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Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda propaganda, ilustração e despesas foram responsabilidade do escritor. Então, muito obrigado. Saiba que está contribuindo para a realização de um sonho. Apenas peço que, se gostar da história que lerá nas próximas páginas, compartilhe essa ideia; não deixe que um grande mundo fique preso a uma pequena garrafa. Mais uma vez, obrigado e uma boa leitura. L. S. Bertolino

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Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda propaganda, ilustração e

despesas foram responsabilidade do escritor. Então, muito obrigado. Saiba que está

contribuindo para a realização de um sonho.

Apenas peço que, se gostar da história que lerá nas próximas páginas, compartilhe essa

ideia; não deixe que um grande mundo fique preso a uma pequena garrafa.

Mais uma vez, obrigado e uma boa leitura.

L. S. Bertolino

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Título

A LENDA DE ARION

O Círculo

Todos os direitos reservados; nenhuma parte desta publicação pode

ser transmitida ou reproduzida por meio eletrônico, mecânico, fotocópia,ou de

outra forma sem a prévia autorização do autor.

Publicado no Brasil em 2011

pelo Perse edt.

Copyright © 2011 Lucas Bertolino

O direito moral do autor foi assegurado.

“A LENDA DE ARION, nomes e indícios

correlatos estão protegidos pelo copyright, © 2011”

Arte da capa

L. S. BERTOLINO

Revisão

SAMUEL BERTOLINO

Diagramação e Ilustrações

L. S. BERTOLINO

Publicação

PERSE EDT.

BERTOLINO, Lucas S., 1991 –

A lenda de Arion: O Círculo / L. S. Bertolino – São Paulo:

Perse, 2011

1. Literatura infanto-juvenil

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Para Cláudia, Aline

e Edlaine: as pessoas que acompanharam

os primeiros passos de Arion.

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Agradeço a Deus e à minha família,

que sempre apoiou-me,

e aos meus amigos e mestres, que nunca

permitiram que eu

desistisse do meu sonho.

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Você já parou para pensar no quanto pequenas decisões

influenciam nossas vidas? Ou no quanto simples coincidências, como estar no local errado, aliar-se a um estranho, ou escolher um nome em um livro pode transformar sua vida irremediavelmente? Talvez você possa nunca ter sequer pensado nessas coisas, mas, após certos acontecimentos, passará a notar como os mínimos detalhes e as coisas mais insignificantes controlam o seu destino e como no meu caso decidiram o futuro de todo um povo e uma geração. Não podemos fugir do que nos espera, pois o destino é algo que corre por nossas veias... Isso é destino: um conjunto de situações que define o que vai nos acontecer, quando e onde, sem que possamos interferir, uma vez que fugir de nós mesmos é impossível.

Tolice? Talvez depois de saber o que houve comigo você possa entender o quanto os detalhes fizeram da minha vida uma aventura inesquecível e de mim o responsável pela vida de milhões de pessoas inocentes na batalha mais atormentadora dos últimos tempos.

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O INTERNATO FLERRIS

Era 1968 e o céu do Rio de Janeiro estava em trevas. Meu nome é Arion1. Minha história não é uma das mais felizes, isso eu posso

garantir, e não começou em uma bela casa na qual os familiares e amigos reúnem-se confortavelmente à mesa para saciar a fome e compartilhar as suas histórias. Minha história começou no internato das irmãs Flerris, um lugar onde qualquer sonho era dizimado sem piedade.

Era uma noite gelada, eu me lembro, e a chuva caía ruidosamente sobre o telhado do meu quarto fazendo um barulho descomunal. Foi lá pelas onze da noite que um grande estardalhaço me acordou e a porta se escancarou de uma só vez.

Uma mulher, que eu já conhecia há algum tempo, entrou em meu quarto vestindo seu típico terninho com ombreiras e uma longa saia até os joelhos magros. Seu nariz era avantajado e torto e o cabelo negro estava embolado em um coque perfeito. Seu nome era Agatha: a diretora do Internato.

Agatha entrou em meu pequeno quarto e empurrou uma figura para dentro do cubículo. Era um garoto; não tinha mais do que um metro e cinquenta e cinco de altura, usava grossos óculos, um moletom grande demais para seu corpo e uma calça jeans surrada. Seu rosto estava completamente assustado.

― Vai dormir aqui com mais um colega ― a voz estridente de Agatha ecoou, arrepiando-me sob as cobertas. ― O café é às sete e sua primeira aula, às nove. Não se atrase ou haverá punição. Boa noite.

E sem mais nenhum comentário, a diretora se afastou e fechou com força a porta.

1 A pronúncia é Árion.

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A penumbra voltou a reinar no quarto, sendo apenas quebrada pelo raio de luz do luar, que atravessava cálido a janela de madeira branca.

Ouvi o garoto soluçar baixinho. Mais um. Eu pensei. Lembrei-me de como fora minha chegada ao Internato e

meu primeiro contato com aquele quarto apertado onde havia duas camas barulhentas, dois criados repletos de traças e um guarda-roupa mofado. Parecia-me há tanto tempo! Eu já não me lembrava da minha vida fora daquelas paredes. Um ano... Um ano já havia se passado desde o abandono dos meus pais. Depois daquilo, não houve mais contato, não havia mais amigos nem novos momentos de felicidade. O internato das Irmãs Flerris roubou qualquer lembrança dos meus pais, arrancou qualquer sentimento bom e exterminou qualquer esperança que existiu algum dia. Eu não era feliz no Flerris, pois isso não era possível.

Levantei-me bem cedo no dia seguinte (como faço todas as

segundas), arrumei minha cama (por ordem do Internato), troquei minha roupa e deixei o novato seguir em seu sono pesado. Com certeza se atrasaria para o café e se encrencaria com a diretora... Mas não era problema meu. Desde que entrei naquele lugar, eu aprendera a cuidar apenas da minha vida. Eu não tinha amigos;tinha, no máximo,conhecidos para quem passava cola e alguns idiotas que me bajulavam pois me deviam favores.

Saí pela porta do quarto e tudo estava como sempre: o segundo andar, onde eu me encontrava, estava silencioso, e o sol iluminava todo o pátio arborizado no primeiro andar. Espreguicei-me e segui meu caminho pela direita, rumo ao banheiro.

Meu reflexo no espelho sempre me assustava pela manhã. Meu cabelo negro e basto se espalhava para todos os lados, inclusive sobre meus olhos inchados e esverdeados. Minha pele moreno-claro lembrava-me a da minha mãe e a minha boca pequena mostrava-me o quanto eu parecia com o meu pai. Eu não era um cara bonito, também não era um dos mais feios do Internato. Considerava-me um rapaz normal, de dezesseis anos, com espinhas brotando na bochecha a todo momento, intermi-navelmente.

Lavei o rosto, escovei meus dentes e saí caminhando lentamente pelo corredor deserto.

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Enquanto eu seguia em direção à escada, dez portas idênticas se estendiam à minha esquerda, marcadas com grandes números prateados e dando entrada para os demais quartos, onde naquele momento seus moradores continuavam a dormir. Entre todas as portas havia uma que se diferenciava do restante, que levava a um cômodo maior e mais sombrio: o quarto do Monitor.

O Monitor era responsável por nos mandar para a diretoria caso desrespeitássemos qualquer uma das inúmeras regras do Internato ou se simplesmente o deixássemos irritado. Era um homem sem nenhum escrúpulo e não media esforços para nos ameaçar. Talvez por isso eu tenha passado tão rápido pelo quarto.

Desci as escadas e fui até o refeitório. Não havia muitas coisas além do refeitório no andar de baixo, somente uma sala de aula, a sala da diretoria, a sala de segurança e o Castigo...

O Castigo. Sempre que ouvia meus pais dizendo alguma coisa sobre

castigo, nunca passara pela minha cabeça o que acontecia no Flerris. Ser mandado para o Castigo era algo que assustava até mesmo os caras mais velhos da minha turma, sem exceção. Não existia um que não temesse a sala escura e mofada do Internato e não houve qualquer aluno que não tremesse diante da enorme porta de ferro.

Um arrepio cortou minha espinha de repente. Lembrei-me das dezenas de vezes em que a diretora Agatha me trancafiou no Castigo. Isso se tornou tão comum que os alunos já não se espantam quando Agatha me arranca do meio de uma aula, arrasta-me pelo corredor aos berros e, por dois ou três dias, trancafia-me na sala claustrofóbica, dando-me,quando lhe convém, um copo de água e um pedaço de pão mofado. Ela sente repulsa de mim e eu me nego, sempre que posso, a obedecer a suas ordens. Somos grandes amigos.

Depois do café solitário segui roboticamente até o pátio, onde diversos alunos perambulavam entre os arbustos jogando conversa fora. Os pequenos grupos de estudantes se movimentavam com um semblante que exibia quão superficiais eram. Os piores alunos costumavam sentar-se bem à mostra dos demais, no centro do colégio, apontando os garotos mais baixos e as garotas mais feias e caçoando deles. Eram o que poderia se chamar de populares... Imbecis, na minha opinião.

A líder deles não ficava nem um pouco atrás no quesito idiotice. Seu nome era Ana, filha de um militar linha dura do Rio de Janeiro. Ela e seu pai costumavam se encontrar de três em três

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meses, data em que a filha colocava seu poder de atuação em ação e mostrava o quão boa garota ela era. Hunf... Com exceção dessas datas, Ana tinha como meta transformar a minha vida e a de qualquer um num inferno. Era seu hobby e eu não descobrira, nesse um ano de estada no Flerris, o porquê de tanto prazer em ver as cabeças rolarem. Era uma inútil, a Ana, e eu aprendi a ignorá-la sempre que possível; dessa forma, livrei-me de uns bons dias no Castigo. Para a minha sorte, ela se tornou a menina dos olhos da Agatha e gozava de todos os benefícios possíveis dentro do Internato. Na verdade, elas se mereciam.

A primeira aula começou como qualquer outra, a não ser

pelo bigode da professora Carmen que não havia sido depilado. Ele brilhava em minha direção com o suor, fazendo o café lutar para fugir do meu estômago.

Com um pequeno tumulto, cerca de dez minutos depois do início da aula, um garoto descabelado e miúdo entrou na sala e, imediatamente, eu reconheci seus óculos grossos e estranhos: meu companheiro de quarto.

― Des-cul-pe-me ― falou o garoto ofegando, a voz fina e infantil ecoando em toda a sala de aula. Não conseguia acreditar que aquele menino tinha dezesseis anos como eu.

― Escute aqui, garoto, ― disse o bigode da Sra. Carmem ― não tolero atrasos. O Flerris é uma instituição rígida e respeitada. Se quer moleza, ― ela consultou uma pequena ficha sobre a mesa ― Gregório, sugiro que volte para a casa de seus pais.

Tive a impressão de que o garotinho voltaria a chorar, e ele quase fez isso, mas, no último instante, engoliu as lágrimas e correu para a única cadeira vazia, no fundo da sala. Lá, ficou calado o restante da aula.

Talvez eu tenha ficado com pena dele. O sino da torre ao norte soou indicando meio-dia, hora em

que todos os alunos iriam se espancar para pegar o melhor pedaço de carne no refeitório. Eu era um desses alunos.

Já me preparava para seguir na direção da batalha quando ouvi meu nome – ou algo parecido com o meu nome – ecoar pelos corredores às minhas costas:

― Arnion! ARNION! A voz estridente da diretora Agatha sempre conseguia

arrepiar-me.

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― Não está me ouvindo dizer seu nome, moleque? ― ela havia me alcançado e me virara de uma só vez com suas garras de águia selvagem.

― Esse não é o meu nome ― respondi sem qualquer emoção.

― Não me responda, seu peste! Quer ir para o Castigo? ― Agatha rosnou para mim.

― Estou mesmo precisando de umas férias... ― Seu marginalzinho... ― por um momento achei que a

diretora ia avançar contra mim, mas ela parou, encarou-me, e sorriu, algo que me preocupou muito. ― Não ― ela disse com um sorriso enorme e apavorante. ― Acho que não vou pegar tão leve com você hoje, seu marginal. Tenho algo muito melhor para você.

Assustadoramente, Agatha girou o pescoço e gritou para alguém mais atrás dela, no corredor já deserto. Um segundo depois, a figura magricela e desajeitada de Gregório apareceu à minha frente, fungando e completamente tímido.

― Você vai apresentar o internato para ele. Quero que você o leve a todas as salas do prédio e mostre todos os professores do Flerris. Quero que o garoto se sinta em casa.

― Eu?! POR QUE EU?! ― eu gritei enfurecido. ― Você é o colega de quarto dele. Não há pessoa mais

indicada para essa função. Eu a fuzilei com um olhar. Ela sabia exatamente o que

fazer para me enfurecer. ― Boa diversão, Arnion ― e, com mais um sorriso de

vitória, a diretora saiu como uma serpente na direção da sua sala. Eu me virei para Gregório e ele me olhava acanhado. ― Vamos ― rosnei. Nós ziguezagueamos entre as grossas pilastras que

cercavam o Flerris e eu saí apontando como um guia turístico para as salas por onde passávamos:

― Aqui é o laboratório de ciências ― eu apontei quando chegamos ao fim do corredor que margeava a sala de aula. ― Lá atrás temos o armário e antes, bem, o Castigo.

― Castigo? ― Gregório me perguntou, mas eu continuei a andar a passos rápidos sem lhe dar atenção.

― Ali na frente é a Diretoria, os banheiros e o salão. Tem a sala de segurança bem aqui à esquerda e aquelas escadas, lá do outro lado, levam ao nosso dormitório e ao das garotas, que

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infelizmente é proibido para nós. É isso. Já sabe tudo o que precisa saber.

― Mas... Mas e os professores... E as regras?! ― Isso você aprende com o tempo, moleque. Boa sorte. E sem olhar para ele, eu corri pelo pátio arborizado na

direção da briga que acontecia no refeitório por um pedaço gigantesco de frango. Eu estava me lixando para o novato e para o que a Agatha poderia fazer comigo. Afinal, eu não estava sendo pago para ser babá de ninguém.

Naquele dia não houve nada além de algumas aulas longas,

piadinhas da turma de Ana e duas ou três broncas da diretora Agatha. Resumindo: um dia completamente normal.

Cheguei ao meu quarto e me assustei com o tal Gregório à minha espera com um grande artigo científico em mãos. Até então eu não havia tido qualquer companheiro de dormitório, por isso foi bem estranho ver aquele garoto na cama que por um ano esteve vazia.

― Olá. ― ele me disse. Balancei a cabeça e lancei-me sobre a cama. Não queria dar

oportunidade para que Gregório começasse uma conversa. ― Então... ― ele falou ― Arion seu nome, não é?

Diferente. Eu não respondi. Continuei olhando o teto para não

encará-lo. ― Valeu mesmo por ter me mostrado o colégio hoje. Silêncio mais uma vez. ― Então, seus pais são daqui do Rio mesmo? Eles vêm

aqui sempre? Por que trouxeram você para cá? ― Olha ― eu fitei o garoto, chateado ―, eu não estou

querendo conversar, o.k.? Vamos fazer um trato: você fica no seu canto, calado, e eu, no meu. Certo? Ótimo.

Virei para o lado e cobri minha cabeça com o travesseiro. Se Gregório pensou em algo mais para dizer eu não sei, mas o quarto ficou silencioso instantaneamente.

Não me entendam mal. Não sou um idiota. Eu apenas

queria me manter longe de problemas desnecessários. Já tinha problemas o suficiente naquele lugar e não precisava de mais um. Porém, não sei se ele conseguiu entender isso...

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―Então... Vai brigar com a diretora hoje de novo? ― Gregório me perguntou, enquanto me seguia pelo pátio a caminho das aulas no dia seguinte.

― Por que você está me seguindo? Já disse para você dar o fora!

― Mas você é a única pessoa que eu conheço aqui! Com quem mais vou conversar?

― Isso não é problema meu! ― Mas nós podemos ser amigos! Eu percebi que você

também não conversa com ninguém e que não tem muitos colegas. Poderíamos ser uma dupla, cara.

― Você está louco, é? Não estou querendo ninguém para fazer dupla! DÊ O FORA!

Entramos em sala de aula e eu me sentei bem longe do moleque.

Mas aquela não foi sua última tentativa. Quanto mais eu tentava enxotar o garoto para longe de mim, mais ele tentava se tornar meu amigo. Eu não conseguia entender por quê! Em todo canto que eu ia, Gregório me seguia, em todos os comentários que eu fazia, ele me apoiava, e qualquer pessoa com a qual não me desse bem, ele a considerava uma inimiga em comum. Aquilo estava começando a me tirar do sério...

― Escute aqui. ― eu gritei, furioso, em meio ao refeitório durante o almoço ― EU-NÃO-SOU-SEU-AMIGO! Entendeu? Larga do meu pé! Você é chato e irritante. É por isso que não tem amigos!

Levantei-me e saí às pressas do salão. Todos olhavam para Gregório, imóvel e mudo em seu assento. Ana riu em seu canto. Pelo canto do olho eu avistei o garoto iniciar um choro silencioso. Meu estômago embolou-se em um nó e eu pensei que, talvez, tivesse ido longe demais.

Naquele dia eu não me senti bem e não consegui encarar

meu companheiro de quarto uma vez sequer durante as aulas. Ele ficara mudo desde o almoço e não parava de encarar as próprias mãos. Estava diferente. Seus olhos estavam vazios e a mente parecia distante dali. Parecia oco, talvez um corpo sem vida... Gregório não estava bem e a culpa era minha. Como eu pude ser tão imbecil?

A noite chegou silenciosa, e a próxima semana também. Gregório não falava comigo desde o incidente do refeitório e mal

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nos olhávamos quando nos encontrávamos pelo internato. Cada vez era mais difícil estar no mesmo lugar com o garoto sem sentir um peso incalculável sobre o meu estômago. Eu queria socar alguma coisa com força, mas não adiantaria nada. Fiquei com vontade de gritar com Gregório para ver se ele reagia de alguma forma, mas percebi que isso só pioraria a situação. Eu não sabia o que fazer e isso só estava me irritando cada vez mais.

Outra tarde passou rapidamente e o anoitecer chegou sem

qualquer convite. Evitei o máximo que pude minha ida até o dormitório, pois não estava preparado para encarar o garoto e muito menos ficar no quarto com ele. Eu nunca me senti tão culpado quanto naquele momento... E por que, afinal, eu estava tão infeliz? Eu me livrei do garoto! Consegui finalmente afastar o problema de mim! Eu estava livre... Livre...

Mas por que eu não me sentia bem?! Por que a liberdade estava tão ruim agora? Maldito garoto! Mesmo quando não estava por perto ele conseguia infernizar minha vida! Talvez eu tivesse ido longe demais... Talvez o garoto não fosse tão ruim quanto parecia... Talvez ter um amigo no Flerris não fosse tão ruim quanto eu pensava...

Saltei do banco do pátio e mirei a escada para o segundo andar. Estava na hora de me desculpar com Gregório. Eu não podia mais deixar aquela situação como estava. Ele teria que me ouvir.

Fui a passos largos na direção do dormitório. Passei pelos quartos, ignorando as reclamações do Monitor, e cheguei até o número 8, meu quarto.

Girei a maçaneta lentamente. Gregório estava sentado na cama e tinha ao seu redor uma

dúzia de livros. Quando me viu, fechou a cara e escondeu-se atrás da capa dura de um “Noite Na Taverna”.

― Ei, Gregório, tudo bem? Eu não sabia mesmo iniciar um pedido de desculpas. ― O que você quer? ― o garoto disse por detrás do livro. Respirei profundamente. ― Vim pedir desculpas. Um momento de silêncio. ― Desculpas? Pelo quê? ― Por gritar com você naquele dia. Foi mal. Fui um

completo jumento.

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Gregório abaixou o livro lentamente e me encarou ainda desconfiado.

― Podemos ser amigos ― eu disse, tentando sorrir. O garoto tentou esconder, mas ele também sorriu. ― Está bem ― ele disse. ― Mas, por favor, me chame de

Greg, o.k.? ― Greg é legal. Nós nos encaramos e o garoto voltou a ler seu exemplar

ainda sorrindo. Dessa forma, eu e Greg ficamos amigos. Os dias começaram a passar mais rápido. Descobri que,

apesar da nossa diferença física ― eu era um dos maiores do colégio e Greg um dos menores ― eu e Greg tínhamos hobbies em comum, além de pais amorosos. Éramos viciados em livros de terror bem sangrentos e víamos, sempre que possível, as séries policias na TV. Sempre reclamávamos das aulas e nunca tirávamos notas abaixo de nove. Nós nos dávamos bem, a não ser pelo fato de que Greg falava quase o tempo todo.

― A diretora realmente odeia você. ― ele comentou em algum dia ensolarado.

― Sim. Ela quer arrancar minha cabeça de qualquer jeito. ― Por quê? Você deu um fora nela por acaso? ― Não. Na verdade, ― eu olhei para os dois lados antes de

continuar ― eu descobri um pequeno segredinho dela. Os olhos de Greg brilharam de curiosidade. ― Segredo? O quê? Eu ri. ― Numa noite, tentando me esconder do Monitor, eu a vi

na sala dos professores. ― E daí? ― Daí que ela estava com o professor de química, se

agarrando. Estavam num beijo que iria desentupir todas as pias aqui do Flerris de uma vez só.

Os olhos de Greg se arregalaram de tal forma que eu caí na gargalhada.

― Mas e depois? Ela pegou você? ― Hum-hum ― eu confirmei. ― E disse que se eu contasse

para alguém, ela arrancaria minhas tripas. ― É, você está perdido. ― Estou. Minha curiosidade é meu pior inimigo. Sorrindo nós seguimos para a aula.

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Os meses se passaram mais rápido do que eu esperava.

Houve algumas provas e alguns dias no Castigo também. Greg ficava apavorado toda vez que me via voltando dos dois dias de aprisionamento, faminto e mal-cheiroso, e iniciava seu discurso interminável de protestos contra a diretora.

― Cara, ela não pode fazer isso com você! Isso é crueldade e, com certeza, ilegal! A gente tem que fazer alguma coisa, por que senão...

― Calma, Greg, calma! São só umas pequenas férias de você ― eu dizia rindo, mas no fundo eu sabia que o Castigo estava longe de ser um descanso confortável. Para quem não se acostumava, aqueles dias poderiam parecer uma eternidade.

― Mas ela é uma vaca, isso é ― ele disse. E nós rimos um do outro. Tudo parecia normal, mas aquela paz não durou muito

tempo. Caía um grande temporal lá fora e eu lia um pequeno livro

de terror deitado sobre a minha cama, quando a porta do quarto foi esmurrada com força. Levantei-me assustado e lancei-me à maçaneta, dando passagem para um garoto alto e moreno, completamente encharcado e descabelado. Seu nome era Tiago e ele era um dos caras que me devia favores:

― Você precisa descer até o corredor do Castigo ― ele me disse apressado. Estava ofegante e assustado.

― O que foi? O que está acontecendo? ― Aquele garoto que anda com você... ― Greg. O que tem ele? ― É a Ana. Ela o pegou. Parece que ele a derrubou sem

querer, eu não sei, só sei que ela está com o grupo dela lá embaixo... Eu não esperei que ele terminasse. Atravessei a porta do

quarto acelerado e corri pelas portas. Sentia que não iria acontecer nada de bom. Ana não era uma pessoa que costumava perdoar. Se Greg tivesse feito alguma coisa a ela, mesmo sem querer, ela não pegaria leve com ele, não mesmo. Desci as escadas saltando vários degraus. Um relâmpago explodiu no céu. Atravessei o pátio em meio aos dolorosos pingos d’água e alcancei o corredor do Castigo, vendo-os assim que dobrei a esquina.

Ana estava parada de costas para mim. Seu cabelo loiro estava ensopado e sua blusa completamente suja de barro. Sua mão

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tremia furiosamente. Ouvi gritos e gargalhadas. Aproximei-me alguns passos e, aos poucos, o grupo de Ana foi entrando em meu campo de visão, eram cinco, talvez mais, e chutavam algo caído no chão com vontade. Algo que eu reconheci ser Greg.

O garoto miúdo tentava se proteger dos chutes com os braços, mas era espancado sem piedade. Ana olhava para a cena, com seus grandes olhos azuis e sorria, mas era possível notar que também estava achando que a situação fugira do seu controle.

De repente, um grande estalo ecoou pelo corredor e o rosto do garoto foi acertado com força por um chute impiedoso. Seus olhos giraram pela órbita e em seguida se fecharam de uma só vez:

― Greg! ― gritei. Por um instante, silêncio. Todos me encararam e o

espancamento cessou. Meu peito estava acelerado. Minhas mãos estavam trêmulas. A imagem do rosto de meu amigo ensanguentado mexera com alguma coisa dentro de mim. Ele não se mexia, parecia desmaiado. Não vi como, mas eu parti para cima dos amigos de Ana com toda a minha fúria. Acertei com um soco o rosto de um grandalhão loiro, depois um chute num mais magro e outro em um mais à direita. Senti minhas costelas estalarem. Alguém me acertara por trás. Ouvi Ana gritar para que parassem, mas outro golpe me acertou no nariz e um líquido quente começou a escorrer pelo meu rosto: sangue.

― O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? A voz de Agatha ecoou pelos corredores. Meus adversários

me soltaram e meu corpo bateu com força contra o chão. ― Foi ele, o Arion ― a voz de Ana saiu estridente ― Ele

tentou me agarrar e os garotos só estavam me protegendo. Senti o ódio borbulhar dentro de mim. Vaca! Aquela

menina não valia nada. ― Muito bem. Então já sabem o que tem de ser feito, não

é? ― Agatha não conseguia esconder o prazer em sua voz de quadro-negro-arranhado.

― Levantem-nos. Vamos dar alguns dias para eles no Castigo, para que aprendam, de uma vez por todas, o que é respeito.

Meu corpo foi erguido mais uma vez e vi, de relance, o corpo inerte de Greg ser levantado ao meu lado. Fomos arrastados por alguns metros, ouvi um pequeno barulho metálico de chaves e,

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no instante seguinte, fomos atirados no chão frio de uma sala escura.

― Cinco dias aí e vocês nunca mais vão se esquecer do que aconteceu. ― Agatha disse sorrindo e, em seguida, bateu a porta de ferro com força, mergulhando a sala em trevas.

Tateei ao meu redor em busca de Greg e, com um grande susto, toquei em seu rosto molhado de sangue. Ele respirava fracamente:

― Greg, fala comigo. Fala comigo, cara. GREG! Mas não houve resposta. Prendi a respiração. Por um bom

tempo, eu fiquei parado ali, ao lado do garoto, que estava entre a vida e a morte...

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ALGO NÃO SAI COMO NO PLANEJADO

A respiração de Greg era lenta e cortante. Poucas horas depois do nosso aprisionamento, uma

enfermeira chegou para cuidar dos ferimentos de Greg e, quinze minutos depois, nos abandonou na escuridão mais uma vez, sem dizer qualquer palavra.

Pelo menos o garoto estava bem. Eu me sentei e encostei-me na parede áspera e úmida. O

pior havia passado, mas meu ódio por Ana e aquele internato crescia a cada respiração pesada de Greg. Eu não podia acreditar no que acontecera. Não podia acreditar no quão injusta era aquela situação.

Greg ficou calado em seu canto. Ele apenas respirava e soluçava algumas vezes. Tentei conversar, mas ele permanecia mudo e era possível ouvir os ratos e as baratas caminhando ao nosso redor.

Cinco dias depois, o que me pareceu uma eternidade, a

porta do Castigo foi aberta. Era manhã, bem cedo, e quase não havia ruídos no colégio. Saímos lentamente pela porta, vigiados pelo olhar feliz da diretora Agatha. Olhei para Greg e me assustei. Ele tinha grandes olheiras e a pele estava muito pálida e arroxeada. Vários ferimentos pretos espalhavam-se pelo seu corpo, seus óculos haviam se quebrado e a roupa estava suja de sangue seco. Seus olhos estavam perdidos no vazio e ele nem parecia notar pessoas ao seu redor.

― Espero que tenham aprendido a lição ― Agatha disse, debochando de nossa fraqueza.

Eu a encarei com os olhos em chamas. Ela pareceu se incomodar e se ajeitou melhor dentro do terninho preto.

― Vão para o quarto. Agora! Ela não precisava dizer mais nada. Eu guiei Greg e nós

seguimos rumo ao quarto “8”.

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Assim que batemos a porta às nossas costas, Greg deitou-se na pequena cama e ficou em posição fetal, seus olhos sem foco. Eu o olhei assustado. Eu nunca havia visto alguém ficar daquele jeito depois do Castigo. Muitas pessoas saíam mal da sala, mas não daquela maneira.

Eu me joguei em minha cama. ― Greg? Está bem? Pode me ouvir? Ele continuou imóvel. ― Vamos, cara, reaja. O que há com você? VAMOS

GREG! Eu não percebi, mas meus olhos encheram-se de lágrimas. Não era justo o que haviam feito com aquele garoto. Ele

sempre tivera o amor dos pais médicos e nunca fora tratado daquele jeito. Pelo que Greg me dissera, ele estaria fora dali em alguns meses, um pouco depois que os pais voltassem da Europa. O que aconteceria agora? Ele não parecia bem, ele não merecia aquilo! Ninguém merecia. Aquilo não poderia continuar e eu não conseguia suportar isso por mais tempo...

― Eu vou embora ― eu disse com meu tom normal, abaixando a cabeça.

Greg moveu seus olhos e me fitou. Uma lágrima escorreu por entre as feridas.

― Vou levar você comigo, Greg. Não vamos mais suportar esse maldito internato!

O garoto voltou a encarar o vazio, completamente sem reação, e em seguida adormeceu. Eu fiquei sentado na cama, alimentando o ódio que Agatha despertara em mim.

No final do dia Greg voltou parcialmente, ao normal,

apesar de ainda se assustar com qualquer barulho à nossa porta. Seu rosto ainda estava inchado e grandes hematomas marcavam sua pele. Ele me olhava estarrecido e parecia entender finalmente o que eu estava prestes a fazer:

― Você já está decidido, não é? Não vai mudar de ideia. ― Não temos saída, Greg. Se não formos agora, não sei o

que vai acontecer com a gente nesse internato. ― Mas meus pais vêm me buscar. Quem sabe os seus

pais... Ele parou de falar. Greg sabia que meus pais nunca haviam

respondido a qualquer carta que mandei a eles. Eu os odiava.

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― Se não quer ir Greg, eu vou sozinho. Não vou continuar me rebaixando àquela mulherzinha e aturando a vaca da Ana. Vou embora. Tem alguma coisa acontecendo fora dessas paredes e eu preciso saber o que é! Nossos pais nos trancaram aqui por algum motivo e eu não vou continuar às cegas.

― Mas, Arion... ― Está decidido. Greg escondeu o rosto atrás de um artigo científico e não

disse mais nenhuma palavra e eu segui para o meu banho. Foi neste dia que decidi fugir do internato. Eu havia pensado muito durante minha permanência no

Castigo. Decidi não esperar mais um resgate milagroso dos meus pais ou uma melhoria na vida enclausurada do internato. Tudo se tornou insignificante depois do meu tempo de abandono. Dentro do Castigo, eu tomei minha decisão e não voltaria atrás por nada. Estava decidido e eu só precisava planejar minha fuga.

Alguns dias após a minha decisão comecei a elaborar o

meu plano, com a ajuda de Greg, que auxiliava com certo receio. ― Vai mesmo embora? ― ele sempre dizia quando

tocávamos no assunto. ― Vou ― eu respondia irredutível. Nós começamos por anotar os horários em que o corredor

permanecia desprotegido pelo Monitor e nos revezávamos para descobrir os horários de troca dos vigias da entrada. Estocamos também alguns alimentos no fundo do guarda-roupa e começamos a ajudar alguns alunos nas provas em troca de um pouco de dinheiro. Estávamos bem organizados e tudo já estava quase pronto, exceto pela data da fuga. Mas isso não foi um empecilho por muito tempo... Era uma semana normal no Flerris e havia um grande tumulto na sala de aula. Um pouco depois do intervalo as pessoas caminhavam pela sala e falavam aos berros. Eu, Greg e dois “colegas de cola”, Tiago e Hugo, jogávamos uma partida de Poker com um baralho clandestino e gritávamos uns com os outros como se estivéssemos num grande cassino: ― Seu ladrão miserável! ― eu gritava, ao mesmo tempo em que sorria. ― Você está blefando! Quero ver se você encara o que eu tenho aqui!

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― Você fala demais, Arnitron! ― Tiago errava meu nome de propósito para me irritar ― Quero ver se você tem mesmo tudo o que está dizendo!

― Eu estou fora ― Greg falou. Ele sempre abandonava o jogo com facilidade.

― Eu também não encaro ― Hugo não era lá muito bom no jogo.

― Só sobramos nós dois Arnion ― Thiago me intimou. ― O que vai ser?

― Vaca! ― Greg gritou ao meu lado. Acostumados com o sinal já tantas vezes usado, ao ouvir o

berro de Greg eu e Thiago puxamos com os braços as cartas do baralho e as jogamos na mochila, sem pensar duas vezes. Hugo pulou para sua carteira e Greg se ajeitou no assento. Um milésimo de segundo depois a diretora Agatha entrou na sala com seu nariz grande e torto, mostrando o quanto os seres humanos podiam se parecer com aves quando queriam.

― Turma, tenho uma notícia para vocês ― ela anunciou dez minutos mais tarde. Ana sentava-se duas carteiras à minha frente e ria de maneira asquerosa. ― Ela vai se demitir! ― sussurrou Greg para mim.

Nós rimos. ― O baile em comemoração ao aniversário do colégio vai

acontecer na próxima semana, aqui no salão, para que possa haver um momento de interação ― ela disse essa palavra completamente enojada ― entre alunos e professores. Todos são obrigados a participar.

Um murmúrio começou entre os alunos da sala, alguns empolgados, outros nem tanto. Eu estava com meu interior explodindo de felicidade:

― Você ouviu Greg? Vamos ter um baile! ― Grande coisa! Por que você está tão empolgado? Por

acaso vai tirar a queridinha da Agatha para dançar? ― Não é nada disso! Eu não vou para o baile! ― Então? ― Eu vou fugir no dia do baile. Greg ficou pasmo; eu, no entanto, fiquei eufórico. Minha

fuga estava a uma semana de acontecer. Uma semana passou vagarosamente. Eu arrecadei uma boa

quantia de dinheiro e tudo estava pronto na manhã de quinta-feira.

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Todo o pequeno estoque de comida e as peças de roupa que couberam estavam na minha mochila de lona – uma daquelas grandes para vários dias de acampamento. Os livros foram retirados de lá e não restara nenhum material escolar em seu interior. Estava tudo preparado para a fuga à noite.

Naquele dia não houve aula, devido à arrumação do salão feita pelos professores e à grande movimentação de mesas e cadeiras sendo transportadas do refeitório para o local onde aconteceria o baile.

Os alunos estavam se divertindo pelos corredores e invadindo os dormitórios alheios para se distraírem. Era uma tarde ensolarada, acompanhada do vento frio da primavera. Fazia realmente um dia glorioso e, talvez por isso, eu e Greg resolvemos nos abandonar sobre a grama, demasiado verde, do jardim do internato e ficamos observando as nuvens em suas mais diversas formas:

― Está um belo dia, não é? ― perguntou Greg, sem desviar o olhar do céu azul-anil.

― Está ― respondi. ― Tudo já está pronto? ― Hum-hum ― confirmei com a cabeça. ― Então você vai mesmo? Não está com medo? ― Não. Eu preciso ir e você sabe disso ― eu não queria

fraquejar diante de Greg. ― Mas, cara, talvez as coisas melhorem. Imagine se alguma

coisa acontece com você? Imagine você sozinho por aí? Imagine eu sozinho aqui. ― ele se reergueu e ficou sentado, encarando-me. Seus óculos colados estavam caídos na ponta do nariz.

― Vamos fugir comigo então, cara! Você também não precisa ficar aqui!

Greg parou por um instante e fitou-me, como se considerasse a proposta; depois abaixou a cabeça descontente e ajeitou seus óculos novamente:

― Eu não sou tão corajoso quanto você, Arion. Eu não conseguiria cair nesse mundo só com uma mochila nas costas e um pouco de sorte... Não, não tenho um terço da coragem que você tem.

O sol começou a baixar lentamente atrás dos muros do colégio, transformando o céu num infinito manto alaranjado.

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― Eu não sou tão corajoso quanto você pensa. Eu só estou fazendo isso por que não tenho mais nenhuma opção. Eu preciso ir embora.

― Eu sei ― ele abriu um sorriso vacilante. ― Vamos, então? Está na hora de você se preparar para o baile.

O relógio no alto da torre do colégio soou indicando dez

horas. Um murmúrio, quase inaudível, penetrava a porta do dormitório apagado. De algum jeito, eu enxergava os olhos de Greg bem abertos fixados em mim. Nós tínhamos a respiração presa e nem ousávamos nos mexer. Aquelas dez batidas no grande sino de bronze era o sinal para que eu começasse a agir.

Levantei bem lentamente da cama e apanhei minha mochila abastecida, enquanto Greg acompanhava com o olhar todos os meus passos. Sem demora e tentando não fazer ruídos com a maçaneta, eu abri a porta e a luz do luar iluminou o quarto, revelando um Greg pálido e muito assustado:

― Até mais, amigo. A gente se vê em breve ― sussurrei. Ele tentou sorrir, mas seus músculos estavam congelados

de pavor; então apenas acenou com a cabeça. Eu saí e fechei a porta, sem qualquer ruído.

Comecei a me esgueirar pelo corredor, escondendo-me por detrás do pequeno muro que ladeava o caminho. Parei próximo à porta do quarto do Monitor e estiquei o pescoço, tentando captar qualquer ruído. Nada. Nenhum som vinha do quarto escuro. Levantei a cabeça e tentei procurar por ele. Avistei-o do outro lado do colégio, na ala Leste, brincando com sua lanterna.

Como previsto, o Monitor estaria, esta noite, trabalhando sozinho na vigia das duas alas do prédio, devido à ordem de Agatha. A diretora ordenara que a Monitora valentona da ala feminina vigiasse os alunos durante o baile, para que não houvesse nenhum problema com “beijos e agarramentos”, como ela mesma dissera.

Até agora, tudo estava correndo de acordo com o que planejei.

Aproveitei a falha na vigia e segui silenciosamente até a escadaria, desci pelos degraus nas pontas dos pés e escondi-me atrás de uma pilastra. O ruído que eu conseguia ouvir desde o meu quarto aumentou e eu pude distinguir agora como a música do baile. Havia cerca de três horas que a festa começara. Eu e Greg, com a desculpa de uma forte dor de estômago, tínhamos retornado

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ao dormitório (depois de duas horas aturando a diretora e os alunos do Flerris dançando músicas chatas e deprimentes) e lá havíamos permanecido silenciosos até então.

Meu coração batia descompassado. Olhei na direção da entrada do colégio em busca do homem que vigiava a saída. Demorei alguns segundos até encontrá-lo sentado num pequeno banco de madeira, segurando uma garrafa de café. Ele consultou seu relógio de pulso e em seguida levantou-se, apanhou seu cap e caminhou na direção de uma salinha bem ao lado da portaria, provavelmente a Sala da Segurança. Era o momento que eu estava esperando. Eu só precisaria dar a volta pelos cantos do pátio e alcançar as portas de ferro do colégio, sem que o Monitor no alto do prédio me visse ou o guarda do novo turno chegasse. Era tudo ou nada.

Comecei a correr o mais silenciosamente possível pelo corredor da esquerda, onde havia a Sala do Castigo e a Sala de Aula; eu precisava me afastar do salão onde acontecia o baile de qualquer jeito. Avistei a saída. Já me aproximava da Sala do Castigo quando a porta escancarou-se:

― Aonde você pensa que vai? Meu coração acelerou e um nó forte prendeu minha

garganta. Ana saiu da claustrofóbica Sala do Castigo e encarou-me com um malévolo sorriso:

― Finalmente resolveu sair da toca, Arion ― ela debochou. ― Há mais de três horas que espero você aqui embaixo.

Ana usava um vestido de seda vermelho-sangue, curto e desprovido de mangas, que deixava seus braços e a parte inferior das pernas nus. Os cabelos loiros estavam presos num penteado bonito e os olhos muito azuis estavam marcados por um lápis-de-olho negro. Ela carregava uma pequena bolsa de festas preta.

― Como assim? Do que você está falando? ― tentei mentir. Tenho que admitir que não sou bom nisso.

― Pode parar o teatrinho. Eu escutei, no dia em que a professora Agatha anunciou o baile, que você iria fugir hoje. Devia ter mais cuidado quando fala coisas na sala de aula com o seu amiguinho esquisito.

― Ana, é melhor sair da minha frente ― eu me irritei, largando mão da precaução. ― Não tenho tempo para você hoje ― E realmente não tinha. O guarda voltaria a qualquer momento.

― Eu não vou deixar você fugir. Vai acabar com a fama do internato. Imagine só, amanhã, nas capas dos principais jornais do

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país, a notícia do seu desaparecimento do colégio, culpando a diretora Agatha por isso. Não seria nada bom para mim nem para ninguém.

― Não me importa o que vai acontecer com essa droga de lugar! ― enfureci-me ― Eu não vou ser impedido por você Ana. Saia da frente! Eu não quero machucar você. Saia já do meu caminho!

― Não! Se você tentar alguma coisa contra mim eu... Mas eu não pude esperar que Ana terminasse sua frase.

Nesse instante, ouvi passos próximos a nós e então me joguei, arrastando Ana comigo, para dentro da Sala de Castigos e bati a porta com força.

Escuridão. Tapei a boca de Ana e ela começou a tentar se desvencilhar

da minha mão. ― Quieta! ― eu sussurrava, tentando fazer com que ela

parasse de se debater, mas ela sacudia seu corpo cada vez mais forte.

Começamos uma briga silenciosa e dolorida. Ela deu impulso e me jogou para trás, fazendo com que eu batesse minhas costas na parede. Senti uma dor lancinante, meus ossos estalaram, mas eu ainda tinha domínio na briga. Ela chutava o ar e arrancava a carne da minha mão com as unhas. Mordia-me com força, empurrava-me contras as paredes, chutava, arranhava e nós cambaleávamos pelo minúsculo quarto. Ela era forte e não se rendia de forma alguma! Nossos pés se arrastavam fazendo eco no cômodo.

De repente, um tremor. Não sei como ou quando começou, mas de uma hora para outra eu me vi sendo atirado no chão com um grande solavanco. Tudo tremia furiosamente. Percebi Ana cair a meu lado e soltar um grito abafado. As paredes sacudiram. Meu coração balançava dentro do peito dolorosamente. Com um grande estrondo, a porta foi atirada contra nós com uma grande explosão. Entrei em desespero. Do outro lado não havia colégio, luz ou música, apenas uma escuridão interminável. Ana gritou desesperada. Uma força invisível agarrou-nos e começou a nos puxar na direção da gigantesca sombra. Tentei segurar-me à sala, mas não havia a que me apegar. Prendi a respiração. No instante seguinte, eu e Ana mergulhávamos num negrume frio e sufocante, enquanto o grito da garota perdia-se no vazio.

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O CHAFARIZ

CONGELADO Caímos em algo macio. Por um instante, eu não consegui levantar o rosto e fiquei

apenas sentindo minha cabeça pulsar violentamente. Só voltei a mim quando ouvi a voz de Ana gritar aterrorizada:

― O que você fez, seu idiota?! Pisquei tentando fazer com que as coisas voltassem ao

normal e minha visão parasse de iludir-me, mas isso não aconteceu. Pensei que talvez fosse consequência da forte pancada na cabeça e que tudo aquilo não passava de uma grande ilusão. Ana olhava para mim furiosa, como se eu fosse o responsável pelo acontecimento estranho. ― O que você fez? ― ela repetiu boquiaberta.

Estávamos numa colina coberta de neve, cercados por um lado por uma densa floresta de pinheiros e pelo outro por uma escuridão que se estendia por quilômetros e quilômetros. Entre os dois estava uma gigantesca construção, uma espécie de portal, erguendo-se dez metros acima da neve, imponente; era feito de grandes blocos de pedra gasta e no seu corpo estavam entalhadas palavras que não faziam sentido algum, talvez estivessem em uma outra língua.

― O QUE VOCÊ FEZ, ARION? ― repetiu Ana, agora aos berros.

― Eu não fiz nada! ― Então como viemos parar aqui, hein? Leve-me de volta

para o internato. A-GO-RA! ― Você está surda? Não fui eu quem trouxe a gente para

cá! Não tenho a mínima ideia de onde a gente está! Eu avistei minha mochila de lona sob o portal de pedra.

Caminhei até ela e observei a neve próxima ao arco. Analisei a cena pouco a pouco:

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― Acho que viemos para cá por esse portal ― eu disse. ― Ah, claro. Viemos pelo vento, não? Se você não reparou,

não tem nada do outro lado dessa droga, Arion. ― Venha aqui e cale a boca. Ana se aproximou de mim e eu mostrei as marcas na neve. ― Está vendo essas marcas? ― O que tem? ― Se você notar bem, vai perceber que só tem marca de

um lado do portal, enquanto o outro está intocado por nós. ― E o que isso tem a ver? ― Parece que nós caímos de um lado do portal para o

outro. É como se tivéssemos atravessado a porta da Sala do Castigo e caído aqui... ― eu falava, mas nem eu estava entendendo minha própria linha de raciocínio, ou, pelo menos, não queria entender. Não seria lógico...

― Você está dizendo que passamos de um lugar para o outro só atravessando esse portal?

― Bem, é o que parece ― vindo de Ana parecia ainda mais ridículo e improvável.

― Você é LOUCO! ― O quê? Mas... ― VOCÊ É LOUCO! ― Ana estava histérica. Ela me

encarava com os olhos esbugalhados e o rosto em chamas ― Não tem como a gente atravessar de um lugar para outro só através de uma porta mágica, seu maluco. Isso não existe! É impossível.

― Eu também não acho possível, droga, mas não tem outra explicação! Se não for isso, o que é, hein? Vai, me diga o que está acontecendo, já que você é tão esperta!

― Eu direi. Eu―estou―sonhando ― ela pontuou cada palavra com um tapa louco contra o ar. ― É isso que está acontecendo. Vou acordar a qualquer momento.

― Sonhando? ― eu gargalhei, um tom insano saindo de minha garganta. Eu também não estava nada bem. ― Não tem nada de sonho nisso, Ana. Como você pode ser tão idiota?

― Não me chame de idiota! Quando tudo isso acabar, quando eu acordar, eu vou fazer com que expulsem você do internato PARA SEMPRE!

― Ótimo. Enquanto isso você pretende fazer o que? ― Vou esperar bem aqui ― Ana deu uma rápida olhada ao

seu redor, localizou uma pequena rocha e sentou-se sobre ela. ― A qualquer minuto eu vou acordar desse pesadelo.

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― Está bem. Pode ficar aí ― olhei ao meu redor. Eu precisava agir ou ficaria louco. A voz de Ana não me deixava pensar com clareza e o frio estava cortando-me como navalha.

― Eu vou procurar alguém que possa me dizer pelo menos onde estamos.

― Você vai me deixar aqui sozinha? ― Ana levantou- se com um salto da pedra e, por um instante, pareceu aterrorizada.

― Foi você quem disse que ia ficar aí. Eu é que não vou ficar aqui para ser comido por lobos ou sei lá mais o que. ― na verdade eu só queria andar e tentar colocar as ideias em ordem.

― E aonde você vai? Não tem nada aqui! ― Você disse lobos?

― Veja ― eu apontei para a grande imensidão negra que se estendia à minha frente. ― Há alguns quilômetros parece ter uma pequena cidade. Vê as luzes?

Ana forçou os olhos e pareceu enxergar o pequeno conjunto de luzes que brilhava bem distante da posição atual em que nós nos encontrávamos.

― Mas está muito longe. Vai demorar horas para você chegar lá.

― Por isso quanto mais cedo eu sair daqui, mais cedo eu chegarei lá.

Coloquei minha mochila nos ombros, dei as costas para Ana e comecei a caminhar.

― Boa sorte com os lobos! ― eu gritei, já descendo a colina.

Nesse instante um grande uivo ecoou pela floresta atrás de Ana. Ela instantaneamente apanhou sua bolsinha e correu ao meu encontro, aos tropeços.

Eu consultava meu relógio de pulso a cada passo. O luar

estava embaçado por nuvens espessas de tempestade. Eu não parava de pensar na situação em que me encontrava: perdido não-sei-onde, sabe-se lá como, com Ana como minha única companhia. Eu não poderia estar em situação pior. E tenho que admitir que também achava tudo aquilo loucura demais. Eu estaria sonhando? Talvez ainda fosse dia vinte nove e eu poderia ainda estar dormindo no quarto “8”... Eu me belisquei só por precaução e o resultado foi um doloroso roxo no braço esquerdo. Infelizmente, não era um sonho.

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Já se passara quatro horas desde que havíamos chegado naquele lugar e começáramos a caminhar pela neve. Meus pés estavam gelados e os dedos de minhas mãos, dormentes. Eu emprestei uma das minhas blusas para Ana, que estava azul de frio, e meu segundo par de sapatos. Ela não agradeceu, mas apanhou com rapidez minha jaqueta forrada de algodão – que a cobriu até os joelhos.

Finalmente nós avistamos a entrada da cidade. Um grande portão de madeira e ferro guardava a passagem para o interior calmo e acolhedor da cidadela, cercada por um grande muro de pedra. Uma floresta densa rodeava grande parte da cidade:

― Vamos lá ― eu disse a Ana. Nós seguimos para a entrada um pouco mais animados,

esperando, mais do que desesperados, encontrar qualquer lugar quente onde pudéssemos nos abrigar. Arrastávamos a neve com nossos pés e fazíamos um barulho ecoante no silêncio mórbido do lugar. Antes que pudéssemos entrar eu percebi ao longe, erguendo-se sobre uma grande montanha, um gigantesco castelo com janelas iluminadas, cercado por um muro de pedras brancas, altíssimo. Foi só o que consegui distinguir daquela distância e diante daquela escuridão.

― Um castelo? ― eu pensei curioso. ― Ei, o que está esperando?― Ana chamou-me. Ela se adiantara e já atravessava a entrada. Tudo parecia morto dentro da cidade. Nós passamos pelos

grandes portões que selavam a muralha com uma estranha facilidade. Não havia ninguém nos postos de vigia, nem sinal de guardas do outro lado do muro. A cidade parecia deserta. Não era possível ouvir som algum vindo das casas feitas de pedra e madeira. Era um lugar rústico e medieval. Eu havia visto aquilo apenas em livros sobre a Távola Redonda.

Nós seguimos por uma rua de pedra que se estendia infinitamente até uma pequena praça longínqua. A rua era ladeada por casas com os telhados cobertos de neve e ruas paralelas que levavam ao restante da cidade. O som dos nossos passos batia contra as paredes de pedras e voltava três vezes maior e mais assustador.

Caminhamos sem ousar bater em nenhuma daquelas portas, com medo de perturbar qualquer um que vivesse naquele silêncio desesperador. Era uma noite fria como nenhuma outra. O

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vento gelado cortava minhas orelhas desprotegidas e bagunçava meu cabelo constantemente. Resolvemos atravessar a cidade até que pudéssemos alcançar a pequena praça mais à frente e lá decidiríamos o que fazer afinal.

Depois de um tempo, chegamos ao centro da cidade, ou algo que parecia ser. As casas medievais cercavam-nos por todos os lados agora e o vento diminuiu significativamente. No centro da praça havia um grande chafariz congelado, brilhante como cristal, que refletia em sua água paralisada as luzes alaranjadas dos lampiões ao nosso redor, lançando graciosos raios de luz por todo o lugarejo.

― Lindo! ― Ana comentou baixinho. Eu também me encantei pelo chafariz. Ele tinha certo

encanto ou certo atrativo que eu não conseguia explicar. Eu sentia vontade de admirá-lo por toda a eternidade se assim me fosse permitido... Mas minha felicidade sempre dura pouco.

Passos ecoaram por toda a praça. O barulho das pisadas nas pedras se tornava cada vez mais alto à medida que seu dono aproximava-se de nós com toda a agilidade possível.

― Venha! ― eu disse, puxando Ana para trás de uma das casas, onde nos escondemos.

― O que você está fazendo? ― disse Ana furiosa. ― Pode ser alguém para nos ajudar!

― Ou não ― respondi. ― Ana, estamos num lugar desconhecido! Não podemos pedir ajuda para o primeiro estranho que aparece.

― Mas então fazemos o que? ― Nós... ― eu parei de falar no instante que um vulto

surgiu de uma das ruas paralelas à fonte. Puxei Ana para trás de mim e me pus a espionar o estranho. Usei “o” por que era um homem.

O estranho era alto e corpulento. Tinha cabelos desgrenhados que caíam sobre os ombros cobertos por uma capa negra. Sua barba estava por fazer e sua expressão indicava que não pretendia ser visto por ninguém. Ele parou diante do chafariz e, por um instante, permaneceu imóvel, olhando para os lados, de modo que parecia estar se certificando de que se encontrava realmente sozinho.

― O que ele está fazendo? ― perguntou Ana emburrada, tentando enxergar o homem por trás de mim.

― Eu não sei. Fique quieta!

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Assustei-me quando o homem começou a falar sozinho, com o olhar direcionado para a fonte. Ele falava algo estranho, como uma sutil melodia em outra língua, mantendo o olhar vidrado no interior do chafariz.

Repentinamente, um barulho ecoou por todos os lados. Uma rajada de vento poderosa saiu do homem e passou por mim e por Ana sacudindo nossos cabelos e roupas. Um “crac” grave saiu do chafariz e todo o gelo começou a trincar a sua volta. O homem afastou-se alguns passos para trás e o gelo explodiu em vários pedaços, revelando uma fonte prateada de água cristalina e borbulhante. Era capaz de encantar os olhos de qualquer um! O chafariz tornara-se mais belo do que antes.

― Olha! ― a voz de Ana às minhas costas. O estranho fez um novo movimento e algo muito estranho

veio a seguir. O homem sorriu ao deparar-se com a fonte descongelada e

caminhou em sua direção. Ele parou, ainda sorrindo, em frente ao chafariz e, em seguida, bem diante dos meus olhos, despareceu lenta e misteriosamente para debaixo dele.

Emudeci. ― Para onde ele foi? ― Ana perguntou-me surpresa. ― Não tenho ideia ― falei boquiaberto. O vento voltou a soprar normalmente em nossos rostos,

no entanto, a fonte não voltou ao seu estado petrificado. O chafariz continuou jorrando calmamente sua água cristalina, enquanto meu cérebro tentava solucionar de maneira lógica o que havia acontecido.

― Vamos dar o fora, Arion! Você viu que loucura? Como aquele homem conseguiu fazer aquilo com o chafariz?

― Eu não sei Ana, não sei mesmo. ― Prefiro não saber, também. Isso é coisa de maluco e já já

eu vou acordar e tudo isso vai ter passado. Nunca mais eu comerei uma caixa de bombons antes de dormir.

― Você ainda acha que está sonhando? ― É claro que estou, seu idiota. De que outra maneira

aquilo poderia acontecer? ― Quer saber? Fique aqui. ― O que? Não mesmo! Aonde você vai? ― Quieta! ― eu disse, enquanto caminhava na direção do

chafariz. ― Eu só quero saber como aquele homem conseguiu desaparecer. Fique aí escondida!

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― Volte aqui! ― Ana desesperou-se. Mas já era tarde, pois eu já alcançara metade do caminho

até a fonte. Nada me impediria de saciar minha curiosidade. Tenho que admitir que esse é um dos meus maiores defeitos.

Alcançada a fonte, eu pude admirar um pouco melhor os seus contornos. Havia, novamente, escritos que eu não fazia ideia do que poderiam ser e desenhos que representavam uma história que eu também não pude entender. Sua água era cristalina como nenhuma outra e o barulho que emitia parecia uma doce canção de ninar.

Eu rodeei a fonte e descobri, surpreso, o segredo do estranho. A fonte continha uma entrada, onde havia uma escadaria que descia rumo à escuridão. Um frio percorreu meu estômago ao encará-la. Aonde levaria a escada? Por que o estranho estava com tanto medo de ser visto? E como ele conseguiu abrir a passagem? Essas perguntas giravam em minha cabeça com mais velocidade do que eu podia suportar.

Não mais que de repente eu ouvi novos passos, porém muito mais próximos e muito mais rápidos do que os anteriores. Eu pensei em voltar para o meu esconderijo junto de Ana, mas eu não sabia a direção de que vinham os passos e com isso eu poderia estar indo direto para a boca do lobo. O que eu faria? Ana olhou-me distante, desesperada. Senti o coração acelerar descompassado. Não havia outra opção, eu teria que me arriscar. Eu só pensava que Ana teria que se virar sozinha por um tempo... Eu torci para que ela ficasse bem.

Cerrei os punhos e os dentes, juntei toda a minha coragem e mergulhei, sem olhar para trás, na grande escadaria, rumo à escuridão do chafariz

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O CÍRCULO

Senti-me como um cadáver por alguns segundos. O vento frio cessou instantaneamente, o luar embaçado

por nuvens sumiu e logo as luzes das lamparinas também desapareceram. Eu mergulhei numa escuridão sem igual, ouvindo minha respiração ofegante e as batidas graves do meu coração. Segui tateando as paredes, esforçando-me ao máximo para enxergar os degraus e cuidando para não escorregar nos blocos de neve que derretiam sobre as pedras. Após longos e incansáveis minutos de descida, tornaram-se visíveis o fim da escada e o começo de um túnel iluminado. Comecei a enxergar as paredes de pedras pontudas que incorporavam o túnel e a dimensão de cada degrau. Um gigantesco estrondo ecoou às minhas costas. Virei assustado e notei que a passagem no alto da escadaria havia sido fechada e novos passos começavam a ser marcados por ruídos altos a alguns metros acima de mim. Meu coração acelerou ainda mais.

Veloz, adiantei-me para o túnel e segui para a claridade. Por um instante, minha visão saiu de foco ao encarar a luz e, talvez por isso, tenha demorado tanto tempo para notar onde estava. Ao contrário do extenso e vasto túnel que havia imaginado, eu me vi em uma grande encruzilhada que levava a vários túneis diferentes, para lados completamente distintos. Eu havia me metido num grande labirinto. Visto que eu não poderia voltar, comecei a pensar em qual seria minha melhor opção: ser pego por um estranho, que poderia me torturar, matar-me ou fazer qualquer outra coisa sangrenta e dolorosa comigo, ou seguir por um dos caminhos e acabar perdido na escuridão e morrer, no fim, de fome e sede em poucos dias.

As opções não eram lá muito boas...

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Foi nesse momento que ouvi alguns ruídos. Tentei apurar meus ouvidos para conseguir distinguir o som e de onde ele vinha. Notei que eram vozes. Vozes vindas de um túnel em especial – se eu estivesse certo. Era a única chance de salvar-me e abracei-a com força. Girei nos calcanhares e segui na direção de onde as vozes supostamente estariam vindo. Rezei para que eu estivesse certo.

Atravessei o corredor com o coração em mãos. Iluminado por velas, o local tinha um ar sombrio e ameaçador. Lembrava-me gigantescos túneis construídos em minas. Não havia vento, mas os pêlos de minha nuca se eriçaram.

Uma porta semi-aberta surgiu à minha frente, iluminada por uma luz azul mortiça. As vozes vinham, com certeza, daquele lugar, pois o barulho confuso aumentara significativamente agora que eu havia me aproximado.

Caminhei em direção à porta com o intuito de entender o assunto comentado pelas vozes, mas, antes que pudesse distinguir uma só palavra, uma mão sobrepôs-se em meu ombro.

― Ei, o que está fazendo aqui? Assustado, eu me virei e encarei o dono da mão: um homem alto, magrelo, de rosto fino e ossudo; os olhos castanhos bem escuros e o nariz comprido estavam camuflados pelos cabelos, que desciam lisos e negros até o ombro, bem atrapalhados. Trajava, também, uma capa negra. Não tinha mais que dezoito anos.

― Foi você quem abriu a passagem? ― o jovem estranho perguntou-me.

Eu simplesmente balbuciei algo incompreensível, tentando com todas as minhas forças não desabar sobre meus pés.

― Caça-lobos não me disse que mais uma pessoa entraria pela passagem do Chafariz Congelado. Pensei que todos os outros entrariam pelo Lago Esverfii e pelo Bar-budo. Bem, ele deve ter se esquecido ― e deu de ombros. ― Vamos entrar então? Já estamos atrasados. Ele agarrou meu braço e escancarou a porta. Nós adentramos para a sala mal-iluminada e o silêncio se fez quando atravessamos o portal.

Estávamos numa sala oval, enorme, iluminada por velas de

chama azul, colocadas em castiçais nas paredes cobertas por teias de aranha. À nossa volta, as paredes eram pontudas e úmidas,

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adornadas com lanças, espadas, escudos e bandeiras com brasões estranhos. Um deles chamou minha atenção ― duas semi-circunferências com as extremidades entrelaçadas2 ― pois se espalhava em maior número pelo lugar sombrio.

Havia várias pessoas sentadas em pequenas cadeiras de madeira em volta de um casal que situava-se bem no centro da sala. Eram cerca de vinte a trinta pessoas, de tipos e tamanhos variados, de ambos os sexos; a única semelhança que percebi entre eles era que todos ― digo todos mesmo ― carregavam armas, sendo elas machados, arcos, cajados, lanças e, o mais comum, espadas. Trajavam capas escuras e sobretudos. Notei também que a maioria das pessoas parecia incomodada com alguma coisa, inquietos em seus assentos, como se algo terrível estivesse prestes a entrar pela porta atrás de nós, a qualquer instante. Surpreendi-me quando vi que o homem no centro da sala iluminada era o mesmo que abrira a passagem do Chafariz. Pude notar, agora mais próximo e diante da luz azulada das chamas, uma grande cicatriz no lado direito de seu rosto, que começava na parte superior da sobrancelha e terminava bem perto de seu lábio inferior, deformando-o de forma assustadora.

― O pequeno alquimista vem nos glorificar com sua presença ilustre ― disse o homem da cicatriz para o rapaz ao meu lado, numa voz grave e suave. ― Ilustre, porém atrasada.

― Sabe como é, Caça-lobos, eu vivo me perdendo nesses túneis. Demorei um bom tempo para descobrir qual era o certo. ― o rapaz disse displicente.

Enquanto os dois homens conversavam, eu deslizei lentamente alguns centímetros para o lado e larguei-me numa cadeira vazia, tentando sair, o mais rápido possível, do campo de visão de Caça-lobos ― o homem da horrenda cicatriz ― e do rapaz que me acompanhava. ― Da próxima vez lhe comprarei um mapa, Dion. ― Na verdade, seria de extrema utilidade ― o garoto encerrou a conversa com um sorriso e Caça-lobos deu-lhe as costas, voltando-se para o centro iluminado da sala. Dion ― o rapaz ― localizou-me dois segundos depois e, mais rápido do que eu gostaria, sentou-se ao meu lado com um

2 Para mais detalhes verifique a imagem 2.4 da página 8.

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sorriso esticado nos lábios, enquanto minhas pernas tremiam furiosamente de pânico. ― Com a palavra, Tumilínea ― anunciou Caça-lobos, chamando minha atenção. Eu já estava começando a achar que meu nome não era tão estranho. ― Muito bem, então ― disse a mulher ao lado de Caça-lobos. ― Todos já sabem por que estamos aqui, certo? Olhei para a mulher que falava com voz firme, e, por um instante, fiquei sem ar. Ela tinha belos olhos castanhos e cabelos encaracolados que caíam como serpentes nos ombros bem malhados; seus seios eram fartos e a boca, vermelha como sangue. Era uma mulher deslumbrante; estava na faixa dos vinte e cinco anos. Às suas costas estavam pendurados um arco e uma aljava de madeira escura e, entre os dedos, girava uma faca de prata reluzente. Ela encarava a todos com certa ansiedade. ― Em primeiro lugar, quero agradecer por vocês terem atendido ao nosso chamado urgente. Sei que estão correndo grande perigo por não estarem no banquete do rei, mas, como vocês já sabem, o assunto não pode esperar. Eu realmente agradeço por estarem aqui. Vocês são, sem dúvida alguma, as pessoas mais corajosas de Mustor. Meu coração bateu acelerado. Rei? ― Para aqueles que ainda não sabem, vou dizer o motivo da nossa reunião às escuras: o nosso rei pretende destruir a Trindade.

Senti uma forte pontada no estômago e as entranhas revirarem, sem nem ao menos saber o porquê. Houve um murmurinho nervoso entre as pessoas, mas cessou quando Tumilínea voltou a falar:

― Sim, é isso que vocês ouviram: o rei Skan pretende confrontar os reinos de Galagar e Verique. O poder subiu à sua cabeça e é nossa obrigação como Mustorianos e descendentes de Havalis não permitir que uma guerra insana como esta aconteça.

Houve mais uma pausa dramática e mais murmúrio entre as pessoas.

― Todos aqui sabem que o povo de Havalis é pacífico e que nunca quisemos entrar em qualquer tipo de guerra que envolvesse derramamento de sangue e morte desnecessários. Mas ao que me parece, Skan não pensa da mesma forma. Ele pretende tomar os dois reinos custe o que custar e está fazendo de tudo para que os Mustorianos se juntem a ele. Não podemos deixar! Essa

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guerra não tem sentido algum! O povo de Havalis, não só os Mustorianos, não pode cegar-se diante do caos que está por vir! Seremos todos dizimados se não impedirmos essa guerra! ― ela fez uma pausa e encarou a todos com olhar súplice e encorajador ― E foi por esse motivo que nós criamos o Círculo, para combater o rei Skan.

― Exatamente! – voltou a dizer Caça-lobos. Mil perguntas giravam turbulentas em minha mente e meu

coração estava a ponto de saltar do peito. Em que situação eu me metera...

― Não podemos perder mais tempo, companheiros ― Caça-lobos gritava em meio à multidão ―, Skan está se movendo, já está se preparando! Ele criou um grupo de servos intitulado Caçadores e nós não temos ideia dos poderes que esses homens têm ou que tipo de guerreiro eles são; por isso, precisamos agir depressa.

― Mas como vamos fazer para lutar contra esses tais Caçadores? Nós nem sabemos quais são os seus poderes ou as suas armas!

O homem que se manifestou ergueu-se da cadeira e encarou Caça-lobos. O que pude ver dele era que tinha cabelos raleados e loiros e um corpo raquítico. Sua pele era pálida e opaca e os olhos azul-acinzentados, como o céu em manhãs de inverno. Lembrava-me alguém muito doente. ― Nós não vamos lutar contra ninguém, Tupins. Não por enquanto. ― disse Tumilínea calmamente. ― Não?! Houve um novo murmurinho. ― Não. Nossa missão, meus caros amigos, é alertar o máximo de cidades possível e, acima de tudo, os outros dois reinos sobre os planos de Skan. Nós nos espalharemos por todos os três reinos, alertaremos sobre a traição de Skan, buscaremos aliados e, aí sim, vamos lutar contra o exército de Caçadores... Seja lá o que eles sejam ― acrescentou baixinho. ― Mas temos pessoas suficientes para fazer isso? ― perguntou um homem robusto, de barba e cabelos loiros, do lado oposto da sala. ― Nos dividiremos em duplas, Tevor, cada qual percorrendo um trajeto diferente ― respondeu Caça-lobos. ― Mas não é perigoso nos separarmos?

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― Por isso, duplas. Assim, ninguém estará sozinho e poderemos percorrer uma extensão maior em menos tempo. ― É só isso? ― perguntou um homem cujo rosto eu não pude ver. ― Só precisamos avisar as pessoas? ― Sim ― respondeu Caça-lobos entre os dentes. ― Mas não se enganem, a missão não é tão fácil quanto parece. ― ele encarou cada um dos presentes com um olhar preocupado. ― Assim que Skan souber o que estamos planejando, ele nos caçará como um lobo atrás de cordeiros; e eu garanto: não será fácil escapar dele. Dizem que o nosso rei tem poderes que nem passam por nossas cabeças! Peço a todos que tenham muito cuidado. Uma vez que estejam dentro do Círculo, não haverá saída. Todos se entreolharam, silenciosos. ― Mas tenham fé, meus amigos ― apressou-se em dizer Tumilínea. ― Iremos vencer aquele carrasco e retomaremos o nosso reino! Juntos, venceremos Skan! ― e, dizendo isso, ergueu sua pequena faca de prata para o alto. Houve um grande urro coletivo e todos se ergueram das cadeiras e acompanharam o gesto da mulher com as mãos e suas armas. ― Vamos nos revoltar contra o rei?! ― perguntei, quando finalmente me dei conta da situação e tive voz para falar. ― Mas é claro! Por que acha que estamos nessa?! Iremos vencer aquele tirano! ― respondeu Dion empolgado. ― Mas ele é... O rei. ― eu disse, não conseguindo esconder o tom de súplica. ― Mas é um louco! Skan está tentando dominar todo o mundo e você quer que fiquemos parados? Seria uma covardia! ― o garoto parecia ofendido. ― Eu sei... Mas... ― percebi então que nada abalaria Dion e, tendo me dado conta disso, desisti de argumentar. ― Você está certo... ― Sim, estou. Vamos lá, não tenha medo. ― apressou-se em dizer. ― Sei que vamos correr riscos nessa missão, mas é um risco que vale a pena! Caramba, quantas vezes se pode lutar por alguma coisa que vale realmente o esforço?! Talvez até morrer por isso... Eu realmente desejei que Dion tivesse omitido a última frase. ― Bem, ― a voz de Caça-lobos sobrepôs-se às outras, levando minha atenção até ele ― agora que já explicamos tudo e

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alertamos a todos, não vejo razão para continuarmos aqui. Preparem seus grupos, amigos, partiremos daqui a pouco. Fiquei sem ar por alguns segundos, enquanto novos gritos explodiam por toda a sala.

O que eu farei agora?

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TUDO EXPLODE EM CHAMAS

Eu era um garoto perdido no meio de uma guerra. Meu coração acelerou de tal modo que eu não conseguia

contar suas batidas. Minhas pernas bambearam e tudo pareceu girar à minha volta. Novos urros coletivos encheram a sala.

O que eu farei agora? As pessoas começavam a montar seus grupos e a se

preparar para a perigosa jornada. Em instantes, todos partiriam para uma missão suicida e eu seria arrastado junto com eles. Nunca me arrependi tanto de ser curioso. Se não fosse pela minha curiosidade eu estaria lá em cima, talvez dentro de uma casa, protegido, na companhia de Ana... Ana! Rapidamente a imagem da garota, sozinha no meio da escuridão, veio à minha mente. Como ela estaria se virando sem mim lá em cima? Teria voltado para o portal ou teria procurado ajuda numa das casas? Eu detestava Ana, mas não podia deixar de me preocupar com ela. Afinal, em grande parte eu era responsável por estarmos ali, mesmo não sabendo como.

― Você vai comigo então, estranho? ― disse Dion, trazendo-me de volta à realidade.

Eu balancei a cabeça simplesmente. Eu não tinha muitas opções.

― Se vamos juntos eu preciso, pelo menos, saber o seu nome.

― Arion ― eu disse, já esperando ser caçoado. ― Arion? Nome legal. Eu me surpreendi. ― Acho que faremos uma boa dupla, Arion.

Sorri, mas em nenhum momento concordei com o que ele me disse. Eu pensava apenas numa maneira rápida de ir embora daquele lugar e, uma vez lá em cima, daria um jeito de desvencilhar-

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me de Dion, da maneira mais veloz que eu pudesse. Nós trocamos olhares nervosos e eu observei, com um frio na barriga, que as duplas já estavam quase todas prontas. Logo estaríamos partindo. Mais alguns minutos se passaram até que finalmente todas as pessoas tivessem se organizado. Várias duplas se espalhavam pela sala oval afiando as armas e conversando entre si. ― Acho que todos estão prontos, não é mesmo? ― perguntou Caça-lobos às pessoas ao seu redor, observando os rostos pálidos à sua volta ― Então peço que os grupos se separem em três pequenas comunidades. Vamos distribuir as missões de uma vez. Houve uma rápida algazarra e todos se dispuseram em três grandes grupos de duplas. Eu e Dion ficamos no grupo da esquerda. ― As missões serão divididas da seguinte maneira: o grupo da direita ficará responsável pelo reino de Havalis, o nosso reino, e terá como objetivo espalhar a notícia da traição do rei por todas as cidades ― o grupo todo sacudiu a cabeça afirmativamente, demonstrando ter entendido sua missão. ― O grupo do meio, ― continuou Caça-lobos ― irá para o reino de Verique, depois de Ron-Vazz, para a cidade de Brierd, e levará a notícia para o reinado sobre os planos do nosso rei ― as duplas do centro fizeram o mesmo movimento de afirmação. ― E o último grupo, o da esquerda, viajará para as terras do norte, o reino de Galagar, onde alcançará a cidade de Comoska e avisará o rei Konn sobre a invasão que está prestes a acontecer. É muito importante que esse grupo não falhe. Todos ao meu lado fizeram que “sim” e eu tive vontade de fugir da sala. ― Então é isso. ― disse Tumilínea. ― Vamos começar a sair. O grupo da direita primeiro. Todos sairão pelo Chafariz, o.k.? Vamos acabar com aquele maldito Skan de uma vez! O grupo do lado direito se moveu. Um frio perpassou por minha barriga e fez com que eu me contorcesse. Estava acontecendo mesmo! Em poucos minutos seria a vez do meu grupo partir para sabe-se lá onde e eu não tinha escapatória. Eu só pensava que Ana teria que estar pronta para fugir assim que eu emergisse do Chafariz, ou seria o nosso fim. Na primeira distração de Dion, eu fugiria para bem longe de toda aquela loucura e que ficassem eles

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com seus problemas com o rei! Eu já tinha os meus problemas e não precisava de ajuda para me ferrar ainda mais. O grupo do centro começou a sair bem atrás do primeiro. Estavam todos bem ágeis e quase ninguém conversava. Era uma marcha silenciosa e preocupada. O fantasma da Morte parecia caminhar aos seus lados, tornando o clima tenso e sombrio no salão. Não tardou e a vez do nosso grupo chegou. Restavam apenas eu, Dion, Tumilínea, Caça-lobos e três outras duplas que caminhavam para a saída, sem pressa. No entanto, quando me preparava para sair, Caça-lobos chamou por Dion e veio em nossa direção: ― Dion, está certo de que quer fazer isso? Sabe que seus pais não aprovariam, não é? Sou amigo deles há anos e não quero que eles fiquem ressentidos comigo por causa das suas maluquices. ― Fique tranquilo, Caça-lobos, eles não vão se importar com isso. Afinal, estou lutando pelo reino, não é? ― Mas você tem apenas dezenove Eras. É um moleque. Essa missão é perigosa demais para alguém como você. ― Eu sei, não se preocupe. Sei me cuidar muito bem e você sabe disso. Luto desde pirralho. Nesse instante, Caça-lobos encarou-me. Seus olhos eram brilhantes e pareciam carregar milhares de anos de experiência em batalhas: ― E você? É algum amigo maluco que Dion arrastou para cá à força? Ele sorriu. Eu congelei. ― Esse é Arion. Está um pouco assustado com tudo ― Dion comentou sorrindo. ― Também não é para menos, deve ter o que, quinze Eras? ― Quinze o quê? Mas antes que Dion conseguisse responder, uma grande explosão atirou a porta do salão para longe, lançando uma densa fumaça para dentro do cômodo vazio: ― Mas que droga é essa?! ― gritou Dion em meio à fumaça. Um gigantesco estrondo aconteceu no cômodo e a terra sob nossos pés estremeceu. Simultaneamente, chamas negras irromperam da terra tomando conta do lugar apertado e mais fumaça invadiu o salão nos sufocando. ― Mas que diabos é isso...

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Uma figura negra começou a tomar forma à partir das chamas, misturando-se ao fogo e à fumaça, bem no centro do salão. Aos poucos, a forma grotesca se endireitou e tornou-se sólida como as paredes da sala. Meu coração parou no instante em que a criatura definiu sua forma diante de nós. À nossa frente, havia um grande cavaleiro negro, montado sobre um cavalo também negro e de olhos vermelho-sangue. O homem, se assim posso chamá-lo, estava coberto por uma capa preta que se estendia por todo o corpo esquelético e o rosto fantasmagórico. Sua pele em sua maior parte era branco-giz e transparente em certos pontos, onde era possível ver sangue negro fluir por suas artérias e veias. A boca costurada com linhas pretas e os olhos escuros e sem íris eram suas características mais assus-tadoras. Eu fiquei paralisado ao ver a figura. Não só eu, mas todos na sala. O monstro fez um movimento com as mãos e uma luz negra iluminou seus dedos. As chamas à sua volta chicoteavam para todos os lados, incendiando o grande salão em várias partes. O calor e a fumaça dificultavam, e muito, a respiração lá dentro.

Quase todas as duplas da minha fila haviam saído do Chafariz e restavam apenas dois grupos, num canto da sala, além do nosso e do de Caça-lobos. As duplas que restavam entraram em pânico e sacaram suas armas, partindo para cima do monstro. Caça-lobos gritou para que parassem. Três dos guerreiros driblaram o mostro com rapidez e atravessaram a abertura da sala, fugindo em disparada pela saída sem nem ao menos olhar para trás; mas um deles, um homem de feições grossas, foi impedido pelo cavaleiro. O homem o encarou aterrorizado. Suas mãos tremiam ao segurar a espada de lâmina torta. O monstro desceu lentamente sua mão brilhante na direção do guerreiro e, então, houve uma explosão.

Uma luz roxa tomou conta do corpo do guerreiro do Círculo e o indefeso homem desabou no chão da sala, com os olhos completamente petrificados e a cabeça inteiramente fora do eixo. Estava morto. Ficamos sem reação.

Caça-lobos foi o primeiro a voltar a si e tomar partido contra o monstro. Ele sacou uma espada lustrosa de debaixo da capa e investiu contra o cavaleiro. Tumilínea puxou seu arco e começou a disparar na direção do inimigo.

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O cavaleiro fez mais um gesto com a mão e, em seguida, um grande trovão negro voou na direção do casal. Caça-lobos atirou-se no chão, girou e contra-atacou com sua espada, com ferocidade. Ao meu lado, Dion sacou duas espadas de lâminas curvadas que estavam presas em suas pernas e também investiu contra o monstro. As flechas de Tumilínea choviam sobre o inimigo. Apenas eu observava a batalha parado. Eu não podia e nem conseguia me mexer. Eu nunca vi algo parecido na vida! Eu estava desarmado. Estava completamente aterrorizado. Uma nova explosão ocorreu e os três guerreiros foram atirados ao chão. Labaredas negras saíam da mão do cavaleiro e se espalhavam por toda a sala. O fogo estava tomando conta do lugar. Cada vez era mais difícil respirar. Eu tossia muito e minha vista tornava-se escura rapidamente. Outro estrondo e mais uma explosão. Caça-lobos se reergueu e investiu contra o monstro, porém, o cavaleiro movimentou-se mais rápido e atirou a espada dele para o outro canto da sala. Tumilínea e Dion foram ao regaste de Caça-lobos, no entanto, com apenas um movimento, o cavaleiro fez com que os dois fossem atirados contra a parede com um grande estrondo. Ambos caíram desacordados. O monstro voltou sua atenção para Caça-lobos e depois disso, tudo aconteceu muito depressa. Num instante, eu estava parado ao lado da espada de Caça-lobos e no outro eu me vi correndo na direção do cavaleiro. O monstro já preparava seu ataque final contra Caça-lobos quando eu me atirei contra ele, com a espada em mãos. Eu gritei. Ele se virou. Senti a lâmina perfurar o peito do cavaleiro de uma só vez e um líquido gelado escorrer por minhas mãos. No instante seguinte, o monstro explodiu em fumaça negra e um estrondo ecoou pela sala. Do outro lado, um Caça-lobos estupefato olhava para mim sem reação, enquanto eu tentava entender o que eu acabara de fazer.

Fiquei paralisado por um longo tempo depois da explosão do monstro. Minha mão tremia e segurava com desnecessária força a espada, agora coberta por um sangue negro e espesso. Lentamente, Caça-lobos se levantou e tomou a espada de minhas mãos suadas. ― Obrigado, garoto. Fico lhe devendo essa.

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Nesse instante, gritos pavorosos foram ouvidos, vindos do interior dos túneis às nossas costas. ― Eles estão precisando de ajuda. Caça-lobos correu até Tumilínea e Dion e os reanimou. ― Tem alguma acontecendo lá em cima. Precisamos ir depressa! Tumilínea levantou-se com calma e pareceu voltar ao normal. Assim que compreendeu o que Caça-lobos estava dizendo partiu em direção à saída, com o arco em mãos. Dion demorou mais alguns instantes para voltar ao normal. As chamas cresciam ao nosso redor e precisávamos sair dali com rapidez, antes que nos tornássemos churrasquinhos bem passados. ― Você está bem? ― eu perguntei. ― Estou, estou. Só parece que levei um grande coice ― ele disse esfregando a cabeça. ― Não temos tempo a perder. Vamos, agora! ― chamou-nos Caça-lobos. Nós saímos em disparada pelo corredor, o qual também estava se incendiando. Dion passou-me uma de suas espadas curvadas e eu agradeci com um aceno, mesmo não tendo muita certeza se estava pronto para matar mais uma daquelas coisas. Meu único pensamento era fugir para o mais longe que conseguisse de toda aquela confusão. Eu não queria mais lutar. Irrompemos pelo Chafariz em meio ao caos. Uma verdadeira guerra acontecia na pequena praça da fonte congelada. Eu demorei um pouco a distinguir os dois lados da batalha, mas depois de alguns instantes, percebi que vários homens vestindo capas roxas lutavam contra os membros do Círculo de maneira impiedosa. Corpos jaziam ao chão, ensanguentados; casas estavam sendo incendiadas e o tilintar das espadas ressoava por todas as partes. Dion e Caça-lobos dispararam para ajudar seus companheiros e eu fiquei por um tempo incontável paralisado em meio à batalha. Não fazia sentido eu estar ali! Aquela guerra não era minha!

Eu não sabia o que fazer, eu não sabia como agir, tudo acontecia de uma forma tão veloz ao meu redor que eu não conseguia raciocinar com clareza. Foi quando ouvi meu nome em meio à multidão. Girei nos calcanhares e procurei pela pessoa responsável pela voz.

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― Arion! Eu não sabia de onde o som vinha. ― Arion! Socorro! Rodopiei em busca da voz e encontrei Ana em meio à batalha, cercada por dois homens de roxo. Ela gritava desesperadamente e olhava para mim em pânico, enquanto duas lâminas eram apontadas para sua garganta desprotegida. Entrei em ação. Segurei firme o punho da espada e corri ao encontro da garota. Os braços de Ana foram agarrados pelo homem da direita e eu apressei meus passos ainda mais em sua direção. ― Me soltem, seus brutamontes! Me soltem! ― ela gritava furiosa. Saltei vários corpos espalhados pelo chão, tentando me focar na voz de Ana. Eu já estava perto. Poucos metros separavam-me de Ana. ― Arion, cuidado! ― ela gritou. Foi quando senti uma forte pancada na cabeça e tudo escureceu.

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O QUE ACONTECEU NO CHAFARIZ

Eu senti como se estivesse girando lentamente fora de órbita. ― Ana... ― eu balbuciei.

― Arion, acorde! ― chamavam-me. O rosto pálido e ferido de Dion entrou em foco. Sombras indistinguíveis giravam ao meu redor rapidamente. ― Dion? ― eu disse, ainda com a cabeça girando. Senti meu corpo encostado em algo rígido e irregular. Folhas secas, grama e neve em fusão estavam sob mim. À minha volta, grandes troncos delimitaram-se pouco a pouco. Pelo que pude perceber, eu estava em uma densa floresta, com troncos compridos e momentaneamente desfolhados. A luz do luar atravessava os galhos nus e iluminava a relva ao meu redor: ― Onde estamos? ― perguntei. Antes que Dion pudesse me responder, uma mão agarrou meu pescoço com força e, de uma só vez, ergueu-me no ar. O dono da mão era um homem grande e rude. Tinha os cabelos loiros e a barba espessa. Seus olhos azuis bem escuros olhavam-me com tal fúria que eu jamais vira em toda minha vida: ― FOI VOCÊ, NÃO FOI, SEU INSETO? ― o homem gritava para mim. ― FOI VOCÊ QUEM ENTREGOU TODO O CÍRCULO, NÃO É MESMO? RESPONDA! Eu comecei a ficar sem ar. As mãos do homem apertavam minha garganta cada vez mais forte. ― Largue-o, Tevor! Largue o garoto, agora! Caça-lobos surgiu de algum lugar e segurou o braço de Tevor: ― Foi ele, Iam, foi ele quem nos entregou! Temos que matar esse desgraçado!

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― Não, não foi ― afirmou Caça-lobos, os olhos fixos em Tevor. ― Como você sabe disso? Você mesmo viu! Ele era o único estranho que estava lá! ― Ele salvou minha vida, Tevor. É por isso que sei que não foi ele. Tevor emudeceu e passou seu olhar de Caça-lobos para mim várias vezes. Estava desconfiado. ― Solte-o, Tevor. Não é ele quem procuramos ― disse Caça-lobos calmamente. Aos poucos, o homem afrouxou a mão e largou-me sobre a grama; em seguida, afastou-se bufando. Respirei ofegante. Minha cabeça doía muito. ― Você está bem? ― Dion perguntou, aproximando-se. ― Já estive melhor. ― respondi, massageando o pescoço ― O que aconteceu? Por que aquele cara me atacou? ― Nós fomos traídos, Arion. Alguém denunciou nossa reunião para Skan. Os gritos desesperados dos membros do Círculo e as imagens da pequena praça em chamas vieram de uma só vez à minha cabeça.

― Eram servos dele, do Skan, aqueles homens de roxo? Dion pareceu estranhar a pergunta.

― Sim. Guardas. São os protetores do rei. ― E como eu era o único estranho na reunião, Tevor

achou que eu era o tal traidor, é isso? ― Exatamente. Mas eu tentei dizer que você estava comigo ― apressou-se em dizer. ― Eu disse que você não era o espião. Eu sabia que não era você! ― Obrigado ― Dion começou a me parecer um cara legal. ― Onde estamos? ― perguntei, depois de uma rápida olhada ao meu redor.

― Estamos na floresta de Morthin, na divisa entre a cidade de Mustor e a cidade de Enordii. Ei, cuidado, você levou uma pancada forte! ― eu tentara me levantar, mas fui jogado ao chão por uma forte dor na nuca. ― O que aconteceu? ― perguntei, ainda dolorido. ― Você foi derrubado na batalha. Um dos Guardas atingiu você bem na cabeça. Foi muito hilário, na verdade. ― Não consigo achar muita graça ― eu disse, esfregando o cocuruto. ― O que aconteceu lá no Chafariz?

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― Bem, depois que você foi atingido ― ele deu uma risada ―, eu corri para impedir o Guarda que estava querendo matar você. Nós trocamos alguns golpes e ele foi vencido, lógico ― ele passou a mão no cabelo nesse ponto. ― A batalha continuou por algum tempo e nós começamos a abrir vantagem sobre os Guardas, mas... ― ele fez uma pequena pausa e seu olhar perdeu-se por um instante ― mas foi aí que eles chegaram. ― Eles? Eles quem? ― não pude deixar de interromper. ― Os Caçadores ― sussurrou em tom sombrio. ― Caçadores? Do que você está falando? ― Você não estava prestando atenção mesmo na reunião, não é? ― indignou-se Dion. ― Os Caçadores são os novos soldados do rei, Arion. Monstros criados para matar a todos que se opuserem a ele. Você chegou a ver um deles, lá dentro do Chafariz. ― Dentro do Chafariz? Eu busquei em minha memória. Quem eu havia encontrado de tão terrível dentro da sala subterrânea?... ― Aquele monstro que eu matei é um Caçador? ― desesperei-me, quando a imagem do cavaleiro fantasmagórico do encontro subterrâneo surgiu em minha mente. ― Exatamente. Aquilo que você matou era um Caçador. ― Então tem mais daquilo? ― Muito mais. O rei está fazendo um exército daqueles monstros. Como prova disso, ele mandou cerca de dez para nos enfrentar no Chafariz. ― Dez?! ― Dez. Não foi fácil escapar de lá. Estávamos em um pequeno número. Muitos dos nossos já estavam feridos ou mortos. Tivemos que bater em retirada. Com muita sorte e muitas baixas, conseguimos fugir para cá sem sermos perseguidos. Olhei à nossa volta. Havia cerca de quatro pessoas espalhadas pela floresta: Tumilínea, Caça-lobos, Tevor e outro homem, de pele escura, graúdo e de dreads castanhos na cabeça. ― Só restaram eles? ― perguntei aos sussurros. ― Só nós seis. Talvez tenham sobrevivido mais alguns no Chafariz, mas, a esta altura, devem estar sendo torturados nas masmorras do castelo. Era algo terrível de se pensar. Pessoas haviam sido dizimadas bem à minha frente. Eu havia visto muitos corpos e assassinatos. Não me sentia bem. Uma guerra realmente estava acontecendo e eu estava bem no meio dela... Eu precisava voltar o

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quanto antes para o internato e precisava voltar com Ana para... Ana! ― Eu não posso ficar aqui, Dion! ― eu disse erguendo-me. Admito que as coisas ao meu redor giraram um pouco quando levantei, mas mantive-me de pé. ― Do que está falando? Como assim não pode ficar aqui? ― Eu preciso salvar a garota que estava comigo. A garota que estava no Chafariz! ― Que garota? Não vi garota alguma! ― Quando eu fui atingido pelo Guarda, eu estava tentando salvar uma garota de dois homens que a estavam atacando... ― Mas quem eram esses homens? Eram Guardas? ― Sim, eram Guardas. Estavam com aquela capa roxa. ― Então você pode desistir de encontrar sua amiga ― ele disse sombriamente. ― Ela deve estar morta agora. ― Não, não pode estar! ― desesperei-me ― Eu preciso encontrá-la. ― Arion, ela deve estar no castelo. Se não, deve estar a caminho de lá. ― Então eu os alcançarei no caminho. ― É loucura, Arion, não... Neste instante, Caça-lobos fez sinal para que nos calássemos. Ele apanhou sua espada sob a capa e mandou que Dion fizesse o mesmo sem emitir qualquer som. Dion obedeceu. Nós apuramos nossos ouvidos e os guerreiros colocaram-se em posição de ataque. A princípio não consegui ouvir nada além de coaxares de sapos e pios de corujas em seus esconderijos, mas, gradativamente, o barulho do esmagar das folhas secas foi chegando aos meus ouvidos...

Eram passos. Cerrei o punho. Observei ao meu redor e tentei fazer com que meu coração descompassado se acalmasse. ― Outro Caçador não! ― eu implorava em meu interior. ― Outro Caçador não! Os passos foram se aproximando. Tumilínea esticou a corda de seu arco e preparou uma flecha. Tevor e o outro homem também tinham espadas em mãos. Estávamos apenas à espera do inimigo já a cinco metros... Quatro... Três... Dois... Todos se prepararam para o ataque...um... ― Não atirem! ― uma voz gritou.

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A TRINDADE

A floresta parecia ter prendido a respiração. Todos pararam na posição de ataque, com a respiração

ofegante. ― Quem está aí? ― a voz de Caça-lobos ecoou pela mata. Um vulto saiu do meio das árvores e seguiu em nossa

direção. ― Heivier! ― disse Tumilínea. ― Laila! ― Tevor gritou. Um homem alto e cambaleante veio até nós, trazendo em

seus ombros uma mulher desacordada de longos cabelos cor-de-fogo:

― Finalmente eu encontrei vocês! ― disse o homem. Caça-lobos e Tevor correram ao encontro do recém-

chegado, aliviando-o dos cuidados da moça. ― Laila, fale comigo, meu amor ― dizia Tevor para a

mulher. ― Tumilínea, ajude-me, ela está ferida! A formosa Tumilínea partiu às pressas para socorrer a

recém-chegada. Tirou alguns vidrinhos de uma bolsa de couro na cintura, alguns saquinhos de tecido marrom e tentou acalmar o companheiro:

― Acalme-se, meu amigo, sua mulher vai ficar bem. Não se preocupe. ― Não deixe que nada aconteça a ela, Tumilínea, por favor. ― Eu já disse que nada vai acontecer à Laila, Tevor. Fique calmo. Ele apertou a mão pálida da esposa e fitou sua mulher desesperado. Cheguei a sentir pena de Tevor.

Enquanto isso Caça-lobos recepcionava o estranho Heivier:

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― Heivier, o que aconteceu? Onde você estava? Como nos encontrou aqui? ― Calma, Caça-lobos, deixe o homem respirar. ― disse o corpulento homem que eu não conhecia. ― Eu sei, Nômos, mas preciso saber o que aconteceu no Chafariz. Há muita coisa em jogo.

Heivier tinha a respiração falha e cansada. Era visível que caminhara muito até ali. ― Caça-lobos, nós fomos traídos! ― foram suas primeiras palavras; sua voz estava entre a humana e um estranho ronronar. ― Bem, é um pouco tarde para você dizer isso, não? ― comentou Nômos. ― Nós já deduzimos o obvio. ― Mas eu sei quem foi o traidor. Eu e Dion esticamos nossos pescoços no mesmo instante. ― O que está dizendo, Heivier? Como você sabe quem é o traidor? ― Porque eu o vi se aliando aos inimigos no meio da batalha! Percebi que minha respiração estava rápida. ― Não é possível. Quem faria tal coisa? Quem seria capaz de trair a todos nós? Diga logo, Heivier! Ele deu uma breve respirada antes de dizer:

― Tupins. ― Tupins? ― disseram os dois ao mesmo tempo. ― Isso mesmo.

Dion mexeu-se bruscamente ao meu lado. Ele apertou com força a espada e encarou os três guerreiros mais adiante, com os dentes cerrados: ― Mas como você sabe disso? Como descobriu que ele é o traidor? ― perguntou Caça-lobos abismado. ― Como eu disse a você antes, eu o vi na batalha. ― ele respirou profundamente, impaciente. ― Eu vou contar tudo o que aconteceu, desde o início: “Nós estávamos saindo do Chafariz, como você mesmo determinou, para cumprirmos nossa própria missão. Eu e Tupins estávamos no mesmo grupo, aquele que iria para a terra de Verique, além Mar. Nós ficamos satisfeitos com a missão, porque não era tão difícil assim, e resolvemos partir como uma dupla, já que estávamos no mesmo grupo e Tupins receava em ir com outra pessoa. Havíamos planejado pegar uma embarcação para a cidade de Brierd e falar logo com o reinado de lá, mas...”

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Heivier fez uma pausa e mexeu-se no mesmo lugar, incomodado: “Foi muito rápido! Numa hora estávamos saindo do Chafariz e na outra os Guardas surgiram do meio das casas. Eles já estavam armados e preparados. Começaram atirando flechas contra nós e isso já pegou muitos dos nossos. Foi terrível! Quando percebemos o que estava acontecendo, tiramos nossas espadas e começamos a lutar contra os Guardas. Eram muitos, mas eu sabia que a gente tinha uma chance, sabe? E tínhamos mesmo! Nós lutamos juntos, eu e o Tupins. Ah, se eu soubesse antes... eu mesmo teria arrancado o coração daquele verme!” ― Mas o que aconteceu depois? ― quis saber Caça-lobos, os olhos apertados e curiosos. ― Nós continuamos batalhando lado a lado contra os Guardas. Muitos dos nossos já tinham morrido. Lutávamos já quase sem nenhuma esperança... Mas aí vocês apareceram, surgiram de dentro do Chafariz. Até aquele momento eu fiquei pensando onde vocês estariam. Quando vocês emergiram daquele lugar, cheios de força para lutar, eu também tive mais forças, entende? Comecei a matar todos aqueles miseráveis, sem piedade. Eu não deixaria que me vencessem e não permitiria que acabassem com tudo. Então parecia que tínhamos uma chance de novo. Eu estava melhor do que nunca! Eu tinha vocês, minha força e também Tupins ao meu lado... Tupins! Heivier fez uma pausa e olhou em direção à escuridão da floresta. ― Aquele maldito... A batalha estava ganha! Eu não consigo acreditar que ele tenha feito uma coisa dessas! ― Foi aí que você viu? ― Sim. Foi na hora em que os Caçadores chegaram. Você sabia que aqueles monstros são os Caçadores que você disse na reunião, Caça-lobos? ― É, nós também já sabemos. Um dos Guardas gritou: “Vamos deixar com os Caçadores agora!”. Miserável ― Nômos disse amargurado. ― Foi assim que ficamos sabendo quem eles eram. ― Pois é, eu também ouvi. São demônios, aquelas coisas! ― Heivier disse. “E foi justamente nessa hora que Tupins revelou finalmente o lado a que ele realmente pertencia. Maldito! Eu tentando defendê-lo e o infeliz me apunhalando pelas costas... Se eu soubesse...”

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― Ninguém poderia adivinhar, Heivier. Nem mesmo eu desconfiei dele ― desabafou Caça-lobos. ― Tudo bem que Tupins não seja melhor homem, mas ele estava do nosso lado! Ele sempre demonstrou isso. ― Talvez fosse justamente isso que ele queria que pensássemos ― comentou Nômos. ― Talvez ― concordou Caça-lobos relutante. ― Mas o que aconteceu depois? ― Bem, nós continuamos a lutar. Mesmo depois que os Caçadores chegaram, nós ainda insistíamos na batalha. “Foi quando eu estava lutando contra um dos Guardas que um daqueles Caçadores veio para o nosso lado. Estávamos lutando, eu e Tupins e o idiota acabou dando de frente com o Caçador. Foi um momento tenso. Eu não consegui ajudá-lo, pois ainda brigava contra um dos Guarda... Era o fim de Tupins... Ao menos era para ser.” ― O que aconteceu? ― O Caçador recuou. ― O que? ― Isso mesmo que você ouviu. O Caçador recuou. Não quis atacar o Tupins. Acho que reconheceu um dos seus. Caça-lobos olhou para Heivier surpreso. Digeriu a informação, enquanto Nômos chamava Tupins de todos os nomes ofensivos que conhecia. Um instante depois, o líder do Círculo virou-se para Heivier, sério:

― E depois? ― Depois eu não sei. Acabei sendo atingido pelo meu inimigo e apaguei no campo de batalha. ― Então foi o Tupins mesmo... ― disse Nômos. ― Não acredito que aquele miserável tenha feito isso. ― Nem eu. ― falou Caça-lobos. ― Mas ele fez. E eu quase morri por culpa daquele maldito! ― Heivier praguejou e lançou um soco no ar. ― Mas Heivier, como vocês chegaram até aqui? Heivier franziu as sobrancelhas: ― Ora, eu segui a águia que vocês mandaram!

Caça-lobos e Nômos se entreolharam. ― Águia? Deve haver algum engano, Heivier, porque nós não mandamos águia alguma! ― Claro que mandaram. Ela encontrou a mim e a Laila. ― juntos, todos se viraram para olhar a mulher de cabelos cor-de-

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fogo, ainda muito pálida sobre os braços do marido. ― Quando eu acordei, todos os Guardas já haviam ido embora. Só os corpos restavam lá. Eu caminhei em busca de sobreviventes e acabei encontrando Laila muito ferida no campo de batalha. Ela estava sangrando demais e não iria resistir sozinha. Então resolvi levá-la para minha casa e tratá-la eu mesmo. Mas foi nessa hora que a águia chegou, trazendo o paradeiro de vocês. Ela nos guiou até aqui e partiu logo em seguida. ― Mas nós não mandamos águia nenhuma! ― insistiu Nômos. ― Eu sei quem mandou ― Caça-lobos disse calmamente e em seguida apontou com o queixo para Tevor. ― Ele deve ter mandado a águia procurar pela esposa. ― Não acredito! ― Nômos gritou e Caça-lobos fez sinal para que abaixasse seu tom de voz. ― Mas... ― ele começou a sussurrar ― Mas ela poderia ter sido interceptada, Iam! Ele poderia ter trazido uma dúzia de Guardas com ela! ― Eu sei Nômos, mas não posso culpá-lo! Ele estava procurando notícias da mulher... ― Mas mesmo assim! Ele quase matou todo mundo! ― Não podemos controlar nossos impulsos, Nômos... Coloque-se no lugar dele. ― Mas o que faremos agora? ― Heivier questionou. ― Eu preciso pensar ― respondeu Caça-lobos. ― Mas está pensando em abandonar a missão? Quer desistir de tudo? ― Não, isso não está nos meus planos. Depois do que vi no Chafariz, aqueles monstros que Skan criou... Mais do que nunca, ele precisa ser impedido.

Nômos e Heivier se entreolharam. Caça-lobos se afastou dos demais e tirou de sua capa um cachimbo de madeira escura. Ele preparou o fumo, acendeu-o com um fogo brilhante e desapareceu na escuridão, pensativo. Nômos pediu a Heivier que detalhasse a história e os dois se afastaram para um canto onde não foi mais possível escutar a conversa. Dion virou-se para mim enfurecido: ― Aquele maldito do Tupins! Eu já desconfiava daquele raquítico. Repentinamente me lembrei de ter visto Tupins no Chafariz. Se eu não estivesse enganado, ele era o homem de aparência doentia que se manifestara na reunião.

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― Aquele rato... ― resmungava Dion para mim. ― E ele ainda é amigo dos meus pais! Se eu encontro com ele, não sobra nenhum pedaço daquele rosto magrelo!

... Um vulto passou por mim e por Dion velozmente e foi se encontrar com Caça-lobos no canto escuro da floresta. Cutuquei empolgadamente Dion ao perceber que era uma águia, mas não uma águia qualquer e sim uma águia gigante. ― É Pluma ― sussurrou Dion ao meu lado. A águia tinha as penas branquíssimas e um corpo de um metro e oitenta de comprimento. A extensão de uma asa a outra eu nem consegui calcular, o bico era ligeiramente curvado, os olhos castanhos e ferozes e as garras afiadas... Era um animal incrível! ― É dele? ― perguntei, ainda boquiaberto. ― Se você está perguntando se são companheiros de batalha, sim. A águia me deixou sem palavras, como quando você vê um grande leão pela primeira vez ou o Cristo Redentor bem de perto. Eu não sabia explicar direito como estava me sentindo, apenas sentia que alguma coisa boa balançava em meu estômago quando eu encarava aquela ave distante. Pluma pousou ao lado de Caça-lobos e acariciou-o com a cabeça, e ele, em troca, tocou suas penas com carinho. O que veio a seguir foi o mais estranho da noite: Caça-lobos começou a conversar com Pluma. Não que conversassem realmente, na verdade só ele falava, mas Pluma reagia como se entendesse o que o companheiro estava dizendo. ― Veja, Dion, eles estão conversando! ― E o que há de estranho nisso? ― Além do fato de eles estarem conversando? ― Como assim, Arion? Do que você está falando? Dion parecia extremamente confuso. Por um instante, houve um silêncio constrangedor e nós nos encaramos com os semblantes caídos. Pensei por alguns segundos no que estava acontecendo ao meu redor e no quão estranha era minha situação. Eu estava perdido. Se não começasse a confiar em alguém, eu não resolveria aquele problema e não conseguiria voltar para o internato tão cedo... Estava na hora de dizer a verdade, pelo menos para Dion.

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― Eu preciso falar uma coisa para você... Dion me encarou com o semblante ainda mais torto. Tentei não pensar na reação de Dion, procurando algo em que pudesse me focar senão o rosto do guerreiro. Senti-me corar. Eu estava prestes a falar a coisa mais idiota da minha vida e que, provavelmente, pareceria a mentira mais ridícula de todos os tempos. Respirei profundamente e soltei: ― Eu não sou um membro do Círculo. Ele olhou para mim desconfiado e sorriu em seguida:

― Jura? Eu nem desconfiava... ― debochou. ― Estava na cara, meu amigo... ― Mas tem mais uma coisa! ― interrompi com um grito, fazendo mais uma pausa; o próximo passo seria mais difícil. ― Você se lembra da garota que eu falei para você? Aquela que estava no Chafariz comigo? ― A desaparecida? ― Isso ― meu rosto parecia queimar cada vez mais. ― Então, ela e eu... Meu Deus, como eu posso falar? ― Que idiota eu era! ― Bem, nós não somos daqui, entende? ― Vocês não são deste reino? É isso? ― Não exatamente. Olha, vai ser um pouco difícil de acreditar, mas... ― Fale logo! ― Eu e aquela garota não somos desse mundo! Pronto, falei! Dion emudeceu-se e segundos depois caiu na gargalhada. ― Ah não, Arion, conta outra vai. Está querendo enganar a quem? ― ele secava as lágrimas de riso e segurava a barriga. ― Eu não estou querendo enganar ninguém, droga! É verdade, cara, você tem que acreditar! Ele terminou sua última gargalhada e olhou pra mim, como se estivesse percebendo que a “piada” não era bem uma piada. ― Você está falando sério? ― Nunca falei tão sério em toda a minha vida. Dion arregalou os olhos para mim, soltando um sonoro palavrão. Os outros guerreiros olharam para nós e eu dei um soco em Dion, desesperado para que ele calasse a boca: ― Como assim de outro mundo? ― ele sussurrou, tentando se conter. ― Isso é impossível! ― Eu sei, eu sei! Acha que já não pensei nisso? ― um pequeno desespero foi tomando conta de mim. ― Mas foi o que

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aconteceu! Numa hora eu estava no internato e no outro eu estava naquele portal lá em cima nas colinas. ― O Portal de Verique? ― Deve ser. ― Que loucura! ― ele riu. ― Pois é! Eu e essa garota, a Ana, estávamos brigando na Sala do Castigo... ― Sala de Castigo? É uma espécie de masmorra? ― Podemos dizer que sim. É bem parecido ― eu não pude deixar de rir. ― Nós estávamos lá e, sem querer, nós caímos nesse mundo maluco. Agora preciso encontrá-la, porque não posso ir embora e simplesmente deixá-la aqui sozinha. Eu a trouxe para cá, não intencionalmente, mas trouxe e tenho que levá-la de volta. ― E como vai sair daqui se você nem sabe onde é aqui. Você nem sabe como você veio parar aqui, Arion. A verdade me atingiu no estômago como um soco invisível. Olhei para Dion como se ele tivesse acabado de dar minha sentença de morte. ― Olha, se tudo o que você está me dizendo for verdade, você está muito perdido, Arion! ― É, eu percebi! Ao desabafar com Dion, eu me dei conta da dimensão do meu problema com aquele mundo, que envolvia uma guerra, um desaparecimento e um portal idiota, o qual funcionava quando bem entendia. Senti meu corpo pesado e desanimado e, sem força, desabei sobre as raízes grossas em que eu acordara há pouco tempo. Eu não sabia mais o que fazer. Sentia-me completamente sem saída. Dion caminhou lentamente até mim. ― Calma, cara, também não está tão ruim assim a sua situação. Pense pelo lado positivo: você poderia estar morto agora. ― Talvez fosse melhor. ― É, talvez, mas... ― ele bateu palmas e olhou para mim animado ― vamos fazer o seguinte: comecemos do princípio. Vou explicar basicamente como as coisas funcionam por aqui. Encarei-o completamente desinteressado. ― Olhe, como você já deve ter percebido, as nossas terras, ou mundo, como você preferir chamar, são divididas em três reinos: Havalis, que é o nosso reino, Verique e Galagar. Esses reinos são chamados de Trindade. Agora você me pergunta: por que três reinos, Dion, e não dois ou quatro? ― ele imitou uma voz

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de criança, irritante ― Bem, pois há milhões de anos atrás, três pessoas encontraram um livro enviado pelos Senhores do Tempo. Este livro concedeu a cada um deles um dom diferente, algo que ninguém possuía.

“Ao primeiro foi dado o dom do Corpo-fechado, dom que tornava o escolhido indestrutível. O possuidor do Corpo-fechado é capaz de resistir a temperaturas extremas e ainda batalhar como nenhum outro. É um guerreiro feito de aço. ’’ “O primeiro a possuir este Dom foi Galagar.” ― Quer dizer que eles são imortais, os que têm esse Corpo-fechado? ― Não, eu não disse que não morrem, disse que são resistentes. Eles suportam ferimentos melhores do que todos os outros, porém, são mortais como qualquer um. ― Hum... ― Bem, o segundo Dom foi dado à Verique.

“Verique recebeu o dom da Visão. Mas não a visão mixuruca que nós temos, mas algo diferente, algo muito melhor ― Dion sorriu. ― Aqueles que possuem o dom da Visão são capazes de enxergar através das paredes, das árvores e das pessoas. Dizem que são capazes de enxergar as almas, os espíritos e o futuro, mas eu ainda não encontrei alguém que me provasse isso, então... ― Enxergar o futuro? Isso é possível? ― Quando eu encontrar com alguém de Verique, eu aviso você, combinado? Soltei um pequeno sorriso. ― Por último, mas não menos importante, o dom da Fala. Como o da Visão, o dom da Fala é algo mais aprimorado do que a linguagem que as pessoas comuns usam em seu dia-a-dia. Aqueles que possuem o dom da Fala são capazes de reproduzir qualquer tipo de língua, seja ela escrita ou falada. Nós somos uma espécie de “copiadores” da fala alheia, entende? E isso se estende aos animais, plantas e outros seres que possam se comunicar... ― É por isso que Caça-lobos estava conversando com aquela águia? Ele tem o dom da Fala, é isso? ― Exatamente. Todos nós aqui temos esse dom ― Dion orgulhou-se. ― Somos todos descendentes de Havalis, o primeiro a ter o dom da fala.

Eu balancei a cabeça e demonstrei que havia compreendido o que o guerreiro havia me dito. Logo em seguida, ele prosseguiu com seu tom de contador de histórias:

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― Depois que os três Escolhidos conseguiram cada um o seu dom, eles se separaram, criaram seus próprios reinos e passaram seus poderes de geração em geração. E só. Fim. ― Então você é um dos descendentes de Havalis, é isso? ― Exato. ― Mas porque o seu rei quer tanto invadir os outros dois reinos? Sempre houve batalhas assim entre a Trindade? ― Não, quase nunca. É raro quando o poder sobe à cabeça dos governantes. Até o reinado de Gorffic III, o pai de Skan, tudo estava correndo em paz. Mas Skan assumiu o trono e agora quer poder. Quer dominar os outros dois reinos a todo custo. ― Mas ele é poderoso assim? Skan é capaz de destruir o império de Verique e Galagar? ― Antigamente não. Antes ele era apenas um possuidor da Fala, como qualquer um, mas agora... Você viu os poderes dele ontem, não viu? Nós nunca havíamos visto nada comparado àqueles Caçadores de ontem. Aquilo é feitiçaria, Arion, Magia Negra. Se ele dominar todos os reinos, tudo será engolido por uma interminável escuridão e nós entraremos numa Era de Trevas. ― Agora eu entendo a preocupação do Círculo. Eu não sabia o quanto Skan era perigoso. ― Pois é, mas... ― Escutem. ― Caça-lobos falou bem próximo de nós, interrompendo-nos. ― Pluma trouxe uma notícia importante. Eu levantei-me e procurei observar Caça-lobos. Ele terminara de fumar seu cachimbo e agora estava no meio do grupo, com a grandiosa Pluma ao seu lado, de forma imponente. ― Pluma me disse ― Caça-lobos disse lentamente ― que os Guardas estão levando alguns prisioneiros para as masmorras, passando pela floresta. Engoli em seco. Uma pequena chama acendeu-se em meu interior, queimando-me: Será que Ana estava entre os prisioneiros? Dion olhou para mim. O mesmo pensamento havia lhe ocorrido com certeza. ― Eu andei pensando e decidi que não quero ficar parado. Eu gostaria de saber se algum de vocês se opõe a um resgate? O grupo se entreolhou. Eu não esperava outra atitude de Caça-lobos. Apesar de ainda sentir certo arrepio ao encarar a cicatriz em seu rosto, Caça-lobos me parecia um homem bom. Seus olhos tinham algo diferente quando encarava as pessoas ao seu redor, algo que eu não sabia explicar. Poderia dizer que era um

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olhar generoso. Um resgate era o mínimo que eu esperaria do líder do Círculo e era tudo o que eu precisava. O destino me colocou no caminho de Ana sem que eu agisse. ― Você sabe que estou com você, não é? ― Nômos manifestou-se. ― Pode contar comigo também ― disse Tumilínea. ― Mas e Laila? ― indagou Caça-lobos a ela. ― O ferimento dela já foi fechado ― Tumilínea justificou-se ― Tevor cuidará dela. Não vou deixar você sozinho.

― E vocês dois? ― Caça-lobos olhou diretamente para nós. ― Estou nessa ― falei sem hesitar. Dion confirmou com a cabeça a sua participação. ― Heivier, você poderia levar Laila e Tevor para a sua casa?

Ela poderia se recuperar melhor lá. ― Não há problema algum. Eu me encarregarei de protegê-

los ― respondeu Heivier imediatamente. ― O.k., muito bom. Assim que libertarmos os prisioneiros,

seguiremos para lá. Prepare alguns mantimentos e cavalos. Da sua casa, partiremos para Comoska, a capital do reino de Galagar.

― Então o plano de acabar com Skan ainda está de pé? ― perguntou Heivier.

― Eu não descansarei enquanto não tiver impedido Skan de destruir a Trindade. Todos estão de acordo?

Cada um concordou em seu canto. De um jeito estranho, o grupo parecia bem mais forte agora.

― Preparem suas armas então, partiremos assim que todos estiverem prontos ― e dizendo isto, começou a afiar sua espada.

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O CÍRCULO EM BATALHA

Eu já estava me acostumando com aquele lugar. Um frio na barriga apossou-se de mim quando Dion

entregou-me novamente uma de suas espadas curvadas. Ele olhou-me preocupadamente desta vez:

― Tem certeza que quer fazer isso? ― ele me lembrou Greg quando disse isso.

― Tenho. Eu preciso resgatá-la. E eu já briguei algumas vezes no internato e sei acertar uns golpes legais. Não sou tão bom quanto vocês, mas acho que consigo me manter vivo.

― Mas você nunca pegou numa espada! Não é tão fácil quanto você pensa.

― Darei meu jeito. O que não posso fazer é ficar parado aqui enquanto Ana corre perigo por minha causa.

Eu não estava querendo bancar o heroi; realmente eu me sentia culpado pela captura de Ana. Se eu não tivesse entrado no Chafariz, talvez nada daquilo estivesse acontecendo.

― Prontos? ― perguntou-nos Caça-lobos. Nós balançamos a cabeça afirmativamente. ― Ótimo. Vamos partir então. Caça-lobos desembainhou sua espada e Pluma levantou

vôo esticando suas asas branquíssimas e fazendo um grande estardalhaço com as folhas secas.

― Ela irá nos mostrar o caminho. Venham! Caça-lobos iniciou a caminhada e o restante do grupo

seguiu em seu encalço. Quando dei o primeiro passo senti meu estomago revirar. O nervosismo me consumia ferozmente.

Seguimos bem atrás de Tumilínea. Por algum motivo, Dion estufou o peito e ajeitou seus cabelos negros quando a formosa guerreira passou ao nosso lado.

Logo que ela passou por nós, encarei Dion curioso: ― Ela é linda, não é? ― ele comentou, quando Tumilínea

estava a uma distância considerável. ― Sim, ela é ― eu disse sem pensar.

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Dion tinha a expressão um tanto quanto idiota. Olhava para as pernas torneadas de Tumilínea e seu queixo caía debilmente, enquanto a baba escorria pela beirada.

― Ela é demais! Não existe uma mulher mais linda que ela. ― Se você está dizendo... Você quer que eu arranje um

babador? ― sorri. ― Não seja idiota, Arion! ― comentou, limpando o queixo.

― Escreva o que estou lhe dizendo: essa mulher ainda vai ser minha, mais cedo ou mais tarde.

― Claro... ― debochei. ― Acorda, Dion! Está na cara que você não faz o tipo dela! Ela deve gostar de homens mais velhos, sei lá, como o Caça-lobos ou o Heivier.

― Não adianta, Arion, eu não vou desistir! ― Dion disse sonhador. ― Ainda vou me casar com essa mulher e você vai ser testemunha.

― O.k., vou acreditar. Mas veja se para de babar em cima de mim, está bem?

A caminhada pela floresta foi calma e silenciosa. A lua

ainda brilhava sobre as árvores e iluminava a trilha estreita traçada por Pluma. Dion continuou a admirar sua musa de longe e ora e outra falava da sua paixão por ela e sobre os planos que fazia para quando se juntasse à guerreira. Eu me sentia bem menos apreensivo quando Dion falava sobre assuntos não-relacionados à batalha iminente.

― Porque os Guardas estão ao lado do rei, afinal? Pelo que eu entendi, o povo de Havalis é um povo pacífico, não é? ― perguntei a Dion, em certo momento da caminhada ― Porque os Guardas querem tanto entrar nessa guerra também?

― Pelo que sabemos, Skan fez a cabeça dos Guardas e convenceu a todos de que ele é o heroi da história. Disse que o povo de Havalis sempre foi menosprezado pelos outros reinos e que estava na hora de mostrar o quanto éramos fortes. Idiota! Skan preparou tudo tão bem que o povo de Mustor acredita estar defendendo o reino, sendo que na verdade estão todos marchando direto para a morte.

― E é por isso que o Círculo quer avisar aos reinos vizinhos ― eu deduzi. ― Agora eu entendo. Vocês querem abrir os olhos do povo para a verdade.

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― Exatamente. O povo de Havalis nunca foi um grupo violento, pelo contrário, nós sempre pensamos muito antes de sair por aí arrancando a cabeça dos outros.

― O problema é que Skan não pensa assim. ― Pois é ― Dion suspirou, terminando a conversa de

forma perturbadora. Caminhamos cerca de uma hora até que Caça-lobos

determinou a parada. Na sequência, pediu que fizéssemos silêncio e indicou algo mais à frente: com certeza nossos inimigos.

Apertei com força a espada de Dion e respirei fundo. Minha mão suava e tremia, mas não era hora para fraquejar. Endireitei o corpo e caminhei entre os outros guerreiros, todos silenciosos, até alcançar a abertura nas folhagens, onde Caça-lobos espiava uma luz alaranjada tremeluzente.

Logo mais adiante, no centro de uma clareira sombria, eu pude reconhecer um pequeno acampamento. Duas gigantescas barracas de tecido haviam sido armadas entre as folhas secas e a grama, e cerca de dez Guardas estavam em volta de uma fogueira assando um grande cervo. Todos vestiam as mesmas capas roxas, falavam alto e entornavam um líquido marrom das canecas em suas mãos: estavam beirando a embriaguez. Notei que haviam se livrado das botas e dos escudos e as espadas repousavam num canto próximo às barracas. Estavam desarmados.

Procurei por mais inimigos à volta. Não havia mais do que aqueles poucos Guardas e não percebi qualquer sinal de que outros poderiam chegar de surpresa. Talvez tivéssemos uma pequena vantagem, mas teríamos que aproveitá-la bem ou o plano iria por água abaixo. Mas onde estariam os prisioneiros?

― Veja ― a voz de Caça-lobos saiu ao meu lado. Meus olhos correram por toda a clareira. Abafei um

palavrão quando eu os vi. À cerca de cinco metros, preso numa enorme jaula de

metal retorcido, havia um pequeno grupo de pessoas. Dentre os prisioneiros estava uma menina de longos cabelos loiros e atrapalhados, completamente imunda e de vestido vermelho-sangue. Ela olhava emburrada para os Guardas.

Ana falava sem parar com os Guardas, exasperada, enquanto eles a olhavam impacientes:

― Vocês sabem com quem estão lidando? ― ela dizia ― Meu pai acabaria com vocês num piscar de olhos! Se vocês não me

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soltarem imediatamente eu vou ligar para ele e contar tudo o que vocês estão fazendo! SOLTEM-ME AGORA!

― CALA A BOCA! ― um dos Guardas gritou, perdendo a paciência. ― Você não para de falar um minuto sequer? Olhe, se você continuar tagarelando, garotinha, vou cortar a sua língua fora!

― Há-ah ― Ana não se intimidou. ― Quero ver você tentar alguma coisa contra mim, seu imbecil, eu acabo com você em menos de dois segundos! Você não vai conseguir trabalhar nem num bar de copo sujo!

Eu não sabia se ria ou se chorava com toda a situação. Como ela conseguia falar tudo aquilo? Será possível que ela ainda pense que está sonhando?

― Do que você está falando? ― disse o Guarda confuso. ― Por acaso você é surdo também? Ou fugiu da escola? Eu

detesto gente idiota! Preste atenção: EU-QUERO-IR-PARA-CASA! Caça-lobos puxou-me e me virou para o grupo. Por um

instante, eu havia me esquecido do restante do grupo às minhas costas. Eu havia encontrado Ana!

― Precisamos nos organizar ― comunicou Caça-lobos, encarando-nos. ― Vamos nos separar e aproveitar o descuido do inimigo e pegá-lo desprevenido.

Todos olhavam para Caça-lobos com os olhos vidrados. Eu sentia o nervosismo emanando não só de mim, mas do grupo inteiro. Era uma sensação estranha, devo admitir, uma mistura de medo e euforia, como quando você esta prestes a entrar na maior montanha russa do mundo.

― O que vamos fazer então? ― sussurrou Tumilínea. Nem preciso mencionar que Dion suspirou ao ouvir a voz

da musa. ― Façamos o seguinte: Eu, Tumilínea e Dion vamos atacar

os Guardas ― ele falava e apontava para cada um de nós ― enquanto Arion e Nômos libertarão os prisioneiros. Nós vamos distraí-los ― Caça-lobos dirigiu-se a mim e a Nômos em seguida ― e vocês têm que ser ágeis e tirar os prisioneiros do campo de batalha, entenderam?

Acenamos com a cabeça afirmativamente. ― O.k. Preparem suas armas ― Caça-lobos puxou sua

espada. ― Vamos fazer um pouco de barulho. E com um grito ensurdecedor, Caça-lobos saiu da mata e partiu para o ataque. Dion girou sua espada curvada e seguiu no

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encalço do líder. Tumilínea esticou a corda de seu arco e, dali mesmo onde se encontrava, acertou um dos Guardas na cabeça. Uma grande algazarra começou. Os Guardas levantaram-se bêbados e assustados, procurando pelas armas distantes. Antes que a maioria pudesse alcançá-las, Caça-lobos já rodopiava com sua espada reluzente e atingia-os com golpes mortais. O grande Nômos fez um sinal com a cabeça para mim e nós nos esgueiramos por entre a mata contornando a clareira a passos rápidos. Caminhamos sorrateiramente, indo ao encontro da jaula onde se encontravam os prisioneiros, a alguns metros de nós. Enquanto isso mais gritos ecoavam no campo de batalha. Agora, os Guardas já haviam recuperado suas espadas e duelavam contra o trio, que lutava bravamente, sorrindo, mostrando um desempenho incomparável. Dion manejava a espada como ninguém; seus ataques eram tão velozes que os inimigos mal podiam enxergar seus movimentos. Tumilínea abandonara seu arco e lutava com duas grandes adagas prateadas; era ágil, mas não como Dion, porém seu desempenho com golpes era fantástico, atingindo o inimigo com chutes altos e intensos. Mas nenhum deles comparava-se a Caça-lobos. O líder do Círculo lutava com três Guardas ao mesmo tempo. Sua espada cortava o ar com um sonido metálico, assustando aos inimigos enquanto atingia-os com socos e chutes velozes, que os derrubava no chão, momento do qual ele se aproveitava para aplicar o golpe fatal com a espada. Era incrível! Eu mal podia acreditar no que via. Nômos e eu alcançamos os prisioneiros e eles nos olharam entusiasmados quando nos aproximamos lentamente. Ana soltou um grito ao me ver, mas não era de felicidade: ― Finalmente você veio me soltar dessa coisa. Já estava a ponto de ligar para o meu pai! ― Quer ficar quieta? Já estou aqui, não é? ― retruquei. Eu havia me esquecido do quanto Ana era irritante. ― Não vejo a hora de acordar disso tudo. Esse sonho está demorando demais! Nômos passou à minha frente e desembainhou sua espada. Com um golpe certeiro e um grito histérico de Ana, as correntes que prendiam a jaula foram partidas e os prisioneiros saíram rapidamente de seu interior. ― Os prisioneiros estão fugindo! ― um dos Guardas gritou a distância.

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Olhei assustado. Ana veio ao meu encontro e ordenei a ela que se escondesse com o restante do grupo de fugitivos. ― Você não me manda, está bem? ― ela reclamou. ― Ana, se você ainda não percebeu: ISSO NÃO É UM SONHO! Pessoas morreram realmente no Chafariz. Aqueles caras ― eu apontei para dois Guardas que vinham em nossa direção, furiosos ― estão vindo para nos matar! Ou você sai daqui de uma vez ou eles vão arrancar sua cabeça fora! Ana me encarou por um instante, ainda relutante, mas depois virou o nariz empinado para o outro lado e correu atrás dos outros fugitivos, adentrando a espessa mata. Virei para a batalha e, antes que pudesse fazer outra coisa, um dos Guardas atacou-me com a espada. Levantei a curvada de Dion e defendi o golpe, sem jeito. Cambaleei e esperei o próximo ataque. Como era pesada a espada! Eu sentia muita dificuldade em erguer todo aquele metal e minha mão suava muito. Dion tinha razão: não era uma coisa fácil de se fazer. O Guarda investiu contra mim mais uma vez e eu me defendi novamente, mais vacilante ainda. Eu não estava preparado! Se continuasse a receber os ataques do Guarda, eu acabaria morto. Não havia outra maneira, eu teria que atacar. Levantei o mais alto que pude a espada e parti para cima do Guarda. Ele não ficou esperando o meu golpe, pelo contrário, também começou a correr ao meu encontro aos berros.

As duas espadas se chocaram. Fagulhas douradas brilharam na escuridão. O Guarda apoiou seu corpo sobre sua arma tentando ganhar espaço sobre mim. Ele tinha anos de experiência com aquilo, mas eu não desistiria. Movi os calcanhares numa desesperada tentativa de conseguir mais força nos pés, mas a manobra não funcionou como eu queria: o Guarda, com todo o seu peso, veio para cima de mim, ao mesmo tempo em que eu tropecei nos meus cadarços; eu demorei instantes para perceber o que acontecia: num momento eu caía desajeitado no chão, segurando firme o punho da espada, e, no outro, o Guarda caía sobre a minha lâmina com um forte baque surdo.

Um momento depois, ele desabou sobre mim, morto.

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A AMEAÇA

Toda a minha blusa estava suja de sangue. Empurrei o corpo do homem para longe e me arrastei por

alguns centímetros. O rosto do Guarda girou bambamente para o meu lado e seus olhos petrificados me encararam, sem qualquer brilho.

A batalha continuava ao meu redor, mas, de repente, tudo parecia ter se tornado completamente silencioso. Minha respiração estava ofegante e minha pulsação acelerada.

Eu havia matado aquele homem. Eu havia matado aquele homem. Eu havia matado aquele homem. Eu havia matado aquele homem. Por algum motivo, eu não podia desviar o olhar daqueles

olhos azuis sem vida, envoltos numa cabeleira ruiva imunda e cobertos de filetes de sangue espesso. Senti-me estranho. Senti como se o chão aos meus pés estivesse desaparecendo, enquanto o ar comprimia meus pulmões sem piedade.

Larguei a espada com rapidez e a olhei com repugnância, como um objeto que não deveria ser visto por ninguém, muito menos por mim. Tentei limpar o sangue das minhas mãos no jeans, mas o vermelho parecia ter se fundido à minha pele.

Minha respiração estava cada vez mais rápida. Esfreguei meus dedos na relva e depois na terra úmida, até que atingi as pedras mais rasas e minhas mãos começaram a sangrar. Eu precisava limpar o sangue, precisava me livrar do sangue do Guarda...

Levemente, uma mão repousou sobre o meu ombro e eu me virei com agilidade, o coração batendo célere no peito. Dion olhava para mim assustado:

― Você está bem?

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Gaguejei. As palavras saíram sem sentido. Meus olhos passavam rápidos do rosto do guerreiro para a minha mão em carne viva.

― Vamos, levante-se ― Dion ergueu-me, enquanto falava ― A batalha terminou. Um dos Guardas fugiu e deve buscar reforços. Precisamos ir.

Ele apanhou sua espada ensanguentada e eu me deixei ser guiado. O corpo do Guarda ficou para trás, mas seu rosto imóvel e seus vítreos olhos azuis ficaram gravados em minha mente. Não sei como ou por quanto tempo caminhamos floresta adentro. Tudo estava muito estranho ao meu redor, lento e embaçado, como se meus olhos estivessem cobertos por um vidro empoeirado. Dion tentava conversar comigo e eu tentava entendê-lo, mas minha mente estava desorientada e vaga.

Em certo momento, os fugitivos se juntaram ao grupo – eram cerca de dez ou doze – e iniciaram uma conversa particular com Caça-lobos. O líder do Círculo sorriu tristemente para o grupo, colocou a mão sobre os ombros de um dos fugitivos e balançou a cabeça afirmativamente. Minutos depois, o grupo se afastou dos membros do Círculo, desaparecendo em meio à mata e eu percebi que eles estavam desistindo de toda aquela loucura. Estavam voltando para casa. Uma dor irrefreável queimou meu peito. Como eu queria voltar para casa...

Ana voltara ao grupo e não conseguia se manter quieta. Reclamava como se eu a tivesse abandonado no Chafariz de propósito e culpava-me por a gente estar perdido naquele mundo horrível. Sua voz era estridente e ecoava pela mata, atingindo meu cérebro como pequenas agulhas em brasa, fazendo minhas têmporas saltarem dolorosamente. Eu não conseguia pensar, não conseguia respirar. Eu havia matado um homem e ninguém fizera nada comigo! Por quê? Por que ninguém me batia, xingava, humilhava ou sequer olhava? Afinal, matar era errado, não era?! Por que então eu não era castigado? Por que eu havia tirado a vida daquele homem e nada de ruim acontecera comigo? Por quê? Por que ninguém me respondia?! Por quê?!

Desabei no chão úmido. ― Arion, cara, você está bem? ― Dion veio às pressas,

enquanto me olhava apreensivo.

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― Eu o matei, Dion... Eu o matei... EU O MATEI! ― Minha voz subiu rapidamente até tornar-se alta o suficiente para chamar a atenção de Caça-lobos.

No mesmo instante, todos pararam a caminhada e me olharam. Tumilínea, com seu rosto marcado com alguns cortes, encarou-me com pena. Caça-lobos cortou o espaço entre os demais e veio até mim a passos rápidos:

― Qual o problema? Eu olhava para baixo. Notei que minhas mãos

continuavam vermelhas e pequenas gotas de sangue escureciam sob minhas unhas. Um silêncio pesava ao meu redor, tornando aquela cena ainda mais humilhante. Sem qualquer movimento brusco, Caça-lobos afastou Dion e agachou-se ao meu lado com a respiração bem próxima ao meu rosto:

― Você está bem? Balancei a cabeça num falso consentimento. Eu sentia o

olhar de Caça-lobos repousar sobre minha cabeça e fitar-me. Talvez fosse melhor que eu me calasse de uma vez por todas, afinal todos ali tinham problemas e ninguém estava agindo como eu. Ninguém estava fazendo papel de covarde:

― Tem certeza que você... ― Estou ótimo ― eu disse secamente, interrompendo

Caça-lobos. ― Eu só tropecei. Vou ficar bem. Podem ir. Por um instante eu achei que Caça-lobos fosse me acertar

com um soco, mas ele apenas se levantou e seguiu seu caminho. O restante do Círculo continuou em seu encalço, sem qualquer comentário:

― Você está bem mesmo, Arion? Pode falar comigo se... ― Já disse que estou bem ― eu respondi a um Dion

preocupado e pálido. ― Vamos continuar. Dion não insistiu mais. Virou as costas e seguiu em frente

sem demora. Ele também não precisava ser envolvido no meu problema. Ninguém precisava.

Ao meu redor, as pessoas estavam quietas e satisfeitas com

o resultado da batalha. Caça-lobos e Tumilínea tinham leves esfoliações no rosto e no corpo, Dion tinha um corte no braço e Ana estava apenas um pouco mais descabelada.

Meu relógio apitou indicando nove da manhã. ― Droga! ― resmunguei. ― O que foi? ― Ana falou ao meu lado.

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― Meu relógio. Acho que quebrou. ― Por quê? Não está mostrando as horas? ― Mostrando está, mas está marcando nove horas. Não

pode estar certo, ainda está de noite! ― É nisso que dá comprar relógio vagabundo. É por isso

que meu pai não compra nada no país. Tudo estraga! Mas é claro, a sua família não teria dinheiro para comprar coisas no exterior...

― Quer saber, Ana... ― O quê? ― Vai para o inferno. Após meia hora de uma silenciosa travessia pela floresta, a

voz do líder do Círculo finalmente chegou aos meus ouvidos trazendo boas novas:

― Estamos chegando. Na verdade, eu não fazia ideia de onde poderíamos estar

chegando, mas só o fato de já estarmos nos aproximando de um lugar fora daquele matagal já me rendia alguma esperança. Logo o cenário começou a mudar. Depois de poucos minutos, a mata começou a se abrir, tornando a noite mais clara. Uma sombra gigantesca surgiu a alguns metros de nós.

― É ali ― comentou Caça-lobos em voz baixa. Estiquei o pescoço para tentar enxergar melhor o que havia

mais a frente, mas não consegui entender o motivo de tanta alegria por estarmos chegando naquele lugar.

Uma grande construção foi tomando forma à nossa frente. Sobre a relva coberta de neve derretida e lama, uma pequena cabana, feita de madeira escura e coberta por musgo, erguia-se bem no centro de uma clareira.

― Onde estamos? ― perguntei a Dion. ― Eu não sei. Nunca vim aqui. Aproximamo-nos do casebre abandonado. Quanto mais

me aproximava da cabana, mais ela se tornava assustadora. Suas janelas estavam quebradas, fechadas com tábuas tortas; teias de aranhas cobriam todos os cantos visíveis e alcançáveis e a podridão da madeira emanava um cheiro fétido. Uma luz fraca e tremeluzente, de tom alaranjado, atravessava uma das janelas e cortava o negrume da noite. Seria impossível alguém viver em tais condições.

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Caça-lobos parou em frente à porta da pequena choupana e a esmurrou. Nesse instante, até Ana calou-se e resolveu aguardar, junto com o restante do grupo, o próximo passo do líder.

― Quem é? ― uma voz grave gritou de dentro da cabana fantasmagórica.

― Não vou dizer quem eu sou! Abra já esta porta. ― foi a resposta de Caça-lobos.

― Ele é louco?! ― sussurrei para Dion, que também estremeceu com a resposta do guerreiro.

Foi um segundo tenso em que aguardamos. Juntos, eu, Ana e Dion, prendemos a respiração.

Houve um clique metálico na porta e, com um rangido, a porta se abriu, lentamente, libertando mais um feixe de luz mórbida. Um rosto pálido apareceu na fresta, sorrindo:

― Que bom que se lembrou da senha. O rosto de Heivier iluminou-se quando a porta foi

escancarada. ― Eu nunca me esqueceria dela. ― Caça-lobos respondeu,

cumprimentando o anfitrião. ― Bem - vindos ao meu humilde lar. ― Heivier disse,

abrindo um sorriso, enquanto caminhávamos para o interior da cabana com algum tumulto. Ana fazia cara de nojo ao meu lado.

O primeiro cômodo com o qual nos deparamos foi uma ampla sala de estar, com o chão de tábua encardida e as paredes úmidas e escuras. Dois sofás estavam num canto, cobertos por um lençol, entre eles uma mesinha de centro e, no canto esquerdo, uma estante com garrafas empoeiradas.

Tevor surgiu de uma das portas que cercavam a sala, com a expressão cansada e os cabelos grandes e loiros bem atrapalhados:

― Então, deu tudo certo? ― ele perguntou a Caça-lobos, assim que o cumprimentou.

― Tudo certo. ― Mas então, onde estão os prisioneiros? Não conseguiram

libertá-los? ― Conseguimos, claro, mas eles não quiseram nos

acompanhar. Desistiram da missão ― Caça-lobos se jogou desanimado em um dos sofás.

― Não acredito. Aqueles covardes! Como puderam? Depois de vocês terem arriscado a vida para salvá-los.

― Eu não posso culpá-los, Tevor. Só estão querendo salvar suas vidas. Não podemos culpá-los por isso.

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― Mas se não nos ajudarem, eles vão morrer do mesmo jeito! Será que eles não entendem isso? ― desabafou Tevor, as têmporas já saltando.

― Eu não podia impedi-los ― foi a conclusão de Caça-lobos e, por um instante, ele apenas encarou o vazio e acariciou sua cicatriz. Em seguida voltou-se pra Heivier: ― E como anda nossa fuga? Já está tudo preparado para partirmos?

― Tudo pronto ― respondeu Heivier. ― Os mantimentos estão prontos e os cavalos já estão selados. Podemos partir a hora que você quiser. Na verdade, só estávamos esperando a sua volta.

― E Laila, como está? ― Tumilínea perguntou a Tevor. ― Está bem. Ela já comeu e está bem melhor agora. ― E ela irá conosco? ― Sim. Ela disse que se sente bem e que não vê problemas

em nos acompanhar. ― Ótimo ― disse Caça-lobos, erguendo-se do sofá. ―

Daremos um tempo para que todos descansem e partiremos daqui a algumas horas. Aproveitem para encher seus cantis com água e colocarem os pés para cima... A viagem será longa! ― Eu não vou a lugar algum! Eu senti um arrepio quando eu ouvi essas palavras. Torci com todas as minhas forças para que meu ouvido tivesse se enganado e que a voz, ainda ressoante na sala, não fosse a de Ana. ― O que você disse, garotinha? ― perguntou Tevor surpreso. ― Foi o que você ouviu. Eu não vou a lugar algum com vocês. Eu vou para casa! ― Ana disse decidida, cruzando os braços em torno do peito. Todos olharam para ela com curiosidade e espanto ao mesmo tempo. ― E você é...? ― Ana Maia Calegari. E quero que um de vocês me leve imediatamente para casa.

Eu juro que tentei me esconder atrás do sofá neste instante. O que ela estava fazendo? ― Muito bem, senhorita Ana, ― começou Caça-lobos calmamente, tentando esconder um pequeno sorriso. ― e onde exatamente você mora? ― Ora, eu moro na minha casa! No Rio de Janeiro. ― É, por acaso, perto do Rio Ordephox? ― perguntou Tevor, debochado.

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― Não! Olha, eu não sou desse país! Nem sei como vim parar aqui! Eu só quero ir para casa! Alguém sabe como funciona aquele tal portal lá no morro? Caça-lobos ergueu uma sobrancelha e encarou a menina interessado. ― Portal? De que portal você está falando? ― O Portal de Verique ― interrompeu Dion. Eu olhei para ele assustado. Todos agora passavam os olhares de Ana para Dion esperando por uma explicação. Dion olhou para mim e sussurrou um desesperado “Conta logo!”. ― Você quer dizer algo, rapaz? ― perguntou-me Caça-lobos. Meu coração acelerou. Os vários olhares viraram-se todos para mim, esperando uma explicação que, com certeza, faria com que me chamassem de louco. O que eu faria agora? Dion fazia gestos com a cabeça me encorajando, mas Tevor tinha a mesma expressão de quando me enforcara na floresta... Droga! Por que Ana tinha que abrir a boca? Mas, pensando bem, aquela situação não poderia continuar! Até quando eu mentiria para eles? Não duraria muito a história de que eu salvara a vida de Caça-lobos e, mais cedo ou mais tarde, começariam as perguntas... Ah! O que poderia acontecer de mais, afinal? Eles não me matariam... Dion e Caça-lobos não permitiriam... Mas de que adiantaria? ― Está bem ― eu disse desanimado. ― Eu e ela ― apontei para Ana ― não somos membros do Círculo. ― Eu sabia! São espiões! Temos que matá-los... ― começou Tevor, já levando sua mão ao punho da espada presa à cintura. ― Calma, Tevor – Caça-lobos falou. ― Deixe o garoto se explicar. Então eu desabafei. Comecei contando que não éramos daquele mundo (isso causou um ataque de risos em Heivier e Tevor) e que havíamos sido sugados para ali de alguma forma pelo Portal de Verique. Em seguida, expliquei como ficamos perdidos na neve e como vimos a entrada de Caça-lobos e Dion no Chafariz... ― Depois disso, aconteceu aquela invasão e eu fiquei preso a toda essa confusão ― concluí. Um silêncio tomou conta do lugar. ― É verdade ― intrometeu-se Dion. ― Ele me contou tudo lá na floresta. Ele só estava no lugar errado, na hora errada... Além de ser um grande idiota por ter se metido onde não era chamado.

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Eu dei uma cotovelada no braço de Dion. ― Então quer dizer que vocês não são desse mundo, é isso? ― perguntou Tumilínea atordoada. ― É. Mas não sei mesmo como viemos parar aqui! Uma hora estávamos lá e depois estávamos com a cara enterrada na neve! ― eu comentei. ― Isso é muito estranho ― falou Caça-lobos do seu canto. ― Há milhões de Eras que aquele portal está lá e não tenho notícias de algo semelhante ter acontecido. ― Mas vocês realmente estão levando essas crianças a sério? ― debochou Tevor. ― É obvio que estão mentindo. Veja a cara daquela dali: é quase uma miniatura do Skan. ― Por acaso está falando de mim? ― estourou Ana. ― Não ouse falar mal de mim, está bem? Meu pai acaba com você num minuto. ― Há-há, como é pretensiosa, garota. Você não é nada... ― Já chega Tevor! ― disse Caça-lobos, visivelmente perdido diante daquela situação inesperada, passando seus olhos de Ana para mim, sem parar ― Eu não sei o que fazer com vocês. Não posso levar duas crianças que mal sabem lutar para uma viagem como essa. ― Não tem um jeito de mandá-los para casa? ― indagou Tumilínea. ― Eu não sei... ― Que tal procurarmos um feiticeiro? ― sugeriu Heivier. Todos olharam para ele. ― Feiticeiros não são confiáveis ― comentou Tevor. ― Mas nós conhecemos um que poderia nos ajudar, não é Iam? ― Quem é Iam? ― sussurrei para Dion. ― É o Caça-lobos. Achou que ele se chamava Caça-lobos? Hunf. Que mãe colocaria um nome desses no filho? É verdade. Pensei. Mas Arion não era um nome muito comum... ― Você está falando de Aedim, o mago da floresta de Ernuth? ― perguntou Caça-lobos, dando continuidade à discussão. ― Sim. Talvez sendo um mago, ele consiga mandá-los de volta para casa, isto é, se eles estiverem dizendo mesmo a verdade. ― É, talvez... ― Caça-lobos parecia considerar a ideia. ― Além do mais, a floresta de Ernuth fica bem próxima da cidade de Comoska. Eles poderiam ir conosco.

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― Eu não sei... ― ele coçou a cabeça, atrapalhando ainda mais seus cabelos negros ― a viagem é muito perigosa. São leigos em batalhas, não sei se posso arriscar. ― Acho que eles só irão atrapalhar ― resmungou Tevor, nos olhando com desprezo. ― Nem ao menos sabem pegar numa espada!

― Mas Arion já batalhou com a gente. Você viu, Caça-lobos! ― intrometeu-se novamente Dion ― E se os treinarmos no caminho, tenho certeza de que poderão se virar muito bem nas batalhas. ― Isso é verdade ― a voz de Nômos surgiu pela primeira vez na conversa, soando sobre todas as outras. ― Eu estive com o garoto em batalha. Ele não é tão idiota assim. Posso ensiná-lo algumas coisas. Eu não sei se deveria agradecer ou xingar Nômos pelo “não tão idiota”.

― Por que não deixa que eles decidam, Iam? ― propôs Heivier. ― É uma boa ideia ― concordou Tumilínea. ― Estamos aqui discutindo o destino dos dois e nem sabemos se eles querem ir conosco.

― Muito bem ― disse Caça-lobos por fim. ― Que os garotos decidam então. Afinal, eles já devem conseguir tomar suas próprias decisões.

Um silêncio engoliu a sala e todos os rostos se viraram para nós. Eu olhei para Ana, nervoso; ela também parecia incomodada com a súbita atenção dirigida a ela.

― E aí? ― perguntei receoso. Eu não sabia o que eu queria. Ao mesmo tempo em que

desejava ardentemente voltar para casa, eu não queria continuar participando daquela guerra... Daquela loucura... Daquelas mortes. O rosto do Guarda veio à minha cabeça e eu tentei afastar rapidamente essa imagem da minha mente, voltando a fitar o rosto de Caça-lobos, que olhava para mim curioso. Eu não queria matar uma pessoa novamente... Quando destruí o Caçador foi diferente... Ele não era bem uma pessoa...

― Eu quero ir. A voz de Ana saiu muito segura ao meu lado. Olhei para

ela e seus olhos azuis brilhavam de tal forma que eu, por um instante, achei que tinha ao meu lado uma pessoa diferente.

― Você tem certeza? ― perguntou Caça-lobos.

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― Tenho. Se for o único jeito de eu sair desse hospício, eu vou com vocês.

― E você, Arion? ― Dion perguntou-me. Olhei à minha volta. Todos me observavam e aguardavam

a minha resposta... A minha resposta. Pela primeira vez, eu poderia decidir o meu destino e não culparia meus pais, meus amigos ou qualquer outra pessoa pelas consequências que dali viriam. Era minha escolha...

― Eu vou. Dion abriu um grande sorriso e deu um pequeno tapa em

minhas costas. ― Muito bem. Está decidido. Assim que chegarmos a

Comoska levarei vocês até a floresta de Ernuth ― anunciou Caça-lobos. ― Agora o melhor que podemos fazer é descansar.

Os membros do Círculo se dispersaram e Dion veio me cumprimentar.

― Ainda bem que você ficou, cara! Essa viagem vai ser muito divertida! ― Eu não tenho certeza se “divertida” é a palavra certa. ― Relaxa! Vai dar tudo certo! Depois de mim, é claro, Nômos é o melhor guerreiro do Círculo. Ele é muito forte! Um tempo treinando com ele e você vai se tornar um excelente guerreiro! ― Se você está dizendo... ― Hei, você! Nós olhamos para trás e Ana apontava para Dion com um ar superior. ― Está falando comigo, senhorita? ― perguntou Dion, assumindo uma pose galante, estufando o peito e passando a mão nos cabelos. ― Onde posso encontrar uma ducha quente por aqui? ― Ducha?

Dion olhou para mim confuso e eu dei de ombros, sorrindo. Aquela seria a viagem mais estranha da minha vida. ...

Comecei a explorar a pequena casa de Heivier. Saí da sala de estar e caminhei em direção à primeira porta

que surgiu à minha frente, deparando-me com a cozinha. Uma pia de pedra erguia-se no meio do cômodo mofado e, sobre ela, uma

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vela de chama bruxuleante iluminava as paredes e o teto encardidos. Algumas bolsas de pano estavam em um canto, abandonadas, e eu imaginei que contivessem os alimentos que levaríamos na viagem para Comoska. Isso fez com que me lembrasse dos meus próprios mantimentos na mochila de lona. Por sorte, eu consegui não perdê-la durante as batalhas no Chafariz e na floresta e, por algum tempo, eu poderia sobreviver sem depender da comida deles, mesmo que fosse a base de refrigerante e barras de cereal murchas. Girei nos calcanhares e me direcionei para a saída, mas, antes que pudesse alcançá-la, uma voz grave riu às minhas costas, sobressaltando-me. Tevor saiu da penumbra: ― Você não me engana, moleque ― foram suas primeiras palavras, numa voz cheia de desprezo. ― Eu sei que você não veio de portal nenhum e que está aqui para acabar com tudo! Mas você não vai conseguir. Não vou deixar você estragar os nossos planos! Tevor desembainhou a espada e caminhou em minha direção lentamente. Eu prendi a respiração, mas tentei não demonstrar nem por um segundo o meu medo. Nunca havia feito papel de covarde e não seria agora a primeira vez.

Ele avançou erguendo sua espada. A lâmina brilhou com a luz tênue da cozinha e o metal tocou frio o meu rosto. Ele sorriu debochado para mim, seus olhos numa expressão doentia: ― Um passo seu, escute bem, um passo seu fora da linha e eu acabo com você, entendeu? ― ele sussurrou, bem próximo ao meu rosto pressionado a espada contra minha pele. ― Espero que tenha entendido. E, com uma última risada, ele retornou sua espada para a cintura e saiu da cozinha. Uma faixa de sangue escorreu pelo meu rosto, enquanto eu desabava na penumbra. As coisas não estavam nada boas. Voltei para a sala e fingi que nada havia se passado na cozinha. Ana e Dion estavam sentados no sofá e ainda conversavam sobre duchas. Assim que me aproximei, Dion olhou para mim e, sem delongas, perguntou se havia acontecido alguma coisa comigo. Eu respondi que não, que eu estava bem e que apenas havia ido conhecer a casa. ― Que corte é esse na sua bochecha? ― Ana perguntou-me.

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― Não é da sua conta ― respondi encerrando o assunto. Não queria um interrogatório. Ana resmungou e empinou o nariz para outro canto da sala. Sentei-me ao lado de Dion e tentei relaxar e esquecer o que havia acontecido há pouco. Dion ainda me encarava intrigado, mas pareceu desistir de me perguntar qualquer coisa depois que me sentei. ― É uma bela noite, não é? ― ele disse, quebrando o silêncio. ― Pois é ― eu respondi. ― Mas é uma noite longa, não é? Não tenho noção do tempo aqui, mas acho que já era para ter amanhecido, não? Dion olhou para mim e sorriu. ― Arion, ainda faltam, sei lá, umas cento e cinquenta horas para o dia nascer. Eu pisquei confuso para ele. ― Foi só uma forma de expressão, não é? Não vai demorar cento e cinquenta horas para o sol nascer? Vai? ― É claro que vai ― disse Dion com naturalidade. ― Não deve ter passado nem vinte horas que anoiteceu. Ainda falta muita noite pela frente. ― Você está dizendo que a noite de vocês tem cento e setenta horas? ― eu perguntei boquiaberto. ― Cento e sessenta e oito horas para ser mais exato. Por que todo esse espanto? ― Por que no meu mundo a noite só tem umas doze horas, e olhe lá. ― Doze? Só isso? ― Só? Vocês passam quase uma semana no escuro! Dion olhou pensativo para mim e em seguida comentou:

― Deve ter a ver com a rotação do seu planeta. Qual é a velocidade com que ele gira? ― Eu sei lá! ― Mil seiscentos e setenta quilômetros por hora. – Ana comentou. Eu olhei para ela surpreso. ― O que foi? ― ela disse ― Eu estudo, o.k.? ― e virou novamente o rosto para outro canto. ― Uau! Bem rápido. E o perímetro? ― perguntou Dion.

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― Quarenta mil e oitenta quilômetros ― respondeu Ana prontamente, ainda encarando a parede. Eu não fazia ideia do que conversavam. ― Mais que o dobro do nosso! ― disse Dion surpreso. ― Bem, se fizermos algumas contas... E considerarmos que o tempo para contornar o sol seja o mesmo... E contar isso... Multiplicar com... ― Dion parecia conversar consigo mesmo agora. ― Já sei! ― Já sabe o quê? ― perguntei, já tonto com tantas considerações. ― Já sei a diferença de tempo para o mundo de vocês e o nosso. Isto é, se minhas contas estiveram corretas... ― Então...? ― Se comparado ao seu planeta, o nosso dia tem quatorze do seu ― afirmou Dion, sem mudar o tom de voz. ― Quatorze?! ― dissemos eu e Ana ao mesmo tempo. ― É. Sete dias, noite, sete dias, dia. Mais ou menos isso. ― Vocês passam sete dias no escuro? É impossível! ― eu disse, largando-me no sofá incrédulo. ― E eu ainda acho pouco tempo para dormir, sabia? ― comentou Dion, soltando um grande bocejo.

Sete dias? Como isso poderia ser real? Como poderia existir um lugar tão diferente do que eu morava? Como poderia existir uma ligação entre esses dois mundos tão diferentes?! Como?!... Cada vez que eu pensava no quão maluca era minha realidade, mais eu me sentia louco e, pior, menos acreditava que tudo aquilo poderia ser real. Se era um sonho, porque eu ainda não havia acordado?

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COMEÇA MEU

TREINAMENTO Diferentemente de muitas histórias, eu estava contra o rei. Não passou muito tempo e todos se reuniram na sala de

estar, à meia luz de um candelabro ― o que tornou a cena ao meu redor ainda mais estranha.

Estava espalhado pela sala um grupo um tanto quanto inusitado: em um canto estava Tumilínea, seu corpo torneado e seus cabelos castanhos ondulados, caindo sobre seus ombros musculosos; Heivier, olhos escuros, barba bem aparada e o cabelo raspado; mais à frente, próxima à porta da cozinha, estava Laila, ainda pálida, com os cabelos cor-de-fogo amarrados a um coque, a pele branquíssima e uma boca vermelha como sangue ― ela me parecia delicada demais para uma guerra como aquela. Ao seu lado estava o marido, Tevor, com seus olhos azuis escuros sobre mim e os cabelos e barba loiro-brancos escondendo o rosto misterioso.

Bem distante de nós, na penumbra, estava Nômos, encostado ao bar, quase imperceptível, olhando a todos com o semblante sério. Eu não sei o porquê, mas eu não sentia qualquer medo de Nômos, mesmo ele sendo um homem com mais de dois metros de altura e com o peso de uns cento e vinte quilos. Parecia um cara legal. Usava dreads grossos e escuros, que caíam como serpentes sobre as costas negras e largas e sobre o rosto sério, emoldurando o olhar castanho-escuro, fixo numa minuciosa análise da situação.

Por fim, restavam eu, Ana e Dion nos sofás, apenas observando a coisa toda, aguardando o próximo passo de Caça-lobos, tentando parecer o menos idiotas possível. Um detalhe estranho em toda a cena era que todos trajavam capas pretas e longas sobre camisas e coletes de couro e prata, enquanto eu e Ana usávamos jaquetas de couro e sapatos não-engraxados. Eu me sentia um pouco deslocado; era como se estivéssemos vestindo terno para ir a um grande show dos Stones.

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Quando Caça-lobos (com seu cabelo comprido e sua barba por fazer) voltou a falar, a cicatriz em seu rosto se destacou em sua pele branca de maneira horripilante, com seu formato de arranhão em três listras, sendo que o corte maior e central cobria quase que o lado direito de seu rosto por completo.

Éramos nove no total. ― Estão todos prontos? ― Caça-lobos perguntou, olhando

cada um de nós nos olhos. Nós respondemos que sim. Eu não podia deixar de achar

aquilo tudo muito maneiro! ― Então está na hora. Comoska fica muito longe daqui.

Levaremos no mínimo dois dias para chegarmos lá. Por um instante pensei que a viagem não seria tão longa

assim, mas logo me dei conta que dois dias deles, seria um mês na minha contagem. Era uma viagem realmente longa.

― Agora não tem mais volta, amigos. Somos, definiti-vamente, os principais inimigos do rei.

Todos olharam para Caça-lobos e sorriram para o líder. Eu simplesmente torci para estar do lado certo da guerra.

― Sem mais conversa. Vamos lá! Caça-lobos saiu na direção dos fundos do casebre, levando

consigo seus pertences e todos os membros do Círculo em seu rastro, até que mergulhou na escuridão através de uma porta que levava ao exterior da casa de Heivier: um longo jardim mal-cuidado, com a grama alta e ervas daninhas crescendo por toda a parte.

Assim que passamos pela saída, viramos à esquerda e nos deparamos com um pequeno estábulo, onde cinco cavalos se alimentavam tranquilamente. Caminhamos até o encontro dos animais e Heivier abriu a pequena porteira, libertando os prisioneiros selados, que nem se deram ao trabalho de levantar as cabeçorras para encarar seu dono. Eu pensei seriamente se aqueles pangarés conseguiriam nos levar muito longe.

― Vamos em duplas ― informou Heivier. ― Se seguirmos por aquela abertura ― ele apontou para uma pequena estrada que começava no fim do seu “jardim” ―, seguiremos por uma trilha pouco conhecida, que nos levará até a saída de Mustor.

― Ótimo. Vamos nos dividir então ― Caça-lobos anunciou. ― Nômos, você vai sozinho, o.k.?

Nômos concordou com a cabeça e nós começamos a nos organizar. Como já era esperado, Tevor e Laila montaram juntos num cavalo de pelos negros. Ana se afastou o mais depressa

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possível de mim e de Dion – que vinha tentando se aproximar dela desde o momento da ducha – e foi atrás de Caça-lobos. Dion ergueu sua postura e caminhou na direção de Tumilínea, que, sem nem ao menos perceber as intenções dele, montou em um cavalo com Heivier e saiu em disparada. Por fim, sobramos eu e Dion...

― Não segure na minha cintura! ― Dion dizia com o rosto

vermelho, enquanto galopávamos velozmente sobre um cavalo de pelos manchados.

― Eu não quero segurar na sua cintura, oras! ― resmunguei, tentando me manter em cima do quadril do cavalo, cheio de solavancos.

Ana passou velozmente na garupa com Caça-lobos e sorriu debochadamente para nós. Eu quis mostrar meu dedo para ela, mas um grande salto da montaria me fez levar as mãos de volta para o apoio da sela, no mesmo instante. Ela gargalhou ainda mais.

Nós galopamos direto para a estradinha mais adiante. A noite estava clareando e poucas nuvens bloqueavam o luar agora. Nossas sombras apareciam e desapareciam com a luminosidade que atravessava as copas das árvores borradas ao longo do caminho e o vento passava rapidamente por nós e fazia um zumbido no meu ouvido, além de transformar meu cabelo em uma obra de arte abstrata. Eu já estava acostumado com isso.

O caminho continuava por muito tempo e, com o decorrer do percurso, as árvores foram ficando mais unidas e a mata ao nosso redor, mais densa. Estávamos entrando em outra floresta.

Não sei ao certo quanto tempo permaneci disparado pela mata, mas horas se passaram durante a cavalgada... Eu já estava sentindo tudo dolorido. Minhas pernas começavam a ficar rígidas e minha coluna doía de uma maneira inimaginável. Não era uma viagem confortável, como eu já havia imaginado que não seria.

Caça-lobos diminuiu a velocidade de seu cavalo e fez sinal para que parássemos. Estávamos em uma clareira bem restrita; a mata à nossa volta era espessa e escura. Todos nós saltamos dos cavalos e esticamos as pernas – finalmente!

― Vamos parar para descansar algumas horas ― Caça-lobos anunciou. ― Armem suas barracas! Vamos dormir um pouco. Faremos revezamentos para vigílias, está bem? Eu e Nômos vamos começar, depois Arion e Dion, certo?

Eu e Dion fizemos que “sim” e começamos a montar nossas barracas – eu havia ganhado uma também. As cabanas eram

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pequenas e suportavam exatamente uma pessoa; eram feitas de um tecido grosso, porém maleável, e as armações eram feitas com madeira moldável. Demorei algum tempo para desvendar a arquitetura do meu mais novo lar, porém, depois de algum tempo, consegui erguê-lo. Olhei ao meu redor e vi seis barracas idênticas a minha serem montadas no centro da clareira, formando uma meia-lua; Caça-lobos e Nômos nem se deram ao trabalho de montarem suas barracas de imediato e se sentaram próximos a uma grande rocha no centro da clareira e iniciaram uma conversa tranquila. Eu adentrei à barraca e estendi um pequeno cobertor sobre a relva – a cabana não tinha base de tecido. Puxei uma pequena manta que havia roubado do internato e cobri-me com ela. Não era uma cama das mais desejáveis, mas era um lugar possível de se dormir e bem melhor do que o Castigo. Foi instantâneo; nos primeiros segundos em que encostei minha cabeça no chão, eu adormeci feito uma rocha.

Acordei com um puxão em minhas cobertas. Uma mão

estava no meio da abertura da minha barraca e forçava o tecido para fora com agressividade. Um Guarda?! Despertei-me completamente e olhei assustado ao meu redor. Chutei com todas as minhas forças a mão estranha e um grito ecoou do lado de fora. O rosto grande de Nômos surgiu na entrada da barraca fitando-me com raiva: ― O que há com você, moleque? Eu sorri encabulado. ― Foi mal, Nômos, achei que fosse um Guarda.

― Um Guarda... ― disse ele massageando o punho, irritado. ― É a sua vez de ficar de guarda. Anda logo! Balancei a cabeça afirmativamente e o segui para fora da barraca tentando não rir da situação. Eu mal conseguira descansar da cavalgada e não tinha ideia do tempo que eu havia descansado. Já estava enjoado de me perder naquele horário maluco.

Havia esfriado bastante, mas o céu continuava límpido. Caça-lobos terminava de preparar sua barraca quando me aproximei dele. Ele me olhou por um instante, eu fitei sua cicatriz, nós nos cumprimentamos e ele começou a revirar sua bolsa. ― Tenho uma coisa para você ― ele disse.

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Encarei-o curioso e aguardei. Em seguida, Caça-lobos tirou de suas coisas uma espada embainhada. Ele se levantou e a entregou para mim com um sorriso: ― Acho que essa vai lhe servir melhor do que aquela do Dion, pelo menos por enquanto. Tirei a espada da bainha e a lua refletiu no seu metal prateado. Não pude deixar de sentir um frio na barriga quando a vi. Era incrível! Era mais leve, menor e sua lâmina era reta. Sentia muito mais facilidade de movimentá-la. ― Gostou?

― É demais! ― respondi. ― Que bom que você gostou. Logo o seu treinamento com

Nômos vai começar e não quero desculpas para um mau desempenho seu.

Eu balancei a cabeça afirmativamente e pensei no chute que tinha dado em Nômos há pouco... Agora, mais do que nunca, Nômos estava doido para me dar uns bons sopapos.

Soltei uma risada. Caça-lobos olhou para mim intrigado. ― Garoto estranho ― foi só o que comentou. Eu ri ainda mais. Cerca de um minuto depois, com um grande bocejo, Dion

saiu de sua barraca esfregando os olhos, visivelmente chateado: ― Veja se isso são horas de acordar alguém? ― resmungou. ― Para um guerreiro como eu, forte e invencível, um período de sono longo é essencial para um ótimo desempenho nas batalhas, não entendem? ― Reclame menos e vigie mais, está certo? ― falou Caça-lobos e, em seguida mergulhou em sua barraca. Eu sorri, enquanto Dion sentou-se na relva, encostando-se na grande rocha, muito sonolento. ― Olhe Arion ― ele disse, com os olhos semi-abertos ―, eu não sirvo pra essas coisas não, sabe? Eu sou filho de Alquimistas e não sei trabalhar sobre pressão e sono escasso. Eu preciso dormir. ― Eu entendo, cara, daqui a pouco é a vez de outra dupla, aí você vai poder dormir, o.k.? Pense que vai ser divertido se ficarmos... O ronco de Dion soou ensurdecedor ao meu lado. Silenciosamente, eu sorri e o deixei dormir. Muita coisa havia acontecido e ele merecia aquele descanso. Caso acontecesse alguma coisa, eu o acordaria ou chamaria Caça-lobos que dormia

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numa barraca a poucos metros de nós. Não havia com o que me preocupar...

... Um barulho na mata fez os pássaros levantarem vôo.

Minutos, talvez horas, já haviam se passado. Dion ainda dormia profundamente ao meu lado e eu observava a escuridão à nossa volta com certo nervosismo; um milhão de olhos parecia me vigiar, mas eu tentei afastar esse pensamento da minha cabeça. Eu precisava esquecer o medo e precisava me focar na ida para casa, caso contrário, eu acabaria louco. Levantei-me num pulo e estiquei os braços, espreguiçando-me. A lua iluminava todo o centro da clareira dando uma coloração prateada à grama. Senti um peso estranho em minha cintura... A espada!

Lentamente separei espada e bainha; a lâmina brilhou imaculada. Tinha um brilho tão suave e o metal parecia ressoar uma canção bem distante. Girei-a. Como era boa de manejar! Era leve e se encaixava perfeitamente em minha mão. Era demais! Girei o corpo novamente e apliquei outro golpe no ar. Eu me sentia tão forte segurando aquela espada! Apliquei outro golpe feroz contra meu inimigo invisível e sorri.

― Que tal, hein, seu Caçador de nada! Veja a habilidade do rapaz! ― eu dizia, rodopiando minha espada, atingindo meus golpes mortais. ― Eu sou Arion, o invencível! Ninguém se mete comigo! Olhe a habilidade... Olha como o cara é bom...

Um pigarro às minhas costas me fez rodopiar assustado. ― Arion o invencível, é? Nômos olhava para mim sorrindo, com os grandes braços

cruzados sobre o peito. Abaixei a espada e o olhei constrangido: ― Há quanto tempo você está ai? ― Há tempo suficiente. Eu sorri envergonhado. ― Não era para você estar dormindo? ― tentei mudar de

assunto. ― Estou sem sono. Não vai ser a primeira vez que passo

noites em claro. Esperei, por um segundo, Nômos prosseguir com seu

comentário curioso, porém, como não disse mais nada, deduzi que não fosse da minha conta.

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― Deixe-me ver essa espada aí, moleque ― disse se aproximando, enquanto eu atirava para ele minha lâmina.

Nômos a examinou com cuidado. Repentinamente, abriu um sorriso.

― Foi Caça-lobos quem lhe deu, não foi? Eu fiz que “sim”. ― Ele falou para você de onde veio essa espada? ― Não, ele não disse nada. ― Bem, essa espada pertenceu à família dele. Eu o olhei curioso. ― Essa lâmina tem passado de pai para filho na família de

Iam há muito tempo. É uma espada realmente boa. Ele deve realmente gostar de você para te dar algo assim.

Se antes eu já achava o presente de Caça-lobos maneiro, agora eu o idolatrava. Nômos entregou-me a espada novamente. ― Não vejo mais motivo para adiarmos isso.

Com um movimento rápido Nômos sacou sua espada e girou-a contra mim. Eu, por um reflexo que nem imaginava possuir, saltei para trás e caí de costas na relva. ― VOCÊ PIROU, É?

Nômos olhou para mim e sorriu ainda mais. ― Seu treinamento acaba de começar. Mal as palavras terminaram de chegar aos meus ouvidos,

Nômos partiu para cima de mim como uma locomotiva enlouquecida. Eu fiz o que qualquer um no meu lugar faria: corri feito um louco.

― Não fuja, Arion! ― Nômos dizia no meu encalço, a espada com o dobro do tamanho normal em suas mãos gigantescas ― Enfrente-me! Você não está mais brincando. Lute como um homem!

Para ele era fácil dizer, tinha o dobro do meu tamanho! Fiquei encurralado pelas barracas. Olhei para trás assustado

e vi Nômos correndo em disparada na minha direção. Para um homem daquele tamanho, ele corria como um verdadeiro maratonista: ― Fim da linha para você. Um segundo antes de nos chocarmos, Nômos girou a espada para trás e investiu com seu ombro colossal. Senti uma forte pancada no peito e meu corpo foi atirado a metros de distância. Uma dor cruciante tomou conta de mim e eu fiquei arquejando

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sobre a grama. Não conseguia respirar. Sentia minhas costelas doloridas e minha visão embaçou-se por um instante. Fiquei esticado na relva por um longo período, sentindo meu pulmão lutar para voltar ao normal. Nômos aproximou-se calmamente de mim, ainda sorrindo. Ofereceu a mão para que eu levantasse, mas eu a empurrei com raiva.

― CARAMBA, NÔMOS! O QUE HÁ DE ERRADO COM VOCÊ? ― gritei, forçando ainda mais meus pulmões, que ardiam dolorosamente.

― Isso é apenas o começo, Arion. Se quiser chegar vivo até Comoska, você não pode ser fraco desse jeito. Você tem que enfrentar o inimigo! ― Mas você não é o inimigo, droga! ― Mas é assim que você tem que me ver de agora em diante! Pare com essa choradeira e levanta daí! Se continuar desse jeito, não vai durar duas noites contra o rei. Eu olhei para Nômos furioso. Ele não tinha o direito de falar daquele jeito comigo! Quem ele achava que era? ― Vai ficar me olhando como uma criança mimada ou vai lutar feito um homem?

Ainda sentindo o peito em brasa, eu levantei-me. Estava com tanta raiva de Nômos que não foi difícil imaginá-lo como inimigo.

― Agora sim ― ele disse puxando a espada novamente para fora da bainha ―, agora está agindo como um homem.

Eu parti para cima de Nômos. Minha lâmina brilhava alucinada com sua primeira batalha nas mãos do novo dono.

Nômos esperou-me com a espada em mãos, ansioso. Assim que o alcancei, ele girou o corpo e preparou um golpe; eu mal pude perceber seus movimentos; quando descobri suas intenções, já era tarde demais: ele me atingiu com uma rasteira rápida e eu fui parar no chão mais uma vez.

Não desisti. Levantei-me ainda mais furioso e parti para cima dele. Dessa vez, ele não se desviou e nossas espadas se chocaram, lançando fagulhas no meio da noite. Nômos riu para mim: ele aparentava estar gostando muito de tudo aquilo.

― Nunca abaixe a guarda, Arion. Espere tudo do seu inimigo. Eu não entendi o que o guerreiro queria dizer até que ele me atingiu com um chute no abdômen. Caí ajoelhado na relva, ofegante, a espada sacudindo furiosamente em minhas mãos

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trêmulas. A dor percorria meu corpo como uma corrente elétrica furiosa e eu não conseguia abrir os olhos. ― Levante-se ― Nômos disse secamente, aproximando-se.

― Eu não posso... ― Levante-se! ― Não dá, cara! ― Então é assim que vai reagir quando for enfrentar um

inimigo? Vai implorar para não matarem você?! Eu deixei minha raiva explodir. Parti para cima de Nômos

com toda a minha fúria, sentindo o sangue ferver em minhas veias. Minha cabeça pulsava violentamente, enquanto investia com minha espada para cima do guerreiro. Eu cortava o ar com um som agudo e tentava atingi-lo, sem nem mesmo ver para onde lançava meus ataques. Nômos começou a ter dificuldade em desviar, enquanto eu girava, cada vez mais rápida, minha lâmina em todas as direções de maneira surpreendente. Nômos preparou mais uma de suas viradas na batalha, mas dessa vez eu antecipei seus movimentos. Quando abaixou para atingir-me com um golpe, eu saltei, sua mão golpeou o ar e eu desferi minha espada. Numa fração de segundo, ele desviou o gigantesco braço. Nômos ficou de pé e me encarou, suado. Foi aí que notei: sua capa estava rasgada e um leve corte marcava seu ombro; um filete de sangue escorreu por sua pele mulata. Eu tinha a respiração ofegante e Nômos também demonstrava algum cansaço. Repentinamente, ele sorriu para mim: ― Nada mal, garoto... Para um novato ― ele acrescentou rapidamente. ― Foi um bom começo. Acho que por hora já é o suficiente. Eu o olhei incrédulo. Mal podia acreditar no que estava ouvindo e, principalmente, não acreditava no que havia acontecido. Eu acabara de ter meu primeiro duelo! E tinha sido demais! Eu conseguira ferir Nômos e conseguira não morrer! Minha mão tremia descontroladamente, meu coração estava disparado e minha roupa estava encharcada com meu próprio suor... Era muito bom! Nômos retornou para sua cabana. Poucos segundos depois, pelo menos foi o que pareceu, Heivier e Tumilínea vieram assumir seus postos para a vigia: ― Pode ir dormir agora ― a bela Tumilínea disse a mim. Então eu voltei para minha barraca aos tropeços e me embolei nas cobertas, mas, por um bom tempo, não preguei os olhos, ansioso pelo meu próximo duelo com Nômos.

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Cerca de quatro horas depois, acordei sentindo fortes dores no abdômen – pelo visto a batalha com Nômos tinha me deixado algumas marcas. Ainda era noite lá fora e algo acontecia no acampamento.

Saí da barraca e encontrei os membros do Círculo desmontando suas barracas.

― Oh, Arion, ― Caça-lobos foi o primeiro a falar comigo ― que bom que acordou. Pode chamar Dion e Ana para mim? Já vamos partir.

Eu respondi que sim a Caça-lobos e me preparei para ir ao encontro da barraca de Dion, mas, antes que o fizesse, Tevor lançou mais um de seus olhares furiosos em minha direção. Eu não sabia o porquê de tanto ódio! Dion e Caça-lobos já haviam me defendido na floresta, inocentando-me das acusações de traidor, mas Tevor ainda insistia em acusar-me de alguma coisa que só ele era capaz de enxergar; ele não confiava nem um pouco em mim.

Virei e segui para a pequena cabana de Dion e chamei por ele. O guerreiro demorou cerca de quinze minutos até dar qualquer sinal de vida; quando saiu, com olhos furiosos, disse-me que logo se juntaria ao restante do pessoal.

Não foi necessário que eu acordasse Ana. Quando me aproximei da barraca dela, a garota já saía sonolenta de seu interior e caminhava em minha direção aos tropeços:

― Escute aqui, Arion. Eu preciso de um banho urgentemente. Onde posso arranjar um banheiro por aqui? Por incrível que pareça, ela perguntou-me séria, quase que suplicante:

― Ana ― eu comecei, tentando não rir da garota ―, por acaso você já notou que estamos no meio de uma floresta, ham? No meio do nada?

― E daí? Por acaso eles não tomam banho ou coisas do gênero?

― Isso não é um hotel de luxo, Ana... ― Isso eu já percebi! ― Então o que você quer que eu faça? ― Já disse, eu quero um banheiro. Finalmente eu entendi o que Ana estava tentando me dizer. ― Você está na floresta, Ana. Vá e aproveite o que a

natureza pode lhe oferecer ― falei sorrindo.