cancioneiro popular de portugal

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Biblioteca BreveSRIE LITERATURA

O CANCIONEIRO POPULAR EM PORTUGAL

COMISSO CONSULTIVA

JACINTO DO PRADO COELHO Prof. da Universidade de Lisboa JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e CientistaDIRECTOR DA PUBLICAO

LVARO SALEMA

MARIA ARMINDA ZALUAR NUNES

O cancioneiro popular em Portugal

M.E.C.SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

TtuloO Cancioneiro Popular em Portugal

_______________________________________ Biblioteca Breve / Volume 23 _______________________________________

Instituto de Cultura Portuguesa Secretaria de Estado da Cultura Ministrio da Educao e Cultura

_______________________________________

Instituto de Cultura Portuguesa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases ___________________________________ 1. edio 1978 ___________________________________Composto e impresso

nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova - Amadora Portugal Julho de 1978

NDICE

Pg.

NTULA SOBRE A HISTRIA DO CANCIONEIRO POPULAR EM PORTUGAL ........................................................6 CANTIGAS: POESIA, MSICA E DANA ................................16 ASPECTO FORMAL DAS CANTIGAS ........................................25 TEMAS DAS CANTIGAS ................................................................31 O amor ...............................................................................................32 O casamento, os filhos, o quotidiano familiar ..............................40 O trabalho ..........................................................................................47 Conceitos de vida ..............................................................................54 Crenas religiosas ..............................................................................59 O maravilhoso popular ....................................................................66 A stira ................................................................................................73 ECOS DE POESIA MEDIEVAL EM CANTIGAS POPULARES ....................................................................................83 REFLEXES FINAIS .......................................................................93 NOTAS...................................................................................................95 DOCUMENTRIO ANTOLGICO ............................................102 RESENHA BIBLIOGRFICA ........................................................128

NTULA SOBRE A HISTRIA DO CANCIONEIRO POPULAR EM PORTUGAL

com o Romantismo que em Portugal surge o culto pelo folclore e, portanto, pelas composies poticas populares de tradio oral, amorosamente trazidas a pblico pela mo do divino Garrett, a quem devemos a publicao da primeira colectnea do Romanceiro popular portugus. De real interesse recordar que, desde a infncia, bailavam na mente e no corao do poeta os versos desses velhos romances, de mistura com lendas, histrias e tradies vrias. Esse amor formou-se no carinho que, em criana, lhe foi dado pelo convvio com duas mulheres do povo, suas criadas na quinta do Castelo e na do Sardo, perto do Porto a velha Brgida e a mulata Rosa de Lima. A elas se referiu vrias vezes na sua obra, com grata ternura. Assim, no poema D. Branca diz-nos:Oh! magas iluses, oh! contos lindos, Que s longas noites de comprido Inverno Nossos avs felizes entretnheis Pimponices de andantes cavaleiros Capazes de brigar co mundo em peso, 6

Malandrinices de Merlim barbudo, Travessuras de lpidos duendes, E vs, formosas moiras encantadas, Na noite de So Joo ao p da fonte, ureas tranas com pentes de ouro fino Descuidadas penteando enquanto o orvalho Nas esparsas madeixas arrocia E os lindos anis de perlas touca. Oh! magas iluses, porque no posso Crer-vos eu coa f viva de outra idade, Em que de boca aberta e sem respiro, Sem pestanejo um s, de olhos e orelhas No Castelo escutava a boa Brgida Suas longas histrias recontando De almas brancas trepadas por figueiras, De expertas bruxas de unto besuntadas J pelas chamins fazendo vspere, J indo, em dzias, em casquinha de ovo ndia de passeio numa noite 1

E, na nota L ao I acto do drama Frei Luis de Sousa, relata: Uma parda velha, a boa Rosa de Lima, de quem eu era o menino bonito entre todos os rapazes, e por quem ainda choro de saudades, apesar do muito que me ralhava s vezes, era a cronista-mor da famlia Contava-me ela, entre mil bruxarias e coisas do outro mundo que piamente acreditava, que tambm naquelas coisas se mentia muito E conclui: A poesia verdadeira esta, a que sai destas suas fontes primeiras e genunas A poesia filha da terra, como os Tits da fbula, e sua terra se deve deitar para ganhar foras novas quando se sente exausta. No programa expresso nestas transcries revelam-se alguns dos marcantes ideais esttico-literrios de Garrett e da escola romntica: repdio dos temas clssicos, que durante trs sculos haviam norteado a literatura,7

entusistico aproveitamento das tradies nacionais to persistentes na boca e no corao do povo foras vivas emanadas da terra natal. O amor latente de Almeida Garrett pelo folclore nacional veio a reacender-se durante os seus exlios no tempo das emigraes liberais de 1823 a 1828, sobretudo na primeira. Foi ento que se integrou na cultura europeia da poca, em especial bebida em autores anglogermnicos. No seu primeiro exlio teve em Inglaterra, alm do entendimento perfeito da obra genial de Shakespeare 2, conhecimento das Relics of ancient English poetry, compilao do bispo de Percy, publicada em meados do sculo XVIII, e de Minstrelsy of the Scottish border, coleco formada por Walter Scott. Destes factos nos informa o prprio Garrett em muitas das suas obras 3. Na Autobiografia, escrita sob o nome do editor, acentua que mais tarde, quando da sua misso diplomtica em Bruxelas, se familiarizara com produes de Schiller, de Goethe e o que mais interessa para o caso presente com a obra do fillogo Depping e as recolhas folclricas de Brger, dos famosos irmos Wilhelm e Jacob Grimm e do notvel intelectual Herder, organizador da coleco Stimmen der Vlker in Liedern. Desde 1824, conforme se verifica em carta a Duarte Lessa, o acompanhava a ideia da publicao de romances colhidos da tradio oral do povo portugus. A Almeida Garrett, que to bem sentiu e compreendeu o valor do Grande livro nacional que o povo e as suas tradies pertence a glria de ter sido o primeiro a atentar nos tesouros do folclore portugus em geral e em especial do Romanceiro, que publicou em 1843 e 1851.

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Estava aberto o caminho para os estudiosos das tradies primitivas e populares de Portugal seguirem por to apaixonante rumo. Relativamente poesia lrica popular coube a Tefilo Braga ter sido o entusistico e infatigvel pioneiro do seu estudo e recolha. Data de 1867 a obra Histria da Poesia Popular Portuguesa, cuja ltima edio reescrita, a 3., de 1902 quanto ao primeiro volume As origens e de 1905 quanto ao segundo Ciclos picos. Evidentemente que, passados uns trs quartos de sculo, novas investigaes vieram esclarecer e modificar vrias teorias a expostas, por vezes pouco claras ou fantasiosas, rematadas por apressadas concluses. Tambm no ano de 1867 publicou Tefilo Braga o primeiro Cancioneiro Popular Portugus, coligido da tradio oral, abundante coleco de cantigas, ampliado numa segunda edio. Dois anos depois, seguindo a mesma senda, vm a lume os Cantos Populares do Arquiplago Aoriano, em que h uma parte lrica. Quando da segunda edio do Cancioneiro Popular Portugus, em 1911, de notar que Tefilo Braga, no respectivo prefcio, assinalou que o imenso material de cantigas, que vrios estudiosos j haviam publicado, impunha que se atendesse ao seu aspecto esttico. Esta preocupao na realidade assaz louvvel, porque implica um avano relativamente a atenes a dar s espcies coligidas. O apreo que sempre manifestou pelas cantigas populares revela-se ainda em alguns volumes da Revista Lusitana (II e IV) onde se encontram recolhas feitas nos Aores. Quanto ao sbio mestre Leite de Vasconcelos, mal sado da adolescncia j se entregava de alma e corao ao estudo das produes do povo, conforme atesta na introduo s Tradies Populares de Portugal: Em 1876, dos dezassete para os dezoito annos, edade em que vim para o9

Porto, comecei enthusiasmado pelo grande movimento scientfico do seculo, a ocupar-me do Folk-lore, esboando e dando a lume os meus primeiros ensaios em 1878 (na Aurora do Cavado). 4 Os primeiros ensaios de Leite de Vasconcelos coincidem, efectivamente, com o interesse que o mundo culto da poca demonstrava por esse grande movimento cientfico de manifestaes folclricas, conforme assinalou. Segundo informao dada pelo erudito folclorista brasileiro Renato Almeida no seu valiosssimo livro Inteligncia do Folclore, j em 1854 Mannhardt e Wolf haviam fundado uma sociedade visando o estudo das tradies populares. E em 1878, por iniciativa de Gomme se funda em Londres a primeira associao cientfica para o estudo de Folclore: Folklore Society, contando com figuras como Thoms, Tylor, Lang e outros cientistas. O seu objectivo era a conservao e a publicao das tradies populares, baladas lendrias, provrbios locais, ditos vulgares, supersties e antigos costumes e demais materiais concernentes a isso. 5 a partir dessa data que as obras de Leite de Vasconcelos vo aparecendo em ritmo indicativo de surpreendentes qualidades de cultura, de trabalho e de amor terra ptria. Notabilssima contribuio para o estudo da poesia popular foi a publicao de quatro canes cantadas nas segadas de cereais e nas mondas em Rebordainhos, concelho de Bragana, que forneceram ao eminente cientista matria para uma comunicao importantssima e de alta novidade, publicada primeiramente em 1882 no Anurio para o Estudo das Tradies Populares Portuguesas e anos depois nos Opsculos 6.10

Outras cantigas desse mesmo tipo de paralelsticas, prodigiosamente conservadas pelo povo trasmontano em vrias terras do distrito de Bragana, foram mais tarde compiladas pelo mesmo professor e ampliaram essa notvel preciosidade. Quando, em 1890, Leite de Vasconcelos publicou Poesia Amorosa do Povo Portugus, precedida de um estudo, j a manifestava o seu desejo de publicar mais tarde um cancioneiro popular. De 1907 so as encantadoras Canes do Bero segundo a tradio popular portuguesa. Contm um apndice de algumas das respectivas msicas e no segundo captulo da introduo h um importante estudo cujo ttulo se transcreve: Universalidade e continuidade histrica destas canes fora da Europa e na Europa; na Antiguidade, na Idade-Mdia e em tempos ulteriores at hoje. Notcia especial a respeito de Portugal, do sculo XVI para c. De investigaes feitas por Leite de Vasconcelos nas Ilhas Adjacentes proveio para a sua coleco de cantigas um acrscimo aprecivel que se encontra na obra Ms de Sonho, resultante de uma visita l feita em 1924. Esses materiais utilizou-os por vezes o seu coleccionador em trabalhos de vria natureza, com o fim de lhes servir de documentao e embelezamento. Em inmeros estudos focou o sbio professor assuntos referentes poesia lrica de tradio oral do nosso povo. O sonho que Leite de Vasconcelos sempre acarinhou de publicar um cancioneiro com o vasto material que possuia no pde ter realizao durante a sua vida, porque, empenhado na ingente tarefa que executou, no lhe chegou o tempo para a organizao de um semnmero de inditos durante muitos anos carreados, entre11

os quais se encontravam as cantigas populares. Para tal realizao seria preciso muito mais tempo do que o duma vida humana, ainda que longa. O Prof. Orlando Ribeiro, um dos testamenteiros do cientista, impulsionou as necessrias publicaes dos inditos e o Prof. Viegas Guerreiro organizou uma equipa para tratar dos diferentes sectores dos manuscritos em que ele prprio trabalhou. Por tal, e com o apoio do Instituto de Alta Cultura, alm de outros vrios assuntos que j se encontram publicados, pde o Cancioneiro Popular Portugus apresentar o primeiro volume em 1975 por ordem da Universidade in Acta Universitatis Conimbrigensis. 7 De notvel magnitude e beleza este cancioneiro, fruto de inmeras e frutferas investigaes de Leite de Vasconcelos em terras de Portugal Continental, por onde peregrinou de Norte a Sul, e ainda nas Ilhas Adjacentes. A Antnio Toms Pires devem-se, alm de vrias outras publicaes, os quatro volumes que compem os Cantos Populares Portugueses recolhidos da tradio oral e publicados de 1902 a 1910. Contm, afora diminuto nmero de composies poticas de outra espcie formal, enorme quantidade de quadras, para cima de dez mil, provenientes das diversas provncias portuguesas, com predomnio do Alentejo. De carcter genrico ainda, devero mencionar-se dois pequenos e valiosos cancioneiros: as Mil Trovas, organizadas e prefaciadas por Agostinho de Campos e Alberto dOliveira; e O que o Povo canta, em Portugal amorosamente compilado por Jaime Corteso, quando exilado no Brasil. Precedido de um inteligente estudo de interpretao da poesia e msica populares, quer de origem portuguesa, quer brasileira, perpassa atravs deste trabalho a beleza duma vibrante emoo que lhe acentua12

o valor. Alm da antologia potica, apresenta a parte musical de muitas canes. No final do sculo XIX e sobretudo durante o sculo XX, apareceram inmeras coleces de cantigas tradicionais portuguesas de carcter provincial ou local. Sem a pretenso de se fazer uma impossvel completa resenha dessas publicaes, contudo necessrio ressaltar vrios desses cancioneiros parcelares, monografias regionais de indubitvel valor para um conhecimento autntico da nossa terra. Assim, h a considerar o Cancioneiro Minhoto de Gonalo Sampaio, obra preciosa pela parte musical e pelas notcias preambulares, obra que ter de ser mencionada com relevo ao falar-se da msica das cantigas. Trs-os-Montes encontrou no P.e Firmino Martins um culto e apaixonado investigador do Folklore do Concelho de Vinhais. No Cancioneiro Popular de Vila Real apresenta-se uma coleco feita com erudito carinho por A. C. Pires de Lima. As Canes Populares da Beira, coligidas e publicadas por Pedro Fernandes Toms (1896, com 2. edio em 1923), vm acompanhadas de cinquenta e oito melodias tais quais o povo as canta em toda a sua simplicidade e de estudo introdutrio de Leite de Vasconcelos. Nas Canes Portuguesas (do Sculo XVIII Actualidade) apresentou tambm Pedro Fernandes Toms, alm de alguns romances, canes religiosas, cantigas velhas, danas de roda e descantes. a sua colectnea Velhas Canes e Romances Populares Portugueses (1913) digna de registo pelo contedo potico e musical, bem como pelo estudo introdutrio de Antnio Arroio. Este musiclogo mostra13

se um precursor do processo actual de recolha folclrica por meio da gravao. Apontando o que se fazia no estrangeiro, aconselha o registo fiel da parte musical por meio do fongrafo, por ele prprio utilizado com xito. Ainda outra compilao se deve a Fernandes Toms: os Cantares do Povo. Tratando-se das Beiras, existem ainda mais cantigas, letra e msica, em dois volumes o segundo e o quarto da Etnografia da Beira, obra consagrada de Jaime Lopes Dias, e na excelente pequena monografia de Firmino Crespo, Senhora do Almorto. O Ribatejo teve em Alves Redol o compilador apaixonado de quadras da bem-amada terra natal. No prefcio do seu Cancioneiro do Ribatejo, em que atenta judiciosamente em dados problemas sociolgicos, salientou a importncia dos cancioneiros: um testemunho com voz prpria, cuja presena ser imprescindvel para que se pautem afirmaes em relao a cada povo. 8 Concernente poesia do Alentejo h uma boa colheita realizada por Vtor Santos no seu Cancioneiro Alentejano, as duas primeiras partes do qual contm composies poticas de origem popular. No princpio deste sculo, em 1905, publicou Francisco Xavier Atade Oliveira um Romanceiro e Cancioneiro do Algarve que, se no apresenta composies muito originais, forma no entanto um repositrio relativamente vasto de poesia corrente em terras algarvias. As melhores recolhas provenientes dos Aores, a que j se fez referncia, devem-se a Tefilo Braga, de naturalidade aoriana; so numerosas essas cantigas da sua formosa terra.

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Tambm j se aludiu a Ms de Sonho, cujas cantigas e estudos etnogrficos resultaram de investigaes levadas a efeito por Leite de Vasconcelos nas Ilhas Adjacentes. Existem apreciveis colectneas de cantigas madeirenses. H a salientar as que se encontram no extenso estudo folclrico do P.e Pita Ferreira, sobre o Natal na Madeira, livro que contm um valioso cancioneiro de carcter religioso sobre a indicada festividade, e Ilhas da Madeira (Folclore Madeirense), obra pstuma de Eduardo Antonino Pestana 9, onde, alm de outras recolhas, surge excelente material lrico na parte intitulada Troveiro e no livro IV, Cancioneiro, a notao musical de vrios cantos religiosos e profanos. E, para terminar, dever mencionar-se, como interpretao do vastssimo material j coligido em tantos cancioneiros, quer de carcter geral, quer restrito, trabalhos incidentes em vrios dos seus aspectos, entre os quais sobressai pelo alto valor o estudo do Prof. Joo da Silva Correia, Alguns Paralelos entre a Literatura Culta e a Literatura Popular Portuguesa, tese de doutoramento, depois lida numa srie de quatro cultas e interessantssimas conferncias realizadas na antiga Universidade Popular Portuguesa, em Lisboa. A so confrontadas entre si produes de prosa, de poesia dramtica e, sobretudo, de poesia lrica. Muito inteligente ainda, o estudo do poeta Afonso Duarte, Um Esquema do Cancioneiro Popular Portugus, em que so tratados pontos fulcrais do assunto e indicados alguns problemas a resolver de futuro, aps necessrias pesquisas.

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CANTIGAS: POESIA, MSICA E DANA

Cantigas, conforme a prpria palavra indica, so composies poticas destinadas a ser cantadas. E no s cantadas: frequentemente apresentam carcter coreogrfico. Poesia, msica e dana populares associam-se e valorizam-se nessa ligao. De resto, j h mais dum sculo, Tefilo Braga acentuava esse facto na sua Histria da Poesia Popular Portuguesa 10. H necessidade de nunca esquecer que tanto as cantigas como as msicas e as danas no se limitam a determinada regio. Embora tenham tido a sua origem em dado local ou a haja domnio marcante de certas espcies, observa-se larga difuso de terra em terra. Assim, nota-se que o vira se canta e dana do Minho a Lisboa; o malho e a chula expandem-se pelo Minho, Douro e Beira Litoral; valiosssimos corais existem em larga escala no Baixo Alentejo e no Minho; o fandango reina todo poderoso no Ribatejo, mas igualmente querido em todas as provncias; danado de ls a ls, afirma Armando Lea na sua Msica Popular Portuguesa 11. E inmeros outros exemplos poderiam ser aduzidos. Essa difuso , sem dvida, proveniente do contacto entre trabalhadores rurais que, vivendo em condies scio-econmicas idnticas, pensam, sentem e reagem de maneira semelhante. Na ocasio de fainas prementes transmigram pela necessidade de, noutras localidades,16

obterem o ganho preciso para o po de cada dia. As prprias trovas populares testemunham tais circunstncias, conforme se documenta na Etnografia Portuguesa de Leite de Vasconcelos:Sou do Minho, sou minhoto, Filho duma minhoteira; Pego nos picos s costas Vou trabalhar para a Beira.

e ainda: Sou algarvio, do Algarve/E do Algarve vou pr Beira Esta ltima cantiga traz apensa a seguinte nota do insigne mestre, seu colector: Ouvi-a na Beira Baixa, da boca de algarvios que andavam no trabalho do corte da cortia. 12 Os trabalhadores que transmigram so em especial os ratinhos beires, os malteses, os homens e as mulheres que formam os ranchos das mondas, das ceifas, das malhas, das esfolhadas, os vindimadores, os grupos da apanha da azeitona. Nessas fainas, se acompanhadas de cantigas, as tarefas tantas vezes exaustivas tornam-se menos duras pelos desabafos que lhes irrompem da boca. Se h alegrias esfusiantes, derivadas duma viso optimista da vida, outras vezes impera o desalento e escutam-se queixumes melanclicos. Eis uma cantiga estimulante:Hei-de cantar, hei-de rir Hei-de ser muito alegre; Hei-de mandar a tristeza Pr diabo que a leve! 13

e uma outra de tom depressivo:Minha me, minha mezinha, Para quem trabalho eu? 17

Trabalho, mato o meu corpo, No tenho nada de meu! 14

Como causa de difuso de cantigas por variadssimas regies h ainda a considerar as romarias estivais, em que contactam elementos populares de muitas e diferentes localidades. Nas prprias cantigas se alude j indicada associao de poesia, msica e dana: nas saias, por exemplo, que tm domnio marcante no Alto Alentejo. A est um depoimento:Estas que so as saias, Estas mesmas que so; So cantadas e balhadas Na noite de So Joo. 15

Deve notar-se que em danas de roda quase sempre o acompanhamento simplesmente a vozes:Eu vejo a roda parada falta de cantadores; C st ma sua criada Pra divertir os senhores. 16

Muitas rodas tm acompanhamento de vrios instrumentos. o que se observa nas chamadas rodas mandadas do Algarve. Em nota leitiana a uma dessas composies l-se: H muitas rodas, por exemplo tacho de papas, em que entram velhas e moas. O toque que ensina a rodar. Os pares vo de gancho, isto , a mulher dando o brao ao homem. A roda mandada (marcada) por um homem que o mandador ou por uma mulher que mandadora. Comeam valsando em volta da sala.18

Depois o mandador diz: Forma a roda! Manitas dadas! Tudo pra e d as mos; comea o toque: guitarra, harmnio, etc. Quando pra a msica para descanso e os pares querem continuar, havendo alguma mulher que tenha boa voz para cantar, canta. Curiosamente, a estas rodas pertencem marcas em que entra terminologia martima, caracterstica da regio. Uma das marcas de Mexilhoeira Grande, concelho de Portimo, : Vira a lancha, vira o bote, / Tudo certo, sem capote! A par destas rodas, notrio o apreo dos algarvios pelo vivace corridinho. Sobre terras alentejanas escreveu o Prof. Lus de Freitas Branco: A regio alentejana, de to gloriosas tradies musicais, parece justificar, na tendncia polifnica do seu povo, a teoria geralmente aceite de que a extraordinria eflorescncia do estilo a cappella, em volta de vora, no fosse obra do acaso. As danas principais so aqui as saias, danas de roda, e o fandango, acompanhado com as guitarras e violas rasgueando, com o adufe, a gaita e o tamboril. 17 Cite-se tambm uma pertinente observao de Armando Lea na citada Msica Portuguesa, ao referir-se imensa plancie que o Baixo Alentejo e aos seus magnficos corais: A paisagem do Baixo Alentejo sem corais como catedral gigantesca sem as sonoridades do rgo. 18 No Ribatejo, conforme j se notou, domina o fandango. bem significativo o que afirma a quadra popular cantada em terras ribatejanas e no Alentejo:Pra tocar, o algarvio, Pra fandangos, Ribatejo,

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Pra campinos, Borda dgua, Pra cantar, o Alentejo. 19

Paredes meias com o Ribatejo, a Estremadura baila e canta:O bailarico saloio No tem nada que saber: andar cum p no ar, Outro no cho a bater. 20

e a ciranda: ciranda, cirandinha, / Vamos ns a cirandar Nos crios estremenhos extensas loas so meiorecitadas, meio-cantadas junto dos templos. Salientam-se, entre os crios, o da Senhora da Rocha, perto de Linda-aVelha; o da Senhora da Atalaia, na Outra-Banda do Tejo, festividade que deu assunto para inesquecveis pginas descritivas de Fialho de Almeida em Esquina; o da Senhora dos Remdios, com a linda e original capelinha votiva no Cabo Carvoeiro; o da Senhora da Nazar Em Lisboa, nos bairros populares de Alfama, Mouraria e Bairro-Alto canta-se o fado o fado exaltado por uns e execrado por outros. O Prof. Lus de Freitas Branco no seu estudo A Msica em Portugal pronunciou-se sobre a origem colonial desta cano, considerando-a introduzida entre ns aps o regresso de D. Joo VI do Brasil e derivada do lundum de origem negride. 21 E o notvel lusfilo ingls Rodney Gallop assim se expressou relativamente ao fado com a sua autoridade de ilustre musiclogo: Para o folclorista possui o dobrado valor de coisa quase nica ser cano popular urbana, espontnea e livre. 22 A acentuar desde j que nenhuma

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interligao existe do fado cantado pelos fadistas com o fado-cano dos estudantes de Coimbra. Nas Beiras, englobando nesta designao as trs divises provinciais, encontra-se vasto, variado e hbrido repositrio potico, musical e coreogrfico, conforme verificvel nas compilaes de Pedro Fernandes Toms e na Etnografia da Beira de Jaime Lopes Dias. Quanto ao Douro, na altura das vindimas, a poca mais exaltante de trabalhos a realizados, as cantigas e as msicas reunem-se s canseiras. Alves Redol, no romance Os Homens e as Sombras, traou um magnfico e incisivo quadro respeitante ao assunto: Nalguns socalcos j andavam as serranas a encher os balaios que o rapazio transportava para os grandes cestos vindimos, carregados depois s costas dos homens, a caminho do lagar, num calvrio de canseiras. Tocadores de guitarra, bombo e ferrinhos acompanhavam-nos para lhes suavizar a marcha arrastada; vozes de mulher cantavam:Fui ao Doiro vindima S ganhei os trinta ris; Dei um vintm ao barqueiro, S me ficaram dez ris. 23

Em Trs-os-Montes, no distrito de Bragana, canta-se e dana-se:Siga a malta, siga a malta, Siga a malta, trema a terra; Benha l donde binher Esta malta no arreda.

Trata-se da ruada ou rusga cantares nocturnos pelas ruas acompanhados, segundo Leite de Vasconcelos, pelo21

som de pandeiros, gaita de foles, ferrinhos. 24 Sobre o assunto, relativamente ao concelho de Vinhais, o P.e Firmino Martins pronunciou-se largamente: Os instrumentos msicos usados nas festas, danas, jogos, rondas, seres e rusgas, e cantigas, so o tambor, a caixa, o adufe, o pandeiro de guizos, a pandeireta, os ferrinhos, as ferrenhas e castanholas, de percusso; a gaita de foles, a flauta ou travessa, a grileira e o pfano de sopro; uns so usados nas festas, outros nos divertimentos do sero e da ronda; a grileira e o pfano esto circunscritos aos pastores. 25 Gonalo Sampaio, no seu modelar Cancioneiro Minhoto, entre mltiplas coreias, indica como tendo largo acolhimento no Minho as chulas, as vareiras, as canasverdes, os verde-gaios, o malho. Nas orquestras populares que acompanham esses cantos e danas entram o cavaquinho, a viola-braguesa, os ferrinhos. Em trovas populares relativas a divertimentos habituais na parte continental de todo o pas, aparecem frequentes aluses a violas, adufes, pandeiros, machetes e guitarras. Quanto s Ilhas Adjacentes, Lus de Freitas Branco esclareceu-nos com os seus eruditos conhecimentos: No muito profunda a cano nas ilhas adjacentes nos Aores que ainda se encontra o ltimo eco das aravias da poca mosrabe. Os instrumentos principais dos Aores e da Madeira so as violas de arame, de diversos tamanhos, com diferentes nomes, e a rabeca, mais raramente empregada no continente como instrumento popular 26. Evidentemente a faceta musical, como acompanhamento de cantigas, tinha de ser apontada, embora aqui s seja mencionada sucintamente, porque,22

conforme Rodney Gallop acentua no valioso estudo crtico com que inicia os seus Cantares do Povo Portugus, so necessrias para tal assunto aptides especiais e experincia de ordem tcnica, exigncias essas a que s os especialistas podem corresponder. citada obra do ilustre ingls devem associar-se, para conhecimento do assunto em estudo, quatro captulos da sua obra: Portugal. A book of folkways intitulados: The music of folk-song; The traditional ballad; The popular quatrain; The fado (caps. VIII, IX, X e XI). Felizmente, de algumas dcadas para c, notveis musiclogos tm-se empenhado no estudo destes assuntos, com amor e proficincia. Assim, Fernando Lopes Graa no formoso e esclarecedor livro A Cano Popular Portuguesa trata o problema com aguda viso cientfica, crtica e esttica. A, numa das suas classificaes, a mais acessvel do ponto de vista de tcnica musical, considera duas classes de composies: as canes mondicas, a parte mais avultada do nosso folclore; e as cantigas polifnicas, do mais alto interesse e que vem outorgar msica folclrica portuguesa um lugar privilegiado no complexo de msicas populares europeias 27. O mesmo rigor cientfico se demonstra noutra obra de real autenticidade, realizada ainda por Lopes Graa e Giacometti: a antologia gravada, de letra e msica populares, formando cinco discos-lbuns, documentos valiosssimos que incidem sobre o Minho, Trs-os-Montes, Beiras (Beira Alta, Beira Baixa, Beira Litoral), Alentejo e Algarve. Tambm Joo de Freitas Branco, no ltimo captulo da sua erudita Histria da Msica Portuguesa, apresenta valiosas consideraes sobre o nosso folclore musical.23

Cite-se ainda o trabalho de Armando Lea, Msica Popular Portuguesa, interessante estudo sobre aspectos de canes das diversas provncias portuguesas, a que no falta comovido entusiasmo. Que, para concluir esta breve incurso em seara alheia, seja lcito transcrever um belo passo da autoria de Rodney Gallop, em que se verifica o entusistico fascnio provocado por manifestaes de poesia e msica folclricas portuguesas: Uma das mais vivas recordaes que guardo da Beira a dum grupo de cachopas que ouvi do outro lado das estreitas guas do Vouga, descansando, debaixo duma oliveira, da faina do campo, a cantar lentas e bastante solenes canes, harmonizadas a trs partes As vozes, alternadamente, cantavam a melodia, mantinham longas notas ou vagueavam em devaneios meldicos acima da prpria melodia. E, com entusiasmo, j anteriormente afirmara: Na pequena regio de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura e alguns stios mais humildes, conservou-se uma tradio de cantar a trs partes, que no tem paralelo na minha experincia de qualquer pas 28.

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ASPECTO FORMAL DAS CANTIGAS

A forma das composies poticas do tradio oral , naturalmente, singela, mas o fillogo encontra nelas vasto e variado material para estudos concernentes a caractersticas lingusticas das regies portuguesas. Quanto medida utilizada nos versos domina de modo marcante o tradicional e portuguesssimo verso de sete slabas. Ao referir-se a quadras populares, Afonso Lopes Vieira relatou que, um dia, falando com uma velha, verificou que ela se expressava em versos de sete slabas: Choro, choro, choro, choro,/Depois boto-me a rezar 29. Inmeras observaes fceis de obter levam concluso da forte maneira como se encontra arreigada a redondilha maior na expresso popular. Alm da redondilha maior, existem com frequncia os seus quebrados de trs ou quatro slabas, assim como a redondilha menor. Em composies que mantiveram o carcter de cantigas paralelsticas, miraculosamente conservadas atravs dos sculos, verificam-se versos longos, at de catorze slabas. Frequentemente os versos so hiprmetros ou, pelo contrrio, apresentam falha de slabas, talvez estropiados de boca em boca ou at originariamente falhados. O

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esprito observador e humorstico do povo no deixa escapar tais pormenores:Ao errar duma cantiga No haja ademirao Tambm o bom caador Errou a perdiz ao cho 30

Relativamente construo estrfica, tanto nas cantigas simples como nas dialogadas estas com representao mxima nos desafios a quadra que impera. H inmeros exemplos de dsticos, tercetos, quintilhas, sextinas, cantigas oitavadas e dcimas. Estas usam-se geralmente como glosas a motes. Pela sua extenso, no de admirar que s vezes se notem evidentes embaraos de expresso, provenientes de se comporem largas tiradas de pretensa eloquncia. Mas tal estrutura estrfica merece certo aplauso por nela se expressar um flego oratrio de que no se suporia capaz a musa popular. Nas rimas infantis designadas por lengalengas as estrofes podem atingir dimenses incontrolveis, quando nelas se adopta o processo de adicionar a cada nova srie de versos todos os anteriormente compostos e ouvidos em cantilena ou recitao. Na composio das estrofes h a notar algumas caractersticas curiosas. Conforme observou Tefilo Braga 31, o povo compe com facilidade uma quadra a partir de dois versos, muitas vezes contidos num provrbio, por simples modificao na ordem das palavras: minha caninha verde, minha verde caninha,

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Salpicadinha de amores, De amores salpicadinha.

Leite de Vasconcelos, no estudo que escreveu para introduo s Cantigas Populares da Beira coligidas por Pedro Fernandes Toms, chama a ateno para o emprego de neumas, que no representam inanidade da parte do povo, mas usam-se por vezes essas palavras meramente fnicas para satisfazerem o ritmo 32, por exigncia do canto. So elas observveis na citada colectnea, usadas sobretudo no refro, ampliando as estncias que transformam em quadras, embora, na realidade, apenas haja um dstico a considerar:Lari-li, l-lela, Ai lari, ll, V devagarinho, Que levanta o p. 33

Facto ainda a notar: a utilizao bastante marcada do refro entre quadras que formam uma sequncia ou mesmo no interior destas, sem que haja ligao de sentido com elas. As quadras e o refro, a que no Alentejo do o nome de remate ou requebro, ora tm medida igual com predominncia do verbo setessilbico ora as primeiras so de redondilha maior e o refro de redondilha menor. Em canes vrias, sobretudo nas coreogrficas, tambm se observa muito o processo do leixa-pren. Eis um exemplo tomado numa das canes colhidas por Fernandes Toms: pavo lindo pavo, Lindas penas o pavo tem; 27

No h olhos para amar Como so os do meu bem. Como so os do meu bem, E como os da minha amada, pavo, lindo pavo, Pavo da pena dobrada. 34

Assinale-se ainda, no exemplo transcrito, que na segunda estrofe se retomou tambm, em ordem diferente, o primeiro verso da estncia anterior, do que resulta uma estrutura repetitiva. Alm de repetio e frequentes comparaes, as aliteraes tm largo emprego na poesia popular: Meninas, vamos ao vira,/Que l vem a virao Ainda mais frequentes so os contrastes:O amor e o respeito No fazem boa unio: Quando o amor diz que sim O respeito diz que no 35

Em jogos verbais aparecem trocadilhos usados com uma percia que quase lembra poesia de poetas cultistas:Com pena peguei na pena, Amor, para te escrever; Caiu-me a pena no cho Com pena de te no ver. 36

Outro processo estilstico muito caracterstico o da dicotomia. Nas numerosssimas quadras dicotmicas o assunto fundamental encontra-se expresso nos dois versos finais, ao passo que os dois primeiros aludem a assuntos quase sempre tomados da observao da

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natureza e que se lhes associam por elos de semelhana ou oposio:Esta noite cau neve Numa folhinha de couve; Oh quem me dera cair Nos braos de quem me ouve! 37

Conforme acentuou Leite de Vasconcelos, h numerosos casos de versos comuns em assuntos diferentes. Trata-se dos versos bordes, na expresso consagrada de Adolfo Coelho. Surgem tambm amiudadamente estrofes estereotipadas; nas cantigas geogrficas basta mudar-lhes o nome da terra e elas funcionam perfeitamente em vrias circunstncias. O mesmo se verifica em cantigas religiosas referentes a diferentes santurios, assim como nas que os reiseiros festivamente dirigem queles de quem pretendem receber presentes. Um exemplo deste ltimo tipo:Quem diremos ns que viva Na folhinha do serpo? Viva o senhor (ou senhora) F Que tem belo corao! 38

As trovas alusivas a ddivas comeam geralmente pelo verso: Toma l, que te dou eu; e, quando se trata de exaltar algo que delicia o olfacto, ouve-se insistentemente: Cheira a cravo, cheira a rosa/E flor da laranjeira Quanto rima, domina a consoante, embora seja de uso corrente a toante. O esquema rimtico mais vulgar o abcb. O esquema abab, de emprego bem menos vulgar,29

forma o que na terminologia popular designado por cantiga quadrada. Observa-se propositada ausncia de rima nas cantigas sem tom nem som, em que se pretende obter graa nscia. Nas regies nortenhas so essas composies apelidadas de cantigas s avessas. de assinalar a considervel aco da rima em inmeros aspectos lingusticos, literrios e ideolgicos, conforme o Prof. Joo Correia largamente demonstrou em erudito e minucioso estudo de que se transcreve a seguinte afirmao elucidativa: indestrutvel esta concluso: a rima domina o poeta, o popular como o culto, obrigando-o a criar palavras, a adulterar construes, a torcer sentidos 39.

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TEMAS DAS CANTIGAS

Desde o comeo da nacionalidade andou Portugal ligado poesia lrica, corrente de manancial cristalino e riqussimo que atravs dos sculos no cessou de fazer ouvir a sua voz e esta, muito mais que a das sereias do mito, para sempre encanta e prende ao seu sortilgio quem a escuta e tem alma para a sentir. A cada passo, no desenrolar da nossa literatura, interpenetram-se a poesia culta e a popular. visvel que a frescura de composies do povo fez o encanto de muitas cantigas de amigo, de versos de Bernardim Ribeiro e de Cristvo Falco, de passos de Gil Vicente, de redondilhas de Cames, prolongando-se pelo tempo fora, com especial relevo do sculo XIX, at os nossos poetas da actualidade. Em contrapartida, trovas de poetas conhecidos chegam boca do povo que as adopta, as canta, inconscientemente as modifica por vezes e, finalmente j annimas, caem dentro do tesouro colectivo, folclorizadas e irmanadas com as que surgiram nascidas do povo, sempre em contnua elaborao potica. Entre os inmeros assuntos das composies que formam o cancioneiro popular portugus, avultam sobretudo as que versam os temas tradicionais na literatura portuguesa desde a poca dos Cancioneiros medievais cantigas amorosas, religiosas e satricas e31

ainda as cantigas da natureza, as do trabalho e as referentes vida quotidiana. Numa frase felicssima, definiu Alves Redol o contedo geral do cancioneiro popular portugus: A vida do povo cantada pelo povo.40

O AMOR A poesia de carcter amoroso um filo aurfero e inesgotvel, com predomnio incontestvel nas produes da tradio oral popular. Nela est consignada a ars amandi do povo portugus. Surpreende verificar a finura do profundo conhecimento de estados de alma que algumas trovas revelam. Envolto no perfume dos montes, surgem exemplos de amor fulminante, nascido de uma troca de olhares:Debaixo do alecrim Pus-me a colher a semente; Logo que vi os teus olhos Fiquei presa para sempre. 41

E da a queixa da apaixonada dirigida natureza, considerada propiciadora desse amor a que o sofrimento se associou:Alecrim, Alecrim aos molhos, Por causa de ti Choram os meus olhos 42

aqui de citar a opinio de Jaime Corteso que, tal como D. Carolina Michalis j expusera, atribui origem feminina a parte de cantigas populares que versam os temas do amor e da saudade.32

O sentimento amoroso cria razes bem fundas, por vezes. E possvel escutarem-se quadras desse assunto, dignas de assinatura dum grande poeta:O meu orao do teu bem ruim de apartar, como a alma do corpo Quando Deus a vem buscar. 43

anlise psicolgica tambm se associam observaes baseadas na modificao do aspecto somtico:O amor quando se encontra Causa penas e d gosto: Sobressalta o corao, Sobem as cores ao rosto. 44

E que delicadeza a do pobre apaixonado sob o domnio da dvida torturante e dotado duma transcendente abnegao melanclica e quase dolorosa:Tenho raiva ao vento norte Que me sem a flor cravo; Tenho raiva de mim mesmo Se no sou do teu agrado. 45

O esprito folgazo de outros namorados, muito menos tocados pelo sentimento do amor, revela-se no modo alegremente jocoso como pretendem facilitar o caminho a uma desejada resposta:Tenho um dedo que adivinha, Um dedo que me diz tudo; Perguntei-lhe se me amava, Mas o ladro ficou mudo 46 33

Inmeras composies falam de madrigais, de amor encoberto ou contrariado e de grande veemncia sentimental:Alegria dos meus olhos Foi, amor, quando te vi. Quanto mais vezes te vejo, Menos posso estar sem ti! 47

No so raras as ousadias; e, ento, o desejo amoroso irrompe com ardncia que no pretende ocultar-se e que frequentemente reveste expresses reveladoras de impetuosa sensualidade desenvolta e alegre:Se eu fora a cobrinha de gua L do rio do Guadiana, Mesma debaixo da areia Ia ter contigo cama 48. Deixa-me ir dormir contigo Que uma noite no nada; Eu entro pelo escuro E saio de madrugada 49.

No faltam, por vezes, cimes e arrufos que ora finalizam em rompimentos definitivos, origem de alvio quase festejado: Leve o diabo as paixes,/No as quero c comigo, ora se transformam em inesperada reconciliao. Os desentendimentos vo ao ponto de se pronunciarem pragas e quase insultos:Eu amava-te, menina, Se no fora um s seno: Seres pia de gua benta, Onde todos pem a mo 50 34

O sarcasmo nesta quadra torna-se mais fundo pela pretensa ingenuidade da expresso: um s seno. Dores e alegrias sucedem-se, fundem-se, pois que so o prprio tecido da vida. O tema da separao e das consequentes saudades e lgrimas ocupa com a sua elegaca plangncia um lugar de relevo na lrica popular:Inda que o lume se apague, Na cinza fica o calor; Inda que o amor se ausente, No corao fica a dor 51.

Ento evocada a fonte que no tardar a secar, para formar contraste frisante com os olhos que no param de chorar. Quando, levados pelas vicissitudes da vida, partem para alm-mar noivos, maridos, filhos ou irmos, soam imprecaes contra o mar que separa, causador de dolorosas angstias, ou, tratando-se de temperamentos mais sofredores, ouvem-se os votos de que, para a pessoa bem-amada, o mar se lhe torne em rosas/O navio num jardim. Surge ento a saudade, cuja especiosa anatomia foi feita por D. Francisco Manuel de Melo: amor e ausncia so os pais da saudade; e como nosso natural , entre as mais naes, conhecido por amoroso e nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausncias, da vem que, donde se acha muito amor e ausncia larga, as saudades sejam mais certas 52 Para minorar as saudades tenta-se utilizar o lenitivo de mensagens e cartas. Nestas sente-se palpitar o corao de quem as escreve e por isso so recebidas e apreciadas como tesouro inestimvel:

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A carta que me mandaste Abri-a com muito jeito: Trazia o teu corao, Cau-me dentro do peito 53.

Outras mensagens existem para as quais so muitas vezes escolhidos como medianeiros alguns elementos da natureza: aves, borboletas, flores. J nas cantigas de roda se indica o Papagaio louro/De bico dourado como prestimoso auxiliar dos apaixonados ausentes, visto a moa lhe pedir: Leva-me esta carta/Ao meu namorado. H pequenas peas poticas que revelam universos de ternura:Maria, se vires cair Flores brancas na varanda, Aceita, que so saudades Que este teu amor te manda 54.

A veemncia sentimental irrompe intensamente em algumas cantigas, avivada pela beleza de imagens e comparaes, onde se espelha a felicidade de circunstncias que permitem a contemplao da pessoa amada:Mal sabes quanto me alegro Quando te vejo defronte: como quem morre sede E pe a boca na fonte 55.

Mas nem sempre os namorados podem ter essa ventura: muitas vezes a famlia, sobretudo a me, ope-se; e o amor contrariado, embora no ceda aos desejos ou

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imposies familiares, passa a viver encoberto, ainda que seja difcil ocultar o fogo que incendeia os coraes. Os encontros entre a gente moa do-se geralmente em locais tradicionalmente consagrados a esse fim: a igreja, hora da missa; a fonte; o rio. Quanto igreja, os namorados mais devotos chegam mesmo a pedir: No vs missa que eu v, porque ambos, embebidos em contemplao mtua, inevitavelmente deixariam de prestar ateno ao ofcio religioso. Na fonte, ao cair da tarde, uma vez os trabalhos quotidianos j realizados, h possibilidade de vagares e conversas. Para l se sentem naturalmente atrados os moos; e das conversas com as raparigas resultam confisses amorosas:Fui fonte beber gua Debaixo da flor da murta; Foi s pra ver os teus olhos, Que a sede no era muita 56

E h rapaziada rstica capaz de evidenciar nos seus galanteios requintes e inesperadas subtilezas. Proveniente de Baio, existe uma cantiga em que annimo poeta popular distribui as suas gentilezas por todo o rancho feminino: Fui fonte beber gua,/Achei um ramo de flores. Tambm se do desencontros lamentados de parte a parte. Numa bem conhecida quadra aparece o queixume que um adorador campesino enderea sua amada: Nem na fonte nem no rio,/Fui capaz de te encontrar! Outros meios fornecem propcios encontros nos namorados: os seres, onde cantam e danam e se improvisam cantigas ao desafio, com manifesto entusiasmo da assistncia; as feiras; as romarias estivais. Todas estas situaes fornecem abundante e por vezes37

mesmo encantador assunto para cantigas em que a alegria predomina. Quando o namoro persiste, aparece uma natural necessidade de troca de prendas, manifestao gentil de bem-querer. Seguindo antigas tradies, so elas, sobretudo, as flores, o leno, o anel. Esses presentes celebram-nos muitas quadras, algumas de real beleza, outras singelas, mas cheias de frescura como as prprias flores: Toma l que te dou eu/Um ramo de rosmaninho, Toma l este raminho/De quantas rosas achei. Uma das prendas marcantes aquela em que ao leno se associam as flores bordadas. Trata-se do chamado leno de namorados de que h curiosos exemplares no Museu Etnolgico do Dr. Leite de Vasconcelos, no Museu do Trajo e no Museu de Arte Popular de Lisboa. Alm do bordado das flores, vem-se geralmente nestes lenos dois coraes ligados e alguns ingnuos versos a enquadr-los:Abre este leno e vers Quatro ramos feloridos, Tambm l vers no centro Nossos coraes unidos 57.

Nas prendas de anis, em que transparece o simbolismo da priso de amor, h referncias aos de coralina, de prata, de ouro, assim como aos tradicionais de sete pedrinhas. Censura spera merece o moo que, tendo ido romaria do Senhor da Serra, se esqueceu de trazer um anel namorada que lhe ralha: Nem os mouros da Mourama/Faziam o que tu fizeste! Tambm h anis de vidro que, pela sua fragilidade, no podem simbolizar a desejada fidelidade da priso amorosa. Por isso certa namorada lana irada praga ao seu cortejador,38

devido a comprovada inconstncia assinalada pelo anel que se quebrou: Tanto dure a tua vida,/Como o anel me durou! Em muitas cantigas aparece o retrato ou antes, impreciso esboo da mulher amada, cuja formosura realada por ser posta em confronto com o que de mais delicado e lindo existe na natureza. A esbelteza do porte no pode deixar de provocar admirao e encanto:Tu s alta como a faia, Delicada como a linha, Tu tens o andar de rola, O passear de andorinha 58.

Os olhos, quando no o prprio olhar, so inspiradores de inmeras quadras apaixonadas e laudatrias: Tendes dois olhos na cara/Que parecem duas flores; Os teus olhos so dois sis/Que do ao mundo clareza. Cantam ainda: Tu tens o p pequenino/Do tamanho duma flor; eTua boca me parece Um botozinho de rosa; Tenho visto bocas lindas Mas nenhuma to formosa 59.

Nos retratos verifica-se a comparao dos namorados com as flores, rosa e cravo sobretudo, com evidente preferncia destas duas flores sobre todas as outras. Por vezes, para definir o encanto que avassala a alma apaixonada, j uma s flor parece pouco. E ento, de rosa, a amada passa a ser a prpria roseira carregadinha de flores.

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A tal ponto pode subir o sentimento amoroso que se transforma em obsesso pelo desejo da presena do ente amado, presena desejada a todo o instante, de noite e de dia:Tenho sono, vou dormir, Vou dormir, vou-me deitar, Levo-te no pensamento, Contigo hei-de sonhar 60.

Daqui para o casamento pouco espao medeia. este o mais desejado remate. Mas muitos outros idlios so desfeitos pelo tempo, uns com alvio, outros com mgoa dos enamorados. O CASAMENTO; OS FILHOS; O QUOTIDIANO FAMILIAR Chegado o casamento, a festividade acompanhada de cantos laudatrios em honra dos noivos, sobretudo em honra da noiva, entoados por pessoas amigas e familiares. So as chamadas loas em casamento, tambm designadas por cantos de noivado. Um ramo de flores geralmente oferecido nubente:Demorem-se l, senhores, Suspendam sua alegria, Que eu quero dar o ramo A quem tanto o merecia! 61

Constitudo o casal, h necessidade de lar. Na esperana de entrever a amada, a sua habitao fora rondada pelo namorado e mirada na porta, no balco, nas janelas: Quando olho para a janela/Vejo a quem eu quero bem40

Agora, quem casa, quer casa e trata-se de a manter a mulher escolhida, se as posses o permitem, afastando-a ciosamente do convvio alegre e bulioso dos trabalhos campestres:No quero que vs monda, Nem to-pouco a mondar; Quero que fiques em casa, Carolina, a remendar 62.

No do agrado feminino essa vida limitada pela casa. J em solteiras as tecedeiras jovens se lamentam de m escolha de profisso. Quase todas, em diversas variantes, confessam o mesmo arrependimento: Passa o amor pela rua/E eu na gaiola metida. Em sua casa, a desposada, entregue costura, segundo o desejo do marido, apenas observar um limitado horizonte visual junto da janela, onde se entrega ao trabalho:Na janela donde eu coso No quero manjarico: Bate o sol, no le repassa Fico numa escurido 63.

de notar que essa opinio no vulgar; as janelas floridas so louvadas em inmeras quadras:Eu tenho minha janela O que tu no tens tua: Um vaso de violetas Que d cheiro a toda a rua 64.

Em variantes desta cantiga, em vez de vaso de violetas aparece o vaso de manjerico ou um ramo de cravos.

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A gente do povo no , com efeito, insensvel formosura da natureza. Se so pouco numerosas as trovas que tm a natureza por tema exclusivo, encontram-se milhares de cantigas dicotmicas em que o elemento fornecedor da comparao ou do contraste precisamente inspirado em aspectos da natureza. Entre as primeiras encontram-se as que celebram a espuma das ondas, as serras brilhantes de neve, os campos primaverilmente floridos ou, uma vez perdidas essas galas, outonalmente melanclicos: J os tristes campos choram,/Que no tm que vestir. Realizado, portanto, o sonho do casamento, escuta-se o casal a comentar a sua situao, exprimindo algumas desiluses provocadas pelo contacto com a realidade. Os comentrios so por vezes jocosos, de inesperada originalidade humorstica, outras vezes soam lamentos de melancolia, quando no de dolorosa resignao:Eu cuidava que o casar Era s o dar a mo; Sustentar mulher e filhos uma grande penso! 65 Eu casei-me e cativei-me, Troquei a prata por cobre: Troquei minha liberdade Por dinheiro que no corre 66.

Novas modificaes se do com o aparecimento dos filhos. O enlevo dos pais neles se concentra e revela-se em cantigas, nas quais se ausculta a ternura amorosa da alma, pois ainda so cantigas de amor de outro tipo as que se cantam ao embalar os filhos. O encantador livro Canes do Bero, que Leite de Vasconcelos

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enternecidamente compilou, documento precioso do assunto. A voz da me, ouve-se a murmurar palavras simples, mas profundamente sentidas, endereadas frgil criana que vai desabrochando. Comparada com o que h de materialmente mais precioso, cuidadosamente velada pela me, seu anjo da guarda, ela fonte tanto de desvelo como de preocupaes no presente e no futuro:Rouxinol do bico negro, Deixa a baga do loureiro, Deixe dormir a menina Que est no sono primeiro 67. Uma me que um filho embala Todo o seu fim chorar S por no saber a sorte Que Deus tem para lhe dar! 68

Passados poucos anos, essas mesmas crianas, em bailes de roda, cantam e danam rimas infantis que se perpetuam atravs das geraes com a frescura e beleza perenes de flores imarcessveis; e, ao escutar a sua msica a mais evocativa das artes revivemos com encanto e melancolia o paraso perdido da infncia. Quem no se recorda do Jardim Celeste, em que no mesmo chilreado rodopio confraternizam a Triste Viuvinha e a menina da Rosa Branca ao Peito a cantar o suposto namorado Lindo como o cravo,/Lindo como a Rosa, o barqueiro da Linda barquinha/Que l vem, l vem, ao lado da senhoril Condessa de Arago mais as suas trs filhas que to lindas que elas so?. Travam-se mesmo dilogos repartidos em coros:Jardineiras, feloreiras, Vs que andais a vender? 43

Vendemos cravos e rosas, Raminhos de bem-querer 69.

Mais tarde chegar a vez dos filhos manifestarem o seu amor pelos pais. E ento elevam-se vozes repassadas de ternura e de gratido: minha me da minha alma, pai do meu corao, Por muitos anos que eu viva No vos pago a criao! 70 Minha me, minha mezinha, Minha mezinha do cu Que me trouxe nove meses Debaixo do seu mantu! 71

Tais cantos adquirem elevao quase religiosa quando j no se encontram c no mundo esses entes queridos, cuja evocao enche a alma de desoladas saudades pela verificao de que para sempre se perdeu a sua afeio suprema e insubstituvel: minha me, minha me, Minha doce companhia, Caixinha dos meus segredos, Espelho donde eu me via 72. guia que vais voando, Por essas serras alm, Leva-me ao Cu, onde tenho A alma da minha me! 73

Da realidade quotidiana familiar h larga repercusso nas cantigas. Bem assentes na vida material do povo, elas atestam hbitos, costumes que se mantm atravs de44

geraes e geraes. Os dois aspectos mais focados so a alimentao e o vesturio, sobretudo o primeiro. No apresentam estas trovas emotividade potica, mas pemnos em contacto com a gente simples que se afadiga a desentranhar da terra ou do mar o seu sustento, que acha tema digno de cantares. O po ocupa lugar primacial. Tm carcter de oraes a generalidade dos versos que se pronunciam quando se amassa, enforna ou retira do forno o po j cozido. Em bidos recolheu Mestre Leite de Vasconcelos os seguintes versos que l dizem antes de enfornar:Deus te acrescente 74 E deite a virtude Que eu, por minha parte, Fiz tudo quanto pude.

Vrios santos so invocados para o que o po v a bom termo:So Mamede te levede, So Vicente te acrescente, So Joo te ponha a mo, Para que faa bom po.

So simples mas numerosas as cantigas referentes azeitona, celebrada sobretudo pelo azeite que dar: Apanhemola azeitona,/Que ela tem azeite dentro No varejo das oliveiras canta-se, para incitamento de quem intervm no trabalho, com realce elogioso dado ao fruto que se colhe. Noutras trovas de carcter muito prtico celebra-se o valor nutritivo da carne, do peixe, de frutas vrias. o bom-senso popular, que se expande em rimas:45

Para comer, a pescada, Para governo, a sardinha, Para gosto, carne assada, Para caldos, a galinha.

A uma grande variedade de bolos caseiros e de derivados da carne de porco h referncias nas cantigas denominadas janeiras, entoadas nas aldeias pelos reiseiros. Vo de porta em porta e, no final da cantoria, reclamam, como recompensa, dinheiro ou apetitosos produtos. Mas sem dvida o vinho que mais inspira a musa popular, o que natural num pas como o nosso, em que se produz tanta variedade de espcies vincolas. O tema tratado de Norte a Sul do pas, com predomnio da regio nortenha. H trovas em que o vinho celebrado como coisa santa, conforme se declara numa quadra de Barcelos. Noutra, de Alandroal, Alto Alentejo, tambm se afirma: O vinho coisa santa,/D sprito a quem o no tem. A espirituosa graa, a ironias custicas e at a chalaas d origem a beberronice dos adoradores bquicos, conforme se ver nas pginas reservadas s cantigas satricas. O interesse cientfico do problema alimentar tem provocado estudos de muito valor. Alm de mestre Leite de Vasconcelos, sempre presente 75, recordemos o notvel etngrafo brasileiro Lus da Cmara Cascudo, que cita em Usos e Costumes vasta bibliografia brasileira e portuguesa sobre o assunto, que considera merecedor de inqurito e sistemtica e do qual se tiram concluses sobre o modo de vida e psicologia das populaes 76. So de Joaquim Ribeiro, outro conhecido etngrafo brasileiro, as46

seguintes palavras: regies tpicas do Brasil podem ser definidas pelos seus pratos e alimentos caractersticos 77. No tm menor importncia etnogrfica as informaes dadas pelos cantares do povo relativamente indumentria. Deixaram marca nas cantigas os assuntos relativos ao vesturio, tanto no que se refere ao espao como ao tempo, pois que ao evoluir da moda tambm h aluses expressivas por todo o pas:O meu pai me deu um leno, Minha me uma belusa; Eu quero andar em cabelo Que o que agora se usa.

O assunto apresentado em composies poticas do j citado VI volume da Etnografia Portuguesa de Leite de Vasconcelos, do Cancioneiro Popular Portugus de Tefilo Braga, dos Cantos Populares Portugueses de Toms Pires e do Cancioneiro do Ribatejo de Alves Redol. Neste largamente imperam referncias ao to caracterstico trajo dos campinos. Todos esses cantares, pela sua simplicidade graciosa, prendem quem sobre eles se queira debruar. O TRABALHO evidente a necessidade do trabalho, de onde provm o po de cada dia. Fonte de nobreza e dignidade humanas obtidas atravs do esforo, quantas vezes doloroso e por isso mesmo herico, so justos o orgulho e a alegria saudvel que dele derivam:Vs quereis ter alegria? De sol a sol trabalhai:

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Deus com trabalhos castiga, Mas castigando foi Pai 78.

Nos provrbios, saborosos frutos da sabedoria popular, tambm o trabalho saudado como origem de feliz disposio de esprito: trabalha e cria, ters alegria. As cantigas que exprimem a grandiosidade pica do trabalho distribuem-se por vrios aspectos, dos quais os mais importantes se referem labuta dos campos, vida piscatria e aos ofcios. Nessas cantigas a gente humilde e laboriosa de Portugal que, de Norte a Sul, desfila perante ns a falar, frequentemente com euforia, dos seus esforos e canseiras, porque o trabalho honra. So essas figuras tipos visceralmente portugueses, bem semelhantes queles com que contactamos atravs da genial obra de Gil Vicente e que se mantiveram idnticos a si prprios atravs dos sculos. Poucos so os trabalhadores rurais que no se apresentam ou de quem no se fala nas composies poticas do povo. E, assim, convivemos com pastores, cavadores, sob cujo esforo treme o cho, ceifeiros, malhadores, corticeiros, varejadores, ganhes, malteses Acima de todos ergue-se a figura impressionantemente austera e grandiosa do lavrador:Sapateiros no so homens, Carpinteiros homens no so: Homens so os lavradores Que enchem as arcas de po!

No se fala apenas dos trabalhadores. Os prprios trabalhos do campo so cantados pelo povo, enquanto neles participam; aparecem numerosas aluses s lavras,48

s mondas, s regas que obrigam os namorados a encurtar as desejadas conversas Vou-me embora, levo pressa,/Levo auga de regar/, s ceifas, s descamisadas, ao varejo da azeitona, s vindimas que proporcionam descantes de sol a sol, mas castigam com os trabalhos que se passam no lagar. Dada a extenso do litoral portugus, tambm no cancioneiro popular se reflectem amplamente as fainas piscatrias. Reveladoras de preocupaes derivadas da vida dos pescadores sobre as guas do mar, ou seja, em cima da sepultura, as cantigas do parte de inquietaes de quem tem os entes amados entregues a essa labuta. H por vezes desabafos em que estremecem lufadas carregadas do cheiro acre do sal, marulhos estrepitosos envoltos em fuliginosas sombras trgico-martimas. No faltam notas dramticas de naufrgio e morte:O pobre do pescador J l morreu afogado: Foi pesca, l ficou Nas ondas do mar rolado.

Estas e outras trovas marcam bem o sofrimento do povo portugus que vive do trabalho do mar, expresso singelamente dramtica do que Raul Brando, em nvel culto, disse em pginas de prosa potica, altamente emotiva, dos Pescadores. As guas do mar pela sua grandiosidade provocam emoo intensa quando vistas pela primeira vez, conforme singelamente revela, cheia de surpresa, uma decerto inexperiente camponesita: Eu fiquei admirada/Das ondas que o mar fazia! Tambm surgem temas de ternura em ambiente martimo, como se nota na quadra seguinte, originria da49

Ilha de S. Jorge, em que ao sentimento amoroso se associa o enlevo causado pela formosura da natureza:O meu amor quer-me tanto Que at ao mar me levou, Numa conchinha de prata Ramos de ouro lhe deitou.

Muitas trovas aludem s ocupaes de pedreiros, carpinteiros, barbeiros, calafates, mineiros, ferreiros repelidos pelas moas por serem difceis de lavar, pelo que lhes preferem os marinheiros cardadores, lenhadores, boeiros, sapateiros ora alvo de compaixo: O sapateiro pobre,/Ajudai-o a viver ora criticados a meias com os alfaiates pela sua duvidosa honestidade, no que lhes levam a palma os moleiros. So estes, com efeito, satiricamente tratados pela fama de serem excessivamente gananciosos e de extorquirem aos fregueses indevida maquia:Menina, se quer trajar Boa saia de veludo, V casar com o moleiro, Que a maquia paga tudo

Companheiras das fainas dos homens, tm as mulheres portuguesas vasta representao nas cantigas do trabalho. Vemos umas entregues a labutas rsticas, outras s piscatrias, outras ainda a trabalhos realizados dentro de casa. Vida de trabalho, ao ar livre, expostas s inclemncias do tempo, tanto ao calor como ao frio, passam diante de ns a ceifeira que anda calma/No campo a ceifar o trigo, a mondadeira, a sachadeira, a lavadeira: Cada qual tem seu ofcio,/Eu tambm sou lavadeira, a leiteira50

que declara: Sou leiteira, vendo leite,/Tambm vendo requeijo; a padeirinha, que pede me: minha me, no me mande/Vender o po a Coimbra por ser assediada pelos requestos dos estudantes; as apanhadeiras da azeitona, cantada como bolinhas de ouro/Que caem das oliveiras. Das que trabalham no litoral portugus, algumas ocupadas em fainas duras, sobressaem as que vendem peixe. Uma ou outra peixeirita considera-se feliz e pronta a cantar e danar a caninha verde, quando a tarefa est finda: minha caninha verde, minha sanjoaneira, O peixinho vai vendido O ganho vai na algibeira.

Outro grupo, no menos numeroso, formado pelas mulheres que se ocupam do trabalho caseiro ou que, em casa, trabalham para fora em pequenas indstrias. A este grupo pertencem as fiandeiras, as dobadeiras: Doba, dobadeira, doba,/No enrices a meada; a tecedeira, muitas vezes descontente com o ofcio a que se entregou, porque tem de se manter em casa; a costureira: minha costureirinha,/Tens agulha, tens dedal Mas o trabalho mais vitoriado , sem dvida, o da cozinheira, altamente elogiada pelos trabalhadores rurais quando, ao voltarem de exaustivas tarefas, se preparam para a merecida refeio: senhora cozinheira, O seu caldo, cheira, cheira

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Algumas dessas ocupaes, sobretudo as ambulantes, j no existem, actualmente, pelo que as cantigas representam precioso atestado de usos e costumes de tempos idos. Tal o caso da galinheira, antiga vendedeira ambulante de criao e ovos, e o da varina: A andar de porta em porta:/Quem quer a fresca sardinha. Ultrapassadas tambm, na maioria dos casos, as relaes entre amos e assalariados tm repercusso nas composies poticas do povo. Atravs delas, se escutamos um ou outro elogio ao patro ou patroa, Que um ramo de alegria, mais frequentemente aparecem recriminaes, desabafos resignados ou fortemente sarcsticos:Este nosso amo de hoje amigo do dia grande: Suba-se quela serra, Pegue no Sol, que no ande.

Nem s estas relaes sociais afloram no cancioneiro popular. H ressonncias e quantas vezes de forte vibrao! de factos histricos e da atitude perante eles tomada pelo povo. Quanto a este aspecto de cantigas polticas, referentes Histria de Portugal, nada h de melhor nvel que a recolha feita por Tefilo Braga 79. Ser de assinalar que muitas trovas trazem consigo a marca da terra originria. Assim, a quadra iniciada pelos versos Ceifeira, que andas calma/No campo, a ceifar o trigo , naturalmente, alentejana, do concelho de Serpa, tal como da mesma provncia, do concelho de Nisa, provm a que nos fala do corticeiro:A vida do corticeiro uma vida arriscada Ao subir duma sobreira, Ao mudar duma pernada. 52

De Almeida a deliciosa cantiga seguinte:O meu amor da raia, da raia, loiceiro. J me deu um pucarinho Pra regar o meu craveiro.

Em nota, o Prof. Leite de Vasconcelos esclareceu: No concelho de Almeida faz-se loua em Malhada Sorda, a uns trs quilmetros da fronteira cntaros, alguidares, fogareiros, pcaros, etc., fabricados com barro vermelho. A quadra vulgar naquele concelho. Muitas vezes se fala de caractersticas locais nas chamadas cantigas geogrficas; tambm h referncias afectivas terra natal, sobretudo quando se impe um afastamento mais ou menos prolongado, devido necessidade de ir longe em busca de trabalho:Abalei da minha terra, Olhei para trs chorando: Adeus, terra da minha alma, Que to longe vais ficando! 80

Da ser natural a euforia que a transfigura numa espcie de paraso terrestre, quando possvel antever o desejado regresso:Daqui para a minha terra Tudo caminho cho, Tudo so cravos e rosas Plantados por minha mo 81.

Essas deslocaes podem ser por vezes desejadas haja vista a abundncia de quadras que aludem atraco

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exercida pelo Brasil mas, mesmo assim, o amor terra onde se nasceu persiste vivo, fortificado pela ausncia. CONCEITOS DA VIDA H no cancioneiro popular de Portugal muitas trovas de carcter conceituoso que, na sua simplicidade, revelam a filosofia da vida da gente do povo, expresso dum saber s de experincias feito. O admirvel e inculto poeta popular algarvio Antnio Aleixo, antigo pastor e cantador em feiras, sintetiza em belas quadras essa ideia e, por vezes, ao falar do seu caso particular, atinge o genrico e proclama a Dor como mestra da vida:Eu no tenho vistas largas Nem grande sabedoria, Mas do-me as horas amargas Lies de filosofia. 82 Diz que viver sofrer Concordo. Mas no compreendo Que ningum ouse dizer Quanto se aprende sofrendo! 83

Pelos mais variados assuntos se expandem esses conceitos no provenientes de gente moa, visto que neles acima do sentimento domina a razo, assente em meditadas e penetrantes observaes. Antes muitas vezes se dirigem mocidade descuidada para a precaver contra perigos que a inexperincia da vida pode acarretar:Rapazes e raparigas, Vde l por onde andais,

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Que a honra como o vidro: Se quebra, no solda mais 84. rosa, nunca consintas Que o cravo te ponha a mo; Uma rosa enxovalhada J no tem aceitao 85.

Contra a hipocrisia do mundo h cantigas que mostram o repdio de almas ss e honestas; por vezes verifica-se a atitude varonil de pr peito contra a corrente, numa resistncia tanto mais herica quanto se calcula a derrota perante foras inevitavelmente mais fortes:Que importa perder a vida Em luta contra a traio, Se a Razo, mesmo vencida, No deixa de ser Razo? 86

No isenta de amargura a verificao de desnveis de situaes resultantes de injustias sociais, amargura que se confina em si prpria:Quem pobre, sempre pobre, Quem pobre nada tem; Quem rico sempre nobre E s vezes no ningum 87.

Tais atitudes de nobre rectido, de elevao moral, vo a par da bem conhecida ternura portuguesa, que compassivamente se inclina perante o infortnio alheio. H mesmo piedade generosa para com algumas desculpveis condutas alheias: a sabedoria popular, sem quebra da dignidade, cristmente a aconselha, dada a consabida

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fragilidade humana: Quem tem janelas de vidro / No pode atirar pedradas. Para aceitao resignada de condies inquas que parecem inamovveis vem trazer coragem a crena de que tudo possvel Providncia divina, pela qual as coisas podem ser modificadas: O pouco com Deus muito / O muito sem Deus nada. Nem sempre a filosofia da vida permanece em atitude grave; a ironia alegre vem aligeirar o tom pungente de muitas reflexes, embora o nvel do contedo e da forma baixe sensivelmente: papo, papo, papo de rola, Muita presuno Faz a gente tola! 88

A contrastar com os temas de crtica frequentemente alegre, insere-se bem marcado no cancioneiro popular, to variado como a prpria vida, o tom elegaco, j anteriormente vrias vezes apontado e que de novo se apresenta, como natural, nas meditaes sobre o fluir da vida. A fuga do tempo irreversvel soa melancolicamente em lamentos ou consideraes de dorida plangncia. Dolorosa a reflexo sobre o bem passado, para sempre perdido, que se no soube devidamente apreciar, porquanto prprio da humanidade no se aperceber da felicidade que teve na mo seno quando irremediavelmente a perdeu:Nunca ningum d valor Ao que tem no seu poder: Como no sabe o que perde, No se lhe d de o perder 89. 56

Dos lbios j plidos de gente do povo saem consideraes de amargura; com extrema simplicidade renova-se o humanssimo tema horaciano Vitae summa brevis:Tudo o que verde seca L no pino do Vero; Tudo o que seca renova, S a mocidade no 90.

Na regio de Lisboa comentam que Primavera vai e volta sempre; / Mocidade j no volta mais Mais comezinhos, ouvem-se comentrios que no tm esta grandeza genrica, apenas incidem sobre a vida pessoal: Ou agora ou quando eu tinha / Dezasseis pra dezassete! Para alvio das inevitveis mgoas provocadas pela vida efmera, h quem sorridentemente encare a situao e a cante, mas sentem-se lgrimas subjacentes:Pus-me a brincar com o tempo A ver a graa que tinha: Encheu-me a cara de rugas E a cabea de farinha! 91

A prpria doena tem cabimento no cancioneiro e d ocasio a que a medicina popular se expresse em cantilenas e ensalmos destinados a debelar os males. Nem todas as doenas referidas tm grande gravidade, dado o manifesto e at gracioso desprendimento com que certas moas delas falam:O meu amor est doente N a cama de laranjeira, Nossa Senhora o melhore, Que eu no posso estar solteira! 92 57

A inevitvel morte d azo a abundantes cantares langorosos como aquele de que Aquilino Ribeiro fala em Uma Luz ao Longe e que o encharcou de melancolia: Vem a morte e leva a gente, / Quem no h-de ter paixo! 93 Nem sempre o assunto to profundamente tratado; h quem afaste propositadamente a dor para exprimir pseudo bom-humor. De uma idosa senhora de noventa e quatro anos 94 ouvimos h tempo uma quadra desse teor, corrente em Ovar: morte, vem devagar, No venhas to apressada, Que inda no tenho farnel Para to longa jornada.

Trovas h que falam de aspectos ttricos. Outras, de uno espiritual, tocam mais profundamente a alma ao evocar a separao dos que se amam, denotando funda tristeza ou certa resignao conforme exprimem a convico de uma perda total ou a crena viva na imortalidade da alma e do amor imperecvel, que ultrapassa a transitria vida terrena:Canta amor, cantemos ambos, J que outra vida no temos, Anda a morte pelo mundo, Cedo nos separaremos 95. Chamaste-me tua vida, Eu tua alma quero ser: A vida acaba com a morte, A alma eterna h-de ser 96.

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CRENAS RELIGIOSAS So abundantes e frequentemente belas as cantigas em que o povo expande as suas crenas religiosas. A par das cantigas religiosas propriamente ditas h a considerar as de romaria, em que a devoo e as diverses que lhe andam associadas do geralmente origem a expansivas manifestaes de predominante vivacidade. Logo no comeo do ano litrgico esto o Advento e o Natal, porventura o ponto mais alto da devoo portuguesa. Em frente dos prespios, nas igrejas e em casas particulares, escutam-se loas cheias de ternura dirigidas Virgem e ao Menino Jesus. Tambm nas artes plsticas populares tem a representao do Nascimento de Cristo um mbito vasto. Ser curioso notar o facto seguinte: ao passo que entre ns a ternura da Natividade que mais inspira os simples artistas populares, em Castela o fervor religioso pende para a representao das trgicas cenas do Calvrio, o que condiz, por um lado, com o inato dramatismo castelhano e, por outro lado, com o acentuado lirismo portugus. Atravs das cantigas observa-se que a devoo popular se centra em Jesus Cristo e na Virgem. As festividades religiosas mais generalizadas so expressas pelas afirmaes contidas na quadra seguinte:Quatro festas tem o ano, Oh que lindas que elas so! o Natal e a Pscoa, O Corpus e a Ascenso 97.

Seguindo-se a ordem do ano litrgico, abrem as manifestaes lrico-religiosas com cantos referentes ao59

Advento. Essencialmente belos e numerosssimos so os que celebram os apelos dirigidos pelo Anjo aos pastores com o fim de que se preparem para a vinda de Cristo e Lhe prestem adorao:Festa noite no noite, No noite de dormir: uma noite de espera Pelo amor que h-de vir 98. Pastores, que andais no monte, Vinde abaixo a Belm Visitar o Deus-Menino Que Nossa Senhora tem 99.

Com ternura e simplicidade, os zagais falam do Nascimento, lamentam a agressividade da estao invernosa que poder martirizar o recm-nascido: Logo haveis de nascer / Na noite do caramelo! e em elogios amorosos envolvem com familiaridade carinhosa Me e Filho:Oh que Menino to lindo, Oh que graa que ele tem! Ai como ele se parece Com a Senhora sua Me! 100

Conforme j se acentuou, trata-se de devoo simples de candura lrica expressa em tonalidades to claras e doces que evocam as figuras e o ambiente repassados de terna finura do espiritual Fra Angelico. Num confronto entre as vs riquezas humanas e a pobreza humlima de que se revestiu o Nascimento do Redentor, h um propsito de enaltecimento da divina

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humildade e a repulsa do fausto aparatoso dos grandes do mundo:Os filhos dos ricos Em bero doirado, E vs, meu Menino, Em palhas deitado! 101

Logo no incio do ano civil, nas glidas noites de Janeiro, se observa a curiosa simbiose de cantos religiosos e profanos. Trata-se das Janeiras cantadas pelos reiseiros, elementos populares das aldeias, que, agasalhados em mantas ou capotes, vo, ao som de vrios instrumentos, cantar de porta em porta s pessoas abastadas, esperando recolher ddivas rendosas. Os mais perfeitos desses cantos constam de quatro partes. De incio, numa espcie de introduo, pede-se a complacncia dos habitantes da casa, a quem so dadas as boas-festas: da casa, nobre gente, / Escutai e ouvireis Logo em seguida apresenta-se o assunto religioso referente ao Nascimento, adorao dos Reis ou a passos da vida de Jesus. Segue-se a parte profana dos cantares nos elogios dirigidos aos donos da casa e pessoas de famlia, a que se sucedem os pedidos de recompensa pelo facto de lhes terem vindo cantar porta. O remate depende do resultado obtido: se a ddiva agradar, vem o agradecimento efusivo; mas, se os reiseiros nada obtiverem, chovem surriadas, remoques escarninhos e injuriosos. Pelo ano fora, so as diversas devoes acompanhadas de cantos populares: escutamos a sua dolncia na Quaresma e na Semana Santa, a sua festiva alegria na Pscoa da Ressurreio e na Ascenso. A Paixo de Cristo, assim como a Ressurreio, no s so celebradas por elas

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prprias, mas ainda posta em evidncia a sua projeco sobre a vida humana:Bendita e louvada seja A Paixo do Redentor, Por nos livrar da culpa Morreu em nosso favor 102.

Um ponto alto do entusiasmo popular aparece com a celebrao dos santos do ms de Junho, os chamados santos populares:A treze do ms de Junho Santo Antnio se demove, So Joo a vinte e quatro E So Pedro a vinte e nove 103.

So os dois primeiros santos mencionados os que verdadeiramente concitam o maior entusiasmo: Santo Antnio, no sul do pas e sobretudo em Lisboa, sua terra natal; So Joo, no Porto e em terras nortenhas. Rodney Gallop, na obra Portugal. A book of folkways, assinalou o facto com perspiccia: Of all the saints in the Portuguese Calendar, it is as their name indicates the santos populares who occupy the warmest place in the hearts of the people It was hardly to be expected that the popular conception of the santos populares should bear any relation to the historical and biblical reality. 104 No entanto, tratando-se de So Joo, entre as cantigas que a gente moa canta alegremente ao saltar as fogueiras ou ao danar em torno dos mastros embandeirados e floridos, surgem referncias baseadas no conhecimento da vida do Baptista:

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Donde vindes, Baptista, Que cheirais a alecrim? Vim de baptizar a Cristo, Cristo baptizou a mim 105.

A imaginao popular recreia-se, ora cantando So Joo como o santo de barbas ruas, ora, de acordo com a iconografia, apresentando-o como um pequenino pastor acompanhado do seu cordeirinho:Ai, So Joo chora, chora Lgrimas de prata fina, Que lhe fugiu o cordeiro, Por aquela serra acima 106.

deliciosa a ingnua ternura provocada pela situao mencionada: o ai inicial faz-nos sentir que o poeta popular compartilha da aflio do santo pastorinho. A proteco do santo invocada para melhoria da sorte, que se espera seja propcia em terras do Brasil: meu So Joo da Ponte, meu santo marinheiro, Levai-me na vossa barca Para o Rio de Janeiro 107.

E com a ida dos portugueses para terras brasileiras l ficou enraizada a devoo joanina largamente existente ainda na actualidade. De resto, j no sculo XVIII Toms Gonzaga fez aluso ao facto numa das suas formosas lricas. 108 Santo Antnio de Lisboa, logo nos princpios de Junho, enche de estuante alegria, movimento e cantorias o bairro que mais perto se situa da casa onde nasceu e da S onde se

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baptizou o to caracterstico bairro de Alfama. Das inmeras quadras em que celebrado, citaremos aquela que exprime notria simpatia pelo franciscanismo e, sobretudo, por So Francisco de Assis, o doce Poverello, fundador da Ordem, com quem conviveu o santo portugus:So Francisco meu pai, Santo Antnio meu irmo, Os anjos so meus parentes, Oh que linda gerao! 109

So os trs santos populares, sobretudo o taumaturgo e So Joo, considerados propiciatrios dos namoros, pelo que rapazes e raparigas os envolvem nos seus problemas sentimentais, deles esperando eficazes solues. o cancioneiro popular de Portugal rico de inmeras quadras que versam esse assunto. s festividades dos santos do ms de Junho sucedem-se os j citados crios e romarias que se efectuam do norte a sul do pas na poca estival, por vezes mesmo nos princpios de Outubro. Vrios so os santos homenageados, mas a todas as romarias sobrelevam as que se destinam aos santurios marianos, que congregam o maior nmero de devotos. H inmeras cantigas em homenagem a variadssimas invocaes da Virgem: Senhora da Sade, dos Remdios, dos Aflitos, do Alvio, da Graa, da Boa-Nova, dos Milagres Ermidas interminveis demonstram a crena dos devotos que a elas acorrem e l cantam ingnuas quadras de splica e de louvor. Guerra Junqueiro em Os Simples evocou esses locais de devoo:

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Miradoiros brancos de luar e rosas, Donde as almas simples entrevem Deus 110.

Virgem, considerada medianeira entre a humanidade sofredora e o Cu, so dirigidas certas splicas patticas:Senhora da Piedade, Apiedai-vos de mim, Que no tenho pai nem me, Nem quem se doa de mim 111.

Outras vezes, a contrastar com situaes altamente dramticas como a anterior, , num ambiente de calma e ingnua confiana, implorado o favor da Senhora para resolver casos de namoro: Senhora do Almorto, Meu goivinho amarelo, Dai-me um amor solteirinho, Que eu vivo no no quero 112.

Ao sentimento religioso junta-se do lado da gente moa o natural desejo de namorar, cantar e bailar no terreiro perto do templo. bem explcita nesse sentido a adorvel confisso de uma romeirita:Minha Senhora da Pvoa, Bem me podeis perdoar: Fui vossa romaria S pra cantar e bailar 113.

Aps estas romagens, vm no princpio de Novembro, com a devoo s Almas, os cnticos plangentes a elas dedicados, aos quais se associa o pedido de escolas para

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missas: Das almas do purgatrio / Sempre bom que nos lembremos. A contrastar com a dolncia destas trovas aparecem, alguns dias depois, os festejos a So Martinho, trs dias para celebrao de So Martinho bispo, So Martinho papa e So Martinho rapa, com fartas beberronias nas provas do vinho das colheitas novas. Passadas poucas semanas, entra a poca do Advento. E assim se completa o ciclo das festividades religiosas e das cantigas que as celebram. Pelo que ficou exposto, como outra coisa no seria de esperar dada a sua origem, facilmente se evidencia que nas cantigas de tema religioso no se pode esperar a expresso de espiritualidade mstica ou anseio transcendente. As relaes crente-divino processam-se num ambiente de completa e afectuosa familiaridade haja vista a atitude assumida perante Jesus em Menino e perante sua Me. Todas as expresses poticas demonstram uma crena de confiante e espontnea singeleza e sentimo-las tocantemente simples como as prprias flores campestres. O MARAVILHOSO POPULAR Numa rpida e belssima sntese afirmou Leite de Vasconcelos no seu estudo A Figa: o esprito do povo quase vive por igual no mundo da imaginao e no da realidade. 114 Evidentemente, nas cantigas do povo tambm transparece essa fantasia que o anima, bem notria na criao de um mundo maravilhoso de irresistvel atraco. Situaes e seres fantsticos, poderes sobrenaturais, supersties ainda hoje fortemente arraigadas, a tudo h aluso mais ou menos circunstanciada em trovas e trovas.66

Assim, o maravilhoso cristo encontra-se expresso em composies que pretendem cantar factos religiosos alterando-os ingenuamente at quanto ao espao e ao tempo. Tal se verifica por exemplo, em composies das Janeiras, nas quais se alude s trs Marias que, tendo ido adorar o Deus-Menino, o encontram em Roma a dizer missa:Foram dar com ele em Roma, Revestido no altar, Cum clix de ouro na mo, Missa nova quer cantar 115.

Nota-se atravs das cantigas que o vulgo chega e considerar as diversas invocaes da Virgem como pertencendo a entidades diferentes, que se reunem e convivem. Outras trovas relatam encontros e falas familiares com a Virgem, a demonstrada piedosa mgoa de Cristo perante os que se ajoelham diante do seu altar a relatar as mgoas que os afligem, a interferncia de anjos, santos e santas. s vezes estabelece-se mesmo um dilogo em que a Virgem, com maternal ternura, aconselha e anima a juvenil devota que suplica a sua proteco: Filha, faze por ser boa, / Que eu farei por te ajudar. Tambm Jesus Cristo escuta as mgoas humanas e delas se compadece, visivelmente sensibilizado, porque as lgrimas lhe caem:Fui contar as minhas mgoas A Cristo no seu altar; As mgoas eram to tristes, Que Cristo ps-se a chorar 116. 67

Dos pastores com quem conversa faz a Virgem seus mensageiros, como se verifica na seguinte quadra originria de Parada de Bragana e que cantada Senhora das Neves, em Rebordes: pastorinha da serra, Deus te guarde o gado teu, Vai pobo e anuncia Qual o desejo meu 117.

To admirvel a persistncia deste tema que chegamos ao ponto de, comovidamente, quase nos podermos interrogar se estamos a ouvir trovas actuais ou se nos encontramos perante algum passo de um auto de Gil Vicente. As noites festivas dedicadas a Santo Antnio e a So Joo consideram-se favorveis a amores e h crenas numerosas nas suas virtudes miraculosas. Referentes s guas joaninas, s fogueiras e aos mastros engalanados existe um sem-nmero de cantigas. As virtudes maravilhosas andam sobretudo ligadas aos elementos vegetais. A gente moa queima alcachofras na noite dedicada a cada um dos santos populares de Junho para ver se mais tarde elas florescem ou no; do facto inferir-se-o augrios. Tambm, se colhidas na milagrosa noite de So Joo, certas ervas so infalveis para esconjurar poderes malficos:Quem quiser curar feitios Tome ch de erva cidreira, Colhida por uma donzela Na noite sanjoaneira 118.

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Do maravilhoso pago h traos marcantes em quadras com aluso a Cupido e sobretudo ao mito das sereias. Nas trovas com referncia a Cupido viu Leite de Vasconcelos probabilidades de terem provenincia estudantil coimbr, datando algumas talvez do sculo XVIII. Quanto ao mito da sereia, cuja origem remonta antiguidade clssica, encontra-se largamente presente nas cantigas portuguesas. Sobre o assunto h um notvel estudo de Fernando Pires de Lima, onde se notifica a origem e evoluo da lenda, com particular incidncia nas tradies sobre esse assunto existentes na Pennsula Ibrica e na Amrica latina e a sua projeco em numerosas obras literrias. 119 Mais modernamente surgiu na literatura portuguesa um belo poema dramtico em que esse tema tratado: a pea Mar, de Miguel Torga. A se apresenta um jovem pescador, firmemente convicto da existncia de uma sereia, que vrias vezes entrevira em noites de luar quando trabalhava sozinho no seu dris, pelo que alvo de mofas por parte dos companheiros. Mas, quando acaba por desaparecer misteriosamente para sempre, fica a persuaso de que fora arrebatado pelo sortilgio invencvel da bela e funesta sereia que o atraa e acabaria por conduzir perdio. A poesia do mito da sereia foi sentida pelo povo, facto confirmado em vrias trovas:A sereia quando canta Pe-se em cima duma pedra, Quantos navios se perdem Por amor do cantar dela! 120

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Esta noite, meia-noite, Ouvi um lindo cantar: Eram os anjos no Cu Ou a sereia no mar 121.

As crenas na magia a magia velha de milnios! tem largussimo acolhimento e expresso potica entre o vulgo. As feiticeiras e as bruxas so consideradas detentoras de poderes mgicos que alteram o curso natural da vida humana para bom ou mau sentido, geralmente para o mau. A sua eficcia fortssima. Da a afirmao dum enamorado no correspondido:Eu hei-de te amar, amar, Quer tu queiras, quer num queiras, Que eu ponho minha banda Duzentas mil feiticeiras! 122

Exprime-se a crena relativamente a certas ervas que so adstritas a espritos malficos, como, por exemplo, a arruda: Deste-me um ramo de arruda, / Fizeste de mim diabo! Tambm forte a convico na existncia de filtros amorosos que tm o poder de ligar num amor indissolvel aqueles que os beberem. o antigo e sempre belo mito do ciclo breto, filtro que no Roman de Tristan simboliza a fatalidade e a seduo irresistveis do amor:No sei que auga me deste Por um jarro a beber; No sei que amor te ganhei Que to no posso perder! 123

Com os esconjuros pode afastar-se a perniciosa influncia dos feitios. Eis um esconjuro recolhido pelo70

P.e Firmino A. Martins no seu precioso livro Folklore do Concelho de Vinhais:Bruxos e bruxas, Mundanos e mundanas, Mal me no possam fazer. Tista, contista, Valha-me So Joo Baptista, E So Joo Evangelista redor da minha casa assista 124.

Com o forte e saboroso sarcasmo que lhe habitual, Camilo Castelo Branco, na sua novela Brasileira de Prazins, refere-se existncia de amuletos muito acatados pelo vulgo. Fora da igreja, onde os missionrios pregavam, desenvolvera-se um comrcio rendoso. Mas o grande consumo era de contas de azeviche, refractrias aos maus olhados, de modo e maneira que, se o azeviche legtimo, senhores, logo que um inimigo nos encara a conta racha de meio a meio. 125 Entre os amuletos tradicionais e eficazes contra ms influncias sobressai a figa, de uso generalizado, que mereceu um valioso estudo de Leite de Vasconcelos. Das numerosas cantigas que o ilustre sbio compilou nessa obra citar-se- uma bem expressiva, proveniente do Alentejo:O meu amor to lindo Que de todos cobiado. H-de le dar uma figa Pra ningum le dar olhado! 126

A aparies sobrenaturais, especialmente de almas de outro mundo as almas penadas , persuaso viva71

entre o povo, h algumas referncias no cancioneiro. Mencionaremos uma quadra que, pela beleza que encerra, mereceu justo e sentido elogio de Jaime Corteso. Canta-se a atitude de um apaixonado cuja alma volta a este mundo para poder dizer o ltimo e trgico adeus sua bem-amada, sem o que no poderia repousar em paz:J morri, j me enterrei E agora j estou aqui; Nem a terra me comia Sem me despedir de ti 127.

Do maravilhoso popular o tema das lindas moiras encantadas, que na noite de So Joo aparecem junto dos seus tesouros, o de marca mais portuguesa. Como natural, viceja ele com maior pujana no Algarve, conquanto seja vulgar em todo o pas. Muito frequente em lendas de indiscutvel beleza, so escassas as cantigas sobre o assunto. Do citado Folklore do Concelho de Vinhais, onde esto compilados vrias lendas relativas a mouras encantadas, se transcreve a formosa e rtmica composio A Moura do Seixal:Oh! que bem baila la moura, E eu bem na vi bailar; Mourinha do Seixal Eu bem na vi bailar; Com seu cabelo entraado Eu bem na vi bailar; Com seu amor plo brao, Eu bem na vi bailar; Bailava em cabelo Com seu amor plo dedo; E eu bem na vi bailar 128. 72

A crena de se poder ler a sina de cada pessoa, por meio do exame das linhas da palma da mo, no prtica exclusiva dos ciganos. Aqui est como se expressa algum que, maneira de madrigal, dessa anlise pretende tirar concluses relativas a assunto amoroso:D-me da mo dreita a palma, Que te possa ler a sina; Quero ver se a minha sorte Com a tua se combina.

No destitudo de interesse observar que a superstio data de longe. No incio do sculo XVI, Gil Vicente assinalou-a vrias vezes, sobretudo na Farsa das Ciganas (1521). A, em animada cena, apresenta umas ciganas a ler a buena dicha a damas da corte. Sem dvida mais rico que o mundo fantstico manifestado nas cantigas o dos contos e lendas de Portugal, do Brasil e da frica de expresso portuguesa. Mas nem por isso deixa de ser notvel o contributo dado a esse domnio pelas trovas populares que aliciantemente nos transportam para o sempre encantador e potico reino da Quimera. A STIRA A par do lirismo inato da alma portuguesa, a stira tambm uma constante que se manifesta nas produes poticas portuguesas, quer cultas quer populares, facto observvel desde os primrdios da nossa literatura, atravs dos Cancioneiros trovadorescos. Tem sido essa caracterstica sempre acentuada por crticos estrangeiros. Miguel de Unamuno, com a sua73

aguda viso e baseado no conhecimento profundo do nosso pas, inteligentemente a apontou ao afirmar na obra Por Tierras de Portugal y Espaa: La nota zumbona y satrica va en Portugal del brazo com la nota erticaelegaca. 129 Variados so os tipos e as situaes atingidos pelo vulgo na sua stira. Nos casos mais comuns, esta perde a virulncia para se desenrolar num ambiente provocador de riso. A avidez pelo dinheiro manifestada por vrios tipos sociais tema repetidamente focado. Veja-se como, em rpido epigrama, so postas em cena certas personagens que a si prprias se apresentam e caracterizam com uma vivacidade evocativa de passos da genial obra vicentina:O advogado: Deus desavenha