vrau

14
17 O retrato perdido na origem da criação da personagem osmaniana Ermelinda Ferreira Doutora em Letras / PUC-RJ O que eu perdi não foi uma Figura (a Mãe), mas um ser; e não um ser, mas uma qualidade (uma alma): não o indispensável, mas o insubstituível. ROLAND BARTHES A relação do escritor Osman Lins com as artes visuais é um dos aspectos mais curiosos de sua obra. Pintura, escultura, tapeçaria, geometria e ornamentalismo são temas freqüentes em seus textos, que se notabilizaram por explorar exaustivamente os limites entre a palavra e a imagem. De todas as artes que concorrem para o enriquecimento de sua narrativa, há uma que volta insistentemente, sob a forma de reiteradas alusões em meio às suas histórias: a fotografia. Vejamos alguns exemplos. Sentado na relva, no romance O fiel e a pedra, um menino de olhos azuis divaga: Do pai, era certo, havia retratos no álbum: de chapéu de palhinha, paletó escuro e calças brancas, sentado e de pernas cruzadas, ou então de pé, com a mão no espaldar de uma cadeira, às vezes só, às vezes com um amigo, o rosto barbeado, fino. E restavam lembranças dele nos gavetões da avó: coletes e gravatas, cartas recebidas, chaves, livros de encadernação rajada, uma bengala, jornais. Mas a mãe... Por que as suas roupas e todos os seus pertences haviam desaparecido? Era como

Upload: vic-hugo

Post on 17-Nov-2015

4 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

ermelinda

TRANSCRIPT

  • 17

    O retrato perdido naorigem da criao da

    personagem osmaniana

    Ermelinda FerreiraDoutora em Letras / PUC-RJ

    O que eu perdi no foi uma Figura (a Me), mas um ser; e noum ser, mas uma qualidade (uma alma): no o indispensvel, mas

    o insubstituvel.ROLAND BARTHES

    A relao do escritor Osman Lins com as artes visuais um dosaspectos mais curiosos de sua obra. Pintura, escultura, tapearia, geometriae ornamentalismo so temas freqentes em seus textos, que se notabilizarampor explorar exaustivamente os limites entre a palavra e a imagem. De todasas artes que concorrem para o enriquecimento de sua narrativa, h uma quevolta insistentemente, sob a forma de reiteradas aluses em meio s suashistrias: a fotografia. Vejamos alguns exemplos.

    Sentado na relva, no romance O fiel e a pedra, um menino de olhosazuis divaga:

    Do pai, era certo, havia retratos no lbum: de chapu de palhinha, paletescuro e calas brancas, sentado e de pernas cruzadas, ou ento de p,com a mo no espaldar de uma cadeira, s vezes s, s vezes com umamigo, o rosto barbeado, fino. E restavam lembranas dele nos gavetesda av: coletes e gravatas, cartas recebidas, chaves, livros deencadernao rajada, uma bengala, jornais. Mas a me... Por que assuas roupas e todos os seus pertences haviam desaparecido? Era como

  • 18

    Estudos de Literatura Brasileira Contempornease, em vida, ela houvesse sido muito pobre, uma criatura sem bens deespcie alguma - e talvez invisvel, transparente...1

    Num outro romance, Avalovara, um jovem de olhos azuis est nacasa de sua namorada Ceclia folheando um lbum de fotografias antigas,que lhe foi entregue pelas duas velhas e excntricas tias da moa, Hermelindae Hermenilda, tocadoras de bandolim. A moldura desse captulo dadapela prpria descrio feita pelo rapaz a partir de suas impresses:

    Dois meninos de joelhos, srios, no dia da Primeira Comunho. Homensde c u e bengal lado a lado, uma pe na estendida e o o ar distante,como se a cmara os surpreendesse num escasso silncio entre dilogosprofundos; mulheres sentadas, otovel apoiado numa esa de setorcidos; fechando graciosamente um leq entre as os; moas demeias n gras e longos vesti claros, grande branco nos cabelos,sustendo um livro com uma frol entre as pginas e os o os voltadospara mim; outras em meio a pedras e almeiras reais refletidas no teloao fundo; ao lado de ces; fam s reunidas, cada qual olhando numadireo: no centro do grupo, um casal de crianas com chapus de alvestidos de mar , segurando um ar ...2

    O que chama visualmente a ateno nesse texto so as suas falhas.Observa-se que a ordem gramatical e ortogrfica foi completamente alterada:algumas letras so, inclusive, removidas das palavras, e palavras inteiras soremovidas das frases. Abel, um escritor, tenciona certamente reproduzir nodiscurso o estado danificado dos retratos, onde o amarelamento do papel eos danos das traas comprometeriam a percepo integral das imagensretratadas. O processo utilizado leva o leitor a compreender este fato noporque ele lhe foi dito, mas porque ele pode v-lo, literalmente, no texto.Atravs de Abel, Osman Lins usa a hipotipose para dar mais expresso aodiscurso3.

    Assim, ao contrrio de dizer que havia uma flor amassada entre aspginas de um livro, por exemplo, o autor literalmente amassa a palavraflor, ou seja, produz um metaplasmo: frol. Da mesma forma, em vez deexplicar que era impossvel identificar quem estava ao lado dos ces, nafotografia, o autor apenas substitui as palavras por um espao em branco,

  • 19

    e assim por diante. Como se percebe, a desorganizao textual serve, nestecaso, a um deslocamento da percepo temporal da histria para umapercepo espacial da escrita, de modo a obter-se um efeito estilstico nico.Trata-se de um dos muitos experimentalismos plsticos com a linguagempresentes nas narrativas de Osman Lins.

    interessante que um tal exerccio simultaneamente verbal e visualtenha como ponto de partida o motivo da fotografia, atravs da emblemticabusca de um retrato perdido. A fotografia no se presta como elemento deinspirao para criaes plsticas e ornamentais com a linguagem, como apintura. Ao contrrio da pintura, presente no mundo em sua qualidade deobjeto, a fotografia sempre invisvel em si mesma. Como diz RolandBarthes, seja o que for que ela d a ver e qualquer que seja a sua maneira,no ela que vemos. O referente adere fotografia, de maneira que o quevemos, comumente, o modelo, o objeto desejado, o corpo querido.

    O referente fotogrfico no , portanto, uma coisa facultativamentereal para a qual remete uma imagem ou um signo, mas uma coisanecessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual nohaveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem a ter visto; odiscurso pode combinar signos com referentes quimricos. Na fotografia,porm, no h como negar que a coisa esteve l4. Da a importncia quejulgamos encontrar no tema do desaparecimento da fotografia na origemda escritura osmaniana.

    O tema do retrato perdido quase obsessivo em seus textos. Z. I.,personagem de Perdidos e achados, cujo pai desaparecido no mar noteria chegado a ver o ltimo filho, nascido trs semanas aps a sua morte,conta como vinte anos depois seu irmo,

    compelido a fixar num rosto seu repentino amor pelo pai nunca visto,iniciaria uma procura atrs de uma fotografia que soubera existir emSerinham, Goiana e Flores do Indai, terras natais de meu pai, ondemeio sculo antes ele fizera a Primeira Comunho, ao mesmo tempoque vrios outros meninos. Desse acontecimento, havia uma pose em

  • 20

    Estudos de Literatura Brasileira Contemporneaspia, vinte e cinco rapazinhos de branco, hoje quase todosdesaparecidos5.A mesma cena de Avalovara aparece neste conto: o rapaz na sala de

    visitas, entre os velhos mveis de duas antigas beatas da cidade, Anita eAlbertina, tocadoras de rgo e rabeca, interroga-as sobre o rosto do paienquanto vasculha lbuns antigos procura do retrato perdido:

    Surgem descries que se misturam, todas imprecisas... O resto soestampas coloridas, recortes de revistas, postais de aniversrio.Congregadas marianas em torno do vigrio, avisos de falecimento, Guyde Fontgalland, vestidos brancos, negros, botas de cano alto, cachos,bancos de vime, portes de ferro, ces, cadeiras, ramalhetes. As duasvirgens de branco quase nada sabem, confundem nosso pai com outrosmeninos6.A impresso desse amontoado de imagens e mensagens na composio

    da figura invisvel reproduz-se no texto, na descrio de um objeto com oqual o namorado de Z. I. a presenteia em seu aniversrio:

    um lbum com desenhos de rosas, no centro das enormes folhas depapel, sobrepostas s denominaes latinas, fusca superba, coronarubrorum, gemma rubra, omnium calendarum, glauca, virginalis,scandens, balearica, reclinata, rubra, hispida, sulphurea,corimbosa, mutabilis. Mutabilis7.A mesma tcnica da enumerao evoluir finalmente para o que ser

    a definio da prpria personagem Z. I. a primeira de uma srie deexperimentos similares de colagens heterogneas usadas na composio dafigura feminina, semelhantes tcnica empregada pelo pintor maneiristaGiuseppe Arcimboldo, famoso pela construo das suas pinturas intituladasCabeas compostas, mais tarde fonte de inspirao para os pintoressurrealistas.

    A imagem vazia do retrato perdido preenche-se, assim, com os reaisesplios resultantes da busca: palavras atropeladas por relatos, misturadasa objetos e fragmentos dispersos, souvenirs de uma saudade nuncaexercitada no convvio artificial, portanto, porque fundada na ausncia dapessoa, no caso, de uma imagem arquetpica: a me. Sabe-se que um dos

  • 21

    episdios mais marcantes da vida do escritor Osman Lins foi a perda de suame Maria da Paz em conseqncia de complicaes aps o parto, quandoele contava apenas duas semanas de idade. Mais grave do que isto, porm,foi talvez o fato de nunca ter visto o seu rosto, j que ela no deixoufotografias. Dispondo apenas dos relatos verbais de conhecidos e familiares,e de um carto por ela enviado sogra Joana Carolina onde se v aestampa de uma outra jovem sorridente envolta por uma braada de flores possvel dizer que, desde a infncia, Osman Lins preocupou-se emcompor, no escuro, a imagem de uma figura feminina.

    O ntimo abalo do autor com este que deve ter sido o trauma, aindaque inconsciente, de sua vida, apareceria nas declaraes prestadas ementrevistas, quando era solicitado a falar da mulher que veio ao mundo,parece, com o nico encargo de ser minha me:

    Cumprida essa tarefa morreu, um ano depois de casada. Coisa estpida.Sempre achei que isso me dava uma espcie de responsabilidade. Morreuaquela garota para que eu nascesse. No podia fazer da minha vidauma trouxa, um papel servido, jog-la por a. Nunca vi um retrato seu:ela no gostava de fotografias, embora conste que fosse bem bonita.Parece que o fato me marcou. O tema aparece em O fiel e a pedra,em Nove, novena (na histria Perdidos e achados) e o heri deAvalovara anda pelo mundo feito um doido, procurando o que noperdeu8.Assim que o relato da frustrante procura de uma suposta fotografia

    que dela teria restado entre os papis da famlia acaba se tornando conto eentrando no enredo de seus romances. Ao longo do tempo, seus textosvo-se convertendo cada vez mais em histrias de busca, nas quais corpose rostos de mulheres so esboados, apagados, fragmentados, montados eremontados, em ensaios de grande plasticidade, como se o autor tentassecompor com as imagens femininas feitas pela pintura atravs dos sculos, aimagem nunca satisfatria daquele rosto perdido.

    Na sua biografia de Osman Lins, Regina Igel comenta:Seria de interesse inerente a este tipo de anlise transliterria a

  • 22

    Estudos de Literatura Brasileira Contemporneaaveriguao que teve, na vida do escritor, a conscientizao da pereneausncia de sua me natural, a jovem que falecera pouco depois de ter-lhe dado nascimento. No se poderia descartar, ento, a hiptese deque um trauma psicolgico resultante daquela perda prematuratenha infludo na formao de suas personagens femininas9.Segundo esta autora, uma breve reviso da obra de Lins suficiente

    para revelar que a personagem feminina prefigurada pela imagem arquetpicada me e transfigurada em atributos pessoais, como, por exemplo, a Celina,de O visitante, a Gorda e Ceclia, de Avalovara, e Joana Carolina, de Oretbulo de santa Joana Carolina:

    Ao se revelarem como figuras reiterativas de um arqutipo universal,as trs primeiras mulheres lhe agregam uma particular caractersticacomum, a frustrao de cada qual: Celina, como me abortiva; a Gorda,me prolfica e desiludida, e Ceclia, a quase-me na sua acepogentica. Sobressai-se, por sua afeio positiva excepcional, JoanaCarolina, que poderia ser o smbolo da me-coragem....Em qualquerhiptese, este tema poderia ser desenvolvido sob um enfoque edipianoque enfatizaria as metamorfoses da me na conjuntura da obra ficcionalde Lins10.Tal no , contudo, a proposta deste breve ensaio, que no pretende

    investigar, com base nos conflitos existenciais do autor, a composio doseventuais desdobramentos fictcios do arqutipo da me presentes em suaobra. Nosso objetivo considerar a importncia da ausncia dessa imagemfeminina original como uma possvel motivao para seus experimentosintersemiticos de criao literria, sobretudo nas suas trs ltimas obras:Nove, novena, Avalovara e A rainha dos crceres da Grcia. Pois fugindo aos modelos que o autor consegue escapar s determinaesestereotipadas da concepo da mulher e de todos os elementos narrativosa ela relacionados, como o espao e o ornamento. Obras anteriores, porm,como O visitante, Os gestos e O fiel e a pedra, ainda apresentam umanarrativa convencional e pouca inovao no nvel da personagem, concebidasegundo um padro realista.

    Sob este aspecto, a potica de Osman Lins encontra um paralelo

  • 23

    altura no quadro A tentativa do impossvel, de Ren Magritte, que seauto-retrata pintando no espao um corpo de mulher, como se procurasseinfundir-lhe vida, trazendo-a para a dimenso da realidade. Tanto quantopara o escritor, a busca da imagem feminina uma constante na obra destepintor. interessante mencionar que Magritte tambm viveu na infncia umaexperincia trgica: o suicdio de sua me Regina, que se afogou num rioquando ele tinha treze anos. Mais do que a morte, porm, o que parece terimpressionado o menino para sempre foi o fato de sua me estar com orosto coberto na ocasio, tema que se repete em muitas de suas pinturas11.

    A tentativa de resgate do real na representao um marco na obradeste artista, cuja ateno no se volta para o universo onrico ou absurdode seus contemporneos, os surrealistas, mas para o universo habitual efamiliar do cotidiano, para ele o lugar onde se esconde e de onde nos espreitaverdadeiramente o estranho, o inslito, o surpreendente. No quadro emquesto, embora o retrato seja to perfeito quanto uma fotografia, o ttulofunciona como um veredicto paradoxal, chave de sua esttica que afirma ainterdio representao mimtica na pintura.

    A personagem feminina nos romances de Osman Lins assume umpapel semelhante, tornando-se veculo de uma potica que tambm defendea impossibilidade da representao mimtica na literatura. Assim, possveldizer que seus trs ltimos livros, o primeiro um conjunto de narrativas queno se querem contos, o segundo, o romance-sntese de sua potica, e oterceiro, um verdadeiro ensaio bem-humorado sobre os percalos da teoriada literatura em tempos de globalizao, so, em linhas gerais, histrias demulheres, histrias de olhares e histrias de amor, onde os critrios de belezae de poder travam uma acirrada e interessante disputa na pgina escrita.

    Por isso, a fantstica galeria de mulheres que invade as pginas dessestextos exerce mltiplas funes alm daquelas designadas pelos seus papisno mbito da histria. Suas figuras aparecem com freqncia revestidas de

  • 24

    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    plasticidade ou associadas de alguma maneira s artes plsticas, concebidassobre o molde de formas femininas cultuadas pela pintura de diferentes pocas.O fascnio do autor, contudo, prende-se aos modelos extrados de perodosartsticos anteriores ao Renascimento, como o estilo gtico; ou imediatamenteposteriores e, portanto, questionadores da esttica renascentista, como oestilo barroco, de ampla repercusso em algumas tcnicas modernas, emparticular as empregadas pelas obras do surrealismo.

    No s as figuras grotescas que lembram quadros de um HieronymusBosch, por exemplo, parecem contribuir para a composio de elementosdo espao narrativo em vrias de suas histrias. Tambm curioso observarcomo a composio da pgina tende a elaborar-se, por vezes, como asurpreendente recriao do estilo dos manuscritos medievais, onde ocontedo sacro do texto era ornamentado de maneira exuberante pelasiluminuras, e sobretudo pelas ilustraes das margens, quase sempre profanas,cmicas e carnavalizadoras da palavra emoldurada12.

    Muitas das narrativas de Lins so construdas segundo esse princpio,em que pargrafos srios e coerentes so envolvidos por pargrafosfrancamente estilizados, de linguagem rebuscada, sintaxe distorcida, jogosde palavras, num atentado ordem da histria, quase sempre elaboradoatravs de recursos estilsticos que produzem efeitos de forte apelo visual.Embora Lins no utilize desenhos nem ilustraes, seus pargrafosornamentais atuam como as imagens s margens dos manuscritos porque,como elas, no parecem ter um propsito meramente decorativo, maspropem-se como um espao de liberdade criativa e de autoconscinciacrtica posto intencionalmente margem do discurso oficial.

    Quanto ao barroco, flagrante a influncia deste gnero derepresentao na composio da imagem das muitas mulheres que povoamas suas histrias, moldadas, como dissemos, ao estilo das Cabeascompostas de Arcimboldo. A tcnica de composio deste pintor, alis,

  • 25

    imiscui-se com grande familiaridade nos processos de criao desses objetosfragmentrios e especulares que so no apenas as personagens, mas tambmos espaos-tempo narrativos, os enredos e os prprios livros de OsmanLins, enquanto objetos.

    Todo o exotismo desta superposio de texto e tela na composioda figura da mulher nos romances osmanianos oferece uma novidade estticaimprevista e de grande riqueza composicional. Utilizando esse princpio, Linsconstruir suas personagens utilizando elementos inslitos que se agrupam,mantendo atomisticamente as suas identidades. A inteno do autor bastante clara: no se trata de estabelecer meras comparaes entre a figurahumana e outros materiais: Que h de novo em comparar uma personagema bichos repulsivos? O novo amalgamar uma poro de pequenos animaise, com eles, construir uma mulher, objeto ilusrio de uma paixo real13.

    A mesma ressalva feita por Massimo Cacciari em seu ensaioAnimarum Venator, sobre a pintura de Giuseppe Arcimboldo. Diz ele:

    Man is the creature who turns all to metaphor. This is expressed byArcimboldo with perfect clarity. It does not follow, as is repeatedly saidby those who misunderstand the tremendous seriousness of this game,that the face of a man is replaced by a composite of elements oranimals (and this critical approach is no less vulgar when it explainswhat these elements or animals represent). No, it follows that the faceof anything cannot be named except with something other thanitself; that no face has, for us, a proper name; that our discoursing isnothing but a composing by means of differences and relationships, byincreasingly artful links, by the industry of a process of binding, of whichthe fleeting and ephemeral nature and the melancholy key emerge withever greater clarity14.Para Cacciari, as cabeas compostas de Arcimboldo assinalam uma

    crise na arte de retratar, eliminando completamente qualquer sugesto derealismo histrico ou psicolgico. Diz ele que, enquanto os grandes retratosfeitos durante a Renascena e o Maneirismo eram inteiramente inspiradospela procura da subjetividade do modelo, seu carter nico e distintivo, a

  • 26

    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    monstruosa arte de Arcimboldo renuncia exatamente a esse aspecto. Nadalhe parece imediatamente expressivo; cada aparncia natural vista narealidade como um resultado, um produto. Nomear o objeto j no o atinge,pelo contrrio, estabelece um pathos de distncia. Seus retratos aventuram-se ao longo de uma construo metafrica: aquela que o maravilhoso artifciopictrico capaz de expressar, e que nunca se revela uma caracterstica emsi mesma15.

    Na opinio de Cacciari, o que a imaginao arcimboldesca conectano so realmente objetos, mas simples nomes, signos desprovidos dequalquer fora evocativa. Ao contrrio do mgico, que possui o poder denomear em funo da natureza do objeto, Arcimboldo faz surgir uma novaforma de nomear, ou melhor, torna evidente a aporia do prprio ato denomear. Pois no se pode nomear uma coisa exceto atravs de outra diferentedela mesma. No se trata de um jogo, mas de uma necessidade. O nomeguarda a desesperada tentativa de apreender a coisa por meios que j noso a coisa mesma. O estilo de Arcimboldo desenvolve uma consciente emadura metaforizao do ato de nomear, que seria mais tarde compreendidae desenvolvida pela pintura surrealista.

    Da mesma maneira, o que faz Osman Lins em seu romance no simplesmente substituir o corpo de suas personagens por compsitos deelementos com intenes comparativas ou metafricas que pressupem,sempre, um sentido bvio subjacente mas acentuar, atravs do efeito deestranhamento conseguido com o processo, a dificuldade e a arbitrariedadede todo o gesto artstico, sobretudo o mimtico, na captao de uma realidadeexterior ao meio que a veicula; no caso do romance, a arbitrariedade dosigno lingstico.

    Por isso, a questo do nome to importante em seu romance.Utilizando a seu favor essa dificuldade, Lins designa suas personagens pormeio de figuras geomtricas, criando muitas vezes, poeticamente, uma

  • 27

    associao obtusa, no obstante compreensvel, entre o nome e o texto.Assim, no a imagem da mulher, ou de uma mulher, que metaforizadaatravs das palavras ou da figura de uma personagem. Como no caso deArcimboldo, a prpria figura feminina que utilizada para metaforizar oato de nomear, falando do seu limite, da sua impossibilidade.

    Qualquer que seja o motivo, enfim, todas as personagens osmanianasparecem fugir radicalmente concepo da personagem naturalista, criada imagem e semelhana da figura humana. Inspiradas nas exuberantes figurasfemininas de Tintoretto e de Tiziano Vecellio, as mulheres nos romances deLins so criaturas excessivas, tanto na concepo de sua aparncia humana em geral marcada pela fartura de carnes e de formas, e por vesturiosaberrantes como na composio de seus corpos, modelados de maneiraextremamente irregular e interrompida. Compostas por estilhaos de materiaisdiversos besouros, cidades, pessoas, palavras - que se unem em corpossemelhantes a mosaicos, estas figuras fantsticas, algo monstruosas egrotescas, destacam-se por uma inusitada riqueza ornamental.

    Nelas, o processo de desumanizao da arte de que fala Ortega yGasset, atinge o seu grau mais depurado. Para Lins, os seres ficcionais noso fantasmas nem homens, so artefatos, personagens, criaes literrias,menos reais que as letras de seus nomes16. A preocupao em criar-lhesuma verossimilhana humana, psicolgica ou histrica apaga-se em seustextos face inteno de explorar as possibilidades estilsticas, simblicas epoticas que se podem exercitar na confeco destes corpos narrativos espaos, portanto que so as personagens.

    Julgamos encontrar nessa tcnica a razo do obsessivo retorno deOsman Lins ao tema do retrato perdido ao longo de sua obra. Longe deassinalar apenas uma angstia existencial pela perda da me, apontainsistentemente para a motivao terica primordial que preside a criaoda personagem ficcional em seus romances. O desaparecimento da fotografia,

  • 28

    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    que agrava a dor conseqente ao desaparecimento da prpria pessoa - nopor acaso suas narrativas so fbulas fiadas pela morte , a base detoda a sua potica, que se poderia considerar uma potica do simulacro,por se configurar como uma possibilidade de representao na ausncia deum modelo17.

    O que torna Osman Lins um escritor to especial que, apesar detodas as consideraes tericas e tcnicas que perpassam a sua obra eresultam na originalidade quase acadmica de sua criao, ele jamais perdea gentileza. Sobre a questo do retrato perdido, no se pode escapar dosentimento de que a sua obra, apesar de tudo, continua a expressar algosemelhante ao que diz Roland Barthes, quando afirma no acreditar na crenausual de que o luto, com o seu trabalho progressivo, apague lentamente ador: Eu no podia nem posso acreditar nisso porque, para mim, o Tempoelimina a emoo da perda, tudo. Eu podia viver sem a Me (todos nspodemos, mais cedo ou mais tarde), mas a vida que me restava seriacertamente a at ao fim inqualificvel18.

    Notas1 Osman Lins, O fiel e a pedra. 6 ed. S. Paulo: Summus, 1979, p. 64.2 Osman Lins, Avalovara. So Paulo: Melhoramentos, 1973, p. 102.3 Em Les figures du discours, P. Fontanier assinala que lhipotypose peintles choses dune manire si vive et si energique, quelles les met en quelquesorte sous les yeux, et fait dun rcit ou dune description, une image, untableau, ou mme une scne vivante (Flammarion, 1968, p. 390). O valorperformativo da figura hipotipose certamente o de mover e co-mover, o depersuadir, o de sensibilizar ou tornar sensvel. Trata-se de um modo sedutor dedescrever acontecimentos, presentificando-os conscincia. Tal figuraoprocede como se o objeto realmente estivesse l presente, ao ponto de serpossvel ver o que se escuta do relato. Ver Carlos Couto de Sequeira Costa,Imagens da hipotipose pintura e fico. Colquio Artes, n 97, junho/1993.4 Roland Barthes, A cmara clara. Lisboa: Edies 70, 1980, p. 19.5 Osman Lins, Nove, novena. So Paulo: Guanabara, 1987, p. 211.6 Id., pp. 216-217.

  • 29

    7 Id., p.226.8 Osman Lins, Evangelho na taba. S. Paulo: Summus, 1979, p. 189.9 Regina Igel, Osman Lins: uma biografia literria. S. Paulo,T.A.QueirozEditor,1988, pp. 29-31.10 Id., p. 28.11 Os estudiosos da obra de Magritte costumam mencionar o suicdio de suame como o evento mais traumtico da vida do pintor, citando as observaesde Louis Scutenaire, que teria entrevistado Magritte a respeito muitos anosaps o ocorrido, obtendo dele a seguinte descrio sobre a tragdia: Sheshared her last-borns bedroom, who, waking in the middle of the night to findhimself alone, roused the rest of the family. A thorough search of the houseproved fruitless; then, noticing footprints outside the front door and the sidewalk,they followed them to where they ended on the bridge over the Sambre, theriver that flows by the town. The mother of the painter had thrown herself intothe water and when her body was recovered, the face was hidden inside thenightgown she had been wearing. There was never any way of knowingwhether she had covered her eyes with it so as not to see the death she hadchosen, or whether the swirling water had caused her to be veiled. VerElena Calas, Magrittes inaccessible woman. Colquio Artes, n 30,dezembro/1976, pp. 24-31.12 Ver Michel Camille, Image on the edge: the margins of medieval art.London: Reaktion Books, 1992.13 Osman Lins, Evangelho na taba, op. cit., p.252.14 Massimo Cacciari. The Arcimboldo effect: transformations of the facefrom the sixteenth to the twentieth-century. Milo: Bompiani, 1987, p. 293.15 Id., pp. 294-295.16 Osman Lins, Guerra sem testemunhas. S. Paulo: tica, 1974, p. 16.17 Segundo Giles Deleuze, Plato divide em dois o domnio das imagens-dolos:de um lado, as cpias-cones, de outro, os simulacros-fantasmas. A cpia uma imagem dotada de semelhana, o simulacro uma imagem semsemelhana. Mas a semelhana da cpia no deve ser entendida como umarelao meramente exterior: ela vai menos de uma coisa a outra do que deuma coisa a uma Idia. A cpia no conforme ao objeto seno na medidaem que se modela (interior e espiritualmente) sobre a Idia. J o simulacro construdo sobre uma disparidade, uma diferena, ele interioriza umadissimilitude. Eis porque no se pode nem mesmo defini-lo com relao aomodelo do Mesmo segundo o qual as cpias fundamentam a sua semelhana.Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se do modelo do Outro de ondedecorre uma dessemelhana interiorizada. O simulacro no uma cpiadegradada, ele encerra uma potncia positiva que nega tanto o original

  • 30

    Estudos de Literatura Brasileira Contemporneacomo a cpia, tanto o modelo como a reproduo. Ver Gilles Deleuze,Lgica do sentido. S. Paulo: Perspectiva, 1974, p.262.18 Roland Barthes, A cmara clara, op. cit., p. 108.

    Ermelina Ferreira - O retrato perdido na origem da criao da personagemosmaniana. Estudos de Literatura Brasileira Contempornea, no 15.Braslia, setembro/outubro de 2001, pp. 17-30.