um novo cancioneiro “virtual”

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renato roque FLUP- 2014 Anexo1 – Um Novo Cancioneiro “Virtual” O Cancioneiro de Matosinhos Repetir repetir — até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. Manoel de Barros, Uma didática da invenção III Cancioneiro de Matosinhos

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Quando começávamos a escrita do nosso trabalho sobre literatura medieval portuguesa, confrontados com a regularidade, com a repetição e com o paralelismo formal dos cantares d’amigo, surgiu-nos a ideia (louca?) que está na origem deste anexo; e, logo a seguir, ela nos despertou a vontade de realmente a experimentar. Neste anexo apresentamos portanto essa ideia e os resultados que ela nos permitiu obter. E no fim a questão que aqui vos iremos pôr pode ser tão louca quanto a ideia que a colocou em pé. Poderá essa ideia (louca?) e o método dela derivado servir para descobrir um novo cancioneiro medieval galaico-português “virtual”? Um cancioneiro a que chamaremos Cancioneiro de Matosinhos e que identificaremos pela letra “M”?

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  • renato roque

    FLUP- 2014

    Anexo1 Um Novo Cancioneiro Virtual

    O Cancioneiro de Matosinhos

    Repetir repetir at ficar diferente.

    Repetir um dom do estilo.

    Manoel de Barros, Uma didtica da inveno III

    Cancioneiro de Matosinhos

  • renato roque

    1

    ndice

    1. A ideia: podem os cantares damigo transformar-se em jogo? 2

    2. As Distribuio de Rimas e de Refres 3

    3. Um Novo Cancioneiro? Um Cancioneiro de Matosinhos? 8

  • renato roque

    2

    Resumo: Quando comevamos a escrita do nosso trabalho sobre literatura medieval

    portuguesa, confrontados com a regularidade, com a repetio e com o paralelismo formal dos

    cantares damigo, surgiu-nos a ideia (louca?) que est na origem deste anexo; e, logo a seguir,

    ela nos despertou a vontade de realmente a experimentar.

    Neste anexo apresentamos portanto essa ideia e os resultados que ela nos permitiu obter. E

    no fim a questo que aqui vos iremos pr pode ser to louca quanto a ideia que a colocou em

    p. Poder essa ideia (louca?) e o mtodo dela derivado servir para descobrir um novo

    cancioneiro medieval galaico-portugus virtual? Um cancioneiro a que chamaremos

    Cancioneiro de Matosinhos e que identificaremos pela letra M?

    1. A ideia: podem os cantares damigo transformar-se em jogo?

    mais fcil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

    Tudo que no invento falso

    Manoel de Barros, O livro sobre nada

    A ideia, que desde esse dia nos entusiasmou, era afinal escorreita. Se h em muitos cantares

    damigo regras to estritas de versificao e de arranjo das coblas, se se impe um paralelismo

    de versos to rgido, que permite aos investigadores at, em muitos casos, adivinhar coblas

    perdidas, como Tavani demonstra no seu livro Trovadores e Jograis, seria possvel compor

    novos poemas, misturando de uma forma controlada versos de vrios poetas?

    Introduzamos assim um novo factor ldico na nossa aproximao poesia medieval em

    galaico-portugus. Se o consegussemos, transformvamos a composio de cantares num

    jogo. O facto de sabermos que todos os cantares damigo agrupam o mesmo conjunto de

    campos smicos, como nos descreve Tavani e como reproduzimos no corpo do nosso trabalho,

    constitua um aliciante, pois parecia facilitar a realizao deste projecto, j que encontraramos

    muitos versos, de diferentes trovadores ou jograis, a expressar cenrios e sentimentos

    idnticos e que poderiam portanto, com menos dificuldade, ser ligados num objecto potico

    com sentido.

    Mas fazer uma procura totalmente sorte, verso a verso, tornava a tarefa imensa e penosa, e

    decidimos, por isso, criar uma espcie de base de dados rudimentar de rimas, para nos

    ajudar na busca de versos nesse nosso jogo. Construmos ao fim e ao cabo uma simples tabela

    com a indicao de quais as rimas presentes em cada um dos 506 cantares damigo que

    integram a antologia organizada por Rip Cohen, que foi a compilao de textos medievais que

    nos serviu de ponto de partida. O trabalho foi longo e repetitivo, mas a tabela que compilmos

    permite-nos procurar, com alguma facilidade, todos os versos de uma determinada rima, por

    exemplo rimas em en ou rimas em igo1.

    Foi fcil concluir que, tal como prevramos, no era assim to complexo escrever novos

    poemas, como se de puzzles se tratasse. Fizemos algumas pequenas experincias, ainda s

    com meia tabela de rimas construda, para testar a viabilidade da metodologia imaginada e

    assim validar a nossa inteno de prosseguir o trabalho nesse sentido. Teste positivo!

    Retommos a nossa tarefa at ter toda a tabela.

    1 O site das da fcsh da unl (http://cantigas.fcsh.unl.pt/), onde se encontram todos os cantares medievais,

    organizados por forma a facilitar a sua procura, foi tambm, nalguns casos, um auxiliar precioso.

  • renato roque

    3

    Apresentamos na seco final deste anexo alguns exemplares de poemas virtuais escritos por

    ns, que podem servir para validar o nosso mtodo.

    Poderemos reivindicar ter descoberto um estranho e novo cancioneiro virtual? Os poemas

    que compusemos utilizam trs modelos formais muito comuns nos cantares damigo: aab2,

    aabbcc e ababcc.

    Achamos desafiador termos confirmado, durante este nosso pequeno exerccio, que h

    bastantes versos que so usados por mais do que um trovador, com pequenas modificaes

    ou mesmo em muitos casos exactamente iguais, como se os trovadores e jograis do sculo XIII

    tambm pudessem encarar a composio destes poemas como um jogo do tipo puzzle, em

    que poderiam roubar versos entre si. Apenas um exemplo de cada tipo:

    De morrer eu por el e el por mi - linha 20 do cantar Foi-s'agora meu amig'e por en de Joo Servando

    De morrer eu por el e el por mi - linha 12 do cantar Pesa-mi, amiga, por vos nom mentir de Joo Baveca

    De morte, se cedo nom vem - linha 6 do cantar Amigas, sejo cuidando de Martim Padrozelos

    Mia madre, se cedo nom vem - linha 14 do cantar Madre, des que se foi daqui de Afonso Lopes de Baio

    Mas, antes de apresentarmos esses nossos novos poemas virtuais, gostaramos de observar

    que as distribuies de rimas e de refres, por si, tambm nos revelaram alguns resultados que

    nos parecem curiosos. Podero vir a ter alguma utilidade futura? No sabemos, mas pareceu-

    nos ser interessante apresentar alguns desses resultados na seco 2 deste anexo, antes de

    revelarmos os primeiros cantares damigo de M.

    2. As Distribuio de Rimas e de Refres

    A poesia est guardada nas palavras tudo que eu sei

    Manoel de Barros, Tratado geral das grandezas do nfimo

    Observa-se imediatamente, a partir da tabela de rimas que construmos, que h rimas muito

    presentes, quer nas coblas, quer nos refres, quer nas findas. Muitos desses casos, utilizados

    repetidamente por muitos trovadores e jograis, parecem ser muito naturais, por

    corresponderem a elementos lexicais muito presentes no portugus e, por isso, tambm, com

    toda a certeza, muito frequentes no galaico-portugus, de onde a nossa lngua derivou. o

    caso das rimas em er, em ar ou em ado (ver tabela de rimas mais usadas abaixo). So

    terminaes de infinitivos ou de particpios passados de muitos verbos da nossa lngua.

    Observamos ainda que outras rimas, que igualmente suportam outras formas verbais

    frequentes, tambm tm presena assinalvel. o caso das rimas em ei ou em ia. Far

    sentido estranhar a aparente baixa utilizao de algumas rimas, por exemplo em ava, em

    ido ou em ida, j que tambm correspondem a formas verbais e a adjectivos de uso

    frequente no portugus? No acontecia o mesmo em galego-portugus?

    Mas, se h rimas muito populares nos cantares damigo, verifica-se tambm que h rimas com

    muito poucas aparies e bastantes so mesmo raras, muitas vezes com uma nica instncia,

    numa nica cantiga. Como ilustrao deste facto, a tabela abaixo apresenta por ordem

    2 O modelo aab parece ser o mais fcil de construir, por impor regras mais rgidas de paralelismo e de repetio de versos, e foi por isso o primeiro a ser experimentado.

  • renato roque

    4

    alfabtica todas as rimas que aparecem na coleco de 506 cantigas d amigo num nico

    poema e apenas uma vez nesse poema. Algumas delas podero surpreender-nos, tal como

    ados ou ente.

    ados adre age ague ais alo alva ama ambos amo amos anho anta arda ata augua avo eira eiras eita eixo ela

    eles elho enda ente ento ero erta ervas esco essa etas ide igas il imos inga inha inho inta irdes irgo iro

    ito o es oje onda ondas ongo onha ora ore orre ossa osso oste ostre ouca oura ousa ua ude ugo uz

    Figura 1 Tabela de rimas com apenas uma instncia nas cantigas de amigo

    Verificmos que muitas rimas menos comuns so frequentemente usadas e repetidas noutros

    cantares por um nico trovador, poucas vezes por razes bvias - por exemplo por ter de

    assinalar o lugar de onde provm ou o lugar do encontro amoroso entre a amiga e o amigo

    quase sempre por razes misteriosas. o caso, por exemplo, de oda, que tem apenas duas

    rimas, cada uma num cantar de Johan Garcia de Guilhade. Tudo indica que um trovador,

    depois de ter recorrido a uma rima pouco habitual, teria maior probabilidade de a voltar a

    usar, o que se pode compreender.

    As duas figuras abaixo ilustram a distribuio das rimas mais utilizadas nos versos e nos refres

    dos cantares damigo em galaico-portugus. Poderemos tirar concluses interessantes da

    incidncia varivel das diferentes terminaes de rima nos poemas? Tentaremos na tabela,

    que se segue s figuras, olhar para todas as rimas mais frequentes nos cantares e tentar

    analisar a sua presena repetida, a sua presena pouco significativa, ou at a sua ausncia no

    corpus dos cantares damigo - notas que podero, ou no, ter alguma pertinncia. Algum de

    direito o h-de dizer.

  • 5

    Figura 2 Distribuio do n de rimas por cada rima nos cantares damigo

    0

    50

    100

    150

    200

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    350

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    450

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    o

    DISTRIBUIO DO N DE RIMAS POR RIMA NOS CANTARES DAMIGO

    N CASOS POR RIMA

  • 6

    Figura 3 Distribuio do n de refres por rima nos cantares damigo

    0

    10

    20

    30

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    DISTRIBUIO DO N DE REFRES POR RIMA NAS CANTIGAS D'AMIGO

    N CASOS POR REFRO

  • renato roque

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    RIMA N RIMAS3 N REFRES4 OBSERVAO

    er 422 62

    Como seria de esperar, em grande parte dos versos que usam esta rima encontramos verbos da segunda conjugao no infinitivo, terminados em er. de notar, no entanto, que os versos em er representam quase o dobro dos da segunda rima mais utilizada, em en, ou de versos que terminam com verbos da primeira conjugao, terminados em ar; tambm a rima mais frequente nos refres

    en 291 53

    Encontrarmos en como a segunda rima mais utilizada nas cantigas damigo pode surpreender. Tal corresponde aparente necessidade de as cantigas cantarem o amor, que na poesia trovadoresca se identifica com expresses como fazer ben, aver ben ou querer ben

    ar 261 33 Ver nota em er

    i 210 27

    Para alm dos tempos verbais em i aparecem tambm muitas vezes pronomes, nomeadamente tambm pronomes que no galaico-portugus no eram nasalados, por exemplo mi em vez de mim.

    igo 186 54

    A grande incidncia desta rima parece evidenciar a importncia que os trovadores tinham de marcar o gnero cantar d amigo, onde a palavra amiga e amigo so chaves. Por isso amigo aparece explcito na maioria dos poemas e aparece frequentemente no final dos versos ou no refro, assumindo ainda maior importncia. De notar que tambm a segunda rima mais frequente no refro e nas findas. Coloca-se-nos no entanto uma questo: como explicar que as rimas em iga sejam to pouco frequentes?

    on 185 12 Que esperar de cantares sobre o coraon seno que a rima seja uma das mais utilizadas?

    ei 180 33 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais, pretritos terminados em ei, ou futuros que usam o verbo auxiliar ei

    or 149 12 Muitas rimas associadas a amor ou a senhor

    ia 136 19 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais terminadas em ia

    ado 134 11 Grande parte destas rimas corresponde a particpios passado ou a adjectivos terminados em ado

    al 92 11 Os vocbulos al, mal, val, fal justificam a expresso desta rima

    ir 85 11 Grande parte destas rimas corresponde a infinitivos verbais da terceira conjugao, terminados em ir

    76 9

    Grande parte destas rimas corresponde a tempos verbais na terceira pessoa do singular, nomeadamente o presente do indicativo do verbo haver (aver) e formas da primeira e da segunda conjugao no futuro.

    55 4 O vocbulo f e o verbo ser no indicativo 3 pessoa do singular predominam

    eu 54 12 Sobretudo rimas em que terminam pronomes como eu, seu ou meu e tempos verbais terminados em eu

    edes 53 11 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais da segunda conjugao

    ou 52 7 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais do pretrito perfeito da primeira conjugao na terceira pessoa do singular

    ada 47 12 Grande parte destas rimas corresponde a particpios passados ou adjectivos terminados em ada

    ades 40 4 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais da primeira conjugao

    eus 37 3 Predomina a palavra Deus e pronomes pessoais de posse

    esse 27 3 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais da segunda conjugao

    ejo 26 1 Como seria de esperar estas rimas organizam-se quase sempre em torno da palavra desejo

    3 O n de versos pode calcular-se multiplicando o n de instncias de cada rima por dois. Assim, por

    exemplo, existem 422 rimas em er ou seja 844 versos terminados em er no conjunto dos cantares damigo. 4 462 cantares damigo usam refro, ou seja, cerca de 91% do total de cantigas compiladas nos

    cancioneiros, o que serve para demonstrar a importncia do refro. 132 cantares damigo utilizam a finda, ou seja neste caso, cerca de 26%, aproximadamente um quarto do total, o que continua a ser representativo, apesar de ter uma incidncia muito inferior do refro. Verificmos que os nossos valores so ligeiramente diferentes dos que Tavani apresenta: 468 cantares damigo com refro e 134 com finda. No sabemos a razo desta pequena incongruncia, talvez um corpus de cantigas d amigo diferente, j que h poemas de gnero discutvel.

  • renato roque

    8

    ando 23 1 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais do tipo gerndio de verbos da primeira conjugao

    ez 21 3 Os vocbulos fez e vez predominam

    iga 18 2 Ver nota relativa a igo

    an 17 3 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais da terceira pessoa do plural dos verbos da primeira conjugao

    asse 17 2 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais do conjuntivo da primeira conjugao

    ava 16 0

    Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais de verbos da primeira conjugao. uma das rimas que parece ser pouco utilizada, se compararmos com os nmeros observados para as rimas correspondentes ao infinitivo, ao presente ou ao pretrito perfeito.

    eja 16 2 Grande parte destas rimas corresponde utilizao das formas verbais deseja, veja, seja

    isse 16 2 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais do conjuntivo da terceira conjugao

    ade 16 1 Grande parte destas rimas corresponde a tempos verbais, por exemplo ficade ou a substantivos em ade

    ida 16 3 Grande parte destas rimas corresponde a particpios passado ou adjectivos terminados em ida

    ido 16 1 Grande parte destas rimas corresponde a particpios passado ou adjectivos terminados em ido

    in 16 4 Grande parte destas rimas corresponde utilizao de min e assim, ainda que coexistam com as formas mi e assi

    is 13 4 Fiz, quis, diz so a base desta rima

    iu 13 0 Algumas formas verbais em iu, como por exemplo viu ou partiu, so a base destas rimas

    eito 12 2 Dereito, despeito, treito, mas sobretudo preito e feito

    estes 12 1 Grande parte destas rimas corresponde a formas verbais da segunda conjugao

    az 10 1 Faz, praz, jaz, assaz, solaz garantem as 10 rimas

    Figura 4 Tabela de rimas com mais de dez instncias nos 506 cantares damigo

    Na tabela acima temos as rimas ordenadas por ordem decrescente de nmero de aparies

    nas coblas do conjunto de 506 poemas. Na terceira coluna da tabela apresentamos o nmero

    de casos dessa rima em refro. Vemos que a ordem nas duas listas se no afasta muito, e que

    a curva que descreve a funo do nmero de casos idntica (ver as duas figuras acima), o que

    nos parece natural, pois rimas com maior tendncia a ser utilizadas, tambm teriam maior

    frequncia no refro.

    3. Um Novo Cancioneiro? Um Cancioneiro de Matosinhos?

    O menino aprendeu a usar as palavras.

    Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

    E comeou a fazer peraltagens

    Manoel de Barros, O menino que carregava gua na peneira

    Nesta seco reunimos finalmente alguns textos que escrevemos, tal como referimos, com a

    ajuda da tabela de rimas que construramos antes, associando versos de cantares damigo,

    procurando respeitar as regras do paralelismo formal e a mtrica desses poemas. Cremos que

    estes poucos exemplos permitem provar ser possvel, com alguma pacincia e habilidade,

  • renato roque

    9

    compor desta forma inmeros cantares damigo originais. Uma regra, que nos impusemos

    a ns mesmos, na construo destes cantares, foi tentar utilizar apenas um verso de cada

    autor seleccionado, ou no caso de o repetirmos, usarmos versos de poemas distintos.

  • renato roque

    10

    A nossa primeira cantiga d amigo usa o conhecido modelo potico aab, que agrupa seis

    dsticos com um refro de um s verso, que se repete em todos os dsticos.

    Todas as tabelas abaixo identificam o autor de cada verso e a ordem do poema de onde o

    verso foi retirado na compilao de Rip Cohen, que nos serviu de repositrio dos cantares. Por

    exemplo o nosso primeiro cantar (ver tabela) rene versos de nove trovadores/jograis: um

    verso de Afonso Anes do Cotom, um de Pero Garcia Burgals, um de Rodrig' Eanes de

    Vasconcelos, um de Airas Carpancho, um de Estevan Reimondo, um de Joo Zorro, um de

    Johan Soarez Coelho, um de Pae de Cana e um de D. Dinis. A ltima coluna da tabela identifica

    o esquema do verso (a, b ou c) e o nmero de slabas desse verso. No primeiro cantar por

    exemplo os versos dos dsticos so todos heptassilbicos, excepto o verso de Airas Carpancho

    que tem oito slabas, o que no nos parece ultrapassar alguma liberdade silbica, de mais ou

    menos uma slaba, comum nos cantares. O refro decassilbico. Alguns versos repetem-se ao

    longo das coblas, seguindo exactamente as regras de repetio destes cantares, ou seja, o

    segundo verso de cada dstico repete como primeiro verso dois dsticos a seguir.

    AUTOR - CANTAR ORIGINAL VERSOS Mtrica

    Afonso Anes do Cotom - 3 Quando se foi meu amigo, a7

    Pero Garcia Burgals - 1 ai madre, eu ben vos digo: a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos - 3 Que faria, se lh'eu fezesse ben? b10

    Airas Carpancho - 6 Por mui gran coita que con sigo, a8

    Estevan Reimondo - 2 anda triste o meu amigo. a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos-3 Que faria, se lh'eu fezesse ben? b10

    Pero Garcia Burgals - 1 Ai madre, eu ben vos digo: a7

    Joo Zorro - 1 Queixumes d'amor d'amigo. a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos - 3 Que faria, se lh'eu fezesse ben?

    Estevo Reimondo Anda triste o meu amigo, a7

    Johan Soarez Coelho 13 foi s'ora o meu amigo. a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos - 3 Que faria, se lh'eu fezesse bem? b10

    Joo Zorro Queixumes d'amor d'amigo, a7

    Pae de Cana - 1 nom veo falar comigo. a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos-3 Que faria, se lh'eu fezesse ben? b10

    Johan Soarez Coelho 13 Foi s'ora o meu amigo, a7

    D. Dinis - 37 que talhou preito comigo. a7

    Rodrig' Eanes de Vasconcelos - 3 Que faria, se lh'eu fezesse ben? b10

  • renato roque

    11

    A segunda cantiga d amigo utiliza o mesmo modelo aab, mas neste caso com todos os versos

    decassilbicos.

    AUTOR - CANTAR ORIGINAL VERSOS Mtrica

    Juio Bolseiro -11 Quam leda fui hoj'eu, quando vos vi, a10

    Johan Perez d'Avoin - 6 dized',amigo, en que vos mereci; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

    Nuno Perez Sandeu - 1 Muit'and'eu leda no meu coraom; a10

    D. Dinis -34 el ps os seus olhos nos meus entom; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

    Johan Perez d'Avoin - 6 Dized', amigo, en que vos mereci, a10

    Johan Baveca -5 de morrer eu por el e el por mi; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

    D. Dinis -34 El ps os seus olhos nos meus entom; a10

    Martin Campina -1 e nom sei por qu nem por qual razom; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

    Johan Baveca -5 De morrer eu por el e el por mi, a10

    Johan Airas de Santiago - 34 mais bem vos jur'e digo-vos assi; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

    Martin Campina -1 E nom sei por qu nem por qual razom, a10

    Roi Queimado -1 porque me quer gram bem de coraom; a10

    Pero Meogo -5 leda dos amores, dos amores leda b10

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    A terceira cantiga damigo utiliza outro modelo comum, que agrupa 3 sextilhas com refro de

    dois versos, com uma estrutura abbacc e de novo com versos decassilbicos.

    AUTOR - CANTAR ORIGINAL VERSO Mtrica

    Pae Soarez de Taveirs - 2 Par Deus, donas, ben podedes jurar a10

    Gonal'Eanes do Vinhal - 5 e non mho roguedes, ca o non farei, b10

    Johan Perez d'Avoin - 11 o por que sempre mha madre roguei. b10

    Afonso Meendez de Beesteiros - 1 Mais quero vos eu desenganar a9

    Pedr'Eanes Solaz - 3 Vedes por que: ca ja s'el perjurou c10

    Pedr'Eanes Solaz - 3 per muitas vezes que m'esto jurou c10

    Galisteu Fernandis 4 Chorando, ai amigas, jurou-m'assi; a10

    Johan Garcia de Guilhade - 18 perdoei lh eu, mais non ja com sabor, b10

    Johan Soarez Coelho -9 tanto me non valha Nostro Senhor. b10

    Johan Perez d'Avoin - 3 Que verria, e jurou-as per mi. a10

    Pedr'Eanes Solaz - 3 Vedes por que: ca j s'el perjurou c10

    Pedr'Eanes Solaz - 3 per muitas vezes que m'esto jurou c10

    Gonal'Eanes do Vinhal - 2 Eu, pois fui nada, nunca ouv'amor; a10

    Estevan Coelho - 1 amor mui coitado, que tan ben dizedes. b10

    Afons'Eanes do Coton - 1 Mal estou eu, se o vs nom sabedes, b10

    Meendinho -1 nom ei i barqueiro nen remador. a10

    Pedr'Eanes Solaz - 3 Vedes por que: ca j s'el perjurou c10

    Pedr'Eanes Solaz - 3 per muitas vezes que m'esto jurou c10

  • renato roque

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    Finalmente a quarta cantiga d amigo utiliza um modelo parecido: 3 sextilhas com refro de

    dois versos, cada uma com uma estrutura ababcc e com versos decassilbicos.

    AUTOR - CANTAR ORIGINAL VERSO Mtrica

    Estevan da Guarda -1 Non'o servirei senom por ben fazer, a11

    Johan Airas de Santiago - 16 triste, ca diz que nunca lhi fiz ben. b10

    Rodrig'Eanes de Vasconcelos - 1 E, se m'el tem torto en mho dizer, a10

    Johan Garcia - 2 mais eu, sandia, que lhe fiz por en? b11

    Johan Airas de Santiago - 25 Que se parta de mi tal bem querer; c10

    Afonso Lopez de Baian - 3 des que s[e ele] foi, nunca vi prazer. c10

    Johan Lopes de Ulhoa - 7 Meu amigo, por que quero morrer, a10

    Afonso Lopez de Baian - 2 mia madre, se cedo nom vem; b9

    D. Dinis - 22 que sol non poss'en mi tomar prazer, a10

    Johan Meendiz de Briteiros - 3 e meu amig'e non veo, nen ven. b10

    Johan Airas de Santiago - 25 Que se parta de mi tal bem querer; c10

    Afonso Lopez de Baian - 3 des que s[e ele] foi, nunca vi prazer. c10

    Johan Vaasquiz de Tavaleira - 2 E quen esto non souber entender, a10

    Pero d'Armea - 3 querer a meu amigo mui gran ben , b10

    Nuno Fernandez Torneol - 4 que coita tamanha ei a sofrer, a10

    Fernan do Lago - 1 pero non irei al se ant'i non ven. b10

    Johan Airas de Santiago - 25 Que se parta de mi tal bem querer; c10

    Afonso Lopez de Baian - 3 des que s[e ele] foi, nunca vi prazer. c10

    Os trs modelos de organizao das estrofes aab, abbacc e ababcc - que imitmos nos nossos

    quatro cantares representam, segundo Tavani, mais de 600 cantigas, o que corresponde a

    cerca de um tero do total5. Outra forma muito frequente a que usa coblas de 7 versos,

    frmula que corresponde a mais de 400 cantares.

    Muitas outras cantigas d amigo, com estrutura idntica aos exemplos apresentados, ou com

    uma estrutura diferente, por exemplo com sete versos por cobla, poderiam ser desenvolvidas.

    tudo uma questo de vontade e de pacincia. A partir da escolha do modelo estrfico a usar

    - por exemplo aab ou ababcc, ou qualquer outro - e da seleco do primeiro verso, que vai

    marcar de alguma forma o tom do cantar, pois vai funcionar, tal como reala Tavani, como

    uma espcie de prembulo, o poema vai ganhando corpo, verso a verso, por tentativas,

    procurando autores e poemas que utilizam determinada rima.

    A experincia parece ter tido resultados positivos e pensamos ter demonstrado que possvel,

    dado o rigor e o paralelismo das composies e a abrangncia dos temas, brincar com os

    versos e escrever novos cantares damigo. Poderemos reivindicar a descoberta do

    Cancioneiro de Matosinhos?

    5 A percentagem nas cantigas damigo ser maior.

  • renato roque

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    Nota final: j depois de termos concludo este anexo ocorreu-nos que Raymond Queneau construra em 1961 um

    objecto potico que, de alguma forma, se identifica com o que ns nos propusemos fazer. Queneau era membro de

    uma organizao literria vanguardista chamada OULIPO (Ouvroir de Littrature Potentiel). A OULIPO foi criada em

    1960 por um grupo de escritores e de matemticos. A partir de algoritmos, de regras previamente definidas, de

    restries (contraintes6) de todo o tipo, criavam obras literrias surpreendentes e at iconoclastas. Porque, segundo

    estes autores, ter restries (contraentes) afinal o princpio da linguagem e de toda a literatura. Chamam-lhe

    Literatura Potencial porque pressupe a participao do leitor e a sua contribuio activa na realizao da obra.

    Literatura Potencial consiste em inventar novas estruturas literrias. Estruturas que consigam gerar,

    potencialmente, infinitos textos, infinitas narrativas. Trata-se de obter, a partir de um nmero reduzido de

    elementos, um conjunto muito grande, potencialmente ilimitado. Os membros mais activos da OULIPO so

    Raymond Queneau e Georges Perec7. A lista abaixo identifica os principais membros, onde reconhecemos tambm,

    entre muitos, Italo Calvino e Marcel Duchamp.

    Figura 5 - Lista de membros da OULIPO

    A OULIPO inspira-se fortemente na obra de Jorge Lus Borges, como reconhece Italo Calvino.

    O que mais me interessa anotar aqui que nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo

    tempo uma literatura como extraco da raiz quadrada de si mesma: uma literatura potencial, para usar um termo

    que ser desenvolvido mais tarde na Frana, mas cujos prenncios podem ser encontrados em Ficciones, nos

    estmulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipottico Herbert Quain.

    Italo Calvino

    H de facto no conhecido livro de Borges chamado Fices muitos problemas e labirintos lingusticos e estruturais que iriam ser ponto de partida para os escritores da OULIPO.

    6 http://oulipo.net/fr/contraintes 7 George Perec escreveu por exemplo um romance A Void, um policial onde o autor no podia usar a letra e.

  • renato roque

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    Figura 6 Cem bilies de poemas de Raymond Queneau

    E assim chegamos ao objecto de Queneau, que de repente nos caiu frente dos olhos, vindo da profundeza da

    nossa memria. Esse objecto (livro?) chama-se Cem bilies de poemas (1961). O autor idealizou um formato

    engenhoso para um livro com apenas dez pginas. Cada uma delas contm catorze versos que formam a

    estrutura de um soneto. Cada verso, est impresso sobre una tira mvel e independente que se pode separar. Esta

    disposio permite combinar os versos das diversas pginas de inmeras maneiras diferentes: para cada ensimo

    verso, temos as dez possibilidades dos ensimos versos de cada um dos dez sonetos. fcil concluir que este jogo

    (puzzle) de versos permite 10 combinaes possveis, pois escolhemos 14 vezes um de 10 versos possveis! Ou

    seja, partindo de dez sonetos podem criar-se potencialmente 100.000.000.000.000 poemas diferentes8. No so

    infinitos, mas so realmente muitos, tal como o nmero de de livros na Biblioteca de Babel de Borges, que na

    realidade muito maior.

    O que nos pode deixar a pensar que em teoria ser possvel construir com os 1680 cantares dos cancioneiros

    muitas mais cantigas.

    8 Para se avaliar a grandeza deste nmero bastar pensar que se necessitarmos de 1 minuto para ler cada um dos sonetos, teramos necessidade de mais de 100 milhes de anos para os ler todos! Basta fazer as contas: um ano corresponde a 525600 minutos. E estamos a supor que lemos continuamente 24 horas por dia, sem descanso, e que no necessitamos de tempo para virar a pgina!