pensar em

dois tipos alegóricos: (1) um tipo que ao dialogizar, sob a interferência dos discursos

localizados nos contextos do recorte, produz significados de discurso que tendem a aderir aos

significados discursivos estabelecidos pelos discursos hegemônicos de modernidade,

urbanidade, tradição, ruralidade e identidade nacional, construídos e defendidos, de forma

geral, pelos inúmeros discursos caracterizados como fala das elites que exercem poder sobre o

Estado, o pensamento intelectual e a riqueza econômica. (2) O segundo tipo opera,

simplesmente, em sentido oposto, transgredindo os discursos da elite hegemônica. Ao grupo

de discursos caracterizados pelo tipo que adere emprestaremos o nome de “Barão da Ralé10”

(BR). Isto é, trata-se do sujeito discursivo que embora caracterizado por sua origem popular,

adere aos códigos e valores das elites, considerando-se assim como uma espécie de tutorial

das classes populares. Um tutorial que faz chegar aos populares à consciência dos ideais de

modernidade ou identidade nacional, construídos em movência, segundo a negociação travada

10 Faz referência à música de Chico Buarque, A volta do malandro, 1985, que ironiza o malandro na tensão entre o ethos popular e a elite.

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entre grupos no poder. A estratégia correspondente ao tipo de discurso do Barão da Ralé seria

contestada pelo outro tipo de sujeito discursivo que trataremos como “Rapaz Folgado11” (RF),

cuja postura, como o nome bem sugere é de enfrentamento aos códigos e posturas dos

discursos hegemônicos. Obviamente, tais estratégias se confundem e, por vezes, pode-se

identificar os discursos do “Barão da Ralé” travestidos das formas e estéticas do discurso

“Rapaz Folgado” ou vice-versa. Seguiremos retomando nossas alegorias, interpretando seus

discursos, características, estratégias e possíveis contradições. Aliás, sobre contradições,

podemos adiantar que, ao contrário do discurso de um possível SD revolucionário

(configurado mais estreitamente ao materialismo histórico de base marxista e expressando-se

através do repertório das canções de protesto dos anos 60), esses tipos, BR e RF, adotariam

estratégias, aparentemente, opostas, expressando discursos que interpretamos como de

enfrentamento ou de adesão, mas que, também, retro-alimentam a manutenção de certas

condições de dominação, e, sendo assim, segundo nossa interpretação, não expressariam

discurso revolucionário. Pelo menos, não nos moldes paradigmáticos a partir de uma

consciência/formulação nítida de classe social. Às vezes, podem mesmo adotar estratégias

discursivas tais como expressar significados conservadores visando transformação. Porém, o

caráter dessa transformação seria sempre pontual ou particularizado em um contexto que não

ultrapassa os limites da pessoalidade. O mesmo vale para os discursos localizados no

contexto, como discursos das elites políticas, intelectuais etc. Por exemplo: é comum a

posição hegemônica expressar um discurso de base moderna e transformadora, mas, que

resulta na conservação de valores da tradição e de determinadas formas de dominação. A

especificação e aprofundamento da interpretação dos discursos dos SD eleitos BR e RF

expressando dialogismos não revolucionários, assim como, a interpretação discursiva da

pertinência metodológica sob a qual elegeríamos ou não um possível SD Revolucionário fica

prometido ao leitor na continuação dessa apresentação.

A possibilidade exemplar de relação dialógica entre discursos de dois SD eleitos sob a

interferência do contexto poderia funcionar de forma inconteste se assumíssemos sem rasuras

a hermenêutica dialógica. Isto é, caso tomássemos essa estrutura como uma hermenêutica, o

significado de cada discurso seria dado pela análise e síntese de suas partes decompostas,

enquanto que um sentido seria dado como juízo de um discurso sobre outro. Singular e

11 Faz referência à música homônima de Noel Rosa, Rapaz Folgado, 1933, que ironiza a postura da malandragem desregrada. Aliás, o próprio Noel costumava afirmar em conversas com amigos que o malandro de verdade não se declara malandro. Assumir que é malandro é dar arma ao inimigo, além de não ser coisa de malandro (Fonte: conversas pessoais com músicos remanescentes da Rádio Nacional e da era de ouro do samba trabalhista, no Bar do Clóvis (Espaço Meu Kantinho), na Penha).

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inexoravelmente associado a um SD, ainda que em determinadas circunstâncias, determinado

sentido estabelecido por um SD viesse a se espraiar, tornando-se hegemônico, em certa

situação espaço-temporalmente localizada ou em certo contexto (relativo à interferência que

discursos emitidos de fora do campo da música, produzem, por exemplo, sobre os discursos

dos SD Rapaz Folgado e Barão da Ralé). Porém, como veremos adiante, essa possibilidade,

não se concretiza, não se encerra, da mesma forma que a metodologia não rasurada revelar-se-

ia incapaz de dar conta do movimento que a interpretação do cancioneiro popular executa. Por

hora seguimos esmiuçando características dos Sujeitos Discursivos, ainda enfatizando a

hermenêutica dialógica, assinalando rasuras quando for necessário fazê-lo.

O sujeito discursivo segundo a hermenêutica dialógica seria uma alegoria cujos discursos se

constituem como tal por intermédio de sua especificação enquanto Linguagem, Língua e Voz

(LLV). Por sua vez, essa especificação é constituída pela interpretação que o intérprete-eu

(cujo discurso está também constrangido pelo dialogismo com o discurso de meus alteres no

presente dessa escrita) faço dos discursos dos SD eleitos e interpretados.

A Linguagem (1) diz respeito à visão de mundo predominante do sujeito discursivo, isto é: se

ele tem uma visão de mundo conservadora ou crítica, tradicional ou moderna, de manutenção

ou transformação das estruturas, etc.

A Língua (2) diz respeito ao modo de expressão do sujeito que em nosso caso geral é a

música, mais especificamente a música popular12, o que seria aqui uma especificação da

língua. Consideramos seus aspectos fundamentais como a letra, a melodia, o ritmo, os

arranjos, a própria performance em que especifica-se a relação do comportamento do corpo,

do lugar e da forma de execução, analisando possíveis identificações étnico-culturais que

12 Como constituinte do signo musica especificam-se certas subdivisões como música erudita, folclórica e popular cujas características ajudariam a pensar o cancioneiro popular como língua. Pode-se adiantar que sob a visão elitista, da primeira metade do século XX, há uma hierarquização das formas onde a música erudita apresentando forma e conteúdo segundo critérios rígidos de composição ocuparia o topo. A música folclórica apela para o domínio do puro e da tradição, visto que remonta para passados distantes e primórdios de manifestações que seriam valorizadas por discursos acadêmicos e ilustrados no decorrer do século. Mesmo apresentando características de cruzamento de culturas como a européia, africana, indígena, o fator tempo remoto, que apela, por exemplo, para o nordeste-medievo dos cordéis da fábula castelã, garante o “valor” desse discurso segundo os critérios da elite ilustrada. Por fim, a música popular corresponde à forma musical menos valorizada pela elite do campo. Seu caráter híbrido, constituído de ritmos e formas contemporâneas e urbanas, coisas da “moda” que, por sua vez, se agregam aos ritmos e formas do folclore e do passado produzindo um “crossover” cultural de tal magnitude e velocidade de movimento que se torna, inclassificável, aos padrões taxonômicos da música como pensada segundo os critérios do erudito.

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apontem para uma construção de mundo, enunciado que expresse em seu ethos o ethos do

outro13.

A Voz (3) é o SD-tipo. Em nosso caso, então, as Vozes são “compositores populares”. Porém,

isso significa assumir que atuaremos dialogicamente não com agentes discursivos (que seriam

compositores particulares, como o termo poderia sugerir), mas com “compositores-populares-

tipo”, especificados nas alegorias RF e BR. Estas, sim, formalmente, nos termos da

hermenêutica dialógica, correspondem aos agentes no dialogismo que constituímos14.

Operando a hermenêutica dialógica, pode-se afirmar que temos um sistema onde discursos

constituem o mundo no qual são ditos como constituintes, como signos que, não como

representações de um suposto real dado, apresentar-se-iam como construções indissociáveis e

constitutivas do mundo em suas dimensões, material, ideológica ou axiológica (Araújo et all,

2007). Fazer uso da hermenêutica dialógica com base em Bakhtin de forma não rasurada não

nos leva para além de um sistema fechado, onde o signo é passível de compreensão, o sentido

proposto como algo dado de forma relacional no mundo e o significado como coisa

constituída de forma intrínseca ao discurso. Nessas condições, exponho, a partir de minha

interpretação dos SD eleitos até o momento dessa apresentação, dois quadros de Posição de

Sujeito relativos às duas alegorias, Barão da Ralé e Rapaz Folgado. Nesses quadros, certas

características e estratégias discursivas dos SD eleitos são assinaladas com o intuito de

localizar o leitor. É por minha interpretação que os discursos dos SD eleitos expressam tais e 13 Considerando o objeto de investigação proposto, o cancioneiro popular, deve-se especificar com mais rigor o movimento de construção sofrido pela categoria cultura popular que se transforma ao longo do século XX. Popular como algo que, segundo a análise de folcloristas e de certa sociologia que vigorou por boa parte do século XX, se opôs ao folclórico. Popular, como algo que se constituía de forma mais urbana e menos rural e cujo hibridismo teria elementos mais contemporâneos, diferente do hibridismo folclórico, que remonta para um passado épico. Por exemplo: as cavalhadas de Goiás-Velho e Pirenópolis que tratam das cruzadas entre cristãos e mouros incorporando elementos da mitologia brasileira como a onça e o boi. 14 Problematizando possibilidades dialógicas dentro desse mesmo quadro, pode-se sugerir trabalhar com um segundo dialogismo, onde a mesma música entraria na posição de sujeito “Rapaz Folgado”, quando tomada numa versão da rua, e na posição de sujeito “Barão da Ralé”, quando tomada na versão oficial. Esse diálogismo diz respeito a uma polifonia referente à separação entre o cancioneiro popular oficial, aquele que é gravado e tocado nas ruas através dos mecanismos oficiais de divulgação do discurso como os auto-falantes públicos, os fonógrafos, gramofones, as partituras e, mais tardiamente, o rádio e o cancioneiro que emerge anonimamente na forma de versões, em geral irônicas e críticas, dos discursos do cancioneiro oficial. Um exemplo são as inúmeras versões que o samba “Pelo telefone”, gravado em 1917, ganhou nas ruas, sendo a mais famosa a que faz menção ao chefe de polícia da época. Em síntese, teríamos duas posições de sujeito (PS) ou duas vozes, segundo a terminologia de Bakhtin. Uma voz oficial referente ao sujeito tipo das canções gravadas e divulgadas de modo formal e uma voz da rua referente às versões que certas canções ganhavam durante o carnaval ou em outras manifestações públicas. Às vezes ocorria também o processo inverso, quando a voz oficial aproveitava um refrão ou mote já popularizado de forma anônima nas ruas e o transformava em versão oficial do discurso do cancioneiro. É o caso de “Rato, rato rato” que faz referência à campanha de Oswaldo Cruz contra a peste nas cidades do Rio de Janeiro e Santos.

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tais características e estratégias através de grupos discursivos referentes a um agrupamento de

enunciados-canções que também por minha interpretação expressam idéias em comum. A

construção das alegorias SD Barão da Ralé e SD Rapaz Folgado correspondem a uma

construção-interpretação minha sobre uma maneira de sintetizar significados de enunciados-

canções em discursos que dialogizam sob certos contextos.

Considero que os anos 30, com a emergência, no plano internacional, de governos totalitários

(fascismo italiano, nazismo alemão, franquismo espanhol), e com a correspondente

emergência do Estado Novo, no plano nacional, localizam o processo contextual em que os

discursos dos SD eleitos apresentam, de forma mais nítida, as características que figuram no

quadro a seguir. Isto é, foi sob as interferências de movimentos políticos, culturais e

intelectuais entre os anos 30 e 40 que os SD (1) Barão da Ralé e (2) Rapaz Folgado

apresentam, de forma mais evidente, certas características discursivas, que correspondem,

respectivamente a: (1) adesão à ideologia nacionalista e ufanista, ao trabalhismo varguista, ao

modelo estético-social burguês, urbano, moderno e conservador. (2) Oposição à ideologia

nacionalista e ufanista, ao trabalhismo de Vargas, fazendo apologia à malandragem como

forma de resistência, questionamento do modelo estético-social burguês, urbano, moderno e

conservador, ao denunciar em seu discurso (segundo a interpretação/tradução que opero sobre

o significado e o sentido dialógicos dos discursos dessa alegoria), o caráter autoritário e

controlador do Estado Novo. Os dialogismos dos discursos dos dois SD eleitos (apresentados

até aqui), assim como seus movimentos sob os contextos relativos ao recorte temporal, serão

traduzidos no decorrer dessa apresentação percorrendo simultaneamente um percurso em

direção à Belle Époque onde identifico a emergência dos temas

identidade/ruralidade/urbanidade/modernidade/tradição como temas contemplados pelo

repertório do cancioneiro popular brasileiro (trata-se de quando o cancioneiro começa a

contemplar imagens públicas e políticas) e em direção à ditadura militar nos anos 60 quando

os SD eleitos, sob tais características discursivas, passam a conviver com um possível SD

Revolucionário, alegoria que desloca o SD Barão da Ralé e o SD Rapaz Folgado. Caso

pretendêssemos, nessa apresentação caminhar para além dos SD eleitos, teríamos que assumir

a contaminação que o SD Revolucionário produz nas alegorias anteriores como discurso

preferencial do cancioneiro popular brasileiro para efeito de inscrição de temas referentes ao

público e ao político. Em resumo, a construção do quadro, a seguir, se presta a localizar o

leitor no contexto mais evidente dos anos 40 em que os discursos dos SD eleitos e construídos

como tais se apresentam de forma mais clara nas suas características discursivas traduzidas

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como adesão e oposição às formas hegemônicas de dominação. No decorrer desta

apresentação pretendemos seguir esses movimentos, não de forma linear e sistematizada no

tempo cronológico, mas como um movimento de comportamento rizomático, no qual, o texto

vai cobrindo espaços, em direção à Belle Époque e à Ditadura Militar.

Antes de, finalmente, expormos os quadros representativos das Posições de Sujeito relativas

aos SD Barão da Ralé e Rapaz Folgado, apresento alguns enunciados-canção onde os

significados de aderência e oposição aos discursos hegemônicos relativos aos alteres dos SD

eleitos como já especificado emergem segundo minha interpretação-tradução de forma mais

evidente sobre os temas trabalho, ordem e nacionalismo15.

15 Estes enunciados-canção que foram postos aqui no intuito de localizar o leitor sobre os discursos dos SD eleitos, representam uma amostra ínfima de um universo pesquisado de mais de cinco mil canções, arquivadas por mim em formato MP3. Este levantamento consumiu mais de um ano do projeto, entre visitas a arquivos de áudio-visual e incontáveis horas de navegação na Internet. Deste montante de canções pré-selecionadas segundo os temas modernidade, tradição, urbanidade, ruralidade e identidade, as canções utilizadas por fim como discurso interpretado-traduzido nos dialogismos propostos no decorrer desta apresentação se encontram catalogadas e disponibilizadas no CD que acompanha a tese. Para ouvir a música referente basta buscar o número da referência de pé de página desse corpus nos arquivos sonoros do CD.

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RAPAZ FOLGADO

Trabalho Vivo na malandragem.

Não quero saber do batedor Pode escrever o que vou dizer

Ando melhor do que um trabalhador Não há riqueza que

me faça enfrentar o batedor Pois quem é rico nunca foi trabalhador16

Ordem

Meu chapéu do lado tamanco arrastando. Lenço no pescoço, navalha no bolso.

Eu passo gingando, provoco e desafio. Eu tenho orgulho de ser tão vadio

Sei que eles falam do meu proceder Eu vejo quem trabalha andar no misere.

Eu sou vadio porque tive inclinação Eu era criança tirava samba canção17.

Nacionalismo

Ia-iá me deixa subir nessa ladeira Eu sou do bloco que pega na chaleira Lá vem o cordão dos “puxa-sacos”

Dando viva a seus maiorais Quem está na frente é puxado pra trás

E o cordão dos puxa-sacos Cada vez aumenta mais

Vossa excelência, vossa eminência. Quanta reverência nos cordões eleitorais

Mas, se o doutor cai do galho e vai ao chão. A turma toda evolui de opinião.

E o cordão dos “puxa-sacos” cada vez aumenta mais18.

BARÃO DA RALÉ

Trabalho Quem trabalha é que tem razão

Eu digo e não tenho medo de errar O bonde São Januário Leva mais um operário

Sou eu que vou trabalhar19

Ordem Mato grosso quis gritar Mas, em cima eu falei

Os homi ta com a razão nós arranja outro lugar

Só se conformemo Quando o Joca falou

Deus dá o frio conforme o cobertor20

Nacionalismo Eu tenho um barraco no São Carlos

Onde há paz e harmonia Onde há samba noite e dia

Eu tenho uma nega e um violão Um herdeiro que mais tarde

Ficará com o barracão Mas se a pátria precisar

Boto meu fuzil no ombro Largo tudo e vou brigar Vocês estão pensando

Que estou contando lorota Sou mulato patriota

Meu sangue nunca negou. Tem lá em casa um baú

Que por dinheiro nenhum eu dou Dentro tem uma medalha

Que foi do meu bisavô Que em campanha ganhou21

16 Nasci no samba. Benedito Lacerda e Bide, 1932. 17 Lenço no pescoço. Wilson Batista, 1933. 18 Cordão dos “puxa-saco”, Roberto Martins, Frazão, 1946. 19 O bonde São Januário. Wilson Batista, Ataulfo Alves,1940. 20 Saudosa maloca. Adoniran Barbosa, 1951. 21 Mulato Patriota. David Nasser, J. Batista, 1942

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POSIÇÃO DE SUJEITO do SD Barão da Ralé

LINGUAGEM LÍNGUA VOZ

Não-crítica Burguesa Musica Popular Compositor Popular Tipo: especificado na alegoria BR

Sem projeto de mudança no tipo de sociedade

Apóia o trabalho e a modernidade conservadora.

Inscrita nos meios de comunicação de massa.

Estética e comportamento orientados por parâmetros da sociedade burguesa e da classe média urbana.

Transformação urbana sob a ótica da elite e do capital

Institucional, no sentido de apoiar ações do Estado e do Capital privado.

Sem percepção de classe e de sociedade polarizada entre rico e pobre.

Ufanista Não utiliza termos chulos que possam ferir a estética e os valores da família burguesa e urbana

Legalidade Reforma da sociedade tradicional, combate aos arcaísmos ligados aos valores da vida rural e das comunidades pobres.

Emula o vocabulário da elite intelectual

Integração nacional. Boas relações com o Estado.

Promove unidade nacional

Progresso individual.

Capitalismo.

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POSIÇÃO DE SUJEITO do SD RAPAZ FOLGADO

LINGUAGEM LÍNGUA VOZ

Crítica TRADIÇÃO MÚSICA POPULAR Compositor Popular Tipo: especificado na alegoria RF

Sem projeto de mudança no tipo de sociedade

Tradição que se opõe às mudanças com base na modernidade conservadora orientada pelo capital e pelo Estado Novo

Inscrita nos meios de divulgação e comunicação de massa. Mas também divulgada de forma não oficial pelas versões anônimas e satíricas “da rua”.

Valores individuais em oposição à reforma urbana sob estética burguesa.

Manutenção de seus valores frente aos de seu(s) outro(s).

Não institucional, não apóia o Estado ou o Capital.

Contra a sociedade do trabalho e a penetração da troca monetária nas relações pessoais

Objetos de desejo como objetos da própria tradição.

Pode utilizar imagens e termos que ferem a estética e os valores da família burguêsa.

Ilegalidade Tradição da malandragem frente à ordem burguesa e institucional.

Evita o vocabulário da elite.

Marginal ao sistema. Não adere

Realização pessoal aponta para valores de seu ethos: coragem esperteza e honra.

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Uma vez expostos os quadros em que se apresentam os SD em relação dialógica, podemos

nos ocupar de forma mais atenta do contexto. Para efeito da construção aqui proposta, o

contexto incorporaria enunciados e discursos de sujeitos discursivos localizados fora do

campo da música que interferem e são apropriados pelos discursos dos SD de dentro do

campo em foco, a princípio, o Rapaz Folgado e o Barão da Ralé. O contexto é apropriado

como uma ressonância que participa do dialogismo efetivo entre o Rapaz Folgado e o Barão

da Ralé22. Assim, o dialogismo efetivo é aquele que já vem sendo tratado até aqui como o

dialogismo que ocorre entre discursos de dentro do campo do cancioneiro.

O sentido atribuído ao significado de um discurso seria construído pelo juízo feito sobre esse

significado, tendo por referencia fundamentos da Posição de Sujeito do discurso que confere o

sentido. Por sua vez, o sentido do discurso também seria dado levando-se em conta a

participação da resposta do outro (receptor da mensagem) naquilo que o emissor adianta dessa

possível resposta do receptor em determinado contexto que faz parte do sentido dialógico

como ambiência ou como fundo aperceptivo23.

Dessa forma, o sentido do discurso, nas relações dialógicas entre os SD do cancioneiro

popular, como propostos até aqui, estaria dado pelo movimento de escuta e resposta expresso

nos discursos das duas alegorias, o “Barão da Ralé” e o “Rapaz Folgado”. Ainda assim, o

sentido dos discursos desses dois SD constitui-se considerando os discursos que emergem de

fora do campo da música ou do cancioneiro em questão, não exatamente constituindo um

dialogismo, mas uma ambiência24 para o dialogismo que efetivamente ocorre entre os SD

eleitos dentro do campo. Esses discursos de ambiência que interferem no dialogismo são

referentes, por exemplo, ao discurso de poder constituído pelas elites nos campos econômico,

intelectual, literário, legal, acadêmico, jornalístico e político, atravessados pelo poder

22 “O sentido do discurso, além de constituir-se primordialmente através da relação viva, tem também o traço de outras enunciações concretas sobre o mesmo assunto, concordes e/ou contraditórias, dado ao sujeito, não como suposta percepção de um objeto em si, mas enquanto fundo aperceptivo” (ARAUJO et. al, 2007, p.8). “O contexto (...), essencialmente, encontra-se fora do discurso em pauta, no papel de fundo dialogizador de sua percepção. Não obstante, o contexto não pode deixar de ser considerado como parte constituinte do enunciado” (ibidem, p.9). Em termos abstratos e simplificados o contexto deve responder à pergunta: o dialogismo considerado acontece em momento caracterizado pelo que no plano internacional, nacional, regional e temático? 23 O fundo aperceptivo é tudo o que se disse sobre a questão ou o objeto, durante o período enfocado (o do contexto), mas, também para além dele. Por exemplo, qualquer trabalho atual sobre a questão. 24 Trata-se de uma opção metodológica forte, considerando-se que é possível supor que as alegorias respondem dialogicamente também aos discursos que são externos ao cancioneiro. Para efeito do dialogismo proposto no quadro anterior fica valendo essa perspectiva que ao longo do corpus será rasurada por deslocamentos e contaminações operando sobre a diferença dentro/fora relativa aqui a campo/contexto.

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simbólico25, referente, por exemplo, às categorias axiomáticas de rico, de homem, de branco e

de trabalhador. A dominação expressa por essas categorias pode ser reforçada ou contestada

pelos SD do cancioneiro popular. Por isso, consideramos a dominação das elites políticas,

econômicas e intelectuais, etc. exercendo-se sobre os SD eleitos através da produção de uma

ambiência contextual que, ainda que, produzindo contradições internas (que fatalmente

resultam no movimento de significação dessas categorias), apontaria para idéias exemplares

de progresso, modernização e identidade nacional, constituídas também pela dominação

simbólica expressa na hierarquização estética e moral de elementos como a riqueza, o

trabalho, o branco, o homem. Justamente por não se configurarem como expressões de um

discurso monocórdio, mas sim, por incorporarem a fala dos dominados, esses signos podem, e

são reproduzidos também por sujeitos dominados, que expressam como parte constitutiva de

seus discursos o discurso do dominador.

A questão tratada nesse ponto diz respeito a determinar o recorte, a fronteira do que será

considerado como relação dialógica efetiva e o que deve ser determinado como o contexto em

que se insere essa relação. Atente-se para o fato de que a relação dialógica efetiva e seu

contexto são constituídos de discursos, evidentemente, expressos por sujeitos discursivos.

Assim, por exemplo, podemos caracterizar como constituinte do contexto o dialogismo não

efetivo entre música e crônica, música e documentos políticos ou entre música e literatura,

uma vez que tais expressões podem ser classificadas como fundo aperceptivo constituinte do

sentido do discurso dos SD do cancioneiro popular. Estes enunciados ecoam no espaço tempo

dos SD do cancioneiro popular que de forma responsiva os incorpora como constituidores dos

sentidos de seus discursos.

Em se tratando da temporalização26 dos discursos do cancioneiro popular, deve-se ainda

considerar o “dialogismo no tempo” que ocorre quando um enunciado expressa um

significado no presente que já não mais corresponde ao que guardava no passado. Fora a

ruptura, esse dialogismo deve contemplar também as continuidades, que diz respeito a quando

o significado de um enunciado percorre as décadas sem eclipsar-se por completo. Perceber

essas rupturas e continuidades referentes ao dialogismo no tempo é central à nossa análise

25 Constituído por determinados símbolos emblemáticos da dominação como expressos em Bourdieu (2004) e Foucault (1996). 26 Temporizar é uma categoria derridiana, discutida no texto “A Diferança” (1991), que guarda sentido de diferir no tempo – temporalizar – e no espaço – espacializar. O primeiro implica em devir no tempo e o segundo em devir no espaço. No primeiro caso, transforma-se o espaço em tempo (De Penedo a Marechal leva-se dois dias em lombo de burro). No segundo caso, transforma-se tempo em espaço (A fotografia, por exemplo, transforma o tempo em espaço ao sincronizar temporalidades distintas num mesmo espaço).

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posto que esse dialogismo expressa uma espécie de memória discursiva do SD. Lembrando

que o signo, como aqui considerado, do qual o sentido é um dos componentes, é aquilo que se

estabelece numa relação dialógica, fazemos referência aqui à idéia de que num determinado

dialogismo passado estabeleceu-se certo signo, que, enquanto memória, pode constituir um

discurso de um dialogismo no tempo (interno) para o mesmo SD, em relação a um (pré)

discurso presente. Diz-se pré porque o signo que emergirá desse dialogismo diacrônico, para o

SD no presente, é também constitutivo de seu discurso no dialogismo sincrônico do presente.

O signo que este dialogismo constitui no presente pode ser interpretado como mais distinto ou

mais semelhante daquele que foi constituído no dialogismo no passado. Um discurso de

semelhança é a canção política cuja marcha expressa um comentário crítico aos nepotismos e

ações pelegas referentes ao quadro político de 1907 e que depois se repete no quadro político

de 1945. A permanência desse signo expressa a permanência de sentidos discursivos

dialógicos entre SD eleitos do cancioneiro sob contextos diferenciados que interferem no

dialogismo interno através de discursos do campo da política, da imprensa, da academia etc.

O enunciado-canção em ritmo de polca alegre expressa-se assim: “Ia-iá me deixa subir nessa

ladeira eu sou do grupo do pega na chaleira27”, fazendo referência aos “puxa-sacos” de

políticos poderosos que sobem a ladeira para “chaleirá-los”. A interpretação desse enunciado,

dialogismo no tempo, será tratada de forma mais detalhada no decorrer do projeto. Um

discurso de distinção é pensar em como no enunciado “Vai com Jeito28”, cantado na década

de 30, o sentido que um ou alguns SD da elite metropolitana atribuem ao significado do

enunciado nos dias de hoje é modificado, considerando que fazer piquenique em Paquetá,

passear no Joá ou ir à praia na Barra da Tijuca são práticas sociais de lazer que perderam o

caráter de clandestinidade, moralmente reprovável aos parâmetros da moral familiar burguesa.

Seguindo com a aplicação da metodologia sobre os SD eleitos, um problema que provocaria,

mais adiante, ruptura bem maior do que imaginava, revelou-se como uma falta, uma lacuna no

dialogismo efetivo manifestando-se entre os discursos das duas alegorias, altere entre si,

considerando o contexto e o dialogismo no tempo que pode expressar ruptura ou continuidade

do sentido dos discursos referidos. Essa lacuna diz respeito ao fato de que para lidar com o

contexto, focado no quatrilho, modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição, seria

necessário eleger um terceiro SD que não se expressasse nem como aderente, nem como

contestador, nem Barão da Ralé, nem Rapaz Folgado. Segundo minha interpretação, fez-se

27 No bico da chaleira. Costa Junior, 1909. 28 Vai com jeito. (I) Emilinha Borba – (C) Braguinha, 1957.

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imprescindível para abordar, mais plenamente, os temas da modernidade, urbanidade,

identidade e tradição no campo reflexivo do cancioneiro, considerar um terceiro SD.

Esse terceiro SD, a exemplo dos SD eleitos até agora, Barão da Ralé e Rapaz Folgado,

constitui relações dialógicas configuradas por mim como intérprete que traduz no dialogismo

expresso nos discursos desse terceiro SD uma construção de oposição entre o campo e a

cidade. Porém, essa oposição não é, sequer dialeticamente, dada, muito menos, dicotomizada,

o terceiro SD constrói a urbanidade à medida que reconstrói o rural sob a experiência da

perda. Entra na cidade para reconstruir o campo nela. Essa construção refaz vínculos

identitários com o suposto lugar de origem, que não é a cidade, mas, que precisa ser

reconstruído como oposição a ela. Assim, a nossa terceira alegoria justifica sua emergência

como SD que se inscreve transpassando as questões de aderência e contestação e que tem

como mote as relações de identidade e pertencimento principalmente em condições de êxodo

e migração. Mas, não necessariamente êxodo e migração objetivados em corpos físicos que se

movem no espaço, mas como movimentos inscritos como discurso que contamina e umidifica

o campo com a rasura da cidade A essa terceira alegoria daremos o nome de Contente

Magoado29, considerando que na construção identitária expressa no processo de

reterritorialização que produz em contraponto à urbanidade/modernidade que o contexto

inscreve, apela tanto para sentimentos de esperança com o novo, o incerto, o devir que o faz

contente, palhaço, jeca, matuto, bruto quanto com a percepção da perda, da saudade que o

magoa; torna-se o solitário, o sertanejo, retirante, caboclo, xucro, bugre. A saudade revestida

sempre com a possibilidade do retorno que o refaz re-contente pelo retorno, mas, que, por sua

vez, é sempre revestido com a impossibilidade da origem considerando que nem o Contente

Magoado seria o mesmo ao retornar, nem o lugar seria o mesmo ao recebê-lo; e então se re-

magoa. Nem contente, nem magoado e Contente Magoado.

Em busca de fechar tradições/identidades regionais que remetem ao tempo/espaço pretérito o

Contente Magoado alicerça-se em discursos de origem construída a partir de uma Europa

feudal, mítica, ecumênica e rural. Esses discursos são adaptados e rasurados por sincretismos

culturais regionalizantes. Isso vale para os fandangos do Paraná ou para o Boi-Bumbá do

Pará. Fora do campo da música esses discursos inscrevem tipos regionais como o gaúcho dos

pampas, o caipira paulista, o sertanejo de Guimarães, o retirante de Graciliano, em comum, os

29 A música “O país de São Saruê” de Luis Gonzaga, José Siqueira e Marcus Vinícius, 1971, do documentário homônimo de Vladimir Carvalho, inspirou o batismo da alegoria com a frase “a balança dos contentes pesa a sede dos magoados”. No SD Contente Magoado o dialogismo operando o conflito interno de um mesmo sujeito discursivo, expressa a fala de dominados e dominadores como Contente Magoado.

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alteres urbano e civilizado, o sentido de perda da tradição, a tradição como algo que remonta a

uma Europa rural e distante no tempo.

O problema é que estas tradições/identidades antes de se fecharem num discurso que vai da

origem ao fim, fixando um discurso fundador e final que contemplaria elementos comuns dos

diversos discursos regionais a nível nacional, antes disso, entra em colapso. Isto é, quando

ainda se encontravam nesse trânsito entre origem e fim no nível regional, os discursos

fundadores da tradição já foram se constituindo como construções da perda, e como tais, não

se prestariam ao papel de alicerce do discurso hegemônico da identidade nacional. A virada

do século marca um impasse dogmático do pensamento nacional que se acentua no mesmo

ritmo com que os regionalismos se auto-afirmam sob signos de perda e dominação (êxodo,

carência, saudade, etc.): ou se apóia a identidade nacional sobre a tradição atrasada,

reafirmando uma cultura sem estrangeirismos, mas que expõe o país ao risco de “perder o

trem da história em direção ao primeiro mundo” ou adere-se aos estrangeirismos citadinos e

se abre mão de uma identidade com base em tradições seculares que reinscrevem ainda no

século XX um outro Brasil, rural e arcaico, na Casa-grande, na lavoura sertaneja, no pastoreio

dos pampas, nas comitivas, nos pesqueiros de jangada e rede, nos festejos populares, nos

laços de compadrio, comunitários e provincianos. O fato é que a dicção da perda é o reflexo

de que a tradição por si não se impôs como alicerce para o processo de construção da

identidade nacional no século XX, mas, como contraponto da modernidade, como um coro

grego que canta nos tons maiores as modas da saudade. A “Tristeza do Jeca”, ao contrário do

samba-canção urbano, é chorada em “Do maior” mesmo. Tom alegre que disfarça/mitiga os

signos tristeza e perda no Contente Magoado.

Essa alegoria desliza em direção ao centro, à cidade, ao urbano, para cantar com saudades, e a

esperança da volta, a perda daquilo que não chegou a se constituir em sua totalidade como

identidade nacional: a tradição. Nesse caminho ele já não é o Jeca, mas também não se

constitui como urbano. Disfarça-se num jogo de afirmação e negação da origem regional

rasurada e incompleta a exemplo dos comedores de luz da canção Brejo da Cruz de Chico

Buarque: “Mas, há milhões desses seres que se disfarçam tão bem, que ninguém pergunta de

onde essa gente vem30”.

Num primeiro movimento, o Contente Magoado é o objeto de discurso tomado como aquilo

para o qual se realiza o esforço de fechar a tradição em um discurso único de identidade

nacional: um país de cultura exclusivamente nacional, cujas raízes pretéritas se fincariam num 30 Brejo da cruz. Chico Buarque, 1984.

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passado, não menos nebuloso e glorioso, de uma nação européia. Porém, no meio do

caminho, dá-se conta de que essa tradição não será suficiente para alicerçar o outro

movimento que os discursos nacionais modernizadores manifestam as portas do século XX:

um país que necessita embarcar no trem da história sob o risco de ficar para trás imobilizado

pelo peso dessa mesma tradição que, por sua vez, ainda se encontrava mal assentada no

discurso de nação. Esse movimento de abandono da tradição e aceitação da modernidade sob

o ônus do estrangeirismo artificial, já traz embutido um terceiro que diz respeito a emancipar-

se da Europa, propondo uma identidade moderna e singular. O pensamento que resultará no

modernismo de 22 insurge de dentro da Belle Époque sugerindo que: “no momento em que o

brasileiro estava espiritualmente, mais vinculado ao Velho Mundo é quando começa a pensar

em emancipar-se” (S. B. Hollanda apud Santiago, p.30, 2006).

Por sobre esse triplo deslizamento – tradição, modernidade postiça, modernismo singular – o

Contente Magoado produz seu segundo movimento, desta vez em direção ao centro

(considera-se que a idéia de centro desliza tal qual a de periferia, ou de moderno ou de

tradição), cujo fim também não se conclui, uma vez que a alegoria Contente Magoado

também não se fecha, não se constitui como um sujeito urbano.

Com a entrada em cena do SD Contente Magoado, um problema se apresenta à nossa

construção antes mesmo de ser possível colocá-la, metodologicamente, em prática. Parte-se

do pressuposto de que a identidade “Contente Magoado” (construção minha), e a do sertanejo

ou matuto ou jeca etc. (construção tanto dos inúmeros sujeitos discursivos do campo da

literatura, imprensa, academia, etc. localizados no contexto, quanto dos SD eleitos do campo

do cancioneiro), constrói-se através de um processo dialógico com os sujeitos discursivos do

“centro” ou do Rio de Janeiro e São Paulo ou da cidade ou da parte que se inscreve urbana,

moderna e progressista nos discursos que tratam do regional no país. Porém, quando essa

construção, seja do Contente Magoado, construção minha, seja do sertanejo, matuto,

especificado na cidade, alcança de fato o Contente Magoado (ou o sujeito sertanejo lá no

sertão, construção hegemônica oposta a tudo o que diz centro e cidade) já o encontra, não por

coincidência, escorregando pelo discurso do êxodo ou do completamente outro, cidade,

imaginando-se, para o bem ou para o mal, nas rodas da Itapemirim ou no pau de arara das

rodovias do eixo norte-sul, ou no caminhão velho que fornece às cidades os “caipiras” dos

interiores e os “brutos” pampeiros, ou no Ita ou na chalana que desce do Mato Grosso em

direção a qualquer grande centro urbano, independentemente do que isso especifique. E isso

ocorre antes mesmo que se complete o movimento identitário que o fixaria como sujeito

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discursivo com esta ou aquela característica. Isto é, quando a voz que canta Asa branca e

Carcará, quando o discurso que denuncia as mazelas da periferia, principalmente do

nordestino e a seca (mas, também do jeca paulista inadaptado à velocidade urbana ou do

bugre gaúcho arredio) na voz de Luís Gonzaga via Rádio Nacional a partir da cidade alcança

(e já vai constituindo) o sertanejo/caipira, pela marca do que é dito sobre ele, rasura-o com a

marca citadina antes mesmo dele, em primeiro lugar corresponder a uma suposta condição

fixada de sertanejo (construção de inúmeros sujeitos discursivos como especificado) ou de

Contente Magoado (construção minha) e, claro, antes dele alcançar uma suposta condição

citadina31. Isso significa dizer que antes dessa construção, a identidade de “matuto” podia ou

não existir ou não corresponder em nenhum aspecto à forma como ela passou a ser proposta

como forma antitética do civilizado. A seguinte questão se nos apresenta: podemos pensar o

Contente Magoado como uma não-categoria32 que antes mesmo de se completar em seu

drama marcado por êxodos, saudades, intempéries da natureza e injustiças sociais já escorrega

para outra possibilidade identitária que se estabeleceria no futuro como sujeito urbano e

moderno, mas que por hora não passa de uma possibilidade? Uma possibilidade de

interpretação para pensar o Contente Magoado como não-categoria ou categoria que não se

completa, aponta no sentido de pensá-lo marcado por um discurso de identificação em

trânsito. Primeiro por certo conjunto discursivo manifesto pela voz da poesia de cordel, da

poesia popular, das fábulas, lendas e cantigas da roça entre os séculos XVIII e XIX que

inscreve o Contente Magoado como sujeito discursivo manifestado a partir de uma suposta

origem ibero-castelã localizada na Europa da Idade Média sublinhada por imagens de

Cruzadas, Mouros, Cruzes, Mosteiros, guerreiros, cavaleiros, reis e rainhas, príncipes, feudos

31 Aqui uma pequena confusão pode se instaurar. A construção SD Contente Magoado ou a construção de nordestino, ou a de matuto ou a de sertanejo etc. podem e devem se confundir com um sujeito objetivado que entra num ônibus ou num caminhão, que se queixa da cidade, que se preserva da modernidade nas fronteiras platinas. Confundem-se, considerando que as construções aqui propostas, para efeito de sujeitos discursivos constituídos e constituidores de discursos, dizem de sujeitos discursivos tanto quanto o “eu” que escreve e os “meus alteres” leitores que seremos, remetidos por mim, à categoria de sujeitos discursivos prévios (os SD prévios serão devidamente apresentados mais adiante) que se distinguem dos sujeitos discursivos eleitos uma vez que essa relação já existiria (considerando que no doutorado sempre se prevê a produção e defesa de uma tese, desde que se ingressa no curso) antes mesmo da constituição do discurso-tese e logo da elaboração dos SD eleitos. Porém, essa distinção limita-se, exclusivamente, a essa temporalidade e não quer dizer que entre os SD prévios e eleitos configure-se uma classificação de sujeitos discursivos de natureza distinta do tipo “sujeito” e “objeto”. Outrossim, SD eleitos e prévios, assim como nordestinos que migram ou não, sambistas que sobem o morro, empunham violões, arengam com a polícia e circulam em salões de gafieiras, constituem-se, de igual maneira, como sujeitos discursivos constituidores e constituídos discursivamente como eu e o leitor. 32 É necessário esclarecer que todas as alegorias constituídas serão entendidas por mim como não categorias derridianas, porque deslizam, ainda que, entretanto, constituam-se como elementos à interpretação.

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e burgos. Essa miríade de imagens que se relacionam à medida que esboçam um passado em

comum, aos poucos vai sendo revestida de brasilidade e regionalidade, através de folguedos,

jogos e festas sacro-profanas, para então, já no decorrer do século XX escorregar para uma

suposta possibilidade de condição citadina construída a partir da construção da diferença

campo cidade expressa também nos signos do êxodo e da saudade, como já formulado. Se às

portas do século XX o sertanejo foi antes de tudo um bravo nos Sertões euclidianos, se no

decorrer do século XIX foi à pena e pincel construído como um puro, pelo nosso romantismo

eurocêntrico, se no meio do século XX foi retratado como o injustiçado, espólio do processo

de modernização do país, (isso, para falar tão somente de discursos cânones que, a seu tempo,

ainda precisavam defender-se de discursos subversivos de desconstrução, manifestados pelas

vozes de seus alteres contemporâneos), se tudo isso já pôde um dia corresponder à uma dada

condição rural, (e em certa medida, boa parte desses cânones permanece como tal,

digladiando-se e rasurando-se com outros discursos) é no mínimo suspeitoso apostar fichas

numa identidade fechada e fixa servindo de alicerce para a categoria do sertanejo, do matuto

ou do nordestino. Para trabalharmos aqui com a não-categoria Contente Magoado,

correspondendo a uma determinada posição de sujeito, faz-se então necessário pensar que

estamos trabalhando com características de certos discursos produzidos momentaneamente

sobre uma suposta relação de identificação/reterritorialização que desliza pelo “entre33” das

falas cruzadas, e não com a existência de discursos cujo significado é único e monocórdio, ou

seja, (a exemplo do que já vamos observar como problemático, também, para os discursos dos

outros SD eleitos, BR e RF) não poderiam ser interpretados sequer como multisignificações

especificadas em um quadro de posição ou estado de sujeito.

Mas, o que exatamente se quer dizer com deslizar, ou mais, com esse deslizar no entre?

O processo de desconstrução do conceito e do não-conceito em Derrida dá-se através de

momentos distintos, mas, simultâneos: o primeiro, diz do reconhecimento da hierarquia em

que se alavanca o conceito do analista com o intuito de derrubá-lo, o que caracteriza a

inversão da hierarquia anterior. No segundo, de deslizamento, ocorre o movimento do

conceito cujo percurso e fim não podem ser previstos.

Aceitar essa necessidade (derrubamento) é reconhecer que, numa oposição filosófica clássica, não tratamos com uma coexistência pacífica de um vis-à-vis, mas, com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos domina o outro (axiologicamente, logicamente, etc.) Desconstruir a oposição é (...) derrubar

33 O entre inscreve um indefinível importante para o efeito rasura derridiana. Entre ou no entre como limite, nem um, nem outro, ou como confusão, no meio, dentro, constituindo os dois diferentes, operando dentro das duas falas cruzadas.

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a hierarquia. Menosprezar esta fase de derrubamento é esquecer a estrutura conflitual e subordinante da oposição (DERRIDA, Posições, p.54, 1974).

A própria idéia por traz do ato de desconstruir, que contém o deslizamento, remete, não a

negação do sistema, mas ao deslocamento do conceito clássico que ele sustenta.

A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente a uma neutralização: deve, por um duplo gesto, uma dupla ciência, uma dupla escrita, praticar uma inversão da oposição clássica e um deslocamento geral do sistema. (...) A desconstrução consiste, não em passar de um conceito a outro, mas, em inverter e em deslocar uma ordem conceitual, bem como a não conceitual na qual se articula (DERRIDA, Limited Inc, pp.36,37, 1991).

O deslocamento ou deslizamento do conceito original, ao negar a possibilidade de origem

caracteriza a marca, a rasura que Derrida propõe como resultado como aquilo que fica

gravado do movimento do conceito e do não conceito. A diferança (differance) expressa essa

possibilidade de movimento, essa movência em que toda tentativa de totalização, fechamento

ou esgotamento do discurso sobre algo falha, ao abrir-se sob os pés do totalizador uma nova

possibilidade de movimento, sempre que algo mais é acrescentado ao que é dito sobre o algo.

Esse sobre que aceita sem nunca se fechar, esgotar ou mesmo sem se deixar tocar, ferir pelo

que nele se deposita é o que Derrida denomina como khôra. A khôra (nem conceito nem não-

conceito que não implica em dentro e fora) pode ser pensada como aquilo que possibilita dizer

Nordeste e não Nordeste ou sertão e não-sertão. O “entre” que possibilita ao mesmo tempo o

estabelecimento do limite como espaçamento e da confusão como presença nos dois

diferentes. É o que torna possível o discurso territorializar e desterritorializar, ou o discurso

cancioneiro popular (e sua negação) ser interpretado por inúmeros autores como repertório

que “representa” a cultura nacional ou ser interpretado por mim como instancia mediadora,

como campo interdiscursivo, que agrega discursos em estado dialogizante interno (sofrendo a

interferência de discursos localizados no contexto, externo ao campo) que inscreve

construções de modernidade, urbanidade, ruralidade, tradição e identidade. Porém, campo e

contexto, como aspectos de dentro e de fora do cancioneiro, segundo consta em nossa

interpretação até aqui, já vão sendo desconstruídos por khôra, pelo entre que rasura o dentro e

o fora, que abarca o que foi e é dito sobre um cancioneiro popular e um não-cancioneiro

popular, mas, não os encerra e menos ainda, se encerra nessa polarização. Ao contrário, é o

que a faz mover, é o que torna não-cancioneiro em cancioneiro e vice-versa, é o que deixa

entrever no entre do conceito (e do não-conceito) que nunca se fecha naquilo que já foi dito

ou negado, mas que, de alguma forma continua ali, visível, compondo. Sempre que algo é dito

sobre um discurso (cancioneiro, Nordeste, sertão) um novo movimento de temporização

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produz um novo espaço-tempo na khôra que se move, se expande, se contrai, mas não se

extingue. Pode mesmo vir a desdobrar-se tanto e tão longe daquela interpretação que abarcava

a ponto de mais nada do movimento anterior ainda existir, a ponto de não haver mais um

Nordeste frente a um não-Nordeste, ou um sertão e um não-sertão ou um cancioneiro popular

e seu negativo, mas até lá, enquanto os deslizamentos, deslocamentos, esse desdobramento da

movência, permitirem ver no entre, nos espaços não totalmente preenchidos do discurso, o

que lhe era dito anteriormente, permanece a khôra, nem sensível, nem inteligível, como o

terceiro gênero, permitindo essa mirada, essa percepção de parte do discurso que foi no que é,

como que superpostos também por um possível será. Essa possibilidade de movimento que a

khôra aceita, mas não encerra, diz respeito ao deslizar no entre: espaço que se forma entre o

conceito e sua negação, oposição que a khôra propicia sem se submeter a ela e ainda

participando dos dois pólos.

Propiciando oposições, ela mesma, não se submeteria a nenhuma inversão. Não porque seria inalteravelmente ela mesma para além de seu nome, mas, porque levando para além da polaridade do sentido, ela não pertenceria mais ao horizonte do sentido, nem do sentido como sentido do ser (DERRIDA, Khôra, p. 16, 1995). (...) A khôra é anacrônica, ela é a anacronia no ser, ou melhor, a anacronia do ser. Ela anacroniza o ser (DERRIDA, Khôra, p. 18, 1995). (...) As interpretações viriam então dar formas à Khôra, deixando nela a marca esquemática de sua impressão e depositando o sedimento de sua contribuição. Apesar disso, a khôra parece jamais se deixar sequer atingir ou tocar, menos ainda ferir, e, sobretudo, não se deixa esgotar por esses tipos de tradução trópica ou interpretativa (idem, p.19).

Já nos seria possível agora pensar nesse movimento de deslizamento como um movimento de

deriva que o nome executa toda vez que se diz algo sobre ele. O nome movimenta-se de uma

origem rasurada (considerando-se a impossibilidade de uma origem original), marca daquilo

que foi dito sobre ele, para um fim rasurado (considerando a impossibilidade de esgotamento

de interpretações do nome), marca que expressa o estado para o qual o nome deslizou. A idéia

de deslizamento/deslocamento me parece adequada, considerando que esse deslizar não pode

ser totalmente previsto e controlado, ainda que intenções, interesses e estratégias,

hegemônicas e contra-hegemônicas, devam ser consideradas no ato de nomear o nome. O

nomear expressa um embate de poder cuja força hegemônica, por isso mesmo não totalitária,

obtém resultados parciais de controle, enquanto as não hegemônicas obtêm resultados parciais

de resistência. O fim rasurado, para onde desliza o nome, expressaria os sentidos parciais e

momentâneos que os discursos desejam para o nome. O deslizamento no entre quer dizer

desse desviar para um lugar imprevisível e indeterminado no e pelo calor do embate. No

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entre, não diz de uma interseção entre um modo ou outro de dizer, mas sim dessa

impossibilidade excludente do modo de dizer que nunca é salva das contradições que o

embate de forças hegemônicas e contra-hegemônicas manifesta nas traduções, interpretações

e nomeações do nome. Deslizar no entre é desviar da tradução ideal para a tradução possível

considerando-se a negociação com o outro do nome. É considerar que tudo o que é dito sobre

o nome rasura-o com a marca do deslocamento no entre do nome e do outro do nome. Em

resumo, deslizar no entre é deslizar no embate, na simultaneidade do levantamento e da

inversão.

Tomemos agora, em nossa empiria dialogizante, de um ponto da historiografia que se ocupa

do cancioneiro popular brasileiro (por exemplo, na década de 40, quando o cancioneiro

expressou uma série ufanista de canções para a ditadura de Vargas localizadas no conjunto

abarcado pela alegoria do SD Barão da Ralé), o Sujeito Discursivo Contente Magoado. Essa

tomada provoca uma seqüência de deslizamentos. Um primeiro deslizamento é provocado já

pelo ato de recortar: recorte expresso pela construção do Contente Magoado que eu proponho

dentro da historiografia do cancioneiro popular brasileiro (assumindo todo o problema que

esse dentro confirma). Isto porque, o meu recorte já seria uma re-interpretação (rasura em

Derrida) do significado desse discurso (cancioneiro popular brasileiro) e acrescenta um novo

significado à cadeia de multisignificados (segundo Bakhtin) que esse discurso já expressava

antes da chegada do meu recorte/rasura. O meu recorte arbitrário produz um movimento do

significado de um ponto A qualquer, marca, rasura, para um ponto B, indefinido e

momentâneo, (porque já vai sendo superado pela interpretação do leitor e de outros discursos

que se inscrevem sobre o cancioneiro). O SD eleito desliza em conseqüência da marca de não-

origem que o SD prévio, “eu”, produzo no cancioneiro ao propor o recorte. O deslizamento

diz desse movimento imprevisto, a partir da marca de não-origem expressa no comentário, na

tradução, na nomeação. Não sei para onde vai o conceito e o seu “outro”, só posso afirmar

que B é diferente de A. Tomando-se agora como exemplo os SD Barão da Ralé e Rapaz

Folgado, podemos propor que, no contexto trabalhista, os discursos do SD Barão da Ralé são

sulcados de forma aderente – “O trabalho é um dever todos devem respeitar, ó, Isaura me

desculpe amanhã eu vou voltar” – pelo discurso hegemônico das elites – “O Brasil ostenta

vergonhosamente a marca de 70 % de desempregados e sub-empregados e 50% de

analfabetos, segundo dados do IBGE deste ano de 1940” – que ao cobrar compromisso

popular com a necessidade de reverter a estatística, pode acabar produzindo no SD Barão da

Ralé um movimento de dobra, transfigurando-o em seu oposto. Isto é, o BR, diante do

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fracasso em corresponder às expectativas do contexto trabalhista, pode, aos olhos da elite,

dobrar-se sobre si aproximando-se do Rapaz Folgado – Fiz tudo para ver seu bem estar, até

no cais do porto eu fui parar, martirizando o meu corpo noite e dia, mas, tudo em vão ela é

da orgia, parei34” – e caracterizando um movimento de deslizamento imprevisto por ele, por

seu altere RF, pelas elites e pelos SD prévios eu e leitores.

Sobre os deslizamentos do Rapaz Folgado e do Barão da Ralé podemos afirmar que os dois

deslizam de um para o outro dependendo da situação – ambos estão sintetizados na figura do

malandro que desliza no tempo em suas relações com seus alteres. Não é revolucionário.

Antes de completar o movimento em direção ao contestador e em seqüência ao revolucionário

o Rapaz Folgado desliza na direção do Barão da Ralé que não chega por sua vez a completar

o movimento de aburguesamento e tende a retornar a condição de Rapaz Folgado quando o

dialogismo com seus alteres da elite aponta no sentido de enquadrá-lo na sociedade do

trabalho.

Assim, vai ficando cada vez mais difícil sustentar essa oposição da metodologia dialógica,

entre um dentro (campo) e um fora (contexto) uma vez que os SD eleitos, segundo uma

interpretação derridiana, seriam sulcados pelo contexto trabalhista. O contexto,

independentemente de ser parte constituidora do dialogismo está dentro e fora. Derrida

desconstrói o contexto como mais uma coisa que sulca e produz deslizamento35.

Outro deslizamento começaria simultaneamente ao ato de ler (interpretar/traduzir) o que já

desliza, desta vez, provocado pelo leitor. Esses dois deslizamentos (escrever e ler) expressos

em seqüência tornam-se simultâneos se considerarmos que o leitor já está presente, no sentido

dialógico, no primeiro deslizamento e vice versa, considerando também que a leitura (que

segundo Derrida não se diferenciaria da escrita, considerando que ambas fundem-se na idéia

de “escritura” tal qual a fala e a escrita) é rasurada pelas sucessivas construções que o leitor,

prévia, simultânea e constantemente, produz do Sujeito Discursivo que, em termos formais,

escreveria esta apresentação, no caso, eu.

Esse duplo deslizamento que ocorre agora, antes mesmo de se interpretar o objeto canção

através dos sujeitos discursivos alegóricos, antes mesmo de recortá-lo de fato, não implica

34 Oh Seu Oscar. Ataulfo Alves, Wilson Batista, 1939. 35 Mas, os requisitos de um contexto serão absolutamente determináveis? Tal é, no fundo, a questão mais geral que gostaria de tentar elaborar. Há um conceito rigoroso e científico do contexto? A noção de contexto não abriga, sob uma certa confusão, pré-supostos filosóficos muito determinados? Para dizer algo de modo sumário, gostaria de demonstrar porque um contexto nunca é absolutamente determinável ou, antes, em que sua determinação nunca será assegurada ou saturada (DERRIDA, Limited inc.p. 13, 1991)

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movimento de um suposto ponto A para um ponto B, considerando que: não existe uma

origem “ponto A” (para além da minha decisão arbitrária), eleito por mim, dentro da referida

historiografia. Não existe porque o recorte Contente Magoado (Barão e Rapaz também)

desliza no tempo como eu e o leitor, e, suas marcas, as marcas que eu destaquei como

características desse SD, não são exclusivas desse SD e persistem no espaçamento para além e

aquém do recorte metafísico que construo. Da mesma forma, esse movimento de A para B

não vai encontrar ao término da narrativa um fim que dentro de um percurso temporizador

(tempo/espaço) esgotaria o SD Contente Magoado.

Ao escrever essa tese considera-se ainda a mesma dupla impossibilidade de marcar a minha

própria origem ou meu esgotamento em posição dialogizante ao tema. Ao adiantar a fala do

leitor, idem. Nem origem, nem esgotamento seriam possíveis de serem determinados a partir

do que posso considerar dialogicamente como participação do leitor na construção do

discurso tese que trata de movimentos operados pelos discursos dos sujeitos discursivos

eleitos. Em síntese, constituir-me dentro da tese de forma deslizante, da mesma forma que o

faço com o leitor e os SD eleitos, inviabiliza a determinação de origem e esgotamento dentro

do recorte.

A percepção desses deslizamentos leva a constatação de que a formatação de uma

interpretação discursiva dentro de um molde de Posição de Sujeito como sugerido pela

metodologia com base em Bakhtin, deve ser, a partir de agora, ainda que previamente, não

inviabilizada, mas, rasurada pelas possibilidades da substituição da Posição de Sujeito pelo

Estado de Sujeito.

Sobre o leitor deslizante deve-se então considerar dois Estados de Sujeito que guardariam

lugar privilegiado na estrutura discursiva que a tese expressará: o Estado de Sujeito

Orientador, que do ponto de vista dialógico guarda lugar de primazia na elaboração do

discurso tese, e o Estado de sujeito Banca Examinadora que também interfere dialogicamente

no discurso tese, considerando que detém o poder de validar ou desqualificar o discurso.

O cancioneiro popular, previamente, enquanto movimento de deslizamento nos SD eleitos,

CM, BR e RF, já seria rasurado por mim que deslizo no tempo de elaboração do discurso tese

ao reformular sucessivamente identificações e reterritorializações, pelos dialogismos

correspondentes aos sujeitos discursivos prévios, orientador e banca.

O primeiro, orientador, rasura os SD eleitos de um lugar dialogicamente privilegiado

considerando a proximidade que a orientação guarda em relação à produção do discurso tese.

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O segundo – banca examinadora – ao ocupar lugar de poder, considerando a inevitável marca

de autoridade que produzirá na tese em dado momento, rasura os SD eleitos de um lugar não

menos presente no dialogismo expresso em meu discurso que incorpora aquilo que devo ou

espero ouvir de forma responsiva de meus leitores.

Estes efeitos de rasura entre os SD eu, leitor (Orientador, Banca Examinadora, demais

leitores) e o discurso-tese rasurado (já sob a marca derridiana) correspondem a rasuras

prévias, tendo em vista que o exercício de interpretação discursiva do objeto de pesquisa

empírica36 ainda não começou.

Apesar de já estarem identificados como Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado,

os discursos dos SD eleitos, para o discurso-tese, precisam ser postos em dialogismo entre si,

considerando sua condição discursiva rasurada, considerando a interferência dos discursos

que emergem do contexto e por fim aquilo que prevejo de discursos que resultam das rasuras

prévias: eu, leitores e discurso-tese.

♪♪♫♫

A partir desse momento, a rasura da metodologia passa a atuar de forma constante. O corpus

desloca-se em direção a outra coisa onde não caberia mais dizer o que a música fala ou deixa

de falar. Ou de desvendar significados e sentidos da urbanidade, tradição, modernidade,

ruralidade, identidade, centro, periferia. Trata-se de seguir os deslocamentos como pistas,

através das marcas das rasuras e identificá-los através das canções, tratadas a partir de agora

como rastros daquilo que se investiga nos discursos dos SD eleitos: movimentos de

identificação37 e reterritorialização38 dos discursos dos SD eleitos que especificam estratégias

dialógicas de sobrevivência e resistência aos discursos hegemônicos. No calor do embate,

entre hegemonias e singularidades, os nomes da identidade, do urbano, do rural, do moderno e

da tradição deslizam e se re-configuram na medida em que se tenta afirmar o que são.

A princípio deve-se criticar a visão estruturalista do brasileiro amarrado na camisa de força

das identidades construídas por opostos: Porém, acredito que será pela marca/rasura dessas

dicotomias (civilizado/primitivo, negro/branco, rural/citadino) que se poderá seguir o rastro 36 Os dialogismos expressos por certo conjunto discursivo do cancioneiro popular que, segundo minha interpretação, tematiza sobre construções discursivas do moderno, do urbano, do rural, da identidade nacional e da tradição. 37 Identificação como sentimentos de empatias fluidas, vulneráveis a rasuras circunstanciais e jamais fixadas no tempo. Na construção de Stuart Hall, a identificação se expressa como oposição ao conceito rígido de identidade. 38 Reterritorialização como expresso no Ritornelo de Deleuze (1997), onde a ação de territorializar ou desterritorializar é entendida como movimento de posse do direito de nomear, lugar de conflitos da ordem do discurso, mas que expressam relações de dominação objetivadas e concretas.

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dos movimentos estratégicos que os discursos dos SD eleitos descrevem no decorrer do

século XX. A identidade incompleta já não se define mais pelo seu oposto. O brasileiro não

seria simplesmente o oposto do europeu. Mas, também não seria a mera negação dessa

dicotomia.

Perceber o indecidível khôra atuando no entre das aparências fenomenológicas. Os discursos

do Barão da Ralé sob os do Rapaz Folgado e vice versa. O discurso do Contente Magoado

urbano sob o solo da sanfona. Ouvir a grande capital paulista soar nos intervalos de terça da

música caipira. O chocalho do gado rosiano ecoando na Presidente Vargas, cercada pela Zona

do Mangue, pela proximidade com a Mangueira, o Estácio e os bairros portuários da Pequena

África.

Pensar nesse “entre” derridiano, expressão de khôra, como aquilo que está no entre, no

embate, como algo que ainda não é, mas, também não o deixa de ser. O “entre” como

espaçamento e confusão que permite o ver e o não ver (o que a fenomenologia chamaria de

iguais e diferentes) as diferenças atuando em khôra, condição da possibilidade da marca, da

rasura. O indefinível derridiano não se constitui nem como conceito nem como identidade,

nem coisa nem signo, mas já se apresenta como possibilidade/devir através desse

deslizamento no entre da possibilidade presente e do devir futuro. O espaçamento no entre

como possibilidade de movimento entre um ser e um não-ser, ou mesmo entre um estar e um

não-estar, a exemplo dos SD eleitos por nós configurados, que não aderem à posição de

sujeito que os fixa e já deslizam para outra coisa que não é exatamente o seu oposto, mas, que

incorpora no sentido dialógico a fala do outro. Pensar nesse movimento como micro-

insubordinação à medida que não emula o valor do outro, mas também não o revoluciona.

E abro um parágrafo para compartilhar certas dúvidas e desconfortos com o leitor/autor tese39.

Mas, poderíamos nos perguntar agora para que serve identificar o deslizamento. Para que

serve o método desconstrutivista? É substituir uma verdade da fixidez por outra do

deslizamento? O mundo está condenado ao estado de movência e não se discute? Toda

tentativa de fixação é reacionária e metafísica e deve ser combatida? Propor essa propriedade

da movência tal qual movente – possibilidade de movimento – seria a resposta definitiva para

a questão? E se o for isso também não seria fixo como um conceito?

39 SD Orientador: “Leitor/autor da tese, não é? Seja como for, a indicação do ‘autor’ na frase implica que está em jogo aqui um dialogismo entre o texto (este da tese) e o próprio autor. Como se o texto se “independentizasse” do autor. É isso mesmo?”

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Retornando aos SD eleitos, considero que o quadro Posição de Sujeito, ainda que fosse

renomeado e operado segundo uma nova condição de Estado de sujeito, não me pareceria

adequado como esquema metodológico, uma vez que o discurso tese, para além da

hermenêutica dialógica, deve, a partir de agora, ser transformado pelo pensamento derridiano

que se ocupa menos de rupturas e negações, próprias do pensamento estruturalista, do que das

identificações de rasuras, deslizamentos e rastros produzidos pelos discursos dos SD eleitos.

Sob a perspectiva metodológica rasurada, apresentamos, no lugar de outro esquema em tabela,

uma figura, onde os discursos dos (1) SD prévios40, eu, orientador, Banca examinadora,

leitores, constituídos discursivamente por discursos sobre o cancioneiro que trata da

ruralidade, urbanidade, modernidade, identidade e tradição e os discursos dos (2) SD eleitos

por mim: Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado, dialogizando entre si,

produzem um efeito de rizoma que, ao desestruturar fronteiras, abre novas perspectivas

interpretativas dos discursos do cancioneiro popular.

O deslizamento provocado na metodologia com base na hermenêutica dialógica orienta-se por

um percurso que se iniciou com a assunção momentânea de uma Posição de Sujeito em que o

Sujeito discursivo se constituía por um ser, um é. Segue-se para uma segunda assunção

momentânea em que o Sujeito Discursivo foi caracterizado não mais pela rigidez do quadro

hermenêutico da PS, mas por um Estado de Sujeito, em que o SD se constituiu por um estar

contingente no tempo. O deslizamento que o discurso-tese sofre, expressando-se na

perspectiva de Derrida, constitui a partir de agora a rasura maior na metodologia. Sob a

metodologia da hermenêutica dialógica os grupos de discursos expressos nas alegorias Rapaz

Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado (assim como, os grupos de discursos relativos às

alegorias: eu, orientador, banca examinadora e demais leitores) nomeiam sujeitos discursivos

taxonomizados em quadro de PS ou ES em que se apontam sentido específico aos discursos

relativos aos dialogismos propostos41. Sob a condição da desconstrução derridiana os grupos

de discursos, como especificados, nomeiam discursos, signos de signos, cuja determinação de

sentido, ou, antes ainda, cuja determinação de autoria desliza por sobre as fronteiras que

40 Prévios não no sentido de serem constituídos previamente por mim, mas, por serem constituídos previamente de forma institucionalizada dada a condição do doutoramento que prevê os SD eu, orientador, banca examinadora e demais leitores, e a qual o discurso tese, seja lá qual for, estará condicional e previamente submetido. 41 SD Orientador: “Formalmente, nessa metodologia um dialogismo se estabelece entre discursos (não entre SD). Mas os termos usados para a caracterização dos discursos (PS, SD) ‘traem’ esse formalismo”.

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especificam sujeitos e alteres constituindo devires42 do outro em si e vice-versa por

movimentos de territorialização e desterritorialização que trataremos no decorrer desse

corpus. Isso é, no lugar de mover a condição discursiva à condição de sujeito, o que nos

parece configurar-se sob essa nova perspectiva é o movimento que trai e ultrapassa a condição

de sujeito, seja a de PS ou ES, à condição de discurso rasurado pelo devir do outro-em-si e

vice-versa. Sendo que antes desse encontro não havia nada, como afirma Derrida, não havia

nada, nem um “em si” nem um “outro”. Assumir que eu e leitores somos constituídos

discursivamente tal qual um livro ou uma escritura poderia dizer de um movimento em que

pessoas e livros constituíssem sujeitos discursivos considerando que sofrem, sofremos,

rasuras, traduções, interpretações e, de forma responsiva, pessoas e livros, identificamos e

identificam-se e desterritorializamo-nos e desterritorializam-se como sujeitos. Outra

possibilidade interpretativa, agora mais próxima da leitura derridiana, seria pensar e pensar-

nos constituídos por discursos, grupos discursivos que elaboram, nos elaboram, como khôra,

como interdiscursividade, como construção que se re-elabora constantemente por traduções,

interpretações e leituras, nossas e de nossos alteres, corpo sem órgão, por isso, khôra.

Veremos um pouco mais adiante como a khôra pode substituir a construção do contexto.

42 A orquídea se desterritorializa formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se desterritorializa sobre esta imagem. (...) Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um desses devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação e intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante (Deleuze, Guattari. Mil Platôs. Introdução: Rizoma, p. 19, 1995).

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O esquema acima não foi montado com o propósito de ilustrar, muito menos de confundir,

mas de convidar os SD prévios por instituição e aos SD eleitos por mim, para caminharmos

por um possível espaço da tese não delimitado por fronteiras regionais rígidas, mas por

discursos que se inter-relacionam, rasurando-se, produzindo um espaço tese-deslizante,

movente, que ORA se assemelha ao Planalto Central sob o signo rosiano, sertão nonada,

vazio farpeado por veredas que autorizam dizer-lhe algo sobre, Planalto que quer fazer

convergir para si forças telúricas do país, Brasília, JK, Peixe-vivo, Chapada e Discos

Voadores, ORA se aproxima da grande capital, que já foi imperial, mas que agora é rasurada

pelo discurso do Contente Magoado montado nas rodas da Itapemirim do Cordel do Fogo

Encantado, no carro de boi boiadeiro de Gonzaga e nas vacas de Manuel de Barros que

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desfilam na rua, ORA se estende pelos pampas gauchescos borgeanos, desfronteiras platinas

abrindo novo espaço de subjetividades para mim que gostava de ser-tão nordestino, mas, que

por agora viaja por tantas subjetividades constituidoras do dissenso secular governado pela

hipocrisia de uns e inocência de outros ao dizer que a identidade nacional é, ORA repete os

passos das volantes e cangaço e “acorda Maria Bonita”, ORA cheira fumaça de óleo diesel e

se embriaga até que o esqueça na esquina da Ipiranga com a São João de Adoniran e vinga-se

de quem bebe e chora na mesa de um bar na Porto Alegre noir-lupciniana, ORA desce o

morro de Cartola com uma lata d’água na cabeça, desliza em fragmentos de chão de estrelas e

sobe as quantas ladeiras de Olinda cujos telhados escondem os mistérios ocultos dos

mosteiros da Índia, ORA chora a morte da Índia guarânia que morreu de parto na mão dos

brancos civilizados, ORA sobe Barão da Ralé no Bonde de São Januário como mais um

operário, ORA lança-se ao mar de Caymmi e do Senhor dos navegantes, ORA chora viola,

ORA cantos da floresta, ORA terças paulistas, ORA Rapaz Folgado que arrasta as tamancas

de chapéu de lado e navalha, ORA, da janela do palácio varguista, pinta a Aquarela do Brasil.

É com essa interdiscursividade rizomática que se quer dialogizar, seguindo os movimentos,

deslizamentos e estratégias dialógicas dos SD eleitos, como alteres entre si, sob interferência

do contexto e dos SD prévios que, igualmente, dialogizam entre si, rasurados pelos discursos

do cancioneiro. Por isso no mapa do Brasil, que se fôssemos mais precisos deveria se

esparramar, em gesto contínuo, pelos pampas platinos e, descontínuo, pela península Ibérica,

pela África e pelas cidades de Paris, Londres e Nova Iorque43, não existem fronteiras internas,

por isso um relevo sugere a idéia de dois conjuntos, que, necessariamente, não se separam por

linhas de fronteira. Os matizes esmaecendo sugerem o vazamento do grupo de SD prévios

para o grupo de SD eleitos e vice-versa.

Na mesma figura o jogo de setas aponta para as possíveis interdiscursividades que se

encadeiam e desencadeiam segundo possibilidades momentâneas entre os discursos dos SD

eleitos e prévios, considerando as rasuras nas categorias de sujeito, alteres e contexto.

Considerar tais rasuras significa dizer que sob diferentes contextos, diferentes

interdiscursividades que constituem estratégias serão produzidas. Por exemplo, tomemos o

debate sobre ruralidade, modernidade, identidade, urbanidade e tradição em diferentes

43 Considerando que a máquina discursiva que opera em torno da questão Identidade Nacional não se limita ao território nacional, deveríamos também estender as fronteiras desse mapa, de forma não contígua, à Península Ibérica medieval, para depois saltá-las até a Belle Époque e emular os ares de Paris e Londres, depois esticá-las até a modernidade estadunidense e retorná-las aos primeiros contatos coloniais das polirritmias africanas e mesmo do Oriente de especiarias e estruturas musicais modais.

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períodos: no Estado Novo, na Belle Époque, no modernismo de 20, na Repúbica Velha, nas

Revoluções conservadoras de 30 e 32, nos anos JK ou na ditadura militar, em cada um desses

períodos da historiografia tradicional pode-se identificar movências, deslizamentos e rastros

no discurso dos SD (eleitos e prévios) através de certas traduções e apropriações do discurso

do “outro” que interpretaremos como estratégias de convívio e sobrevivência no discurso dos

SD eleitos (em relação de alteridade entre si, sob contextos e a própria interpretação dos SD

prévios) e como estratégias de afirmação e defesa, ainda que circunstancial, de posição

(ideologia, autoridade, simpatia) para os SD prévios, em suas interpretações interdiscursivas

do discurso tese como um todo e, especificamente, dos discursos dos SD eleitos como

expressões dialógicas do cancioneiro popular.

O Rapaz Folgado adota estas e não outras estratégias de convivência com seus alteres em

determinado contexto. Lembrando que, sob rasura, o contexto não existe como corpo coeso e

fechado para além da construção discursiva da historiografia tradicional. Em nossa

interpretação, as estratégias devem corresponder à fala responsiva possível sob os

constrangimentos do contexto em questão. Assim, quando, o Rapaz Folgado usa o chapéu de

lado, o lenço branco e a navalha (e já vai sendo reprovado na canção homônima pelo Barão da

Ralé: “malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar o valor do sambista”), o faz como

discurso dialógico possível – que expressa estratégia de convivência com seus alteres internos

ao campo da música e de sobrevivência em determinado contexto – sob os constrangimentos

das relações de dominação expressa entre os discursos do cancioneiro popular e os discursos

hegemônicos da elite (intelectual, econômica e política). No caso da canção (enunciado)

Rapaz Folgado, o contexto localiza-se no decorrer dos anos 30, quando, segundo a fala da

historiografia tradicional, o poder mudava de mãos, configurando novas construções

discursivas de modernidade, urbanidade e identidade simbolizadas pelas imagens do Estado

totalitário e da sociedade do trabalho orientada por padrões de consumo e comportamento da

burguesia capitalista e progressista, sintetizados na emergência da classe media urbana.

Esse mesmo Rapaz Folgado (não tão mesmo, considerando que o discurso desliza), sob outras

condições de dominação, sob outro contexto, adotaria outras estratégias de convivência e

sobrevivência. Por exemplo, durante o período historiografado como Belle Époque, as

relações interdiscursivas do Rapaz Folgado com o discurso dominante expressavam-se de

forma mais direcionada para a polícia que atuava no controle dos espaços públicos e do corpo

do pobre. Enunciados como, “Pelo telefone44” (1917), “Quando a polícia vier45” (1915),

44 Pelo telefone. Donga, 1917.

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“Paladinos da Cidade Nova46” (1907), expressam invariavelmente a relação entre o pobre e a

polícia. A primeira canção trata do espaço público da viração, do jogo ilícito. A segunda, do

espaço privado, inadequado para os padrões morais da sociedade aburguesando-se: o refrão

“quem paga a casa pra homem é mulher” expressa a condição de um lar reprovado que vai

receber a visita da polícia. A terceira canção fala do controle da festa e do corpo também sob

a tutela da moral. Nos três casos a polícia é citada explicitamente como o discurso localizado

no contexto que mais nitidamente interfere e obriga a adoção de certa estratégia de

sobrevivência dos discursos do tipo Rapaz Folgado. Porém, pode-se interpretar também que

os discursos da polícia, mesmo localizados no contexto estariam, considerando a operação

estratégica dos discursos do Rapaz Folgado, compondo de forma dialógica os discursos do

Rapaz Folgado, ao exercer de forma explícita controle e dominação. Essa assunção nos

remeteria a um último estágio da rasura metodológica da Hermenêutica dialógica, ao

considerarmos o contexto como khôra, como aquilo que agrega uma série discursiva sobre si,

porém sem se deixar esgotar ou mesmo ferir pela série. Considerando que discursos de dentro

e de fora do campo do cancioneiro podem ocupar a mesma khôra, a própria construção de

dentro e fora perde sentido o que promove outro deslizamento no discurso-tese e que nos

orienta a gradativamente abandonar a idéia de contexto e de campo, assim como, a considerar

que os dialogismos podem se dar tanto entre discursos de alteres relativos ao cancioneiro

(Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado) quanto aos discursos localizados fora

do campo ou no contexto sem hierarquizar, logo já desconsiderando a fronteira entre campo e

contexto.

Insistindo um pouco mais na idéia de contexto, já pensando em, não exatamente descartá-lo,

mas fazê-lo deslizar para a condição de khôra, pode-se pensar que no contexto relativo ao

período do Estado Novo, diferentemente da Belle Époque, os dialogismos com a burguesia,

com o “doutor” e com o político são mais presentes do que com a polícia, considerando que o

tema remetia menos diretamente a uma questão de ordem pública, do que a divergências sobre

a formação no país de uma sociedade do trabalho.

Outra forma de deslizar. Tomemos certo enunciado para perceber como o deslizamento de

uma canção dialogizando com alteres e contexto pode levá-la deste para aquele conjunto de

enunciados expresso por SD referente a uma das alegorias que foram por nós eleitas. A

45 Quando a policia vier. João da Baiana, 1915 46 Paladinos da Cidade Nova. Eduardo das Neves, 1907.

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canção folclórica Peixe-vivo47, esboçava-se como uma canção regional que falava de saudade

e perda, imagem que a localizava relativamente próxima das características do Contente

Magoado (exceto pelo fato de não fazer referencia a questões relativas ao rural como

contraponto do urbano, apesar de que a perda implica movência temporizadora48, que bem

poderia como subtexto estar se referindo a um território da tradição que deixou de sê-lo). Ora,

a partir dos anos JK, pode-se interpretar esse enunciado migrando do Contente Magoado para

o Barão da Ralé, no sentido de que perde o caráter de canção regional do folclore mineiro

para se transformar em um hino da nação. Em um período marcado pelo discurso da

modernidade, do crescimento econômico, da bossa nova e Brasília, arquitetura modernista

brasileira internacionalmente reconhecida, isso pode parecer paradoxal. Porém, ao adquirir,

em âmbito nacional, um caráter ufanista, Barão da Ralé de um Governo que se estabelece sob

o discurso da modernidade, do crescimento, revisando tradições ainda poderosas, a presença

do Peixe-vivo pode ter servido para estrategicamente amenizar a percepção de aniquilamento

dessas tradições. Em resumo, ao deslizar de canção folclórica regionalizada para canção

ufanista de alcance nacional, o Peixe-vivo bem poderia ser interpretado deslizando do

Contente Magoado para o Barão da Ralé. Essa interpretação sugere que o ethos de uma

canção, da mesma forma que a relação prosódica e performática, pode rasurar o significado

intrínseco do enunciado e o sentido como discurso que desliza de um SD específico para

outro.

Considerando que esses deslizamentos não se originam e não se esgotam em um ponto

especificado no tempo, é de se supor que os discursos dos SD eleitos, (expressos como

enunciado-canção) sejam constantemente rasurados. A condição da rasura tornaria

insuficiente enquadrar o discurso dos SD eleitos em uma estrutura de Estado de Sujeito, com

tais características sob tal contexto, cristalizando, ainda que momentaneamente, significado e

sentido. De fato, esse enquadramento não se realiza. Não se realiza, considerando a movência,

condição de possibilidade do movimento, como uma latência do discurso que sugere um

entre, uma diferança expressa entre o conceito que nunca se fecha e a palavra que sempre

pode dizer uma outra coisa que não se consegue fixar.

Como a construção do Pachuco49 de Santiago que não é mais o sujeito “europeu rasurado pelo

movimento em direção à América colombiana”, mas também não se tornou o americano do

47 Peixe-vivo. Domínio público. s.d. 48 Faz referencia ao deslizamento no espaço e no tempo.. 49 O Pachuco é uma construção explicitada sob a condição da movência. Santiago procura expor o caminho que a palavra-conceito trilhou e que expressam transformações de significados. SANTIAGO, 2006.

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Norte, num segundo movimento que realiza do México para os Estados Unidos. Uma palavra

que já expressou a possibilidade de denominar a primeira condição de existência, europeu

rasurado, mas, que, em conseqüência do caráter aberto do movimento que nunca se completa,

não consegue dizer fielmente nem do primeiro estado de europeu rasurado, nem do segundo

de mexicano americanizado, sendo usada, pelo senso comum, no duplo sentido, o que desfaz

o nome e o conceito, o próprio estado de sujeito e fica como uma sugestão da diferança

derridiana.

Os tipos discursivos Rapaz Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado podem ser pensados

como alegorias sínteses cujos discursos deslizam através de um entre, o que não permitiria

estabelecê-las sequer numa estrutura de Estado de Sujeito. A assunção dessa condição

rasurada explica a condição de movência de caráter temporalizador a qual os SD estão

subjugados. É importante acrescentar que essa movência não é necessariamente uma condição

de movimento obrigatório, mas a possibilidade de movimento presente nos SD como uma

latência que a qualquer hora pode manifestar-se e manifesta-se provocando deslizamentos no

nome que sempre pode significar uma coisa a mais e no conceito que nunca se fecha.

Vejamos como isso ocorre em cada SD.

Rapaz Folgado e Barão da Ralé são categorias que a princípio operariam a partir de pólos

opostos no que diz respeito à forma de se relacionarem como alteres ente si, porém, como já

colocado, um pode emular o discurso do outro ou dobrar-se sobre o outro dependendo do

contexto e das circunstancias em que produz o discurso dialógico. Repito, propositalmente,

um parágrafo que já apareceu em momento anterior, mas, que dado o caráter rizomático do

discurso-tese considero importante ser re-colado nesse momento do texto, considerando a

aproximação com a diferança derridiana, pensada como esse entre, movimento em que se

deixa entrever o elemento passado no presente, mas, que já vai sendo rasurado, marcado,

sulcado por outros significados resultando em algo que não é completamente novo, mas que

também já não teria semelhança com o estado apresentado no passado.

Sobre os deslizamentos do Rapaz Folgado e do Barão da Ralé podemos afirmar que os dois deslizam de um para o outro dependendo da situação – ambos estão sintetizados na figura do malandro que desliza no tempo em suas relações com seus alteres. Não é revolucionário. Antes de completar o movimento em direção ao contestador e em seqüência ao Revolucionário o Rapaz Folgado desliza na direção do Barão da Ralé que não chega por sua vez a completar o movimento de aburguesamento e tende a retornar a

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condição de Rapaz Folgado quando o dialogismo com seus alteres da elite aponta no sentido de enquadrá-lo na sociedade do trabalho50.

Esses deslizamentos podem operar como dobras sobre um mesmo corpo51, se pensarmos no

malandro como síntese dos dois SD. A estratégia de um e de outro fica submetida à condição

com que o contexto e as alteridades operam no dialogismo dos SD. Assim quando o Barão da

Ralé começa a se aproximar em demasia do burguês, e considerando que Barão da Ralé e

Rapaz Folgado são sínteses da mesma figura do malandro, ao não embarcar na condição

imposta pela sociedade do trabalho, acaba produzindo um movimento de dobra sobre si. Esse

movimento aos olhos do burguês será classificado como um retorno à condição, não de Barão

da Ralé, mas de Rapaz Folgado, o malandro que não quer trabalhar. Pode-se pensar no

enunciado de “Quem te viu, quem te vê52”, como a fala de um Rapaz Folgado para um Barão

da Ralé: “hoje eu vou sambar na pista você vai de galeria quero que você assista na mais fina

companhia...”. Acontece que, aos olhos da burguesia, esse Barão da Ralé, arrivista social, não

correria o risco de, na contingência relacional com a burguesia, sempre expor, como tatuagem

na carne, a alcunha de (ex)-malandro?

Essas rasuras dizem e especificam o que o dialogismo provoca no discurso. A rasura torna

impreciso – como o viver Ibérico e também o navegar da canção53 – determinar sentido ou

significado intrínseco para aquilo que é enunciado. Resta navegar. Resta seguir o movimento,

identificar rastros, linhas de fuga, sulcos do que nem se move constantemente, mas, que pode

se mover a qualquer hora, resignificar, reterritorializar não permitindo haver mais sentido fixo

possível, dado que guarda em si a propriedade da movência, não o movimento.

Desafiando uma vez mais a paciência do leitor tomo a liberdade de outra vez reproduzir algo

que foi dito anteriormente, mas, que, pela mesma justificativa anterior, considero importante

ser re-colocada nesse momento em que começamos a trabalhar com a diferança que não é

conceito nem palavra.

50 SD Orientador: “escancarando o dialogismo interno deste texto, coloque a referência bibliográfica (Mendes Junior, 2009, p. ...), como uma citação qualquer”. 51 Deleuze, Guattari. “Como criar para si um corpo sem órgãos”. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol 3. SP: Editora 34, 1996. 52 Quem te viu, quem te vê. Chico Buarque, 1967. 53 “O barco, meu coração não agüenta. Tanta tormenta, alegria. Meu coração não contenta. O dia, o marco, meu coração, o porto, não. Navegar é preciso, viver não é preciso. O barco, noite no céu tão bonito. Sorriso solto perdido. Horizonte, madrugada. O riso, o arco, da madrugada. O porto, nada. Navegar é preciso, viver não é preciso. O barco, o automóvel brilhante O trilho solto, o barulho. Do meu dente em tua veia. O sangue, o charco, barulho lento O porto silêncio Navegar é preciso, viver não é preciso”. Os Argonautas. Caetano Veloso, 1978.

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Pensar a diferança como um entre, um indefinível, como algo que ainda não é, mas, também não o deixa de ser. Não se constitui como conceito nem como identidade, nem coisa, nem signo, mas já se apresenta como possibilidade/devir em que o deslizamento no entre da possibilidade presente e do devir futuro, confirmará ou não. O entre, nem ser, nem não-ser, a exemplo dos SD por nós configurados, que não aderem ao conceito que os gera e já deslizam para outra coisa que não é exatamente o seu oposto, mas, que incorpora no sentido dialógico a fala do outro. Pensar nesse movimento como micro-insubordinação à medida que não emula o valor do outro, mas também não o revoluciona.

Assim, podemos considerar revolucionário o movimento que, ainda permitindo entrever o

Barão, o Rapaz e o Contente, produziria tal rasura nas alegorias que nos obrigaria abordar um

segundo discurso-tese. O Revolucionário que ainda não se manifestou nos SD eleitos, apesar

de já estar ali silencioso ou quase calado, ao fazê-lo introduz novo contexto ou nova rasura,

contexto revolucionário, um revolucionariando que se desdobra em novas relações de

alteridade, a alteridade de um sujeito discursivo reacionário ou alienado, nova negociação

onde o dialogismo se endurece e o jogo de oposições torna-se mais polarizado, dicotômico:

“pai, afasta de mim esse cálice54” porque “há soldados armados, amados ou não, quase todos

perdidos de armas na mão55”. O SD Revolucionário determinaria entre as décadas de sessenta

e setenta, no contexto da ditadura militar, o corte de nossas investigações.

Mais adiante neste discurso-tese abordaremos as justificativas de recorte. Por hora fica o

registro acima.

Retornemos aos SD rasurados pela diferança.

O Contente Magoado produz um movimento quase preciso, quase navegar lusitano, de dobra

sobre si. Ele foi em parte deixando de ser o sertanejo forte euclidiano e o matuto de Lobato

para, no Romance regionalista de 30, Rosa, Ramos, Rego, Queirós, Amado, deslizar sobre a

imagem do bom miscigenado que foi injustiçado pela geração anterior, ao mesmo tempo CM

deixava de ser o cavaleiro medieval, mas não completamente, permitindo entrever naquela

imagem mítica do passado ou sua face quixotesca inscrita nos enunciados das narrativas

populares, cordéis e fábulas de reis, dragões, castelos e princesas ou sua face vingadora,

bandoleira, heróica e bandida, inscrita no mesmo cancioneiro popular e nos enunciados da

imprensa e da literatura que tematizavam jagunços, cabanadas, farrapos, volantes e pistoleiros

para, simultaneamente, como mosaico caleidoscópio dos fragmentos de bom miscigenado,

54 Cálice, Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973. 55 Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré, 1968.

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forte, castelão e jagunço deslizar sobre a imagem de migrante injustiçado, o pau-de-arara, o

caipira, como antítese da modernidade, altere da classe média urbana, porém, já incorporando

essa imagem em si, a urbanidade como estilhaço visível no fundo cilíndrico do mesmo

caleidoscópio. A cidade inscrita em Riobaldo, inscrita no jagunço-fazendeiro internamente

cindido e problematizado como sujeito urbano moderno, inscrita no moreno do “Rancho

Fundo56” que vive louco de saudade só por causa do veneno das mulheres da cidade, inscrita

na gauchesca “Prenda Minha57” que “foi-se embora e me deixou na saudade”, na perda, na

impossibilidade de uma volta que não se realiza. Ainda que essa mesma saudade se inscreva

no discurso do Contente Magoado camuflando essa perda incondicional e já construindo do

mito da “Asa Branca58”, o retorno possível: “Eu te asseguro, não chores não, viu, que eu

voltarei, viu, pro meu sertão”. Essa saudade não precisa estar necessariamente narrando

imagens de ordem migratória para ter por contraponto a cidade (Prenda Minha não fala nem

de cidade nem de migração), mas, sim, a construção do interior, qualquer interior, pela ótica

da perda, como o outro, como não-hegemônico. Em um país que expressa o discurso de poder

pelo movimento de trânsito do rural para o urbano (do Fogo Morto para a Paulicéia

Desvairada), sobressai-se, destaca-se no contexto de formação da nação uma imagem de rural

contaminada pela umidade urbana. Mesmo a migração do Contente, como já dito, não precisa

necessariamente ocorrer numa base física para atuar sobre a construção do outro rasurado pela

cidade. Por exemplo, o nordestino e o caipira paulista não precisam necessariamente descer na

rodoviária da cidade grande para perceberem-se rasurados por ela. O Contente Magoado já

traz a cidade como fragmento de si desde que a inscrição rural como contraponto da cidade

assumiu a hegemonia, a primazia dos embates discursivos que tratam desse outro Brasil. “A

Serra da boa esperança59”, que “encerra no coração do Brasil um punhado de terra” prenhe de

saudade, não está localizada em nenhuma região específica, a não ser aquela que não é a

cidade. O êxodo e a cidade instalam-se na máquina discursiva que inscreve a ruralidade no

mundo, mesmo nas narrativas que não tratam necessariamente do trânsito intra e inter-

regional em direção à capital.

Esse “mundo” é o mesmo que faz contraponto com o lugar da “Felicidade60” que fica “lá de

trás do mundo”, o “lá de fora, onde a falsidade não vigora”. Lá de fora gaúcho, nordestino,

56 Rancho fundo. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1931. 57 Prenda minha. Domínio Público, s.d. 58 Asa branca. Luís Gonzaga, Humberto Teixeira, 1947. 59 Serra da boa esperança. Lamartine Babo, 1937. 60 Felicidade, Lupcínio Rodrigues, 1932.

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caipira, sertanejo e de tantas outras imagens da alegoria Contente Magoado que se contrasta

com o centro, correspondendo à metafísica do dentro.

Se na condição de altere da cidade, o Contente Magoado é constituído por imagens da

saudade, da perda, do não-civilizado e do fora, pode-se articular um último deslizamento do

Contente Magoado em direção aos dois outros SD eleitos, considerando que o malandro que

especifica no mundo o Barão da Ralé e o Rapaz Folgado tem por ethos a não-cidade burguesa,

as zonas obscuras da civilização, o fora da cidade que pode ser o subúrbio, a favela ou

qualquer espaço degradado, construído sob o signo do perigo, da carência, da perda, do

desaparecimento. O discurso reformador de aburguesamento dos espaços públicos e privados

da cidade age no decorrer do século XX sob os paradigmas das concepções belle-epoqueanas,

da modernidade conservadora do Estado Novo e, por fim, do progresso modernista dos anos

JK. O cancioneiro sob a determinação dos SD eleitos inscreve esse lugar de fora que contrasta

com um lugar de dentro, como Arcádia como comunidade de pessoas que se opõe à

impessoalidade da multidão na cidade. Assim, o Barão, o Rapaz e o Contente inscrevem o

espaço burguês como lugar cujos códigos precisam ser aprendidos e re-negociados ao

contrário do que expressam ao inscrever favela e roça.

♪♪♫♫

Porque os SD eleitos localizam-se entre a Belle Époque e o período inical da Ditadura

Militar?

Comecemos identificando algumas interpretações que justificam a escolha do corte inicial da

pesquisa na passagem ente os séculos XIX e XX. Essas justificativas podem ter por alicerce

questões relativas aos SD eleitos, aos seus alteres ou ao contexto. Antes de ir adiante é

necessário especificar, poupando-nos do risco da contradição, que já demos por desconstruído

a percepção de um contexto que objetiva-se como um completamente outro em relação aos

sujeitos discursivos. O contexto seria constituinte do dialogismo estando dentro e fora, nem

dentro nem fora, Khôra que sulca. Por isso o Barão é sulcado pelo contexto trabalhista para

dobrar-se sobre si e cair como Rapaz Folgado aos olhos da burguesia em movimento de

deslizamento, deslocamento, metáfora de metáfora, sem origem, sem fim, sem descanso no

conceito. A forma que adotamos nas sessões seguintes pode sugerir retrocesso ou contradição.

Porém, o efeito pretendido é o de (1) alavancar, reconhecer a estrutura dada pela

historiografia, pela Academia em termos gerais, em que se hierarquizou os discursos

classificáveis pelas alcunhas de científicos e não-científicos, logo válidos ou não válido para o

tratamento das “realidades sociais no mundo”, (2) derrubar, inverter essa estrutura,

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demonstrando que o discurso do tipo cancioneiro popular é válido para o tratamento da

“materialidade social”, inclusive sendo capaz de enxergar tessituras de relações em que num

texto enquadrado pela sociologia clássica, por exemplo, de inspiração durkheimiana,

aparecem desfocadas ou nunca seriam contempladas.

Feito o alerta, esboçaremos a partir de agora uma espécie de ação quase linear quase

genealógica do cancioneiro em certos contextos historiográficos.

Em termos bem objetivos, que dizem respeito à elevação da base tecnológica da sociedade, a

Belle Époque corresponde ao momento de instalação da indústria fonográfica quando se

realizam as primeiras gravações musicais no Brasil.

O inverno é rigoroso. Bem dizia a minha avó. Quem dorme junto tem frio. Quanto mais quem dorme só. Isto é bom. Isto é bom. Isto é bom que dói... Se eu brigar com meus amores. Não se intrometa ninguém. Que acabado os arrufos. Ou eu vou, ou ela vem. Quem ver mulata bonita. Bater no chão com o pezinho. No sapateado a meio. Mata o meu coraçãozinho. Minha mulata bonita. Vamos ao mundo girar. Vamos ver a nossa sorte. Que Deus tem para nos dar. Minha mulata bonita quem te deu tamanha sorte? Foi o Estado de Minas ou o Rio Grande do Norte. Minha viola de pinho que eu mesmo fui o pinheiro. Quem quiser ter coisa boa não tenha dó de dinheiro61.

Catálogos internacionais da primeira década do século XX já apresentavam músicas gravadas

no Brasil: o “Hino Nacional62”, a “Abertura do Guarani63” e “Vem cá, Mulata64”. Uma

possível interpretação desses dados observa que, desde a sua gênese, a indústria fonográfica

reproduziu a imagem do campo reflexivo, relativa ao cancioneiro, em que discursos que

aderem e não aderem ao poder se articulam em SD distintos, porém, imbricados: O civismo

61 Isto é bom. Xisto Bahia, 1902. Gravado no Brasil pela Casa Edison e fabricado na Alemanha pela Zon-O-Phone. Trata-se de um lundu, ritmo híbrido de influência negra e européia, sincopados bem marcados e linha melódica inspirada no fraseado das modinhas de salão. A canção é interpretada pelo cantor Baiano, negro, migrante que se situa socialmente numa pequena burguesia étnica que tem como epicentro dos laços de solidariedade a figura das tias baianas da Gambôa, Praça Onze e adjacências. Para alguns historiadores esta pode ter sido a primeira gravação musical feita no Brasil. Vale acentuar na letra da canção algumas interpretações que inscrevo como aspectos da sociedade brasileira em processo embrionário de urbanidade e modernidade: a moral tradicional sendo rasurada por imagem ainda velada do erotismo entre casais. O pedido de privacidade nas questões conjugais. A adoração à mulata pela pequena burguesia comerciante. A migração negra inter-regional que pode vir de Minas Gerais ou Rio Grande do Norte. O dinheiro, elemento central numa sociedade que experimenta o capitalismo e a modernidade como percepções simultâneas à liberdade e a cidadania. 62 Hino Nacional. Francisco Manuel da Silva, 1822. 63 O Guarani. Carlos Gomes, 1870. 64 Vem cá mulata. (I) Pepa Delgado, Mário Pinheiro – (C) Arquimedes de Oliveira,1906.

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do “Guarani” e a ironia mestiça de “Vem cá, mulata!”, bem poderiam expressar enunciados

respectivos aos SD Barão da Ralé e Rapaz Folgado.

Em 1902, a Casa Edison editou um catálogo nacional com 228 gravações. Essa seleção

musical reproduzida por meios mecânicos também é disponibilizada em lugares públicos.

Em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro, especialmente em locais de ajuntamento forçado, como os de espera de condução, instalaram-se, mediante pagamento, fonógrafos para divertimento do cidadão comum. (FRANCESCHI, 2002, p.33). Ao lado, uma sala de espera. Pobre e simples, para os passageiros, mostrando, ao fundo, um lavabo, que se decora de um espelho eternamente baço, bancos envernizados, e, digno de especialíssimo registro: em caixas de madeira, dos primeiros gramofones (fonógrafos) que chegam ao Rio, com seu par de auscultadores de borracha e uma fendazinha para o níquel da auscultação, mostrando um letreiro gravado em metal, com estas palavras: ponha aqui na parte superior, e na inferior, cem réis (EDMUNDO, Luís apud FRANCESCHI, 2002, p.33).

Ao mesmo tempo em que se instalava a indústria fonográfica, que de forma pioneira

começava a gravar música nacional, essas gravações passaram a circular pelo território

nacional, constituindo-se como um cancioneiro gravado na cidade do Rio de Janeiro que, a

partir do início do século XX, alcançava outras cidades e regiões do país.

Valendo-se dos meios de comunicação da época – anúncio em jornal, envio de folhetos e catálogos pelo correio, e, sobretudo, com vendedores pracistas em quase todos os Estados, atingindo as mais distantes localidades, desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul Figner65 estabeleceu, para a Casa Edison, a base de uma rede nacional de comércio. (...) A partir de 1903 essa rede se tornou uma realidade. Daí em diante, a Casa Edison atendia solicitações – algumas restringiam-se a dois ou três discos ou a alguma novidade norte-americana – vindas de Santarém, de Manaus, de Cuibá, de Ponta Porá, de Corumbá, de Bauru, que constituíam parte da cadeia do interior; além das que eram atendidas pela rede do litoral que se formava em Belém, passando por S. Luís, Fortaleza, Natal, Recife, João Pessoa, Maceió, Aracajú, Salvador, Ilhéus, Vitória, Santos, Florianópolis, Pelotas, Rio Grande, indo até Porto Alegre. Considerando os meios de transporte da época, e conferindo a data dos pedidos com as datas de remessa e entrega, constata-se que o tempo necessário para o transporte, a esses pontos extremos, se estendia por um mês ou mais (FRANCESCHI, 2002, p.56).

A literatura, no mesmo período, é atravessada pelo discurso de construção da identidade

nacional que busca romper com o mito de origem alencariano, do índio nobre ou do caboclo

puro, preso ao passado colonial e escravista do século XIX. Esse mito já não deveria servir

65 Fred Figner foi proprietário da Casa Edison, primeira gravadora e distribuidora de música em cilindro, chapa e disco do Brasil.

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como síntese da identidade nacional, frente à máquina discursiva que adentra o século XX

tecendo discursos que defendem a urbanidade, a civilização e a modernidade com base em

padrões estrangeiros, principalmente, francês e norte-americano (CUNHA66).

Às portas do século XX, nossos intelectuais já sabiam (ou assim interpretaram67) que as diversas versões do brasileiro – o índio, o mestiço, o sertanejo, o bandeirante, o gaúcho – não primavam exatamente pela força, beleza, coragem, nobreza, atribuídos a eles por José de Alencar ou por Gonçalves Dias (MOTA, 2000, p. 51).

O período em foco, sob o discurso dos alteres dos SD eleitos, seria marcado por essa inversão

de valor que caminha do regional puro para o híbrido urbano. Considerando que no século

XIX o choro apresenta-se como uma derivação da polca européia, assim como o maxixe

origina-se do lundu, afro-brasileiro, acrescido de certa contribuição da habanera afro-cubana,

é razoável propor que os ritmos urbanos reforçaram a construção discursiva que inscreve a

cidade como lugar da confluência de culturas estrangeiras, migrantes e oriundas de diferentes

classes sociais reproduzindo uma polifonia que retro-inscreve a cidade como espaço

hibridizado.

A música brasileira moderna é em parte, o produto desta apropriação e desse encontro de classes e grupos sócio-culturais heterogêneos. Não houve, na verdade, a apropriação de um material puro e autêntico como querem alguns críticos (Tinhorão, 198168), na medida em que as classes populares, sobretudo os negros pobres do Rio de Janeiro e mestiços do nordeste, já tinham a sua leitura do mundo do branco e da cultura hegemônica. Assim a música urbana brasileira nunca foi pura, (...) ela já nasceu como resultado de um entrecruzamento de culturas. De qualquer forma, as maneiras como os pensamentos em torno da música popular foram construindo uma esfera pública própria, com seus valores e expectativas, traduzem processos permeados de tensões sociais, lutas culturais e clivagens históricas. Esta é uma das possibilidades de abordar a relação entre música e história (social, cultural, e política), sem que uma fique reduzida à dinâmica da outra (NAPOLITANO, 2005, p. 49).

A passagem do século, sob a leitura das elites artísticas, intelectuais e políticas, (enunciada em

crônicas, discursos políticos, pinturas, na emergente fotografia, textos acadêmicos, poemas,

notícias e músicas) carrega a marca da transição de uma identidade cultural colonial para uma

identidade cultural urbana, onde as dicotomias são construídas pela oposição do velho ao

66 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia, p 246. 67 Observação minha. 68 TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio/TV. São Paulo: Ática, 1981.

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novo, do colonial ao moderno, do selvagem ao civilizado, do escravista ao trabalhista, do

campo à cidade, da paisagem natural romântica à paisagem urbana moderna.

Lembremos aqui que a Belle Époque corresponde ao período que se segue à abolição. Sobre

esse período pós-abolicionista, Cunha argumenta que a meta da abolição, antes de ser

alcançada, mantinha coesa a elite republicana e abolicionista na crença discursiva de que a

partir do reconhecimento de todos como cidadãos livres, a tão sonhada unidade do povo

naturalmente se expressaria, considerando a isonomia cidadã que ela produziria. Porém, essa

interpretação da elite não se sustentou e o que se seguiu do episódio abolicionista foram mais

diferenças, marcadas por múltiplas singularidades culturais e heterogeneidades sociais que até

então operavam longe das ruas e do olhar civilizatório, encobertas sob o manto escravista.

Frente esse fenômeno, a elite divide-se e testemunha a cizânia de seus discursos e opiniões

sobre como lidar com a liberdade dos “novos cidadãos”. A Belle Époque também corresponde

a esse momento em que os SD eleitos do cancioneiro expressam discursos que punham em

cheque as novas regras sociais, enquanto os discursos oriundos da elite tentavam impor

limites à experiência de liberdade. Essa transição representaria para a elite, “o momento em

que não se sabia muito bem os limites entre o aceitável e o desejável” (CUNHA, 2001, pg.

155).

Eu estava no botequim ao lado de uma mulata Chegou um major na ronda e acabou com a serenata Era grito de socorro e toda gente a gritar Pegue o desordeiro não me deixe ele escapar Seu major vá se embora que eu não quero história não Não me prenda que eu não vou pra casa de detenção Se você não vai pra casa de detenção Então vai cantar aquele samba... Quebra calçada Ta bom, seu major já que o senhor pede. Eu vou cantar o quebra calçada De dia prego calçada de noite eu faço arrelia Me chamam quebra calçada Prega e canta Ave-Maria69. Eu vou beber. Eu vou me embriagar. Eu vou fazer barulho pra polícia me pegar. A polícia não quer que eu sambe aqui. Eu sambo ali. Sambo acolá70. Batuque na cozinha sinhá não quer. Por causa do batuque eu quebrei meu pé. Não moro em casa de cômodo não é por medo não.

69 O malandro. Eduardo as Neves, 1907. p2 70 Paladinos da Cidade Nova, 1907. Considerando a repressão da polícia expressa na canção, vale acrescentar que o termo “barulho” à época tinha conotação de briga.

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Na cozinha muita gente sempre dá em alteração71.

A transição expressa tenciona diretamente as negociações entre os discursos que emergem dos

SD eleitos, principalmente, nas negociações com o padrão burguês que determina práticas de

uso e ocupação dos espaços da cidade. O discurso hegemônico da elite funciona opondo pares

dicotômicos: civilização ou barbárie, modernidade ou atraso, música erudita ou ritmos

primitivos, carnaval veneziano da elite ou carnaval de rua da plebe. Essa forma polarizada de

construção mundo produzirá efeitos no discurso dos SD eleitos, interferindo naquilo que eles

próprios selecionavam e atuavam como cancioneiro popular, em última instância, o que era

considerado música e não-música. Na análise de Cunha, as Grandes Sociedades

Carnavalescas do século XIX caracterizaram-se por sua insistente função pedagógica a

serviço do discurso civilizatório. Tal função dá-se através da fixação de paradigmas estéticos

da elite e condutas “civilizatórias” que, na prática, ocorriam durante os desfiles, seja através

das mensagens veiculadas nos “carros de idéias72” seja pelo luxo das apresentações públicas

que marcavam o ponto alto do carnaval. O pobre adentra o século XX reproduzindo em certa

medida práticas carnavalescas que emulam o discurso da elite através da apropriação de

signos de distinção e da adesão a critérios de ordem e moral, tão caros à estética burguesa

(CUNHA, 2001, pg. 162). Esse processo é identificado pela autora como o resultado direto do

esforço pedagógico que o carnaval das Grandes Sociedades efetuou nos espaços públicos da

cidade durante os festejos do século anterior. O resultado disso é que entre o entrudo do

século XIX e os cordões e ranchos que ditam a folia no século XX, a idealização de um

carnaval ordeiro passa a orientar as práticas carnavalescas. Em 1907, o Ameno Resedá do

Catete torna-se o primeiro rancho, com reconhecimento de toda a imprensa, a inaugurar o

novo carnaval civilizado.

Em 1911, o presidente Hermes da Fonseca reúne alguns convidados em palácio para o carnaval e decide convidar o Ameno Resedá para ali apresentar suas músicas e seu enredo intitulado “Corte de Belzebuth”. O sucesso do grupo fez com que aumentasse, ainda mais, o interesse do povo carioca pelos desfiles desses conjuntos harmoniosos, que aconteciam na segunda-feira de carnaval. Outros grupos vão se adaptando a essa forma de desfilar com o objetivo de desfrutar da consideração crescente por parte da imprensa e da elite intelectual. (FERREIRA, 2004, p.302).

71 Batuque na cozinha. João da baiana, 1923. (Disponível no CD a versão de 1911 de Zeca). 72 Apesar da tentação de se desejar enxergar nesses carros a origem dos carros alegóricos do carnaval moderno das Escolas de Samba, os carros de idéias se qualificavam como discursos da burguesia moderna que pretendiam, através da mensagem expressa nos carros, moralizar a suposta plebe rude que assistia amontoada nas ruas ao desfile das Grandes Sociedades circulando pelo Centro da capital do Império.

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Propomos que, uma vez configurada a emergência e expansão da indústria fonográfica, a

função pedagógica do discurso carnavalesco e musical exercida pelas Grandes Sociedades do

século XIX, foi pari passu deslizando e sendo apropriada também por grupos das classes

populares como o Ameno Resedá. Tais grupos herdam o carnaval temático das Grandes

Sociedades e reproduzem, como estratégia de negociação e convivência com o poder, as

idéias hegemônicas de ordem e comportamento expressas nos discursos da elite. Em parte, o

fazem como estratégia de sobrevivência no encontro de forças e poderes desiguais, em parte,

o fazem de olho nas benesses que adviriam do pacto com o poder. As canções carnavalescas

do século XX introduzem-se como um novo elemento de função pedagógica com maior poder

de persuasão e divulgação, considerando-se também as novas tecnologias de reprodução

mecânica das músicas como facilitadores desse processo de difusão que ao longo do século,

transcorrerá um percurso histórico que vai dos alto-falantes nas praças públicas até a Rádio

Nacional e a televisão.

Sobre a apropriação dialógica do carnaval da elite pelas classes populares (configurando uma

pedagogia rasurada das canções que a princípio interpretaríamos como discurso do SD Barão

da Ralé), há de se considerar, embutidos no dialogismo certos conflitos, adaptações, traduções

e resistências. Tais aspectos discursivos constituem alguma ambigüidade, ou melhor, um

deslizamento estratégico entre o pólo da ordem e o da transgressão. Como campo reflexivo, o

cancioneiro inscreve na máquina discursiva oficial que pretende responder o que é a

identidade nacional, essa convivência conflituosa entre os SD eleitos sob certos contextos.

Podemos identificar na contaminação provocada pelo contexto no dialogismo entre os SD

eleitos um duplo deslizamento do conceito pedagógico como aplicado às Grandes Sociedades.

(1) Como um deslizamento em que os discursos da elite contaminam o cancioneiro popular

inscrevendo em khôra, relativa ao feixe cancioneiro popular, o SD Barão da Ralé.

Considerando aí um tipo de negociação em que o SD eleito tende a emular o discurso da elite

(por sua vez, altere do cancioneiro popular inscrito pelos SD eleitos) como estratégia possível

de convivência. (2) Como deslizamento em que os discursos escorregam do SD Barão da Ralé

e contaminam os discursos do SD Rapaz Folgado e vice-versa. Nesse caso, a negociação

expressa-se nitidamente de forma tensa. Não há uma predisposição de emular o discurso da

elite, altere do cancioneiro popular, sequer pelo filtro do Barão da Ralé. Ao contrário, há uma

tendência de tomar esses discursos como paradigmas a serem transgredidos. É importante

alertar ainda que esses deslizamentos ocorrem de forma simultânea e não como dois

momentos que em seqüência seriam temporalizados pela historiografia tradicional ou pelo

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discurso-tese, como se o discurso da elite precisasse antes passar pelo SD Barão para então

chegar ao SD Rapaz.

Foi através do cancioneiro popular que se desenrola ao longo do século XIX, que a música

popular inscreveu-se como discurso constituinte da invenção de uma nova percepção do

cotidiano urbano e, principalmente, público. Isto é, o cancioneiro fez parceria com os

discursos de seleção e reconstrução material, axiomática e sígnica dessa nova percepção de

cotidianidade pública que apresentava seus novos personagens: vendedores de rua, políticos

prolixos, populistas corruptos, dândis ditosos, atrizes famosas, cáftens e prostitutas afamadas,

acadêmicos inflamados, malandros carismáticos e agentes da lei truculentos. Entram nesse

repertório da reinvenção cotidiana os episódios contingentes, afetos e desafetos expressos em

encontros inesperados no espaço público remodelado, na Avenida, na galeria, no bonde, nos

cafés, nos teatros e nos bares, casos chocantes de violência, grandes acontecimentos cívicos,

enfim, toda uma gama imagética de práticas, conflitos e personagens que até então não

desfrutavam de primazia no campo reflexivo (ou khôra derridiana rompendo a separação

campo/contexto) referente ao cancioneiro popular.

“A mania de querer fazer a modinha dizer alguma coisa, que no romance Lima Barreto não esclarece qual seja, era referência ao fato de Eduardo das Neves ter criado, a partir da última década do século XIX, a novidade da composição de cançonetas, modinhas e lundus sobre acontecimentos históricos ou de interesse do momento, como os crimes famosos, escândalos da cidade, etc.” (TINHORÂO, 2000, p. 16).

O estranhamento de Lima Barreto adviria justamente desse ponto de inflexão na primazia

temática do cancioneiro popular (ou ainda na sua contaminação) ao abrirem-se espaços em

seus discursos que, dantes, trataram tão enfaticamente do amor, da alcova e da vida privada

burguesa e pequeno-burguesa, sentimental, na melhor das hipóteses, comunitária, para lidar

com temas públicos e políticos que interessariam a todos contaminados e contaminadores do

signo urbano/moderno.

Em nossa interpretação, consideramos também como fator que justifica a escolha do corte

inicial da pesquisa na passagem ente os séculos XIX e XX, esse deslocamento/deslizamento

que os SD eleitos (como constituidores de um campo reflexivo referente ao cancioneiro

popular) produzem ao inscreverem em si sob os efeitos de contaminação, umidade do

contexto, khôra, construções relativas a práticas e conflitos do contexto que retro-alimenta-se

re-significando-se no embate entre si, jogo de diferenças e semelhanças em que sujeitos e

alteres se assujeitam e se ressujeitam em relação de uns aos outros. Os discursos SD eleitos, a

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princípio, buscariam orientar-se, ideologicamente, segundo os pólos de afinidade/repulsa e

proximidade/distância maior ou menor com os interesses inscritos pelo discurso da elite,

constituindo um jogo de disputas e negociações principalmente nos campos político, social e

cultural. Mas, também pelo direito a reterritorializar a cidade, pelo direito de ocupar, usar e

redefinir a cidade. Tais discursos dos SD eleitos estariam contaminados, umedecidos, pelos

discursos relativos à fala da imprensa, da academia e do dissenso interno à fala da política.

Propomos que a partir do período assinalado o cancioneiro popular passa a fazer parte desse

jogo de forma enfática, dessas composições de múltiplas parcerias imagéticas que constituem

os inúmeros contextos: político, social, cultural, urbanístico, sanitarista, trabalhista que

abrigam a derivação, rasura, da nova estrutura dialógico-discursiva: certa percepção moderna

de cotidiano e de acontecimento, como nítido caractere belle-epoqueano.

Propomo-nos agora apresentar uma série de canções que enunciam o deslizamento dos SD

eleitos no campo reflexivo do cancioneiro popular sob a rasura do novo contexto belle-

epoqueano.

Como canção que discursa próximo ao diapasão da crônica urbana moderna, umedecida pelas

(e umedecendo as) falas da imprensa, do Governo enquanto participa da invenção de novas

percepções de cotidiano e de acontecimento, pode-se citar o lundu “Rato, Rato, Rato” que em

1904 ironizava a campanha do médico-sanitarista Oswaldo Cruz.

Rato, rato, rato. Porque motivo tu roeste meu baú? Rato, rato, rato. Audacioso e malfazejo gabiru. Rato, rato, rato. Eu hei de ver ainda o teu dia final A ratoeira te persiga e consiga satisfazer meu ideal. Quem te inventou? Foi o diabo, não foi outro, podes crer. Quem te gerou? Foi uma sogra pouco antes de morrer! Quem te criou? Foi a vingança, penso eu. Rato, rato, rato, rato. Emissário do judeu. Quando a ratoeira te pegar, monstro covarde, não me venhas a gritar, por favor. Rato velho, descarado, roedor. Rato velho, como tu fazes horror! Nada valerá o teu qüim-qüim, Tu morrerás e não terá quem chore por ti, Vou provar-te que sou mau, Meu tostão é garantido, Não te solto nem a pau73.

73 Casemiro Rocha e Claudino Costa, 1904. Em 1902, depois de uma epidemia de peste bubônica no Rio de Janeiro, o recém-nomeado diretor da Saúde Pública, o médico Oswaldo Cruz, lançou uma grande campanha para reduzir o número de ratos, que proliferavam nas favelas, cortiços e bairros pobres da cidade. Um esquadrão de cinqüenta “homens da corneta” passou a percorrer os bairros pobres espalhando raticida, removendo lixo e pagando à população cem réis por bicho morto. Chegou-se a criar o cargo público de “caçadores de ratos”. Estima-se que 10 milhões de animais tenham sido abatidos. As medidas sanitárias desencadearam uma enorme onda de comércio de ratos, havendo, inclusive, quem tenha passado a criá-los com o objetivo de vendê-los às autoridades. A frase inicial que fala em “roer o baú” refere-se ao rombo que os “criadores de ratos” teriam provocado nos cofres públicos. O refrão “Rato, rato , rato” se inspira nos pregões dos compradores

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74 75

Outra canção que expressa reinvenção de percepção cotidiana é o maxixe “Vem cá mulata”,

1906, que caçoa das relações amorosas entre o migrante português e a mulata brasileira. A

construção imagética do português seduzido pela mulata, típica do período, seria re-inventada

inúmeras vezes pelo cancioneiro nas décadas seguintes, como no samba “Com que roupa?”,

de 1924, reforçando a imagem dicotômica português/mulata como experiência cotidiana.

Vem cá mulata! Não vou lá não! Sou democrata, sou democrata, sou democrata de coração. Ao povo sempre damos alegria e batalhamos pela folia. Não receamos nos sair mal e letra damos no carnaval76.

Teu português agora deu o fora. Foi embora e levou seu capital. Desprezou quem tanto amou outrora. Foi no Adamastor pra Portugal. Pra se casar com uma cachoupa77.

Em 1907, foi aproveitado um “paso doble” (ritmo espanhol) intitulado “La Mattchitche”,

para musicar a narrativa dos assassinatos dos migrantes Carluccio e Paulino Fuoco pelos

de rato que saíam a rua anunciando a compra da mercadoria. Atente-se ainda para o anti-semitismo desavergonhado que compara o povo judeu aos ratos. 74 A caricatura foi capa da revista “O Malho” de 1904. Dedicada a ridicularizar a campanha contra a peste bubônica do sanitarista Oswaldo Cruz. O agente de saúde acaba enforcado pela lei, enquanto os ratos passeiam livres ao redor dos governantes. 75 “Caça aos Ratos”. Álbum de recortes de jornais e revistas reunidos por Oswaldo Cruz, década de 1900. Caricatura de J. Carlos. Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz. 76 Vem cá mulata. (I) Pepa Delgado, Mário Pinheiro – (C) Arquimedes de Oliveira,1906. 77 Com que roupa. Noel Rosa, 1929.

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italianos Carleto e Rocca, O crime ocorreu a 18 de outubro de 1906, no Rio de Janeiro, numa

joalheria à Rua da Carioca nº 11. Esse cotidiano referente a crimes e violências comumente

noticiado nas páginas dos periódicos e analisado nas crônicas urbanas passa a ser inscrito

também pelo cancioneiro popular.

O Padre Santo disse Que é pecado Andar de braço dado Com o namorado O Padre Santo disse Que é pecado Andar de braço dado Sem ser casado Mandei fazer um terno De jaquetão Pra ver Carleto e Rocca Na detenção Mandei fazer um terno De jaquetinha Pra ver Carleto e Rocca Na carrocinha78.

Outra canção que produz inscrição de imagens de crime e violência na construção do

cotidiano é “Estranguladores do Rio” de 1907. O tom dramático da melodia orienta a reação

de indignação da sociedade.

Na Rua da Carioca, pleno Rio de janeiro. Deu-se um crime horroroso Que abalou o mundo inteiro Sarmento e Eugênio Rosa Heróis da perversidade Mataram Carlo e Maurino. Dois entes na flor da idade Justiça, senhores da terra, justiça, mais uma vez. Gritar não é demais para quem tal crime fez79.

A música seguinte reinscreve na percepção cotidiana referente à bela época um acidente

marítimo com um navio da marinha brasileira. A canção carnavalesca foi muito cantada, seu

tom alegre em marcha veloz animava as ruas da cidade no carnaval de 1906, a despeito dos

200 marinheiros que morreram afogados no naufrágio.

Lá se foi o Aquidabã. O navio da batalha. Pegou fogo no alto mar. No alto mar.

78 La Mattchitche. Borel Clerc, 1907. 79 Estranguladores do Rio, Eduardo das Neves, 1907.

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E não pôde se salvar80.

Como enunciado que se expressa em diapasão próximo ao do discurso político-ufanista, cito

uma canção enaltecendo Santos Dumont, em virtude de uma visita do inventor ao Rio de

Janeiro. O tom da música é de respeito, reforçando a idéia da celebridade nacional que

representa o valor do Brasil no exterior e por extensão do povo brasileiro frente outros povos.

A Europa curvou-se ante o Brasil.

E clamou parabéns em meigo tom. Brilhou lá no céu mais uma estrela. Apareceu Santos Dumont81.

Ainda no que tange a reinvenção dessa percepção de cotidiano reforçada pela parceria com

discursos que emanam do cancioneiro popular e que se espraiam inclusive pelo campo da

política, vale explicitar o contexto que motivou a polca carnavalesca, “No bico da chaleira”. O

Morro da Graça no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro era palco de um ininterrupto sobe

e desce de senadores, deputados, juízes, empresários ou, simplesmente, candidatos a cargos

públicos ou mandatos eletivos. A razão do tráfego de personalidades e pessoas comuns era

que no morro morava o então senador Pinheiro Machado, do Rio Grande do Sul, líder do

Partido Republicano conservador que dominou a cena política no início do século XX. A

polca "No Bico da Chaleira" – grande sucesso do carnaval de 1909 – satirizava o

comportamento dos bajuladores que disputavam acirradamente o privilégio de segurar a

80 O encouraçado brasileiro Aquidabã, após sucessivas explosões no paiol de munições, naufraga na Ilha Grande, enseada de Angra dos Reis. O acontecimento serviu de tema para essa canção carnavalesca apresentada pelo cordão Filhos da Estrela dos Dois Diamantes, 1906. 81 A conquista do ar. Eduardo das Neves, 1902.

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chaleira que supria de água quente o chimarrão do senador gaúcho, nem que para isso

queimassem os dedos segurando a chaleira pelo bico. Segundo Almirante, em depoimento

para a Rádio Nacional: “Nascia daí o dito popular chaleira, para chamar alguém de adulador,

e a expressão pegar no bico da chaleira, para indicar a ação de adular”.

Iaiá, me deixe subir esta ladeira. Que eu sou do grupo do pega na chaleira Que vem de lá Bela Iaiá Ó abre alas Que eu quero passar Sou Democrata Águia de Prata Vem cá mulata Que me faz chorar82.

A imagem da chaleira que sustenta a ironia com o grupo de aduladores do senador, ainda

renderia duas outras versões. Uma confrontando a moral da época com imagens de duplo

sentido e outra produzindo críticas de referência política mais evidentes.

Menina eu quero só por brincadeira Pegar no bico da sua chaleira Ela está quente e se você segura Fica com uma grande queimadura É moda agora e eu justifico (Com que eu implico) Pegar no bico de uma chaleira Muita senhora nos engrossando Leva pegando a vida inteira Se você vai apertar-me no bico Não imagina como eu logo fico Não, eu seguro assim desta maneira Lá no biquinho da sua chaleira83. Neste século de progresso Nesta terra interesseira Tem feito grande sucesso O tal “pega na chaleira84”.

A percepção da hipertrofia da cidade no repertório imagético da Belle Époque deve ser

interpretada não como algo dado, mas, como resultado de tensões que se desenrolam no

âmbito do jogo discursivo: do querer-dizer em conflito com o poder-dizer. Assim, notícias,

caricaturas, festejos carnavalescos, cívicos e religiosos, discursos políticos, laudos da polícia,

82 No bico da chaleira, Costa Júnior, 1909. 83 No bico da chaleira. Vanderley, Eustórgio, 1909. 84 Gargalhada (Pega na chaleira). Eduardo das Neves, 1909. Eduardo das neves vai citar vários tipos sociais e várias relações de adulamento, como por exemplo o padre que pega na chaleira do bispo ou o soldado que pega na chaleira do tenente e assim por diante. A música inteira consta da seleção gravada no CD.

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falas técnicas de sanitaristas e urbanistas, a voz emergente da publicidade, reclames e

propagandas, falas do teatro de revista, a crônica policial85 e a crônica de costumes, revistas

de tipos, modas e personalidades86, discursos da academia, além da produção literária,

científica e ficcional, estariam dialogizando entre si, constantemente, mas, também

disputando com determinação a primazia do enunciado que diz da coisa em si, segundo

interesses de indivíduos, de grupos, de classe, de campo e de qualquer outra síntese

construtivista metodológica que a rasura identificaria como metafísica ou efeito de verdade,

análise de um suposto real dado.

O cancioneiro popular no período especificado soma-se ao escopo discursivo, como máquina

discursiva, mas, principalmente, como um efeito que quer também especificar efeitos sobre

efeitos, diria Derrida, metáfora de metáfora. E derivar, disseminar tanto no entre de si (alteres

entre si: BR, RF, CM) quanto no entre que especifica a diferença contaminada, espaçamento,

do campo cancioneiro popular e do contexto em que se localizam os discursos da elite, altere

mais evidente do cancioneiro popular. O faz, não para dizer a coisa no mundo, a cidade, a

urbanidade, a modernidade, a identidade nacional, mas para participar do jogo, do embate, do

conflito, este sim de ordem estritamente política. Jogo que constantemente se re-inaugura,

segundo contingências, elegendo e preterindo pensamentos e formas que expressam esta ou

aquela economia de dominados, dominadores, sujeitos, alteres, campos, contextos etc. Enfim,

sistematizando modos de pensar em que, respondendo à lógica de mecanismos

disseminadores, torna possível ao cancioneiro popular, em dado momento contingente, atuar

de forma violenta por dentro do contexto político.

As metáforas de metáforas, resultados parciais do jogo, especificam percepções cotidianas na

sociedade belle-epoqueana (manifestações, conflitos, festas, crimes, costumes, modas,

práticas de habitação, trabalho, consumo, lazer e circulação), especificam modos de percepção

e construção como resultados parciais e circunstanciais de efeitos em movimento. Efeitos que,

85 Houve uma série de crônicas dessa natureza, bastante divulgada, conhecida por Os Mistérios do Rio, de Benjamin Costallat e inspirada nos Mistérios de Paris de Alexandre Dumas. Essa série se reproduziu em inúmeras publicações no Brasil que procuravam interpretar o lado obscuro das cidades, gerando diversas versões, sempre amplificando a atmosfera noir e metropolitana de imagética européia. 86 Vale acrescentar que no mesmo período multiplicaram-se revistas como “A Lanterna”, de 1901, “O Malho”, de 1902, “Fon-Fon” e “Tico-Tico”, de 1905, “Careta”, de 1908, que também propõem dialogicamente, tipos, personagens e questões relativas a conflitos de ordem ideológica especificados pela eleição de aspectos da identidade nacional, da modernidade, da tradição e do urbano, este último, sintetizado na construção imagética da cidade moderna, cujo moto-contínuo é surpreendido e interrompido por datas cívicas e religiosas, festejos, modas de vitrine, reclames, costumes, conflitos, manifestações e múltiplos acontecimentos que atravessam a rotina dos citadinos.

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por sua vez especificam-se como rastros da violência do jogo, dominações, subordinações,

insubordinações, revoluções, reacionarismos. O jogo que especifica as metáforas de

metáforas, de forma retro-alimentar, deixa-se contaminar pelos novos efeitos que especificam

violências no calor do jogo, cujo resultado, re-inaugura economias, estruturas lógicas de

pensamento, que de novo se deixam contaminar pelo novo escopo discursivo,

momentaneamente eleito, não fechado, metáforas de metáforas. Seguindo essa deriva, esse

rizoma, sem centro, origem, fim, pode-se propor a entrada do cancioneiro popular como

escopo discursivo que passa a incorporar algo que antes se estabelecia como “fora”, como

“outro”, como altere, mas que desde então, pela contingência de um efeito de uma forma de

jogar, passa a compor o/no campo da política e a fazer política de forma tão violenta quanto

os demais discursos que já se digladiavam no mesmo feixe.

Sendo assim, independentemente do contexto histórico em pauta, assumimos como premissa

metodológica que o espaço público será sempre re-qualificado por sujeitos discursivos,

através de disputas, conflitos e interesses que retro-alimentam novos discursos. O político

assim proposto – muito mais do que palco das violências de embates e conflitos – é

especificado por desconstruções discursivas em que o próprio conceito de política ainda que

constitua formas hegemônicas momentâneas precisará sempre negociar com outras não

hegemônicas.

Mesmo para a metodologia de inspiração bakhtiniana referida, sem a contaminação do efeito

da rasura, a percepção de político sugere que o conceito é construído de forma polissêmica e

interdiscursiva através do dialogismo que se estabelece (1) genericamente entre os diversos

sujeitos discursivos que colaboram em diferentes graus de poder e dominação com a constante

re-construção do conceito e (2) especificamente, considerando a metodologia agindo no

discurso-tese, através dos SD eleitos produzindo dialogismos entre si sob a contaminação

direta do contexto. Essa forma de abordar certo movimento no conceito de político implica na

condição de que os discursos que produzem o conceito se estabelecem através de um vínculo

social provisório, sempre de caráter lingüístico, em que relações de dominação inerentes aos

vínculos sociais são decisivas nas determinações do movimento desconstrutivista do conceito,

do nome, enfim da própria linguagem.

A ênfase na linguagem empreendida por essa vertente (virada lingüística de wittgeinstain) constitui-se de tal maneira que tem por implicação a consideração de que o próprio caráter do vínculo social é lingüístico, ou, na forma desdobrada mais precisa de algumas compreensões, é discursivo. Assim sendo, a objetividade dos signos (...) é constituída no campo das relações interdiscursivas, das relações sociais, portanto, o que traz à

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problemática, de modo imediato e direto, questões de ordem política, ética, estética e gnosiológica, além de apontar ao espaço-temporalmente situado dos signos (ARAUJO, 2007, p.17).

Podemos então assumir que a escolha do corte empírico na Belle Époque não representa

exatamente a identificação de uma ruptura no discurso do cancioneiro popular. Mas, um

deslizamento discursivo correspondente às alegorias dos SD eleitos que passam a incorporar,

em seus enunciados (através de dialogismo entre si sob a contaminação do contexto no qual

localizam-se os discursos da elite que se especificam como altere mais evidente dos discursos

do cancioneiro popular), construções interdiscursivas do cotidiano, do urbano, da política, e

de instância pública onde antes se ouviam preferencialmente construções discursivas da

instância do privado. O deslizamento diz respeito a aproximar vozes, antes, inaudíveis entre

si, o que implica numa re-acomodação da estrutura social oitocentista, ou seja, numa rasura do

contexto, numa re-elaboração do jogo. As modinhas que dantes cantavam em primazia o

sofrimento e desventuras dos casais, do amor impossível ou não correspondido de certo valete

por certa dama, a “Moreninha” de Alencar, os perigos dos amores proibidos, de bilhetes, de

olhares discretíssimos na sala de visita e de arroubos de alcovas, prosseguem cantando os

mesmos temas, porém, vão incorporando ao longo do século XIX, e de forma mais nítida a

partir do corte sugerido, as instâncias do público, do político, do urbano. Em suma, a canção

popular não abandona o discurso anterior, deixa entrever o romantismo privado da sociedade

oitocentista enquanto vai rasurando-o com novas construções mais próximas ou relativas à

instância pública.

Considera-se, enfim, o discurso referente ao cancioneiro popular do século XX, como

pertencente ao mesmo feixe (khôra), por isso nem ruptura, nem continuidade, como diferança

(differance) efeito não-linear de trocas entre dominados e dominadores que ao mesmo tempo

em que produziram forças reacionárias de manutenção de estruturas tradicionais de poder,

incentivaram práticas interétnicas.

O lundu é a primeira música negra aceita pelos brancos. Na realidade, é a primeira a crioulizar-se, a se tornar mulata. E foi precisamente um mulato, Domingos Caldas Barbosa, que no final do século XVIII dera início à voga do lundu-canção, fórmula que possibilitaria a aceitação desse ritmo pela sociedade branca. (...) Ao lado da habanera e da polca, o lundu contribuiu, principalmente com a síncope, para a criação do maxixe. Nos primeiros tempos da república, quando crescia grandemente a música popular no Rio, o ritmo sincopado já era produzido em toda a parte – mesas de café, chapéus de palhinha, caixas de fósforos, etc. A sincopa garantia a recriação ou reinvenção dos efeitos específicos dos instrumentos de percussão negros. (...)

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Os diversos tipos de samba (samba de roda, samba de salão, samba de terreiro, samba duro, partido-alto, samba cantado e outros) são perpassados por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra. (...) Desde o final do século XIX, o samba já se infiltrava na sociedade branca sob os nomes de tango, polca, marcha, etc. (SODRÉ, 1979, pp.27, 28, 30).

Esse intercâmbio manifestando-se através de práticas, ritmos e enunciados irá provocar a

assunção de novas posturas e novas formas de negociação dos SD eleitos tal qual novos

percursos, efeitos de diferança que a música popular produzirá ao longo do século XX.

Em resumo, as justificativas para o corte epistêmico se localizar no período da Belle Époque

seriam: (1) de ordem bastante prática, a elevação da base tecnológica resultando nas primeiras

gravações e reproduções mecânicas do cancioneiro popular no Brasil. (2) A interpretação de

que esse cancioneiro popular (enquanto SD eleitos e campo reflexivo) passa a produzir de

forma mais nítida construções que se aproximam das instâncias públicas, do campo político e

do cotidiano urbano quando antes operava preferencialmente nas instâncias privadas. (3) A

Belle Époque marca um período de deslizamento de categorias centrais ao discurso-tese, quais

sejam: urbanidade, modernidade, identidade nacional, ruralidade e tradição. (4) O duplo

deslizamento que os SD eleitos operam, segundo nossa interpretação, sobre o discurso

pedagógico das Grandes Sociedades do século XIX, rasurando-o, tanto através de uma re-

construção mais próxima do SD Barão da Ralé que procura reproduzir os paradigmas de

ordem e comportamento (por estratégia de sobrevivência ou por perceber vantagens na

aliança com seus alteres) quanto através do SD Rapaz Folgado que re-negocia o dialogismo

sob os termos da transgressão que não chega a ser revolucionária, mas que, propõe nas

instâncias públicas uma convivência menos confortável para com o discurso da elite.

♪♪♫

Na outra ponta da pesquisa, localizamos o segundo corte empírico que corresponde ao

período referente à década de sessenta, encerrando um percurso de pouco mais de meio

século. Os dialogismos produzidos entre os SD eleitos – considerando os temas centrais:

identidade, urbanidade, ruralidade, modernidade e tradição – perdem, segundo nossa

interpretação, a primazia temática no campo do cancioneiro popular ao ceder esse lugar para

outro SD, um possível Sujeito Discursivo Revolucionário, cujo tema contempla a revolução

pelo paradigma marxista, utopias, estratégias de luta e diagnósticos sociais do país na

eminência da ditadura militar e da consequente suspensão das liberdades individuais. Tal

deslizamento, a princípio seria excessivo para o alcance e pretensões do discurso tese.

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Segundo essa interpretação, os dialogismos efetivos que ocorreriam entre os SD eleitos e

entre estes e seus alteres, as elites no poder, seriam substituídos pelo enfrentamento explícito

expresso nos significados do “enunciado-canção de protesto” pertencente a um possível SD

revolucionário87 que, considerando o contexto dos anos 60, se desloca para o centro do fluxo

discursivo que expressa conflitos econômicos, sociais, políticos e ideológicos. O SD

revolucionário que, repito, não será desenvolvido pelo discurso-tese, considerando o

movimento que produz nos SD eleitos, não propriamente expressa uma ruptura ou

apagamento com e em relação aos SD Contente, Rapaz e Barão. O tipo de enunciado-canção

com as características discursivas dos três SD eleitos, embora rasurado pelo movimento

correspondente à centralidade assumida pelo SD revolucionário, no fluxo discursivo, continua

presente no campo do cancioneiro popular. Porém, interpretar metodologicamente esse

movimento de deslocamento para a margem do fluxo que o SD revolucionário provocaria

sobre os SD eleitos nos pareceu excessivo, não só por deslocar o eixo temático, mas,

principalmente, por promover um tipo de resposta à fala do poder em que a negociação é

substituída pelo enfrentamento direto. A construção do discurso ditadura militar pelo SD

Revolucionário como um quase “completamente outro” interrompe as contaminações

interdiscursivas possíveis, seca a umidade que o poder, a elite política (representada agora

pelos militares), poderia provocar no cancioneiro popular, o que polarizou sobremaneira o

conflito, a diferença, dominador-dominado, ou na visão de um pelo outro, reacionário-

subversivo, traidor-terrorista. Trocando em miúdos, na fala do poder da ditadura o SD

Revolucionário é o comunismo que ameaça a liberdade e as instituições democráticas do país,

na fala do SD revolucionário, a ditadura é a mão de ferro que, fundamentalmente freia o

caminho da revolução, único caminho de liberdade e democracia que cabe ao país. Entre os

dois discursos, trincheiras, arame farpado e exíguas veredas que permitissem a fala de um na

fala do outro.

Deve-se considerar ainda que no período pós-sessenta localiza-se uma segunda elevação da

base tecnológica da produção musical (ou terceira se considerarmos os primórdios da 87 O SD Revolucionário produz uma fala “anti-aquarélica” que enfrenta e desdiz o ufanismo das peças publicitárias a serviço do governo militar. Alguns exemplos da emergência do tema anti-ufanista são: “Querelas do Brasil” que lamenta o fato do Brazil com “Z” não conhecer o Brasil com “S”, “O mestre sala dos mares”, que utiliza a Revolta dos marinheiros, de 1910, liderada pelo marinheiro João Cândido Felisberto, para falar da tortura e da ditadura através de linguagem metafórica: “rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”, por fim, “Bye, bye Brasil” que explicitamente nos informa que “aquela aquarela mudou”. Mesmo quando a cidade aparentemente vem à baila como no verso “o Rio de janeiro continua lindo” da canção “Aquele Abraço”, não é da experiência da urbanidade ou da modernidade que Gilberto Gil fala, mas do exílio. O mesmo serve para o “Samba de Orly” de Vinícius de Morais e Chico Buarque.

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gravação de músicas no Brasil como a primeira e o rádio como a segunda), com a chegada da

televisão que paulatinamente substituirá o rádio como principal veículo de comunicação de

massa no Brasil. A televisão, a exemplo do rádio, também vai afetar a produção musical que,

a partir de agora, precisa contemplar os aspectos da imagem de forma bem mais presente e

urgente do que na cinematografia dos musicais da Atlântida. A televisão passa a “produzir”

certo cancioneiro popular através de shows e festivais televisionados, vídeos musicais, e,

principalmente, programas de auditório que anunciam os novos sucessos enquadrados

visualmente por comerciais direcionados ao consumo moderno da família. A diferença entre

os reclames do “Sabonete Lever: o sabonete das estrelas” da década de 40 na Rádio Nacional

e a propaganda pós-64 nas emissoras de televisão pode ser interpretada a partir do discurso do

SD revolucionário expresso nos enunciados-canções de protesto e anti-aquarélicos, em que a

ideologia socialista sustentada pela construção política dual, direita x esquerda, contesta o

sistema no poder também em suas práticas de consumo estandardizadas pela tutela do padrão

americano de consumo para a classe média.

Sigo o anúncio e vejo em forma de desejo o sabonete. Em forma de sorvete acordo e durmo na televisão. Creme dental, saúde. Vivo num sorriso o paraíso. Quase que jogado, impulsionado no comercial88.

Ainda em termos bem objetivos, considerando aspectos discursivos do novo contexto, pode-

se interpretar no fluxo discursivo, a partir dos anos sessenta, uma estreita relação entre a

ditadura militar, a expansão da televisão como veículo de comunicação de massa e o

deslizamento no campo do cancioneiro popular, dividido por uma construção político

ideológica dual, dos SD eleitos para o SD Revolucionário. Essa percepção dual produzida

para e pelo cancioneiro vai dividir os conjuntos discursivos pós-64 entre uma música dita

engajada e outra alienada e alienadora que bem poderia ser sintetizada na figura de um SD

Ufanista ou Alienado (segundo interpretação do SD Revolucionário): “moro num país

tropical, abençoado por Deus89 90 91”, “Esse é um país que vai pra frente92”, “Eu te amo meu

88 Comunicação. Edson Alencar e Helio Matheus, 1970. 89 SD Orientador: a questão é que SDR simplifica as coisas, eliminado nuances. Sem discordar de/para um SDR ortodoxo essa música pode ter sido vista como alienada/alienante. Para outro SDR, menos dogmático, ela foi vista e apropriada durante a ditadura como uma ironia. 90 SD Eu para SD Orientador: Concordo contigo, em relação a País Tropical. Mas, as outras não têm nuances. A fala era explícita: quem não concordar, a bota bate a boca. 91 País tropical, Jorge Bem, 1969. 92 Este é um país que vai pra frente. “Uô Uô Uô Uô Uô, de uma gente amiga e tão contente… Uô Uô Uô Uô Uô. Os Incríveis, s.d.

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Brasil, eu te amo e Marcas do que se foi93” que apelavam à juventude ufanista, “Noventa

milhões em ação pra frente Brasil do meu coração94”. No decorrer dos anos 80, com a falência

dessa estrutura dualista que estabelecia a percepção do mundo construída sobre uma base

discursiva revolucionária ou ufanista, desliza o SD revolucionário para outra coisa que

expressa o enquadramento da música popular, salvo raras exceções, pelos padrões de

consumo demarcados pela bitola da televisão em particular e da imagem em geral.

O público brasileiro de televisão situa-se em número próximo ao total da população do país e esse veículo, ao contrário dos demais canais de comunicação de massa, desconhece qualquer sorte de barreiras em sua emissão, sejam elas etárias, culturais ou econômicas. Em frente ao bezerro dourado do vídeo se postam crianças, velhos, intelectuais e iletrados, o público sofisticado da Vieira Souto e as populações marginalizadas da favela (VIEIRA, 1978, p.75).

Na perspectiva do novo contexto, também seria pertinente afirmar que o grande público

urbano que se mantinha fiel às novelas, concursos e programas da Rádio Nacional,

comprando revistas da Rádio para ver fotos de artistas ou indo ao cinema para assistir de

forma esporádica suas performances, sem cerimônias, migrou para frente da televisão, onde

passou a “ver” o artista em “casa” e em apresentações “ao vivo”, nos programas de auditório,

nos festivais da canção e nos eventuais especiais de música que a própria televisão produzia.

A modernização conservadora senta praça no cenário sócio-cultural, encaixotado pela censura

do governo militar e pela pressão econômica de multinacionais, cada vez mais atentas à

expansão do mercado consumidor brasileiro em paralelo à expansão da própria classe media.

Seria por volta desse período que a música brasileira, assim como a internacional, passa a

compor a trilha sonora de novelas e comerciais de cigarro, banco, sabão, confundindo-se com

o “jingle”95.

93 Brasil, eu te amo. (I) Os incríveis – (C) Dom e Ravel, 1970; Marcas do que se foi. Os incríveis, 1970. 94 Pra frente Brasil. Miguel Gustavo Werneck de Souza Martins, 1970. 95 Foi muito significativa a contribuição que as trilhas sonoras de novelas trouxeram para o setor fonográfico, sendo mesmo a elas creditado o crescimento do mercado nos anos setenta (DIAS, 2000, p. 59). Um claro sintoma desse boom foi o crescimento obtido no período pela gravadora do selo “Som Livre”, da Rede Globo, produzindo essencialmente trilhas. Atuando desde 1971, em 1974 ela já detinha 38% do mercado de discos mais vendidos, em 75, 56% e, em 77 tornou-se líder. (...) Outra vantagem da Som Livre frente às suas concorrentes estava no esquema promocional e de difusão que usufruía [considerando sua filiação com a Rede Globo]. (...) A verba destinada à campanha da gravadora [e de seus artistas contratados] era maior do que aquela investida por grandes anunciantes como a Souza Cruz ou a Coca-Cola. (idem, p.60). (...) O segmento das trilhas sonoras é ampliado quando chega, além das novelas, ao conjunto da programação televisiva, inclusive àquela que acompanha a publicidade (ibidem, p.60).

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Independentemente da interpretação que se produza sobre a interferência da estrutura

midiática da televisão no campo do cancioneiro popular, isto é, o quanto o discurso desse

cancioneiro passou a estar a serviço da novela, da publicidade, dos programas de auditório, do

vídeo musical ou de qualquer produto vendável sob a orientação da imagem, o fato, é que

nosso debate, como os SD prévios, orientador e banca, já devem ter percebido, se afastou

sensivelmente da questão central da tese que objetiva enveredar-se pelos deslizamentos

estratégicos que os SD eleitos produziram dialogizando com alteres e contexto sobre os temas

da urbanidade, modernidade, identidade e tradição.

Avançar para além do corte sugerido implicaria em um novo sistema discursivo

correspondendo ao SD Revolucionário e ao SD Ufanista e seus possíveis desdobramentos. A

diferença dos SD Revolucionário e Ufanista para os SD prévios (BR, RF e CM) seria da

ordem do contexto e do próprio dialogismo, considerando a alteridade interna e a forma de se

posicionar frente à ditadura militar, as multinacionais e os poderes hegemônicos de ordem

global mais evidente. O tradicional enunciado do samba de roda baiano, como qualquer

“baticum na beira do mar”, desliza transformando-se em um outro efeito de resistência crítica

que expressa o altere na figura de poderes globalizantes e flexibilizadores que ameaçam a

reprodução das estruturas locais da tradição. Se nos discursos do SD Contente Magoado o

rural constituiu-se como contraponto do urbano, rasurado pelas imagens urbanas via Rádio

Nacional, sob o novo contexto do SD revolucionário, o rural inscreve-se sob o risco de

transformar-se, não mais pela ameaça da cidade propriamente, mas, por emular a nova lógica

global e flexibilizada que ameaça também a urbanidade clássica.

Veio Mané da Consolação. Veio o Barão de lá do Ceará Um professor falando alemão. Um avião veio do Canadá Monsieur Dupont trouxe o dossiê. E a Benetton topou patrocinar A Sanyo garantiu o som do baticum lá na beira do mar Aquela noite. Quem tava lá na praia viu E quem não viu jamais verá. Mas se você quiser saber. A Warner gravou. E a Globo vai passar (...). Zeca pensou: antes que era bom. Mano cortou: brother, o que é que há? Foi a G.E. quem iluminou. E a Macintosh entrou com o vatapá O JB fez a crítica. E o cardeal deu ordem pra fechar. O Carrefour, digo, o baticum. Da Benetton, não, da beira do mar96.

96 Baticum. Chico Buarque e Gilberto Gil, 1989. Essa confusão que a canção ironicamente simula entre o espaço da festa e o espaço da mídia não é muito diferente daquela, do alto do morro, que os compositores nos primórdios do samba fizeram para aliviar-se do sentimento de impotência ante o poder do Estado e da elite: ironia como espaço que sobra da dominação.

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Se no plano local (rural ou urbano) os enunciados do SD Revolucionário expressam o risco de

um progresso vazio97, no plano nacional um enunciado como o da canção Bye bye Brasil

(1978) expressa a construção anti-aquarélica do SD Revolucionário. O silêncio sobre as

organizações campesinas no interior do país que germinaram o ingresso do MST na cena

política da década de 1980 fala através da crítica ao poder de penetração da televisão

homologando um falso desenvolvimento metonimizado nas antenas de TV sobre sapês e

palafitas. Via satélite, os discursos do poder pretendem-se como poderes que alcançam,

desbravam e domesticam, de forma ubíqua, segundo seus próprios padrões ideológicos,

confins de um Brasil (para discurso do poder militar) talvez ainda perigoso, sertões rosianos e

euclidianos. Nonada e Canudos. Através de enunciados do tipo do SD Revolucionário, a

crítica ao discurso de integração da ditadura constrói-se pela denunciada vulnerabilidade em

que populações e culturas tradicionais são expostas à sanha do Estado e do capital

integradores. Para o SD Revolucionário, relações tradicionais de sociabilidade quando

confrontadas pela lógica do capital, relativa ao novo contexto, produziriam superlativos de

exploração e dominação ainda mais constrangedores que os expressos nos contextos

anteriores (como desenvolvimentismo de JK ou o trabalhismo de Vargas). Na canção Bye,

bye Brasil, essa vulnerabilidade é denunciada por imagens críticas ao discurso de integração

da ditadura militar. Como mensagem subliminar da canção registra-se o silêncio sobre as

Ligas Camponesas e a germinação dos movimentos rurais que ainda aguardariam os anos 80,

para poder operar.

Oi , coração. Não dá pra falar muito não Espera passar o avião Assim que o inverno passar Eu acho que vou te buscar Aqui está fazendo calor Deu pane no ventilador Já tem fliperama em Macau Tomei a costeira em Belém do Pará Puseram uma usina no mar Talvez fique ruim pra pescar No Tocantins o chefe dos Parintintins vidrou na minha calça Lee Eu vi uns patins prá você Eu vi um Brasil na tevê. Capaz de cair um toró . Estou me sentindo tão só.

97 Purificar o Subaê. “Purificar o Subaê, mandar os malditos embora... os riscos que correm essa gente morena o horror de um progresso vazio”. Caetano Veloso, 1981.

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Oh! tenha dó de mim. Pintou uma chance legal um lance lá na capital Nem tem que ter ginasial98

No embate discursivo travado no contexto da ditadura militar e da censura dos discursos do

SD Revolucionário, das transformações do mercado fonográfico sob interferência direta da

televisão e do consumo da classe-média festejado pelo discurso do SD Ufanista (tenho um

fusca e um violão), os temas da urbanidade, modernidade, tradição e identidade ganham

novos contornos, emprestando o lugar de centralidade a emergência de temas que tratam da

liberdade de expressão, da revolução, do exílio, da anistia, da re-democratização e dos direitos

individuais. Como dito anteriormente, nosso debate se exaure quando o tema cidade/campo,

como lugar da cena urbana e da cena rural rasurado, cantado pelo cancioneiro popular a partir

de 1900, cede primazia ao tema da nação que necessita ser salva, acudida e não mais exaltada,

como o foi no Estado Novo.

A música de protesto dos anos 60 apresentou-se como o novo paradigma discursivo da música

popular, agora, cunhada sobre o termo de Música Popular Brasileira que substituiu a

expressão cancioneiro popular. A MPB de protesto esboçava um discurso muito diferente

daquele que astutamente negociou e questionou os ideais nacionalistas e ufanistas de Vargas.

A expressão música popular brasileira cumpria, pois, se é que se pode dizer assim, certa função de “defesa nacional” (...). Nos anos finais da década (1960), ela se transformou numa sigla, quase uma senha de identificação político-cultural: MPB. (...) MPB liga-se a meu ver a um momento histórico da República em que a idéia de “povo brasileiro” esteve no centro de muitos debates, nos quais o papel desempenhado pela música não foi dos menores. Pense-se, por exemplo, no CPC da UNE, nos artigos da revista Civilização Brasileira e, sobretudo, no show Opinião, em que Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale representavam cênica e musicalmente a aliança estudantil-operária-camponesa. É nesse momento que gostar de MPB, reconhecer-se na MPB passa a ser ao mesmo tempo acreditar em certa concepção de povo brasileiro, portanto, dos ideais republicanos (SANDRONI, 2004, p.29).

A resistência de esquerda promovida pelo discurso do SD Revolucionário expressa o tema da

nação seqüestrada pelo governo militar. Talvez, resida nesse sentimento de roubo, de assalto,

a principal diferença entre o Estado Novo e a ditadura militar. Se o discurso Vargas permite e

promove a Aquarela do Brasil e inúmeros enunciados que deixam entrever a fala do poder na

fala dos SD eleitos que constroem a nação, na ditadura militar, a fala da ditadura é excluída da 98 Bye Bye Brasil. Chico Buarque, 1978. A música continua no mesmo tom reproduzindo imagens que constroem criticamente o encontro desigual entre o capital moderno, representado pela TV, pela usina, pelo japonês e pelas maquinas e o lugar distante representado pelo índio, pela moça infeliz (que tem um tufão nos quadris), pela natureza severa, pelas práticas tradicionais da pesca e da navegação: “Eu tenho tesão é no mar, meu amor”.

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fala SDR por em nada corresponder à imagem de Brasil que o SD Revolucionário tece. O

discurso SDR mobiliza o discurso da MPB que quer salvar o país dos militares, resgatando

ideais republicanos de democracia e liberdade.

Gostar de ouvir Chico Buarque, gostar de sua estética implicava eleger certo universo de valores e referências que traziam embutidas as concepções republicanas cristalizadas na MPB, mesmo nos casos em que a letra passava longe da política (SANDRONI, 2004, p.30).

Porém, a arena de debates da década de 60 não se resumiu à simples dicotomia do “nós”, da

esquerda liberal e revolucionária, contra “eles”, da direita militar reacionária. Nos interstícios

do debate da esquerda uma divisão estrutural ocupava os meandros da contracultura em que

um discurso elitista da classe média intelectual pretendia educar o povo dentro de um

nacionalismo radical de esquerda, orientado por um patrulhamento ideológico de cima para

baixo que despertasse a consciência do pobre para a revolução e para o estado de alienação no

qual se encontrava. Segundo essa ala não haveria espaço para a cultura imperialista

estadunidense nem para qualquer troca com o produto importado. Nesses discursos o povo é

tomado como objeto de leitura: em sua alienação, seu subdesenvolvimento, sua falta de

consciência de classe, sua parca percepção da espoliação a que está submetido. O ponto fraco

desse posicionamento expressava-se em sua exígua penetração junto a enorme população

pobre, o que talvez demandasse o esforço de descer do pedestal ideológico revolucionário e

escutar o que as classes subalternas teriam a dizer sobre si. Tais discursos não foram capazes

de alcançar espaços para além do próprio círculo da classe-média intelectual de onde

emanavam, salvo raras exceções99.

O outro lado desse debate, ruptura da classe média intelectualizada, expressa-se pelo

movimento tropicalista. A tropicália, e todos os discursos transgressores ao nacionalismo

radical que emergiram em paralelo, ainda que guardando o caráter hermético do discurso da

vanguarda elitista, romperam com o lacre do nacionalismo puro100.

99 Um caso de exceção foi a canção “Prá não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré que se torna um hino revolucionário reproduzido por estudantes e trabalhadores, pelo movimento do MST e até por ocasião da revolta da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, em 1997”. Tornou-se o hino nacional perfeito, visto que nascido no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de pessoas” (COUTINHO, 2002, p.72). 100 Em 1966, pouco antes de a Tropicália ganhar corpo, Caetano Veloso sustentou que a música brasileira pode se modernizar e continuar brasileira na medida em que toda a informação seja aproveitada (e entendida) a partir da vivência e da compreensão da realidade cultural brasileira (COUTINHO, 2002, p.82). “Sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões, balança contra os chapadões, meu nariz, o movimento é bem moderno não disse nada do modelo do meu terno que tudo mais vá pro inferno meu bem”.

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Como último argumento que justifica a localização do recorte final ao efeito do discurso SDR

atuando sobre o cancioneiro, considera-se também neste período, a assunção de um novo

paradigma hegemônico de urbanismo, de ideologia norte-americana que vem sendo proposta

desde o pós-guerra sob a tutela da suburbanização e conseqüente esvaziamento das áreas

centrais. Se, com forte inspiração em Haussmann, o ideal da cidade de Pereira Passos, em

1900, remetia para as avenidas e para uma experiência cenográfica de espetáculo, sentida em

práticas e usos desse cenário urbano – a flanerie, o passeio público, o aburguesamento do

consumo e do lazer nas áreas centrais –, a cidade projetada nos anos sessenta, emulando a

suburbanização norte-americana e o conseqüente esvaziamento do centro, propõe a

substituição da experiência urbana pela experiência suburbana em que o automóvel, o

shopping e a autopista substituem o flanêr, a galeria e a avenida. Se Haussmann foi o mentor

de um controle pela urbanização que remodelava as áreas centrais para uso e ocupação das

elites, o planejador Robert Moses, cumpriu e pôs em prática uma nova estratégia de controle,

na contra-mão de Haussmann: esvaziamento e abandono das áreas centrais e subseqüente

valorização das áreas suburbanas, através da construção de autopistas que viabilizassem esse

deslocamento. Essas transformações não se deram sem que houvesse alguma resistência por

parte de associação de moradores e outras lideranças preocupadas com os rumos que a

urbanidade tomava. No Brasil, tal debate ficou em segundo plano diante das questões políticas

emergenciais que a ditadura provocava. As ações dos governos militares sobre o espaço

público pouco sofreram resistência considerando o grau mínimo de liberdade política

permitida às vozes contrárias.

♪♪♫♫

Intermezzo

O que apresentamos até esse ponto do discurso-tese, expressa as investigações dos rastros e

efeitos provocados pelos movimentos de possíveis sujeitos discursivos em contexto (ou

khôra), constituindo o cancioneiro popular como campo reflexivo (ou como khôra). Essas

investigações expressam-se numa primeira tentativa de aproximação do campo reflexivo

cancioneiro popular, em que se assume a metodologia hermenêutica dialógica, na qual o

Sujeito Discursivo é enquadrado numa estrutura de Posições de Sujeito, identificando-se

significados e sentidos referentes aos discursos desses Sujeitos Discursivos, classificados em

esquema semiótico fixo. Uma vez que assumimos a rigidez do quadro como problema

metodológico, optamos por operar com o efeito de rasura atuando sobre essa mesma

metodologia. É provocado então um movimento de deslizamento/deslocamento que não se

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quer necessariamente como ruptura, mas como quem vai reterritorializando identidades,

rearticulando o que de outra forma se construiria cristalizado como Sujeitos Discursivos

prévios e eleitos amarrados na camisa de força do método. O movimento reterritorializando o

campo reflexivo cancioneiro popular já vai expondo lacunas, saltos, descontinuidades,

anacolutismos, possivelmente constituidores do próprio movimento, por isso mesmo,

expressão de espaçamentos que não necessariamente aguardam preenchimento, pelo menos

no espaço-tempo desse corpus. E considerando a instabilidade inerente ao discurso do

cancioneiro popular já me vou desculpando e justificando-me entre palavras derridianas:

“Não, não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, nem drama nem assunto, e, direi mesmo, nem objeto, porque o motivo em si o que é? Se não algo como a sombra de ferro do motete de uma inenarrável música antiga, como o leitmotiv de um tema desesperado de seu próprio assunto, é da natureza da nua e pura visão, tal como se revela quando se sabe aborda-la de muito perto” (Artaud apud DERRIDA, 1998 pp39; 42). (Essa passagem) promete alguma coisa de essencial ao que Artaud entende sempre pela pintura: questão de sonoridade, de timbre, de entonação, de trovão e de detonação, de ritmo, de vibração, a extrema tensão de uma polifonia. (...) Tal proximidade beira a loucura, mas aquela que arranca da outra loucura, da loucura de estagnação, da estabilização no inerte quando o sentido se torna tema subjetivado, introjetado ou objetivado, e o subjétil101, uma tumba. Pode-se enlouquecer o subjétil até que louco de nascença ele abra passagem ao inato que um dia foi aí assassinado. (...) Naturalmente, Artaud falava aqui de Van Gogh. Mas, (...) deve-se reconhecer que Antonin Artaud não pôde entrar nessa relação, no alcance dessa relação com Van Gogh, a não ser entregando-se à experiência que descreve no momento em que renuncia exatamente a descrever a estabilidade de um quadro (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, P. 42).

Considerando essa renuncia a descrição da estabilidade e a possibilidade de aproximação

proposta por Artaud na leitura de Derrida, deparamo-nos com específico impasse

metodológico, tomado como phármakon, veneno e cura derridianos, o qual, por isso mesmo,

não nos propomos resolver, mas assumir como efeito ao longo do discurso-tese. Efeito que

faria deslizar um “como” abordar pós-modernamente, em particular, desconstrutivistamente,

categorias modernas aqui tratadas. Tais como, cultura de elite, cultura popular,

modernidade/tradição, respectivamente, enquanto signos de transformação/progresso e

101 Essa nota está presente logo na introdução. Tomamos a decisão de repeti-la considerando o afastamento ente as duas aparições do termo subjétil neste corpus: o subjétil funciona como efeito de brizura (outro indecidível) que articula e separa sujeito de objeto em um suporte para além dos termos dialéticos, por isso, não se trata de um simples suporte. Mas, de um papel que fala e interfere no texto e que pode tomar o lugar do sujeito ou do objeto, mas, não é nem um nem outro. Considera-se ainda a possibilidade do subjétil trair, faltar à promessa, renegar o projeto, subtrair-se ao controle e revelar outra coisa, uma “verdade traída” que ele traduz e arrasta para a luz do dia (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, pp.23,24).

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resistência/herança, e urbanidade/ruralidade, como signos da materialidade dos termos

anteriores. Talvez, enlouquecer o subjétil música, o suporte falante do papel desse corpus, seja

um caminho de aproximação do labirinto que parece ressoar aqui dentro.

Não nos interessa a crítica moderna que classifica o labirinto desconstrutivista de niilista ou

despolitizador. Habermans, por exemplo, afirma que a modernidade tinha poder de mobilizar

as forças de esquerda enquanto que o pós-moderno seria conservador: poder atomizador de

forças sociais com efeito alienante. Porém, tal efeito não chega a configurar ruptura e sim a

presença prevalecente de certo poder moderno (político, midiático, econômico) operando

hegemonicamente pelos mesmos paradigmas de dominação. Jameson observa que o pós-

moderno funda uma nova cultura comercial em que a distinção cultura de massa x cultura de

elite entra em colapso devido aos movimentos de inter-fluxos entre ambas. Aliás, Jameson,

entre uma miríade de autores, vai também colocar a mesma questão sobre o contraste

moderno/pós-moderno. O pós-moderno refletiria uma nova imagem que se produz negando a

anterior ou expressaria continuidade intensificada da mesma imagem moderna? Ele também

se/nos pergunta como dar abordagem pós-moderna a categorias modernas como popular e

elite, considerando todo o problema e complexidade que esse dualismo já encerrava mesmo

sob contexto e premissas do pensamento moderno, em particular, o pensamento de base

frankfurtiana. Debord, Baudrillard, Baumann, Eco, Lyotard e inúmeros outros pensadores

modernos buscarão, direta ou indiretamente, estimular o pensamento pós-68, logo rasurado

pelo discurso pós-moderno, sobre questões que já se apresentavam problemáticas na

modernidade. Habermann e Debord simplesmente ignoram a pós-modernidade como termo

significativo inscrevendo os novos fenômenos, não propriamente como novos, mas como

continuação concentrada/intensificada do que já havia. Baumann, Baudrillard, Eco e Lyotard

considerariam a pós-modernidade como um momento da modernidade, o que, em certa

medida, já poderia configurar ruptura. Porém, ambos os grupos, em raras vezes, conseguem

escapar do platonismo que afirma a boa cópia frente o perigoso e astuto simulacro, no qual as

representações flutuam livres de referente, sem objeto primário, sintonizado a volaticidade do

sistema. Possivelmente, será por essa vereda que deixaremos o phármakon derridiano operar

seus efeitos sobre a farmácia de Platão, que tão confortavelmente sustenta conceitos e

axiomas, aparentemente, inexoráveis ao texto. Deleuze, em Lógica dos Sentidos, inverte a

classificação platônica observando que o simulacro não seria uma cópia degradada, por não

ter origem na Idéia. Ao contrário, ele encerra uma potência positiva que nega o modelo como

original e a cópia como reprodução. Mais do que uma inversão, Derrida deslegitima a lógica

platônica ao não considerar a existência da verdade essencial, da Idéia. O signo deleuziano diz

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respeito a um simulacro discursivo cuja validade ou descrédito depende do resultado de um

jogo exercido no domínio das tramas e relações sociais, nas tessituras dos discursos, no

embate dos corpos. Porém, a crítica mais presente ao pensamento que se estabelece no que se

convencionou classificar de pós-modernidade, a partir da década de setenta, diz respeito aos

subprodutos do niilismo e da despolitização que esse pensamento disseminaria como refugo

conseqüente, ainda que não intencional, de suas premissas. Harvey, em Condição pós-

moderna, condena o desconstrutivismo de forma bastante apaixonada.

Ao desafiar todos os padrões consensuais de verdade e de injustiça, de ética e de significado, e ao procurar dissolver todas as narrativas e metateorias num universo difuso de jogos de linguagem, o desconstrucionismo terminou, apesar das melhores intenções dos seus praticantes mais radicais, por reduzir o conhecimento e o significado a um monte desordenado de significantes. Assim fazendo, produziu uma condição de niilismo que preparou o terreno para o surgimento de uma política carismática e de proposições ainda mais simplistas do que as que tinham sido destruídas (HARVEY, 1992, p.315).

Eu diria que a vigilância epistêmica e metodológica é uma das marcas mais presentes no

pensamento derridiano, justamente, por reconhecer como não satisfatório o modo como

conceitos, categorias, linearidades históricas, sínteses e aproximações são construídas seja

pelo materialismo histórico, seja pelo racionalismo cartesiano que na interpretação de

Nietzsche e Deleuze são fundamentados, aliás, como quase todo o pensamento ocidental, na

lógica platônica que segue quase inabalável sustentando doutrinas de pensamento atuantes e

muitas vezes hegemônicas em certos contextos: político, científico, acadêmico, econômico

etc. Por outro lado, como veremos na continuação desse corpus, desconstruir não trata de

fazer desabar o que havia antes, mas requalificar. Assim a maior parte dos interlocutores –

pragmáticos, estruturalistas, fenomenólogos, lingüistas – que Derrida convida não são

propriamente desqualificados, mas re-qualificados, deslocados para um outro texto. Aliás,

para fazer jus ao que vai acima podemos re-citar Harvey em outro texto no qual ele bem

explicita o que vem a ser a proposta de Derrida.

O desconstrucionismo (movimento iniciado pela leitura de Heidegger por Derrida no final dos anos 60) surge aqui como um poderoso estímulo para os modos de pensamento pós-modernos. O desconstrucionismo é menos uma posição filosófica do que um modo de pensar (...) textos e de ler textos. Escritores que criam textos (...) o fazem com base em todos os outros textos e palavras com que se depararam, e os leitores lidam com eles do mesmo jeito. (...) Esse entrelaçamento intertextual tem vida própria, o que quer que escrevamos transmite sentidos (...) que possivelmente podiam não estar na nossa intenção, (...) o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora do nosso controle, a linguagem opera através de nós (HARVEY, 1992. pp. 53, 54).

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Também para fazer jus ao que foi colocado por nós, já lemos Harvey lendo Derrida operando

interferências, pelos parênteses que excluem partes do texto que consideramos não contribuir

ao entendimento da questão deconstrutivista. Simploriamente, esse movimento já expressaria

um deslocamento, uma interferência no texto de Harvey, sem necessariamente desqualificá-lo

e, muito menos, substituí-lo por uma visão niilista de mundo. No decorrer desse corpus

participaremos ativamente de aplicações e possibilidades interpretativas experimentadas no

pensamento desconstrutivista. Veremos que não se trata de despolitizar o produto cultural,

impor-lhe uma estética desprovida de ética, muito menos de torná-lo vulnerável à

manipulação do mercado de massa, como afirma Harvey (idem, p.55). Muito pelo contrário

trata-se de democratizar as instâncias produtoras de discurso re-qualificando conceitos através

da desqualificação de pólos, estruturas binárias que ganharam sobrevida com o pensamento

dialético, porém, permaneceram constituindo metafísicas, fantasmagorias (tímida homenagem

a Marx), que insistem na afirmação de recursos produtores de totalidades e sínteses que,

pouco contribuem ao jogo político de dominação que se estabelece de forma cada vez mais

nítida no nível dos micro-poderes foulcaultianos e menos eficaz sob as abstrações matriciais

da modernidade: nação, classe e indivíduo.

A idéia de Estado-nação é posta em questão, por um lado em conseqüência da perda do poder de gestão interna e de representação externa dos Estados, com o transpassamento de suas fronteiras territoriais pelos fluxos econômicos e informacionais, por outro, pela reconstrução de tradições étnicas, numa lógica que opera sob a tensão da afirmação da diferença e da homogeneização (...). A idéia de classe socioeconômica, por sua vez, vê-se questionada como conseqüência das transformações na esfera das modalidades tecnológicas e organizacionais de produzir e a paralela ascensão de uma ideologia que privilegia o indivíduo em detrimento de suas formas coletivas (...). O indivíduo privilegiado, todavia, já não é mais aquele tornado sujeito consciente de si enquanto constituinte de uma totalidade-mundo, através da liberação de amarras ideológicas da tradição pelo exercício da subjetividade, ele o é agora, pela extremada exacerbação descentrada da liberdade da subjetividade, um ser apenas consciente de si para si, frente a uma coleção de outros “si mesmos” (Araujo, 2007, p.10).

♪♪♫♫

A promessa do jogo está feita. E já é hora de virar o lado e deixar o cancioneiro falar.

Retornemos à música, mas por outro suporte. Ou pelo drama do Subjétil.

Se se escuta a pictografia, e como a música, enquanto música, é antes de tudo por uma certa força de penetração. Da mesma forma que o som penetra o ouvido e o espírito, o ato pictográfico atinge e bombardeia, perfura, percute e faz entrar, atravessa. E a parte adversa, contra a qual se precipita tal força, é o subjétil (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p.55).

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Já podemos divisar as paredes e corredores. Algo se move o tempo todo, no início parecia

ameaçador, um touro, um monstro que viria de encontro nos devorar. Mas não, não havia

nenhum simulacro de Minotauro nem de Teseu a espreita um do outro. O som era das próprias

paredes que rizomaticamente se moviam estabelecendo novos corredores, passagens, atalhos,

suportes falantes como papel falante em canções e palavras falantes. Mas, o que se escuta de

fato, nessa proximidade toda com o subjétil derridiano não são palavras. O som não passa de

um sopro que permite escutar palavras ao mesmo tempo em que as perfura. “Sopro lançado na

gramática do verbo”.

O sopro permite escutar no pictograma, mas através, atravessando tanto as palavras quanto a página, perfurando o subjétil que um e outro são. (...) O sopro sopra no pictograma e literalmente sopra-o imprimindo nele ritmo e música. Ele se escuta e faz escutar (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p.87).

O sopro de Artaud que Derrida escuta “não se confunde com a voz, em todo caso, não com a

voz da língua ou do discurso, a do verbo ou da palavra”. Artaud esclarece que

Faz dez anos que a linguagem partiu que entrou em seu lugar esse trovão atmosférico, esse raio (...) faz dez anos que com meu sopro eu sopro formas duras (...) por um golpe antilógico, antifilosófico, antiintelectual, antidialético por meu lápis preto apoiado e é tudo. (Artaud apud DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, pp.87, 88).

Admito que rearrumei a ordem das falas de Artaud para que elas dissessem mais claramente o

que eu imaginaria “queria dizer” para mim, para outros eus, demais alteres, prévios e eleitos.

Porém, já assumimos, em primeiro lugar que a ordem seria por mim arbitrada caso houvesse

uma prevalescência das palavras, minhas ou qualquer palavra, o que não é verdade quando se

está operando por sons repercutidos no labirinto a partir de uma “máquina de soprar não

gramatical”. Segundo que essa ordem que desejaria arbitrar fica comprometida pela sempre

possível subversão, traição, do subjétil que aparentemente de forma tão passiva se oferece

para ser perfurado. Mas, sabe-se lá o que trama o suporte vivo sob essa aparente latência,

terna e masoquista.

Mais uma vez convido-nos a virar o lado A e escutar o lado B desse corpus, já considerando a

possibilidade dessa aproximação violenta com o subjétil na elaboração do jogo. O labirinto se

apresenta agora. Ouço o sopro que seu movimento faz repercutir nas paredes. Por um átimo

suspeitei que ele sempre estivesse por aqui, mas, não nos foi dado escutá-lo.

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LADO B

E, por aqui, por volta da página oitenta desse corpus, sente-se o leitor/autor amparado pelo

conforto da linearidade narrativa. E chamo leitor/autor porque já se encontra (encontramo-

nos) desconstruindo-se (nos) e reunindo-se (nos), no indecidível derridiano da “escritura” que

desconstrói a metafísica da presença, na autoria, no sujeito, no livro, em que não cabe

diferença entre escrita e leitura ou, veremos adiante, fala e escuta. O próprio Derrida seria

mais um leitor desconstrutor de suas leituras ou um autor rasurador de seus escritos? Vale

essa diferença? O que significa dizer que o ato da leitura guarda aspecto da escrita (e da fala)

em que, as duas serão sempre reescritas, rasuradas, desconstruídas na/pela escritura. Como

dizia, sente-se o leitor/autor amplamente amparado pelo conforto da linearidade histórico-

cronológica que a narrativa dos contextos instaura e promete na totalidade e na unicidade do

livro, ao passo que já vamos deslizando para a zona de desconforto que a própria consciência

do conforto provoca. A desconstrução, diz Derrida, vem de dentro, e já se movia como

contaminação da escritura inscrevendo a ausência do livro e do autor ou a presença rasurada

de ambos em que o livro, o papel, subjétil, bem poderia alegoricamente apresentar-se como

sujeito rasurado do suposto autor. Autor igualmente rasurado e escrito pelo que escreve.

Não há porta aberta que nos leve para dentro do labirinto nem Derrida nos convidando para

com ele compartilhar de suas aventuras. Houve a escritura, sempre, de onde não há

dentro/fora, nem um fora do jogo, em que demiurgicamente instalado o autor manipula suas

alegorias como marionetes. Mas, há a escritura, desconstrução do sujeito metafísico da

presença: autor, leitor, alegoria.

A escritura é a saída como descida para fora de si em si do sentido: metáfora-para-outrem-em-vista-de-outrem-neste-mundo, metáfora como possibilidade de outrem neste mundo, escavação no outro em direção do outro, submissão na qual sempre se pode perder o outro. Mas, não é nada, não é ele próprio antes do risco de se perder (DERRIDA, p. 52, 1995).

A escritura, efeito, rastro na fala e na escrita, no espaçamento da diferença entre ambos e

constituindo-as simultaneamente, arromba o conceito moderno de linguagem ainda

expressando a divisão clássica entre fala e escrita e, por conseqüência, a metafísica da

presença a si, autor, sujeito etc.

Seja na ordem do discurso falado ou do discurso escrito, nenhum elemento pode funcionar como signo sem remeter a outro elemento, o qual ele próprio não está simplesmente presente. Esse encadeamento faz com que cada elemento – fonema ou grafema – constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros elementos da cadeia ou do sistema (DERRIDA, p.32, 2001).

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Porém, essa condição de possibilidade de movimento no/pelo outro, o outro do signo,

referente de referente, movência, deslocamento, descontrução, já a trazia o conceito de

linguagem. A condição não veio de “fora”, idéia genial derridiana, para erguer sobre os

escombros de uma ciência moderna o labirinto rizomático em que se co-habita. O labirinto

sempre esteve lá. Nos espaçamentos do texto, nas sínteses, nas arbitrariedades, nos

anacolutismos do constructo que como todo constructo tentará omitir suas fragilidades.

Porém, como o indecidivel derridiano phármakon, remédio/veneno do pensamento clássico,

foi também a partir do mesmo rastro desconstrutor, efeito escritura, operando sobre a

linguagem, que certa ordem científica tornou-se possível e se instaurou e se hegemonizou

como pensamento lógico, como logos.

O segundo capítulo de Gramatologia principia por afirmar que a própria noção de ciência já nasceu de certa “época da escritura” e que, ao contrário do que as “logias” pretendem, a escritura sempre fora a condição de possibilidade da objetividade científica. Ou seja, antes de ser seu objeto a escritura é a condição da episteme. (HADDOCK-LOBO, P.84, 2008).

E da mesma forma que a escritura expressa a condição da possibilidade da ciência ordenar-se,

organizar-se como tal (assim como mover-se e deslocar-se) e operar de forma objetiva e

racional, sugerimos, nessa perspectiva, que a música, como efeito rasurador, rastro, operada

pelo e como indecidível derridiano, expressa também essa condição da possibilidade de

instauração de uma ordem antropocêntrica. Vejamos como. Vejamos como, apesar de não

darmos aqui garantia de explicação dessa equivalência música/escritura, mas, pistas, dicas de

como operá-la, como proceder diante do efeito que ela própria opera, logo, como estar pré-

disposto à sensação, ao jogo de corpo que ela engendra. A equivalência música/escritura não é

alguma coisa, mas, um efeito, uma rasura que pode atuar sobre um grupo de signos que se

apresentariam confortavelmente fixados como um conjunto de representações, por exemplo,

da ordem da palavra, escrita/falada ou da ordem da imagem. Assim da mesma forma que a

escritura derruba, desloca a polaridade fala/escrita, a música deslocaria também, por exemplo,

outra polaridade constituída pelo contraste entre imagem e palavra, rasurando a zona de

conforto que taxonomiza signos como representações ora imagéticas ora verbais. Tomemos a

canção que fala: “Aurora vem chegando anunciando o nosso amor, ôôôô102”. Para além das

questões prosódicas instaladas na relação entre elementos sonoros e verbais, o fragmento

ôôôô, representado por uma repetição arbitrária da vogal, especifica mais nitidamente o efeito

escritura que a música provoca na semiótica tradicional que qualifica signos como

representações ou expressões de coisas apontadas no mundo. O fragmento em questão

102 Ao romper da aurora. Francisco Alves, Lamartine Babo, Ismael Silva, 1932.

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especifica som, música, efeito que possibilitaria ordenar percepções aproximadas do signo

aurora produzindo nem imagem nem palavra, mas, inscrevendo-se em ambas, atuando sobre

ambas, confundindo-as, rasurando-as. De fato, se o efeito fosse uma coisa, estaria em ambas.

A impossibilidade de apontar no mundo o que é isso que verte, som, canto, freqüência que

permite articular imagem/palavra aurora e diferir imagem/palavra aurora, impossibilidade de

dizer música e sobre música é o que orienta a aparente impressão de centralidade que as

letras, as palavras das canções podem sugerir ocupar nesse corpus. De fato, não dizemos

muito desse efeito que o fragmento destacado especifica, a não ser afirmar que se trata de um

efeito nos termos desconstrutivistas derridianos. Assume-se que o falar sobre música poderia

sempre muito pouco. Produziria traduções precárias, demasiado arbitrárias. Resta-nos ouvir.

Não da forma passiva, escuta formal. Mas, deixando-se contaminar pelas sensações musicais,

impressões, ao mesmo tempo em que por elas também rasuramos o texto, o texto dizer sobre,

o querer-dizer texto. Texto-formal rasurado por texto-poesia, texto-música, texto-som e

também por um texto-imagem/palavra, por sua vez, operados “no entre”, brizura, diferança

que permite descriminar cada tipo de texto ao mesmo tempo em que os articula, aproxima-os,

efeito atuando de dentro dos textos, plasmando-os como um só texto, texto-tese. Como já

colocado no inicio desse corpus, a grande dica é: o jogo devir só se justifica pela escuta,

apenas ler os versos das canções não permitirá ordenar percepções para então fazê-las

derrubar e deslocar. O signo “aurora” ao constituir-se no fragmento “ôôôô” sofre movimento

de rasura e re-ordenamento que o efeito música, som, canto permite sentir como impressão de

epifania, de despertar que, por sua vez, já aguarda o movimento que a escuta pode re-orientar

talvez como impressão de saudade ou esperança, mas, já não cabe a nós e sim ao jogo esta

movência.

Ainda em se tratando da música/escritura, assumimos que não se inventou um ordenamento

musical/poético porque havia um entendimento humano de ordem a partir de uma

transcendência, pré-estabelecida pelo cosmos como presente dos deuses benevolentes. Mas,

porque a escritura/música, efeito e rastro, cuja arqui-origem principia aqui e agora e sempre e

sucessivamente, instaura a condição de possibilidade de percepção da ordem e a possibilidade

de dizer ordem e a de ordenar e, ainda, de fazer mover essa ordem e outra ordem e outra que

se instaura simultânea àquela, sem ser exatamente uma terceira, e mais outra, e assim,

sucessivamente.

Numa cultura marcada pela oralidade e, consequentemente, pela sonoridade, a música, em sua articulação essencial com a memória, era, e é, o seu próprio modo de ordenação. (...): a música não é determinada desde a

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vigência de um ordenamento prescrito. Ao contrário ela é o fundamento, não propriamente prescritivo, mas, inscritivo. É a música que originalmente inscreve, isto é, marca, sulca, possibilita e realiza o memorável. (...). A música não é um mero suporte do memorável, ao contrário, ela é o mais alto grau de posssibilidade de vigência da memória enquanto memória (...) A música se configura, ela mesma, como uma dimensão, como possibilidade do desconhecido enquanto medida. Nessa compreensão, ela é mais do que uma via. Ela é mais do que um suporte, ela é mais do que uma razão, ou mesmo mais do que o estabelecimento de uma ordem, de uma lei (JARDIM, pp.74, 75, 2008).

E a partir do ponto em que prazerosamente ordenamos o ordenamento das canções, como a

última citada, ainda no Lado A, Bye, Bye, Brasil, numa série interpretativa confortável e

coerente, já nos aponta como sombra agourenta e libertadora o deslizamento, a rasura dessa

ordem como o rastro no que se quer objeto, como o grama no que se quer palavra. Seguimo-

lo então.

O rastro que marca o efeito que se pretende objeto a partir das origens rasuradas é o que

possibilitaria ouvirmos sobre minha confortável interpretação nossos ilustres convidados:

Rapaz Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado. Alegorias que se tornam sujeitos nem

mais nem menos metafísicos que qualquer sujeito, todos os sujeitos, o sujeito, o altere, o

contexto, o conceito. Nem mais nem menos inventados e falantes que o capitalista, o

trabalhador e as classes sociais de Marx à Durkheim, que o tipo-ideal weberiano, que os à

priori kantianos e o espírito hegeliano, que a mão-invisível de Adam Smith, que o super-

homem de Niezscthe, que a alegoria de Benjamin, que o intelectual orgânico de Gramsci, que

as pastoras do catolicismo, incluindo a Diana e a borboleta, que o boitatá e o curupira do

folclore brasileiro, que os santos, orixás, Jesus, Buda e tantos mestres de saberes não-laicos

(dos quais, a alguns, devoto minha fé incondicional), que os personagens históricos de

Tiradentes a Nero, que os personagens da ficção Dom Casmurro e Dom Quixote, sem o qual

não haveria Cervantes, como bem observou HADDOCK-LOBO. Salvo a condição de nome,

qual outra autoridade os qualifica como distinções hierarquizadas?103 Ao término da voz e o

103 SD Orientador em dialogismo com o SD Banca Examinadora: Alguém que se assume ser sociólogo ou coisa do gênero, diria que a questão não é metafísica, mas social e que, portanto, a hierarquia referida se estabelece socialmente. SD Eu: Mas, justamente o que pretendemos afigurar aqui pergunta ainda o quanto esse suposto estabelecimento social pode não ultrapassar uma linha de fronteira confortável, invenção mundo/nome desse mesmo ser sociólogo que pode não encontrar eco em outros seres ou SD localizados além da fronteira. Por exemplo, o nome sertanejo inscreve/especifica um signo ou grupo de signos que se assemelham entre si segundo percepções que se estabelecem a partir da leitura de Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos. O mesmo nome sertanejo especifica outro grupo de signos para os ouvintes de Chitãozinho e Chororó ou Leandro e Leonardo, não leitores de Rosa ou Ramos. E outro ainda para um grupo de neo-punks da periferia paulista que, do interior de um ônibus em movimento, vêem anunciado em um out-door da Marginal Tietê o mais novo show sertanejo universitário da dupla Victor e Léo. Enfim, o que se argumenta diz respeito à possibilidade das

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fenômeno Derrida nos dá uma pista para pensar o labirinto do qual o pensamento racional

tenta através da compreensão esquivar-se sem sucesso.

Sem dúvida, tudo começou assim: um nome pronunciado diante de nós transporta-nos à galeria de Dresde... Erramos pelas salas... Uma tela de Téniers... representa uma galeria de quadros... Os quadros dessa galeria representam, por sua vez, quadros que revelam inscrições passíveis de ser decifradas etc. Certamente nada procedeu nessa situação. Seguramente, nada a suspenderá. Ela não está compreendida como o desejaria Husserl, entre as intuições ou apresentações. Da plena luz da presença, fora da galeria, nenhuma percepção nos é dada, nem, certamente, prometidas. A galeria é o labirinto que compreende em si suas saídas: nunca se cai ali como em um caso particular de experiência, aquele que Husserl acreditava descrever então. (...) Então resta falar, fazer ressoar a voz nos corredores, para suprir o brilho da presença. O fonema, a akumene, é o fenômeno do labirinto. Esse é o caso da phoné. Elevando-se em direção ao sol da presença, ela é o caminho de Ícaro. (...) E ao contrário do que a fenomenologia – que é sempre fenomenologia da percepção – tentou nos fazer acreditar, ao contrário do que nosso desejo não pode deixar de ser tentado a crer, a própria coisa se esquiva sempre (DERRIDA, 1994, p. 116, 117).

A própria coisa se esquiva sempre. A coisa, a palavra e o labirinto sempre se esquivam da

compreensão que, por sua vez, não se esquiva do indecidível. Não se esquiva da disseminação

em que os sentidos desmancham umedecidos pelas notas de percurso. Resta-nos deixar falar.

E eu que já tanto falei, esclarecendo sobremaneira o meu “querer-dizer”, na contingência da

relação com as alegorias BR, RF, e CM, restaria ser o Seu Doutor. E, por mais bem

intencionado que fosse o meu “querer-dizer”, lado a lado com as alegorias, antes mesmo de

abrir a boca, já estaria eu mais próximo de quem mais gostaria de estar longe: o tal discurso

da elite, localizado no contexto metafísico como altere mais nitidamente visível do campo

reflexivo cancioneiro popular. Sim, porque, reificadas em sujeitos discursivos, as alegorias

não me tratariam por um próximo, nem sambista, nem caipira, nem caipora, mas, um Seu

Doutor. O Seu Doutor que pergunta “o que é a lira?”, o Seu Doutor que pergunta “o que é o

ziriguidum? E o que expressa a batida do ganzá?” Mal disfarçadamente na intenção de possuir

e taxonomizar a fala do outro, enquadrá-la em um logos, qualquer logos, pela ciência. O que

provoca enorme estranhamento entre os convidados que logo vão se pronunciando.

BR: Mas, Seu Doutor... o que é isso? O Seu Doutor vai entrar mesmo no samba? Por mim

tudo bem.... Só não sei pra quê, afinal, já vou lhe afirmando que o samba não vem nem do

fronteiras serem tal inventadas qual moventes, provisórias. Por isso, estabelecer uma hierarquia do nome a partir da sociologia inscreve signos que produzem efeitos enquanto expressões de uma fronteira igualmente inventada e contingente.

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morro nem da cidade, ele é um privilégio e ninguém aprende samba no colégio (Feitio de

Oração104).

RF: É DOUTOR, NÃO FORÇA! Para fazer meu samba não tirei diploma! (Minha

cabrocha105). Num samba, branco se escangalha, branco não tem jeito106. Oh, Seu Doutor,

você, branco assim, vai subir no meu barraco lá no morro de Mangueira? Vai ter embaraço,

e eu vou é sair com a rainha da escola de samba que seu nego é diretor (Escurinha107).

BR: O samba é de origem popular, não tem cor nem raça... (Lembranças de Noel108), pois o

samba do morro não distingue ninguém, samba quem está de branco e de amarelo samba

quem está de tamanco e de chinelo (O samba me chamou109). Vai mulato filho de baiana e a

gente rica de Copacabana, Doutor formado de anel de ouro e branca cheirosa de cabelo

loiro (Samba de fato110).

CM: Seu Doutor me dê licença pra minha história contar que hoje eu estou em terra estranha

e é bem triste o meu penar (Vaca Estrela e Boi Fubá111). Mas, se quer saber a minha opinião,

Seu Doutor, priorize esse projeto e deixe o rio desaguar (Deixe o rio desaguar112).

BR: Tem outra coisa que eu quero dizer, tu és Doutor, mas eu também sou. Desde o subúrbio

até a cidade quem canta samba é doutor (Sabor de samba113). Sou Doutor em samba e quero

ter o meu anel, tenho esse direito, como qualquer bacharel (Doutor em samba114).

RF: Eu ando melhor do que um doutor, com o meu terno de cursor (Jogo proibido115). Muita

gente diz que é bamba que tem diploma de samba... O malandro verdadeiro, não precisa de

dinheiro, nessa vida folgada o seu batente é batucada (Muita gente diz que é bamba116) e tem

mais, não há, nem pode haver. Como em Mangueira não há. O samba vem de lá e a alegria

também (Mangueira117).

104 Feitio de oração. Noel Rosa, Vadico, 1933. 105 Minha Cabrocha. Braguinha, L. Babo, 1930 106 O nego no samba. Ary Barroso, Luiz Peixoto, Marques Porto,1929 107 Escurinha. Geraldo Pereira, Arnaldo Passos, 1952. 108 Lembranças de Noel. Quatro ases e um coringa – A. Fernandes, C. de Menezes, 1953. 109 O samba me chamou. Gilberto Alves – Alcebíades Nogueira, Rutinaldo, 1946. 110 Samba de fato. Patrício Teixeira – Cícero de Almeida, Pixinguinha, 1932. 111 Vaca Estrela e boi Fubá. Patativa do Assare, 1960. 112 Deixe o rio desaguar. Luis Gonzaga e Flavio José, 1972. 113 Sabor do samba. Patrício Teixeira – Germano Augusto, Kid Pepe, 1935. 114 Doutor em Samba. Mário reis – (C.) Custódio Mesquita, 1933. 115 Jogo Proibido. Moreira da Silva, Tancredo Silva, David, 1953. t0 116 Muita gente diz que é bamba. Jorge André, 1933. t3 117 Mangueira. Bando da Lua – Assis Valente, Zequinha Reis, 1935. p0

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BR: Mas, samba de morro não é samba, é batucada. Lá na cidade a escola é diferente só tira

samba malandro que tem patente (É batucada118).

RF: Se não quiser perder o nome cuide de seu microfone e deixe quem é malandro em paz.

Injusto é o seu comentário. Fala de malandro quem é otário. Mas, malandro não se faz eu de

lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz (Mocinho da Vila119).

BR: Não tenho medo de bamba na roda do samba eu sou bacharel (Eu vou pra vila120).

RF: Deixa o cabrito berrar! (idem121). Minha conversa não é com você, ô urubu malandro

que pensa que é bonito e letrado e sabe mais que um dotô (urubu malandro122), mas com o

Seu Doutor ali. Se o doutor subir numa favela vai ver coisas de cortar o coração, barracos

caídos no chão e crianças chorando pedindo um pedaço de pão (Drama da favela123).

CM: No começo eu tive medo, mas hoje eu peço, pare o samba três minutos pra eu contar o

meu baião (Baião de São Sebastião124). Nem que eu fique aqui dez anos eu não me acostumo

não tudo aqui é diferente dos costumes do sertão. (No Ceará não tem disso não125). E tem

mais, lá no meu sertão pro caboclo lê tem que aprender um outro ABC. (ABC do sertão126).

Porque ser Doutor é muito fácil, o difícil é ser caipira127

BR: Fingindo é que se leva vantagem, isso sim é malandragem. E isso é conversa pra

Doutor? (Escola de malandro128). A malandragem é um curso primário que a qualquer é bem

necessário. É o arranco da prática da vida que somente a morte decide ao contrário (Ora

vejam só129).

RF: Ô, BR, vê se perde essa mania de bamba, todos sabem qual é o teu diploma no samba. E não

deves apelar para um barulho à mão, em versos podes bem desacatar, pois não fica bonito um

bacharel brigar (terra de cego130)

118 É batucada. Moreira da Silva, Caninha, Visconde, 1933. t0 119 Mocinho da vila, Wilson Batista, 1934. t3 120 Eu vou pra Vila. Almirante – Noel Rosa, 1930. p0 121 Deixa o cabrito berrar. Mirabeau, Airton Amorim, Milton de Oliveira, 1956. 122 Urubu malandro. Pixinguinha, 1914. 123 Drama da Favela. Mirabeau, Milton de Oliveira, 1956. 124 Baião de São Sebastião. Luis Gonzaga, Humberto Teixeira, 1973. 125 No Ceará não tem disso não. Luis Gonzaga, Guio de Moraes, 1950. 126 ABC do sertão. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1953. 127 O Capiau. Tião do Carro, José /Caetano Erba, s.d. 128 Escola de malandro. Noel Rosa, Ismael Silva, Luís Machado, 1932. 129 Ora vejam só, Sinhô, 1928. Há mais uma estrofe na canção de Sinhô que não foi gravada por Francisco Alves. “A malandragem é um curso primário que a qualquer é bem necessário é o arranco da prática da vida somente a morte decide ao contrário” 130 Terra de cego. Wilson Batista, 1935.

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CM: Quando eu vim do sertão “seu moço” com meu bodocó, só trazia coragem e a cara

viajando num pau de arara, eu penei, mas, aqui cheguei (Pau de arara131). Mas, com Doutor

eu não me meto. Lá na minha terra enxada e caneta não se dão não. Caneta só anda na mão

dos mestres e dos homens de posição e a enxada de fato só vive no chão pra dar de comer pro

patrão, mas, se não fosse o sustento dela ninguém tinha instrução. (A enxada e a caneta132).

SD: (mudo de espanto)

SD: (recuperando-se do espanto)

SD:

E seria por essa disseminação dialógica, jogo que não experimentaria origem e se assim

quisermos nem esgotamento, expressam-se os indecidíveis derridianos, nem fala, nem escrita,

nem autor, nem leitor, nem conceito, nem palavra, nem objeto, nem signo, nem sujeito, nem

não-sujeito, nem contexto, nem não-contexto – diferanca, khora, escritura, phármakon –

indecidíveis incontroláveis pela tessitura do livro, do autor, do logos, da diferença, da posição

e da oposição. Melhor deixá-los rasurar o pensamento como rastros atuando sobre superfície

estriada, a mesma que a ciência insiste em ver lisa. Rastros sulcando constructos, efeitos que

funcionam como alertas para conceitos, nomes (significantes), sínteses e analogias

aparentemente tão bem fundamentadas nos alicerces da ciência moderna. O desconforto que a

falta de controle e a falta de decisão causa no pensamento que “quer dizer”, “precisa dizer

alguma coisa”, em geral, operando por pólos dicotômicos ou dialéticos para dizer o que quer

dizer. Tal desconforto, nos é confrontado pelos indecidíveis e incontroláveis derridianos que

fazem a cadeia lógica desfazer elos ainda incompletos e deslizar, deslocar-se em tropos

indefinível antes de territorializar-se confortavelmente em qualquer conceito pré-estabelecido

pelo discurso que hegemoniza a partir do dizer ciência e do dizer literatura etc. O indecidível

não cabe entre a ciência e a literatura, entre real e ficção, entre, natureza e constructo, entre

nenhum entre da diferença a não ser aquele que permite a diferença e por isso, efeito de

espaçamento e confusão, diferança. Está no que não se quer conceito, nem sujeito, nem

objeto, nem literatura, nem episteme, inspira-se no entre da Alegoria benjaminiana e do

Sujeito Discursivo de Bakhtin. Mas, também inspirado no verbo de Manoel de Barros, pega

delírio, inviabiliza a possibilidade de cristalizá-lo em lógica sistêmica, (mesmo um novo

sistema de fundação híbrida: ciência e literatura) e já nos transforma (autor/leitor) no Sujeito

Discursivo Seu Doutor, sem aspas, sem concessões, fazendo-nos deslizar para perto e para

longe, simultaneamente, porque em estado de canção, não mais veríamos o objeto. Agora 131 Pau de arara. Luis Gonzaga, Guio de Moraes,1952. 132 A enxada e a caneta. Teddy Vieira, Capitão Barduíno, 1952.

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seríamos os SD eleitos que tem por prévios o Barão da Ralé, o Contente Magoado e o Rapaz

Folgado? Ou, ainda, para além da inversão, a disseminação faz implodir a diferença na

consistência mesma da lógica que permitia sua produção. Autor-sujeito-alegoria-leitor-

contexto-livro-fala-escrita-papel-canção-subjétil-escuta e o efeito. Considerando que o mesmo

efeito de espaçamento e confusão produzido no entre dos elementos é o que permite ao

mesmo tempo nomeá-los, confundi-los e jogar com e entre eles.

Porém, para produzirmos a disseminação ou irmos adiante com o movimento de

deslocamento, caracterizando a desconstrução mesma do sujeito discursivo, proponho

seguirmos os rastros, efeitos que permitem a inversão de se (autor/leitor) posicionar,

considerando a contingência da relação, em estado de SD entre os SD: BR, RF e CM. Em que

condição o Seu Doutor (autor/leitor) especifica-se como alegoria, como SD entre SD do

cancioneiro popular? A começar podemos focar-nos sob uma condição de escuta, visto que é

pela função da escuta que mais diretamente estabelece-se a relação entre Seu Doutor (SD),

RF, BR e CM. Condição de escuta que não seria jamais passiva ou apenas receptiva,

considerando que ao selecionar, a escuta age de forma ativa e seletiva. Da mesma forma que a

música para Deleuze e Guattari territorializa e desterritorializa em ritornelo constante, Pierre

Schaffer propõe “não separar jamais o escutar do fazer” (SCHAFFER apud OBICI, p. 27,

2008). Escuta como um ato de criação (OBICI, 26, 2008) e de afirmação de certo lugar

político em que se (autor/leitor) coloca ativa e atuante como força capaz dos mesmos

movimentos referentes à territorialização e desterritorialização identificados por Deleuze e

Guatarri na música. Essa ação se expressa a princípio pelo juízo de valor que seleciona e julga

o que se ouve para logo em seguida produzir a disseminação de sentidos, criação, metáfora de

metáfora daquilo mesmo que se ouviu e já se vai ouvindo/produzindo segundas, terceiras,

quartas, múltiplas, disseminadas interpretações, traduções, criações que propõe novas

tedestereterritorializações133 pela mesma força do ritornelo deleuziano.

Pode-se inventar mundos sônicos pela criação de territórios irreais, delírios de forças inaudíveis. É nesse paradoxo entre o que é possível e inimaginável que nossos ouvidos poderiam mobilizar uma atitude criadora que é também uma forma de inventar escuta (OBICI, 49, 2008).

133 Neologismo que expressa a simultaneidade do movimento referente às categorias deleuzianas de territorializar, desterritorializar e reterritorializar como movimentos de ritornelo, cujo retorno, porém, nunca encontra o mesmo ponto deixado anteriormente. Poderíamos pensar numa espiral. Mas, Deleuze propõe a imagem de um rizoma. Podemos pensar em círculos que antes de se completarem já estariam originando novos círculos. Independentemente disso, os conceitos de ritornelo e rizoma serão abordados um pouco mais adiante.

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Porém, eu diria que é mais do que inventar escuta, mas, inventar pela escuta, uma escuta que

cria ao interpretar/traduzir o que ouve para além da condição de SD cristalizado em Posição

ou Estado de Sujeito da qual se espera uma resposta dentro do padrão mapeado pelo

dialogismo na contingência da relação estabelecida. No caso mais específico da música, antes

mesmo de se ir mais a fundo nas possibilidades do jogo expresso na relação entre sujeitos que

vão se desconstruíndo ou desterritorializando, já haveria uma indecisão mesmo a nível

contextual que afeta internamente o dizer música. Uma vez que o contexto determinaria os

limites estéticos do que deve ser classificado por música, ruído e silêncio, essas construções

devem, por sua vez, responder à construção contextual (social, político, cultural etc.,

hegemonicamente construída por um discurso falocêntrico, senso comum, monumental) ora

desafiando o limite ora subordinando-se a ele.

De alguma forma a música vive em constante batalha de destruições de paradigmas e conceitos que definem o que é o musical, o ruído e o silêncio. Todas as categorias do sonoro precisam ser inventadas constantemente, o que não se faz sem perda e um grande exercício inventivo (OBICI, 95, 2008).

A música européia se juntou com a africana no território das Américas. Esse evento é produtor de uma extraordinária força multiplicadora: ele contribui para criar experiências de tempo musical de uma grande complexidade e sutileza. O ímã da música puxa agora de novo para o questionamento e a criação sobre o pulso, o tempo, o ritmo. Essas músicas devem ser lidas ou escutadas em nova situação. Elas fazem parte do processo de codificação entre som, ruído e silêncio como modos de admitir fases e defasagens, de trabalhar sobre o caráter simultaneamente rítmico e arrítmico do mundo (WISNIK, p.55, 2006). (...) A escuta está polarizada pela repetição do mercado, mas outros modos de escuta estão latentes nela como ressonâncias harmônicas. À medida que nos aprofundamos no tempo da dessacralização, toda a história dos símbolos, que vibra num acorde oculto (modal, tonal, serial), fica paradoxalmente mais exposta na sua simultânea contemporaneidade (WISNIK, p.56, 2006).

A música se desloca entre o silêncio e o ruído, não sem drama, sem conflito, mas, é preciso

pensar o quanto o ouvido não é também autor desse mesmo drama, produzindo e destruindo

territórios, por ato auditivo ativo e afirmativo. Assim não muito distante do jogo entre fala e

escrita expresso na escritura derridiana que, por extensão, reincreve a

leitura/interpretação/tradução como ato de criação, apenas diferanciado da escrita, proponho o

jogo entre música (como expresso pelo ritornelo deleuziano) e escuta estabelecendo uma

dupla possibilidade de rasura, atuando no deslizamento do que se quer dizer música, no que se

quer dizer ruído e no que se quer dizer silêncio.

Assim, na contingência da relação com BR, RF e CM seríamos sujeitos discursivos em vias

de sermos tedestereterritorializados, porém, sem escapar a passagem pelo constructo, pela

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alegoria Seu Doutor que, simultaneamente, ouve e reterritorializa o CM, o BR e o RF,

segundo juízo de valor sobre o que é musical, o que é silêncio e o que é ruído.

Aproximando-se mais do ritornelo deleuziano podemos assumir que a princípio BR, RF, CM

e SD carecem de ordem, território, movimento de ordenamento que garanta a sensação de

sentir-se “em casa”. Porém, dessa mesma necessidade, sentimento, já emerge o movimento de

abertura para o Caosmo deleuziano (Caos/Cosmo), para além do limite mal estabelecido pelo

movimento de territorializar que, em termos deleuzianos, determinava um agenciamento

territorial (ritornelo). O que explicita dizer que todo movimento de territorialização já

expressa um devir desterritorializante, um efeito ritornelo: devir fuga e devir retorno que

nunca reencontra o mesmo ponto.

Uma criança no escuro, tomada de medo, tranqüiliza-se cantarolando (...). Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o “em-casa” não preexiste: foi preciso traçar um círculo (cantarolando) em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. Agora, enfim entreabrimos o círculo, nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga (DELEUZE; GUATTARI, pp. 116, 117, 1997).

Momentaneamente, em um princípio inventado, localizávamo-nos (autor/leitor) nas forças do

caos que ameaçavam, por juízo de valor e escuta seletiva, e provocavam a necessidade das

alegorias produzirem o círculo em torno do centro frágil. Mas, enquanto opera, a máquina

discursiva (RF, BR e CM) que constrói e fortifica a obra a partir de dentro já abre-se para

improvisar: “arriscamos uma improvisação, improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou

confundir-se nele” (Idem, p.117).

O ritornelo tem os três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: Ora o caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma pose calma e estável. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro. (Ibidem).

O cancioneiro popular expresso pelas alegorias BR, RF e CM, simultaneamente ao ato de

organizar-se para defender-se do caos expresso por contextos e sujeitos referentes a processos

de modernização no país – urbanidade burguesa de transformação conservadora nas primeiras

décadas do século XX – já caminha ao encontro dessa mesma burguesia, ritornelo,

movimento para um novo meio, novo agenciamento territorial, improvisando parcerias

improváveis com o Seu Doutor. Conosco. O cancioneiro popular através do discurso de suas

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alegorias desliza para um novo meio que antes era por ele territorializado como o “outro”, o

“fora”, “o caosmo” e, a partir daí, segue deslizando para novos outros meios nos quais os

discursos da burguesia, da indústria cultural, da política etc. constituem-se cada vez menos

como um “outro”. Para Deleuze o deslizamento se dá entre meios que incorporam e

transformam em “dentro” e “casa” parcela do que era “fora” ou “caos”. E esse movimento de

deslizar seria inevitável ao meio. A repetição continua (“meio”) promove, não

necessariamente, de forma intencional, a diferença (“passagem para novo meio”), a

transformação, em movimento simultâneo.

É que um meio existe efetivamente através de uma repetição periódica, mas esta não tem outro efeito senão produzir uma diferença na qual ele passa para um outro meio. É a diferença que é rítmica, e não a repetição que, no entanto a produz; mas, de pronto, essa repetição produtiva não tinha nada a ver com uma medida reprodutora (ibidem, p. 120).

A título de evitar mal entendido por conta da terminologia deleuziana é tácito informar que o

meio não constitui um território, mas, como dito, uma repetição. Repetição que se contrapõe

ao caos ao mesmo tempo em que enfrenta o caos através do ritmo. Ritmo não é repetição,

mas, efeito que somado ao caos estabelece o “entre-dois” meios, ritmo-caos, “caosmo” e

possibilita a passagem de um meio para outro. Possibilita a expressão, criação, invenção.

O Território não é um meio, nem mesmo um meio a mais, nem um ritmo ou passagem entre meios. O Território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os territorializa. O Território é um produto de uma territorialização de meios e ritmos (ibidem, p. 120).

Toda essa explicação de ordem deleuziana se presta ao entendimento assumido por nós do

que venha a ser território. Algo que se aproxima dos indecidíveis derridianos, no sentido de

que não é signo, nem coisa, mas um ato, um movimento, um efeito, uma marca qualitativa

que se dá no meio, este sim algo próximo ao que entendemos, pelo senso comum científico,

como território, espaço, meio ambiente.

A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. (ibidem, p.122). O ritornelo é o ritmo e a melodia tornados expressivos e tornados expressivos porque territorializantes. Não estamos girando em círculos queremos dizer que há um auto-movimento das qualidades expressivas (ibidem, p.124).

Essa expressividade dá-se não por uma vaidade de um discurso, arte pela arte, mas por uma

necessidade de delimitar uma distância. O território como uma distância entre, por exemplo,

os SD Barão da Ralé, Rapaz Folgado, Contente Magoado e Seu Doutor.

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Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta. (...) A distância crítica não é uma medida, é um ritmo. Mas justamente, o ritmo é tomado num devir que leva consigo as distâncias entre personagens, para fazer delas personagens rítmicos, eles próprios mais ou menos próximos, mais ou menos combináveis. (...) Mais do que isso é preciso considerar dois aspectos simultâneos do território: ele não só assegura a coexistência dos membros de uma mesma espécie, separando-os, mas, torna possível a co-existência de um máximo de espécies diferentes em um mesmo meio, especializando-os (ibidem, p.128).

Resta-nos pensar o movimento do ritornelo não como uma espiral ascendente, não como

estrutura arbórea, mas como rizoma, como descentramento de centros que não guardam

hierarquias de origem ou esgotamento. Deslizamentos simultâneos de centros de meios que

deslizam entre-dois meios, incorporam parcelas do caos, do fora, do outro. Por isso, não

caberia estabelecer Posições de Sujeitos arbitrados numa relação, visto que essa relação

guarda em si, como devir, movimento de deslizamento imprevisível, cuja direção não pode

ser decidida pela análise das partes que momentaneamente cristalizam o sujeito sequer sob um

quadro Estado de Sujeito.

Indiferentes ao luxuoso auxílio deleuziano, agora mesmo, o RF, o BR e o CM nos encaram de

frente. Elegem-nos como seus SD eleitos: o Seu Doutor, nós, os doutores, os professores, os

estudantes engajados, os advogados, os delegados, os profissionais, os políticos, os

proprietários, a burguesia sensível e insensível ao povo, os urbanos da praia, moradores da

beira-mar, da Zona Sul carioca, dos Jardins da Paulista, das áreas verdes, dos bairros nobres,

dos casarões e palacetes suspensos, os privilegiados. De outra forma, nos dizem dessa

diferença entre nós e eles. Não da nossa forma que os diz classe operária, classe popular,

proletariado, campesinato, trabalhador, lumpesinato, migrantes, retirantes, exilados etc.

Compreendendo que eles também nos chamam Seu Doutor entre variáveis constructos de

alteridade, tentaremos ouvi-los no entre das nossas falas. No entre que como dito expressa a

confusão de se estar na fala deles e na nossa assim como a separação que permite nomear BR,

RF, CM e SD. Para falar dessa diferença que se constrói a partir de RF, BR, CM e SD, mas

que já se deslocaria diferanciada para além daquela classificação de Sujeitos Discursivos

prévios e eleitos, eles/nós se/nos convidam (mos) a certo contexto preferencial, uma espécie

de entrada no feixe do jogo que desliza simultaneamente em direção a Belle-Époque e a

Ditadura Militar. Essa entrada faz referencia ao contexto que elege os signos sociedade do

trabalho e modernidade dos anos 30 e 40, quando possivelmente os discursos CM, RF e BR

em dialogismo entre si e com o discurso SD foram emitidos e escutados de forma mais nítida.

Vamos ao jogo.

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♪♪♫♫

RF:

Vivo na malandragem Não quero saber do batedor Pode escrever o que vou dizer Ando melhor do que um trabalhador Não há riqueza que me faça enfrentar o batedor Pois quem é rico nunca foi trabalhador134 Meu chapéu do lado tamanco arrastando Lenço no pescoço, navalha no bolso. Eu passo gingando, provoco e desafio. Eu tenho orgulho de ser tão vadio. Sei que eles falam deste meu proceder Eu vejo quem trabalha andar no misere Eu sou vadio porque tive inclinação Eu era criança tirava samba-canção.135 Eu não quero trabalhar Trabalho vá pro inferno Se não fosse pela minha nega Eu jamais poria um terno136 Quando esse nego chega, ai, meu coração me dói, dói Parece que vai, vai saltar do peito E vai rolando pelo chão, ai, que maldição Nego, não me pise nele não Mas o feitiço desse nego pega, ora se pega E quando pega dá trabalho pra limpar Quando a paixão é surda e muda, é cega, não sossega Fica no corpo até morrer Ele namora quase tudo que é mulata Não faz mal, sou democrata Eu nascí pra padecer137 Você quer comprar o seu sossego me vendo morrer num emprego Essa vida é muito cômica e eu não sou Caixa Econômica que tem juros a ganhar Você diz que eu sou moleque porque não vou trabalhar Eu não sou nenhum cheque pra você me descontar... Meu avô morreu na luta e meu pai pobre coitado Espatifou-se na labuta por isso eu nasci cansado E pra falar com justiça eu devo é aos empregados Ter em mim essa preguiça herança de antepassados138

SD:

134 Nasci no samba. Benedito Lacerda e Bide, 1932. 135 Lenço no pescoço. Wilson batista, 1933. 136 O trabalho me deu bolo. Moreira da Silva e João Golo, 1939. 137 Quando esse nego chega. Araci de Almeida - Haroldo Barbosa, 1948. 138 Caixa econômica. Nássara, Orestes Barbosa, 1933.

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O enfrentamento ao código trabalhista, referente à construção do signo “sociedade brasileira

do trabalho sob a tutela varguista”, está presente no discurso do cancioneiro popular através

dos discursos da alegoria RF (a ponto do Estado Novo baixar uma portaria proibindo sambas

de exaltação à malandragem139). Tal escopo discursivo põe em dúvida a garantia da

reciprocidade que o pacto social baseado no trabalho e no respeito às leis e aos códigos

promete ao pobre. Em geral, estas canções, na interpretação do poder (político, policial,

jornalístico, acadêmico) se encaixam no rótulo de transgressoras, por produzirem construções

apologéticas da vida do malandro, da liberdade desregrada, da inteligência de viver sem

trabalhar, da coragem no enfrentamento com outros malandros, na destreza de escapar da

polícia e do prestigio de que desfruta no grupo social que freqüenta, em particular, junto à

mulher. Os discursos do RF também deixam claro que os poderes do Estado (representado

pelas instituições e sujeitos formais, a polícia, os políticos, a Igreja, os assistentes sociais e de

saúde) e do capital (representado pela burguesia, o patrão, a patroa, a grã-fina, o aristocrata)

constituem alteridades bastante claras: são os “outros” do morro, do samba, da amizade, da

malandragem.

RF:

Quando eu me espalho (...) Nem mesmo a polícia pode140 Mas que golpe errado que eu dei Dizendo que ia deixar a vadiagem Com o tal de trabalho eu não me acostumei Nem mesmo por camaradagem Força eu não faço, faça quem quiser

139 Apela-se sabiamente para a música popular, abatida pelo protecionismo controlador do Estado empenhado em construir um protótipo do homem brasileiro. Vários compositores engajaram-se no projeto ideológico. Os cachês do DIP eram atraentes e os canais de divulgação (estávamos na "Era do Rádio") ofereciam novas oportunidades, acompanhadas de perto pela censura. O tema da malandragem cedeu lugar a enredos de exaltação ao trabalho e do operário-padrão. Um exemplo desta metamorfose musical é o samba "O bonde de São Januário", de Wilson Batista e Ataufo Alves, gravado em 1940 por Ciro Monteiro, em cuja letra a palavra "otário" foi substituída por "operário", transformando-se em elogio ao trabalhador: "o bonde de São Januário leva mais um otário..." Regenera-se o malandro transformado em um homem de vida regrada, bom marido e trabalhador exemplar. Malandragem e boemia transformaram-se em "lazer proibido", conjugando utopia com una nova realidade histórico-social. Reprimia-se a linguagem malandra e a "giria" brasileira, restando aos compositores a ironia e a ambigüidade, uma válvula de escape tanto para a música popular como para a charge política. Por este mesmo filtro cultural passou também o carnaval cujos sambas-enredos das escolas de samba, censurados pelo DIP, deveriam versar sobre temas relativos á Historia do Brasil. Por entre sambas, documentários cinematográficos, bandeiras e desfiles para-militares, criou-se uma aura de satisfação, harmonia e felicidade, expressa discursiva e plasticamente em torno dos preceitos ideais do Estado. Cativava-se o indivíduo para os desígnios do Estado, instigando todo brasileiro a atingir o ideal máximo de patriotismo (http://www.tau.ac.il/eial/I_1/carneiro.htm em 20 fevereiro 2009). Autoritarismo e anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945)M. LUIZA TUCCI CARNEIRO. Universidade de São Paulo. 140 Eu sou é bamba. Marinho e Getúlio, 1932. t0

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Do tal de trabalho eu passo Pegar no pesado meu santo não quer Pra não ficar mal acostumado141.

SD:

Sob a ótica do Estado tutorial, o discurso transgressor do cancioneiro questiona valores os

quais a sociedade brasileira de forma consensual deveria aderir: o trabalho, como proposto

pelas instituições trabalhistas estatais ou privadas, certo padrão estético, como esperado pela

burguesia, certo comportamento público, obediente às expectativas dos agentes da lei e da

ordem. A possibilidade do pacto sob a tutela trabalhista de Vargas é ameaçada pelo discurso

transgressor do compositor popular que usa a ironia como forma de driblar inclusive a censura

do Estado Novo. O apelo ao pacto trabalhista é respondido de forma ambígua pelo discurso

do cancioneiro popular considerando que o mesmo poder de repercutir do cancioneiro serve

tal aos interesses da ordem e do progresso na construção da nação pelo discurso BR, qual às

vias alternativas de convivência social através da fala de RF que não corresponde ao modelo

idealizado pelo poder constituído em inúmeras instâncias. Porém, os discursos RF ou BR, de

modo geral, tomam as dores do pobre, privilegiam a festa popular e denunciam a

vulnerabilidade do grupo popular frente esses poderes. Muitas vezes, mesmo o discurso BR,

denuncia injustiças, explorações e desigualdades veladas pelo caráter informal das relações

informais entre populares e a elite “cordial”. Essa informalidade pode ser interpretada ora

como o desejo do pobre em ser apadrinhado (extensão do coronelismo na urbanidade) ora

como ação da elite cancelando direitos civis, sociais, às vezes, individuais do pobre. Em

ambas as situações o pobre permanece na condição de refém dos humores e da cordialidade142

do poder do patrão, da polícia, do Estado etc..

BR; RF:

Bento fez anos e para almoçar me convidou Me disse que ia matar um cabrito e onde tem cabrito eu to, ora se to. E quando comes e bebes começou No melhor da cabritada a polícia e o dono do bicho chegou Puseram a gente sem culpa no carro da rádio-patrulha e levaram Levaram também o coitado do cabrito e toda a bebida que tinha quebraram O seu delegado, zangado, não estava querendo ninguém liberar O patrão da Sebastiana é que foi no distrito e mandou me soltar.143

141 Golpe errado. Francisco Alves, 1929. 142 A cordialidade expressa por Sérgio Buarque de Hollanda como o lugar onde os códigos e regimentos da lei se apresentam sub-hierarquizados pelo emocional do afeto ou do ódio. 143 Cabritada mal-sucedida. Geraldo Pereira, 1945.

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99

SD:

Considerando enunciados como os anteriores, é pertinente propor que o discurso produzido

pelo cancioneiro popular confecciona um tutorial que ora converge ora diverge do discurso do

poder ao contituir arengas conjugais, relações de vizinhança, casos da política, reclamações

dos serviços de transporte, saneamento, água, luz, segurança etc., códigos de etiqueta, lazer e

festa, uso da rua e comportamento na cidade aburguesando-se. Também constructos como

moradia, trabalho, viração, violência pública e doméstica (a mulher, via de regra, vítima, às

vezes, transforma-se no algoz do malandro), injustiças sociais, questões raciais são inscritos

ora em tons dramáticos ora na dicção crítica e irônica das crônicas, charges e caricaturas.

RF:

Minha cabocla a Favela vai abaixo quanta saudade tu terás desse torrão Da casinha pequenina de madeira que nos enche de carinho o coração Que saudade ao nos lembrarmos das promessas Que fizemos constantemente na capela Pra que Deus nunca deixe de olhar Por nós da malandragem, pelo morro da Favela Vê agora a ingratidão da humanidade O poder da flor política amarela Que sem brilho vive pela cidade Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela144 A força do malandro está na expressão do seu olhar Ele fascina conquista domina a mulher Prende ao seu olhar pra não mais soltar depois faz dela o que ele quer O malandro interesseiro não precisa perguntar Se a mulher tem o dinheiro ele adivinha em seu olhar145.

SD:

Ao se valer desse matiz, a música redistribui a produção de códigos e valores, estabelece seus

próprios limites do que vem a ser norma e anomia, transgredindo, não a ponto de propor a

desobediência civil, revolucionária, mas a ponto de produzir um contra-discurso subversivo à

rigidez do discurso civilizatório. Segundo a sociologia de Merton (1964), o cancioneiro

expressaria o que se deve fazer ou evitar para se atingir certa meta-êxito, seja pela via formal,

do trabalho, seja pela via alternativa, da viração, da malandragem. A crítica de Merton

fundamenta-se na percepção de que enquanto as oportunidades de acesso aos meios formais

que levariam à realização da meta são distribuídas de forma não equânime entre as classes e

grupos sociais, a definição da meta (salvo particularidades) seria comum a todos na sociedade

144 A favela vai abaixo. Francisco Alves; Sinhô, 1928 145 A força do malandro. H. Cordovil, Jaime Tolomil, 1933.

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moderna urbanizando-se. Todos estariam constrangidos segundo um modelo comum de

obtenção de recursos pecuniários, bens e prestígio expresso na base do pacto social146.

BR:

Quem trabalha é que tem razão Eu digo e não tenho medo de errar O bonde de São Januário Leva mais um operário (otário, na versão não-censurada) Sou eu que vou trabalhar.147

Ele trabalha de segunda a sábado Com muito gosto sem reclamar Mas no domingo ele tira o macacão, E manda no barracão, põe a família pra sambar Lá no morro ele pinta o sete Com ele ninguém se mete Ali ninguém é fingido Ganha-se pouco, mas é divertido Ele nasceu sambista, Tem a tal veia de artista, Carteira de reservista Está legal com o senhorio... Não pode ouvir pandeiro, não Fica cheio de dengo É torcida do Flamengo Nasceu no Rio de Janeiro148.

Eu fui num samba lá no morro de Mangueira Uma cabrocha me falou de tal maneira: “Não vai fazer como fez o Claudionor. Para sustentar a família foi bancar o estivador”. Oh, cabrocha faladeira que fez tu com a minha vida? Vai procurar um trabalho e corta essa língua comprida149.

SD:

146 Merton, teórico funcionalista da sociedade americana, observa que o desvio, ou anomia, ao contrário de Durkheim, não deve ser pensado como uma patologia pura e simples, como um refugo, subproduto da sociedade. Mas, isto sim, como uma produção de via alternativa, extra-oficial para se alcançar o mesmo fim, ou meta-êxito. Numa sociedade em que metas e meios se apresentam desequilibradas, isto é, onde, para um contingente considerável da população, a expectativa de alcance das metas encontra-se muito acima dos meios regulamentados disponíveis, a via alternativa é o suporte ao qual esse contingente adere no intuito de atingir a meta-êxito. A anomia, em Merton, é conceituada como uma estratégia em busca de aderência social e não como patologia. 147 O bonde de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1940). O trabalho como prática regeneradora do pobre, como elemento que transforma o malandro em operário, caracteriza-se nesta canção de forma exemplar. Há também referência à modernidade sugerida pelo bonde como sujeito disciplinador que integra a massa trabalhadora a caminho do trabalho. 148 Ganha-se pouco mas é divertido. Wilson Batista, Ciro de Souza, 1941. 149 Morro da Mangueira. Manoel Dias, 1925. A “cabrocha faladeira” não trabalha e fala mal de quem assim procede. A crítica aproxima a aversão ao trabalho da fofoca de vizinhança.

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Toma-se tutorial como termo que deve compreender o código e a transgressão, o uso e o

desuso, a norma e a anomia. Em outras palavras, propõe-se considerar que a construção

discursiva das canções constitui-se como parte do processo de adesão, mas também de

transgressão de códigos e valores caros aos interesses do poder que orienta de cima para baixo

a forma desejada da sociedade brasileira. Seguir ou desobedecer aos códigos é uma questão de

sobrevivência, principalmente, para os que se localizam a margem das conquistas objetivas e

materiais de processos instituídos como civilizatórios, modernizadores e urbanizadores. Isto,

porque, para o grupo desprivilegiado, a falta de habilidade no uso e desuso dos códigos e

normas poderia ser fatal, qualquer erro poria em risco a própria sobrevivência, sob as novas

condições em que a sociedade opera.

RF:

Enquanto existir o samba não quero mais trabalhar A comida vem do céu Jesus Cristo manda dar Tomo vinho tomo leite tomo a grana da mulher Tomo bonde e automóvel só não tomo Itararé A escola do malandro é fingir que sabe amar Sem elas perceberem para não estrilar Fingindo é que se leva vantagem isso sim que é malandragem Isso é conversa pra Doutor?150 Eu te chamo vagabundo porque não queres trabalhar E só vives na orgia sempre a me enganar Me iludiste com promessa e juramento Mas agora minha vida já ficou no esquecimento151 O mundo me condena e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome Deixando de saber se eu vou morrer de sede Ou se eu vou morrer de fome. Quanto a você da aristocracia Que tem dinheiro mas não compra a alegria Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva a hipocrisia152 Antigamente eu tinha tudo que queria sem pegar no pesado Andava sempre endinheirado Mas a coisa mudou, a morena se pirou e eu fiquei arruinado Quando eu me lembro daqueles tempos que eu anda alinhado Eu fico até apaixonado Lenço no pescoço, charumbuto na boca, chapenguel desabado Eu era mesmo respeitado Calça listada, chinelo Charlotte, violão afinado

150 Escola de malandro. Ismael Silva, Noel Rosa, 1932. 151 Vagabundo. Nabor Camargo, 1935. 152 Filosofia, Noel Rosa, André Filho, 1933.

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E a morena a meu lado que me obedecia E vinha todo dia me trazer uns trocados É.. mas agora ... eu sou forçado a fazer cara dura Pra defender o da gordura Se for preciso a foice e o machado sou capaz de pegar Só pra poder me endireitar153

SD:

Nessa última RF diz que vai pegar na foice e no machado para se endireitar, há aí alguma

ilusão à foice e o martelo comunista? Será? Considerando a relativa liberdade política dos

anos 50 pode até ser mesmo. Mas, e o BR? O que ele fala? Entendemos que o discurso BR,

tutorial mais evidentemente sintonizado com o código, expressa-se quando faz apologia do

trabalho, da moral, do respeito às leis e do agir segundo o enquadramento proposto por uma

dada ordem urbana.

BR:

Vou a Penha rasgado pra pagar uma promessa Deixei de ser malandro porque tenho trabalhado Vou de chinelo Charlotte e terno de cimento armado Pois é o que a nota tem dado Tu foste embora, mas já estou conformado Pois é melhor viver só do que mal acompanhado Hoje eu trabalho tenho nota a beça. Mas vou a Penha rasgado pra pagar uma promessa.154 Pedro dos Santos vivia no morro do pedregulho Quebrando boteco fazendo barulho Até com a própria polícia brigou Vivia no jogo... Parece mentira Pedro endireitou Estelinha orgulho do morro (...) ao Pedro dos Santos deu seu grande amor E ele trocou o revolver que usava fingindo embrulho por uma marmita E sobe o Pedregulho de noite cansado do seu batedor155 Se a rádio patrulha chegasse aqui agora seria uma grande vitória ninguém poderia correr Agora que eu quero ver quem é malandro não pode correr Resistência e coragem não lhe ofereço Quando ela chega impondo respeito não merece preço156.

SD:

Os assuntos podem variar de conselhos a como se comportar em público, como proceder nas

festas de rua, lidar com vizinhos, com a família, com o patrão, às motivações cívicas de

cumprir com o serviço militar ou apoiar o processo democrático comparecendo às urnas de

votação, se possível, bem trajado.

153 Malandro bombardeado. Moreira da Silva, Tancredo e David Silva, 1953. 154 Vou a Penha rasgado. Braguinha, 1927. 155 Pedro do Pedregulho. Geraldo Pereira, 1950. 156 Radio patrulha. Silas de Oliveira, 1955.

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BR:

A polícia não quer barulho, a polícia não quer bebedeira. A polícia não quer barulho, a polícia não quer bebedeira. E viva a Penha, e viva a Penha, e viva a santa nossa santa padroeira. Quem fizer barulho vai pro xilindró, com a bebedeira vai ficar falando só. Pode ter batuque, pode até sambar, a nossa polícia só não pode ver brigar157. Já são dez horas no relógio da Matriz E o almoço, até agora ainda não fiz. Logo hoje que é dia de eleição Está custando cozinhar o meu feijão Ainda tenho que passar na costureira. Pra apanhar o meu vestido. Vou votar em Madureira.158 Nega, meu bem. Me passe o meu terno branco E me compre um par de tamancos Eu hoje vou votar E avise o pessoal do morro Que o homem é o Ademar.159

Patrão o trem atrasou por isso estou chegando agora. Trago aqui o memorando da Central o trem atrasou meia hora. O senhor não tem razão para me mandar embora160.

SD:

A idéia expressa no que se denomina de turorial deve, a partir de agora, dialogar com os

elementos que irremediavelmente freqüentam o campo do cancioneiro. Esses elementos são

representados na forma de signos que se repetem arquitetando certo imaginário: o morro, o

asfalto, o sertão, a cidade, o campo, o subúrbio, a Zona Sul, a estrada, o Centro boêmio, a

fazenda, o cabaré, o bar, a casinha na serra, o malandro, o doutor, o caipira, o sertanejo, a

polícia, o trabalhador, o patrão, a grã-fina, a cocotte, a mulata, o português, a boemia, a festa,

o lar, a saudade, o êxodo, o retorno, o reencontro, o castigo, a vingança, a traição, etc. Em

resumo, experimentar dessa pedagogia das canções, implica responder a imagens expressas

numa arquitetura de canções que repercutem pistas ao brasileiro de como viver e sobreviver

às exigências da urbanidade e da sociedade moderna: seja numa grande capital, seja nos

rincões sertanejos que o rádio e suas cantoras alcançam.

157 Viva a Penha. Tuiú, 1928. O termo “barulho” expressa briga. A música se refere à famosa Festa da Penha que mobilizava um grande contingente policial. 158 Vou votar em Madureira. Florinda Alves – Benedito Lacerda e Herivelto Martins, s.d.. 159 Eu hoje vou votar. Gentil Homem e Papito, s.d.. 160 O trem atrasou. Artur Vilarinho, Estanislau Silva, Paquito, 1940. O trabalhador constrangido pelo transporte público precário e pela vulnerabilidade da relação de trabalho.

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BR:

Nós somos as cantoras do rádio Levamos a vida a cantar. De noite embalamos teu sono. De manhã nós vamos te acordar. Nós somos as cantoras do rádio. Nossas canções cruzando o espaço azul. Vão reunindo num grande abraço. Corações de norte a sul161.

SD:

Como fenômeno de massa, a música popular produz na chamada era do rádio, que se estende

entre as décadas de 30 e 50, movimentos de integração e homogeneização do consumo e do

gosto musical do brasileiro, a partir da tutela da emergente classe média urbana, cuja

reprodução relaciona-se com o crescimento da oferta de cargos no setor de serviços ligados às

atividades burocráticas, técnicas e administrativas em organismos públicos e privados, das

capitais do país. Tal homogeneização do consumo, em que a música participa como sujeito

ativo, intencionalmente ou não, será ferramenta de muita serventia ao poder, considerando as

preocupações com as recentes ameaças comunistas, as tentativas de golpes e os levantes

separatistas ao longo dos anos 30 que, aos olhos do Estado, punham em risco a unidade

nacional e a centralidade do Governo Vargas. Por outro lado, essa percepção da música como

ferramenta estratégica para a manutenção da ordem também vai influenciar os discursos do

campo da música, considerando as possíveis benesses de uma aliança com o Estado. A

aproximação entre a música e o Estado conduzirá a certa orientação na escolha dos temas e no

uso da linguagem do discurso musicado: a canção ufanista, de glória e guerra, retrata o

espírito desse acordo.

BR:

Houve um comício em Mangueira O cabo Laurindo falou Toda Escola de Samba aplaudiu Toda Escola de Samba chorou Eu não sou herói Era comovente a sua voz Heróis são aqueles que tombaram por nós. Houve missa campal Bandeira a meio pau Toda a Escola de Samba rezou

161 Cantoras do Rádio. João de Barro e Lamartine Babo, 1936. p4

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Laurindo então lembrou os nomes dos sambistas que tombaram Mangueira tomou parte na vitória Mangueira mais uma vez na história162

SD:

Discursos ufanistas e patrióticos não se contam nessa época: Brasil163, 1939, “Gigante de um

continente és terra de toda gente”. Brasil Pandeiro164, 1941, “Chegou a hora dessa gente

bronzeada mostrar seu valor. Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros que nós

queremos sambar”. Isso aqui o que é (Sandália de Prata)165, 1941, “É um pouquinho de

Brasil iá-iá, desse país que canta e é feliz, feliz, feliz”. “Brasil, usina do mundo166”, 1942,

“Brasil usina do mundo, nova oficina de Deus onde homens de mãos calejadas trabalham

cantando, ouve essa voz que o destino da pátria bendiz, é a voz do Brasil que trabalha

cantando feliz”. Terra Boa167, 1942, “que terra boa pra se ganhar o pão, tem batucada tem

luar tem violão, terra da liberdade onde o verso é um esporte, por esta terra dou meu peito a

própria morte”. Tudo tem o Brasil168, 1940, o título dispensa comentários.

BR:

Brasil, meu Brasil brasileiro. Meu mulato inzoneiro. Vou cantar-te nos meus versos. O Brasil samba que dá para o mundo se admirar O Brasil do meu amor terra de Nosso Senhor (...) Esse coqueiro que dá coco, Onde amarro a minha rede Nas noites claras de luar. Essas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede E onde a lua vem brincar169.

BR/RF:

162 Comício em Mangueira. Germano Augusto e Wilson Batista, 1945. A aproximação de representações tão distantes como o sambista e o herói de guerra, assim como a Mangueira e a história oficial e bélica do país tornou-se crível porque o Estado Novo, fortemente interventor, agia como instância mediadora desses elementos, agregando-os sob a égide da nação e do trabalho. O chão da fábrica regenera o malandro da mesma forma que a guerra e ambos se colocam a serviço da nação. 163 Brasil. Benedito Lacerda e Aldo Cabral, 1939. 164 Brasil Pandeiro. Assis valente, 1941. 165 Isso aqui o que é (Sandália de Prata). Ary Barroso, 1941. 166 Brasil, usina do mundo, A. P. Vermelho e Braguinha, 1942. 167 Terra boa. Ataulfo Alves e W. Batista, 1942. 168 Tudo tem o Brasil. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1940. 169 Aquarela do Brasil. (I) Silvio Caldas – (C) Ari Barroso, 1939. Ainda que, por estratégia metodológica, não nos interesse enfatizar os perfis biográficos dos compositores, sobre esse laço entre música e Estado, vale lembrar que Ary Barroso, além de compositor e radialista, possuía cargo de vereador.

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Yes nós temos bananas, bananas pra dar e vender Vai para a França o café para o Japão algodão Para o mundo inteiro, homem ou mulher banana para quem quiser Mate para o Paraguai não vai ouro do bolso da gente não sai Somos da crise se ela vier bananas para quem quiser170 Oi que terra boa pra se farrear, oi que terra boa pra se farrear. Minha terra tem loirinhas, moreninhas chocolat. Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá Minha terra Bahia tem Ioiô e tem Iaiá Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá Minha terra tem pitanga, cajá-manga e cambucá Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá Minha terra tem um homem que ninguém sabe quem será171

SD:

Apesar do tom ainda ufanista das duas falas anteriores, a primeira já é marcada pela

participação de RF quando assume como positividade a pecha de “República das Bananas”,

termo estadunidense que ridiculariza governos latino-americanos. A segunda fala também

expressa uma sensível rasurada do RF no discurso ufanista de BR considerando que mescla os

signos contumazes de “palmeira e sabiá” à inscrição do clima de farra e instabilidade política

às vésperas do golpe de 37. O enaltecimento da grandiosidade geográfica – matas, cascatas,

rios, litorais – determinando a grandiosidade como povo e nação que o futuro nos reserva é

estratégia repetida no discurso que, a reboque, apaga o conflito social gerado pelo

desenvolvimento assimétrico entre as classes populares, a classe média e a elite. A violência

da desigualdade é amenizada pela natureza serena e dadivosa. Dissimulam-se as diferenças

sociais e raciais nas cores de um país mulato e moreno. Ainda que “mulato inzoneiro” reze no

Dicionário Aurélio como “sonso e mentiroso”, assim como “morena sestrosa” signifique

“esperta e manhosa”. Um país que anuncia futuro tão fabuloso precisaria ser então defendido

contra inimigos internos e externos. A união de todos seria imprescindível quando a guerra na

Europa ameaça os ideais de liberdade e democracia que a ditadura Vargas, paradoxalmente,

defenderia ao lado de Roosevelt.

BR:

170 Yes, nós temos banana. (I) Almirante – (C) Alberto Ribeiro, Braguinha, 1937. República bananeira é um termo pejorativo para um país, normalmente latino-americano, politicamente instável, submisso a um país rico e com governo corrompido e ditatorial. O termo foi cunhado por O. Henry, um humorista e cronista estadunidense, referindo-se a Honduras na obra Cabbages and Kings, 1904, que continha contos curtos ambientados na América Central. A "República das Bananas" original seria Honduras, onde o termo inscreveu-se também devido à forte presença das empresas United Fruit Company e Standard Fruit, que dominavam o importante setor da exportação de bananas. A United Fruit Company, por exemplo, nunca escondeu participação na política - mesmo através do uso da força. 171 Minha terra tem palmeiras. (I) Carmen Miranda – (C) Braguinha, Alberto Ribeiro, 1937.

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Alô, Tio San! Zé Carioca já te deu nosso cartão O Pato Donald agora tem que dançar o nosso samba tico-tico no fubá... Zé Carioca papagaio infernal bate pandeiro toca flauta e lê jornal Zé Carioca no cinema tem cartaz eu quero ver alguém fazer o que ele faz172. Ai o Tio San quer ser sambista, ele tem um bom ritmista Vai aprender a sambar vai provar do mungunzá Vai ficar sabichão apenas com uma lição Vai deixar a boemia americana para freqüentar a praia de Copacabana Dessa vez vou me enriquecer eu vou me encher da grana Tenho que ensinar o português ao Tio San (...) Em Hollywood deixará seu fraque e cartola Vem diretamente ao Rio para a minha escola Para aprender a soletrar a nosso be-a-bá e não vai mais voltar prá lá173. Chegou o samba minha gente lá da terra do tio Sam com novidade E ele trouxe uma cadência que é maluca pra mexer toda a cidade O boogie-woogie, boogie-woogie, boogie-woogie A nova dança que balança, mas não cansa A nova dança que faz parte da política da boa vizinhança E lá na favela toda batucada já tem boogie-woogie Até as cabrochas já dançam, já falam do tal boogie-woogie E o nosso samba foi por isso que aderiu no amazonas, Rio Grande, São Paulo e Rio174

Como, lidar com paradoxos seria uma habilidade nata em um país moreno e mulato, lá se

foram para a guerra o sambista, o malandro e até o caipira a guisa de defender interesses de

um poder que em anos anteriores quando não os punha na cadeia, tapava o nariz para sua

estética, sua ginga, sua fala.

BR:

Eu tenho um barraco no São Carlos Onde há paz e harmonia onde há samba noite e dia Eu tenho uma nega e um violão Um herdeiro que mais tarde ficará com o barracão Mas se a pátria precisar boto meu fuzil no ombro Largo tudo e vou brigar Vocês estão pensando que eu estou contando lorota Sou mulato patriota meu sangue nunca negou. Tem lá em casa um baú que por dinheiro nenhum eu dou. Dentro tem uma medalha que foi do meu bisavô Que em campanha ganhou...175 Infelizmente é notícia de última hora eu vou me embora E a minha fantasia, decidi Dê a meu mano mais velho que se divirta por mim

172 Zé Carioca. Carlos Galhardo; Ari Monteiro, 1942. 173 Tio San no samba. (I) Vocalistas tropicais – (C) Felisberto Martins, Zé Kéti, 1947. 174 Boogie Woggie na favela. (I) Anjos do Inferno – (C) Denis Brean, 1947. 175 Mulato Patriota. David Nasser e J. Batista, 1942.

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A voz do dever me chama Lili. Mas levo na mochila um tamborim Vou passar o carnaval cantando samba em Berlim176.

SD:

E o CM, não fala nada sobre a guerra?

CM:

Sou caboclo calejado no sertão eu fui criado Tenho meu peito bronzeado de tanto sol me queimar Também já fui fuzileiro do pavilhão brasileiro E lá na terra do estrangeiro voluntário eu fui lutar E o mundo pode ser belo Mas o meu verde amarelo está em primeiro lugar Lá nos campo italiano eu vi sangue derramando Eu vi brasileiro avançando no alto daquela serra É uma folha de glória no livro da nossa história E o preço dessa vitória paguemo caro na guerra Não me sai mais da lembrança o lugar onde descança Os heróis da minha terra 177 Aí quando eu vim de minha terra Despedi da parentaia Eu entrei no Mato Grosso Dei em terras paraguaia Lá tinha revolução Enfrentei fortes bataia, ai, ai, ai178

SD:

Sambas, marchas e canções de guerra se multiplicaram na ditadura varguista: “R.A.F. em Berlim179”, 1943, trata-se de uma marcha com assustadores estalidos de metralhadora ao fundo. “Mocidade feliz180”, 1943, marchinha que fala em “marchar sem temor pelo nosso país”. O V da vitória181, 1942, “terra querida és tu Brasil, ser brasileiro é a nossa glória, em nossas vidas está gravado o V da vitória... viva o Brasil, viva o Brasil”. Vitória, Vitória!182, 1944, diz ser “cada brasileiro um fuzil pra defender o Brasil”. Paris sorrirá outra vez183, 1942, lamenta a queda da cidade sob o jugo alemão, “Paris chora de dor ante os fuzis do invasor”, mas, preconiza a reviravolta no resultado final da Guerra, afinal, chegará o dia em que “Paris, sorrirá outra vez”. Voltemos à Viena184, 1944, fala de “Viena que saudade do amor e da liberdade... mas sei que a luz da vida muito em breve voltará”. Mia Gioconda185,

176 Notícia de última hora. Benedito Lacerda e Darci de Oliveira, 1942. 177 Pracinha. Zico e Zeca, 1954. 178 Cuitelinho. Anônimo. Tema mato-grossense recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó. (int) Pena Branca e Xavantinho, primeira gravação Inezita Barroso, 1957. 179 R.A.F. em Berlim. Benedito Lacerda e Darci de Oliveira, 1943. 180 Mocidade feliz. Carlos Maul e Martinez Grau, 1943 181 O V da vitória. Lamartine Babo, 1942. 182 Vitória, Vitória! José Rodrigues Alves, 1944. 183 Paris sorrirá outra vez. Oswaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1942. 184 Voltemos à Viena. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1944. 185 Mia Gioconda. Vicente Celestino, 1946.

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1946, “Vejamos o destino de um pracinha brasileiro partindo para a Itália transformou-se num guerreiro. Vencido o inimigo que antes fora varonil recebeu da FEB ordem de embarcar para o Brasil”. A guerra acaba amanhã186, 1945, “Está terminando a tirania alemã, a guerra acaba amanhã... trocaremos as armas por violões”. As próximas duas canções fazem referência explícita a Hitler187: Bloco do Adolfo, 1943, “Adolfo o seu dia vai chegar... quem é do bloco do Adolfo não entra aqui não, não queremos gente estranha no nosso cordão”. A cara do Fuehrer, 1942, “é azedo pra limão, só serve pra alemão”. Se na Europa o clima é tenso, a canção clama: Calma no Brasil188, 1940, “Nós vivemos no melhor pedaço da terra, calma no Brasil que a Europa está em guerra”.

BR: Adeus meu pai, adeus mamãe querida. Preciso ir pra terminar fronteira Só o clarim se toca em minha partida Garboso eu vou defender a bandeira Meu filho minha esposa amada Adeus amigos, adeus minha terra. O meu dever impõe essa jornada Adeus que eu vou partir pra guerra Eu vos prometo só voltar com glória Para rever o céu de minha terra E passaremos como heróis na História Quando acabar essa maldita guerra189

SD: A julgar pelo ano da canção, 1915, o BR deve estar alertando para o fato de que já na Primeira

Guerra Mundial se faziam canções patrióticas de incentivo ao alistamento militar e à

participação no combate.

BR:

Chegou a primeira escola de samba escola que não tem igual Pelo som da bateria até parece um batalhão naval Nesse mundo só há duas coisas que balançam o meu coração É a ginga da minha cabrocha e a cadência do meu batalhão190

SD:

A julgar pelo ano da fala anterior, essa aproximação entre o samba e as forças armadas parece

ter se prolongado para além das duas Grandes Guerras. Pergunto se os signos de disciplina e

institucionalidade que as forças armadas inscrevem/inspiram não podem ter despertado o

interesse do discurso BR que inscreve signos Escola de Samba e favela ávidos por

reconhecimento e institucionalidade frente o julgamento das elites. Fica a questão como

possibilidade.

186 A guerra acaba amanhã. (I) Francisco Alves – (C) Grande Otelo, Herivelto Martins, 1945. 187 Bloco do Adolfo. (I) Gilberto Alves – (C) Ari monteiro, 1943. A cara do Fuhrer. Benedito Lacerda; Correia da Silva; Oliver Wallace, 1942. 188 Calma no Brasil. Nássara, Frazão, 1940. 189 Partida para a guerra. Florizel, Marinho de Oliveira, 1915. 190 Marujo no samba. (I) Emilinha Borba – (C) Braguinha, 1949.

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BR: Tire a camisa mane, tire a camisa seu Zé O homem feliz não usava camisa Tire a máscara da face pierrot Que o tempo do fascismo já passou Um novo sol no horizonte já brilhou Salve a paz salve o amor Dê a mão ao seu irmão e não brigue nunca mais Perante Deus todos nós somos iguais191

SD: Boa, Barão da Ralé. Também havia falas democráticas, contrárias à guerra e aos

totalitarismos, no caso aqui, contra as forças integralistas de Plínio Salgado, conhecidas como

camisas verdes. De toda forma, não devemos analisar essa conjunção entre a guerra e

ufanismo como mero apêndice, uma peculiaridade no discurso do cancioneiro que trata da

urbanização e modernização elaboradas e anunciadas hegemonicamente pelo Estado Novo.

Ao contrário, a guerra viria bem a calhar às intenções ideológicas do Governo visto que o

discurso trabalhista de Vargas se mescla ao da responsabilidade cívica. Construir a pátria

também é defender a pátria onde todos juntos lutam e trabalham em nome do mesmo ideal.

Aliado do trabalhador, o soldado também se presta ao dever de regenerar o malandro e os que

se recusam a aderir à moral trabalhista.

BR:

Laurindo voltou coberto de glória Trazendo pra todos no peito a cruz da vitória Salgueiro, Mangueira, Estácio, Matriz estão aqui. Para homenagear o bravo cabo Laurindo. As suas divisas que ele ganhou mereceu. Conheço os princípios que Laurindo sempre defendeu Amigo da verdade, defensor da igualdade Dizem que lá no morro vai haver transformação Camarada Laurindo, estamos a sua disposição192.

SD:

Apesar de certo estranhamento se fazer notar na fala do BR, como se quisesse complicar

nossa interpretação com as perigosas palavras transformação, igualdade e camarada, nos

parece coerente assumir que o teor cívico da fala, expresso através de signo heróico-moralista

– verdade, coragem, bravura, homenagem, glória – se coloca ainda em primeiro plano.

BR/RF:

As armas e os barões assinalaram vieram assistir o carnaval Cantando espalharei por toda parte, meu Porta estandarte vai ser Seu Cabral

191 Tire a camisa. Antônio Almeida, Silvio Caldas, 1946. 192 Cabo Laurindo. H. Lobo e W. Batista, 1945.

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Peri e Ceci de palhaço, Caramuru de arlequim Mandaram beijos e abraços pagaram chope pra mim O Pero Vaz de Caminha vem de pierrô puxador E traz na mão fechadinha uma cartinha de amor193 Quem foi que inventou o Brasil Foi seu Cabral no dia 21 de abril dois meses depois do carnaval Depois Ceci amou Peri, Peri beijou Ceci ao som do Guarani Do guarani ao guaraná surgiu a feijoada e depois o parati Depois Ceci virou Iaiá, Peri virou ioiô de lá pra cá tudo mudou Passou-se o tempo da vovó quem manda é a severa e o cavalo Mossoró194

SD:

Tudo bem. Faremos outra ressalva, assumindo que nem sempre o cancioneiro popular esteve a

serviço do discurso nacionalista do Estado, contribuindo com a fixação dos signos pátria,

História Nacional, civismo e glória. Mas, nessa última fala BR e RF poderiam ao menos ter

acertado a data do descobrimento, 22 de abril, se bem que dada a interpretação irônica, pode-

se dizer que foi uma vantagem para o discurso histórico não terem trocado a data para

primeiro de abril. Já contando com a colaboração de BR, afirmamos que a estratégia de

valorização da natureza no discurso nacionalista promovido pelo Estado Novo é notável. Se,

na República Velha, o constructo natureza era expresso pela elite como empecilho, algo que

se impunha corroendo o caráter e a força de vontade do povo, agora, o constructo: “natureza

gigantesca e exuberante que se impõe sobre a civilização”, inverte-se. A natureza expressa a

grandeza do país, orienta os humores do brasileiro e fornece elementos à nossa singularidade

como povo-nação. No filme americano, Os Reis do Rio (1947), a experiência sensorial do

amor se impõe sobre a cultural da palavra (FREIRE-MEDEIROS). Isso, à época, não precisou

ser necessariamente ajuizado de forma pejorativa. Ao contrário, veio ao encontro da leitura

hegemônica que a intelectualidade brasileira fazia do povo brasileiro, como sujeito governado

pelo coração e pelas emoções, nos termos do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.

Se há na tese de Sérgio Buarque uma crítica que se refere à resistência do brasileiro às

formalidades e burocracias, há também a constatação de uma singularidade, uma

personalidade do brasileiro, algo que o destaca como povo-nação. Logo no início do filme

quando os personagens americanos rumam de navio para o Brasil, uma música é cantada

como que explicando o que lhes aguarda em seu destino de férias na cidade do Rio de Janeiro:

(Fala o primo americano do BR):

Se você precisar tirar férias O Brasil é para onde você deve ir Você não entende o que eles dizem

193 As armas e os barões. Almirante, Lamartine Babo, 1936. p5 194 História… do Brasil… Almirante – Lamartine Babo, 1934. p4

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Você não consegue ler nenhuma placa Mas você não precisa saber a língua Com a lua no céu e uma garota em seus braços E aquele olhar no rosto dela Você não entende nada do que ela diz Você precisa de um intérprete Mas você não precisa saber a língua Se você não quiser dizer adeus195

SD: Se a natureza já não era mais nossa inimiga, nem a cordialidade um empecilho ao

desenvolvimento do país, tornar-se-ia necessário reelaborar o mito de origem de maneira a

incorporar mestiçagem e natureza ao progresso. O mito de origem é reeditado de forma

explicativa na canção Canta Brasil: a incompletude triste das vozes de índios, negros e

brancos, é substituída pelas “preces da sertaneja” miscigenada que habita o interior do país.

Isto é, o caminho para resolver os males da nação passa pelo reconhecimento e incorporação

desse país distante, de pequenos lugarejos em comunhão com a natureza generosa: onde há

“selvas e rojão”. O efeito final da união das três raças tristes, que evocam o “pranto”, com a

natureza pródiga de um país continental caminhando rumo ao progresso, provoca a explosão

da voz do samba, que de forma imperativa, ordena em euforia: “Canta, Brasil!”. A tristeza

original das três raças separadas resolve-se na alegria do encontro da nação com a natureza.

BR: As selvas te deram na noite ritmos bárbaros Os negros trouxeram de longe reservas de pranto Os brancos falaram de amores em suas canções E dessa mistura de vozes nasceu o teu pranto... Mas agora o teu cantar meu Brasil quero escutar Nas preces da sertaneja, nas ondas do rio-mar. Oh, esse rio turbilhão, entre selvas e rojão, Continente a caminhar, no céu, no mar, na terra, canta Brasil!196

SD:

Mas me digam: toda essa conversa de natureza, de mata, de interiores e sertanejas não deveria

chamar a atenção do Contente Magoado? Oh, CM, Porque estás tão pouco falante? Que tal

entrares na conversa? 195 Suppose you need a vacation/ Brazil is the place you should be/ So you can’t understand what they are saying/ You can’t read a sight that you see/ But you don’t have to know the language/ With the moon in the sky/ And a girl in your arms/ and a look in your eyes/ You can’t understand what she is saying/ You need a interpreter’s skill/ But you don’t have to know the language/ If you don’t wanna say good-bye (FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 27, 28). A letra de “You dont have to Know the language” não poderia ser mais explícita ao reforçar a idéia de que, em locais exóticos como o Rio, a experiência sensual (no sentido literal do conhecimento através dos sentidos) cumpre um papel tão absoluto que a comunicação verbal pode ser suspensa (FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 27, 28). 196 Canta, Brasil! David Nasser e Alcir P. Vermelho, 1941.

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CM:

Serra da Boa Esperança, esperança que encerra No coração do Brasil um punhado de terra No coração de quem vai, no coração de quem vem Serra da Boa Esperança meu último bem Parto levando saudades, saudades deixando Murchas caídas na serra lá perto de Deus Oh minha serra eis a hora do adeus vou me embora Deixo a luz do olhar no teu luar, adeus197 Vai Azulão, Azulão companheiro vai Vai ver minha ingrata Diz que sem ela o sertão não é mais sertão Ah, voa, Azulão, Azulão, companheiro vai...198 Automóvel lá nem se sabe se é homem ou se é mulher Quem é rico anda em burrico quem é pobre anda a pé.199 Lá onde muito chove não tem automóvel E eu vivo melhor lá no riacho sereno tem peixe pequeno que dá no meu anzol200

SD:

Muito bem, CM! Considerando as elegias pastorais na fala de CM acima, assumimos, na

perspectiva do jogo, que nem tudo é explosão cívica, festa ufana, naquele reencontro do

brasileiro com a natureza. A mágoa da perda, natureza perdida, lugar perdido, tradição

contaminada, êxodo, o retorno impossível ao espaço/tempo em que as coisas foram deixadas,

o chão sob os pés movendo-se à força da modernidade, o rádio, o automóvel inscrevem-se

como rasuras no discurso que inventa o Brasil do progresso em harmonia com a natureza

exuberante.

CM:

Peguei um Ita no Norte e fui pro Rio morar Adeus meu pai minha mãe adeus Belém do Pará Vendi uns troços que eu tinha o resto dei pra guardar. Talvez eu volte pro ano. Talvez eu fique por lá Ai, ai, adeus, adeus Belém do Pará.201 Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia "Bem, não vá deixar a sua mãe aflita

197 Serra da boa esperança. (Int.) Francisco Alves, (Comp.) Lamartine Babo, 1937. 198 Azulão. Jayme Ovalle, Manuel Bandeira, 1933. 199 Sertão do Canindé. Luis Gonzaga, H. Teixeira, 1951. p5 200 Peixe piranha. Nenete e Dorinho, 1960 201 Peguei um Ita no Norte. Dorival Caymmi, 1941.

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A gente faz o que o coração dita Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão" Ai, se eu escutasse hoje não sofria Ai, esta saudade dentro do meu peito Ai, se ter saudade é ter algum defeito Eu pelo menos, mereço o direito De ter alguém com quem eu possa me confessar202

Se aqui se pede um beijo, lá se diz me dá um cheiro. Lá se casa por amor e aqui pelo dinheiro. Não traga mulher pro Rio você vai ficar maluco Pois é o mesmo que levar melado pra Pernambuco. 203 Felicidade foi se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque sei que a falsidade não vigora A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa Mas, como é que a gente voa. Quando começa a cantar Na minha casa tem um cavalo tordilho que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem E quando pego meu cavalo e encilho Sou pior que limpa trilho e corro na frente do trem204 E a saudade da minha terra tornou-se um hino na voz do meu povo Porque quem deixou sua terra querida embora alcançando sucessos na vida Não há quem não queira revê-la de novo205

SD:

As relações de reprodução, trabalho, troca são transformadas a partir dos signos da urbanidade

e da modernidade. Rural reconstruído como eco, discurso de contraponto que articula

respostas à cidade. O campo contaminado pela modernidade é reinscrito pelo signo da perda,

da saudade, da ausência, afirma-se pelo outro, pela negação do outro, experimentando,

todavia, a contaminação, a umidade da máquina, do óleo, da lógica urbana que o redime, que

o resgata, porém, sob a condição periférica. O Magoado, parte constituinte de CM, também se

justifica. Responde. Resiste a essa condição. Finca o pé em seu quinhão para dizer da

“qualidade de vida” no campo, do contato “saudável” com a natureza, das “tecnologias”

agrícolas, do “progresso”, da “abundância” e “facilidades” da vida rural, da “tranqüilidade e

da segurança” que não se tem na cidade, sem perceber o quanto já fala pela fala do outro.

202 Saudade da Bahia, Dorival Caymmi, 1957. 203 É pra rir ou não é. Luiz Gonzaga, Carlos Barroso, 1946. Increve o Estado de Pernambuco como um dos maiores produtores de cana de açúcar do país. 204 Felicidade, Lupcínio Rodrigues, 1947. 205 Gente da minha terra. Belmonte e Amarai, 1966.

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CM:

No Rancho Fundo Bem pra lá do fim do mundo Onde a dor e a saudade Contam coisas da cidade... Porque o moreno vive louco de saudade Só por causa do veneno das mulheres da cidade206

Minha vida é andar por esse país Pra ver se um dia descanso feliz Guardando as recordações Das terras por onde passei Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei. Chuva e sol, poeira e carvão Longe de casa sigo o roteiro Mais uma estação e “alegria” no coração. Mar e terra Inverno e verão Mostra o sorriso Mostra a alegria Mas eu mesmo não e a “saudade” no coração207 Da “tristeza” do meu carro tirava “alegria” Pois só vivia cantando com meu carro que gemia208.

SD:

Mas, CM também é Contente por que vai à busca do novo, esperança de melhorar de vida na

cidade, esperança de um retorno idealizado ao lugar de origem, esperança que o acompanha.

Ou, também é Contente por “não morar na cidade”, por ser de comitiva, tropeiro, tangerino,

por cruzar veredas sem fim, por caminhar estradas que cruzam sertões e tangenciam as

periferias urbanas sem cair em suas armadilhas. Contentamento expresso na resistência da

tradição contra os valores urbano/modernos.

CM:

Não podemos entregar pros homens de jeito nenhum amigo companheiro Não ta morto quem luta e quem peleja. Pois lutar é a marca do campeiro209. Uma chamarra, uma fogueira, uma chinoca uma chaleira Uma saudade um mate amargo E a peonada repassando o trago

206 Rancho Fundo. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1931. 207 A vida do viajante. Luiz Gonzaga, Hervê Cordovil, 1953. 208 Deixei de ser carreiro. Rolando Boldrin. 209 Não podemos entregar pros homens. Leopoldo Rassier, 1980. (Folclore Gaúcho)

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Noite cheirando à querência Nas tertúlias do meu pago210 Mando daqui das bandas do rural, lembranças, Vibrações da nova hora pra você que não ta aqui. A rádio agora está tocando Rancho Fundo Somos só eu e o mundo e tudo começa aqui211

SD:

Perda e falta seriam, dentro de uma perspectiva cânone e hegemônica aquilo – signo, alegoria,

imagem – que discursivamente localizou a região, o povo e a cultura rural no mapa nacional

em relação ao urbano/moderno do contexto destacado. Os signos da perda e da falta

apoiaram-se, primeiramente, no sentido de que o processo de construção do discurso

hegemônico da nacionalidade, principalmente, em sua elaboração no período referente à

Primeira República, foi efetuado segundo perspectivas de ordem e progresso. Ideais

iluministas de inspiração européia, a partir da conexão entre as cidades do Sudeste,

basicamente, Rio de Janeiro e São Paulo.

BR:

Carioquíssima, animadíssima, renovadíssima, nacionalíssima Amaduríssima, valiosíssima, assanhadíssima, luxuosíssima Oh, que dama divinal ela se chama senhorita carnaval212 Cutuca Maroca com jeitinho cutuca a gente Machuca provoca a fuzarca já me pôs doente È moda na roda namoricos que não sejam pra casar Machuca meu amor cutuca, por favor, que eu quero sonhar213 Esta cidade maravilhosa foi Deus quem fez assim tão formosa Se tem pequenas no meu cordão a gente brinca e aproveita a ocasião Assim como essas pequenas que vivem sempre passeando E vão todo dia ao cinema e voltam pra casa chorando214

O modelo de orientação civilizatória buscava produzir um efeito de progresso e ordem, sob

modernidade conservadora, a partir de uma nova ética urbana em conflito com valores mais

tradicionais, preferencialmente localizados nas periferias rurais. Nesse sentido, na perspectiva

do Estado, o rural seria se não excluído, no mínimo preterido territorialmente em relação à

cidade, como região eleita e apta a produzir signos civilizatórios e progressistas. Como se a

210 Tertúlia. Leonardo, 1987. (Folclore Gaúcho) 211 Raízes. Renato Teixeira. 1979. 212 Senhorita carnaval. Lamartine Babo, 1935. 213 Cutuca Maroca. Silvio Caldas – Demerval Guimarães, Lamartine Babo, 1930. 214 Esta cidade é um número. Miguel Guarnieri, 1937.

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ruralidade, a exemplo de Portugal e Espanha, perdesse o fio da história e vivesse das glórias

de um passado medievo, tradicional, há muito derrotado pelas luzes da modernidade e da

ciência oitocentista. O discurso rural assume a condição da perda, não só no sentido material e

econômico, mas, também, no sentido da exclusão e auto-exclusão participativa da construção

do discurso cânone da identidade nacional que se reinventava moderna e urbana.

CM:

Já faz três noites que pro norte relampeia A asa branca ouvindo o ronco do trovão Já bateu asas e voltou pro meu sertão Ai, ai eu vou embora Vou cuidar da plantação A seca fez desertar da minha terra Mas felizmente Deus agora se lembrou De mandar chuva pra esse sertão sofredor Sertão de mulher séria de homem trabalhador215

SD: Segundo Albuquerque Jr, essa característica sígnica da perda seria exclusiva do Nordeste.

Para o autor, o Nordeste seria excluído, excluindo-se. Seria preterido, preterindo-se. A

construção da perda e da falta dar-se-ía como fenômeno de mão dupla. Em outras palavras: se

a construção dos signos nordestinos pouco participou da construção do discurso hegemônico

da identidade nacional, no que diz respeito à própria construção dos signos nordestinos

(instituída sob a perspectiva da perda), o nordestino seria em parceria com seu compatriota do

sul, co-autor, inclusive por aferir nessa construção da perda, vantagens materiais –

financiamentos, subsídios, empréstimos – e identitárias – a força, a capacidade de adaptação,

a macheza, a lealdade, a tradição moral e familiar, a autenticidade cultural, a religiosidade,

etc. Porém, na nossa perspectiva, essas mesmas características apontadas como específicas do

sertanejo nordestino, poderiam ser ampliadas para todo o território sertanejo. O que

compreende desde o sertão euclidiano, expresso como o Nordeste propriamente dito (Bahia,

Alagoas, Sergipe, Paraíba, Ceará e Pernambuco) e rosiano, espalhado por entre zonas rurais

das regiões Nordeste, Centro-Oeste e do Estado de Minas Gerais, incluindo os interiores do

Estado paulista e da Região Sul, os pampas, as zonas de comitiva que extrapolariam até

mesmo os limites nacionais chegando às fronteiras do Paraguai, Uruguai e Argentina.

CM:

Conheci no Mato Grosso a flor

215 A volta da asa branca. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1950.

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mais linda do Paraguai Fiquei muito apaixonado Do pensamento ela não sai Na hora da despedida A minha querida ficou no cais Na triste separação meu coração já sofreu demais216 Índia a tua imagem Sempre comigo vai Dentro do meu coração Flor do meu Paraguai.217 Lá vai uma chalana Bem longe se vai Navegando no remanso Do rio Paraguai Oh! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nestas águas tão serenas Vai levando meu amor218

Orelhano, brasileiro, argentino Castelhano, campesino, gaúchos de nascimento São tranças de um mesmo tempo, sustentando um ideal Sem sentir a marca quente, nem o peso do buçal Orelhano, ao paisano de tua estampa Não se pede passaporte, nestes caminhos do pampa219

SD:

Sob a perspectiva do CM o rural já não caberia na Casagrande, nos pampas, no sertão,

comitivas, açoites, vaquejadas, no pastoreio, no chitãozinho, no rincão, na flor do Paraguai, na

fronteira, no melaço, no “mundo véio”, no curtume, na roça, no celeiro, no arado, na foice, no

engenho, na usina, no açude, no carro de boi e boiada, nas barragens, nos desmandos de

coronéis, na força do cangaço contra a polícia e o exército, na lealdade dos jagunços, no

nepotismo de políticos-proprietários de terras e votos, nas ligas, nas volantes, nas colunas, nas

botinas e carabinas, farroupilhas, Contestado, Doze pares de França, sebastianismo, nos

cordéis e repentes de inspiração medieva, nos reisados, nas folias, fandangos, violas, rabecas,

sanfonas e gaitas, cocos, guerreiros, jaraguás, bumbas, baianadas, marujadas, maracatus,

congados, tambores e cirandas, nas rendas, no couro, no poncho, na chimarra, no chicote,

fuxicos, chitas, bordados, palhas, taipas e palafitas, nos acarajés e abarás, no mate quente e no

pequi, nas romarias, nas rezas, benzedeiras, carpideiras e padres-santos, no berimbau, nas

216 Porto do Adeus. Mococa, Moraçy, s.d. 217 Índia. M. Ortiz Guerreiro, J. Asuncion Flores, 1950. 218 Chalana. Mario Zan, Arlindo Pinto, 1954. 219 Orelhano, Mário Eléu Silva. s.d. (Folclore Gaúcho)

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redes, na fogueira, na saudade, no caboclo, caipira, sertanejo, tropeiro, campeiro, nas

jangadas, nos santinhos de barro, nas carrancas, na casa de farinha, no jumento, no pau-de-

arara, na Itapemirim. Infinito rizoma de imagens que deslizam sem controle, sem rumo, sem

esgotamento, sem origem. Mais que isso, assumimos (SD e CM) que o rural na perspectiva de

CM é tudo isso e ainda mais. Para muito além da tradição, nada ou muito pouco lhe seria

indiferente220.

CM:

Nós estamos cantando, sorrindo prá não chorar. Nessa gaiola de ouro nós vivemos a cantar Nossa rádio é uma gaiola e o estúdio é um alçapão Onde nós canta sereno na mais fina educação O sertão é uma floresta São Paulo é o nosso ninho Nosso programa é um jardim onde cantam os passarinhos221

SD:

Dei-me o direito de guardar para esse momento do papo uma questão estrutural referente ao

CM, considerando que para o autor/leitor/ouvinte (eu, orientador, banca e demais leitores) a

alegoria CM já expressa contornos menos nebulosos. Essa questão diz respeito à pergunta:

para quem, preferencialmente, o CM fala? Não descartamos a possibilidade do discurso do

tipo CM responder a si mesmo (diálogo interno entre discursos do tipo CM). Porém,

propomos que a pulsão doloprazerosa do discurso CM também se orienta em direção aos seus

alteres internos do campo da música, RF e BR, localizados de maneira geral na cidade. E, por

isso mesmo, contaminada pelo contexto urbano como já explicitado anteriormente.

CM:

No Rio está tudo mudado, nas noites de São João. Em vez de polca e rancheira o povo só dança e só pede o baião

220 Propomos que, diferente do movimento expresso no deslizamento dos discursos do tipo RF e BR que cedem centralidade ao discurso SD Revolucionário nos anos sessenta, o Contente Magoado produziria nas décadas seguintes uma aproximação/contaminação cada vez maior entre signos da ruralidade e da urbanidade. O rock forrozado e o forró universitário de migrantes e descendentes nordestinos em São Paulo e Rio de Janeiro, o reggae cirandado maranhense, a black music maracatuzada do manguebeat pernambucano, o axé-music baiano, o sertanejo country e romântico das duplas milionárias de Minas, Centro-oeste e interior paulista, o rock rural sulista e mineiro, o outro sertanejo sofisticadíssimo de modos renascentistas e eruditos desenvolvido em conservatórios e escolas de música de norte a sul do país. Ao rural contaminado pelo urbano o que é dito de fora (?) já não lhe seria indiferente nem estranho, seja pela facilidade de acesso, seja pelo barateamento das tecnologias de produção e difusão, o rural estaria deslocando um movimento que o localizou e fixou como território do pitoresco, do extraordinário, do exótico, do diferente, do atraso, da periferia, redirecionando esse movimento, não exatamente no sentido de abandonar tais caracteres, mas, incorporando o outro para si, aquele a este. 221 Gaiola de Ouro. Canário, Passarinho, s.d.

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No meio da rua ainda é balão ainda é fogueira (...) É a dança da moda, pois dentro da roda só pedem baião222. Vim do Norte eu queimo em brasa Fogo e sonho do sertão e entrei na Guanabara com tremor e emoção Era um mundo todo novo diferente meu irmão Mas o Rio abriu meu fole e me apertou em suas mãos Eh Rio de Janeiro, do meu São Sebastião Pare o samba três minutos pra eu cantar o meu baião Ai meu São Sebastião te ofereço este baião No começo eu tive medo muito medo meu irmão Mas olhando o Corcovado assosseguei o coração Se hoje guardo uma saudade é enorme a gratidão E por isso Rio Amigo, te ofereço esse baião223

SD:

Afirmamos isso, considerando ser oportuno pensar para quem e porque o CM exalta o viver

no campo, se não para atingir um interlocutor que ali não está. Afinal, haveria pouca serventia

em ufanar-se se não para estabelecer a fronteira que distingue o que deve ser alvo de

ufanismo, a beleza, pureza e riqueza do rural, e o que desperta sentimento de opróbrio, a

maldade, falsidade, impessoalidade e mesquinharia urbana.

CM:

Casinha de paia lá no ribeirão Uma linda cabocla e um cavalo bão Som de uma viola alegra a solidão Esse é o Brasil caboclo esse é o meu sertão224 Eu não troco a minha vida de pescador piraquara. A vida da cidade com a minha não se compara225

SD:

Contente Magoado e um conformado Barão da Ralé querem propor uma parceria em coro.

CM/BR:

Mato Grosso quis gritá, mas em cima eu falei Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar. Só se conformemo, quando o Joca falou "Deus dá o frio conforme o cobertô" E hoje nóis pega as paia na grama do jardim. E pra isquece nóis cantemo assim Saudosa maloca, maloca querida Dim dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida226

222 A dança da moda. Luiz Gonzaga, Zé Dantas, 1950. 223 Baião de São Sebastião. Luis Gonzaga, 1973. 224 Brasil caboclo. Tunico e Tinoco, 1964. 225 Pescador caprichoso. Cacique e Pajé, s.d. 226 Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa, 1951).

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SD:

O RF fez sinal para os três cantarem juntos. Acho eu, que RF quer brincar ou por simpatia à

idéia da parceria ou pelo gosto da batida de samba de roda que a canção inscreve.

CM/BR/RF:

Quem vê admira e até suspira Uma viola no samba que há muito tempo é do catira E agora nesse samba ela chora pra valer Se você não acredita chegue perto e venha ver Viola nasceu na roça, na cidade fez morada. Não era bem conhecida, mas, desceu na disparada. Na evolução do tempo ela ficou afamada. E agora nesse samba está garantida a parada227 O dono da casa parou a orquestra e veio falar comigo em pleno salão Dizendo assim olha aqui pau de arara se a aula não for cara eu quero a lição Peguei a escura e fiz um traçado dancei um trocado numa perna só Falando assim parece brincadeira num instante a gafieira virou um forró228.

SD:

Considerando os improvisos dos encontros acima, propomos uma aproximação entre RF, BR

e CM. Aproximação que se efetua na semelhança de resposta à construção bi-polar que

distingue de um lado o território da saudade referente à favela e ao rural e do outro o território

do moderno referente ao urbano. Essa construção da saudade como valorização dos termos

que expressam favela e rural mitigaria dores e reforçaria laços aos discursos que se inscrevem

tanto pelo abandono do lugar inscrito como origem quanto pela sensação de ser abandonado

pela suposta origem, isto é, ser anacronizado pela falência, extinção ou transformação de

tradições que orientavam os códigos de identidade local. Para alguns autores, esse sentimento

de periferia referente ao território rural parece expressar-se de forma mais nítida na Região

Nordeste em que um sentido unificado de nordestinidade é reforçado sobremaneira.

O Nordeste que reconhecemos, hoje, é em grande medida, uma invenção musical, ou, no mínimo, uma reinvenção ampliada, a partir da base original, do que se chamou Nordeste Oriental [Ceará, Rio grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas]. (...) Seus grandes demiurgos são Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas, ancorados numa tradição popular ampla e profunda. (...) “Asa Branca” passou a ser a certidão de nascimento desse Nordeste unificado (OLIVEIRA, 2004, p. 128).

CM:

227 Viola no samba. Cacique, Pajé, s.d. 228 Forró na gafieira. Jackson do Pandeiro, 1959.

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Quando olhei a terra ardendo qual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, ai, por que tamanha judiação Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação Por falta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão Até mesmo a asa branca bateu asas do sertão Então eu disse adeus Rosinha, guarda contigo meu coração Hoje longe muitas léguas, numa triste solidão Espero a chuva cair de novo para eu voltar pro meu sertão Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação Eu te asseguro não chore não, viu, que eu voltarei, viu, meu coração229.

SD:

Porém, como já experimentado pelo leitor/ouvinte, preferimos ampliar esse sentido de exílio,

deslocamento e transformação a toda extensão do território rural contaminado pela umidade

urbana. A música rural, expressando-se na capital pela voz de CM, reforça esse sentido de

unificação com a suposta origem, seja para o sertanejo, seja para o caipira, seja para o

campeiro. Esse sentimento, veremos adiante, não se distingue muito daquele que os discursos

BR e RF expressam ao moverem-se entre os pólos cidade formal e favela. Consciente do risco

de cair numa fenomenologia do acontecimento propõe-se, ainda assim, o sentimento de

esgarçamento do laço comunitário experimentado na cidade para os da favela ou do rural.

Esse sentimento orientaria o desejo de retorno ao lugar de origem do discurso cancioneiro que

“inventa” esse lugar como Arcádia, como comunidade de pessoas oposta à impessoalidade da

multidão na cidade. Assim, seja o discurso que desce a favela para cantar a viração diária na

cidade formal, seja o discurso que migra a partir do rural, ambos reforçariam laços de origem.

CM:

Quando a lama virou pedra E Mandacaru secou Quando arribação de sede Bateu asa e voou Foi aí que eu vim me embora Carregando a minha dor Hoje eu mando um abraço Pra ti pequenina Paraíba masculina, Muié macho, sim sinhô230.

SD:

Não se pretende evitar a dor. A dor constitui o contentamento. E, sob o estigma, a marca, o

phámakon (remédio e veneno) derridiano, aproximam-se os discursos CM, RF e BR que

expressam lugar estabelecido entre (como distinção e confusão) o abandono (mágoa) e a

229 Asa branca. Luiz Gonzaga, 1947. p5 230 Paraíba. Luís Gonzaga, Humberto Teixeira, 1947.

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elegia (contentamento). A saudade, como sentimento de perda, retroalimenta a esperança do

retorno estabelecido no entre do possível e do impossível lugar de origem. As fronteiras que

distinguiam CM, BR e RF dissolvem-se numa miríade de canções que falam da mesma dor

mitigada, do mesmo contentamento doído, da mesma pulsão doloprazeroza que, aos ouvidos e

boca de Seu Doutor só (me/nos) restaria somar coro e citar algumas dessas falas de favela,

subúrbio e sertão: Despedida de Mangueira231, 1939, “Em Mangueira meu coração ficou”.

Vou voltar para Mangueira232, 1930, “fiz um juramento para voltar para o meu bairro

preferido”. Exaltação a Mangueira233, 1955, “Mangueira teu cenário é uma beleza que a

natureza criou, o morro com seus barracões de zinco quando amanhece que esplendor, todo

mundo te conhece ao longe pelo som de seus tamborins e o rufar de seu tambor”. Morro de

São Carlos234, 1933, fala da saudade de coisas prosaicas, “um gato, uma bananeira, um

cigarro e um violão, chuva cantando no zinco e sonhos no coração”. Barracão de Zinco235,

1939, fala de um lugar em que o sujeito guarda coisas de apreço, como um museu sentimental

e pessoal, “tenho no morro um barracão de zinco que é de minha estimação e dentro dele tem

um segredinho, um retrato de meu primeiro amor e um esqueleto de uma viola de pinho”.

Favela querida236, 1941, “Se eu for pra outro lugar na hora da despedida eu bem sei que vou

chorar”. Voltei Favela237, 1940, “minha inspiração eu não pude suportar esta inspiração,

voltei para rever a pequenina capela”. Saudosa Favela238, 1940, “Oi favela abençoado torrão,

és a minha adoração, és os sonhos meus és minha inspiração, moras no meu coração... és um

lindo recanto tradicional”. Sucursal do céu239, 1937, fala da cidade como “uma ilusão que

logo terminou... volto pro morro outra vez que no moro não existe hipocrisia”. Subúrbio

triste, 1953, “subúrbio triste quando te vejo me sinto criança, parece que o tempo passou só

para mim”. Trem da Alegria240, 1943, “Lá vem o trem da alegria vamos todos embarcar,

vamos lá pra Freguesia porque lá é bom lugar”. Minha cabrocha241, 1930, “Para fazer meu

samba não tirei diploma cabrocha bonita que entra na roda tem aroma, quando vem da Igreja

lá da Freguesia traz no olhar feitiçaria, vou ajuntar um dinheirinho para fazer uma casa lá no

231 Despedida em Mangueira. (I) Francisco Alves – (C) Aldo Cabral, B. Lacerda, 1939 p0 232 Vou voltar pra Mangueira. Vicente, 1930. 233 Exaltação a Mangueira. (I) Jamelão – (C) Aloísio da Costa, Eneas da Silva, 1955 p0 234 No morro de São Carlos. (I) Moreira da Silva – (C) H. Cordovil, Orestes Barbosa, 1933. 235 Barracão de zinco. José Gonçalves, 1938. 236 Favela querida. (I) Orlando Silva – (C) Cristóvão de Alencar, Silvio Pinto, 1941. p4 237 Voltei Favela. (I) Carlos Galhardo – (C) Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1940. p4 238 Saudosa Favela. Araci de Almeida. Heitor dos Prazeres, 1940. p4 239 Sucursal do céu. Carmem Miranda – Benedito Lacerda, Darci de Oliveira, 1937. t2 240 Trem da Alegria. Antônio Almeida, Cristóvão de Alencar, 1943. p0 241 Minha cabrocha. Braguinha, L. Babo, 1930.

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Campinho”. E o samba continua242, 1934, “Em Deodoro mesmo na rua onde eu moro tem

um samba enfezado de pessoal matriculado e a lua espia do céu intrigada o passo da batucada

em Deodoro é assim”. Suburbana243, 1937, “Zona Norte da cidade residência da saudade

onde nasceu o teu cantor , teu cantor comovido que sonha com teu vestido e morre por teu

amor”. Feitiço da Vila244, 1934, “Quem nasce lá na Vila nem sequer vacila em abraçar o

samba que faz dançar os galhos do arvoredo e faz a lua nascer mais cedo, Lá em Vila Isabel

quem é bacharel não tem medo de bamba, São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel

dá samba”. Vila Isabel245, 1943, “bairro do samba lugar tradicional berço de gente bamba,

independente, cidade tranqüila, sempre formaste na primeira fila eis aí a minha homenagem, ò

Vila”. Madureira246, 1931, “todo samba que é feito em Madureira tem a zoada um que de

feiticeira e até parece que o samba de lá traz a influencia daquele lugar”. Madureira

chorou247 “quando a voz do destino obedecendo ao Divino a sua estrela chamou, gente

modesta gente boa do subúrbio que só comete distúrbio se alguém lhe menosprezar”. Sou de

Madureira248, 1947, “Madureira agora é a capital do subúrbio da central, cabrocha faceira

Madureira tem e o samba agora vem de lá também”. Festa da Penha249, s.d., “Levarei

dinheiro pra comprar velas e ceras, quero levar flores para a santa padroeira só não subirei a

escadaria ajoelhado pra não estragar o terno que foi emprestado”. São Cristóvão250, 1947,

“Em São Cristóvão eu nasci e me criei de São Cristóvão eu nunca sairei”. Na Pavuna251,

1930, “Tem um samba que só dá gente reiúna, o malandro que só canta com harmonia,

quando está metido em samba de arrelia, faz batuque assim, no seu tamborim, com o seu time,

enfezando o batedor. E grita a negrada: Vem pra batucada que de samba, na Pavuna, tem

doutor”. Eu vou comprar252, 1933, “Se Deus quiser eu vou comprar uma casinha em Bento

Ribeiro pra você morar, e você mulher é que vai gostar da tranqüilidade que vai ficar em seu

lar”. O samba do Ernesto253, 1955, “O Ernesto nos convidou prum samba, ele mora no Brás,

nós fomos e não encontremos ninguém... você devia ter punhado um recado na porta”; Um

242 E o samba continua. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1934. p4 243 Suburbana. Silvio Caldas, Orestes Barbosa, 1937. p4 244 Feitiço da Vila. (I) João Pétra de Barros – (C) Noel Rosa, Vadico, 1934. p0 245 Vila Isabel. Marçal, Bidê, 1943. p0 246 Madureira. Almirante – Homero Dornelas, 1931. 247 Madureira chorou. Joel de Almeida – Carvalhinho, Júlio Monteiro, 1957. 248 Sou de Madureira. Quatro ases e um coringa – Peter Pan, 1947. 249 Festa da Penha. Ari Cordovil – Cartola, s.d. 250 São Cristóvão. Moreira da Silva – Antenor Borges, S. Queima, 1947. 251 Na Pavuna. Almirante, Homero Dorneles, 1930, 252 Eu vou comprar. Moreira da Silva – Heitor dos Prazeres, 1933. 253 O samba do Ernesto. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1955.

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samba no Bexiga254, 1956, “No domingo nos fomos num samba no Bexiga na Rua Major, na

casa do Nicola, a mesa não deu conta, saiu uma baita de uma briga era só pizza que avoava

junto com as braxola... não fumo lá pra brigar, nós fumo lá prá comer”; Trem das 11255,

1955, “Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor mas não poder ser,

moro em Jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora as 11 horas, só amanhã de manhã”;

“Sabiá256”, 1951, fala da alma itinerante do nortista, “tu que andas pelo mundo, tu que sempre

já voou”; “Própria257”, 1951, “eu tenho que voltar, minha vida está todinha em Própria”;

“Pau-de-arara258”, 1952, fala da eminência do exílio, “só trazia a coragem e a cara viajando

num pau de arara eu penei mas aqui cheguei”, “Adeus Rio de Janeiro259”, 1950, fala do

êxodo circular entre sertão e cidade, “eu vou me embora mas pro ano eu volto já”.

CM/BR/RF:

Fui tropeiro e fui carreiro num Brasil que já crescia Cortando serra e baixada conheci a geografia As estradas do sertão foram minha academia Cismei de deixar o sertão eu troquei de moradia Estou morando em São Paulo terra da garoa fria Conheci uma paulista formada em filosofia Eu fiz um bom casamento um tesouro eu descobria Quando a viola não dava a paulista garantia Quando sai pelo mundo meu pai para mim dizia Meu filho vá devagar gato que caça não mia Meu burrão já está na sombra minha vida está macia Tem uma mina de ouro quem sabe fazer poesia260

SD:

O cancioneiro, atuando em sentido oposto, também não se furta a falar da miséria, do atraso,

do isolamento, da carência e da distância do lugar de arqui-origem, origem inventada, como

negatividades explícitas. Não se trata apenas do sertão edênico de São Saruê nem da

favela/subúrbio como Arcádia. A percepção de estar fora, distante, excluído do mundo

moderno pode ser construída também como opróbrio.

BR: Se o doutor subir numa favela vai ver coisas de cortar o coração Barracos caídos crianças chorando pedindo um pedaço de pão

254 Um samba no Bexiga. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1956. 255 Trem das 11. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1955. 256 Sabiá. Luiz Gonzaga, Zé Dantas, 1951. 257 Propriá. Luis Gonzaga, 1951. 258 Pau de Arara. Luis Gonzaga, Guio de Moraes, 1952. 259 Adeus Rio de Janeiro. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1950. 260 Mina de Ouro. Dino Franco, Mouraí, 1972.

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Que destino angustioso O drama da favela é doloroso Piedade senhor onipotente Seu Doutor tenha pena dessa gente261 Faço qualquer negócio com você cabrocha Tanto faz ser lá no Rocha ou Jacarepaguá Por um carinho teu eu vou até a Irajá262

CM: Oh, comadre acabou a jirimum Bota água na canjica que chegou mais um Dá garapa e quentão pra essa gente beber Diz ao velho sanfoneiro que é pra não parar Pois enquanto a gente dança não pensa em comer263.

SD: Canções de desagravo ao lugar que se constrói em oposição à cidade moderna não se contam. Trem

da Pavuna264, 1930, “Tem cuidado na virada com essa gente da Pavuna não queremos enrascada”. É

de Bangu265, 1946, “aquela moça que é muito faladeira é de Bangu, aquele moço que só fala muita

asneira é de Bangu, eu vejo que não dá sorte quem é de Bangu, ...quando alguém quiser entrar pra

sambar, não pode ser de Bangu porque vem atrapalhar”. Sou feio e moro longe266, 1952, “quem é que

vai me querer? Beleza não se fabrica, nem dinheiro cai do céu, nasci feio, nasci pobre e vivo de déu

em déu”. Daqui se conclui que se o subúrbio é feio e pobre, por oposição, o centro, a cidade é bonita e

rica. Lágrimas de barracão267, 1948, “eu passo a noite inteira tapando goteira no meu barracão, as

telhas não tem beira, o teto é uma peneira ai meu Deus que judiação”. Marcha da Cantareira268,

1960, “Ta vendo como é que dói trabalhar em Madureira viajar na Cantareira e morar em Niterói, vou

aprender a nadar, eu não quero me afogar”. Toureiro suburbano269, s.d., “O toureiro suburbano sai de

casa todo ano madrugada meia luz, sua face está serena, mas caminha para a arena seu destino é Santa

Cruz, no matadouro onde está o touro, vai o toureiro resolver sua missão, se fosse um touro no

picadeiro, estava resolvida a questão, mas o toureiro está sem dinheiro e vai lutar com o touro no

balcão, um pedaço de acém, não tem, um pedaço da pá, não há, a costela do boi, já foi, cadê o miúdo,

foi tudo, cadê o miolo, deu bolo, a tourada é cruel o toureiro sente que vai entrar bem, apela para o

golpe que é uma nota de cem, ganhou a parada levou a rabada, está terminada mais uma tourada, o

toureiro continua até o golpe do filé, o toureiro suburbano que toureia todo ano, nesse dia terá o seu

dia de Olé!”. Toureiro de Cascadura270, 1950, “sou um toureiro avacalhado, sou natural de

261 Drama da favela. Milton de Oliveira, Mirabeau, s.d. 262 Eu quero é rosetar. H. Lobo, Milton de Oliveira, s.d. 263 Bota água na canjica. H. Lobo, M. de Oliveira, 1952. 264 Trem da Pavuna. Casselli, 1930. 265 É de Bangu. Carlos Armando, H. Sindô, 1946. 266 Sou feio e moro longe. Mário Lago, 1952. 267 Lágrimas de barracão. Roggieri, Osvaldo Cruz, 1948. 268 Marcha da Cantareira. Gordurinha – Barbosa da Silva, Eloide Warthon, 1960. 269 Toureiro Suburbano. Haroldo Barbosa, Luis Reis, 1962. 270 Toureiro de Cascadura. (I) Oscarito – (C) Armando Cavalcanti, David Nasser, 1950.

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Cascadura, se a tourada tem marmelada o chifre pega mas não fura, estou no gancho do açougueiro,

estou na lista do bicheiro”.

BR/CM:

Bastião era meu filho, Dita era minha mulher, Que morava onde eu morava, no morro do Marapé, Mesmo num tendo dinheiro, nóis vivia tão feliz, Nisso chega um engenheiro, se vira pra nóis e diz, Vocês têm que se mudar porque, o morro vai desabar. Dita chorô, chorô, mais num se acovardô, Ela disse: Corrê, num corro, Onde é que nóis vai morá, Se num fô aqui no morro? Duas semana dispois, Eu saí pra trabalhá, Num sabendo, na vorta, O que eu ia encontrá: O barraco que tava lá em cima, Veio pará aqui no chão, E no meio dos destroço, Eu vi o paletó do Bastião... Fechei os óio pra num vê, Dispois saí a corrê, Só parei lá numa curva, Pra olha pra trás e dizê: Adeus Marapé, adeus Marapé, Que levô meu filho, E também minha mulhé, Adeus Marapé, adeus Marapé, Vô pra junto deles, Quando Deus quisé.... 271

CM:

Tomei o trem em Dom Pedro saiu em toda carreira Chegou no Engenho de Dentro parou de qualquer maneira Na estação de Cascadura começou a fazer sujeira Levou mais de uma hora pra chegar em Madureira Na estação de Deodoro eu perdi minha caneta Em Ricardo de Albuquerque roubaram a minha maleta Vi a hora que eu morria sem chegar em Anchieta. Na estação de Olinda é que eu vi a coisa preta Na saída de Nilópolis eu suava pra chuchu Cheguei na estação do Boi cidade dos urubu Na cidade de Mesquita começou o sururu Pegaram uma briga feia foi até Nova Iguaçu Na estação de Morro Agudo roubaram a minha carteira E em Austim eu vi uma mulher de chuteira Tava indo pra Queimados pra mode de fazer a feira Mas errou a estação e foi pra Engenheiro Pedreira272.

SD:

Por conseqüência, se o lugar de origem desperta sentimentos de opróbrio e tristeza, será a

cidade, o centro, mais ainda o estrangeiro, centro do centro, Paris, que deve ter seu valor

reconhecido no cancioneiro.

BR:

Eu não morro sem ver Paris é uma jura que há muito tempo eu fiz Paris, Paris, Paris minha gente eu quero ver o que todo mundo diz

271 Adeus Marapé. Roggieri, O. Cruz, Dupla Ouro e Prata, 1948. 272 Trem da Central. Garrancho e Graveto, s.d.

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O americano é colossal inventou o telefone e a gilete Mas, o Frances é mais original inventando o perfume e a Susete Susete é a francesinha que faz qualquer um feliz Por isso minha gente eu não morro sem ver Paris273 Quem nesse mundo não quer la vie en rose La vie en rose sombra, água fresca, quelquer chose Uma casinha bem pertinho de la mer Moleza assim como essa quem não quer? Ter um chatô num boulevard lá em Paris Como é charmant tudo isso é trés jolies Comer a balda só marron glacê Comer lá em Pigalle uma renard-argnentée! Perfume de Bazin automóvel Citroen Moda Molineux vestidos de soiree Muito champanhe gordon rouge e caviar Com Jean Gabin me chamando de Mon coeur Um promenade toda a tarde no bois Moleza assim como essa quem não quer?274 Seja em Paris ou nos Brasis, mesmo distante somos constantes Tudo nos une que coisa rara é o amor nada nos separa275 Rio meu torrão brasileiro, Rio verde mar céu azul Rio de janeiro a janeiro tens a luz do Cruzeiro, meu Cruzeiro do Sul. Hoje em Niterói lá do outro lado adorando o Corcovado onde a fé no alto está Depois as Ilhas verdadeiras maravilhas cruz da Ilha dos Amores, cruz de Paquetá. Luzes pelas praias pedraria de formosas joalherias quanta pérola tão rara Lindos colares circulando a Guanabara na vitrine do Cruzeiro Rio de Janeiro276 Doutor em anedota e em champanhota, estou acontecendo no café soçaite. Só digo "a chanté", muito merci all right, troquei a luz do dia pela luz da light. Agora estou somente com outra dama de preto, nos dez mais elegantes eu estou também. Adoro River Side, só pesco em Cabo Frio, decididamente eu sou gente bem. Enquanto a plebe rude na cidade dorme eu janto com Jacintho que é também de Thormes. Teresa e Dolores falam bem de mim, já fui até citado na coluna do Ibrahin. E quando me perguntam como é que pode, papai de black tie dançando com Didu, eu peço mais uísque, embora esteja pronto. Como é que pode, Nina Chaves conta277.

SD:

273 Não morro sem ver Paris. Alcir Pires Vermelho, Marques Jr. Roberto Roberti, s.d. 274 Malandro em Paris. Blota Jr, Dennis brean, 1950. 275 JouJoux e Balangandas. (I) Mariah, Mário Reis – (C) Lamartine Babo, 1939. 276 Rio. Francisco Alves – Hervê Cordovil, L. Babo, 1936. 277 Café Soçaite. Miguel Gustavo, 1955.

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O centro, a cidade, a metrópole é inventada como o lugar do moderno, da trasnformação

inscrita na invenção de novos valores e hábitos que servem de referência tanto para a crítica

de quem defende a tradição quanto como ideal de quem deseja o modo de vida metropolitano.

BR: Aí!... Heim!...Pensas que eu não sei toma cuidado que um dia eu fiz o mesmo e me estrepei Sou camarada faz de conta que eu não sei Menina que chega em casa às quatro da madrugada E quanto mais a escada vai subindo, na boca do vizinho vai caindo Velhota dos seus sessenta na praia toda inocente Brincando com as crianças lá na areia vai pondo areia nos olhos da gente278

SD: Já entendi, BR, afinal de contas, a sociedade metropolitana da praia e das noitadas inventada

pelo cancioneiro popular não seria assim tão moderna, considerando os mexericos e intrigas

de vizinhança. Mas, de toda forma, estamos falando em termos hegemônicos.

CM:

O caranaval carioca ja tem fama no estrangeiro A maior festa do ano que se faz no mundo inteiro Toda vida ouvi dizer que rei momo é brasileiro E que tem o seu reinado aqui no Rio de Janeiro Vi muita mulher de homem e vi homem de mulher Que até eu me enganei e fui parar no quartel Casado ficou solteiro, solteiro ficou casado As mocinhas arranjam um noivo e as casadas namorado. Tinha carro muito lindo que sairam nesse ano Um congresso de Pierrot, tinha também feniano A Avenida Rio Branco estava apinhado de gente Que bateram muita palma para os Democrata e Tenente279

SD:

Enquanto jogamos com as alegorias através de falas e respostas, complementares, paradoxais,

provocativas, BR, RF e CM falam/respondem juntos e, na condição de ouvinte participativo,

Seu Doutor fala(mos) também. Fala(mos) já considerando que falar/descrever a música

corresponderá sempre a um ato precário. Resta inventarmo-nos como escuta não passiva,

como autorouvintes cuja escuta desencadeia metáforas de metáforas que nos auxiliam na

escuta das falas de sujeitos discursivos, alegorias, autores, personagens, pessoas, nós mesmos

(ainda valem essas diferenças?). Quando falamos em metaforização queremos dizer que, a

exemplo de nossos parceiros, não pretendemos produzir nenhum tipo de efeito de

convencimento para além da música e das possibilidades interpretativas que acreditamos

278 Aí!... Hein!... Lamartine Babo, Paulo Valença, 1933. p4 279 Carnaval carioca. Alvarenga e Ranchinho, 1938. p3

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extrair do cancioneiro. O mesmo cancioneiro, que é música, e que encontra limites

interpretativos em falas que se constroem como externas ao campo da música e que, por sua

vez, ao mesmo tempo em que são orientados pela música, orientam a escuta e logo a

ordenação/criação do limite do musical.

Será mais simples acreditar que pensamentos e imagens, musicais ou não, nascem conjuntamente nas impressões produzidas pela interseção entre nossas consciências e aquilo que julgamos perceber como exterior a nós. (Aceita-se) o fato da experiência da música – e também a do conhecimento não-diretamente-musical, misturar-se antes de tudo com modelos, moldes reconhecíveis, de sons de insetos, sapos, elementos da metereologia, sem ignorar os mais recentes das fábricas, aeroportos, etc. Modelos esses que, pela mente humana, invadiam a caverna de Nietzsche280, cujas causas físicas nem sempre eram vistas. Tinha-se, por essa razão a atenção desviada da própria causalidade, às vezes oculta pelo desconhecimento da origem causa. Ficava-se ali dentro com o medo já vencido – no intervalo entre o sono e a vigília à escuta de ritmos, texturas e granulações do mundo exterior (CAESAR, 2008, p. 46, 47).

Esse ordenamento que também se deixa ordenar diz muito do que se pretende aqui como

condição de escuta. Uma escuta que se quer inserida ativamente às parcerias experimentadas

com BR, RF e CM. Considera-se que a percepção do que se constrói como externo, qualquer

externalidade como outro campo, outro sujeito, um habitat, uma natureza, um meio, estaria

contaminada por possibilidades rítmicas, cuja arqui-origem, origem de origem sem pré-

determinação fixa, residiria em necessidades de ordenamentos que se expressam para além

daquilo que se quer mesmo construir como exclusivamente humano, antropocêntrico,

racional281. O texto, esse texto, pretende produzir nada mais do que marcas, efeitos

desterritorializantes/reterritorializantes na/pela música, outros textos produziriam outras

marcas a partir de outras entradas, constituintes ou não do mesmo feixe/rizoma no qual

derivamos. A partir desta entrada inventada, fala este texto, ave canora. Não uma espécie, mas

um indivíduo, cujo cantar o individualiza frente ao bando/espécie e a tudo que ele mesmo

percebe como exterior a si. Texto passarinho. Mas, o individualiza ao mesmo tempo em que o

lança na direção do outro, “o outro possível como estrutura. A música como estrutura outrem”

(Queiroz, p.27, 2006). O indecidível animot derridiano – animoux/animal + mot/palavra – o

animal que logo sou sob ordenamento de ave canora.

CM:

280 O ouvido esse órgão do medo só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio (...). Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra ( NIETZSCHE apud CAESAR, p.45, 2008). 281 Para além do racional antropocêntrico considerando tantos outros animais que utilizam de recurso fônico para delimitar/ordenar impressões de espaço-tempo.

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Eu sou que nem sabiá Que quando canta é só tristeza Desde o galho onde ele está Nesta viola eu canto e gemo de verdade Cada toada representa uma saudade282.

SD:

Ô, meu conterrâneo, CM, como te agradeço pelo oportuno sabiá que agora mesmo

territorializa do galho onde está. E digo da marca que orienta uma fronteira interpretativa,

uma possibilidade de ordenamento fônico textual. Não se pretende, claro, nada além dessa

possibilidade de parceria interpretativa que a condição da escuta participativa sugere:

autorouvinte. Concordando ou não, aceitando-a como marca, rasura, condição da

possibilidade de uma verdade contingente como o territorializar do sabiá no galho,

possibilidade de verossimilhança, ou rechaçando-a como charlatanismo, expressão de um sub-

produto pretensamente litero-acadêmico, ao leitor, simultaneamente, autorouvinte, (grupo o

qual nos incluímos) cabe dizer-nos que não nos é pretendido nada além dessa marca, dessa

parceria, dessa possibilidade interpretativa que a nossa escuta participativa permite. Ordenar-

se a partir do outro simultaneamente permitindo o outro ordenar-se a partir de si. Texto

passarinho, pássaro textualizando. Se, nos termos foucaultianos para a episteme moderna já

não se reservaria uma possibilidade de análise isenta de crítica, uma pureza analítica que a

outra episteme clássica sugeria alcançar, diríamos que em nossa condição de ouvintes/leitores

participativos já não é possível uma escuta sem escrita283, audição sem texto, ouvir sem

simultaneamente falar, responder, cantar. Interessa-nos perscrutar o sentimento sugerido por

outro neologismo referente à almatéria música, algo que propõe dissolver contornos entre a

materialidade do logos expressamente físico, epistêmico e a alma ecumênica. Não muito

diferente da almatéria musical que o bem-te-vi entoa agora mesmo da janela lá de casa para

ordenar percepções, não só para além do homem/logos, mas, para além do medo que, muitas

vezes, bichos/bichos e bichos/homens transcendem cantando284. Percepções que apelariam às

muitas emoções que se expressam para além do medo como propunha Nietzsche em sua

caverna. De fato, pode-se sugerir inverter o movimento nietzschiano propondo que o homem

282 Tristeza do Jeca. (I) Pena Branca e Xavantinho – (C) Angelino de Oliveira, 1918. 283 A complexidade da escuta musical evidenciada com a música eletroacústica leva ao entendimento de que na verdade, não há análise sem crítica, assim como não haverá uma escuta sem escrita (CAESAR, p. 84, 2008). 284 Mesmo lá, onde percebemos grunhidos de animais devemos ver-ouvir cantos, por exemplo, das onças e dos macacos, que cada qual nas suas “aldeias”, dança, festeja, troca afetos e cumplicidades amorosas (QUEIROZ, p.26, 2008).

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só se permitiu ir à caverna, a floresta, a escuridão porque o musical, o sonoro, lhe

possibilitava a ordenação confortadora. Mas, essa origem não nos interessa.

Essa escuta não lida necessariamente somente com sinais ou indícios ameaçadores identificados à luz do dia, mas realiza ou se confunde com a superação de um medo, celebrando o seu fim. A exploração do aforisma não pretende tematizar a escuta da música como sendo um ato motivado pelo receio, mas que ela pode sim ser uma conquista sobre ele, mantendo com essa emoção um vínculo muito estreito (CAESAR, p. 89, 2008).

Sendo assim, a percepção musical se expressa na forma de uma experiência em que não seria

possível separar o que é de ordem emocional-subjetiva e o que é formal/espacial-objetiva: o

distancial não se separa facilmente do emocional (idem, p. 93).

A percepção musical não se limita a ser um exercício de segmentação analítica. Pode muito mais ser a experiência de um todo que contém uma especificidade musical (e aqui retorna a pergunta como separar percepção de experiência como um todo, ou ainda como delimitar o que é meramente sonoro do que é musical?) Isto nos traz até o umbral de uma hipótese; a de que não há níveis, camadas, segmentações ou qualquer outro procedimento analítico capaz de dar conta do fato musical (ibidem, p. 93).

Concordamos que estabelecer esse limite entre um campo musical e um todo seria sempre um

ato arbitrário.

CM:

Zé Canário na viola, andorinha no ganzá Sabiá improvisando pra cabroeira dançar Quando falta uma rima ao bom improvisador É mesmo que um coração quando falta o amor O poeta não tem viola, o vaqueiro não quer gibão Retirante não tem sacola, a mulher não tem coração Sabiá não vive cantando, o jardim não tem uma flor Quando a rima está faltando ao poeta improvisador A cozinha não tem um pote, uma casa não tem pilão Jararaca perde o seu bote, o cachorro não quer pirão Mulher rica fica sobrando, moça nova não quer amor Quando a rima está faltando ao poeta improvisador285.

SD: Obrigado de novo CM, por mais uma canção passarinho territorializando. Mas, como dizia,

não haveria parte da música sem mundo, parte de mundo sem música, ou mesmo princípios

ordenadores, de suposta origem antropocêntrica ou não, sem participação musical, sonora e

vice-versa. De novo, resta-nos escutar/ler rastros, marcas e já simultaneamente ir produzindo-

os no entre do subjétil música: subjétil derridiano que não seria nem um mero suporte, nem

um campo, mas, efeito de brizura que articula e distingue sujeito e objeto Brizura que permite

dizer sujeito e objeto e articulá-los no subjétil, como um suporte que fala por letra e melodia,

285 O bom Improvisador. Luís Gonzaga, Nelson Valença, 1973.

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sujeito/objeto constituído de poesia e música. Aliás, letra e melodia, sob essa perspectiva,

sugerem outro efeito de brizura, indecidível derridiano, que articula e separa os dois

elementos não de forma dialética, mas desautorizando o contraste. A brizura no entre

letra/melodia que se por um lado permite percebe-las como distintas, por outro, permite a

sensação de que a simples soma de ambas não expressaria o discurso-canção. Por isso o efeito

de brizura: aquilo que permite atomizar as partes, ao mesmo tempo em que as articula e, sem

constituir terceiro termo, mas uma umidade que se manifesta como fronteira e como

contaminação em ambas, deixa entrever que a canção expressa um discurso de articulação

entre sons e palavras que alcança mais do que a soma ou análise dos componentes: almatéria

música que desautoriza/estabelece o contraste provocando o deslizamento da diferença em

efeito de diferança. Por isso subjétil, papel falante que fala também por esse corpus, texto que

da almatéria música se aproxima e quer se assemelhar e, nesse intuito, se nos apresenta em

discursos de RF, BR, CM e SD.

CM:

Não se aprende nas escolas O tocar da viola e os desembaraços Veja só quanta beleza É por natureza o cantar dos pássaros Amigo cante direito e note os defeitos que você tem286

SD:

E foi CM quem, mais à vontade, primeiro interrompeu o longo aparte do Seu Doutor dando

prosseguimento ao jogo. Sim, não pretendemos esconder nossos defeitos e muito menos

propor que os limites da música corresponderiam aos da academia. Justamente, o que

propomos antes diz respeito a essa impossibilidade de riscar fronteiras estáveis. Como se a

música sempre esgarçasse o que se quer fixar em análises, em ordenamentos, em taxionomias

qualitativas/quantitativas. Mas, também aquilo que a quer ecumênica, sagrada, no sentido de

pertencer a outro mundo, círculo elevado de inspirações e dons inatos que contempla poucos

felizardos. Como dito, a distância entre o laboratório, o gabinete, o templo, a escrivaninha, o

conservatório e o oratório diluem-se em um mesmo mundo nem laico nem sacro, almatéria

música.

CM:

286 Rei sem coroa. Tião Carreiro, Sebastião Victor, 1963.

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Ó Deus salve o oratório Ó Deus salve o oratório Onde Deus fez a morada Oiá, meu Deus, onde Deus fez a morada, oiá Onde mora o calix bento Onde mora o calix bento E a hóstia consagrada Óiá, meu Deus, e a hóstia consagrada, oiá De Jessé nasceu a vara De Jessé nasceu a vara E da vara nasceu a flor Oiá, meu Deus, da vara nasceu a flor, oiá E da flor nasceu Maria E da flor nasceu Maria De Maria o Salvador Oiá, meu Deus, de Maria o Salvador, oiá287

SD:

As separações, jamais imunes aos deslocamentos, não conseguem se fixar. O rural se redime

de toda a culpa, perda, liberta-se do espelho que o projeta no urbano. Religião, religiosidade,

redenção de ganzá, viola e sanfona na mão, galinha, cachaça e dinheiro para os foliões de Reis

e Jesus, José e Maria. Procissão de uma Igreja profana, ciência popular, ou nada disso,

almatéria que suspende fronteiras desde o asfalto, o trânsito, sertões e veredas.

CM:

Cavalo marinho dança no terreiro Que a dona da casa Tem muito dinheiro Cavalo marinho dança na calçada Que a dona da casa Tem galinha assada288.

BR: A estrela D´alva no céu desponta e a lua anda tonta com tamanho esplendor E as pastorinhas prá consolo da lua vão cantando nas ruas lindos versos de amor Linda pastora morena da cor de Madalena tu não tem penas de mim que vivo tonto com o teu olhar Linda criança tu não me sais da lembrança meu coração não se cansa de sempre te amar289

SD:

Como esse último BR pastoral que diz campo e cidade que diz sacro e profano, procissão e

carnaval. Que diz dessa morena da cor de Madalena, pastora que é criança mas que deixa o

287 Calix Bento. Tema popular, adaptação de Tavinho Moura. 288 Cavalo marinho. Tema popular, adaptação de Luciano Pimentel, Fernando Filizola. 289 Pastorinhas. Silvio Caldas – Braguinha, Noel Rosa, 1950. p5

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cantor tonto só de olhar290. Fica então entre nós (Seus Doutores) acertado que não se crê nas

separações pré-definidas e definitivas, mas, ainda assim vamos adiante com nossas sugestões

interpretativas jogando entre acordos e polêmicas com BR, RF, CM. e, entre nós mesmos,

Seus Doutores.

CM:

Brasil, Meu Brasil tu vais prosperar tu vais vais crescer ainda mais com a Petrobrás. Agora a coisa vai mudar o sangue da terra vai jorrar porque o nacional monopólio nos deu o nosso rico petróleo. Somos assim dono de um grande país o povo forte, futuroso e bem feliz Petroleiros conduzindo pelo mar o ouro negro para o meu Brasil refinar Assim Mataripe e Cubatão o óleo do Brasil destilarão Candeias, Maceió e Nova Olinda os campos de nossa riqueza infinda Terão de dar produção para o Brasil e nossa terra não será só ouro-anil No conselho mundial entre as nações, nós, brasileiros, temos de ser campeões291.

SD:

É, CM, entendo que essa tua fala entrou assim de supetão como um sinal de alerta lembrando-

nos que devemos também perceber como arbitrariedade determinar os limites do

enquadramento de teus discursos pela dimensão da perda, do êxodo, da saudade. Precisamos,

outrossim, contemplar outras tecituras em teu discurso que, inclusive, te aproximam mais

ainda de BR e RF. Por exemplo, você também produziu discursos ufanistas e também

desfrutou das benesses de uma aproximação com o Estado. E aí, toda aquela conversa lá

detrás que especificavam estratégias, principalmente, em falas de BR e RF respondendo a

interlocutores localizados no Estado e demais instâncias de poder, também se aplicam a tua

fala. Apelando à paciência dos demais interlocutores, entendemos a necessidade de CM

retornar aos termos ufanismo e internacionalização permitindo rasurar a condição de perda, de

Contente Magoado, da forma como inscrevemos aqui.

CM: Delmiro deu a idéia Apolônio aproveitou

290 Aliás, trata-se aqui de uma versão da década de cinquenta visto que em 1934 quando a canção foi lançada, sofreu censura da Igreja Católica que obrigou trocar o nome “Pastorinhas” por “Linda Pequena” e substituir os versos que faziam alusão às pastoras. A versão censurada ficou assim: “A Estrela D ´Alva no céu desponta e a lua anda tonta com tamanho esplendor e as moreninhas pra consolo da lua vão cantando na rua lindos versos de amor, linda pequena, pequena que tens a cor morena...”. Esse caráter sacro-profano do Pastoril, já na década de vinte, foi percebido pelo pesquisador Mário de Andrade em suas incursões pelo Nordeste: “Guardado da rua, no sítio do coronel Cascudo (Câmara Cascudo), as meninas bailam no Pastoril. São umas deliciosas de canhatãs, desacompanhadas de piano e violino, com tanta graça, tanta desenvoltura no gesto que o futuro da pátria aqui está. A maior não terá doze anos porém dançam com um ar de frevo, num mexido sensual tão inconsciente como a fatalidade. Umas defendem o cordão encarnado. Outras o azul. No meio a Diana, caçadora sem nenhuma Grécia, celebra com gostosura o nascimento de Jesus, menina linda, graça esplêndida, estrelinha nos cabelos, pandeiro prateado na mão” (Mário de Andrade. Turista aprendiz, p.218, 2002). 291 Marcha da Petrobrás. Luis Gonzaga, Nelson Barbalho, J. Augusto, 1959.

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Getúlio fez o decreto e Dutra realizou O presidente Café a usina inaugurou E graças a esse feito de homens que tem valor Meu Paulo Afonso foi sonho que já se concretizou Olhando pra Paulo Afonso eu louvo nosso engenheiro Louvo o nosso cossaco caboclo bom verdadeiro Oi! Vejo o nordeste erguendo a bandeira De ordem e progresso a nação brasileira Vejo a indústria gerando riqueza findando a seca Salvando a pobreza Ouço a usina feliz mensageira dizendo na força da cocheira O Brasil vai, o Brasil vai o Brasil vai, o Brasil vai292. O baião saiu do Rio com sotaque de espanhol De Paris correu o mundo foi cair lá no Tirol A moçada lá dos Alpes que é uma turma de Skol Transformou nosso baião em baião do Tirol293. Ontem eu sonhei que estava em Moscou. Dançando pagode russo na boate Cossacou Parecia até um frevo naquele cai e não cai Parecia até um frevo naquele vai e não vai Vem cá cossaco, cossaco dança agora Na dança do cossaco, não fica cossaco fora294 Juntei dinheiro quase um ano inteiro, entrei pra escola para ser chofer. Dessa maneira, sem fazer besteira, tirei a carteira, botei meu boné. Batendo pino sigo o meu destino caminhando para onde Deus quiser A vida passa, eu vou fazendo a praça. Primeira, segunda, pisa e marcha ré. Se o freguês reclama que eu sou vagaroso que meu carro é velho e faz muita fumaça Eu não me zango, não faço arruaça. Sou bem educado, sou chofer de praça, Ai, ai, não nego a minha raça. Ai, ai, eu sou chofer de praça Para casamento tenho um terno branco. Para batizado tenho um terno azul. Tiro o boné se vou pra zona norte, boto o boné se vou pra zona sul. Se apanho um casal, pros lados do Leblon, Sei que vou parar na Gruta da Imprensa, Viro o espelho, não fale, não veja, Vou dá meu cortejo, espero a recompensa -O senhor não leva a mau doutor, mas pra onde é que o senhor vai hein? -Vou pra Jacarepaguá. -Tá doido. -O senhor vai pagar a ida e a volta. -Pois não, doutor. -Vamos nós! -Doutor, trabalho a quilometro, tenho oito filho pra sustentar doutor -Vamos nós doutor, o senhor foi mandado de Deus, "vamo simbora".295 Lá no arraiá das coruja formaro dois cumbinado, O time do quebra-dedo, e o time do pé-rapado. A bicharada reuniu, formaro logo seu quadro, Nóis fumo vê esse jogo, por sê um jogo faladu. A bicharada pediu pro jogo sê irradiadu, Na estação du lugá, PRJ-Bichadu, O "ispriqui" era o jumento, rapaizinho apreparadu, As quinze hora da tarde o jogo foi cumeçado. O time do quebra-dedo tinha fama de campeão,

292 Paulo Afonso. Gonzaga, Zé Dantas, 1955. 293 Baião no Tirol. Trigêmeos vocalistas – (C.) Rodrigues, Stauber e Martelli, 1952. 294 Pagode Russo. Luís Gonzaga, 1946. 295 Chofer de praça. (I) Luis Gonzaga – (C) Evaldo Rui, Fernando Lobo, 1950.

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Sapo jogava no gol, béqui de espera o leão, Cavalo o béqui de avanço, o arco esquerdo preá, Veado de center-arco, arco direito o gambá. A linha tava um perigo, na meia jogava o rato, No centro jogava o tigre, na otra meia o macaco, Na esquerda jogava o bode, direita jogava o gato, E pra atuá di juiz, foi convidado o lagarto. (Boa tarde senhoras e senhores. Ai que bicharada gorda, barbaridade) O tigre deu a saída, coelho foi pra tirá, O tigre passô pru bode, mais quando ele foi chutá, Puxaro a barba do bode, o bode foi recramá, Juiz falô que num viu, cachorro já quis brigá. A cabra muié do bode, xingô o juiz de ladrão, Torcida do quebra-dedo fizéro recramação, A capivara e a cotia chegaro a xingá o leão, Preguiça dava risada, de vê o sapo de carção. Largato que era o juiz, na hora dele apitá, Tinha engulido o apito, num pôde o jogo pará, A torcida entrô no campo, de pau, de faca e punhá, O pau cumeu direitinho, mataro trêis no lugá. O bode ficô ferido, mataro o béqui leão, Rasgaro a saia da cobra, cavalo quebrô a mão, O sapo saiu correndo, jogou-se no riberão, Por que na hora da briga ele ficô sem carção. O jogo num terminô, pur isso ficô empatado, Agora nóis vai falá, do center-arco veado. Nervoso ele dizia, entre suspiros e ais: Ai meu Deus do céu qui jogo bruto, meu Deus, que estupidez. Assim num jogo, num jogo, num jogo mais... 296

SD: Nos enunciados acima, além da internacionalização da fala regional que vai aos Alpes e a

Moscou, CM dialogiza com pelo menos três elites, o Estado de Getúlio a Dutra, a classe

média urbana que anda de taxi e a imprensa esportiva do rádio que rasura o campo a partir da

lenda dos bichos que falam. Agora, falando mais diretamente de Seu Doutor para Seu Doutor,

mas, se RF, CM e BR quiserem interferir não faremos objeção, o que se propõe aqui diz

respeito à própria fragilidade do constructo, qualquer constructo que, via de regra,

corresponde à arbitrariedade de um pensamento, de uma idéia, cuja fronteira, limite, estará

sempre logo ali desafiando suas pretensões de síntese e totalidade. Prometemos, ainda no

Lado A, não fazer referência a nenhum compositor específico. Mas, ferindo também essa

regra, especificamente aqui, tomemos, por exemplo, o conjunto de falas referentes ao

compositor Dorival Caymmi que constitui, segundo as análises tradicionais do cancioneiro

popular, um conjunto coeso e fechado. A fala é marcada como tipicamente baiana, logo

regional, por isso CM. Mas sua estrutura é metropolitana, acordes jazzísticos, ritmo de samba

296 Futebol da bicharada. Raul torres, 1930.

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urbano que vai inclusive inspirar a bossa nova anos depois, por isso RF/BR. A fala inscreve

figuras folclóricas e míticas do “Abaeté”, por isso CM, mas, também inscreve uma

urbanidade de sacadas de sobrado da velha “São Salvador” e de donzelas do tempo do

Imperador, inclusive, anterior à urbanidade de Rio e São Paulo, por isso BR/RF. Contempla a

dicção da “Saudade da Bahia”, por isso CM, mas diz também de um comércio de rua no

“Tabuleiro da baiana”, por isso BR/RF. Essa impossibilidade de determinar fronteiras

inquestionáveis não propriamente invalida o jogo, considerando que não se pretende

jogar/propor nada além de novas possibilidades interpretativas que possibilitem novas e

outras relações e percepções do autor/leitor com as falas do cancioneiro popular brasileiro que

responde e propõe, a seu modo, inscrições de signos urbano, moderno, rural, tradicional no

constructo identidade nacional.

CM:

Seu doutô, os nordestino têm muita gratidão. Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão Mas doutô uma esmola a um homem qui é são Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão É por isso que pidimo proteção a vosmicê Home pur nóis escuído para as rédias do pudê Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação! Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos297

SD: Depois, CM responderia ao seu próprio discurso produzindo aproximação ainda maior com a

elite localizada no Estado.

CM: Nos anos 53, 54 houve uma seca da moléstia no sertão nordestino O Brasil ficou cheio de arapucas: ajuda teu irmão! Uma esmola pro flagelado nordestino qualquer coisa serve. Dinheiro, roupa velha, sapato velho, camisa velha, tudo serve. Eu e Zé Dantas protestamos e gritamos bem alto: Seu doutô os nordestino têm muita gratidão Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão Mas doutô uma esmola a um homem qui é são Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão Um deputado do povo bradou do Parlamento Nacional:

297 Vozes da seca. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1953.

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Seu Presidente, esse baião de Gonzaga e Zé Dantas vale por mais de cem discursos. Agora eu louvo o nome daquele que criou a SUDENE: Obrigado Juscelino. Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage298.

SD: Mais uma vez apelamos à compreensão de autorouvintes, já desculpando-nos pelo movimento

brusco que o jogo executa e dissemina a partir de agora, momentaneamente, não mais

sociedade do trabalho, nem belle-epoque, nem o período referente aos golpes da ditadura

militar, 64-68. Porém, avança décadas, quando o cancioneiro afirmaria, parafraseando

discursos psicanalíticos, que “todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome que

tem de viver, todo homem sabe que essa fome é mesmo grande até maior que o medo de

morrer, mas a gente nunca sabe mesmo o que que quer uma mulher299”. E vai apenas para

voltar – foi dito que era momentâneo – com mais pertinência à especificação do contexto

rasurado, khôra, que inventa como entrada, arqui-origem, a sociedade do trabalho. Entre os

temas mais presentes no repertório do cancioneiro popular eleito encontra-se o das relações

pessoais em que, mais especificamente, elabora-se o signo personagem mulher em contexto

estruturado no dissídio que se estabelece no entre dos signos do moderno, do urbano, da

transformação, da emancipação e dos signos da tradição, do rural, do conservadorismo, do

patriarcalismo.

RF:

Vem, vem que eu dou tudo a você, menos vaidade. Tenho vontade, mas é que não pode ser. O amor é o do malandro, meu bem. Melhor do que ele ninguém. Se ele te bate é porque gosta de ti Porque bater em quem não se gosta eu nunca vi300

Se eu lhe arranjo trabalho ele vai de manhã de tarde pede a conta Eu já estou cansada de dar murro em faca de ponta Ele disse pra mim que está esperando ser presidente tirar patente Do sindicado dos inimigos do batente301.

SD:

298 Vozes da Seca (ao vivo). Luis Gonzaga, Zé Dantas. s.d. 299 Pecado original. Caetano Veloso, 1978. 300 Amor de malandro. Ismael Silva, Francisco Alves, Freire Junior, 1929. 301 Inimigos do batente. Germano Augusto, Wilson Batista, 1940.

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Esse lugar moderno/conservador de onde verte parte do discurso do cancioneiro popular

inscreve um possível constructo interpretativo de imagens que deslocam o signo personagem

mulher na sociedade brasileira. O signo é inscrito em um repertório no qual a personagem

mulher constrói-se ora como a insensível que abandona a casa, a família, o homem, ora como

a promíscua, a interesseira, a materialista que desatina na vida e leva o homem à bancarrota e

a decadência moral, ora como a submissa que faz as vontades de seu companheiro aceitando

passivamente suas exigências, maus tratos, pancadarias, vadiagens e orgias.

BR:

Lá no Largo do Estácio eu conheci o Juca do pandeiro Dava gosto a gente ver tocava por prazer não tocava por dinheiro Tinha alma de artista era um malabarista com o pandeiro na mão Cherche la femme, sempre a mulher na vida do homem Por ela deixou o pandeiro quase não tem o nome na historia Esse Juca que eu falo hoje tem cabelo branco Não tem um centavo no banco, mas tem uma mulher na memória302. Você sabe o que é ter um amor meu senhor Ter loucuras por uma mulher E depois encontrar esse amor meu senhor Nos braços de um tipo qualquer Você sabe o que é ter um amor meu senhor e por ele quase morrer E depois encontrá-lo em um braço que nem um pedaço do teu pode ser. 303 Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar E que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar Só existe uma e sem ela eu não vivo e paz Emília, Emília, Emília, eu não posso mais304.

SD:

Músicas que enquadram a personagem da mulher em imagens específicas não nos faltam: A

mulher é o diabo de saia305, de 1904, o título fala por si e a letra segue afirmando que “a

mulher é perversa para o homem... antes morrer de febre amarela do que pensar em ser

marido”. A mulher sapeca306 de 1907, diz que a mulher “é pior que as cobras... antes quero

ter febre amarela que casar com mulher faladeira”. A mulher é um anjo307, de 1907, aponta

para a outra imagem paradigmática afirmando que “a mulher é sempre submissa ao homem

302 O Juca do pandeiro. Augusto Garcez, Wilson Batista, 1943. 303 Nervos de aço. Lupcínio Rodrigues, 1947. 304 Emília. Haroldo Lobo, Wilson Batista, 1941. 305 A mulher é o diabo de saia. Mário Pinheiro, 1907. 306 A mulher sapeca. Bahiano, 1907. 307 A mulher é um anjo. Cadete, 1907.

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por amor e dever”. Em Caprichos de mulher308, 1921, o homem reclama dizendo “mulher és

caprichosa e orgulhosa tudo o que eu pedia tu não fazias como eu queria”. Em Mulher de

cueca309, 1925, ironiza-se a liberdade que a modernidade proporcionava à mulher, “a mania

da mulher é imitar o homem dos pés até a cabeça... a mulher já sai de casa com a cueca do

marido... no progresso em que estamos a mulher vai andar de tanga”. A polícia já foi lá em

casa310, 1929, fala de violência explícita e submissão, “eu dou o meu dinheiro todo a você...

não sei o que vou fazer para te pagar pelas pancadas que você me dá”. Mulher exigente311,

1930, “como toda mulher tu nunca estás contente e o pobre do teu marido que agüente” Em

Mulher de malandro312, 1931, afirma-se que “há um ditado muito certo: pancada de amor

não dói... quanto mais apanha, a ele tem amizade, longe dele tem saudade”. Em A mulher

nunca fala a verdade313, 1934, constata-se que “assim como Deus não mente, a mulher

nunca fala a verdade”. Bebida, mulher e orgia314, de 1936, “bebida, mulher, orgia é a lei do

vagabundo, sem mulher e sem orgia não há prazer nesse mundo”. Em Mulher sem dono315,

1938, esclarece-se, “eu encontrei essa mulher na rua, toda mulher em abandono é do samba e

não tem dono”. Cuidado com essa mulher316, de 1940, “porque ela vai te abandonar”. Deixa

a mulher sossegada317, 1941, “falam tanto das mulheres, parece até prevenção... quem é que

faz nosso café e de manhã já está de pé”. Mulher de luxo318, 1942, “tu hoje é mulher de luxo

tens bangalô com repuxo, criada, leiteiro e pão, tens quarto cheio de enfeites e eu às vezes

roubo leite do teu portão”. A mulher de trinta anos319, 1942, “eu gosto mais da mulher de

trinta anos porque ela sabe suportar os desenganos”; Salve a mulher brasileira320, 1942,

trata-se de uma pérola ufanista e ao mesmo tempo debochada com imagem fálica cheia de

segundas intenções, “ofenderam a nossa bandeira e a mulher brasileira também teve opinião,

nós seremos enfermeiras e se for preciso manejamos o canhão”, o canhão com duplo sentido,

claro; O diabo da mulher321, 1942, o título diz tudo. A mulher do diabo322, 1952, mais uma

308 Caprichos de mulher. J. Fonseca Costa, 1921. 309 Mulher de cueca. Eduardo Souto, 1925. 310 A polícia já foi lá em casa. Júlio Cristóbal, Olegário Mariano, 1929. 311 Mulher exigente. Almirante, 1930. 312 Mulher de malandro. Francisco Alves, 1931. 313 A mulher nunca fala a verdade. (I) Almirante – (C) André Filho, 1934. 314 Bebida, mulher e orgia. Aniz Mrad, Luiz Pimentel, Manoel RAbaca, 1936. 315 Mulher sem dono. J. Piedade, Torres Homem, 1938. 316 Cuidado com essa mulher. Antonio Almeida, Ataulfo Alves, 1940. 317 Deixa a mulher sossegada. Sá Dóris, Francisco Alves. 318 Mulher de luxo. Edelir Gameiro, Milton teixeira, 1942. 319 A mulher de trinta anos. Cristóvão de Alencar, J. Batista, 1942. 320 Salve a mulher brasileira. Rubens Campos, Sebastião Lima, 1942. 321 O diabo da mulher. C. Monteiro, Benedito Lacerda, 1942. 322 A mulher do diabo. Antonio Almeida, 1952.

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vez o título dispensa comentários. O jantar está na mesa323, 1942, “até agora ela não chegou

não há razão pra isso, há muito tempo que a fábrica apitou”, fala da mulher que trabalha na

fábrica e não volta pra casa, em outras palavras, afirma que a mulher que trabalha fora não é

confiável. Agora agüenta a mulher324, 1943, “casamento não é só lua de mel, quem mandou

você fazer esse papel”; Vaidade da mulher325, 1944, “trabalho como um louco, ela ainda

acha que é pouco, tudo que eu ganho ela quer gastar”. Quer ver sua mulher sorrir?326, 1945,

afirma sem falso moralismo “dê carinho a ela, dê vestido novo, dê perfume, jóia e dinheiro

pra gastar”.

BR:

Vai orgulhosa querida Mas aceita esta lição No câmbio incerto da vida A Libra sempre é o coração327. Quando o apito, da fábrica de tecido. Vem ferir os meus ouvidos eu me lembro de você. Você no inverno sem meias vai pro trabalho Não faz fé no agasalho nem no frio você crê O que você não sabe é que enquanto você faz pano Faço junto do piano esses versos pra você328.

SD:

Como vemos, o BR está concordando conosco. Uma rara exceção é Trabalha mulher329,

1946, “trabalha mulher, é o progresso, deixa falar quem quiser, a mulher é mulher no lar e na

repartição”. Mas, a fala de BR em Bolinha de Papel330, 1945, já desdiz a anterior quando

promete: “tiro você do emprego, lhe dou amor e sossego, vou ao banco e tiro tudo pra gente

gastar”. Mulher sem nome331, 1950, “mulher sem nome punhal da falsidade... mulher que

bebe com seus coronéis”. Mulher falsa332, 1952, trata-se de uma mulher promíscua que deixa

o homem sem calça na praia e sem ter como voltar para casa, “não para nenhum lotação, eu

de calção como é que vai ser, o povo que passa o que vai dizer”. A mulher que é mulher333,

323 O jantar está na mesa. Moreira da Silva – Felisberto Martins, 1942. 324 Agora agüenta a mulher. Antonio Almeida, 1943. 325 Vaidade de mulher. Geraldo Augusto, Valfrido Filho, 1944. 326 Quer ver sua mulher sorrir? Benedito Lacerda, Haroldo Lobo, 1945. 327 Positivismo, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1933. 328 Três Apitos. Noel Rosa. 329 Trabalha, mulher. Benedito Lacerda, Herivelto Martins, 1946. 330 Bolinha de papel. Anjos do Inferno – Geraldo Pereira, 1945. 331 Mulher sem nome. Teddy Vieira, Zé arreiro, 1950. 332 Mulher falsa. Claudionor Cruz, Pedro Caetano, 1952. 333 A mulher que é mulher. Armando Cavalcante, Klécius Caldas, 1953.

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1953, essa mulher, “se o homem errar perdoa”. Volta pra casa Emília334, 1942, continuação

da mesma “Emília” de 1941, já citada, “Quando eu visto um terno amarrotado tenho que me

lembrar... hoje não tenho família, não tenho lar nem amor, volta pra casa Emília, se não eu

morro de dor”; Se acaso você chegasse335, 1938, um amigo fala pro outro que agora vive com

sua ex-mulher, “de dia me lava a roupa de noite me beija a boca e assim nós vamos vivendo

de amor”; Acabou a sopa336, 1940, mulher promíscua que “sem me pedir foi ao baile, isso

não se faz... pode arrumar a mala acabou a sopa”; “Bateu cinco horas337”, 1937, mesmo

tema, “o relógio bateu cinco horas foi a hora que ela chegou... vou lhe mandar embora é o

castigo que você merece”; Sem banana macaco se arranja338, 1952, “não tenho cafuné, café

ou mulher que arrume minha roupa”; se a mulher resolve trabalhar, cai nas garras do patrão

em Comerciaria339, 1950, “como ave prisioneira dos caprichos do patrão... se acaba no

balcão”; “Marcha das mulheres340”, 1952, “mulher devia ser vendida em loja, como outra

coisa qualquer, quem tivesse mais dinheiro e fosse mais ligeiro, comprava mais mulher”, Meu

nome é mulher341, 1953, “eu não quero mais carinhos, quero jóias quero luxo pra minha

satisfação”; A mulher ficou na taça342, 1945, “E no seio da desgraça encho mais a minha

taça para afogar a visão, quanto mais bebida eu ponho mais cresce a mulher no sonho, na taça

e no coração”

BR/RF:

Você só pensa em luxo e riqueza Tudo o que você vê, você quer Ai, meu Deus, que saudade da Amélia Aquilo sim é que era mulher Às vezes passava fome ao meu lado E achava bonito não ter o que comer Quando me via contrariado Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!" Amélia não tinha a menor vaidade Amélia é que era mulher de verdade343

SD:

334 Volta pra casa Emília. J. Batista, Antonio Almeida, 1942. 335 Se acaso você chegasse. Felisberto Martins, Lupcínio Rodrigues, 1938. 336 Acabou a sopa. Augusto Garcez, Geraldo Pereira, 1940. 337 Bateu cinco horas. Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1937. 338 Sem banana macaco se arranja. Braguinha, 1952. 339 Comerciaria. Carvalhinho, Mário, Rossi, H. de Carvalho, 1950. 340 Marcha das mulheres, José Batista, Peter Pan, 1952. 341 Meu nome é mulher. Paulo Mayer, 1953. 342 A mulher ficou na taça. Francisco Alves – Lamartine Babo, 1945. 343 Ai, que saudades da Amélia. Ataulfo Alves, Mário Lago, 1941.

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Se Amélia perdoasse344, 1942, continuação da “Amélia” mulher de verdade com o mesmo

pedido de perdão, “a Amélia sabe que sou um bom rapaz”. Não bate nele345, 1946, aqui se

pede para não bater no “bom” rapaz que só bate mesmo na mulher, “o cara é bom moço, esse

rapaz tem fama de valente é porque bate sempre na sua mulher”. Ex-filha de Maria346, 1952,

trata da mulher que cai na orgia, “essa pobre mulher desviou-se hoje anda em lugares tão

feios”. Ele é do samba347, 1939, violência explícita, “moro com ele no morro e apanho pra

cachorro, mas gosto dele assim... o barraco é um quadro de felicidade”. O cinzeiro da

Zazá348, 1953, moralista, fala do apartamento da Zazá que não fuma, mas, o cinzeiro está

sempre cheio de cinzas e guimbas de cigarro dos homens que recebe. Amélia na Praça

Onze349, 1937, outra referência a Amélia que passa fome. A cozinha é teu lugar350, 1938, “a

empregada quer ser melhor que a patroa” essa consegue ser triplamente preconceituosa,

ofende o negro, o pobre e a mulher. Que pequena levada351, 1928, falso moralismo machista,

“todos me acham levadinha com a boca pintadinha... vou passear à beira mar”. Pode matar

que é bicho352, 1949, “Quando a mulher é boa o homem deve ter cuidado e capricho, mas,

quando ela é feia, muito feia, pode matar que é bicho”. A mulher e o trem353, 1929, “se

namora no escuro esse trem não é seguro, se namora homem casado é um trem descarrilado.

A mulher e o relógio354, 1941, “mulher divorciada deixa o homem confuso, é relógio sem

mola e sem parafuso”. Gosto que me enrosco355, 1928, “Deus nos livre das mulheres e hoje

em dia, desprezam o homem só por causa da orgia”. Se você jurar356, 1931, “A mulher é um

jogo difícil de acertar e o homem como um bobo não se cansa de jogar”, “Desacato357”, 1933,

“diga porque você me deixa a casa e vai pra orgia, me desobedece neném, perca essa mania”.

Oh! Seu Oscar358, 1939, “Cheguei cansado do trabalho, logo a vizinha me falou que está

fazendo meia hora que a tua mulher foi embora e um bilhete deixou, o bilhete assim dizia, não

posso mais eu quero é viver na orgia”. Pergunte à vizinha do lado359, 1939, dialoga com

344 Se a Amélia perdoasse. Gomes Filho, Juraci Araújo, 1942. 345 Não bate nele. Lourenço Pereira, Zé Fechado, 1946. 346 Ex-filha de Maria. Roberto Silva – (C.) Lupcínio Rodrigues, 1952. 347 Ele é do samba. Célio Ferreira, Ciro Monteiro, 1939. 348 O cinzeiro da Zazá. Nássara, Wilson Batista, 1953. 349 Amélia na Praça Onze. Linda Batista, Cícero Nunes, Herivelto Martins, 1942. 350 A cozinha é teu lugar. Paulo Barbosa, Oswaldo Santiago, 1938. 351 Que pequena levada. F. Alves, Rosa Negra – Francisco de Freitas, L. Babo, 1928. 352 Pode matar que é bicho. H. Lobo, M. de Oliveira, 1949. 353 A mulher e o trem. Stefano de Macedo, 1929. 354 A mulher e o relógio. César Nunes, 1921. 355 Gosto que me enrosco. Sinhô, 1928. 356 Se você jurar. Ismael Silva, Francisco Alves, Nilton Bastos, 1931. 357 Desacato. Wilson Batista, P. Vieira, M. Caldas, Francisco Alves, 1933. 358 Oh! Seu Oscar. Ataulfo Alves, Wilson Batista, 1939. 359 Pergunte à vizinha do lado. Patrício Teixeira; Eloi de Assis, Valdemar Silva, 1939.

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“Seu Oscar”. “Se queres saber a verdade pergunte a vizinha do lado, a hora que a minha

mulher chegou, eu já estava me aprontando pro trabalho, perguntei aonde andou, ela não me

disse nada e fingiu contrariada, eu me aprontei, peguei a roupa do trabalho e nunca mais

voltei, mulher que é da orgia não serve...” Sem compromisso360, 1944, “Você só dança com

ele diz que é sem compromisso, é bom acabar com isso eu não sou nenhum Pai João, quem

trouxe você fui eu não faça papel de louca, pra não haver bate boca dentro do salão”. Flor da

Lapa361, 1952, “Estão vendo aquela mulher bebendo, bebendo de mesa em mesa, já flor a flor

da Lapa, a rainha da beleza, os homens brindava, seu corpo bebendo champanhe, hoje acaba o

cabaré ela não tem quem lhe acompanhe”. Trapo de gente362, 1953, “Fui buscá-la na triste

miséria de um barracão para as noites boêmias de Copacabana esse mundo de sonho e

fascinação, saia comigo, bebia comigo depois se entregava a um amigo, trapo de gente sem

alma e sem coração”. Vai mulher da orgia363, 1936, “Vai eu não sou culpado de você me

abandonar, o destino de toda mulher da orgia é pena”. O amor é um bichinho364, 1931, “que

roi roi roi, no coração ele faz um buraquinho que dói dói dói esse bichinho é terrível... pois

deixa o homem sem nota, deixa a mulher sem vergonha”Chofer de Fogão365, 1963, “Diz a

todo mundo fazer mesmo parte da sociedade ...percorre a cidade dizendo a todos falar o

inglês, mas infelizmente não conhece nada não tem projeção e todos já sabem ela é chofer de

fogão”. Cassino366, 1937, acredito no destino, nas roletas de um cassino e até na felicidade só

não creia que as mulheres amem com sinceridade”. Deusa do Cassino367, 1961, “ninguém

foge do destino por isso num cassino eu vim a te conhecer, como louca borboleta volúvel

como a roleta deusa do luxo e do prazer”. Sete e meia da manhã368, 1945, “estou atrasada e

se não for para o batente ele vai me dar pancada”. Arranha-céu369, 1937, “Cansei de esperar

por ela toda a noite na janela vendo a cidade a luzir, nesses delírios nervosos dos anúncios

luminosos que são a vida a mentir e cada vez que subia o elevador não trazia essa mulher

maldição... esquece aquela desgraça, esquece aquela mulher”. Essa listagem ficaria ainda

mais extensa se não tivéssemos omitido um tipo específico de signo mulher, a mulata. Optou-

360 Sem compromisso. Geraldo Pereira, Nelson Trigueiro, 1944. 361 Flor da Lapa. César Brasil, W. Batista, 1952 362 Trapo de gente. Ary Barroso, 1953. 363 Vai mulher da orgia. Roberto Martins, Guarnieri, 1936. 364 O amor é um bichinho. Braguinha, 1931. 365 Chofer de fogão. Luis Carlos Vieira, N. Figueroa, S. Neves, 1963. 366 Cassino. Moreira da Silva, Manoel Fernandes, 1937. 367 Deusa do Cassino. Orlando Silva; Newton Teixeira, Torres Homem, 1961. p3 368 Sete e meia da manhã. Dircinha Batista; Claudionor Cruz, Pedro Caetano, 1945. p4 369 Arranha-céu. Silvio Caldas, Orestes Barbosa, 1937 p4

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se por relacionar as construções do signo mulata junto às canções que tratam das questões

raciais mais adiante;

BR:

O meu coração não me engana eu quero uma sereia de Copacabana. A francesa me chamou de “mon cherie” eu senti um frenesi. Atrás de uma espanhola eu quase fui a Madrid. Uma cachopa em Lisboa me cantou a Madragoa, ai, quase morri.370 Carioca, carioca, que seria desta vida sem você Quando o sol sorri nas flores pout pout ri dos teus amores Eu te adoro não queiras saber porque. Orgulhosa majestosa nesta terra da beleza sem igual Essa terra da alegria cor de carne que inebria tua vida é só perfume e carnaval371

SD: È claro que depois dessa minha exegese de exemplos e comentários sobre a construção da

mulher no cancioneiro, um de vocês três tinha que entrar falando alguma coisa sobre o mesmo

tema que não tivesse nada a ver com o que eu vinha desenvolvendo. Tudo bem, vale

acrescentar então que o cancioneiro popular também se ocupou em muitas falas de elogiar a

mulher carioca, a brasileira, principalmente em comparação com as mulheres de outros países.

RF/BR:

Quem olha da cidade alta pra cidade baixa o que é que vê Vê uma baiana queimada tostada da cor do azeite de dendê Ela tem felicidade tem simplicidade e é bondosa Por ai a agente vê que a baiana tem tudo e não tem prosa Tem beleza no andar tem chamego no pisar tem perfume de matar Um sorriso que provoca seu olhar é feiticeiro Que faz qualquer carioca lhe dar todo o seu dinheiro372 Hindu minha linda hindu que nasceu em Calcutá È melhor ser minha esposa que ser escrava de um rajá Eu não tenho palácio eu não tenho tesouro Minha janta é um prato de arroz Eu sou um pobre paria, mas tenho uma cabana que chega pra nós dois373. Ela nasceu em Bagdá e era a favorita do sultão Porém o rajá em nome de Aláh jurou conquistar seu coração Ela sorrindo respondeu o meu coração já era seu374 Certa noite em Pequim eu peguei meu violão E fiz uma serenata blão blão blão Mas a linda chinezinha ao ouvir me disse assim

370 Sereia de Copacabana, Nássara, W. Batista, 1950. t3 371 Carioca. Castro Barbosa, 1931. p3 372 Cidade alta. Zé, Zilda; José Gonçalo, Oldemar Magalhães, 1949. 373 Minha linda Hindu. Nássara, W. Batista, 1952. 374 Favorita do sultão. José Batista, Nássara, 1948.

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Gosto bem mais do flautim do meu chim que faz pim pim pim375 Cadê Mimi, o meu bibelô Japonês? Que ainda espero encontrar e amar Amar mais uma vez376 Chiquita bacana lá da Martinica se veste com uma casca de banana nanica Não usa vestido nem usa calção, inverno pra ela é pleno verão Existencialista com toda razão. Só faz o que manda o seu coração377

SD:

Estas últimas falas, provocações do BR que nem vou me dar ao trabalho de responder, são

ótimos exemplos de traição do subjétil. Mas afinal, retornando ao que se falava antes, o samba

não era ambiente freqüentado pelas moças das famílias burguesas. Se certos intelectuais e

representantes da elite, como Prudente de Moraes, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto

Freyre mantinham contato próximo com o grupo de compositores e músicos formado por

João da Baiana, Patrício, Donga e Pixinguinha como descrito por Vianna378, às referidas

moças, tal aproximação era terminantemente proibida. A aproximação da classe média ao

universo do samba e do morro só ocorreria de forma significativa nos anos 60, com o

crescente interesse pelos desfiles de carnaval das Escolas de Samba.

SD Orientador:

Interesse que emergiu em função do deslocamento de parte dessa classe média à

esquerda do espectro político, o que possibilitou nela certa valorização do popular

urbano: operariado, samba, favela, escola de samba.

SD:

Enquanto fervia-se o cadinho cultural do samba, resultado do cruzamento de múltiplos

discursos, as “moças de família”, nas primeiras décadas do século XX, permaneceram em

casa, preferencialmente ao piano, também no acordeom, tocando Chopin, quando muito,

tangos, polcas ou a música ligeira do repertório de modinhas do século XIX.

Tocar piano, cantar duetos e árias, dançar valsas e quadrilhas francesas são qualidades atribuídas às personagens românticas. Como afirma Raymond Sayers, “entre as prendas das heroínas dos romances urbanos uma das mais apreciadas é o talento musical, que é quase tão importante quanto a beleza física e a juventude”. (FONSECA, P.74).

375 Serenata chinesa. Nuno Roland – Braguinha, 1948. 376 Cadê Mimi? Almirante, Braguinha, Julio Casado, 1931. 377 Chiquita bacana. (I.) Emilinha Borba – (C.) Braguinha, 1948. 378 No diário de Gilberto Freyre em visita ao Rio de Janeiro, em 1926, ficou registrado o encontro do grupo de intelectuais com os compositores do samba (...): “Sérgio e Prudente conhecem de fato literatura inglesa moderna, além de francesa. Ótimos. Com eles saí de noite boemiamente. Também com Villa Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício, Donga” (FREYRE apud VIANNA, 1995, P. 19).

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A cizânia entre uma música de valor, representada pelo piano e o salão, e outra

desclassificada, representada pelo violão e o botequim, perdurou pelas primeiras décadas do

século XX. Para a mulher burguesa a presença em ambientes populares era vetada, salvo em

raras exceções, quando, por exemplo, certa elite política e intelectual freqüentou o salão das

casas das tias baianas. Para a mulher pobre as relações de lazer e trabalho implicaram outras

questões.

RF/BR:

Se é de mim podem falar, se é de mim podem falar meu amor não tem dinheiro não vai roubar para me dar Quando a polícia vier e souber, quem paga a casa pra homem é mulher. No tempo que ele podia me tratava muito bem Hoje está desempregado não me dá porque não tem Quando eu estava mal de vida ele foi meu camarada Hoje dou casa e comida dinheiro e roupa lavada Quando a polícia vier e souber quem paga a casa pra homem é mulher379. Depois que ele desceu do morro passa fome pra cachorro E ofereço meu socorro e ele diz que não quer... Diz que não depende de favores de mulher (...) Pra viver na cidade atirado nas ruas como um cão Ele que volte pro morro e venha viver no meu barracão380.

SD:

Para a mulher do morro, pobre, negra, ou para a suburbana que viajava de trem de Bangu para

o centro do Rio, trabalhar, era uma questão de sobrevivência.

BR/RF: Lata d’água na cabeça lá vai Maria, lá vai Maria. Sobe o moro e não se cansa, pela mão leva criança, lá vai Maria. Maria lava roupa lá no alto lutando pela pão de cada dia. Sonhando com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia381. Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando. Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando To lavando a minha roupa, lá em casa tão me chamando, dondon. Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando382.

SD:

Longe de ser uma postura libertária ou feminista, a mulher pobre trabalhava para completar a

renda da casa em que o salário do homem mostrava-se insuficiente.

379 Quando a polícia vier. João da Baiana, 1915. 380 Volte pro morro. Adenilde Fonseca; Benedito Lacerda, Darci de Oliveira, 1942. 381 Lata d’água. Luís Antônio e J. Júnior, 1952. 382 Ensaboa. Cartola, 1975.

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Apesar de encontrarmos algumas mulheres trabalhando em casas de comércio ou como operárias, o serviço doméstico era o principal reduto ocupacional das mulheres pobres. A tabela de profissões do Distrito Federal de 1906 indica que, do total de 117.904 pessoas que se declararam empregadas em serviço doméstico, 94.730, eram mulheres e apenas 23.174 eram homens. O trabalho remunerado da mulher pobre, portanto, era, em geral, uma extensão de suas funções domésticas, sendo realizado dentro de sua própria casa ou na casa da família que a empregava. Sendo assim, era relativamente fácil para essas mulheres arrumarem uma colocação como lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, etc. Muitas ainda se dedicavam a fazer doces e salgadinhos em casa, indo depois para a rua vendê-los junto com os filhos mais crescidos (CHALHOUB, 1986, P.137).

A possibilidade de arrumar trabalho doméstico com alguma facilidade colocava a mulher

pobre numa posição de relativa independência em relação a seu homem (CHALHOUB, 1986,

p.137). Porém, esse lugar de importância dentro do ambiente conjugal não livrou a mulher da

violência de seus companheiros, ao contrário, quanto menos a mulher se colocava no lugar de

submissão e passividade, mais era vítima de agressões domésticas.

RF: Na subida do morro me contaram Que você bateu na minha nêga Isso não é direito Bater numa mulher que não é sua383.

SD:

Vale afirmar ainda que o discurso que constrói o signo mulher urbana, inclusive a da favela,

como traiçoeiro ou submisso às pancadas do homem (justificadas pelo mesmo discurso),

retro-alimenta outra construção do signo mulher em relação à roça e ao subúrbio, no que diz

respeito à Arcádia que as duas sínteses territoriais inscrevem. Assim, em Mulher Boêmia384,

1928, como estratégia de defesa à maldade das mulheres da cidade, a fala afirma: “vou me

esconder lá no sertão” – sugerindo que lá as mulheres seriam mais honestas do que na cidade.

Em Até hoje não voltou385, 1946, também se inocenta a mulher da roça que só se desvirtua

quando conhece os prazeres da cidade grande: “eu fui buscar uma mulher na roça que não

gostasse de samba e nem gostasse de troça, uma semana depois que aqui chegou mandou

esticar os cabelos e a unha dos pés pintou, foi dançar na gafieira e nunca mais voltou”. Essa

construção positiva do signo mulher da roça/subúrbio em relação ao signo mulher da cidade,

que aí se confunde com a favela, parece ajuizar-se de forma hegemônica no cancioneiro.

CM:

Eu vou voltar que não agüento.

383 Na subida do morro. Moreira da Silva; Ribeiro Cunha. 384 Mulher Boêmia. L. Barbosa e Pixinguinha, 1928. 385 Até hoje não voltou. Geraldo Pereira, J. Portela, 1946.

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O Rio de Janeiro não me sai do pensamento. As mulheres na areia se deitam de todo o jeito Que o coração do sujeito chega a mudar a pancada E muitas delas vestem um tal de biquíni. Se o cabra não se previne dá uma confusão danada386

Zé matuto foi a praia, só pra ver como é que é Mas voltou ruim da bola de ver tanta rabichola nas cadeira das muié Zé matuto matutou, matutou e escreveu pra Clodovil Ele logo respostou, e atacou, isso é atraso do Brasil Uma tanga, minitanga, tão pequena, pititinha, miudinha não precisa amarrar... Ora pomba ora bolas, jogue fora a rabichola e deixa a tanga voar...387 Vou mudar para a cidade vou deixar o meu sertão Eu gosto de novidade no sertão não encontro não A moda que mais me prende é a moda da cidade Saia curta e perna grossa morena de qualidade Moça bonita cheia de tanta vaidade Deixa a gente bem tantan com tanto balangandâ388 Certa veiz tive um "desejo" de prová um mér de um bejo da boquinha de vancê. Lá no trio da baixada pertinho da encruziada debaxo de um pé de ipê. Mas o destino é traiçoero e me deixô na solidão. Foi-se embora pra cidade me deixou triste saudade neste pobre coração389. Me deixaste no sertão abandonado Tua casinha lá no alto da montanha Agora é tão estranha tem mesmo a cor da saudade Me desprezaste por um outro da cidade390 Deixa a cidade formosa morena Linda pequena e volta ao sertão Volta pra vida serena da roça Naquela palhoça no alto da serra391 Quando eu me alembro de deixar Copacabana E as morenas que eu tenho visto por cá Eu fico triste, sinto frio, sinto medo E fico me achando todo azedo e com vontade de chorar

386 Xote de Copacabana. Jackson do Pandeiro, 1956. 387 Deixa a tanga voar. Luís Gonzaga; João Silva. 388 A moda da cidade. Antenógenes Silva, Antoninho de Moraes, 1940. 389 Pé de Ipê. Tonico e Tinoco, 1963. 390 Cabocla. Tonico e Tinoco, 1958. 391 Chuá, Chuá. Pedro de Sá Pereira, Ary Pavão, Marques Porto, 1925.

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Mas mesmo assim, adeus, o morena dengosa Me desculpe, mais a Rosa tá em primeiro lugar392 Moça se vestir de cobra E dizer que é distração Vocês cá da capital Me desculpem esta expressão No Ceará não tem disso não393 Já não se usa mais meia que é pra fazer economia Pinta a cara que parece porta de tinturaria Passo o dia lá na cidade eu parei pra ver até Agora já ta na moda pintar as unhas do pé Até os corte de cabelo que nos homens é natural Há tempos pegou nas moças e nas velhas foi parar394

SD:

Depois dessa exegese discursiva do CM, (que parece cada vez mais a vontade no jogo) já deu

para o Seu Doutor, perceber que nem sempre as opiniões coincidem no que diz respeito às

qualidades da mulher da roça e da mulher da cidade. Aliás, se as opiniões sobre as diferenças

entre urbano e rural já não coincidem entre nós, Seus Doutores, porque haveriam de coincidir

entre CM, BR e RF? Não coincidem no sentido de que a qualificação da mulher da roça como

séria, honesta e tradicional muitas vezes é invertida na construção daquela que abandona a

roça e vai para a cidade. Por outro lado, a mulher da cidade na fala de CM, por vezes, é

inscrita como a mais atraente e interessante, mesmo, para o homem da roça. Mas, se o dissídio

não deve, nem pretende, chegar ao consenso, faz avançar o campo temático para novos

diálogos e debates. Faz mover o jogo. Assim, a questão urbano/rural que outra vez se abre

para encontros e diferenças, diz respeito ao do sentimento da saudade presente nos polos

dicotômicos subúrbio/cidade, favela/cidade e roça/cidade. Apesar de já referenciado

anteriormente vale a pena retornarmos a eles, enfatizando o signo de Arcádia como forma

preferencial de expressão da origem inventada favela/subúrbio/roça.

BR:

Favela ô, Favela, Favela que trago no meu coração. Ao recordar com saudade a minha felicidade Favela do sonho de amor e do samba-canção Hoje tão longe de ti se vejo a lua surgir Relembro a batucada eu começo a chorar Favela das noites de samba, berço dourado dos bambas. Favela é tudo o que eu posso falar Minha Favela querida onde eu senti minha vida

392 Adeus, Rio. Luís Gonzaga, Zé Dantas, 1953. 393 No Ceará não tem disso não. Luís Gonzaga, Guio de Moraes, 1950. 394 As modas femininas Florenço, Raul Torres, 1944.

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Presa a um romance de amor numa doce ilusão Em uma saudade bem rara na distância que nos separa. Eu guardo de ti esta recordação395. A noite lá no morro é tão bonita que parece uma aquarela Deslumbrante fantasia no cenário do luar A vida agitada das ruas de asfalto não deixa um momento pra gente sonhar Quem sonha prefere viver lá no alto mais perto do céu e por cima do mar396 No meu barraco não tenho mobília Porque mobília é futilidade Também não tenho brigas de família Não ter família é que é felicidade No meu barraco a comida é pouca Não tem quitutes nem variedades Porém se come com uma fome louca Comer com fome que felicidade... Lá não tem gás nem eletricidade Não pago a luz não pago imposto397...

SD: O signo favela, como cantado no cancioneiro popular, principalmente, a partir dos anos 30,

expressa o sentido de Arcádia, comunidade de pessoas, palco de solidariedades e

reciprocidades que contradiz o discurso da modernidade impessoal signo que reverbera

hegemonicamente no signo cidade. A essa construção discursiva corresponde um processo de

transformação na maneira de se inscrever e sentir o signo favela, construído a partir de falas

internas e externas ao território. Alimentando e retroalimentado por práticas lúdicas e relações

de vizinhança entre sujeitos internos, assim como, entre sujeitos internos e externos ao

território delimitado pela permanente construção do signo favela.

BR:

Nossas roupas comuns dependuradas Na corda, qual bandeiras agitadas Pareciam estranho festival! Festa dos nossos trapos coloridos A mostrar que nos morros mal vestidos É sempre feriado nacional A porta do barraco era sem trinco Mas a lua, furando o nosso zinco Salpicava de estrelas nosso chão Tu pisavas os astros, distraída,

395 Favela. (I) Francisco Alves – (C) Roberto Martins e Waldemar Silva, 1936. 396 Fantasia. Dunga, Mario Rossi, 1945. 397 Meu barraco. Dilu Melo, Duque, 1946.

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Sem saber que a ventura desta vida É a cabrocha, o luar e o violão398 Barracão de zinco sem telhado Sem pintura, lá no morro Barracão é bangalô Lá não existe felicidade de arranha-céu Pois quem mora lá no morro Já está pertinho do céu Tem alvorada tem passarada alvorecer Sinfonia de pardais anunciando o amanhecer E o morro inteiro no fim do dia Reza uma prece Ave-Maria.399

SD:

Às vezes, o sentimento de Arcádia, que a despeito da carência material persiste como valor

positivo, diz respeito mais ao tempo passado do que ao lugar que resiste a modernidade.

Ainda assim, é possível sentir o lugar atuando de forma inseparável à ação que a fala inscreve.

Garoto da rua que anda rasgado, Com bolso pesado de bolas de gude, Que estuda sem livros a filosofia, Buscando alegria num fardo tão rude. Garoto da rua que corre na frente Da turma valente que tasca balão, Na bola de meia é craque afamado. É rei coroado cravando pião. Garoto da rua que é bamba da zona Que pega carona melhor que ninguém, Ao vê-lo, relembro saudosa quimera, Do tempo que eu era garoto também400. Teco-teco-teco-teco na bola de gude era o meu viver Quando criança no meio da garotada com a sacola do lado só jogava pra valer Não fazia roupas de bonecas nem tampouco comidinhas Com as garotas do meu bairro que era natural Subia em poste, soltava papagaio Até meus quatorze anos era esse o meu mal401

SD:

Considerando-se as múltiplas falas do cancioneiro popular é óbvio que certo discurso de

exaltação propondo uma cidade maravilhosa, uma cidade do progresso, uma cidade de

398 Chão de estrelas. Orestes Barbosa, Silvio Caldas, 1950. 399 Ave-Maria do morro, Trio de ouro; Herivelto Martins, 1942. A atmosfera sacra que inspira a canção aproxima o morro do monastério, talvez mais, do próprio paraíso que se descortinaria aos olhos dos moradores da favela ao entoarem o cântico acompanhado da sinfonia que verte do assovio dos pardais. Os sentidos de pureza, virtude, solidariedade, congraçamento e beleza convergem na beatitude do canto. 400 Garoto de rua. René Bittemcourt, 1946. 401 Teço-teco. Ademilde Fonseca, 1950.

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amores, flores e belezas sem igual, objeto de afetos e orgulho proliferou em canções por todo

o Brasil. Esse espírito exaltado do signo citadino não deve ser omitido em nosso jogo.

BR:

Cidade de amor e aventura que tem mais doçura que uma ilusão Cidade mais bela que o sorriso, maior que o paraíso melhor que a tentação Cidade que ninguém resiste na beleza triste de um samba-canção Cidade de flores sem abrolhos que encantando nossos olhos prende o nosso coração Cidade notável, Inimitável, Maior e mais bela que outra qualquer. Cidade sensível, Irresistível, Cidade do amor, cidade mulher. Cidade de sonho e grandeza que guarda riqueza na terra e no mar Cidade do céu sempre azulado, teu Sol é namorado da noite de luar Cidade padrão de beleza, foi a natureza quem te protegeu Cidade de amores sem pecado, foi juntinho ao Corcovado que Jesus Cristo nasceu402 Cidade do arranha-céu e da garoa também Quem vive pertinho mil felicidades tem Terra das morenas terras das loirinhas Oitava maravilha céu das andorinhas Terra qeu Deus abençoou meu São Paulo da garoa Terra do sorriso berço da nobreza Terra da canção céu da natureza És a rainha entre as mil paraíso do Brasil403 Aonde estão teus sobrados de longos telhados e teus lampiões E os moços da academia... e as sinhazinhas delgadas? (...) O tempo tudo mudou mas não apagou a tua poesia A garoa cai a toa pra guardar a tradição São Paulo num so minuto é o Brás, Tietê, viaduto, Barraca de flores e a multidão. Os pardais em madrigais o sol rasgando a cerração. E a noite com seus pintores Apagando e acendendo em cores teu nome no meu coração404. Olinda, cidade heróica, monumento secular da velha geração... Olinda! Seras eterna e eternamente viveras no meu coração! Quisera ver teu passado, Olinda, Quando era ainda cheia de ilusão, Para contemplar a tua paisagem Para olhar teus mares, ver teus coqueirais... Pular na rua com a meninada, Brincar de roda e de cirandinha... Depois subir a ladeira do mosteiro, Rezar a Ave Maria E nada mais... Olinda! Eterna!405

Eu ando pelo recife, noites sem fim, percorro bairros distantes sempre a escutar Luanda, luanda, onde está? É alma de preto a penar Recife, cidade lendária de pretas de engenho cheirando a banguê Recife de velhos sobrados, compridos, escuros faz gosto se ver

402 Cidade mulher. Orlando Silva; Noel Rosa, 1936. 403 Cidade do arranha-céu. Orlando Silva; Alvarenga, Edgard Cardoso, Ranchinho, s.d. 404 Perfil de São Paulo. Silvio Caldas – (C.) Francisco de Assis, Bezerra de Menezes, 1954. p5 405 Olinda, cidade eterna. Capiba, 1950 p3

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Recife teus lindos jardins recebem a brisa que vem do alto mar Recife teu céu tão bonito tem noites de lua pra gente cantar Recife de cantadores vivendo da glória, em pleno terreiro Recife dos maracatus dos tempos distantes de pedro primeiro Responde ao que eu vou perguntar: Que é feito dos teus lampiões? Onde outrora os boêmios cantavam suas lindas canções 406

Bahia, Bahia, é com lágrimas nos olhos que eu me despeço até um dia Adeus senhor do Bonfim adeus Bahia bonita que sambou pra mim Bahia cidade velha cheia de recordações És pra aí um calendário do passado, tradições Tantos sambas tantos versos já fizeram prá você Mas, não conseguem dizer o que você é, porquê?407

CM:

São Salvador, Bahia de São Salvador a terra de Nosso Senhor Pedaço de terra que é meu São Salvador, Bahia de São Salvador a terra do branco mulato A terra do preto doutor São Salvador, Bahia de São Salvador a terra do Nosso Senhor Do Nosso Senhor do Bonfim Oh Bahia, Bahia cidade de São Salvador Bahia oh, Bahia cidade de São Salvador408 Nas sacadas dos sobrados Da velha São Salvador Há lembranças de donzelas, Do tempo do Imperador. Tudo, tudo na Bahia Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito, Que nenhuma terra tem!409 Chego até ficar maluco com o rasqueado apaixonado Essa musica penetra no meu peito amargurado Faz lembrar do Paraguai essa boa terra irmã Faz lembrar Porto Esperança faz lembrar Ponta-porã Meu prazer seria ouvir rasqueado a vida inteira Faz lembrar as noites lindas que eu passei lá na fronteira Lembro então Porto Motim, Bela Vista e Corumbá Tres Lagoas, Campo Grande, Aquidauana e cuiabá410 Ai que saudade lá de Pernambuco (...) Quando eu me lembro dá vontade de chorar Daquelas pontes do Capibaribe das caçadas em bibiribe e das noites de luar Dos valentões com peixeira na cinta e um punhal de sobreaviso e a rasteira a vadiar Em Pernambuco tudo é diferente como é boa aquela gente Quem vai lá não quer voltar411

406 Recife, cidade lendária. Capiba, 1950. p3 407 Cidade velha. Dircinha Batista; Grande Otelo, Herivelto Martins, 1942. 408 São Salvador. Dorival Caymmi, 1950. p3 409 Você já foi a Bahia? Dorival Caymmi, 1941. p5 410 Cidade de Matogrosso. Trio Marabá; Arlindo Pinto, Mário Zan, 1952. p3 411 Saudade de Pernambuco. Luis Gonzaga – Micelli, Rosendo, s.d. p5

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SD:

Porém, convivendo com “Cidade Maravilhosa412” ou “Valsa de uma cidade413”, há um

discurso que inscreve o signo favela/subúrbio/roça como lugar que desperta saudades por

quem o trocou pela cidade. O signo favela/subúrbio/roça é experimentado pela inscrição de

sentimentos nobres, genuínos, em oposição ao signo cidade, território do orgulho, da

falsidade, do sarcasmo e do vício.

BR/RF: O morro começa ali onde o sambista sorri ao choro dos violões O morro só principia onde acaba a hipocrisia que domina nos salões O morro é diferente todo mundo é inteligente embora sem instrução Há perfume pela mata castelos feitos de lata onde não mora a ambição Ali no morro começa uma vida que não cessa de nos dar lições de amor O morro começa ali onde o sambista sorri perto do Nosso Senhor414

Lá no morro todo caixote é cadeira todo colchão é de esteira Vela acesa, iluminação (...). Rico é visita no meio da gente, pedra arrumada é fogão bem eficiente. Ir lá no morro é saber da verdade não há fingimentos como há na cidade Tudo no morro é tão diferente todo vizinho é amigo da gente Há um batuque, nossa maravilha, toda cabrocha pertence à família. Tudo no morro é melhor que na cidade tanto na dor quanto na felicidade Quando a cidade adormece sonhando o morro penetra na noite cantando.415

BR/CM: Cidade do interior tem a sua estação de trem Um clube a matriz um jardim e um baile mensal familiar Tem um cinema modesto e um pequeno jornal Que sai todo domingo e quando é feriado nacional Cidade do interior tem um grupo escolar também E um rio que passa cantando espelhando o luar E o ideal que todos têm no interior é crescer e casar para saber o que é o amor416

CM: Vamos passar o São João no Barro Preto Pular fogueira e brincar lá no coreto Comer biscoito de polvilho saboroso Tomar quentão bem quentinho e gostoso417

SD:

Músicas idealizando o morro como “Arcádia” parecem não ter fim. Eu vivia no morro418,

1936 “ao som do lamento do meu violão, mas um dia vim pra cidade onde vivo chorando em

412 Cidade maravilhosa. Aurora Miranda; André Filho, 1937. p3 413 Valsa de uma cidade. Lúcio Alves; Antonio Maria, Ismael Neto, 1954. p3 414 O morro começa ali (Custódio Mesquita e Heber de Boscoli, 1941) p4 415 Vida no morro. Odete Amaral (Hanibal Cruz, 1942). P4 416 Cidade do interior. Araci de Almeida; Marino Pinto, Mario Rossi, 1947. 417 São João no Barro Preto. Linda Batista – Grande Otelo, 1944. t0 418 Eu vivia no morro. Sonia Carvalho; Assis Valente, 1936. p4

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vão a minha saudade... eu não sabia que na cidade só tem mentira e falsidade”. Quando eu

desço lá do morro419, 1940, “Ela sabe que eu sou pobre até demais e diz a todo mundo que

sou um bom rapaz, não acredito e quero a confirmação se ela troca um palacete pelo meu

barracão”. Palacete de malandro420, 1933, “Meu barracão é um palácio na minha

imaginação, nem por todo o dinheiro do mundo vou morar em outro lugar”. Gosto mais do

Salgueiro421, 1943, “Não posso sair do Salgueiro, estamos em fevereiro, você me levar pra

Copacabana quer me ver toda bacana, mas já tenho um pandeiro”. Exaltação ao Salgueiro422,

s.d., “és a natureza em flor, um ninho de amor tu és a paz, terra adorada dos sambistas

imortais”. Mundo de madeira423, 1955, “Lá na barreira do Vasco eu também tenho um

barracão pra repousar meu casco, lata de banha furada é fogão, barril cerrado no meio é

banheira, luz da Light é lampião, tudo é diferente naquele mundo de madeira”. Subi o

morro424, 1943, “vi as cabrochas requebrando as cadeiras como ninguém tem, vi um tipo de

mulato esquisito que com seu apito chamava a atenção e a cuíca na velha marcação e logo

uma cabrocha grita esquidô, esquidô evolução”. Luar do morro425, 1937, “a lua lá no morro

já brilhou, clareando o barracão e o malandro que perdeu o seu amor faz o samba da saudade

que ele tem no coração”. Não deixarei o morro426, 1937, “pois a mim não seduziram as

belezas da cidade”. Eu nasci no morro427, 1945, “Num pobre barracão de caixão, vida de

cachorro, pé no chão sem tostão, depois segui meu caminho eu sozinho conheci o luxo a

vaidade lá da cidade, meus amores não duravam mais que um dia, lugar melhor não encontrei,

no morro nasci e no morro morrerei”. Melodia do morro428, 1955, “Lá no morro a tristeza

não tem jeito nem tem hora é o samba quem manda com certeza toda a tristeza embora”.

Assim é o morro429, 1955, “O morro é assim á tudo diferente amanhece a batucar, anoitece a

cantar um samba comovente que mexe com a gente”. Favela Morena430, 1943, “Minha favela

morena das noites de batucada toda vestida de chita e de sandália encarnada favela das

serenatas berço do samba dolente da melodia amarela que fere a alma da gente”. Na favela431,

1932, “tem um samba onde se quebra a canela, foi onde nasceu minha bela”. Exaltação da

419 Quando eu desço lá do morro. Patrício Teixeira; Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1940. p4 420 Palacete de malandro. Custódio Mesquita, 1933. 421 Gosto mais do Salgueiro. Germano Augusto, Wilson Batista, 1943. t3 422 Exaltação ao Salgueiro. Éden Silva, hAnibal Silva, Nilo Moreira, s.d. t3 423 Mundo de madeira. Jorge de Castro, Wilson Batista, 1955. t3 424 Subi o morro. Odete Amaral; João de Deus, Sebastião Figueiredo, 1943. p4 425 Luar do morro. Odete Amaral; Valfredo Silva, 1937. p4 426 Não deixarei o morro. Odete Amaral; Juraci Araújo, A. Pimentel, 1937. p4 427 Eu nasci no morro. Déo; Ary Barroso, 1945. p4 428 Melodia do morro. Ataulfo Alves, Luis de França, Nelson Bastos, 1955. p4 429 Assim é o morro. Hélio Chaves; Zé Kéti, 1955. p4 430 Favela Morena. Odete Amaral – Estanislau Silva, João Peres, 1940. p4 431 Na Favela. Moreira da Silva. Getulio Marinho, 1932. p4

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Favela432, 1936, “quando a cidade a seus pés dorme o sono cansada, o pinho geme no morro

anunciando o cantor, qual vaga-lume no céu a lua ilumina a alvorada, uma casa de zinco onde

mora o seu amor”. Sem exagero, é possível cobrir páginas e páginas com exemplos iguais a

estes. Nessa profusão de vozes convergentes sobre a idealização da favela, deve-se considerar,

como colocado, que muitas delas não emergiam necessariamente da favela, mas, da cidade.

Isso pode ser interpretado como um território de consenso, entre vozes do morro e do asfalto

no que diz respeito à valoração do signo morro.

BR:

Já percorri os morros da cidade pra ver se era verdade o que dizem por aí E ver de perto o sambista bamba que é quem faz o bom samba e vejam só o que eu vi Vi coisa que não foi sopa vi muita tina de roupa vi muito aluguel barato A gente logo percebe que água que o boi não bebe lá no morro é mato Vi muita coisa engraçada vi em cada encruzilhada um feitiço uma muamba Eu vi gato e vi cachorro e sabe o que eu não vi? Samba433

SD:

Poxa, mas será que nem o signo do morro/samba vocês vão respeitar? Pelo menos concordam

que o morro é o lugar da pobreza, assim, historicamente construído, não é?

BR:

Há um morro na cidade de São Sebastião onde o samba não vai, não vai, não vai não. Esse morro é o morro de Santa Tereza onde o bonde a 80 centavos E o samba não pode fazer essa despesa, pandeiro, tamborim e violão, Lá não tem cotação, morro de grã-fino o samba não vai não, mas eu vou434.

SD:

Está bem concordo com mais esse contra-exemplo de vocês, mas estou falando de forma

hegemônica, assim não dá, tudo que eu digo sempre pode ser negado por vocês. Assim, minha

fala vai ficar cheia de furos.

BR:

De tanto levar frechada do teu olhar meu peito até parece sabe o que? Tálbua de tiro ao Álvaro, não tem mais onde furar...435

SD:

Vou fazer de conta que não entendi a piada. Como dizia, claro que contra-exemplos também

existiram, mas, a construção do signo favela como Arcádia era hegemônica, e tão presente

quanto o discurso ufanista nacionalista cuja expressão mais evidente “Aquarela do Brasil” foi

432 Exaltação da favela. Irmãs Pagãs – Custódio Mesquita, 1936. p4 433 Lenda do morro. Quatro ases e um coringa; Afonso Teixeira, Peterpan, 1944. p4 434 Morro de Santa Tereza. (I) Quatro ases e um coringa – (C) Herivelto Martins, 1949. p4 435 Tiro ao Álvaro. Adoniran Barbosa, 1950.

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devidamente apropriada pelo discurso de construção do signo favela em “Aquarela do

Morro”, exaltando as virtudes e belezas da favela.

BR: Noite majestosa. Mulata dengosa no terreiro a gingar. Sambistas apaixonados cantando. Tocando pandeiro pra ela sambar. Ó que melodia diferente sua poesia é tão bela. O morro que fez o samba entrar no coração da gente. Também tem a sua aquarela436.

CM:

No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra, Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra. Juriti não suspira, inhambú seu canto encerra. Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra. Acauã, bem no alto do pau-ferro, canta forte, Como que reclamando sua falta de sorte. Asa branca, sedenta, vai chegando na bebida. Não tem água a lagoa, já está ressequida437.

BR: Negras redondas de gordas levando a comida dos negros suados, Dos negros cansados de capinar; bate o monjolo a cadência do milho socado. Moleque, olha o gado, inda está no curral. Põe prá pastar! Roda o engenho de cana, de cana caiana É de manhãzinha... A vida começa, na Fazenda da Barrinha Minas Gerais, ó meu Minas Gerais, Se eu pudesse voltar a trinta anos atrás tocava os meus bois, Fumava escondido entre os cafezais. Ó tempinho bom, que não volta mais! Em Minas Gerais, tem ferro, tem ouro, tutu, tem gado Zebú, Tem também, umas toadas, alma sonora das quebradas... Encantos das noites de luar... E a história do Brasil tem muitas páginas heróicas, imortais Escritas, com sangue mineiro, salve, o meu estado de Minas Gerais!438

SD:

Haja aquarela e lápis de cor! O CM resolveu se manifestar com sua “Aquarela Nordestina”,

que a meu ver me parece mais anti-aquarélica, visto que insiste na dicção da perda/falta como

especificado anteriormente e o BR, para não fazer por menos mandou sua Aquarela Mineira.

Mas, sem descuidar dessa outra dicotomia estabelecida entre a roça e a cidade, gostaria que

insistíssemos um pouco mais na tensão entre os signos favela/cidade.

BR:

436 Aquarela do morro. A. Canegal, V. Silva, 1952. P4 437 Aquarela Nordestina. Luís Gonzaga, Rosil cavalcanti, 1947. 438 Aquarela Mineira. (I) Francisco Alves – (C) Ary Barroso, 1950. (buscar)

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O sino da capela está batendo, Favela também tem religião Favela tem madame no bangalô, Favela tem cabrocha de pé no chão Favela fica perto da Gambôa, Favela de sete coroas Favela sempre teve tradição eu morei lá no tempo do Lampião Minha cabrocha do lado eu parecia um bom moço Tinha um chinelo Charlotte e um lenço no pescoço.439

SD:

BR apresenta uma “História da Favela” que se inspira em princípios próximos daqueles que

norteiam discursos oficiais encarregados de inventar “Histórias” para o país, para o povo, para

as regiões, para a Capital Federal e demais cidades a partir da invenção de um passado de

glória, em que se destacam episódios e personagens importantes. Sobre essa invenção com

base no reforço de signos que objetivam despertar orgulho do lugar gostaríamos agora de

convidar outro sujeito discursivo ainda tratando do binômio cidade/favela. Trata-se de um tipo

próximo do Seu Doutor, mas, que anda pelas quebradas da malandragem com menos

distanciamento que o SD da Academia. É o jornalista, cronista, bom de copo que não se furta,

depois de umas e outras, a arriscar uns versos de improviso nos botecos e rodas de samba que

o percebem como outro, porém, com menos reverência e mais simpatia. Vejamos o que ele

diz dessa construção polarizada entre os signos favela e cidade.

SD cronista:

Só indo lá mesmo. E é preciso acabar com essa história de que o morro é terra de malandro. Eu, já fui várias vezes a vários morros e já morei vários meses em Copacabana, sou capaz de jurar que nos apartamentos da areia há mais malandros que nas casinhas de lata velha lá por cima. A grande maioria da população do morro é de trabalhadores, sujeitos que pegam no duro todo dia, que vivem suando. A malandragem existe mais no samba que na realidade. O batente é o mais comum. Malandros não teriam, por exemplo, capacidade para organizar uma escola de samba. Para isso é preciso ter espírito, a disciplina, a força de vontade de um trabalhador. E os morros estão cheios de escolas onde pode haver cachaça, mas há muita alegria, bastante respeito e, às vezes uma disciplina quase militar. (...) Quando falo que nas escolas de samba há muita alegria, não quero que se confunda alegria com bagunça. Ali não há cerimônia, mas também não há gandaia solta. (...) O cavalheiro que se dispõe a ir ao morro, mesmo com sua senhora, irmã, noiva, namorada, tia ou bisavó, não necessita levar uma metralhadora nem uma pistola de gás lacrimogêneo. A sua bolsa e a sua mulher não correm tanto perigo. A sua mulher, pelo menos, na sua descida do morro lhe dirá que foi tratada infinitamente com mais respeito do que quando passava pela Avenida, sábado de tarde. Um amigo meu foi há tempos a um morro. Havia bebido demais (...) Em pleno caos alcoólico deixou de saber o que estava fazendo.Acordou no dia seguinte numa cama ao lado de um mulato e uma mulata que o haviam rebocado até ali por caridade e ainda lhe deram café e dinheiro para o ônibus que o conduziria ao seu luxuoso apartamento em Ipanema. Vamos, portanto, para o morro ouvir as primeiras cuícas do carnaval do ano que vem. Não precisamos levar armas. Levemos ouvido e coração, para ouvir e para sentir. Não aprenderemos música. Mas sentiremos

439 História da Favela. Nássara, Wilson Batista, 1953.

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coisas que são tristes e belas e que é bom sentir. Aprenderemos sentimento. (O morro não é dos malandros. BRAGA, 1936. In: Rio Artes, p. 28, 2003).

(E continua em outra fala de algumas décadas depois)

Um domingo, mas não apenas algumas horas, todo um domingo, Lamartine Babo contaminou a Mangueira com sua alegria alvoroçante, comunicativa. Convidado para saborear uma muqueca que seria preparada pela D.Zica, companheira do famoso Cartola (Angenor de Oliveira) em homenagem a Marcel Camus, o cineasta francês chegado ao Rio para aqui realizar o Orfeu do Carnaval, o Lalá acedeu prontamente. Teria não só a grata oportunidade de visitando o decantado morro reencontrar uma de suas figuras mais expressivas e que tem o seu nome ligado à vitoriosa Estação Primeira (a aplaudida escola de samba dos suntuosos desfiles de nosso carnaval). Iria, ao mesmo tempo, conhecer um estrangeiro interessado em dar toda a autenticidade ao seu filme que, embora vivendo uma lenda mitológica, ia ter como ambiente o morro com seus barracos e sua gente. E pairando sobre tudo isso, a música simples e espontânea que ali nasce. Pouco depois, na roda que se formou antecedendo ao almoço, na qual havia tocadores de violão, de pandeiro, de tamborins, todos convocados por Cartola, Lamartine cantava suas composições empolgando um auditório numeroso e que ia aumentando continuamente. (...) Cartola entoava também os seus sambas. O morro e o asfalto cantando juntos e embevecendo Camus que, pela primeira vez, via e ouvia o ritmo brasileiro em várias de suas nuances e numa exibição pura, emoldurada por um cenário exato. Findo o almoço, formou-se novamente a roda e então, mais animada, a mostra das canções do morro e do asfalto prosseguiu empolgante na interpretação de duas figuras exponenciais: Cartola e Lamartine Babo. Desse domingo festivo, de gala para a música popular brasileira, ficou uma recordação muito grata entre a gente da Mangueira desejosa de uma nova visita do querido compositor da cidade que com ela comungou casando sua música com a do sambista dali, do morro. Esse reencontro, a volta de Lamartine ao morro, não deixará de ser cumprido por sua morte. Ele voltará, não somente num domingo, mas sempre que alguma de suas composições, ali se fizer ouvir, tornando-o presente numa evocação saudosa e amiga (EFEGÊ. “O morro e o asfalto cantando juntos”, p.72, 1968).

SD:

Aqui, faz-se necessário pôr um sinal de alerta mais direcionado aos Seus Doutores do que a

BR, RF e CM, porém, sintam-se livres para opinar também. Ainda que se considerem as

condições sociais e políticas construídas de forma reflexiva por sujeitos discursivos, da

literatura, imprensa ou certa produção da sociologia que, em diálogo com o cancioneiro,

produziram dialogismo, vale como alerta de ordem epistemológica, não supor a urbanidade

brasileira como um real dado do qual o cancioneiro (através do discurso de sujeitos

discursivos) constituiria representação. Deve-se, isso sim, pensar o cancioneiro, como um

domínio reflexivo que se expressa através de um tipo de discurso singular: a música. Como

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tal, é capaz de constituir e classificar objetos, produzir interpretações e juízos e sugerir modos

e formas de ação. O cancioneiro não constitui uma representação de algo designado como

urbanidade, construída autonomamente. O cancioneiro, através de sujeitos discursivos,

constitui para si uma urbanidade. Não negamos o processo de uma construção hegemônica de

urbanidade da qual o cancioneiro participa reafirmando-a, negando-a ou ignorando-a. Signos

da urbanidade, da ruralidade, do poder, da política se constituem no interior do próprio campo

rasurado ou subjétil ou suporte falante da música popular que, como visto, sofre

contaminações enquanto contamina à revelia.

BR:

Ia-Iá me deixa subir essa ladeira Eu sou do bloco que pega na chaleira. Lá vem o cordão dos “puxa-sacos” Dando vivas aos seus maiorais Quem está na frente é passado pra trás E o cordão dos puxa sacos cada vez aumenta mais Vossa excelência, vossa eminência. Quanta reverência nos cordões eleitorais. Mas, se o doutor cai do galho e vai ao chão. A turma toda evolui de opinião. E o cordão dos “puxa-sacos” cada vez aumenta mais440.

SD:

Essa contaminação entre o campo rasurado da música e da política strictu sensu se expressa

de forma bastante nítida na

apropriação da letra do samba “Com que roupa?”, de Noel Rosa, pelo parlamentar, Maurício de Lacerda, cuja tentativa de desvendar o sentido da revolução de 1930, em um contexto em que não estavam claros os caminhos que a nova ordem republicana imporia ao país, indagou: “... com que roupa? Fascista, comunista ou socialista?” (CARVALHO, p.50, 2004).

BR:

Com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?441 Eu prometo feijão! Não! Eu prometo carne! Não! Mas o que vocês querem? Nós queremos cacareco Ai Ai Ai Ai que confusão que fizeram com cacareco Ele passou de mão em mão hoje é um gostosão442.

440 Cordão dos “puxa-sacos”. E. Frazào e Roberto Martins, 1945. A ironia aumenta ao recordamos que o tema da canção faz referência à marcha carnavalesca “No bico da chaleira” que satirizava a mesma troca de favores no cenário político de 1907. Talvez, a história se repita para além da farsa, a despeito de Marx. 441 Com que roupa? Noel Rosa, 1930.

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Pode haver eleição lá no morro que o nosso presidente continua O presidente da nossa escola de samba tem trabalhado pra ver a turma sambar Mas como sempre há meia dúzia de fatos que, atrapalhando, não deixa o homem trabalhar. Não adianta oposição, estamos com o presidente, e ele está com a razão443.

Voar, voar pra bem distante até Versalles Onde duas mineirinhas valsinhas dançam. Como debutante, interessante. Mandar parente a jato pro dentista Almoçar com tenista campeão Também poder ser um bom artista exclusivista. Tomando com Dilermano umas aulinhas de violão Isso é viver como se aprova, é ser um Presidente Bossa Nova444. Arranjo emprego pra quem está desempregado Arranjo água pra quem tem cano furado (...) Eu sou protetor de quem é fraco e oprimido Eu nunca fui fingido como alguns amigos meus A minha capa preta não tem medo de careta Não dispenso para nem por nada neste mundo Se alguém folga comigo me avexe eu perco a linha Aí, eu taco o dedo no gatilho da lurdinha que tosse que é uma belezinha445 Varre, varre, varre, varre, varre vassourinha Varre, varre a bandalheira Que o povo já está cansado De sofrer desta maneira Jânio Quadros é a esperança Desse povo abandonado446

Meu Brasil segue em frente vamos na onda moçada J-J foi a maior barbada O que passou, passou vamos trabalhar Vamos tirar petróleo do solo belo Salve o pendão verde e amarelo447.

Gêgê, Juju, Janjão, Rua do Catete não tem placa no portão

442 Aí vem o cacareco. Lupe Ferreira, Raguinho, 1959. O voto cacareco: Itaboraí Martin, jornalista do Estado de S. Paulo e da Rádio Eldorado, desiludido com a baixa qualidade dos nomes a vereador nas eleições paulistas de 1959, comentou entre os amigos jornalistas que votaria em Cacareco. A brincadeira foi levada a sério. Itaboraí e seus colegas saíram pichando a cidade: “Cacareco para vereador”. E logo o paquiderme, rinoceronte, caiu nas graças da mídia e saltou aos olhos dos eleitorados. Entretanto, três dias antes da eleição, armaram contra a mais inusitada revelação do cenário político. Cacareco seria “exilado”: embarcaram-no num caminhão que o levaria de volta ao Rio de Janeiro. Na partida, um rio de gente deu adeus àquele que seria o maior nome do pleito municipal com estimados 90 mil votos. 443 Nosso Presidente continua. Aroldo Lobo, Wilson Batista, 1944. T3 444 Presidente Bossa Nova. Juca Chaves, 1960. 445 Bamba de Caxias. Moreira da Silva, Ribeiro Cunha, 1954. Fala de Tenório Cavalcante, deputado e pistoleiro do subúrbio de Caxias. T1 446 Varre varre vassourinha. Eldias de Castro, João da Terra, 1960. 447 Marcha do J-J. J. Goulart, Wilson Batista, 1955.t3

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Gêgê, Juju, Janjão quem será o homem para governar a pensão. Gegê, Juju, mon couer quem sabe se esse homem dessa vez vai ser mulher Tem café pro Gege Tem feijão pro Janjão, tem churrasco ao Juju no menu da pensão. Coma quem quiser se não os outros comem seja mulher ou seja homem448.

Meu bem pra me livrar da matraca Da língua de uma sogra infernal Eu comprei um trem blindado pra poder sair no carnaval Mulata quando eu te vi logo pedi anistia Pois os teus olhos lançavam terrível fuzilaria E pra ninguém aderir ao nosso acordo amoroso Botei na porta de casa um canhão misterioso449

SD:

A despeito desse jeito todo particular de falar da Revolução de 32 e do trem blindado que

supostamente seria usado pelas forças constitucionalistas em território paulista para atacar as

forças do Governo Provisório de Getúlio, considero que o discurso BR teve êxito pelo menos

ao colaborar na difusão da Revolução que, mesmo tratada com gravidade pela imprensa,

passava um tanto despercebida para boa parte da população, aliás, como a maioria dos signos

políticos que pareciam produzir conflitos apenas entre alas antagônicas das burguesias e do

oficialato militar. Simultaneamente às notícias e crônicas de jornais e revistas, o cancioneiro

popular elege e constitui seu próprio escopo de acontecimentos e assuntos muitas vezes

desconstruindo ou ignorando a versão oficial o que enriquece e anima sobremaneira o debate

político e politizador. O cancioneiro vai constituir suas próprias inscrições de uma miríade de

signos – signo de signo – como guerras mundiais, história do Brasil, futebol, relações de

vizinhança, trabalho, cidade, roça, celebridades públicas, política e poder dos quais explora

assuntos variados – a Política da Boa-vizinhança estadunidense, as campanhas presidenciais, a

repressão do Estado (polícia), o voto feminino, o voto de analfabetos, o populismo, o

nepotismo, os favorecimentos privados à custa do erário público e a compra de votos em

currais eleitorais.

RF:

Tenho saudades do terreiro e da Escola Eu sou do tempo do Cartola, Velha Guarda, o que que há? Eu sou do tempo que o malandro não descia Mas a polícia no morro também não subia450. Barulho no morro foi que houve no arrasta-pé Quando o Pedro deu um beijo na cabrocha do José

448 Pensão do Catete. Jaime de Brito; Lamartine, Milton Amaral, 1937. p3 449 Trem blindado. Braguinha, 1932. 450 Saudades da Mangueira. H. Martins, 1953. A alteridade entre o malandro e a polícia é reforçada pela oposição entre a tradição do morro e o progresso da cidade. P0

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Enquanto eles brigavam todo mundo assistia Foi preciso que a polícia desse fim na valentia451

BR: Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar. O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar452. Só mesmo com Revolução graças ao rádio e ao parabelo Nos vamos ter transformação nesse Brasil verde e amarelo, Getúlio. Certa menina do Encantado cujo papai foi senador Ao ver o povo de encarnado sem se pintar mudou de cor, Getúlio453. AI Gêgê que saudade que nós temos de você O feijão subiu de preço o café subiu também Carne seca anda por cima não se passa pra ninguém, Tudo sobe, sobe, sobe, no cartaz Só o pobre do cruzeiro cada dia desce mais454.

CM:

Eu agora vou cantar peço prestar atenção A política está forte na cidade e no sertão Tem uma grande diferença entre o pobre e o barão Rico tem tudo na vida, pobre não tem nada não455.

Meu patrão eu voto e sou eleitor, meu patrão, eu voto no senhor Eu voto por muito pouco, digo agora pro senhor E grito até ficar rouco, já ganhou, já ganhou! Quero roupa, quero sapato, camisa fina demais Quem não conhece o A.B.C. será que pode votar? Porque se puder atole o pé e voto no meu patrão, eu voto456.

SD: A especificação territorializante do subúrbio, da favela e da roça como lugar próximo que

inspira sentimento de conforto, de segurança, de tradição, lugar familiar em que se amparam

práticas de coletividade e pertencimento tem por contraste o signo cidade especificado como

território do progresso, do desconforto, do desconhecimento, do perigo. Alegria/tristeza da

favela, como um devir CM em RF e BR, contrasta com a outra alegria/tristeza da cidade.

BR/RF:

Se a turma lá do morro fizer greve e não descer A cidade vai ficar triste carnaval vai morrer Todos os morros querem saber qual é a ordem que vai prevalecer Se as escolas não tiverem liberdade carnaval vai ser no morro ninguém desce pra cidade457

451 Barulho no morro. Isaura Garcia; Roberto Martins, 1945. p4 452 Retrato do Velho. Haroldo Lobo, Marino Pinto, 1950. 453 Seu Getúlio. Almirante – L. Babo, 1931. p4 454 Ai Ge Ge! Jorge Goulart – Braguinha, José Maria de Abreu, 1950. p5 455 Rico e pobre. Gilverto e Gilmar. 456 Comício do mato. Joaquim Augusto, Nelson Barbalho, 1957. 457 Se o morro não descer. Araci de Almeida. Darci de Oliveira, Herivelto Martins, 1936. t2

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SD:

Apesar da construção polarizada morro x cidade, na fala anterior, é claro que alguma

contaminação também se produzirá entre essas percepções na construção dos signos

referentes ao rural/favela/subúrbio e à cidade.

CM:

Sr. réporter já que tá me entrevistando va anotando pra botar no seu jornal que meu Nordeste tá mudado publique isso pra ficar documentado Qualquer mocinha hoje veste mini-saia já tem homem com cabelo crescidinho O lambe-lambe no sertão já usa flashe carro de praça cobra pelo reloginho Já tem conjunto com guitarra americana já tem hotel que serve whisky escocês e tem matuto com gravata italiana ouvindo jogo no radinho japonês458 A minha prima lá do Piauí Deixou de fazer renda só pra ver novela A minha prima lá do Piauí Não bebe mais garapa: vai de coca-cola Luz de Candeeiro não se usa mais Luz artificial substitui o gás Calça de couro, alvorada e brim Deram o seu lugar pra uma tal calça lee A minha prima escreveu pra mim E não fala "venha cá", só fala "come here"459

BR: O cinema falado é o grande culpado da transformação Dessa gente que sente que um barracão prende mais que um xadrez Lá no morro se eu fizer uma falseta, a Risoleta Desiste logo do francês ou do inglês. A gíria que o nosso morro criou Bem cedo a cidade aceitou e usou Mais tarde o malandro deixou de sambar dando pinote E só querendo dançar o fox-trot. Essa gente hoje em dia que tem mania de exibição. Não se lembra que o samba Não tem tradução no idioma francês. Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia. É brasileiro, já passou do português (...)460.

RF: Eu sou diretora do Estácio de Sá E felicidade maior nesse mundo não há

458 Nordeste pra frente. Luiz Gonzaga, Luiz Queiroga, 1968. 459 From United States of Piauí. Luis Gonzaga, 1972. 460 Não tem tradução (Cinema falado). Noel rosa, 1933.

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Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema Ser estrela é bem fácil Sair do Estácio é que é o “X” do problema461.

CM: Não pretendo ser famoso nem quero ser milionário Moro longe da cidade num ranchinho solitário Não sou patrão de ninguém também não sou operário O sertão me dá de tudo não preciso de salário Pra vender colheita não tenho intermediário Não sou inteligente mas também não sou otário462

SD:

Por esse caminho interpretativo, apesar da resistência expressa nas duas últimas falas, o signo

de Arcádia passa a ser contaminado pela possibilidade de mudança assumida como progresso

transformador, independentemente do juízo de valor negativo ou positivo que o discurso

produza. De toda forma, podemos assumir que muitas vezes o discurso do cancioneiro

expressa, em maior ou menor grau, um sentido de resistência crítica que pode manifestar-se

de forma irônica ou como um alerta em relação aos perigos dessa contaminação.

RF/BR:

Eu só boto bebop no meu samba Quando o Tio Sam tocar um tamborim Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba Quando ele aprender que o samba não é rumba. Aí eu vou misturar Miami com Copacabana Chiclete eu misturo com banana E o meu samba vai ficar assim463 Não posso mais, ai que saudade do Brasil Ai que vontade que eu tenho de voltar Adeus América, essa terra é muito boa Mas não posso ficar porque O samba mandou me chamar O samba mandou me chamar Eu digo adeus ao boogie woogie, ao woogie boogie E ao swing também Chega de rocks, fox-trotes e pinotes Que isso não me convém Eu voltar pra cuíca, bater na barrica Tocar tamborim Chega de lights e all rights, good nights e fullfights Isso não dá mais pra mim Eu quero um samba feito só pra mim464

461 O X do problema. Noel Rosa, 1936. 462 Caboclo centenário. Dino Franco e Mourai 463 Chiclete com banana. (I) Jackson do Pandeiro – (C) Gordurinha e Almira Castilho, 1959. 464 Adeus América. Os cariocas – Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa, 1948. p4

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Eu quero ver você ficar de cachecol Sem cavaquinho sem pandeiro e violão Eu quero ver você sem ver a luz do sol Cantar um samba nas montanhas do Tirol Não é vantagem fazer samba no terreiro Com cabrocha com pandeiro com luar e violão Eu quero ver é fazer samba na suíça Onde a nossa moto enguiça vira gelo, picolé Sou brasileiro e do samba sou freguês Vou cantando como posso nem que seja em tirolês465 Onde anda meu samba tão brasileiro Estão tocando o meu samba com sotaque estrangeiro Quero ouvir o meu samba que é o primeiro Meu maestro toca um samba de cuíca e pandeiro466

SD:

Porém, também pode expressar consenso, conciliação com o movimento de transformação do

território referente ao signo de Arcádia. Essa conciliação manifesta-se desde uma atitude

submissa em relação ao discurso do poder (elites do Estado, do capital, do trabalho, da

academia) até a concretização de expectativas relativas à obtenção de vantagens resultantes

dessa aproximação com os discursos contaminadores.

BR

Eu sou o samba a voz do morro sou eu mesmo sim senhor Quero mostrar ao mundo que tenho valor eu sou o rei dos terreiros Eu sou o samba sou natural daqui do Rio de Janeiro Sou eu quem leva a alegria para milhões de corações brasileiros Mais um samba queremos samba Quem está pedindo é a voz do povo do país Viva o samba vamos cantando esta melodia pro Brasil feliz467 Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor Eu fui à Penha fui pedir à padroeira para me ajudar Salve o Morro do Vintém, Pindura-saia, eu quero ver Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro Para o mundo sambar O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato Vai entrar no cuscuz, acarjé e abará Na casa branca já dançou a batucada de ioiô i iaiá Brasil, esquentai vossos pandeiros iluminai os terreiros Que nós queremos sambar468

BR/RF:

Ai, a quem eu vou pedir socorro? Estão botando abaixo o morro e eu não tenho onde morar Se eu fosse sozinho não ligava

465 Um samba na Suíça. Bob Nelson – Haroldo Barbosa , Janet de Almeida, 1946. p4 466 Onde anda o meu samba. Linda Batista – Ari monteiro, Luiz Antônio, 1956. p5 467 A voz do morro. Jorge Goulart; Zé Kéti, 1955. p4 468 Brasil pandeiro. Assis Valente, 1940.

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Mas a Maria e as crianças onde é que vão ficar?469 Papai Noel não sobe na favela, no morro também tem garotada Eu deixei o meu sapato na janela e de manhã não tinha nada Patinete lá no morro é um cabo de vassoura com tampa de goiabada E é assim que vai crescendo o cidadão vendo morrer ilusão sobre ilusão Você condena sem pedir perdão ao céu é triste o garoto pobre crescer sem Papai Noel470 Seu Doutor não bote abaixo, tem pena do meu barracão, Seu Doutor me compreenda, o progresso é necessário, Mas, Seu Doutor pense um pouco no operário. Meu barracão é todo o meu patrimônio, Por favor, não bote abaixo o morro de Santo Antônio471. Minha cabocla a favela vai abaixo quanta saudade tu terás deste torrão Da casinha pequenina de madeira que nos enche de carinho o coração Que saudades ao nos lembrarmos das promessas que fizemos constantemente na capela Pra que Deus nunca deixe de olhar por nós da malandragem e pelo morro da Favela Vê agora a ingratidão da humanidade, o poder da flor sumítica, amarela. Que sem brilho vive pela cidade impondo o desabrigo dessa gente da Favela472 O comitê do morro vai reclamar Falta água luz e um grupo escolar E um jardim pra criança também um clube de dança Pra quando o povo quiser sambar Como é bonito ver o morro bem vestido Os moradores clamam esse ideal Eu acredito que ele há de ser ouvido E depressa resolvido para o nosso bem geral Salve Mangueira salve Favela E salve outros morros do meu torrão natal473 Foi com surpresa que vieram anunciar Que o nosso samba não pode continuar Vai ter comício o morro vai protestar Nós queremos sambar! Tudo agora é diferente já que podemos brincar474:

SD Orientador:

Uma questão: depois que BR, RF e CM estão rasurados, mostram-se retorcidos, em

retorcência melhor dizendo, em direção a seus outros, a designação de cada um desses

sujeitos eleitos por seu nome próprio se torna problemática porque pode remeter o

leitor ao que já não é, ou nunca foi, cada uma dessas figuras. Talvez, a partir de certo

momento, pudesse ser assumido um “sujeito cancioneiro”, expressão de uma voz ao 469 Velho morro. César Brasil, Valter tourinho, 1955. p4 470 Patinete na favela. Marlene; Luís Antônio, 1954. p4 471 Morro de Santo Antônio. Trio de Ouro; Benedito Lacerda, H. Martins, 1950. 472 A Favela vai abaixo. Sinhô, 1927. 473 Comitê do morro. Totó; Valdomiro Lobo, Victor Simon, 1945. 474 Nós queremos sambar. Max Bulhões, Mário de Oliveira, 1945.

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mesmo tempo BR, RF e CM (e quem sabe ainda SD, pelas contaminações também por

aí), ou seja um sujeito BR/RF/CM/SD. Do jeito que está, pode muito bem ficar. Mas

foi algo que pensei e que pode ser levantado por algum sujeito prévio banca, por

exemplo.

SD:

Calma, Seu Doutor Orientador, até o fim do jogo corre o risco de algo próximo a isso

acontecer. Vamos seguir jogando. Pelas falas das canções acima essa aproximação entre

samba e poder não foi suficiente ou não pretendia transformar as condições dos morros e

subúrbios. Mas, retornando, o samba urbano/rural e os ritmos rurais/regionais que vinham

também se urbanizando (melhor seria assumir o cancioneiro popular como amálgama

diferanciado) expressam dialogismos com o discurso do poder por estratégias de cooptação,

assimilação e/ou enfrentamento, distinção. Essas estratégias são orientadas à medida que

orientam falas que especificam o samba, a palavra, o signo (e o mesmo serve para outros

ritmos populares, especificados por palavras-signos) como sujeito/objeto que desliza no entre

de múltiplas identidades. Dependendo das relações circunstanciais que se apresentam, a fala

pode adotar estratégia de enfrentamento ou cooptação ou ainda um híbrido em que é possível

ler as duas forças operando simultaneamente. O samba acima se coloca nesse lugar híbrido.

Ao mesmo tempo em que fala em protesto e comício, práticas políticas de enfrentamento e

organização, afirma que agora tudo é diferente, imagina-se, diferente de um tempo em que o

samba era criminalizado. E o faz, no contexto em que o samba, pelo menos o urbano

veiculado pelas grandes rádios, desfruta, mais do que da simpatia do poder, da valorização de

sua fala e gesto ao ser incorporado pelo Estado Novo como signo participativo e atuante dos

discursos de integração nacional e produção de signos cívicos e trabalhistas.

BR: Levou meu pandeiro levou meu dinheiro E até carregou meu tan-tan Deixou um bilhete que foi pro Catete sambar E só volta amanhã de manhã Levou o meu terno de linho novinho Sambando é capaz de rasgar Estou só pensando amanhã de manhã Com que roupa que eu vou trabalhar475

SD: O samba acima fala desse sambista regenerado que tem pandeiro e tan-tan e terno de linho e

trabalho, em oposição àquele que carrega suas coisas, podendo estragar tudo. Aquele, sem

475 Levou minha roupa. Haroldo Lobo, Milton Oliveira, 1951.

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terno e sem trabalho, bem poderia ser o Rapaz Folgado resistindo a ser enquadrado pela

sociedade trabalhista, segundo o discurso cooptado e civilizador do samba.

SD:

Já o RF faz ironia dessa aproximação samba/trabalho que o sambista regenerado, BR, tenta

articular, propondo-se como o novo paradigma. RF toma o samba como profissão e não há

lugar para outro trabalho em seu ethos.

RF:

Quem foi que disse que eu não brilho mais E procurou manchar o meu cartaz Fala diretoria da Mangueira toda profissão tem férias Não é segredo pra ninguém Sabe o que acontecia em Mangueira Os sambistas da escola estavam em férias também476.

SD:

BR articula uma resposta em que a convivência do samba com o trabalho formal conta com a

boa vontade do poder – Estado, patrão, polícia etc.

BR:

Hoje, amanhã e depois eu não vou trabalhar chega já fui escravo o ano inteiro Mas quando chega fevereiro eu quero é sambar Quando a fábrica apitar, eu quero estar na orgia. O patrão já sabe que eu em fevereiro faço a greve da alegria477.

SD:

Vale acrescentar que esse lugar privilegiado ao qual o samba e o cancioneiro popular em geral

foram catapultados pelo poder, torna-os o subjétil (som/papel) preferencial para lidar com

questões expressas em khôra que recebe signos populares como futebol, jogo do bicho,

corrida de cavalos, roletas e loterias, brigas, polícia, transporte público, arengas de

vizinhança, os costumes e a moral pequeno burguesa, a vida regrada pelos pólos do trabalho

regular e do lazer de fim de semana e das festividades previstas e enquadradas no calendário

oficial. Canções que lidam com os caracteres popular e público da vida contaminadas pela

modernidade, dizia a gíria da época, no rádio é mato. Euzébio perdeu nas corridas478, 1946,

“AI, Euzébio jogou nas corridas no Matungo e perdeu veja só o palpite era dele, mas o

dinheiro era meu... só sei que hoje vai ter barulho aqui no chatô”. Bonde do Caju479, 1946,

“A gasolina já chegou não ouço mais o faz favor do condutor adeus o banco do bonde do

Caju, tu és barato, mas machuca pra chuchu”. E o 56 não veio480, 1944, “será que ela não veio

476 Mangueira em férias. Nuno Roland – Alcir Pires Vermelho, Pedro Caetano, 1948. 477 Greve de alegria. Arlindo Marques, Roberto Roberti, Wilson Batista, 1954. 478 Euzébio perdeu nas corridas, Haroldo Lobo, M. de Oliveira, 1946. 479 Bonde do Caju, Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1946. 480 E o 56 não veio. H. Lobo, W. Batista, 1944. t3

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porque se zangou, ou o bonde alegria descarrilhou”. Deixa o cabrito berrar481, 1956, “Se a

vizinha está brigando, deixa a vizinha brigar, se o marido está entrando deixa o marido

apanhar, o cabrito não é meu, deixa o cabrito berrar, não importa se o Juca fala fino quando

sai à rua sempre dá o que falar”. Passarinho do relógio482, 1939, “cuco, cuco, cuco, o

passarinho do relógio está maluco, ainda não é hora do batente ele fica impertinente

acordando toda a gente”. Tem galinha no bonde483, 1942, “galinha e outro bichos não podem

viajar daqui a pouco o Juca traz o galo garnisé e isso até ta parecendo a Arca de Noé”. Olha o

quitandeiro484, 1939, “Olha a laranja seleta eu sou o quitandeiro e só vendo a dinheiro se por

acaso encontro uma dona boa qualquer eu fio tudo o que ela quer”. Que bonde pau485, 1950,

“Se você vai pra cidade no Piedade eu vou a pé que é melhor”. Triste Pierrot486, 1939,

Desiste Pierrot não cantes assim o tempo mudou, não há mais Arlequim, a colombina já não é

mais aquela, toca tamborim e mora na favela... e é francamente do samba”. Coisas da

moda487, 1926, “A moda são vestidos curtinhos, que horror, as pernas já não sentem mais

frio, só calor, cabelos que usavam a la garçonne agora carequinhas, a la raspone”. Se a moda

pega488, 1927, minha querida não queres outra vida, para ter o meu cabelo cortado procurei

um barbeiro mui gentil que me olhava de todos os lados pela frente, por trás e de perfil, a la

garçonne... me coçava com jeito o pescoço, a la raspone”. Dança da moda489, 1950, “No Rio

ta tudo mudado, nas noites de São João, em vez de polca e rancheira o povo só dança e só

pede baião”. Turco Malandro490, 1953, trata de arengas do comércio popular, “eu saí vestido

mas o terno encolheu porque choveu, voltei queimado e fui a ele reclamar, me disse assim,

você estava pequenininho, jurava a Deus você cresceu... mete esse turco no xadrez seu

prontidão”, Malandro medroso491, 1930, fala de um malandro que não vai encarar o pai da

moça, “nesse momento eu saudoso me retiro pois teu velho é ciumento e pode me dar um

tiro”. Não sou Manuel492, faz piada com os portugueses, “O telefone tocou pro Manuel e ele

saiu armado pra Niterói, mas na consciência nada lhe dói, não sou Manuel, não sou casado, eu

481 Deixa o cabrito berrar, Airton Amorim, Mirabeau e M. de Oliveira, 1956. 482 Passarinho do relógio. Haroldo Lobo, M. de Oliveira, 1939. 483 Tem galinha no bonde. Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1942. 484 Olha o quitandeiro, Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, 1939. 485 Que bonde pau. M. de Oliveira e Haroldo Lobo, 1950. 486 Triste Pierrot. Benedito Lacerda e D. de Oliveira, 1939. 487 Coisas da moda. Romeu Silva, 1926. 488 Se a moda pega. José Luís de Moraes, 1927. 489 Dança da moda, Luis Gonzaga, 1950. 490 Turco Malandro. Cícero Nunes, Reis Saintclair, 1953. 491 Malandro medroso. Noel Rosa, 1930. 492 Não sou Manuel. Roberto Martins, Wilson Batista, 1945.

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sou Joaquim o que é que eu vou fazer em Niterói”. A feira493, 1929, fala das várias línguas e

da cultura de imigrantes da cidade, “outro dia fui passear na feira, as donas e o movimento

apreciar”. E o juiz apitou494, 1942, “o Flamengo perdeu pro Botafogo, amanhã vou trabalhar,

o patrão é vascaíno e de mim vai zombar”. Vingamos o Maracanã495, 1958, “assim que o

Brasil mostrou o que é futebol o que é bola na rede”. O encarregado do meu edifício496 “é o

maior suplício, toma conta do amor e do elevador, é noite dia na portaria, ai, ai, ai, tomando

nota de quem entra e sai”. Cala a boca Etelvina497, “apaga a luz que amanhã vou trabalhar,

vou me levantar de manhã cedo, mas eu tenho medo de perder o trem deixa-me dormir por

caridade pois o trem da Piedade não espera por ninguém quando vem”. Funciona como

resposta a Acertei no milhar498, Etelvina! (o que é, Morengueira?) Acertei no milhar! Ganhei

quinhentos contos não vou mais trabalhar você dê toda roupa velha aos pobres e a mobília

podemos quebrar”. Mamãe lá vem o bonde499, 1942, “o bonde vamos nesse mesmo que é

bom um dia desse eu vi seu Chico bem frajola de cartola viajando no estribo do Leblon, lá

vem o bonde trazendo o pessoal, em traje de passeio ou traje de rigor uns vens da gafieira

outros do Municipal e a nossa terra cada vez mais infernal”. Lá vem o Ipanema500, “o bonde

que nunca viaja vazio, trazendo as mais lindas cabrochas do Rio”. Oito em pé501, 1942, “Sobe

seu José que ainda cabem oito em pé, eu viajei em pé da cidade a Catumbi e quando então

completou o lotação ainda vem o trocador chutando nossas canelas”. Madureira502, 1946, “o

bonde do horário não se move e o trem das sete e quinze chega sempre dez pras nove (...)

como é bom morar em Madureira todo dia tem festa todo dia tem feira”. O bonde do horário

já passou503, 1940, “e a Rosalina não me acordou, mais de cinco dias que eu não vou

trabalhar... já não tenho mais desculpa para dar ao meu patrão”. O sorriso do cobrador504,

1942, “Fim do mês ai que horror já tenho que ensaiar pra enfrentar o cobrador, hoje não pode

ser venha na terça quarta ou quinta feira”. Flor do asfalto505. fala do fim de um “romance de

amor no arranha-céu”, já em 1931, “meu telefone vive mudo e o dela em comunicação”.

493 A feira. Batista Junior, 1929. 494 E o juiz apitou. Antônio Almeida, J. Batista, 1942. 495 Vingamos o Maracanã. Denis Brean, Osvaldo Guilherme, 1958. 496 O encarregado do meu edifício. Luiz Januzzi, Marília Batista, s.d. 497 Cala a boca Etelvina. Antônio Almeida, Wilson Batista, 1950. 498 Acertei no milhar. Moreira da Silva; Wilson Batista, Geraldo Pereira, 1950. 499 Mamãe lá vem o bonde. Araci de Almeida – Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1942. 500 Lá vem o Ipanema. A. Marques, Roberto Roberti, Marina Batista, 1947. 501 Oito em pé. Araci de Almeida – H. Lobo, M. de Oliveira, 1942. 502 Madureira. Emilinha Borba – Jorge de Castro, Peter Pan, 1946. 503 O bonde do horário já passou. H. Lobo, M. de Oliveira, 1940. 504 O sorriso do cobrador. Araci de Almeida. H. Lobo, M. de Oliveira, 1942. 505 Flor do asfalto. J. Thomaz, Orestes Barbosa, 1931.

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Marcha do Ibrahim506, 1955, “O Ibrahim bota o meu nome no jornal eu quero ser também

metida a gente bem dependurada na coluna social, bota um retrato meu junto do teu e diz que

estou chegando agora vinda de Paris”. O drama do chofer507, 1948., fala da violência urbana.

“A sina do chofer é muito dura e numa noite escura viu dois homens acenar, os dois entraram

um deles disse toca pra Santo Amaro... meu Deus do céu, pra que ele foi parar... era chofer de

pobre e de granfino, hoje todos me perguntam, onde está o Francelino? foi cumprir o seu

destino”. Chofer de Praça508, 1950, “para casamento tenho um terno branco, para batizado

tenho um terno azul, tiro o boné se vou pra Zona Norte, boto o boné se vou pra Zona Sul, se

apanho um casal pros lados do Leblon sei que vou parar na gruta da imprensa, tiro o espelho,

não falo, não vejo, vou dar meu bordejo espero a recompensa”. Sou motorista509, 1951, “do

Rio de Janeiro ando seco por dinheiro e trabalho pra chuchu (...) estaciono perto de

Copacabana meu carro é bacana e só conhece a Zona Sul”. Cariocadas510, 1929, “cá na

cidade só se vê bobagem, só tem farofa, só se vê vantagem, esse mocinhos fogem da Avenida

quando as pequenas vendem margarida, cá no Rio é um cotovelo o namorado que quer morrer

sai no Correio, no País, na Gazeta, no Fon-Fon e na Careta o fato que é prá se ler”. Cena

carioca511, 1931, “amendoim torradinho está quentinho... sorvete Iaiá é de côco da Bahia...

olha a laranja seleta, olha a boa laranja lima olha a tangerina... Olha A Noite olha O Globo!”.

Vasco X Flamengo512, 1955, fala da rivalidade de um casal, mulher flamenguista e homem

vascaíno, “olá garota não faz farol, só no flamengo que se joga futebol, os vascaínos são

gargantas da cidade, ainda assim a cruz de malta é uma verdade”. .Copa Roca513, 1943, “Eu

fui a São Paulo assistir uma partida da famosa Copa Roca (...). O Diamante Negro confirmou

o seu cartaz que é craque de verdade (...) pondo em pânico a defesa pulando um metro e meio

fez um gol de bicicleta”. O nosso dia chegou514, 1958, “Garrincha, Didi, Mazzola, Vavá e

Zagalo, oi que time infernal, campeão, campeão, campeão mundial”. Marcha dos campeões

do mundo515, 1958, vencemos o mundo inteiro maior no futebol é o brasileiro, salve a CBD,

jogadores, diretores, salve raça varonil, campeão do mundo Brasil”. Alto-falante516, 1930,

“Os tais de alto-falantes são piores do que injeção, não sei quem foi o autor de tal suplício eu

506 Marcha do Ibrahim. Miguel Gustavo, 1955. 507 O drama do chofer de taxi. Miguel Roggieri, Osvaldo Cruz, Dupla Ouro e Prata, 1948. 508 Chofer de Praça. Luiz Gonzaga; Evaldo Rui, Fernando Lobo, 1950. 509 Sou motorista. Moreira da Silva – Altamiro Carrilho, Atila Nunes, 1951. 510 Cariocadas. Francisco Alves; Hekel Tavares, Lamartine Babo, 1929. 511 Cena carioca. Francisco Alves; Braguinha, 1931. 512 Vasco X Flamengo. Linda Marival, Murilo Caldas; Francisco Malfitano, 1955. 513 Copa Roca. Moreira da Silva – Henrique Gonçalves, 1943. 514 O nosso dia chegou. Alfredo Borba, Osvaldo Rodrigues, 1958. 515 Marcha dos campeões do mundo. Alfredo Borba, Osvaldo Rodrigues, 1958. 516 Alto-falante. Laura Suarez; Lamartine Babo, 1930. p4

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juro que foi gente lá do hospício, os tais de auto-falantes não param seus berrantes nem

mesmo pra tomar café, vejam só é verdade esse tal de alto falante é uma praga na cidade”.

Dona Light517, s.d., “O carnaval a noite no escuro pra muita gente vai dar futuro, Dona Light

pra que tanta economia no carnaval nos precisamos de energia ... vou bancar o vagalume

dentro do salão”. Catumbi encheu518, 1953, “quando chove em catumbi é um chuá só sai de

casa quem souber nadar”. Lola519, s.d., “Hoje eu li um anuncio no jornal, anuncio muito

interessante um rapaz alegre e jovial procura uma mulher constante, para se evitar qualquer

engano diz o moço que tem um bangalô e um bom piano automóvel também, hoje em dia só

vale quem tem”. Notícia de jornal520, 1961, “tentou contra a existência num humilde

barracão, Joana de tal por causa de um tal João depois de medicada retirou-se pro seu lar, aí a

notícia carece de exatidão, o lar não mais existe... a dor da gente não sai no jornal”.

Anúncio521, 1940, “Aluga-se uma casa com dois quartos uma sala uma cozinha um banheiro

um bom quintal que tenha uma varanda e um jardim plantadinho de jasmim que só serve pra

casar... precisa-se juntar dois corações num bangalô a beira mar” Vou vender jornal522, 1933,

“pra me defender, esta crise esta deixando o mundo inteiro atrapalhado na Alemanha já se

conta 6 milhões desempregados, Tio San o rei do ouro sempre viveu na abonança com a crise

mundial ele também entrou na dança, até a Dona Esterlina já está usando chita mas lhe

assenta muito bem por ser uma mulher bonita, o carioca reclama que a crise é muito seria mas

chegando o carnaval ninguém mais chora miséria... olha nós, olha O Globo”. Iracema523,

1956, “eu nunca mais eu te vi, Iracema eu sempre dizia cuidado ao atravessar essas ruas,

Iracema você atravessou contra-mão... você atravessou a São João... e hoje ela vive no céu,

ela vive pertinho do nosso senhor, de lembrança guardo somente suas meias e seus sapatos,

Iracema eu perdi o teu retrato, Iracema meu grande amor foi você”. Canção do trolley524,

1945, “Ela passou e quis sentar eu num estante ofereci o meu lugar... ela sorriu, eu não caí

porque não sei... aiaiai no meu peito qualquer coisa parou quando a vi levantar pra descer,

quis falar sem poder... ela olhou me fitou pôs a mão sobre a minha e foi ao fim da linha”. No

tempo da minha avó525, 1938, “mulher gostava de um só, usava trança e cocó e não havia

xodó... Hoje está tudo mudado vai-se de braço dado namorar no cinema, vê-se de maiô na

517 Dona Light. Orlando Silva – Bola 7, Helio Malta, Pereira Matos, s.d. t2 518 Catumbi encheu. Emilinha Borba – Norival Reis, Rutinaldo, 1953. t2 519 Lola. Eliana; Lamartine Babo, s.d. p4 520 Noticia de Jornal. Elizeth Cardoso – H. Barbosa, Luiz Reis, 1961. p4 521 Anúncio. (I.) Gaúcho, Joel – (C.) Alberto Ribeiro, E. Frazão, 1940. p5 522 Vou vender jornal. Moreira da Silva, Benedito Lacerda, 1933. t0 523 Iracema. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1956. 524 Canção do Trolley. Quatro ases e um coringa – H. Martins, H. Barbosa, R. Balne, 1945. p4 525 No tempo da minha avó. Almirante – Osvaldo Santiago, Paulo Barbosa, 1938. p4

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piscina a mocinha grã-fina, carioca da gema”. Menina internacional526, 1935, “Eu vi você no

posto 3 namorando um japonês e depois no posto 2 com um alemão e mais seis, dessa

maneira menina dominando tantos corações você vai parar na China ou na Liga das Nações”.

Menina do regimento527, 1938, “toma cuidado ô cabecinha de vento pois já te apelidaram

menina do regimento, hoje um tenente, e depois um capitão dizem que até um sargento

comanda o teu coração... se continuas a namorar tanta gente sem respeitar a divisa sem

respeitar a patente, devido a tal saliência, a garotada da rua vai te fazer continência”. Seu

Libório528, 1941, “Seu Libório tem três vizinhas ninguém sabe o que elas fazem, porém todo

mundo diz que Seu Libório é quem manda ah como o Libório é feliz, usam todas um V8 que

lhes deu um coronel, tem vestidos de alto preço e perfumes a granel”. Camisa amarela529,

1939, “Encontrei o meu pedaço na Avenida de camisa amarela cantando a Florisbela,

convidei-o a voltar pra casa em minha companhia exibiu-me um sorriso de ironia e

desapareceu no turbilhão da galeria... foi por aí cambaleando se acabando num cordão com

reco-reco na mão”. Alô... Alô...530, s.d. “responde se gostas de mim de verdade... continua a

não responder e o telefone cada vez chamando mais, é sempre assim não consigo ligação meu

bem, indiferente não se importa com meus ais”.

O jogo segue e os discursos do cancioneiro popular se aproximam inadvertidamente, isto é,

sem pudores cietífico-acadêmicos de questões relativas ao discurso urbano-regional: seja do

planejamento urbano, na fala do urbanista Alfred Agache, convidado pelo prefeito Prado

Júnior para remodelar o Rio de Janeiro, seja do planejamento regional, no discurso

hegemônico que justifica Brasília e a ocupação do Brasil central, seja ainda dos debates sobre

disputa de uso e ocupação do solo urbano por grupos sociais heterogêneos. Nesse tópico o

cancioneiro contempla a questão da moradia nas favelas, regras de uso do mobiliário e

equipamento público-urbano, convivência nos espaços públicos. O debate relativo ao

dialogismo interno ao campo do cancioneiro estabecece-se entre RF e BR considerando suas

posições ou estado de sujeito em relação aos poderes externos ao campo, ainda que tudo isso

incorra numa metafísica já questionada no corpus. A novidade momentânea é que no lugar de

pré-estabelecer quem diz o que, deixa-se a cargo do ouvinte, deslizar entre as duas alegorias,

imaginar qual fala corresponde a um discurso do tipo BR ou RF. Porém, não se trata de outro

jogo. É só outra forma de jogar. Vamos ao repertório de falas que deve interessar

526 Menina Internacional. Almirante – Alberto Riberio, Braguinha, 1935. p5 527 Menina do regimento. Aurora Miranda – Alberto Ribeiro, Braguinha, 1938. p5 528 Seu Libório Vassourinha – Alberto Ribeiro, Braguinha, 1941. p5 529 Camisa amarela. Araci de Almeida – Ary Barroso, 1939. p5 530 Alô... Alô... (I.) Carmem Miranda, Mário Reis – (C.) André Filho, s.d. p5

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sobremaneira leitores urbanistas ao mesmo tempo em que aproxima o corpus das

problemáticas ippurianas531. Seu Agache532, 1927, “já chegou o Seu Agache quem quiser que

fale mal, vai fazer dessa cidade uma linda capital, seu Agache anda solto e preparado quem

for feio fuja dele pra não ser remodelado, encontrei na prefeitura uma velha encarquilhada

procurando o seu Agache para ser remodelada”. Decreto 422533, 1908, “o prefeito não quer

mais que a gente cuspa no ônibus... já não cospe o cidadão, exigência do prefeito, pois a multa

está sujeito”. Bom dia, Avenida534, 1943, “Lá vem a nova Avenida remodelando a cidade

rompendo prédios e ruas os nossos patrimônios e saudades é o progresso e o progresso é

natural, a União das Escolas de Samba respeitosamente faz o seu apelo, três e duzentos de

selo, requereu e quer saber se quem viu a Praça Onze acabar tem direito a Avenida em

primeiro lugar, nem que seja depois de inaugurar”. Eu dei bom dia535, 1944, “eu dei bom dia

e você não respondeu com certeza não ouviu ou então não entendeu você tão jovem ainda não

sabe o que quer e ainda tem seus caprichos, vaidade de mulher, mas fica um abraço da Escola

de Samba do Estácio que já vive há tanto tempo e ainda quis viver, a Escola de Samba assistiu

a cidade nascer, aquele requerimento que o nosso chefe mandou a escola inteira de samba

endossou pedimos deferimento e ninguém ligou por isso a Escola de Samba não sambou, mas

esse ano a escola parece que vai sair, se você Avenida consentir”. Placa de bronze536, 1947,

“eu vou mandar na parede daquele edifício pregar uma placa de bronze para render a minha

homenagem a Praça Onze...na placa eu quero três nomes consagrar Herivelto, Cartola e o

saudoso Noel, que sempre defenderam os nomes de morro e de Vila Isabel, salve a Praça

Onze teus nomes vão ficar gravados no bronze”. Abaixo assinado537, 1959, “Doutor os

abaixo assinado com a sua licença vem a presença do senhor, nos quer tirar samba lá no bairro

do bexiga, e toda noite nois tem samba mas nois briga é o vizinho que não gosta de batuque,

quer acabar com o nosso samba a muque, doutor delegado vem pedir diferimento os que

assina cinco cruz no dicumento, que já está estampiado, nos que pruvidença”. Mangueira,

não538, 1943, “Acabaram com a praça onze, demoliram praça de rua que eu sei, derrubem

todos os morros, derrubem meu barracão, silenciar a Mangueira, não”. Praça Onze539, 1942,

531 Relativo ao IPPUR, instituto de planejamento e pesquisa urbano e regional da UFRJ ao qual este corpus está formalmente vinculado. 532 Seu Agache. Ary Kerner Castro, 1927. 533 Decreto 422. Mário Pinheiro, 1908. t6. 534 Bom dia, Avenida. Herivelto Martins, Grande Otelo, 1943. 535 Eu dei bom dia. Herivelto Martins, 1944. 536 Placa de Bronze. J. Costa, 1947. 537 Abaixo assinado. (I) Demônios da garoa – (C) Elzo Augusto, 1959. 538 Mangueira não. Grande Otelo, H. Martins, 1943. 539 Praça Onze. Grande Otelo, H. Martins, 1942.

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“Vão acabar com a Praça Onze, não vai haver mais escola de samba, chora o tamborim, chora

o morro inteiro, guardai os vossos pandeiros guardai, porque a Escola de Samba não sai”.

Obrigado general540, 1946, “o morro inteiro sabia que a Praça Onze voltava, voltou, já se

ouve o som do tamborim anunciando que vai haver carnaval, a cidade agradece, obrigado

general”. Laurindo541, 1943, “Laurindo sobe o morro gritando não acabou a Praça Onze

vamos esquentar os nossos tamborins..., e quando a escola de samba chegou na Praça Onze

não encontrou mais ninguém, não sambou, Laurindo pega o apito, apita evolução mas toda a

escola de samba largou bateria no chão e foi embora”. Se o morro não descer542, 1936, “se a

turma lá do morro fizer greve e não descer a cidade vai ficar triste carnaval vai morrer, todos

os morros estão querendo saber qual é a ordem que tem que prevalecer, se as escolas não

tiverem liberdade carnaval vai ser no morro ninguém desce pra cidade”. O samba não

morre543, 1944, “Eu vi a Favela desaparecer, eu vi a Lapa se transformar eu vi morrer a Praça

Onze, eu vi tudo isso sem reclamar, mas felizmente com o samba ninguém pode acabar pois

nele existe uma lembrança singela da Praça Onze, da Lapa e da Favela”. Venderam o

morro544, 1945, “eu soube que venderam o morro de mangueira que bobagem que asneira,

ficou sem teto a gente lá do barracão, nem respeitaram a velha tradição”. Bica nova545, 1955,

“o morro todo comprou uma lata nova pra inaugurar uma bica lá no asfalto cortaram a fita que

discurseira e quando acaba não tem água na torneira, só vendo a cara que ficou o claudionor,

foi o cabo eleitoral do doutor vereador que ganhou as eleições com o voto de Mangueira veio

inaugurar a bica não tem água na torneira”. Velho morro546, 1955, “Ai a quem eu vou pedir

socorro, estão botando abaixo o morro e eu não tenho onde morar se eu fosse sozinho eu não

ligava, a Maria e as crianças onde é que vão ficar?”. A Favela vai abaixo547, 1928, “Minha

cabocla a favela vai abaixo quanta saudade tu terás desse torrão, da casinha pequenina de

madeira que nos enche de carinho o coração, vê agora a ingratidão da humanidade e o poder

da flor somítica amarela, quem sem brilho vive pela cidade impondo o desabrigo ao nosso

povo da Favela”. Por favor, seu doutor548, 1947, “Ai seu prefeito da cidade, por favor, não

leve a mal, nós pedimos com muito respeito seu auxílio para o nosso carnaval, o carioca passa

mal o ano inteiro, mas nesses dias quer bater o seu pandeiro, nessa festa que alivia a nossa

540 Obrigado general. B. Lacerda; H. Martins, 1946. 541 Laurindo. Herivelto Martins, 1943. 542 Se o morro não descer. Darci de Oliveira, Herivelto Martins, 1936. 543 O samba não morre. Arlindo Marques junio, Mario Pinto, 1944. 544 Venderam o morro. Herivelto Martins, 1945. 545 Bica nova. (I) Jamelão – (C) D. Palma, Luís Antônio, 1955. 546 Velho morro. (I) Carlos Figueiras – (C) César Brasil, Valter Tourinho, 1955. 547 A Favela vai abaixo. Francisco Alves – (C) Sinhô, 1928. 548 Por favor seu doutor. F. Marques, Antenor Borges, 1947.

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dor, por favor, seu doutor”. Marcha da Cantareira549, 1960, “ta vendo como é que dói,

trabalhar em Madureira viajar na Cantareira e morar em Niterói, vou aprender a nadar eu não

quero me afogar”. Vagalume550, 1954, “Rio e Janeiro cidade que me seduz de dia falta água

de noite falta luz”. Samba de Brasília551, 1960, “Brasília mundo novo que eu vi nascer em

teu seio há de florescer a esperança de uma raça a quem Deus deu a graça de nessa terra viver,

tens todo o encanto da mulher de meu país nas linhas sensuais dos pilotis”. Me leva, seu

presidente552, 1958, “Brasília é um mundo novo você precisava ver JK falando ao povo, vou

me embora e não levo saudade da Guanabara vou me embora pra Brasília pois Brasília é uma

jóia rara”. Não vou prá Brasília553, 1959, “Eu não sou índio nem nada, não tenho orelha

furada nem uso argola pendurada no nariz. Não uso tanga de pena e a minha pele é morena

do sol da praia onde nasci e me criei feliz. Não vou pra Brasília, nem eu nem minha família,

mesmo que seja pra ficar cheio da grana, a vida não se compara, mesmo difícil, tão cara, eu

caio duro, mas fico em Copacabana”. Zé Pereira554, s.d., “Viva o Zé Pereira. Viva o Zé

Pereira, viva o carnaval. Viva o Zé Pereira, pois que a ninguém faz mal, viva a bebedeira, nos

dias de carnaval”. O grito de guerra do entrudo oitocentista estanca momentaneamente as

questões urbanistas e regionais do jogo que já desliza para outras rasuras.

BR: Não há mais preconceito de cor È lei o presidente assinou È lei o preconceito acabou Depois do 13 de maio o 3 de julho chegou. Para completar a abolição Deus que proteja o chefe da nação. Que livrou uma raça de tamanha humilhação.555 Vocês quando falam em samba Trazem a mulata na frente Mas tem muito branco que é bamba Que no samba é renitente Não me falem mal do samba Pois, a verdade eu revelo.

549 Marcha da Cantareira. Gordurinha – Barbosa da Silva, Eloide Warthon, 1960. 550 Vagalume. Fernando Martins, Vitor Simon, 1954. 551 Samba de Brasília. (I) Roberto Silva – (C) Carvalhinho, Geraldo, 1960. 552 Me leva, seu Presidente. (I) Jorge Veiga – (C) José Rosas, 1958. 553 Não vou prá Brasília. Billy Blanco, 1959. 554 Zé Pereira. Em 1846, registra-se o aparecimento do "Zé Pereira" (tocador de bumbo). Para alguns historiadores, esse era o apelido dado ao cidadão e folião português José Nogueira de Azevedo Paredes, supostamente, introdutor no Brasil do hábito português de animar a folia carnavalesca ao som de bumbos, zabumbas e tambores, anarquicamente tocados pelas ruas. A tradição se espalhou rapidamente e o sucesso do "Zé Pereira" tomou as ruas até ser visto como problema público, segundo a leitura do Governo. A brincadeira do entrudo sobreviveu até a primeira década do século XX. Ainda em 1900, uma companhia teatral resolveu utilizar a marcha do Zé Pereira numa paródia da peça "Les pompiers de Nanterre" intitulada "Zé Pereira Carnavalesco", na qual o comediante Francisco Correia Vasquez cantou a quadrinha famosa. 555 Três de julho. Benedito Lacerda e Herivelto Martins, 1951.

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O samba não é preto, o samba não é branco O samba é brasileiro é verde e amarelo556

SD:

O jogo segue. Quando inscreve a questão racial, o discurso da música popular assume, em

geral, duas estratégias. Ou reproduz a fala da democracia racial, apaziguando diferenças e

eventuais injustiças, ou adota uma postura irônica, fazendo piadas de preconceito velado

(algumas nem tão veladas assim) que desqualificam negros, mestiços, povos indígenas e

descendentes. Considerando-se que boa parte dos discursos do cancioneiro popular emerge de

um ethos negro e mestiço, caberia perguntar que benefício contemplou-se nessa postura de

auto-sabotagem racial. As boas relações com as elites valeriam tanto assim?

BR:

Pega o ferro de engomar, meu feijão vai cozinhar. Mete a cara na cozinha, ó, nega que a cozinha é teu lugar. A empregada lá em casa é muito boa Quer até ser melhor do que a patroa557 Mas que nego alinhado mas que nego bacana Tem escritório e dá audiência uma vez por semana Não é formado, mas tem muito valor (...) Quando nego passa gritam bem alto, bom dia Doutor (...) Isso tudo acontece porque a nega baiana cozinha pra outro que é senador558

SD:

Segundo essa perspectiva pecuniária, vai ver que valem mesmo...

BR:

Oh, loira porque tu zombas de mim? Um preto nobre não se maltrata assim. Lamento é a vida que tu andas ai minha santa E eu sou teu pretinho de alma branca Mulher tu podias ser mais feliz Mas não soubeste amar quem te quis559 Eu nasci num clima quente Você diz pra toda gente Que eu sou moreno demais Não maltrate o seu pretinho, Que te dá tanto carinho E que no fundo é um bom rapaz.

556 Verde e amarelo. Orestes Barbosa e J. Thomas, 1932. 557 A cozinha é teu lugar. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1938. Essa canção consegue ser triplamente preconceituosa porque faz ironia do negro, da mulher e do pobre. 558 Preto alinhado. Caco Velho, 1948. 559 Preto de alma branca. Buci Moreira, 1930.

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Você tem um palacete Eu nasci num barracão Sapo namorando a lua Numa noite de verão. Eu vou dizer a ela que coração não tem cor560.

Mas o consolo do preto deixa falar quem quiser É que Deus fez ele branco Mas foi na sola do pé561. Samba de negro não se pode freqüentar Só tem cachaça e no melhor da festa vamos todos pro xadrez562 Eu sei de um mulato que não gosta da cidade, Diz que isso aqui por baixo não é pra ele não Prefere o morro, dispensa o cinema, mulheres de Fox-trot, é do samba canção No carnaval diz que desceu fantasiado e foi mal interpretado pelos brancos de cá Hoje ele vive no morro onde há samba pra cachorro e o povo é mais igual563. Você não conhece o nego Olegário, no Estado do Rio diz que é comissário. Tipo esquisito, igual, eu nunca vi, num terno vermelho parece um saci. É todo metido a namorar só branca diz que preta com ele não bota mais banca564. O teu cabelo não nega mulata porque és mulata na cor Mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor565. O seu Maneco quando veio era marreco E arranjou uma crioulinha com quem fora se casar Mas a catinga da morena era serena Que o Maneco era peitudo, mas não pode suportar566. Preto não é bom tanto que eu digo Preto nesse mundo gosta de inimigo Conheci essa mulata filha de um preto doutor Que dizia não gostar de todo homem de cor É bem fácil de ter razão ninguém pode duvidar Pois eu nunca vi na terra preto de preto gostar567. Êta nego gozado é o nego fogão Ele faz um roleio lá na praça de São João Ele não pode ver branca, Quando vê uma loira começa a sorrir Ih, Ih, Ih Ele diz está pra mim568.

SD:

560 Preconceito. Marino Pinto, Wilson Batista, 1941. 561 Preto e branco. (I) Carmem Miranda – (C) A. Vassur; Luis Peixoto, Marques Porto, 1939. 562 Samba de negro. Pixinguinha, 1928. 563 Mulato anti-metropolitano. (I) Carmem Miranda – (C) Laurindo de Almeida, 1939. 564 Nego Olegário. Risadinha, 1952. 565 O teu cabelo não nega. Lamartine Babo, 1932. 566 Agüenta Maneco. Angelino de Oliveira e Cornélio Pires, 1930. 567 Preto não é bom. Augusto Vasseur, Chocolate, 1925. 568 Nego Fogão. Aidran Carvalho, Zé Pitanga,

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O signo da tolerância ou democracia racial sustenta-se hegemonicamente ao longo do século

XX, produzindo apagamento de conflitos e diferenças, Apóia-se em discursos segregadores,

às vezes envergonhados, outras nem tanto, mas que teriam como maior mérito não permitir a

construção de uma ponte aproximando a percepção de alteridade negro/mestiço à condição

social de pobre ou classe popular. No lugar da alteridade sob signos sócio-raciais emerge da

condição do dominado, a figura híbrida do malandro motivado por desejo de luxo e poder.

Antes de adentrarmos o universo do malandro propondo pistas à esquizofrenia racial que,

inclusive, o ethos negro/mestiço reproduziu nas canções populares, apelo à paciência do leitor

para tangenciarmos o pensamento de Gilberto Freyre no que diz respeito à inversão do valor

da mestiçagem cultural na contabilidade do progresso da nação – do bom selvagem

rousseauniano ao bom crioulo, preto de alma branca.

BR/SD:

Mordendo na sola Empunha o martello Não queiras com brancos Metter-te a tarelo. Que o branco é mordaz Tem sangue azulado Se boles com ele Estás embirado Sciências e lettras Não são para ti Pretinho da Costa Não é gente aqui569 Mulato esfolado, Que diz-se fidalgo, Porque tem de galgo O longo focinho; Não perde a catinga, De cheiro falace, Ainda que passe Por bráseo cadinho570.

SD:

E chamo a atenção do leitor (SD) para essa estranha parceria ente Seu Doutor e Barão da

Ralé. Parceria válida se pensarmos que tais trovas já em meados do século XIX buscavam

utilizar-se de elementos eruditos e populares fundindo-os a partir do ethos de escravo forro,

569 Pedes um canto na lira. Luís da Gama, 1859. 570 Pacotilha. Luís da Gama, 1859.

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negro liberto e letrado. O caminho inverso também se resolve em canções populares que

falam a partir de um repertório/compositor erudito.

BR/SD:

Lá vai o trem com o menino lá vai a vida a rodar Lá vai ciranda e destino cidade noite a girar... Nossa vida vive, nossa alma vibra Nosso amor palpita na canção do samba571. Quando da brisa no açoite a frô da noite se curvo Fui s´imbora com a Maroca meu amo572

SD:

Essas tres últimas falas expressam essa confusão da fronteira popular/erudito, a primeira pelo

título que diz dessa fusão: Samba Clássico. A segunda por ser enunciada por dois Seus

Doutores ilustres: Villa Lobos, também autor da primeira, e Mário de Andrade. Retornando

ao que o hibridismo racial propõe, o signo brasileiro seria aquele que já carrega os [seus]

contrários dentro de si. Expressando-se como “o branco de alma negra”, Vinícius de Morais,

ou o “mulato de alma branca”, Machado de Assis. O brasileiro celebra sua singularidade, cuja

origem inventada constrói-se repousada e inquestionável na própria condição excepcional do

português, também inventado como mestiço por sua herança moura. Origem mestiça mítica

que se perde no tempo histórico antigo quase bíblico. Essa base ideológica inventa tanto a

essência híbrida da brasilidade freyreana, pelo menos para efeito de encontros de caráter

sócio-raciais entre diferentes, quanto, a essência cordial que, segundo Sérgio Buarque,

inscreve o brasileiro movido, generosamente, por caracteres violentos e apaixonados a partir

do que manda o coração. Toda essa argumentação funda-se na ideologia mítica de que o

encontro cultural é sempre bom, no que pese as estratificações e injustiças sociais

cordialmente construídas.

O hibridismo cultural aqui é festejado em si (...): a crença de que toda cultura específica encerra possibilidades incomensuráveis de realização das potencialidades humanas e que, portanto, o encontro cultural é enriquecedor por definição. (...) É difícil imaginar ideologia mais eficaz no nosso país. Ela hoje faz parte da nossa identidade. Já não é mais uma questão de se isso é verdade ou mentira. Todos nós gostamos de nos ver desta forma, a ideologia adquire um aspecto emocional insensível à ponderação racional, e tem-se raiva e ódio de quem problematiza essa verdade tão agradável aos nossos ouvidos (SOUZA, Jessé, 2004, p. 44).

BR:

571 Trenzinho do caipira. Heitor Villa-lobos, 1950. Samba clássico (ode). Heitor Villa-Lobos, 1950. 572 Viola quebrada. Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, 1929.

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Samba do partido-alto só vai cabrocha que samba de fato Só vai mulato filho de baiana e a gente rica de Copacabana. Doutor formado de anel de ouro Branca cheirosa de cabelo louro573

SD:

O malandro funciona como imagem síntese dessa ideologia. O sentido hegemônico do signo

malandro, BR ou RF, já pressupõe a perda de foco das diferenças e das fronteiras sociais. A

figura do malandro, claramente inspirada nas classes populares e utilizando-se de um

simulacro de indumentária e práticas burguesas, expressaria uma espécie de tipo social

híbrido que em última análise propõe a dissolução dos contornos que instituem/separam

classes sociais e que consequentemente instituiriam/possibilitariam conflitos. O signo

malandro se expressa no entre da cultura popular e da cultura de elite e, por isso mesmo,

especifica a ideologia do hibridismo, como um fundamentalismo singular e original do

brasileiro que, frente outras culturas nacionais, pode produzir estranhamento tal qual o que

sentimos sobre os fundamentalismos dos outros: patriotismo americano, a moral e a tradição

muçulmana e judaica, a rigidez inglesa.

BR: Quem condena a batucada dessa gente bronzeada não é brasileiro Nada mais bonito que um corpo de mulher a sambar no terreiro Já falaram que o samba no morro não tem cotação Só se fala em navalha e cabrocha e até parati É bem fácil acabar com essas coisas do samba canção Mas eu só quero ver acabar com os malandros que tem por aí574

SD:

A noção do malandro, essa é a minha hipótese, passa a ser uma espécie de materialização transfigurada dessa brasilidade exótica, indiferenciada e autocomplacente na dimensão da vida cotidiana e da cultura popular. Uma imagem que serve ao apagamento das diferenças e ao propósito cimentador típico das ideologias. (...)Ele se veste como o burguês, sendo uma espécie de seu arremedo na aparência, desfrutando de uma condição de vida que lhe permite, no entanto, livrá-lo dos constrangimentos da disciplina burguesa. Ele é portanto ambiguamente mais esperto que o burguês. Ao mesmo tempo, o malandro faz uso em seu meio das mesmas artimanhas do burguês, pelo menos como este é percebido pelo imaginário do personalismo, como estratégia de garantia de privilégios. O egoísmo sem peias, o uso estrategicamente emocional do outro, a troca de favores, a corrupção, seriam as precondições de seu sucesso, do mesmo modo que seriam as pré condições do sucesso do burguês (idem, p. 45).

573 Samba de fato. Pixinguinha e Baiano, 1932. 574 Quem condena a batucada. Carmem Miranda – Nelson Rodrigues, 1938.

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Uma vez especificadas as singularidades relativas às construções de alteridade social e racial

no Brasil, a figura gingada e morena do malandro surge como paradigma imagético-

ideológico em movimento de corpo, signo mais visível da ideologia do hibridismo.

A partir das décadas de 1920 e 1930, o malandro consolida-se, especialmente com a crescente penetração do samba carioca e do carnaval, numa espécie de protótipo do brasileiro. È precisamente essa transfiguração negadora das diferenças, por meio de uma figura ambígua, mas, levemente positiva e irônica, que me parece refletir a maneira como os brasileiros se compreendiam e se compreendem até hoje (ibidem, p. 46).

BR:

Moço, olhe o vexame O ambiente exige respeito Pelos estatutos da nossa gafieira Dance a noite inteira, mas dance direito Aliás, pelo artigo 120 O distinto que fizer o seguinte: Subir nas paredes dançar de pé pro ar Morar na bebida sem querer pagar Oi, abusar da umbrigada de maneira folgazã Prejudicando hoje o bom crioulo de amanhã575

SD:

Pode-se localizar o ethos da malandragem como território de produção da estratégia de luta e

sobrevivência, onde, o enfrentamento, é substituído pela prática de pensar com a cabeça do

“outro”. Mas, não devemos supor daí atitude de covardia ou submissão. Mas, pensar como

essa estratégia é lida do ponto de vista não do dominador, mas do dominado ativo que

desenvolve seus mecanismos de convivência e luta contra o meio social antagônico, que,

historicamente, impôs barreiras econômicas, culturais e políticas a reprodutibilidade do grupo

étnico ou classe popular.

Os espaços de aldeia na cidade moderna (terreiro e seus desdobramentos litúrgico-festivos) caminham no sentido da transação ou do “acerto” (termo bastante comum entre os antigos dos terreiros baianos), como estratégia popular. Em vez de questionar ou brigar, negocia-se, faz-se um acordo. Não se trata da negociação monetária entronizada pelo universo burguês, onde todas as coisas se submetem ao princípio do valor de troca e se dissolvem num equivalente universal, mas da instituição da troca sem finalidades absolutas, em que qualquer ente é suscetível de participar. Negocia-se com os deuses, as coisas, os animais, os homens com tudo capaz de alimentar a força576. [Dessa forma], quando os negros faziam ou fazem coincidir as suas

575 Estatutos da gafieira. Billy Blanco, 1954. 576 O conceito de força está ligado ao conceito de “ser”, mesmo no pensamento mais abstrato sobre a noção de ser. Diferentemente do pensamento judaico-cristão, que entende o ser como algo estático, como aquilo que é, o pensamento banto equipara ser a força. A força não é um atributo do ser, mas o próprio ser, encarado como perspectiva dinâmica (e não estática, tal como se dá na ontologia judaico-cristã): o mundo não é; o mundo se faz, acontece. (...) Deuses, homens vivos e mortos, plantas, animais, minerais são seres-força diferentes. Por exemplo: a força dotada de vontade e inteligência chama-se muntu (e esta palavra pode ser traduzida como pessoa) enquanto a força sem razão, sem vida, chama-se bintu (coisa). A força não existe fora de um suporte concreto, é da ordem do visível,

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celebrações litúrgicas com as datas de determinadas festividades cristãs, ou quando permitiam a associação de alguma de suas divindades com análogos católicos, na verdade procediam a essa lógica transacionista do “acerto”. Dá-se por aí uma apropriação antropofágica que em vez de questionar intelectual ou militarmente o sistema explorador, aproveita-se dele. Este aproveitamento implica uma troca, uma coordenação analógica de oportunidades. A reciprocidade e a parataxe contornam as leis de subordinação que o grupa hegemônico procura impor (SODRÉ, 2002, p.113, 114).

BR:

O muito preto também é gente Quem não gosta do muito preto Não está sob o consciente Deus quando fez o mundo não definiu raça nem cor Por isso que o muito preto tem coração tem amor Todos sabem que muitos pretos já foram grandes guerreiros Além de muitas coisas foram também brasileiros577 A mania dessa gente que vive sempre a cantar Exaltar constantemente as morenas do lugar No entanto as moreninhas cheias de graciosidade São produtos das negrinhas, fruto da brasilidade Quem foi que ninou o Brasil Quem mais padeceu docemente Portanto no nosso país, negro também é gente578 Rico é gente bem, pobre é gente muda Champanhota de pobre é uma preta barriguda Pobre não tem café soçaite, nem champanhe para beber Sua vida é o samba e o Flamengo pra torcer579. Menina oxigene o teu cabelo preto virou marrom glacê Teus olhos meu bem mudaram de carro e de formato também Ficaram azuis teu namorado azulou e nunca mais voltou580

SD:

E não poderíamos interpretar a partir dessa análise que o negro propôs um novo jogo? Que o

negro fez deslizar a lógica, mais do que simplesmente inverter um sistema de dominação

escravista dos mais cruéis e sufocantes? Se pensarmos, por exemplo, no sincretismo religioso,

e na apropriação dos “santos guerreiros”, originalmente católicos, pela cultura negra, cujo

discurso está hegemonicamente localizado no candomblé, diríamos que o exercício da

mas não pode ser percebida diretamente pelos sentidos (SODRÉ, 2002, p.93). Assim, sem a força ou axé (Yorubá) a existência estaria paralisada. Negocia-se então em nome do movimento da dinâmica da existência que permite o acontecer e o devir (SODRÉ, 2002, p.94). Ao mesmo tempo garante-se a presença permanente e diferenciada, ou em movimento, do axé. 577 O muito preto. Mutt, 1946. 578 Negro também é gente. Ary Barroso, De Chocolat, 1934. 579 Rico é gente bem. A. Rebelo, Ari Monteiro, J. Rupp, 1955. 580 Menina Oxigene. Almirante – Hervê Cordovil, L. Babo, 1934.

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dominação não foi capaz de manifestar-se em esferas fundamentais do discurso dominado.

Não por resistência do dominado ou por limite de força do dominador, mas, pela não

capacidade deste em perceber a mudança na regra do jogo que diz da adaptação e assimilação

antropofágica de signos do dominador transformando-os em signos do dominado.

Da parte dos negros, o poder coordenante implicado no axé difere da monopolização da violência ou da “força contra”, (...) o axé não implica “lutar contra alguma coisa”, mas dar autoridade ao grupo, ao povo. Ao invés de uma força reativa, tem-se aí uma orientação no sentido de como o grupo deve conduzir-se para obter um perfil próprio (SODRÉ, 2002, p. 114).

BR:

Ai, meu Deus, que bom seria Se voltasse a escravidão Eu pegava a escurinha Prendia no meu coração E depols a pretoria É quem resolvia a questão581 Amei a mulatinha, amei a moreninha em trinta e dois e trinta e três A loira namorei um mês agora eu fico com a melhor das três Só porque o cabelo não negava toda gente falava na Mulata original E a mulata foi para o supremo tribunal foi ver seu pai e de lá não sai Em seguida veio a moreninha que a final foi a rainha com cabelo regular E por preocaução o pai tratou de colocar uma estanquilha no nariz da quilha No terceiro ano em disparada veio a loira enciumada ser a rainha da canção Ela disse logo pra evitar a confusão meu pai morreu minha mãe sou eu582

SD:

Dessa forma, em lugar de configurar uma voz negra ou mestiça em franca oposição à voz

branca, a voz popular adere aos estratagemas apaziguadores dos discursos da brasilidade

híbrida e cordial (pessoal), para, a partir daí, tirar proveito, nas brechas do sistema. Infiltra-se

nas festividades pela força de seu ethos, de seu ritmo para, aos poucos, acessar espaços sociais

que, a priori lhe seriam proibidos.

Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de “acerto” e “transação” onde as classes e etnias subalternas tanto se esforçavam pela apropriação de alguma parte do produto social (empregos, pequenos negócios) como por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja, aproveitar por mil “jeitinhos” os interstícios das relações sociais de produção), em busca de um lugar próprio, de uma identidade. O carnaval, o futebol, as festas religiosas foram espaços que os negros tomaram aos portugueses para constituir lugares de identidade e transação social (SODRÉ, 2002, p. 114).

581 Mulata assanhada. Ataulfo Alves. 582 A melhor das três. Francisco Alves – Alcir P. Vermelho, L. Babo, 1935.

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Afinal, o silêncio do cancioneiro popular que pouco soltou o verbo de denúncia contra o

racismo e as manobras patronais de espoliação e segregação do pobre, ao longo do século XX,

poderia ser lido como estratégia de convivência com um poder que de antemão não podia ser

enfrentado, a não ser pela astúcia, o drible, a ginga.

RF:

Festa de branca sempre acaba em arrelia Se vai de barriga cheia e sai com ela vazia Eu não me passo pra essas festas de chiquê Por causa de uma branca já quiseram me prender583.

SD:

Apesar de estarmos falando da valorização hegemônica do hibridismo sob o disfarce de um

discurso que extrapolaria a tolerância para expressar reverências à mulata, ao neguinho, a fala

de BR, RF e até de CM até aqui, não sem alguma provocação ao SD (nós), tem sido de um

racismo mal disfarçado, quando não, desavergonhado. Ainda que nossos interlocutores

proponham esse jogo provocativo, consideramos que hegemonicamente o cancioneiro popular

tratou e reforçou os signos étnicos como sendo de “preferência nacional” ou, mais do que

isso, como aquilo que nos conferia a nacionalidade.

CM:

Chão caboclo, chão vermelho como o sangue sertanejo do caboclo brasileiro Chão que nunca ta cansado que ta sempre preparado pra dar pão ao mundo inteiro584

BR:

Samba meu Brasil moreno Ouve quanta harmonia Vai no batuque no sereno meu Deus Samba o o... Samba o o... Bate o teu pandeiro Nesta canção toda de sol e luar Brasil, grande como o céu e o mar!585

SD:

Parece que o BR, possivelmente influenciado pelo CM, resolveu parar com as provocações e

colaborar um pouco com o SD (conosco). Canções de exaltação à morena, à mulata, ao

mulato, ao caboclinho, ao neguinho, ao crioulinho, à pretinha, não nos faltam. Mesmo

marcando a fronteira dessas gradações dentro de uma escala de embranquecimento,

considerando aí alguma influência do discurso naturalista oitocentista, a valorização geral das

etnias, acaba dando um tratamento pouco diferenciado entre, por exemplo, a moreninha, a

583 Festa de branco. Pixinguinha, 1928. 584 Chão caboclo. Sulino, Moacir dos Santos, s.d. 585 Brasil moreno. Ary Barroso, luiz Peixoto, 1941.

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mulatinha ou a pretinha, o que pode ser interpretado como um movimento duplo, ao mesmo

tempo de marcação e de isonomia dessas categorias. Já em 1902 em A Mulata da Bahia586 o

BR falava “sossega o tamanco que bate no chão que eu quero descanso pro meu coração”. A

mulata da roça587, “não há dinheiro que pague o preço de uma mulata” e Nunca mais te

deixo mulata588,1907, falavam dessa mesma elegia à mulher negra. Vem cá mulata589, 1904,

teve enorme sucesso nos primórdios da gravação de músicas no Brasil, entre as primeiras

músicas gravadas no Brasil, “ao povo damos sempre alegria e batalhamos pela folia, vem cá

mulata sou democrata de coração”. Mulata590, 1904, “por ela o feitor de dia cantava perdido

de amor”. Mulata carioca591, 1910, “quando vai a Avenida só faz moda no costureiro”.

Mulata nacional592, “pela mulata da nossa terra o Brasil inteiro declara guerra”. Mulata

fuzileira593, Mulata brasileira, fuzileira da orgia é da nossa companhia”. Salve a mulata594,

“quando ela passa cheia de graça, fecha o comércio e dá confusão”. Mulata595”, 1945,

“mulata se eu canto meu samba, rainha do meu carnaval, mulata se tu fosses minha mesmo

queimadinha não fazia mal, já desprezei uma loirinha bonita, já desprezei uma morena

infernal. A mulata é a tal596, “branca é branca.... mas, a mulata é a tal”. A mulata é que é

mulher597, “Nesse negócio de amor o papai não se importa com a cor”. Da cor do pecado598,

“esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem”. Nega do cabelo duro599, “quando tu

entras na roda meu corpo todo bamboleia” (tentem encontrar um rock´n´roll americano ou um

folk australiano dos anos 50 falando isso para uma negra ou uma aborígene do cabelo duro).

Bronzeada600, “essa pequena que não sai da praia os olhos dela são da cor do mar”. Produto

Nacional601, “a morena gemeu se apresenta a servir meu Brasil tem os dentes de risos

requebra feitiços que outras não tem”. Moreninha da praia602, 1933, que “anda sem meia em

plena avenida”. Deixa falar603, “você pensou que o caboclinho fosse nego de senzala pra se

586 A mulata da Bahia. Bahiano, 1902. 587 A mulata da roça. Senhorita Diva, 1907. 588 Nunca mais te deixo mulata. Isaura, Eduardo das Neves, 1907. 589 Vem cá mulata. Mário Pinheiro, Pepa Delgado – Arquimedes de Oliveira, 1904. 590 Mulata. Geraldo Magalhães, Gonçalves Crespo, 1904. 591 Mulata carioca. Neco, 1910. 592 Mulata nacional. J. B. Carvalho, Manoel Ferreira, 1939. 593 Mulata fuzileira. Hervê Cordovil, Paulo Neto de Freitas, 1933. 594 Salve a mulata. Antonio Almeida, Braguinha, 1952. t6 595 Mulata. (I) Gaúcho – (C) Felisberto Martins, Pereira Matos, 1945. 596 A mulata é a tal. Antonio almeida, João de Barro, 1947. 597 A mulata é que é mulher. (I) Araci de Almeida – (C) Joel de Almeida, 1958. 598 Da cor do pecado, Bororó, 1939. 599 Nega do cabelo duro. David Nasser, Rubens Soares, 1942. 600 Bronzeada. Moisés Friedman, Pedro Paraguassú, 1935. 601 Produto nacional. Pedro de Sá Pereira, 1929. 602 Moreninha da praia. Almirante – Braguinha, 1931. 603 Deixa falar. (I) Ary Barroso, Carmem Miranda – (C) Nelson Petersen, 1938.

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deixar comprar”. Margot604, 1956, faz crítica a quem nega a identidade nacional “a conheci

morena, loirinha você ficou seu nome é Madalena agora a chamam Margot, só quer passar

por francesa, e não quer ser brasileira, Madalena eu a conheço lá de Madureira”. Exaltação à

cor605, “o samba é apenas o pisar de uma mulata que machuca mas não mata, o samba é o

canto de uma raça cheia de melancolia que tem a pele cor da noite mas tem a alma cor do

dia”. Moreninha carioca606, 1949, “moreninha carioca sai da toca por favor e não fujas desse

sol que só espera te dar beijos com calor, quem vai a Copacabana, Ipanema ou Leblon dá

maior valor ao Rio acha tudo muito bom”. Escurinha607, 1952., “Escurinha tu tem que ser

minha de qualquer maneira”. Mathilde no samba608, 1930, “Essa cabocla é um colosso tem

remelexo até no pescoço”. Casaco de Mulata609, 1921, “O mulata feiticeira teu perfume de

alecrim que perfuma a terra inteira eu te quero só prá mim... vem cá mulata... não vou lá não...

vou já vestir o meu casaco a prestação”. Uma andorinha só não faz verão610, 1934, vem

moreninha vem tentação, não andes assim tão sozinha que uma andorinha não faz verão... o

povo anda dizendo que essa luz do teu olhar a Light vai mandar cortar”. Cor de Prata611,

1931, “A lua vem saindo cor de prata que saudade da mulata, minha mulata foi se embora da

cidade vejam só que crueldade, foi pra longe e me deixou”. E... elas voltaram612, 1950,

“Loirinha e morena formosa em toda a parte nascem também, porém a mulata cheirosa é só

meu Brasil que tem”. O teu cabelo não nega613, 1932, “mulata porque és mulata na cor, mas

como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor”.

BR:

Loirinha, loirinha Dos olhos claros de cristal Desta vez em vez da moreninha Serás a rainha do meu carnaval Loura boneca Que vens de outra terra Que vens da Inglaterra Ou que vens de Paris Quero te dar O meu amor mais quente

604 Margot. Milton de Oliveira, Mirabeau, 1956. 605 Exaltação à cor. Ataulfo Alves, J. Audi, 1953. 606 Moreninha carioca. Ronaldo Lupo, Alberto Ribeiro, 1949. 607 Escurinha. Geraldo Pereira, 1952. 608 Mathilde no samba. Caramuru – (C.) J. Niccolini, 1930. 609 Casaco de mulata. Bahiano, Maria Marzulo; Careca, 1921. 610 Uma andorinha só não faz verão. Mário Reis; Braguinha, Lamartine Babo, 1934. 611 Cor de prata. Braguinha -, Lamartine Babo, 1931. 612 E... elas voltaram. Carlos Galhardo – L. Babo, Roberto Roberti, 1950. 613 Teu cabelo não nega. L. Babo, 1932. Há um complexo jogo de repulsa e atração nesse discurso que ao mesmo tempo exalta a mulata e segrega a cor.

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Do que o sol ardente Deste meu país614

SD:

Nossas paladinos sujeitos discursivos não nos dão moleza. Sempre prontos para nos

contradizer, colocando o Seu Doutor em lugar de desconforto. Se bem que essa lourinha bem

podia ser interpretada como marca de nossa democracia racial em que se chama a moreninha,

a mulata e a lourinha de rainhas do carnaval. Não é isso BR? Apanhei-te cavaquinho?

RF:

O rei Zulu, o rei Zulu Não paga casa Nem comida e anda nu Pode não ter dinheiro pra gastar Mas tem mulher pra chuchu Rei Zulu, não precisa De dinheiro pra viver Tem casa pra morar Comida pra comer Mulher pra namorar Atrás do murundu Vamos saravá, minha nega? Salve o rei Zulu!615

SD:

Esse é o mito da preguiça funcionando em conjunto com o mito da democracia racial. Fala

que todo o povo brasileiro – todo, segundo o mito da democracia racial que afirmaria sermos

todos miscigenados e afro-descendentes do Rei Zulu – sonha em ter casa, comida e carinho,

sem precisar trabalhar, não é mesmo RF?.

BR:

Seu Presidente, sua Excelência mostrou que é de fato. Agora tudo vai ficar barato, agora o pobre já pode comer. Seu Presidente, pois era isso que o povo queria. O Ministério da Economia parece que vai resolver Seu Presidente, graças a Deus não vou comer mais gato. Carne de vaca no açougue é mato com o meu amor eu já posso viver Eu vou buscar a minha nega pra morar comigo Pois já vi que não há mais perigo ela de fome já não vai morrer A vida estava tão difícil que eu mandei a minha nega bacana. Meter os peitos na cozinha da madame em Copacabana. Agora vou buscar a nega porque gosto dela pra cachorro. E os gatos é que vão dar gargalhadas de alegria lá no morro616.

614 Linda Loirinha. (I.) Silvio Caldas – (C.) Braguinha, 1933. 615 Rei Zulu. Antônio Almeida e Nássara, 1950. 616 Ministério da Economia. Geraldo Pereira, Arnaldo Passos, 1951.

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SD:

Na maioria das vezes no discurso cancioneiro popular, as questões relativas à raça

apresentam-se estreitamente vinculadas às de classe social expressando o lugar do dominado,

do expropriado, do sob risco. Como a condição de dominado se apresenta invariavelmente em

relação à de um dominador, cabe acrescentar que as categorias de classe e raça expressam

orientações de ordem política. Por esse viés, o cancioneiro popular expressaria questões de

raça, classe sob condição política expressa na relação dominador/dominado. Por exemplo, na

canção anterior, signos de classe e raça sob orientação política são inscritos expressando a

condição de dominado do pobre e de sua nega, em contraste com a condição de dominador

dos patrões e do Estado. Abaixo do pobre, só mesmo os gatos.

BR:

Eu saio às quatro horas de Bangu Vou pro trabalho defender o meu tutu Ai Rosalina você não sabe como é triste a minha sina No fim do dia cansado de trabalhar Eu pego o trem vou pra casa descansar Mas o expresso quase sempre se atrasa E quando eu chego em casa está na hora de voltar617. Eu moro numa casa que não tem conforto também pelo aluguel não pode ser melhor Eu venho do trabalho e chego semimorto a vida para mim não pode ser pior Eu tiro a minha roupa e visto o meu pijama e pego no jornal para me distrair Depois apago a luz e deito em minha cama, mas fico a noite inteira sem poder dormir Porque a gataria lá na vizinhança promove um barulho que é um inferno E bem do outro lado tem uma criança que chora e berra do verão até o inverno E tem na casa em frente a filha de um Belchior que num velho piano a noite se exercita E desde que nasceu estuda a “Cumparsita” e a toca na verdade cada vez pior Passando duas casas numa gafieira uma charanga infame desafia o sono No sábado domingo e toda quinta feira gemendo toda noite como um cão sem dono Tem um boteco perto que é um horror que só desliga o rádio quando o pau come Sai tiro e sai facada e sai cada nome que dá prá encabular qualquer carregador618

SD:

Assim, canções relacionadas à conjugação raça e classe social não se contam: Deusa do

asfalto619, 1958, “Um dia sonhei um porvir risonho e coloquei o meu sonho num pedestal bem alto,

não devia e por isso me condeno, sendo do morro e moreno, amar a deusa do asfalto, um dia ela casou

com alguém lá do asfalto também”. Amanhã eu volto620, 1942, “você tem mania de ser granfina

617 Meu tutu. Antônio Almeida e Nilo Barbosa, 1960. p5 618 Boa vizinhança. Almirante; Francisco Matoso, Nono, 1939. p4. 619 Deusa do Asfalto. (I.) Nelson Gonçalves, (C.) Adelino Moreira, 1958. p5 620 Amanhã eu volto. Antônio Almeida, Roberto Martins, 1942. p5

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e só diz asneira, diz que tem pavor da gente de cor lá da gafieira, eu sou cabrochinho, sou

queimadinho, porém altivo...”; Você nasceu pra ser granfina621, 1939, “o samba exige tal

simplicidade é justamente o que você não tem eu desejava que você soubesse que o samba é a

prece do João ninguém, ...o samba é outra bossa é pra nego de choça que não fala inglês”;

“Pescador grã-fino622”, 1955, “só conta lorota que vai pra pescaria de caniço e champanhota

que vai pra Cabo Frio e vai pra Sepetiba e passa o dia inteiro dando banho na minhoca”; Nego

bamba623, 1940, “Esse nego bamba cheio de orgulho sabe tirar samba e também é do barulho,

veio do Salgueiro sem dinheiro, muito bem recomendado, na roda de samba ele é bem

respeitado, (hoje) tem bom automóvel e cavalo de corrida, diz a todo mundo que ele agora é

boa vida”, O samba da Gamboa624, 1945, Mandei fazer a baiana da patroa pra ir comigo

sambar lá na Gamboa, eu recebi o convite do diretor da Escola, não é preciso ir de fraque nem

tampouco de cartola...” Quem conta um conto625, 1935, “jogando a sorte com uma certa loira

fui assinar o ponto na central, seu delegado isso é mentira dela, ela não tinha o ponto

principal”. Corta jaca626, 1904, “Essa dança é buliçosa, tão dengosa todos querem dançar não

há ricas baronesas e marquesas que não queiram requebrar, esse passo tem feitiço, tal ouriço

faz qualquer homem coió, não há velho carrancudo, nem sisudo que não caia em trololó”. Eu

não tenho onde morar627, 1960, “é por isso que eu moro na areia”. Alegria na casa de

pobre628, 1941, “não me incomodo em ser pobre não senhor o que eu quero é muito samba

pra cantar pro meu amor”. Samba não pode faltar629, 1947, “o samba pro povaréu é prato

que vem do céu, o morro não pediu nem reclamou jantar, o morro quer é só sambar”. O

samba agora vai630, 1946, “vai ter passagem de avião o samba agora vai se despedir do

barracão, hoje em dia já tomou juízo já anda até de cabelinho liso e já não fala mais em pão

com banana, só se passa pra Miami de Copacabana, mexe com ele que tu vais até em cana”;

Sabor do samba631, 1935, “Desde o subúrbio a cidade o samba é novidade quem canta samba

é doutor, peço licença para dizer que hoje em dia o samba lá no morro também tem sua valia,

621 Você nasceu pra ser granfina. Carmem Miranda – (C.) Laurindo de Almeida. 622 Pescador grã-fino. Emilinha Borba - Braguinha, 1955. p5 623 Nego Bamba. (I) Lolita França – (C.) R. Marques, S. Rodrigues, V. Silva, 1940. p5 624 O samba da Gambôa. Moreira da Silva – Alexandrino, Ciro de Souza, R. Marques, 1945. p0 625 Quem conta um conto. Carlos Galhardo – (C.) Rodrigues, Patane, Niccolini, 1935. p5 626 Corta jaca. Considerando todo o rebuliço que causou a execução da peça no Palácio da República pela primeira dama Nair de Teffé, vale lembrar que o termo “jaca” à época fazia alusão ao órgão sexual feminino e que a dança do “corta jaca” evoluía pelo salão com as pernas do casal enganchadas roçando a virilha da mulher nas coxas do homem. Chiquinha Gonzaga, 1904. 627 Eu não tenho onde morar. Caymmi, 1960. 628 Alegria na casa de pobre. Abel Neto, Ataulfo Alves, 1940. 629 Samba não pode faltar. Osvaldo Santiago, Saint Clair Sena, 1947. 630 O samba agora vai. Pedro Caetano, 1946. 631 Sabor do samba. Germano Augusto, Kid Pepe, 1934.

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eu fui ao samba na alta sociedade vendo um sambista de smoking eu me senti a vontade”.

Tava na roda de samba632, 1932, “quando a polícia chegou, vamos acabar com esse samba

que seu delegado mandou, vamos agüentando negrada que o samba é de arrelia e quem não

tiver coragem que apele pra correria”. Samba633, 1942, “samba diplomata sonoro do meu

país, samba és do brasileiro a sinfonia popular, levas contigo a cadência tropical, vai meu

samba com teu ardor nacional. Sua excelência o samba634, 1951, “O samba diplomata

eminente que atravessa o continente é Brasil onde estiver, não deixem falar do samba”.

Samba no Rocha635, 1930, “mas que samba esse que tem no Rocha, samba escuro que só tem

cabrocha, samba de arrelia só dá gente bamba, a pancadaria faz parte do samba”. Se o samba

é moda636, 1930, “o samba era original dança dos pobres, no entanto hoje vive nos salões

mais nobres, ainda há quem diga que o samba não tem valor, mas lá se encontra o deputado e

o senador”. Traz o meu pandeiro637, 1950, “entra branco e tem preta e tem mulata, todo

mundo é democrata quando quer situação eu quero ver seu chiquê balançar seu dedinho cair

vendo as cadeiras da nega bulir”. Quero um samba638, 1943, “sou brasileira tenho a pele da

cor do sapoti, gosto do samba porque faz meu corpo sacudir”. O samba está com tudo639,

1961, “se vou em festa que um amigo me convida não me interessa se a festa é de granfino se

tem solo de violino virtuoso pra tocar, eu quero samba pra brincar com todo mundo porque o

samba num segundo faz a turma se esquentar”. Favela Amarela640, 1958, “Ironia da vida,

pintem a favela passem aquarela na miséria colorida, vamos ter no melhoramento, a dor como

tema de ornamento, procure compreender, Seu Doutor, a felicidade não tem cor”; Pedreiro

Waldemar641, 1948, “você conhece o pedreiro Waldemar, não conhece, mas eu vou te

apresentar de madrugada toma o trem da circular faz tanta casa e não tem casa pra morar, leva

a marmita embrulhada no jornal se tem almoço nem sempre tem jantar, o Waldemar que é

mestre no ofício constrói um edifício e depois não pode entrar”. AI! Favela642, 1956, “favela

abandonada por aí, somente o samba se lembra de ti, favela tão pequena é a distância, de ti

para a cidade feiticeira favela onde não sobe ambulância, favela sofredor a vida inteira”.

632 Tava na roda de samba. Salvador Correia, 1932. 633 Samba. Benedito Lacerda, darci de Oliveira, 1942. 634 Sua excelência o samba. (I.) Os cariocas – (C.) Januzzi, Leal Silva, Mutt, 1951. t4 635 Samba no Rocha. Teobaldo Marques, 1930. 636 Se o samba é moda. Josué de Barros, 1930. 637 Traz o meu pandeiro. Ruy Rey – (C.) Antonio Almeida, Pedro Caetano, 1950. p5 638 Quero um samba. Waldemar Gomes, Wilson Batista, 1943. t4 639 O samba está com tudo. Denis Brean, Osvaldo Guilherme, 1960. t4 640 Favela Amarela. Araci Costa – Jota Jr. Oldemar Magalhães, 1958. p4 641 Pedreiro Waldemar. Blackout – Wilson Batista, Roberto Martins, 1948. 642 Ai! Favela. Trio de Ouro – Brazinha, Paulo Medeiros, 1956.

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Falsa grã-fina643, “de Copacabana que vem a cidade no fim da semana, já sinto no passo um

andar diferente, pisando macio mexendo com a gente. Falsa grã-fina como é divertido você

nesse traje de seda banal dizer pra gente que não sai da praia, mas sempre a encontro num tem

da central, você faz distúrbio no velho subúrbio mostrando as anquinhas de modo fatal”.

Babá de Copacabana644, 1952, “você passa por mim todo dia com sapato novo no pé... eu

bem te conheço em Copacabana você é babá”.

BR:

Mangueira, Portela e Estácio de Sá traz teu samba bem gostoso tão brasileiro e convida o Salgueiro Como é bonito ver o morro no asfalto sambando partido alto porque a turma é verdadeira È preto é branco, todo mundo se mistura, samba pobre, samba rico, do Leblon a Cascadura645

SD:

O discurso de aproximação e até apagamento das distâncias sociais esteve presente no

repertório do cancioneiro popular em geral e no samba, particularmente em questões de ethos

urbano. Essa aproximação tanto apaziguava os ânimos frente desproporções e desigualdades

sociais quanto fixava certa estandardização do gosto, implantando elementos populares,

devidamente lapidados, no leque de consumo da classe média urbana. O samba de smoking,

os cantores do rádio, as revistas femininas e as chanchadas da Atlântida configuraram-se

como o carro chefe do cardápio. A popularização do gosto médio era inventada em paralelo a

invenção da crítica à estética elitizada.

BR:

Não sei que doença deu na Risoleta Que agora só gosta de ouvir opereta Cheia de prosa, cheia de orgulho Cheia de chiquê E faz fricote como o quê Não canta mais samba Só quer imitar Lucienne Boyer Parle moi d'amour Só quer l'argent, l'argent toujours Ela não sabe nem ler E já quer gastar o francês E diz que despreza Quem só fala português646 Você não perde a mania de construir castelos no ar Dizendo todo dia que o Presidente comigo vai se casar

643 Falsa grã-fina. Moreira da Silva, Alberto Costa, Oldemar Magalhães, 1953. 644 Babá de Copacabana. Chiquinho Silva, Francisco Neto, 1952. 645 Do Leblon a casacadura. Gilda de Barros – Arnaldo Moraes, Elias Ramos, s.d. 646 Menina Fricote. H. Batista, Marília Batista, 1940.

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Que eu vou ter apartamentos vou ser madame e residir a beira mar Que eu vou ter radio e geladeira e uma empregada pra lavar e cozinhar E por falar em casamento você já sabe quanto custa um quilo de feijão Um quilo de açúcar, farinha, manteiga, banha e o pão Já que essa vida está tão cara não adianta fazer orçamento Você não pode se casar ganhando dezessete e setecentos647.

SD:

Poxa, nem acredito que BR, RF e CM não cometeram ironias contra minha fala. Considerando essa

trégua, vou seguir então falando para meus pares SD. Atenção, demais Seus Doutores, por favor não

concluam que essa inscrição relativa às categorias raça e classe seria especificidade do samba ou dos

ritmos urbanos ou dos discursos RF e BR. De fato, nem sei porque o CM ainda está calado. Pôxa, o

BR com essa história de dezessete e setecentos te deu uma deixa danada pra você entrar falando. E aí?

Cadê?

CM:

Mas se eu lhe dei vinte mil réis Prá pagar três e trezentos Você tem que me voltar Dezessete e setecentos! Mas dezessete e setecentos? Dezesseis e setecentos! Dezessete e setecentos? Dezesseis e setecentos!... Sou diplomata freqüentei academia Conheço geografia sei até multiplicar Dei vinte mango prá pagar três e trezentos Dezessete e setecentos você tem que me voltar648

SD:

E de tabela CM ainda deu uma caçoada na Academia, não é mesmo, Seus Doutores (nós

mesmos)? Mas, voltando ao que dizia antes, da mesma forma que o conjunto de categorias

raça e classe sob condição política é inscrito pelos discursos RF e BR, também o é pelo

discurso CM. O peão e o ricaço649, fala do encontro de um peão num burro e de um ricaço

em um carro importado no qual o peão encarnando a esperteza do Jeca se sai melhor. “Surgiu

atrás do peão um homem rico importante. Ele vinha dirigindo um cadilac possante. Pediu

caminho pro peão num gesto deselegante. Tocando a mão na busina e businava a todo

instante. O peão apertava o burro pra ele correr bastante. Mas só pode dar passagem num

desvio bem adiante”. Ladrão de terra650, “Vou matar ladrão de terra dentro da minha razão,

647 Castelos no ar. Elesário teixeira e Max bulhões, 1947. 648 Dezessete e setecentos. Calango, 1947. 649 O peão e o ricaço. Sulino, Moacyr dos Santos, 1958. 650 Ladrão de terra. Jacó, Jacozinho, 1962.

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negar terra pros caboclo é negar pão pros nossos filhos, é tirar o Brasil dos trilhos”, espécie de

faroeste brasileiro, não sem alguma crítica social. Terra roxa651, “perguntar se esse preto tem

troco é deixar o caboclo muito envergonhado” fala de um preto que enriqueceu plantando

café; 13 de maio652 “é um dia muito bonito a congada se alevanta pra saudar São Benedito”,

fala do fim da escravidão; Gente garganta653, faz oposição campo x cidade com crítica moral

e social. “Meu pai foi velho tropeiro e não devia patrão, para mim não há dinheiro que me

compre o coração, eu vejo aqui na capital é só garganta e carnaval, o canto da sucurina no

sertão lá de tardinha vale mais que a cocaína que seduz os almofadinhas”.

CM/BR/RF/SD: Eu vim pequeno de Minas Gerais Criei-me aqui hoje sou rapaz E até já dizem que eu sou bacana Mas é porque eu tenho bolso e ando bom de banho Dou um banquete todo ano no palácio do meu mano Criei-me na Lapa no meio da boemia Freqüento a academia e moro em Copacabana Juro por Deus que nunca vi trabalho Mas sempre tenho um galho que me defende a grana Eu faço um terno por semana654.

SD:

A fala vem de Minas Gerais, como o caipira CM e freqüenta a academia e mora em

Copacabana como o SD e nunca viu trabalho como o malandro RF, mas é também bacana e

faz um terno por semana como o BR. Nessa última fala, resolvemos nos juntar, possivelmente

para arruinar com a própria diferença inventada. Ou mesmo propor o cansaço do jogo que já

expressa devir em outro lugar.

♪♪♫♫

Propomos agora outro jogo em que a pecha de Seu Doutor desloque-se afinal, não mais como

alegoria entre alegorias do cancioneiro, mas, como alguma coisa que sofre e ama e sente e que

por entre todo sentimento experimentado ele (nós) já não caberia (mos) nos limites dos termos

de um Doutor seja para quem e sob que relações com outros, qualquer outro. Mesmo quando

precisa (mos) ser Doutor (ou Seu Doutor) já caberiam e vão entrando ali inúmeras notas de

percurso, ligaduras, rupturas, expansões, bloqueios, questionamentos, interferências, ruídos,

movimentos, rasuras, rastros que contaminam a experiência de ser Doutor/Seu Doutor. O

651 Terra roxa. Tião Carreiro, Pardinho, 1961. 652 13 de maio. Congado anônimo, s.d. 653 Gente Garganta. Américo Paes Leme, 1921. 654 Mineiro sabido. Moreira da Silva, Cícero Nunes, 1938.

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movimento, por outro lado não fixa um possível, não-Doutor, apenas não permite que este se

complete como presença em si objetivada em termos explicitamente acadêmicos, aqueles que

se aproximam de um logos racional, blindado a toda adjetivação que os sentidos tomados

como não racionais contaminam, em geral, a partir do coração. E, é necessário afirmar, essa

incompletude expressa-se mesmo em um ambiente favorável à metafísica da presença em si

do Doutor, como , por exemplo numa banca de defesa, numa sala de aula num seminário.

Falemos do jogo. O jogo não se fixa (não pretende fixar-se) nem nos limites de um subjétil

literário nem de um subjétil acadêmico, deslizando no entre ciência/ficção, História/crônica.

Sem abrir mão de ambas as possibilidades, produz movimento que faz erguer uma terceira

margem que diz das duas, pode-se vê-la nas duas, mas não é exatamente a soma das duas,

nem diz de uma área de interseção das duas, como dito, a terceira margem se expressa nesse

entre, ao mesmo tempo possibilidade de diferença, possibilidade de desenhar a fronteira que

distingue, e de confusão, considerando que se pode perceber a terceira margem atuando dos

dois lados. Por isso diz de um efeito, não de uma coisa, objeto ou palavra, conceito, mas um

efeito, movência, a possibilidade de movimento que toda “coisa”, “palavra” e mesmo a

separação que permite a distinção entre coisa/palavra carrega desde já. O movimento de jogar

o jogo corresponde a deixar o jogo jogar considerando as possibilidades de movimento de

cada participante respeitando ou anarquizando estratégias, mas, a medida do possível,

sofrendo os efeitos que os movimentos inscrevem: meus/nossos movimentos, movimentos das

canções/rádio e do próprio jogo/papel. Consideramos que essa esquizofrenia/fragmentação

inerente ao jogo deve ser lida como pista e possibilidade de articulações entre os participantes,

não como veneno da falta de método a espera da cura logocêntrica, nem como cura

renovadora ao veneno da blindagem acadêmica. O labirinto já estava presente e nunca houve

a opção de não estar nele. Podemos fingir e pretender um mundo estruturado, reificado à

semelhança das distinções que nos são confortáveis, nada mais que isso.

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CONFETES E CONFLITOS DE UMA BELA ÉPOCA Pensamentos Crônicos em Isaura sob interferência do rádio e do papel.

Cheguei cansado do trabalho, logo a vizinha me falou...655

Na escuridão do quarto no segundo piso da casa de cômodos, o corpo afundado na cama, o

travesseiro engolindo a cabeça, o pensamento permanece nela, ingrata. O rádio, lá da

recepção, martela ouvidos com esse samba indecente.

Está fazendo meia hora que a sua mulher foi embora e um bilhete deixou, meu Deus que

horror, e o bilhete assim dizia: - não posso mais eu quero é viver na orgia.

A cabeça afunda mais no travesseiro, embalada pelas doses da orgia, bas-fond que se estende

da Carioca à Praça Tiradentes. Pensa nela, a ingrata. O rádio, incoerentemente alegre, não

perdoa os ouvidos.

Fiz tudo para ser seu bem estar, até no cais do porto eu fui parar....

A revista espera para amanhã de manhã o artigo. A argumentação, a pesquisa de época, os

personagens, entrevistas, mas, há de haver coerência em todos os aspectos. Como retornar ao

trabalho, à máquina, desafiar o papel que reclama, e remeter-me ao clima, aos ares, às

impressões de uma Bela Época, quando se leva o peito sangrado pela ausência ruge carmim

dos lábios de Isaura que a essa altura sabe-se lá por onde andariam?

Martirizando o meu corpo noite e dia, mas qual o que ela é da orgia.

Como se mergulha no espírito de uma Bela Época quando dela nada se experimenta? Como

disciplinar-se ao trabalho? Como escrever um mísero parágrafo que seja quando se tem Isaura

na cabeça? A cabeça submersa no travesseiro. O rádio adivinha meus pensamentos e toca

outra canção, coincidência quixotesca para me por de joelhos, rindo de mim mesmo. O que

me serviu de consolo, enquanto o rádio introduzia os primeiros compassos, foi outra canção

que anos mais tarde vai dizer. “Ali onde eu chorei qualquer um chorava656”.

Ai, ai, ai, Isaura, (Isaura não, Isaura não) hoje eu não posso ficar, se eu cair nos teus

braços não tem despertador que me faça acordar, eu vou trabalhar657.

O corpo salta da cama atendendo ao despertador da canção. Encaro a máquina de escrever

enquanto a cabeça gira anabolizada pela ressaca da imprecisa combinação de absinto,

fermentados e outros derivados da noite anterior. Mais mortal que a combinação é o

655 Oh! Seu Oscar. Wilson Batista, Ataulfo Alves, 1939. 656 Volta por cima. Paulo Vanzolini, 1962. 657 Isaura. Herivelto Martins, Roberto Roberti, 1944.

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pensamento em Isaura, o mais perigoso dos vícios, um jeito de ser ambíguo que provoca o

ócio658, dirá outra canção muitos anos depois.

Ai, ai, ai, Isaura, hoje eu não posso ficar...

Retorno às anotações antigas, páginas já escritas, entrevistas com personalidades da época,

Bela Época. Mas, também com uns tipos menos aristocráticos como Pedrinho do Largo,

famoso vendedor de modinhas659 que Luís Edmundo imortalizou em O Rio de Janeiro do meu

tempo.

O trabalho é um dever, todos devem respeitar, ô Isaura me desculpe, amanhã eu vou

voltar.

Sem Isaura nos braços, mas com Isaura nos ouvidos, investigo qual bela época seria essa. Dos

1900 de Bertolucci660 aos loucos anos 20 do pós-centenário, da pós-moralidade, da pós-

revolução. Anos 20 do pós-tudo? O artigo já teria título? “Retalhos belle-époquianos”. Algum

método? Talvez, uma tentativa de fazer contrastar por fragmentos os dizeres do bas-fond e do

palácio. Justaposição de retalhos como efeito que orienta o leitor por labirinto que se estende

entre a decadência do art nouveaux e os passos do shimmy. Paredes, passagens e corredores

como o método das caricaturas que distorce delicadezas e reinscreve brutalidades que o rosto

quer omitir.

Teu carinho é muito bom, ninguém pode duvidar, se você quiser, eu fico, mas vai me

prejudicar, eu vou trabalhar.

A caricatura de um clown, um pierrot de máscara dividida entre a metade negra e outra

branca: a ralé e a fidalguia, a favela e o palácio, o terreiro e o salão. Retalhos de experiências,

notícias, pequenos dramas, doces recordações, relatos da rua, de salões, de cafés, confeitarias,

botequins, anotações de diário, livro de receitas caseiras, notas e manuais de etiqueta,

folhetins. Retalhos atirados para o alto são confetes que pousam aleatoriamente sobre o papel

escrevendo-me o artigo. O papel escreveria o artigo? E procederia assim apostando na

desordem, no fora da ordem. O caminho direcionado se espalha como musgo, umidade no

concreto crescendo para qualquer direção. Ordem/desordem, luz/sombra. Bavcar661, o

658 Capitu. Luiz Tatit, 2000. 659 O vendedor de modinhas era de modo geral pobre, fosse branco, negro ou mestiço. Sua prática consistia em comprar com desconto folhetos de modinhas aos editores e vender os exemplares cantando seu conteúdo em logradouros públicos estrategicamente escolhidos para atrair seu público:grandes avenidas, praças, mercados. Para Tinhorão (1976), tais artistas de rua atuavam como menestréis modernos que viviam da música alheia com a comissão que tiravam da venda dos folhetos. 660 1900. Filme. Bernardo Bertolucci, 1976 (título original: Novecento). 661 Evgen Bavcar . Seminário: Muito além do espetáculo. Rio de Janeiro: Maison de France, 2003.

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fotógrafo cego, dirá que a luz sem sombra, cega. O rádio atento e já de papo responde em

cima com outro samba de amargar.

A luz negra de um destino cruel ilumina um teatro sem cor onde estou desempenhando o

papel de palhaço do amor662.

O calendário que não permitir estação orgiástica, pagã, Sabá, fogo, será amaldiçoado. O

civilizado que evitar o bárbaro rasgará a fantasia atrás do trio elétrico663. Escrever por esses

binômios ordem/desordem, moral/orgia, civilizado/bárbaro escrever como colcha de retalhos,

fragmento, bricolagem, jogo, combinação entre infinitas combinações que a Bela Época

dissemina.

O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada

a semente, o amor será eterno novamente664.

Falar do orgiasmo, do bas-fon, dos loucos anos 20 quando se traz o coração emudecido pelo

misantrópico impulso de aprender a ser só. Atormenta-me a companhia inevitável do rádio

que insiste em responder meus pensamentos. Escrever a metade branca da máscara do

palhaço, a alta sociedade, a Capital Federal, os políticos, doutores e bacharéis, madames,

mademoiselles, modern-girls e coquettes, os manuais de conduta e etiqueta, os diários das

candongas, a politesse, os smartismos, os voyerismos e arrivismos, as transações políticas e

financeiras, mercados, ações, commodities, recepções, cerimônias, palácios, salões, dancing,

flirt, footing, maisonnette, chás, xerez, bomboniéres, cafés. E depois a metade negra, o

lúgubre casario dos becos, colonial medievo, saltimbancos, pandeiristas, vendedores de

modinhas, pretalhonas quituteiras, a pancadaria das rodas de samba, capoeiristas, pedintes,

engolidores de espada, boxers, peixeiros, cocainômanos, trapeiros, carvoeiros, barbeiros,

parasitas, malandros, polacas, cáftens, mucamas, terreiros, batuques, favelas, cortiços,

Pequena África, tias baianas, botequins, quiosques enlameados no cais do porto, a estiva

diária que rebenta o peito e a cachaça que amortece. O papel transita no entre de duas metades

que vão se encontrando aqui e adiante. O “no entre” sambista/bacharel, o amálgama preto

doutor, Escola de Samba, mestre-sala, rainha do maracatu. Antropofagia que fagocita

enquanto se deixa fagocitar pelo outro. Lança-se ao outro e antes disso não havia samba, nem

Escola de samba, nem rainhas, nem reis momos. Não havia sequer a máscara clara e escura. A

lágrima clara sobre a pele escura665.

662 Luz Negra. Nelson Cavaquinho, 1966. 663 Atrás do trio elétrico. Caetano Veloso, 1968. 664 Juízo Final. Nelson Cavaquinho, 1973. 665 Desde que o samba é samba. Caetano,1993.

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Nasci no Estácio fui educado na roda de bambas, fui diplomado na Escola de Samba,

sou independente conforme se vê666.

Talvez não tão independente assim... respondo ao rádio que já não incomoda.

Aqui no Estácio, não posso mudar minha massa de sangue, você pode crer, palmeira do

Mangue não vive na areia de Copacabana.

Já não incomoda. Pelo menos, não como o pensamento em Isaura, a favorita das cabrochas de

alta classe que brincam o carnaval. Isaura que me disse adeus alegando incompatibilidades.

Não, não me diga adeus, pense nos sofrimentos meus, se alguém lhe dá conselhos pra

você me abandonar.... Não devemos nos separar, não vá me deixar667.

O destino caçoa quando impõe o trabalho ao abandono de Isaura. Morena, sandálias de prata,

da cor do pecado, da orientalidade banta de essências balsâmicas e cítricas perfumando

mistérios em sua pele clara/escura.

Morena boa que me faz sonhar bota a sandália de prata e vem pro samba sambar668.

Morena de uns braços que me abriam pórticos de cidade oculta, ruas estreitas, calçamentos

irregulares a brotar matinhos entre as pedras coloniais, natureza forçando passagem sob a

civilização mal assentada, chão ainda assombrado por fantasmas pré-diluvianos, o olor dos

óleos de baleia queimando em lamparinas cujas sombras bruxuleantes menos revelavam do

que escondiam histórias de barões, conquistadores, mascates, aventureiros, soldados,

sonhadores, poetas, piratas, donzelas, mucamas, feitores e negros de quilombos e senzalas. O

cheiro das conservas de damasco e do marrasquino de Zara, dos marmelos em quartos e das

frutas dormindo em aguardente ou avinagradas em grandes potes de vidro. Uma cidade que o

ausente corpo de Isaura já não me permite mais.

Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso que você tem é um corpo delgado da cor do

pecado que me faz tão bem, esse beijo molhado escandalizado que você me deu tem um

sabor diferente que a boca da gente jamais esqueceu669.

O destino caçoa finalmente quando, em estado de abandono, é preciso falar de mistérios e

roçagares de corpos, olhares fortuitos, passantes incógnitas e fugidias, galanteios nos bondes e

cafés, a alegria explosiva dos carnavais, ainda sob reminiscências do entrudo medievo, mas,

havia os corsos, ranchos, blocos, a boemia dos bares e botequins em que Sérgio Buarque,

Prudente de Morais e o recém chegado dos Estados Unidos, Gilberto Freyre, compartilharam

666 O X do problema. Noel Rosa, 1936. 667 Não me diga adeus. Paquito, Luis Soberano, J. Corrêa da Silva, 1948. 668 Isto aqui o que é? (Sandália de prata). Ary Barroso, 1942. 669 Da cor do pecado. Bororó, 1943.

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generosas doses de cachaça, prosaicas confabulações e gloriosos sambas e choros que iam

sendo feitos ali mesmo por Pixinguinha, Patrício, João da Baiana, Donga e Sinhô.

Rir, não se ri de quem padece. Sofre, meu coração sabe dizer670.

Enquanto as lamúrias se prolongam, o papel tece seu desafio – “Preencha-me logo!” Mas o

rádio/canções não se cala e quer participar como cronista, assim como o papel/crônica. Os

“Retalhos belle-époquianos” também querem se jogar, são confetes desses loucos anos e não

querem saber da ausência de Isaura. Ambos exigem em tom mais que imperativo –

Comecemos logo esse jogo! O jogo de uma bela época do qual participo eu, por pensamentos

com/sem Isaura, o papel por fragmentos e as canções pelo rádio.

RETALHOS BELLE-ÉPOQUIANOS

Comemorava-se o fim da Primeira Guerra Mundial (até então a única), a

ameaça da Internacional Socialista ficara restrita às lonjuras geladas da

Rússia, a burguesia balançava suas pérolas no dancing do Palácio

Guanabara à Rua Paissandu. Ia-se ao footing na Avenida Central e na Rua

do Ouvidor. Donzelas entregavam-se aos flirts nos jardins alcoviteiros dos

palacetes. Porém, ao fecharem os olhos já não se viam ali. Imaginavam-se no

mais novo dancing de Montmartre, caminhando nos Campos Elísios ou ainda

sucumbindo à cinematografia dos prazeres de Paris ou da Nova Iorque de

arranha-céus para se ver de maca, dirá Tom Jobim anos depois.

Heaven, Im in heaven and my heart beats so that I canHeaven, Im in heaven and my heart beats so that I canHeaven, Im in heaven and my heart beats so that I canHeaven, Im in heaven and my heart beats so that I can hardly speak and I hardly speak and I hardly speak and I hardly speak and I

seem to find the happiness I seek when were out together dancing cheek to seem to find the happiness I seek when were out together dancing cheek to seem to find the happiness I seek when were out together dancing cheek to seem to find the happiness I seek when were out together dancing cheek to

cheekcheekcheekcheek671671671671....

Década de 20, apogeu da Belle-Époque carioca. Que mistérios? Que sabores?

Que aromas? Que ritmos? Para Benjamin Costallat, o ritmo era o jazz que

não perdoa os ouvidos modernos e os martiriza até o amanhecer. Aqui como lá,

no Moulin-Rouge da Praça Tiradentes ou no Moulin-Rouge de Montmartre o

ritmo era o Jazz. Sempre o jazz, como um imenso hospício aos berros, entre mil 670 Rir. Vadico, Noel Rosa, 1934. 671 Cheek to cheek. Irving Berlin, 1935.

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luzes estonteantes dos restaurantes noturnos, tornitroa e explode, em

homenagem infernal às sacudidelas histéricas e lúbricas no shimmy. Mas, os

pares ainda se entrelaçam e nos braços um do outro desperdiçam juras

eternas e fugazes como o aroma de um puro cubano.

Quand il me prend dans ses bQuand il me prend dans ses bQuand il me prend dans ses bQuand il me prend dans ses bras, il me parle tout bas je vois la vie en rose, il ras, il me parle tout bas je vois la vie en rose, il ras, il me parle tout bas je vois la vie en rose, il ras, il me parle tout bas je vois la vie en rose, il

me dit des mots d'amour das mots de tous les jours, et ça me fait quelques me dit des mots d'amour das mots de tous les jours, et ça me fait quelques me dit des mots d'amour das mots de tous les jours, et ça me fait quelques me dit des mots d'amour das mots de tous les jours, et ça me fait quelques

choseschoseschoseschoses672672672672....

Porém, para Gilberto Freyre, recém chegado da francófona Nova Orleans, o

ritmo é o samba. Um samba que vem se aburguesando sob as influências do

jazz americano e das danças de salão, mas, que também guarda raízes no

lundu e no maxixe.

Se você jurar que me tem amor eu posso me regenerarSe você jurar que me tem amor eu posso me regenerarSe você jurar que me tem amor eu posso me regenerarSe você jurar que me tem amor eu posso me regenerar

Mas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixarMas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixarMas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixarMas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixar673673673673....

Após uma estada generosa em Nova Orleans, berço do jazz americano, Freyre

desembarcou no Rio curioso pelo bas-fond local, não exatamente a cidade da

aristocracia burguesa, do Café Paris ou das orquestras de Charleston no

Palácio Guanabara. Na companhia de outros intelectuais, Freyre queria

conhecer a outra metade da máscara. E descreve em seu diário o encontro entre

sambistas e acadêmicos: “Com eles (Sérgio Buarque, Prudente de Morais)

saí de noite boemiamente. Também com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a

uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos

Pixinguinha, Patrício e Donga” 674.

O Chefe da Folia pelo telefone manda avisarO Chefe da Folia pelo telefone manda avisarO Chefe da Folia pelo telefone manda avisarO Chefe da Folia pelo telefone manda avisar

Que com alegria não se questione para se brincarQue com alegria não se questione para se brincarQue com alegria não se questione para se brincarQue com alegria não se questione para se brincar....

O chefe da polícia pelo telefone manda avisarO chefe da polícia pelo telefone manda avisarO chefe da polícia pelo telefone manda avisarO chefe da polícia pelo telefone manda avisar

Que na Carioca tem uma roleta para se Que na Carioca tem uma roleta para se Que na Carioca tem uma roleta para se Que na Carioca tem uma roleta para se jogarjogarjogarjogar675675675675

672 La vie em rose. Edith Piaf, Louis Louiguy, 1946. 673 Se você jurar. Ismael Silva, Francisco Alves, Nilton Bastos, 1930. 674 Vianna apud Freyre, 1995, p. 19. 675 Pelo telefone. Donga, 1917.

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A canção inscreve a contaminação entre as metades clara e escura da

máscara, ordem e folia. A burguesa da Rua do Ouvidor que Machado de

Assis apelidou de “via dolorosa dos maridos pobres”. Casario imponente, lojas

sofisticadas e preços proibitivos. O papel lança fragmentos: Notre Dame,

Casa Clark, Torre Eiffel. Casas de chá e cafés: Paris, Deroche, Provence,

Colombo e Menères. Clubs para cavalheiros com smoking room e mesas de

poker. Palácio, palacete, garçonnièrre e maisonnette. O Hotel Avenida e o

Frères Provenceaux, “meublé, tapissé, ridauné a La mode de Paris”. Pensions

d´artistes, finos bordéis da Rua do Ouvidor. A casa Edison e a Garson onde se

encontram os novos “discos electros veroton”. O elã das condutas, etiquetas e

toilletes, luvas de pelica, bengalas com punho de madrepérola, casacas,

cartolas e coletes, gargantilhas para senhoras, lenços vermelhos de Rouen,

sedas da fábrica de Chantilly, peles, plumas, xales de cassa bordados de

prata e ouro, chapéus guarnecidos, musselina, casimira, cetim e veludo.

Maria, última moda, vive feliz recebe mensalmente os figurinos de ParisMaria, última moda, vive feliz recebe mensalmente os figurinos de ParisMaria, última moda, vive feliz recebe mensalmente os figurinos de ParisMaria, última moda, vive feliz recebe mensalmente os figurinos de Paris676676676676....

O papel por fragmentos também diz da outra metade: dos pés descalços, dos

muquifos, mafuás, feiras livres, zungas, estalagens e casas de cômodos. Dos

subúrbios que o trem alcança, da Favela, do morro de Santo Antônio, do

morro do Castelo. A metade dos despejados e dos espaços proibidos, das

sombras, da escuridão das ruas estreitas, dos terreiros da Pequena África. A

metade da valentia, das pancadarias e dos muitos amores do malandro que

caminha de tamancas, sorrateiro e prosa, lenço branco no pescoço, chapéu de

lado, navalha no bolso e pandeiro na mão. A cidade do bilhar, do “dadinho”,

do “bicho”, das apostas, da cabritada, da roda de samba, capoeira e

candomblé, das cuspidelas de cachaça, dos quiosques, da estiva portuária, do

cafetismo, dos prostíbulos e das pensões alegres, das coristas e cortesãs.

Mas o pobre não tem dinheiro tem que Mas o pobre não tem dinheiro tem que Mas o pobre não tem dinheiro tem que Mas o pobre não tem dinheiro tem que dormir no chãodormir no chãodormir no chãodormir no chão....

Não tiveram pena Não tiveram pena Não tiveram pena Não tiveram pena (...)(...)(...)(...) jogaram meus cacarecos no chão jogaram meus cacarecos no chão jogaram meus cacarecos no chão jogaram meus cacarecos no chão677677677677.... 676 Maria última moda. Elzo Augusto, Wilson Salles, s.d.

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As duas metades da máscara veneziana, clara/escura, mesclam-se uma por

cima da outra quando a noite faz acender na cidade a chama de Dioniso. Os

rígidos contornos perdem nitidez nos cafés-concerto e confeitarias

aristocráticos freqüentados pelo universo licencioso das “modern girls”,

cocottes e coquettes, meninas ambiciosas que a exemplo de Aimée, o “diabinho

loiro” machadiano do Cabaré Alcazar, alegram políticos, proprietários e

investidores, além dos malandros, cáftens, vendedores de ópio e cocaína. A

visão dual novamente perde contornos quando literatos e intelectuais

encontram-se com poetas, músicos e compositores do cancioneiro popular.

Doutor de anedota e de champanhota esDoutor de anedota e de champanhota esDoutor de anedota e de champanhota esDoutor de anedota e de champanhota estou acontecendo no café soçaite stou acontecendo no café soçaite stou acontecendo no café soçaite stou acontecendo no café soçaite só digo ó digo ó digo ó digo

enchanté, muito merci, all right troquei a luz do dia peenchanté, muito merci, all right troquei a luz do dia peenchanté, muito merci, all right troquei a luz do dia peenchanté, muito merci, all right troquei a luz do dia pela luz da Light.la luz da Light.la luz da Light.la luz da Light.

Enquanto a plebe rude na cidade dorme eu jantEnquanto a plebe rude na cidade dorme eu jantEnquanto a plebe rude na cidade dorme eu jantEnquanto a plebe rude na cidade dorme eu janto com Jacinto que é de Thormes. o com Jacinto que é de Thormes. o com Jacinto que é de Thormes. o com Jacinto que é de Thormes.

Teresas e Dolores falam bem de mim já fui até citado na coluna do IbrahimTeresas e Dolores falam bem de mim já fui até citado na coluna do IbrahimTeresas e Dolores falam bem de mim já fui até citado na coluna do IbrahimTeresas e Dolores falam bem de mim já fui até citado na coluna do Ibrahim678678678678....

Se o smartismo e o snobismo da metade burguesa não esgotam a curiosidade

da intelectualidade vanguardista, atraída pelo “exótico-popular”, pela via

inversa, as vozes da cultura popular sentem-se seduzidas pela ambience dos

salões da aristocracia apropriando-se de elementos da elite que interferem

profundamente em suas inscrições. As construções do sambista-bacharel, Noel

Rosa, do preto-doutor, Dorival Caymmi, e da própria instituição Escola de

Samba – recheada de referências da cultura de elite como mestre-sala, rei e

rainha do carnaval, Acadêmicos do Salgueiro, comissão de frente – inscrevem

a contaminação entre a cultura dos palacetes e a cultura popular de morros e

subúrbios.

Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba.Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba.Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba.Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba.

São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá sambaSão Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá sambaSão Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá sambaSão Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba679679679679....

João do Rio comparou o compositor de modinhas aos vendedores ambulantes,

tatuadores, cartomantes, coletores de sapatos e botas velhas, ratoeiros, 677 Cacarecos. (I) Dupla Ouro e Prata – (C) Miguel Roggieri, Osvaldo Cruz, s.d. 678 Café Soçaite. (I) Jorge Veiga – (C) Miguel Gustavo, 1955. 679 Feitiço da Vila. Noel Rosa, Vadico, 1934.

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trapeiros e caçadores de gatos vadios, desqualificando o compositor popular.

Porém, esse mesmo João também seria um dos primeiros literatos a circular

com desembaraço pelos terreiros populares, insistindo que a máscara deveria

ser desenhada pelo amálgama de seus matizes contrastantes, contaminando-se

um pelo outro. O cronista vai ao mundo dos cavalheiros e modern girls,

cocottes e demi-mondaines. Vai ao mundo do Teatro Lírico e do Teatro

Municipal sob os pés de Isadora Duncam e refestela-se na vida vertiginosa

que anuncia para breve, nas grandes capitais do mundo, um serviço regular

de bondes aéreos denominados de aerobus, prenúncio dos vôos comerciais e

aeroportos. Mas, o cronista vai também ao mundo das estalagens, dos

“zungas”, da estiva portuária, das rinhas de galo, dos terreiros de candomblé,

dos book-makers, dos cocheiros, dos sambistas e mendigos.

Em mil e novecentos a gente vivia a cantar e todo mundo sEm mil e novecentos a gente vivia a cantar e todo mundo sEm mil e novecentos a gente vivia a cantar e todo mundo sEm mil e novecentos a gente vivia a cantar e todo mundo sentia prazer em entia prazer em entia prazer em entia prazer em

dançar. Mas, hoje em dia, a vida é vazia não tem mais o mesmo sabor, ó que dançar. Mas, hoje em dia, a vida é vazia não tem mais o mesmo sabor, ó que dançar. Mas, hoje em dia, a vida é vazia não tem mais o mesmo sabor, ó que dançar. Mas, hoje em dia, a vida é vazia não tem mais o mesmo sabor, ó que

saudade que eu tenho de mil novecentos, amorsaudade que eu tenho de mil novecentos, amorsaudade que eu tenho de mil novecentos, amorsaudade que eu tenho de mil novecentos, amor680680680680....

O papel se agita. Gesticula. Quer dizer que não é só isso. Não, não é só isso. A

máscara da bela época se desdobra para além da favela e do asfalto. Quando

alguém olhou pra trás afirmando que houve ali uma bela época, mesmo sem

saber, já dizia de algo mais, algo que dissemina e já vai reterritorializando

para além da dicotomia ou dialética proposta, algo que atravessa favela e

asfalto, algo que vem debaixo do barro do chão. E assim dito, o papel já nos

carrega para uma pequena vila, pedaço de chão de terra e poeira, prefeitura,

praça e igreja, polígono, recôncavo, seara do sertão de parabelo na mão e

poesia na corda, carência que tudo quer, mas quase nada encontra, além de

menino magro e cachorro com nome de peixe. Quixabeira, fauna rasteira,

cobras e calangos, feijão catado, taperas de sapé, caibros e palha de pindoba.

Algumas bananeiras se elevam do resto da vegetação miúda, o sol vai se pondo

rubro e majestoso na barra, horizonte cerrado de nuvens que escurecem, 680 Em 1900. Alberto Ribeiro, Roberto Roberti, 1942.

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escurecem, mas cabulam o sagrado ofício de chover. Mas, é noite de festa, São

João, carnaval, fim de Quaresma, Reis, congado ou coisa igual. Lampiões,

candeeiros, lanternas coloridas, bandeiras e fitas, sanfoneiro, pifo, tambores,

repentes, cantores. Vinho do buriti, doces de juçara, carne de sol e charque,

arroz doce e de velho, feijão verde e de corda, tapioca, cuscuz de mandioca, bolo

de carimã, cocada, beiju, canjica, pamonha, manuê, milho assado, bolo de

milho, pirão, içá torrado, pão sovado, quentão, xinxim, garapa de tamarino,

jerimum, buchada, sarapatel, cachaça destilada da borra do melaço, caiana,

caxirim, quebra-goela, januária, jurubita, doce como alegria que verte do canto

e dos pés das caboclas, do branco das camisas de gala, das cores vivas dos

vestidos, dos bordados, estandartes, fantasias, palhaços, malabaristas,

baião, pé de serra, samba de roda, arrasta-pé, forrobodó, cavalo marinho,

bumba e personagens – o boi, a ema, o capitão, o boca-mole, o arlequim, a

catirina, a caipora e até o diabo. E a festa ecoou tamanha que se aos ouvidos

lhe chegassem, abadessas de convento, sisudos de salão e até defuntos do

cemitério, perderiam a rigidez e cairiam na farra da beberagem e dança. Num

canto a parte, protegidos pela sombra do matagal, bruxas, curandeiros,

catimbozeiros, preto-velhos atendem às mazelas de queixosos e a curiosidade

dos curiosos. Uma neta de escravos lê sobre pedras e conchas catadas do

fundo do Velho Chico, um bruxo cego confecciona bonecos de pano, uma velha

cigana, guarda diabinhos num vidro que respondem por ela durante as

consultas. Quebrantos, encantos, sortilégios, caruaras, mandingas, erva que

se bebe, que se masca, que se fuma, sacrifício de bicho, benzeduras, puçangas,

figas, patuás, relicários, fitinhas de três nós. Mães bentas, pajés e magos

sob sincrética liturgia. Orixás, caboclos, santos e anjos beberrões se

aproximam – Santo Antônio, São Benedito, São Brás, São Gerônimo, Santa

Bárbara a provar dos quitutes e licores ofertados. Um ou outro santo se

excedia na carraspana e ia dançar em volta da fogueira esquecendo os

lazarentos ou distribuindo milagres a granel. E pula o aleijado, e o cego joga

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peteca, a viúva passa de namorado e o casório é confirmado entre o noivo fujão

e a filha do delegado, enquanto as solteiras cantam – “Ai meu São João, dai-

me um noivo ou namorado antes que o dia apague a lua cheia do cerrado”.

Adornadas por miçangas, colares e búzios trazidos do litoral, chinelinhas e

rosário à mão. E o feitiço se faz entre busca-pés, balões, foguetes que alcançam

o céu e acordam mais um santo para a algazarra na Terra.

Como estamos distantes da Favela, do botequim, da Lapa, do Palácio e da

Colombo e ainda é Bela Época. São Jorge cruza com sua lança a besta da

solidão e convida corações sem ninguém às artes dos encontros, dos beijos e

dos carinhos, o sanfoneiro ataca, o forró pega fogo e a moçada já não quer

mais parar. Caiporas, sacis e boitatás rondam a mata pondo em transe

pacas, tatus, cotias, bacorinhos, bodes, jumentos e os cavalos da colcheia.

Foi quando a lua já quase se apagava no céu azulando que o papel se

aproximou do coletivo de magos e benzedeiras, que, percebendo sua presença, já

encerravam os trabalhos embrulhando a alquimia dos feitiços e a liturgia dos

santos que retornavam ao céu, alguns aos tropeços visivelmente embriagados.

Calam-se tambores, sanfonas, violas e cantores, o papel faz um sinal para nos

aproximar-mos, toma o vidro da velha cigana e liberta os juruparis, diabinhos

da mata, ali dentro escravizados, os bichinhos chifrudinhos de rabo e garras

desaparecem no alvorecer do sertão, o papel lança um olhar de censura à velha

bruxa. Da mesma forma que chegamos, partimos de volta deixando para trás

a forte chuva criadora que afugenta bêbados, fiéis e foliões perdidos no

caminho de casa. O papel pergunta: Onde está agora a máscara da tua Bela

Época? E, no entanto, era tão confortável pensá-la como duas metades

complementares.

Fica cada vez mais complexo caminhar pelos fragmentos. Afinal, tudo à época

seria Bela Época? O camafeu de porcelana sobre o criado mudo no quarto da

madame, assim como o Santo Antônio de barro sobre tosco pé de madeira

grudado à parede do fundo do armazém de “secos e molhados”? Que

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mistérios? Que aromas? Que ritmos? É possível que a gente da aristocracia

brasileira, ao desfilar sua mais fina indumentária de fraque e cartola,

chapéus de seda floridos e vestidos da Galerie Lafayette pelos bulevares de

Paris, degustando as madelaines proustianas, fosse atacada por um

incontrolável desejo de comer os “quindins de iá-iá”. É possível que os “Oito

Batutas” de Pixinguinha embarcando – possivelmente no mesmo navio Arlanza

que embalou rumo a Europa os desejos nefastos de Mademoiselle Cinema681 –

fossem seduzidos, não só pelo reconhecimento da elite européia, mas, também

pelos “ares civilizatórios” da capital francesa. Oito batutas seduzidos tal por

imagens erotizantes qual pelo discurso evolucionista, herança eurocêntrica do

século XIX ainda tão presente entre nós. E é possível também não haver nada

disso. Nenhuma Bela Época, como alerta o papel, além das paredes de taipa,

casas caiadas, cercas, mourão, pega de bois entre os espinhos da caatinga,

furto de terra e gado, conflitos de coronéis oitocentistas emergentes de

capitanias e sesmarias disseminadas em Canudos e Cangaços que não

dispensam os botões de prata, os adornos no chapéu de couro, a água de cheiro

e um Cavalo Branco tomado no gargalo.

Vai boiadeiro que a noite já vem Vai boiadeiro que a noite já vem Vai boiadeiro que a noite já vem Vai boiadeiro que a noite já vem

Pega o teu gado e vai pPega o teu gado e vai pPega o teu gado e vai pPega o teu gado e vai pra junto de teu bemra junto de teu bemra junto de teu bemra junto de teu bem682682682682

Ou ainda a força messiânica que vem de baixo do barro do chão que assenta

coronéis, governadores e padres santos umedeça e contamine o chão por baixo

das capitais reformadas a Lá Paris, o arco embandeirado e o coreto acusam

festa religiosa, crianças à moda do santo para pagar promessas, a silhueta

do arcanjo São Miguel, em folha de Flandres. A Sé no alto do Castelo guarda

o túmulo de Estácio de Sá, a ladeira da Misericórdia, ainda hoje presente, o

chafariz de Mestre Valentim, o Seminário de São José, Capuchinhos de São

Francisco, a casa da cabocla de Machado de Assis e a macumba do preto

681 Mademoseille Cinema. Benjamin Costallat, 1999. 682 Boiadeiro. Luis Gonzaga, 1950.

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João Gambá de Luís Edmundo. Sincretismos e preconceitos a parte, lá se iam

engravatados e distintas senhoras a guisa de conselhos.

No meio, no entre, Catulo da Paixão Cearense declama versos de cordel no

Palácio da República para o presidente Hermes da Fonseca antecipando em

1914 um movimento que Luís Gonzaga daria prosseguimento transitando no

Palácio do Catete de Vargas, Dutra e Juscelino.

Fim.

Rio de Janeiro, Junho, 1960.

Quanto a você da aristocracia que tem dinheiro, mas não compra alegria, há de viver

eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva a hipocrisia683.

O rádio toca com toda a força alcançando os cômodos da pensão. Junto com a música, a

incômoda lembrança de Isaura. Mas, também, à hipótese de que, se na Europa a separação

entre a cultura popular e a erudita sempre se mostrou mais rígida. Por aqui, mais do que uma

concessão das elites, mais do que a postura paternalista, de achar curioso o analfabeto

poetizando “sabedorias de roça e botequim”, mais do que relações de mera tessitura cordial,

para ambos os lados haveria a necessidade orgiástica da constante ocorrência desse encontro

apaixonado (para o bem e para o mal, ora violento ora amoroso) entre dois universos que se

imbricam e se bicam, mas não se largam.

O mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome. Deixando

de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome. A filosofia hoje me auxilia

a viver indiferente assim.

A simbiose do clássico e do popular, do rural e do urbano, do arcaico e do moderno, poderia

ser a resposta, a invenção que parte da sociedade brasileira (considerando a abstração que se

aplica ao termo sociedade brasileira), localizada em setores tanto da elite quanto das classes

populares, tem encontrado para, diante de condições/contradições históricas e contingentes

conviver e reinventar-se mesmo quando em condição material ou política adversa. Significa

pensar que as lutas e conflitos de nossa sociedade não deveriam ser pensados à luz de

paradigmas que emolduraram as análises das lutas e conflitos da Europa, ainda que soframos

constrangimentos aproximados, principalmente no que tange relações de exploração do

capital sobre o trabalho. Penso que esta seria uma idéia interessante a ser explorada, porém,

683 Filosofia. Noel rosa, André Filho, 1933.

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tendo em vista o dever cumprido, o artigo pronto, a cabeça torna a afundar no travesseiro

abstraindo-se inteira e completamente em Isaura.

Meu bem, este teu corpo parece, do jeito que ele me aquece, amendoim torradinho684.

E por onde andaria Isaura agora? Por que caminhos? Quem sabe está bebendo com seus

amigos de copo no botequim do Manuel na Rua da Gamboa onde, semana passada Paschoal

matou Zé Galego por causa da amásia Júlia685? Ou pior, quem sabe não encontrou um ricaço,

em um café qualquer da Carioca, que seduzido, momentaneamente, pelo mistério de sua pele,

está a cobri-la de miçangas, champanhe e promessas vãs, falsas como o brilhante que lhe

enfeita o dedo anular? Quem sabe não chora lágrimas verdadeiras, copiosamente

arrependidas, borrando o rosto com o ruge carmim que antes lhe pintava a boca, mas que

agora a faz parecer com um palhaço de um circo sem futuro? Quem sabe onde andará Isaura?

Quem sabe está na casa de Laurinda, de Santa Tereza, a alegrar seus convivas, com riso farto

e lábios generosos, entre jornalistas, modernistas e líricos do Municipal? Quem sabe está na

companhia de Geraldo Pereira, o rei da Lapa, cantando “Bolinha de papel” acompanhado de

seu violão?

Quero Seu Amor Minha Santinha

Mas Só Não Quero Que Me Faça

De Bolinha De Papel686

Isaura, mesmo que não saiba, inscreve o orgiasmo da cidade, roçando mundos distantes que

pelas deambulações de seu corpo se atritam, se coçam e se ungem do bálsamo benigno de

fontes pré-colombianas, cuja nascente, em noites mornas de verão, deixa revelar, aos olhos

dos que amam e odeiam, a figura escandalosa de Dioniso derramando seu néctar.

Samba do partido alto só vai cabrocha que samba de fato, samba de partido alto só vai

mulato filho de baiana e a gente rica de Copacabana, doutor formado de anel de ouro,

Branca cheirosa de cabelo loiro687.

Se o bonde de Santa Tereza avança sobre a floresta, se os trilhos marcam a terra como uma

cicatriz que a modernidade vai deixando sobre a natureza, em sentido oposto, o corpo

misterioso de Isaura evolui pelos salões da burguesia. Sorriso frouxo e quadris indóceis

chocando-se contra a cerimônia dos cavalheiros de negócio e a rígida politesse das damas de

salão, colorindo de ruge carmim o cinza de uma cidade, cuja vocação tropical interdita o

projeto modernista. A modernidade impõe seus jardins, parques e caramanchões e adestra a

684 Amendoim torradinho. Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1955. 685 CHALHOUB, Sidney, 1986. 686 Bolinha de papel. Geraldo Pereira, 1945. 687 Samba de fato. Pixinguinha, Cícero de Almeida, 1932.

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natureza às necessidades de uso do homem urbano, os navios que adentram a baía de

Guanabara já não trazem aventureiros garbosos nem relatos de bestas e tempestades marinhas,

além das notícias do Grão-vizir às terras do Vice-Rei. Os vapores da modernidade carregam o

ar entediado, o espírito blasé, dândis de uma burguesia abastada que transformara a aventura

em turismo, o mistério em rotina, viagens de negócios sob os ares civilizatórios da Europa.

Bilac costumava embeber-se de “parisiense”, o elixir da ambience de Paris, toda vez que se

hospedava por lá. Em homenagem à França em ocasião da Primeira Guerra, Laurinda,

mecenas de Santa Tereza que morreu pobre de dar dó, não tirava do dedo três anéis: uma

safira, um diamante e um rubi – era o seu bleu, blanc e rouge (Machado, 2002:114).

Paris! Paris! Teu rio é o rio Sena. Paris! Paris! Tens loura, mas não tens morena

Que lindas mulheres de olhos azuis! Tu és a Cidade Luz!

Paris, Paris je t´aime, mas eu gosto muito mais do Leme688.

A melhor resposta ao eurocentrismo basbaque de parte do discurso da elite e burguesia

caberia ao rádio mesmo dar.

A gíria que o nosso morro criou bem cedo a cidade aceitou e usou. Mais tarde o

malandro deixou de sambar dando pinote e só querendo dançar o fox-trote. Essa gente

hoje em dia que tem a mania de exibição não se lembra que o samba não tem

tradução689

Sem tradução, talvez fosse essa Bela Época, entre o fin de siècle e os loucos anos 20, em que

circularam pelas ruas da cidade falas que inventaram transformações dantes nunca

experimentadas. Mas, seria também mera invenção. Pois, alguém lá na frente, também vai

olhar para essa outra época a qual pretendo ou pareço estar vivendo, agora, e vai chamá-la de

“anos dourados” ou “trinta gloriosos”, não sei por que, não sei pra quem.

Me vejo ao teu lado te amo, não lembro, parece dezembro de um ano dourado. Parece

bolero, te quero te quero, dizer que não quero teus beijos nunca mais690.

Suaves passos pisam a escada de madeira em direção ao meu quarto. Um passo assim tão

suave só poderia pertencer a ela. Segundos de tensão. Paralisa-me o pensamento enquanto o

rádio lá embaixo já toca o que pode ser o prenúncio de infortúnio anunciado.

Nada consigo fazer quando a saudade aperta, foge-me a inspiração sinto a alma

deserta691.

688 Paris. Alcyr Pires Vermelho, Alberto Ribeiro, 1938. 689 Não tem tradução. Noel Rosa, 1933. 690 Anos dourados. Chico Buarque, Tom Jobim, 1986. 691 Peito vazio. Cartola, Elton Medeiros, 1974.

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Mau presságio ou tudo não passaria de coincidência e seria Isaura, de fato, ela mesma, que me

abre a porta do quarto e libera as dores do peito. Ela mesma, com seus braços machadianos e

seus infinitos tons de dourado-marrom. Ela mesma, salvo conduto a mão, convidando-me

mais uma vez a transpor os portais da cidadela misteriosa, escura e medieva. Mais uma vez as

essências cítricas e o sabor de tamarindo, o hálito de romã e os ruídos do fundo escuro de uma

selva, várzea, sertão que começa logo ali, ao fim da Rua Direita, colado ao trapiche de Aleixo

Manuel, onde se pesava o açúcar, equivalente de troca dos cariocas seiscentistas na falta das

moedas de cobre.

Um vazio se faz em meu peito e de fato eu sinto em meu peito um vazio, me faltando as

tuas carícias, as noites são longas e eu sinto mais frio.

Os passos continuam subindo lentamente a escada. De súbito o som interrompe. Ouço vozes

confabulando. Imagino ser alguém conhecido da pensão. Acho que conversa com a pobre

Alda. Alda, personagem da crônica, “Penélope” de João do Rio. Se a história não estivesse no

fim, abriria um parêntese para contar como a aristocrata Alda Guimarães, casta e fiel à sua

viuvez, depois de se engraçar por um mancebo de 18 anos, vendedor de voilettes na Ouvidor,

acabou seus dias de luxo e riqueza nessa modesta pensão do Catete.

Procuro afogar no álcool a tua lembrança, mas noto que é ridícula a minha vingança.

Vou seguir os conselhos de amigos e garanto que não beberei nunca mais, e com o tempo

essa imensa saudade que eu sinto se esvai.

O rádio momentaneamente silencia, a conversa acaba e os passos tornam a subir a escada.

Ouço-os agora estalando de leve o assoalho do corredor. A porta de meu quarto escuro se

abre. Mas, mal consigo decifrar a silhueta que se desenha na penumbra da contraluz de uma

lâmpada do corredor que me ofusca os olhos. A luz brilha exatamente por detrás do contorno

misterioso, sombra parada à minha porta. A voz sai fraca, debilitada de emoção e cansaço.

- Isaura, é você?

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ

Desperta a cidade o sol no céu flutua ele é a mocidade a saudade é a lua

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ

A felicidade promete, mas não vem, só vem a saudade, saudade é querer bem

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ

Chega o dia desaparece a tristeza fica alegria pela própria natureza

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ692

692 Ao romper da aurora. Francisco Alves, Lamartine Babo, Ismael Silva, 1932

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♪♪♫♫

Quem sabe a canção portuguesa dos anos 2000 não viria nos redimir de Isaura, do rádio-

canção e do papel falante, doloprazerosa ausência/presença da canção que cumpre um

percurso de 500 anos de deriva em rizoma? Efeito ritornelo da própria canção que agora

repercute no tempo daquele que me escreve escrevendo Isaura. E dada essa disseminação

sujeito/tempo/espaço, o que isso realmente importa? Falo de um eu inventado no futuro que

através de mim me reinventa na canção portuguesa dos anos 2000? Falo por uma canção

portuguesa que escuto por aquele que me escreve? Canção que repercute como peças de um

jogo de armar trazido desde a primeira caravela e levado desde o último e-mail enviado pela

internet? Cânticos, danças, versos, instrumentos, o sistema harmônico tonal, a imprecisa

sincopa ibérica que a poliritmia e o sistema modal africano, a meio caminho do caminho para

as Índias de ragas, bhajans, e mantras, contribuíram para torná-la mais imprecisa. Ainda havia

as rodas infantis, as danças dramáticas, Pastoris, a Nau Catarineta e o Reisado Lusitano que

dissemina na Folia de Reis e no Bumba-meu-boi. A moda, o acalanto e o fado de tantos

interfluxos urbanos entre a província e a corte. As formas líricas e poéticas declamadas na

casa-grande sob a interferência do batuque da senzala e do eco não tão distante da voz do

muezim que do alto da mesquita chama os fiéis ao encontro do profeta, tradição que

transpassa o Nordeste freyreano pela luz vazada dos muxarabis que protegem a janela do

quarto das candongas. A viola ibérica, o pandeiro árabe, o machete, a marimba, o tambor, a

flauta, a sanfona, o ganzá. Goa, Angola, Portugal, Brasil, Moçambique, Timor, Índia, Espanha

e Marrocos disseminam-se como tempo, espaço e sujeitos. E, se todos esses argumentos para

justificar a presença de uma canção portuguesa no cancioneiro popular brasileiro não forem

suficientes, eu diria que seria ela, essa canção que, no momento, apresenta-se para traduzir,

dizer e dar a melhor solução ao impasse de Isaura, ao impasse que todas as Isauras, Amélias e

Emílias provocam nos corações que amam e dominam. Canção-passarinho no papel falante

que agora canta o ninho como ninguém, mas, tudo pode passar em um desencanto seguinte e a

vida não acabará por isso, pelo menos não por isso, como jurou de pé junto, por décadas a fio,

a nossa não menos risível teledramaturgia folhetinesca, já considerando o quanto é risível,

agora, o parnasiano gesto das canções que morrem de amor. Delas o fado reinventado faz

troça.

Eu tenho um melro que é um achado de dia dorme, à noite come e canta o fado. E, lá no prédio, ouvem cantar... já desconfiam que escondo alguém para não mostrar. Eu tenho um melro, lá no meu quarto. Não anda à solta porque se voa cai sobre os gatos. Cortei-lhe as asas para não voar. E ele faz das penas lindos poemas para me embalar.

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Melro, melrinho, e se por acaso alguém te agarrar, diz que não andas sozinho que és esperado no teu lar. Melro, melrinho e se, por acaso, alguém te prender, não cantes mais o fadinho, não me queiras ver sofrer. E não me voltes mais que estas janelas não as abro nunca mais. Eu tenho um melro que é um prodígio. Não faz a barba, não faz a cama, descuida o ninho... Mas canta o fado como ninguém. Até me gabo que tenho um melro que ninguém tem. Eu tenho um melro... (Que é um homem?) Não é um homem. (E quem há-de ser?) É das canoras aves aquela que mais me quer. (Deve ser homem!) Ah, pois que não! (Então é mulher) Há de lá ser!? É só um melro com quem dá gosto adormecer. Melro, melrinho, e se por acaso alguém te agarrar, diz que não andas sozinho que és esperado no teu lar. Melro, melrinho e se, por acaso, alguém te prender, não cantes mais o fadinho, não me queiras ver sofrer. E não me voltes mais, que a tua gaiola serve a outros animais693.

♪♪♫♫

A invenção e o cansaço do jogo: considerando que para bom entendedor, boa parte das vezes, meia palavra não basta.

O jogo foi inventado com o objetivo e o desejo de expressar um debate entre alegorias,

sujeitos discursivos estabelecidos por relações sociais, logo por relações de troca, parcerias,

poder e dominação que ocorrem preferencialmente no que se convenciona pré-denominar de

campo do cancioneiro popular brasileiro, considerando circunstâncias dos contextos e

participantes externos, não exatamente como subjacentes ou periféricos ao debate, mas como

forças presentes, capazes de produzir mais do que interferências, determinações nas

estratégias de nossos paladinos alegóricos, Rapaz Folgado, Contente Magoado, Barão da Ralé

e Seu Doutor que, nunca é demais lembrar, em parte somos nós mesmos. A forma de jogar diz

respeito a permitir que o subjétil som/papel através das falas das alegorias interfira, corrija e

enlouqueça, traia e colabore com o que a fala das alegorias se esforça para dizer. Entre as

quatro alegorias há uma diferença preliminar que o jogo em seu decorrer faz deslizar. Seu

Doutor tem um “dizer sobre” o cancioneiro popular que provoca reações em seus ouvintes,

autorouvintes, alegorias, inclusive nele próprio. Essas reações expressam-se dada a

possibilidade da alegoria/autorouvinte assumir de forma contingente certo lugar, caractere,

valor: seja pelo teor do debate, considerando que o tema expressa, sempre em relação

socialmente construída, este ou aquele valor, esta ou aquela importância como signo que

693 Eu tenho um melro. (I) Ana Bacalhau – (C) Pedro da Silva Martins, 2003.

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estabelece signos de poder, de hierarquia social, etc. seja pela consideração de qual ou quais

participantes assumem, sempre circunstancialmente, que lugar, que caractere, por exemplo,

conservador, transgressor, ambos ou nenhum dos dois. Considera-se ainda a interferência

constante que contexto694 (rasurado pela idéia de khôra) e participantes externos

(considerando o deslocamento da polaridade dentro/fora), Governo, polícia, Academia,

imprensa, patrão, proprietários provocam nos debates circunscritos ao cancioneiro popular

brasileiro, repercutindo em estratégias, tomadas de posição das alegorias. Joga-se o jogo a

partir de certo repertório de falas de BR, RF, SD e CM, não só preexistente ao jogo, mas

contaminado por inúmeras influências analíticas, interpretativas e dialógicas produzidas

anteriormente sob a invenção de valores e necessidades que relações sociais estabelecem

como práticas de sobrevivência, dominação, insubordinação, convivência, ascensão etc. O

jogo, ainda que considere a interferência do contexto, é jogado de forma anacrônica rompendo

com a linearidade e mesmo com a circunscrição das falas à época em que foram enunciadas.

Considera-se que as forças que elegem falas não seriam específicas nem estariam contidas a

um determinado contexto, mas, respondendo a devires e recalques que atuam no calor do

momento recomeçando sempre aqui. Por exemplo, o samba trabalhista da mesma forma que

se deixava cooptar pelo discurso varguista, expressava ali mesmo não só os anos de

criminalização e segregação que sofrera entre as duas primeiras décadas do século, mas a

possibilidade de produzir micro-poderes capazes, a partir da contaminação e aproximação dos

signos sambista e trabalhador, de transformar condições sociais, minimizando percepções de

exclusão, preconceito, mitigando dores e abrindo possibilidades de ascensão e re-qualificação

em dimensão material, ideológica e axiológica. Ali mesmo, no samba trabalhista, seja no

discurso de adesão BR ou no de insubordinação RF, estava vivamente presente esse

deslizamento, rasura, arqui-origem temporal contaminando o discurso trabalhista com as

dores e esperanças que dizem de outra temporalidade, aquém/além do Estado Novo. No

roçagar do jogo sendo jogado, busca-se deixar as alegorias falar entre si colaborando ou

traindo o que a outra constrói como interpretação contaminada por inúmeras outras

interpretações e análises.

694 Apesar de sofrer contaminações ao longo do jogo, ainda seria possível pensar em contexto como algo um tanto amplo e obscuro, mas que permitiria experimentar a sensação perceptiva de certo clima, espírito que diz respeito desde a assunção/produção de signos hegemônicos relativos, por exemplo, à moda, costumes, práticas de consumo, valores, preconceitos, tecnologias, moral até a leitura histórica, senso-comum científico, que discursos contemporâneos/constituidores do próprio contexto, produzem de si, tomando por base a constituição, invenção, de uma herança e de um devir, conscientemente ou não.

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Ainda que a determinação de um contexto fechado deslize, existe a percepção de um feixe,

khora, labirinto rizomático que se expande, às vezes se contrai, em geral, sempre se move.

Uma vez estabelecido o jogo, os participantes, as relações de poder entre si, os caracteres e

estratégias menos variáveis de cada participante, o negócio é deixar os quatro falarem. Deixá-

los interferir e contaminar a fala um do outro experimentando mais do que polifonia uma

miríade de sentidos, nem como razão que quer apontar qual o sentido dessa fala, nem como

sentimento, o sentido que é despertado quando se diz/ouve essa fala, mas como um “no

entre”, efeito de diferança que é fronteira e confusão e que permite separar e perceber o que

há em comum ente os dois elementos da oposição e por isso mesmo articulá-los percebendo a

lógica que estabelece a oposição, para por fim ser possível, não diria superá-la, mas permitir

ao labirinto crescer paredes, passagens e corredores para além dela. Talvez, essa seja a

pretensão do jogo. Jogar o jogo diz desse exercício lúdico/racional, sem especificar os dois

aspectos e a oposição, de fazer mover peças que se reconfiguram em um tabuleiro que

também se move, possivelmente para nos afirmar que nem a terra foi quadrada nem as naus

caíram num abismo depois de ultrapassar a suposta fronteira do oceano desconhecido.

Joga-se o jogo operando e sendo operado por um repertório de canções, falas, que se

apresentam ao debate, deixando-se cooptar ou insubordinando-se. Apresentam-se como fala

que ouve um ouvido falante. O jogo se aproxima da estrutura de certos sonhos em que se

exerce controle sobre parte da ação e dos elementos, outra parte opera a revelia ora

conspirando a favor ora contra o desejo e o medo de quem sonha, a ponto desse sujeito

sonhador já não se perceber como tal, mas como mais um elemento entre os que já operam e

os que podem surgir no decorrer do sonho. A fala das canções se apresenta a partir de um

repertório que parecia já corresponder a um corpo fechado e lógico sobre o qual se operava

com total controle, porém no decorrer do jogo o repertório foi expandindo-se e contraindo-se,

movendo-se entre falas e respostas relativas aos diálogos e dialogismos estabelecidos e

rasurados entre as alegorias. A sensação de controle e mesmo o desejo pelo controle como

necessidade metodológica torna-se questionável, o derrubamento e deslocamento da

hierarquia sujeito/objeto passa a ser o alvo de atenção epistemológica operando sob a massa

amorfa e rizomática de falas e escutas. Essa fala/escuta, uma vez apresentando-se para

exercício de comunicação e troca entre alegorias, opera antecipando-se as tentativas de

controle que, principalmente, a alegoria Seu Doutor estaria predisposta a exercer. Digo

principalmente porque em certas horas ninguém se furta ao desejo e ao poder de dizer o que a

coisa é: o samba é..., o Brasil é..., a roça é... As respostas e falas vão se montando e

desmontado a partir de um repertório que também se monta e desmonta. Elegem-se e

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desabilitam-se falas e respostas, questões e grupos de questões em que o debate sinaliza não o

limite, mas possibilidades, devires, que a discussão enceta. É para além do possível que se

deve liberar a fala dos participantes. Assim devem funcionar os quatro repertórios – SD, RF,

BR e CM – respeitando uma única e definidora ética do jogo: não preestabelecer prevalência

ou poder de fala ou alegoria, aquém ou além da própria lógica do jogo. Todos falam entre si,

porém, deixando atuar a própria lógica do jogo, já se assume o estranhamento que o Seu

Doutor provoca como alegoria que invade o suposto campo do cancioneiro popular. Seu

Doutor que afinal invade o campo do popular, considerando que a princípio não se especifica

sambista, caipira, dançarino nem brincante, mas alguém que os denominou de populares,

estabeleceu-os como folclore em oposição à sua outra/própria fala erudita, fala da elite, mas

que também já fez deslocar essa diferença e já se aproxima e se deixa contaminar tanto quanto

contamina. Considerando enfim o duplo movimento de estranhamento e aproximação, não é

de se surpreender que as falas e respostas direcionadas ao Seu Doutor prevaleçam. Porém,

isso não significa que as demais alegorias não debatam ente si nem que assumam diferentes

posicionamentos ou estratégias dependendo da circunstância que o jogo apresenta. Quando o

Seu Doutor interpreta/constrói o signo mulher da maneira como ele é inscrito pelo cancioneiro

popular, as outras alegorias podem trair sua interpretação expressando falas que entrem em

choque, paradoxo, obrigando o SD a fazer ressalvas sobre ressalvas ou simplesmente desistir

de enfrentar as provocações das alegorias. Mas, vale a pergunta, porque as alegorias

sabotariam a interpretação relativa ao signo mulher? Possivelmente, e isso vale para a maioria

das provocações, porque não querem se deixar enquadrar por uma estrutura ou lógica

construtivista totalitária que encerra o signo mulher inscrito pela fala cancioneiro popular

numa relação polarizada na oposição dominador/dominado: ora o signo mulher se deixa

subordinar ora subjuga, sempre em relação ao signo homem. A traição do subjétil, papel/som,

expressa na fala das alegorias RF, BR e CM, diz respeito nesse caso a não permitir a

construção do signo circunscrito pela oposição, pelo menos, não de uma forma confortável

para SD.

O cansaço do jogo não determina o fim do jogo, talvez possibilidade de retomada do mesmo

sob outra condição, outra regra, outras alegorias (e ainda assim haveria algo que nos

permitiria dizer se tratar do mesmo jogo e das mesmas alegorias renomeadas). Trata-se da

percepção arbitrária, sensação e desejo de passar para outro jogo, não totalmente outro, mas

estabelecido a partir de outras alegorias, talvez o mesmo subjétil, papel/som agora assumido

ele próprio como alegoria. Não, definitivamente, não se trata do término do jogo nem do

estabelecimento de um jogo totalmente outro. Trata de deixar espaços, vazios, na expectativa

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de serem preenchidos, deixá-los como devires, respiros da narrativa. Se há quem se proponha

ou reclame o estabelecimento de um fim que tente por si. Mas, de fato há um cansaço e desde

já de dentro dele emerge a vontade de jogar outro jogo, muito possivelmente, demonstrando

as possibilidades de movimento, a movência, condição dessa possibilidade que o jogo guarda

como caractere constante. Mas esse caractere, diz respeito a uma condição de possibilidade de

movimento, não a um sempre mover-se. Esse já diria de outra constância presente em todo

jogo, porém, traída sempre que se constata a falta de constância que o não-movimento diante

da possibilidade de movimento expressa. O cansaço do jogo não diz exatamente desse não

movimento, a não ser que se interprete o vazio subseqüente ao corte, à ruptura, ao anacoluto

como estagnação do subjétil, porém outra interpretação diz respeito àquela do espaço para se

entrar gritando, interferindo, esperneando dentro do que já se estava na condição de

autorouvinte, Seu Doutor, autor/leitor, ou qualquer outra forma de palavra que diga dessa

condição participativa no jogo.

O autorouvinte pode se perguntar para que serve então jogar o jogo. E aí, vale redizer o que

foi colocado preliminarmente como objetivo do jogo para afirmar que o jogo objetiva o

estabelecimento de uma ética participativa em que a atenção (mesmo a vigilância, com toda a

antipatia que essa palavra sugere), sobre fixações de conceitos, distinções, analogias, sínteses

e classificações devem reconhecer seus próprios limites, incompletudes, de forma não a

envergonhar-se delas, mas como positividades que encetam espaços de respiro e

possibilidades de troca, diálogos, interferências e participações. O jogo fala dessa ética do

outro, desse enorme respeito pelo outro dentro de si, desse mergulhar no outro, desse amor

pelo outro, a ponto de tornar incerta a distinção. Jogar o jogo é permitir o outro dentro de si e

vice-versa. É buscar não permitir em nenhuma instância o estabelecimento de um objeto

objetável frente um sujeito que o observa no interior do cadinho alquímico enquanto produz

anotações dessa suposta realidade. A questão diz respeito a enxergar o mesmo caderno de

notas na mão de quem está dentro do cadinho anotando sobre aquele que supostamente o

observa de fora. Dar voz a essa escritura faz romper o vidro e inscreve a possibilidade de estar

sensível às injustiças, maldades, desequilíbrios, avarezas e iniqüidades não mais da

perspectiva da sombra/luz da caverna que estabelece o real frente a cópia frente o simulacro,

mas a partir da própria invenção da fala do outro que sofre, as injustiças não como categoria

mas como gente que fala, ama, deseja e que no mínimo seria feita para brilhar e não para

morrer de fome encarando as reais condições que relações de produção e troca assim se nos

apresentam. E aí? Vamos pedir a saideira?

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A saideira e a conta Não gostaria que os anacolutismos desse corpus fossem por nós, autorouvintes alegóricos,

interpretados como falta ou perda. Ao contrário, refletem movimentos que se aproximam,

buscam semelhanças, com o que entendemos por pensamento, coisa que não se auto-exerce

apenas por séries lineares e, quando escrevemos/lemos isso, agora mesmo podemos pensar em

uma mesa de boteco com batuque de faca e prato, em um pato, uma laranja, um pato no

tucupi, a cidade de Belém e que somos do mato como um pato e um leão e como na canção.

Nesse feixe que se reproduz rizomaticamente para lá para acolá, por mais de um, já seríamos

pelo menos dois, se não três, espécie de premissa esquizofrênica expressando-se à semelhança

do pensamento que sucede imagem-tempo sobre e entre imagem tempo695. Esse feixe diz de

nossos parâmetros especificados como racionais e irracionais, de nossas racionalidades tal

qual nosso sentimento. E seria possível estabelecer essa distinção? Diz-se canção que quando

a gente está contente até barata pode ser um barato total. E quando a gente está contente?

Quando a revolução vier e sob o peso dos conceitos, da história e sob a brutalidade e

linearidade do tempo cronológico esmagar as injustiças e sonhos mesquinhos, assim por ela

julgados? Ou estamos contentes de outra forma? De muitas e muitas outras formas?

Caminhado e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não que a

canção portuguesa respondeu ironicamente, décadas depois, sob toda a responsabilidade

histórica da Revolução dos Cravos e do sangue que os totalitarismos brutalmente sempre

derramam: Agora sim, temos a força toda! Agora sim, há fé neste querer! Agora sim, só vejo gente

boa! Vamos em frente e havemos de vencer! Agora não, que me dói a barriga, agora não, dizem que

vai chover, agora não que joga o Benfica e eu tenho mais o que fazer696.

Não gostaria que os anacolutismos do texto fossem interpretados pelos mesmos referidos

como novo método, aplicação de uma episteme pós-moderna da desconstrução, ruptura de

algo arcaico datado historicamente e que já vamos deixando para traz, como uma velha pele

695 Em Deleuze a Imagem-tempo seria a melhor tradução da Imagem-pensamento. Ela expressa o reflexo da imagem cristal, soma de uma visão atual com outra virtual da memória, que sulca o fluxo do pensamento, desatina-o. A imagem-tempo é mais legível que inteligível, não é dada à compreensão, a não ser às interpretações psicanalíticas, considerando as especificidades do campo da psicanálise. Ela produz uma multiplicação de parâmetros que explode a linearidade narrativa em reencadeamentos de imagens recomeçados por cima de cortes e ligações irracionais entre as imagens, como feixe, como fluxo que não permite o tempo ser subordinado à linearidade do movimento. Deleuze especifica essas categorias como uma tentativa de produzir uma filosofia própria da imagem, mais especificamente do cinema. Divide a produção cinematográfica do século XX em: Imagem-movimento, tempo subordinado ao movimento, característica do cinema clássico e das narrativas lineares, e Imagem-tempo, movimento subordinado ao tempo, característica do cinema moderno de autor, em que a linearidade seria rompida por anacolutismos que buscam aproximar a narrativa do fluxo do pensamento. 696 Movimento Perpétuo Associativo. (I) Ana Bacalhau – Pedro da Silva Martins, 2007.

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da qual finalmente nos livramos. Ao contrário, eles sempre estiveram lá, e contra eles, toda

uma tradição racionalizante, taxionômica, classificatória de aspiração totalitária que acreditou

dar conta da origem/fim de fenômenos postou-se bravamente. Porém, lutar contra eles que

sempre constituíram semelhanças com o próprio exercício do pensamento diz respeito a crer

em certa mitologia fundadora de um logos, rátio que se especifica como produto privilegiado

do pensamento. É dessa hierarquização que a porção esquizo do pensamento pretendeu tratar

através dos jogos por nós manuseados. Não se trata também de uma inversão. A partir de

agora, dessa ruptura proposta, seremos melhores enquanto textos anacolutos. Não, porém,

trata-se de permitir os movimentos de entrelaçamento entre textos aparentemente racionais e

emocionais, sensíveis ao “no entre”, à brizura, ao subjétil, que simultaneamente permite

estabelecer distinção/fronteira e semelhança/confusão, participações de um texto no outro,

estratégias de luta, tentativas de dominação, cooptação, motins, subversões cladestinas, soma

de forças, pactos. Propomos o deslocamento dessa hierarquia a ponto de invalidá-la como

modelo hegemônico estabelecido pelas epistemes clássica e moderna. Esse deslocamento não

implica a anulação do ratio, como dito, mas, da distinção simples, da parcela da razão que

organizava e sustentava o estabelecimento não só da hierarquia, mas da própria polarização

dicotômica ou dialética.

Produzir esse movimento diz do objetivo geral do corpus que não pretende apenas ser lido,

mas jogado, possivelmente reescrito. Anacolutismos como espaços de respiro, portas por onde

se pode entrar, rasurar, interferir no jogo, propor outro jogo. Como? Isaura bate à porta? As

canções batem à porta? Amélias e Emílias? Rapaz Folgado, Barão da Ralé, Seu Doutor,

Contente Magoado batem à porta? O papel bate à porta? De dentro a voz claudicante pergunta

quem é e quantos são. Há a possibilidade de serem todos ao mesmo tempo? Para começar o

jogo já seríamos pelo menos dois se não três. Alguém se habilita?

Ressaca:

A ressaca segue à violência de esgotar o texto, estancar o fluxo. A violência da saideira a qual

nos submetemos quando ainda havia por dizer. A violência do fim, da morte no livro, do

livro. A morte que o livro sofre e provoca. Mas, a tese é um livro, deve esgotar-se com e no

livro, ainda que todo o resto, o fora do livro, insista em querer prosseguir. Provocando

tedesterritorializandanças para muito além dos dialogismos impertinentes que certa vez

compomos como grande ousadia frente à outra brutalidade que a palavra ciência encerra e

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dissemina. Na página 133 (isso já parece uma autópsia), falou-se (e esse sujeito indeterminado

até parece um defunto) da música como estrutura outrem. Mais que a possibilidade de relação

com a alteridade, possibilidade de relação a partir da territorialização que o outro propõe.

Derrida no indecidível “animot” sentiu vergonha de estar nu diante de um gato. Mas, o gato

também está nu, ou ainda, nunca esteve nu, porque a nudez é uma invenção, uma

territorialização alheia a territorialização do gato. O que o levou a perguntar qual seria a

invenção do gato que agora mesmo o olha de onde está. Qual ordenamento, qual

territorialização o olhar do gato inscreve, provocando reação no objeto olhado, ele mesmo,

Derrida, que, uma vez a-sujeitado, reificado, pelo gato, necessita cobrir-se, envergonhar-se de

sua nudez, re-sujeitar-se e responder. Mas, não a partir de sua própria ordem, antropocêntrica,

envergonhada pela e da própria nudez, mas a partir da ordem do gato que o olha e já

territorializa, animot.

A música, como a língua, é para Rousseau uma condição moral (não física), de natureza imitativa (e não natural). Diria que talvez fosse necessário ouvir/pensar a música indígena (para torná-la como paradigma daquela que não é ocidental) não apenas como plausível de ser deduzida ou composta de acordo com uma lei da física ou matemática e nem como a expressão de uma nobre moral ainda que movida pelo calor da comunicação afetiva e pelo ato criativo da imprevisibilidade performática. Mas, deveríamos, pensá-la/ouvi-la como a expressão de uma outra ontologia. Nessa ontologia ameríndia, o canto e a música curam e constroem pessoas, permitem viagens cósmicas, pois nela já não há uma natureza e várias culturas e sim uma única cultura co-extensiva aos seres naturais, por isso, onde ouvimos grunhidos, gritos e risos dos homens e mulheres indígenas, deveríamos ouvir música. Mesmo lá, onde percebemos grunhidos de animais, devemos ver-ouvir cantos, por exemplo, das onças e dos macacos, que, cada qual nas suas aldeias, dança, festeja, troca afetos e cumplicidades amorosas (QUEIROZ, p.26, 2006).

Discordando e simultaneamente, mais do que concordando com a fala acima, Derrida diria

que o indecidível animot não inscreve efeito de uma única cultura co-extensiva a todos os

“seres naturais”, mas é sensível a existência de culturas para além de uma ordem meramente

antropocêntrica. Ao mesmo tempo, a propriedade que o autor acima atribui a essa “ontologia

ameríndia”, que reconhece a inscrição a partir da inscrição do outro, o efeito do xamã, a

presença do orixá, nos termos derridianos, seria extensiva a “toda ontologia”, toda música,

escritura, música/escritura, ao olhar do gato e ao próprio Derrida. Música como estrutura

outrem. Devir escritura que nunca se esgota a não ser pela violência a qual agora mesmo nos

encontramos prestes a nos submeter.

O que haveria de mais a dizer diz respeito a tal porção musical que toda palavra traz gravada

em si como um efeito indecidível derridiano cujo devir parece nunca se fechar, esgotar,

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realizar. Na canção já citada nesse corpus, Pecado original, Wisnik propõe que o movimento

que os versos de Caetano sugerem é o de uma cobra, uma sensação de sinuosidade que a

melodia sugere. Efeito prosódico, soma de melodia e letra, som e palavra, que expressa

desejo, medo, força, erotismo, veneno, traição, enfim uma série de signos que

derivam\dialogam com o signo “cobra” ou “movimento da cobra”. Tatit e Lopes

experimentam a mesma aproximação propondo análises a partir da proposição de modelos

semióticos que articulam os elementos melodia e letra. Não há intenção de desqualificar o

esforço desses autores, que não é pequeno, considerando a dificuldade de deambular por um

universo obscuro, delicadas veredas, cujo querer dizer se espanta frente inúmeras

possibilidades e sentimentos que afloram de forma tão pouco sistemática qual mecanismos da

memória e das emoções. Mas, talvez a melhor resposta nos traga Guimarães Rosa ao afirmar

que “o que a música diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas” (Rosa apud Reinaldo,

2005). Traduzindo para os termos da desconstrução, o que a música diz é a impossibilidade de

apontar coisas no mundo. Porque sempre seria possível acrescentar novas outras coisas sobre

a melodia/letra, som/palavra, relação que também instaura o devir/escritura que nos fala

Derrida. Entre elas, entre as novas outras coisas, os sentimentos que vertem quando o som

verte. Tentar responder o que é isso que verte do e com o canto, que afeto, que sentimento,

não é tarefa recente. Tratados gregos e renascentistas já tentaram responder a questão.

Cantar afirma Doni nada mais é do que um modo de dizer, por ser palavra melodizada, antes e acima de tudo, exterioriza a interioridade, desvela o pulso anímico do espírito. Se o dizer cotidiano contém e expressa afetividade humana, o dizer em mélos intensifica, tipifica este afeto ingênito à fala. Assim cantar para gregos e renascentistas, não é atividade que meramente compraz, mas um instrumento humano-educativo (CHASIN, contracapa, 2004).

Esse educar diria respeito “a mover os afetos do público”, a partir de um efeito de imitação,

mimese dos afetos humanos, mas que já de antemão se assume como não sendo a coisa em si,

como uma segunda natureza das paixões, para sermos fiéis ao pensamento de Aristóteles. Para

os renascentistas, o que verte da alma humana (ao ouvir e cantar) é de natureza metafísica,

impossível de ser apontada no mundo. Diria de uma subjetividade, interioridade que se

expressa, manifestação de um estado ou pulsar da alma (idem, 102). Porém essa interioridade

só se manifesta quando em contato com uma exterioridade, contexto, sobre o qual exerce

função educativa.

Canto nada mais é do que interioridade manifesta, logo interioridade que só pode existir concretamente nos fluxos e influxos de um contexto. Musica sem texto é subjetividade sem mundo, (...) sem razão de ser. A arte dos sons implica a mais intrínseca unidade entre exterioridade e interioridade, de tal

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modo que no canto o externo contém, exala e se realiza essencialmente a partir do mundo interior dos homens, e, reciprocamente, esta interioridade só alcança forma estética a partir do poético, da dimensão objetiva da vida (ibidem, 117).

Por hora, deixemos os impasses entre gregos e baianos de lado. A assunção de um método

labiríntico, palimpsesto, torna a justificar-se aqui. E, no lugar de uma rígida separação entre o

“mundo” e o “querer dizer” deslizamos em hipertexto sob efeito mesmo da música/escritura,

porque, como já dito em algum lugar desse corpus, não haveria mundo sem música e vice-

versa e nem essa separação. Riobaldo diz que muita coisa importante falta nome, mas, ao

mesmo tempo assume que tudo nessa vida é muito cantável (ROSA, GSV, p.368).

Há música por toda parte no sertão. Grandeza cantável, como diz Riobaldo. Música dos bichos, das plantas, dos rios, dos carros-de-boi, dos ventos. Cantigas de ninar. De amor. Cantos religiosos, de celebração, efstas e bandeirinhas. As danças. Canto de encantamento, feitiço encomendado. Modinhas, coplas, lundus. A cantilenalastimosa. Os reisados: saudações e bênçãos. O cortejo dos sons das hipnóticas ladainhas. E o silêncio – um silencio tão grande, tão fino, tão claro. Extraindo do sertão a matéria de seu ofício, Rosa quer essa musicalidade em sua escritura. Música que está também nas palavras, palavras que tem plumagem (REINALDO, 2005, p. 16).

Cancioneiro → hipertexto → rede → rizoma → memória em trânsito → memória em transe

→ trilhas → veredas → nonada → silêncio → som → música → canção → alegoria →

discurso → fala → canto → território → pássaro → palavra → canção → cancioneiro →

khôra → contexto → urbanidade → ruralidade → modernidade → tradição → identidade

nacional → rasura → diferança → umidade → no entre → nonada → terceira margem →

subjétil → animot → pássaro → palavra → som → silêncio → ritornelo → território →

samba → marcha → baião → cateretê → moda → viola → piano → canto → canção →

Rapaz Folgado → Contente Magoado → Barão da Ralé → Seu Doutor → Rádio → Isaura →

nós → papel falante → subjétil → música →

“E o que a palavra em seu uso ordinário não diz, a música sugere. (...) Há um conteúdo latente

na língua que está em sua melodia sonora. O que não se pode explicar, mas é agradável aos

ouvidos” (REINALDO, 2005, p 22).

O leitor deve receber sempre uma pequena sensação de surpresa, isto é de vida. Acho também que as palavras devem fornecer mais do que o que significam. As palavras devem funcionar também por sua forma gráfica, sugestiva, sua sonoridade, contribuindo para criar uma espécie de música subjacente. [O leitor] tem quase que aprender novas maneiras de sentir e pensar. Não o disciplinado, não a clareza, mas a poesia, a obscuridade do mistério que é o mundo. E é nos detalhes quase sem importância que esses efeitos se obtêm. A maneira de dizer tem de funcionar, a mais, por si. Mas, o verbo “saravaja”, eu o ouvi, e

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o contador não soube me explicar o que é. Verbo só em “a”, belíssimo. (...) Traduzir mais ou menos como: irradiava luminoso em rajas (carta de Rosa ao tradutor italiano de Sagarana apud REINALDO, 2005, p. 24).

Essa música subjacente, intraduzível, apela para o efeito de deslizamento do binômio

palavra/canto, também expresso como mundo/subjetividade. Nem gregos sob o olhar

enamorado da renascença, nem baianos donos do mesmo olhar amoroso pousado sobre os

bardos e pincéis da paulicéia de 22. Avoé, Mário de Andrade. Estamos à porta do casarão

escuro. Quase ruína. Rosa poderia até nos convidar. Mas, os olhos estão apressados na

eminência do anunciado fim do livro. Não vão conseguir. No primeiro momento, entram e

nada vêem. Está escuro aqui dentro, mas, com o tempo, não é a luz que aumenta, são os olhos

que se acostumam e passam a enxergar belezas antes ocultas. Mais ou menos assim, Afonso

Arinos comparou “Grande Sertão: veredas” a um velho casarão. Mas, não há tempo, nem

som/palavra, por exemplo, para descriminar o sertão roseano em contraste com o sertão

euclidiano. Serróseo? Serclídio? Falta palavra. Palavra/som. Poesia/música. E então não

seríamos mais do que crianças sentadas juntinhas lado a lado no banco de madeira, o

joelhinho ralado de molecagens. Todas ansiosas pela história que o avô já vai contar.

Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore... (Rosa, 2007, p. 23).

Ou não é exatamente assim, mas, trata-se de um olhar que escuta o som mareado que a

imagem de certos olhos machadianos inspira. Pulsão, paixão, musa, música. A ressaca dos

olhos de Capitu, a musa, a música, o livro, que não é escrito, mas que se encontra por aí

quando se vai de trem na direção de um outro Rio, um outro De Janeiro, diria Rosa, e se

permite puxar conversa com um desconhecido que nos revela como esbarrou com o livro

sentado no mesmo lugar que agora estamos. O desconhecido nos conta a história da história

que começa assim.

Uma noite destas vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu (ASSIS, 1961, p.5).

Ou ainda, não é bem isso, mas, trata-se de outro encontro em que se emenda o papel não à

ressaca dos mares, mas à ressaca de sertão que o Contente Magoado ainda tonto de tanto De

Janeiro deixa rasurar.

Certa manhã quando o sol mostrou a cara Nós pegamos nossas malas

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E eu fui conhecer o Rio Eu e meu pai, numa rural já bem usada Nos pusemos pela estrada Muito longa, que nos leva para o Rio de Janeiro. Eu tinha lá meus 15 anos de idade E era tanta ansiedade que eu nem consegui dormir. A noite que precedeu nossa viagem Foi noite de vadiagens pela imaginação, fala baixo coração. Nos hospedamos num hotel muito elegante Em plena Praça Tiradentes Pois meu pai quis me mostrar Primeiro a parte da cidade Que é cigana depois sim Copacabana Onde eu fui vestindo um terno passear em frente ao mar. À noite a gente conheceu a Cinelândia, Com todo nosso recato fomos só apreciar. Antes do sono nós ficamos conversando Sobre o medo que se sente no bondinho, Um jeito muito carioca de voar. Foi muito curto o nosso tempo de estadia Mas valeu por muitos dias de coisas pra se contar Pra gente que leva uma vida mais tranqüila, De um jeito quase caipira ir ao Rio de Janeiro é o mesmo que flutuar697

697 A primeira vez que eu fui ao Rio. Renato Teixeira, 1978.

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Referências:

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Anexo:

Em defesa do título: do nome que quer dizer cancioneiro em rasura.

O cancioneiro popular brasileiro deslocando paradigmas de modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição deslocando o cancioneiro popular brasileiro OU A desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do cancioneiro OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o rádio, nós e Isaura.

Questiona-se, banca, secretaria, orientador e autorouvinte, se o nome expressa os movimentos

que o papel falante provoca no decorrer do corpus. Para expressar sua própria defesa, o papel

falante se apresenta à tribuna. Apresenta-se ao formato de tribunal que se encena e se emula

entre nós aqui presentes para defender-se de uma provável mutilação. Amputação de partes de

si, partes do nome, nome próprio que o especifica no mundo metafisicamente como este

corpus, esta tese.

O problema, o impasse, o dissídio pode ser expresso pela questão de receber ou banir o nome

que se apresenta. Novo nome – estrangeiro ao código da academia que pode recebê-lo como

um hóspede ou como um hostil. Ele pergunta se a ameaça ao “em casa”, ao pertencente à

língua ou ao código acadêmico, pode produzir uma reação xenófoba a ponto de transformar o

hospitaleiro, o douto acadêmico em hostil.

Derrida identifica uma perversão aparentemente insuperável, uma dificuldade, uma

impossibilidade entre uma lei incondicional da hospitalidade e as leis da hospitalidade,

dificuldade expressa no entre do justo e do legal. A perversão funciona sob lógica direta:

quanto maior a percepção da ameaça, da diferença, mais o hospitaleiro pode se tornar hostil

aos olhos do hóspede e reciprocamente mais o hóspede se torna bárbaro aos olhos do

hospitaleiro.

Identificamos dois movimentos:

(a) O novo nome, que aos olhos do hospitaleiro se torna cada vez mais hostil quanto mais

novo é o nome, viria de fora do código e parece forçar a porta da hospitalidade ao exigir ser

aceito sem mutilações, o que já seria uma violência.

(b) O hospedeiro se coloca no lugar de direito a si, lugar privado, de propriedade do código,

lugar de uma moral pré-estabelecida pelas leis condicionais e condicionantes da hospitalidade

acadêmica que recebe ou não um novo nome que parece ameaçar o limite do código.

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Porém, a Lei, a justa lei da hospitalidade só funcionaria como aporia, ela precisa ser

transgredida ou transgredir para mover-se. Ela expressa uma dificuldade, uma

impossibilidade: a lei da hospitalidade incondicional, hiperbólica exige transgredir todas as

leis da hospitalidade (condições, normas, direitos e deveres a hospedeiros e hospedados) que

especificam o reconhecimento do outro enquanto um nome, estrangeiro, mas possuidor de um

nome próprio, não mais um bárbaro, sem nome, sem código, sem língua. Nesses termos, a

oposição entre “a lei” e “as leis” apresenta-se como dialética irreconciliável, como um jogo de

anulação.

Mas, pode-se caminhar sob um segundo pretexto em direção a mesma base de sustentação do

conceito de hospitalidade.

A lei que se estabelece fora e acima das leis apóia-se nas leis. Necessita das leis para

transgredi-las ou digressionar ante suas forças. As leis necessitam da lei para serem de fato

hospitaleiras ainda que condicionalmente. Necessitam da lei para romperem o vidro que as

isola imutáveis e inatingíveis. Vidro que torna refém o hóspede, mas também o hospedeiro

obrigado a seguir as leis que ele próprio ditou e emoldurou. Se bem que escritas e protegidas

atrás de um vidro, as leis estão visíveis e é a partir delas e de sua visibilidade e de sua

cristalização que se pode transgredir ou digressionar.

A transgressão do hóspede liberta o hospedeiro das leis. Então, o hospedeiro pede ao hóspede

para tomar seu lugar. Estranha lógica essa de um senhor impaciente que espera seu hóspede

para emancipá-lo de seu compromisso com as leis, como um libertador estrangeiro que amplia

e altera o parâmetro, limite, de horizonte que o hospedeiro guardava como certo.

Dá-se múltipla inversão. O hóspede, refém convidado, torna-se convidador do convidador,

possível senhor do hospedeiro. Essas substituições tornam todos, e cada um, refém do outro

sob a condição de aporia articulando e distinguindo a lei e as leis da hospitalidade.

Isso nos levanta a questão do estrangeiro, do outro, enquanto questão vinda do estrangeiro e

não tratada simplesmente de dentro, por exemplo, do contexto acadêmico, considerando

classificações tais como código, língua e ethos não só a partir das leis reservadas a protegidas

sob o vidro e a moldura pregada na parede da sala de visitas, mas também a partir do

estrangeiro, a partir da relação de aporia entre a lei e as leis da hopitalidade.

O novo nome pergunta:

Em qual língua eu, o “novo nome”, devo então endereçar meu pedido de aceite e em qual

devo, ou mereço, ser interrogado?

Como eu, o nome próprio, posso não corresponder ao funcionamento da língua, do código

que, no entanto, me condicionou, a língua portuguesa e suas regras gramaticais e lexicais?

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A segunda lógica parece encetar uma ética contraditória: o senhor faz as leis e se dobra a elas

e a seu ato até que o hóspede venha libertá-lo. O hóspede que já era refém da hospitalidade do

hospedeiro.

As leis condicionais e a lei absoluta expressam entre si heterogeneidade radical, mas também

estariam em condição de indissociabilidade. Uma requer, implica ou prescreve a outra.

Questionamentos finais:

Praticando o direito relativo à lei da hospitalidade incondicional, é possível dar lugar a um

direito calculável? Como medir a possibilidade de transgressão para além das leis

emolduradas que nos torna reféns uns dos outros? Isto é, qual o coeficiente de impertinência

que nos cabe produzir e aceitar considerando que pertinências e impertinências estão

indissociadas?

Em estado de isolamento, exílio ou clandestinidade caberia ao novo nome outra resposta,

outra fala que não seja o silêncio ou a auto-traição, traição da possibilidade de movimento da

língua, movimento do código e de sua própria condição de externalidade?

Por outro lado...

Salvo o nome, a exceção do nome, muito possivelmente o nome próprio se abriria, não para a

mutilação, não para o estigma, a marca destruidora, que combate com violência a violência

impetrada pelo nome ao tentar penetrar e pertencer ao signo acadêmico, mas para docilmente

se deixar mover por rasuras, sulcos, marcas, movência que todo nome , signo, traz gravado

em si como promessa, devir, condição de possibilidade de movimento. E o nome próprio já

deslizaria, deslocar-se-ia até mesmo de forma tão radical que poderia já não guardar em si

nenhuma das características e termos do nome anterior, sequer cancioneiro em rasura.

Almatéria:canção como Macunaíma Capitulando-se por Grande Sertão:Veredas. Os quase

outros de “Os sertões”, da “Paulicéia Desvairada” e de “Dom Casmurro”.

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