vivemos livres numa prisão [daniel sampaio]

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  Vivemos Livr es Numa Pri são [Daniel Sampaio] Colaboração Dulce Bouça Pedro Strechet CAMINHO Nosso Mundo Vivemos Livres Numa Prisão Autor: Daniel Sampaio Capa: design gráfico de José Serrão C Editorial Caminho, SA, Lisboa -- 1988 Tiragem: 15 000 exemplares Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, L.da Data de impressão: Março de 1998 Depósito legal n.o120 781/98 ISBN 972-21-1181-7 www.editorial-caminho.pt  Vivemos Livres Numa Prisão

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 Vivemos Livres Numa Prisão [Daniel Sampaio]

Colaboração

Dulce BouçaPedro Strechet

CAMINHONosso Mundo

Vivemos LivresNuma Prisão

Autor: Daniel SampaioCapa: design gráfico de

José SerrãoC Editorial Caminho,SA, Lisboa -- 1988

Tiragem: 15 000 exemplares

Impressão e acabamento:Tipografia Lousanense,

L.daData de impressão: Março

de 1998Depósito legaln.o120 781/98

ISBN 972-21-1181-7

www.editorial-caminho.pt 

Vivemos LivresNuma Prisão

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O AUTOR

Daniel Sampaio é médico e Professor Associado com Agregação daFaculdade de Medicina de Lisboa, onde ensina Psicopatologia ePsiquiatria.

Especialista de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, emLisboa, coordena no Serviço de Psiquiatria o Núcleo de Estudosdo Suicídio.Foi um dos introdutores da Terapia Familiar em Portugal efundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.Dedica-se particularmente ao trabalho com adolescentes, pais eprofessores.Tem os seguintes títulos publicados:

Droga, Pais e Filhos (em colaboração), Bertrand, Lisboa, 1978Terapia Familiar (em colaboração), Afrontamento, Porto, 1985(3.a ed., 1997)Que Divórcio? (em colaboração), EdiçÕes 70, Lisboa, 1991 (2.a

ed., 1992)Ninguém Morre Sozinho -- O Adolescente e o Suicídio, EditorialCaminho, Lisboa, 1991 (8.a ed., 1998)Vozes e Ruídos -- Diálogos com Adolescentes, EditorialCaminho, Lisboa, 1993 (9.a ed., 1997)Inventem-se Novos Pais, Editorial Caminho, Lisboa, 1994 (10.aed., 1998)Voltei à Escola, Editorial Caminho, Lisboa, 1996 (4.a ed.,1998)A Cinza do Tempo, Editorial Caminho, Lisboa, 1997 (3.a ed.,1998)Vivemos Livres Numa Prisão, Editorial Caminho, Lisboa, 1998

COLABORAǦO

DULCE BOUÇA -- Psiquiatra no Hospital de Santa Maria.Assistente convidada da Faculdade de Medicina de Lisboa.Tem-se dedicado ao trabalho clínico com adolescentes,particularmente no campo das perturbaçÕes do comportamentoalimentar. É autora do livro Madrugada de Lágrimas, Edinter,Porto, 1997.

PEDRO STRECHT -- Pedopsiquiatra (psiquiatra da infância e daadolescência). É autor dos livros Para Uma Escola Feliz, Ed.Autor, Lisboa, 1995 e Crescer Vazio, Ed. Autor, Lisboa, 1997.

Para a minha AvóSarah Bensaúde Branco --onde quer que ela esteja.

O próprio do homem não é viverem liberdade, é viver numa prisão.

Montesquieu,O Espírito das Leis

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Escola:os cavalos de Tróia

A escola dos meus netos é uma grande confusão. Quando atrombose levou o meu marido, há três anos, o meu neto Joãoandava no 12.° ano, uma coisa que inventaram e que não haviano meu tempo. Felizmente entrou para a Faculdade e com ele nãohá problemas. Com os irmãos as coisas não vão bem. A minhaneta Mariana estuda pela noite fora e fica muito nervosa antesdos pontos. O meu neto do meio, o Gonçalo, é o que me preocupamais. Fica horas e horas no quarto e diz não ter "motivação"para estudar e que as aulas são uma maçada.Sou daquelas pessoas que andaram na escola toda a vida. Fuiprofessora primária até há dois anos, altura em que mereformei, mas ainda hoje penso nos alunos que me derammelhores momentos.

A noite passada sonhei que o meu marido estava à porta daescola à minha espera. Fiquei tão contente que deixei cair oestojo das esferográficas quando corri para ele. Entrámos osdois logo a seguir num grande salão cheio de meninos emeninas, todos de bibe, alinhados como se fossem cantar emcoro. Em cima do palco estava um senhor importante, todovestido de cinzento, segurando um estojo azulado com aquiloque pressupus ser uma medalha. De repente os meninos começaramtodos a olhar para mim e a bater palmas e o senhor importantedeixou cair a medalha sem nunca mais a encontrar. O Manuelagarrou-me o braço com força e fomos para o meio das crianças.A certa altura pareceu-me que lá no meio estavam também osmeus filhos e os meus netos e acordei sobressaltada.Quando casou comigo, o Manuel disse-me que eu tinha de deixara escola à porta de casa, mas a verdade é que me envolviatanto no trabalho que às vezes lhe contava como tinha sido omeu dia. Como professora do 1.o ciclo, como agora se diz, achoque fui capaz de me fazer respeitar sem me preocupar muito comisso. Bastava pôr os alunos sempre a trabalhar para elesestarem quietos.A escola dos meus filhos já foi bem diferente. O Antóniodeu-me muito trabalho. As professoras estavam sempre achamar-me porque ele faltava às aulas. Descobri um dia quesaía do liceu e ia jogar bilhar para um café em frente, ouentão andava um grande bocado a pé e ia esperar as meninasnoutro liceu. É por isso que tive de fazer um pedido para eleentrar para o Banco onde ainda hoje está. Quando casou, sentiuma certa vergonha, porque a mulher tinha mais estudos.Felizmente dão-se bem, e como não têm filhos, parecem não tergrandes preocupaçÕes.Deus tirou de um lado e pôs noutro. A minha filha Manuela é amãe do João, do Gonçalo e da Mariana. Penso neles a toda ahora. Foi o João quem insistiu para que eu fosse viver lá paracasa todo o dia. Senti pena de deixar a minha casa, mas achoque com 72 anos ainda posso fazer muita coisa para ajudar aminha filha e os meus netos. A minha vizinha já me perguntoupor que razão eu não vivia com o meu outro filho, masdisse-lhe que tinha uma coisa ao lume e felizmente ela nãovoltou ao assunto. Nunca lhe direi que o meu ditado favorito éaquele assim "sogra e nora, cão e gato: não comem no mesmoprato". Com o meu genro não há problemas, pelo menos comigo.Trabalha todo o dia e assim que acaba de jantar vai para o

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escritório mexer no computador. Só uma única vez me chamoupara o pé dele, para eu ver um jogo que tinhaumas correrias num castelo, mas francamente não achei graçanenhuma.Estou sentada em frente da televisão. Não está ninguém emcasa. Tenho o jantar adiantado. Faço sempre comida a mais,

porque na verdade só o João e o pai é que comem coisa que seveja. Eu à noite fico bem só com a sopa e a Manuela e aMariana comem poucochinho. Pena o Gonçalo, que tanto apreciavaos meus petiscos, andar agora com tão pouco entusiasmo pelacomi-da.Gosto muito deste bocado do dia. Que estarão eles a fazer? OJoão anda naquela Faculdade ao pé do jardim do Campo Grande.Noutro dia, passamos lá de carro e ele mostrou-me uma série deprédios cinzentos com umas escadas azuis e uma esplanada cheiade estudantes. Lembrei-me que às vezes ficava lá por aquelasbandas a fazer malha e a conversar com uma amiga, enquanto omeu marido ia ver jogar o Sporting. O João estuda Biologia e

às vezes penso se será capaz de arranjar emprego. Tenho acerteza que ele gosta do curso, porque o meu neto mais velhofaz tudo bem feito. Não percebo o interesse em acampar com oscolegas e passar uma noite a observar corujas e um dia a ver ococó de uns animais, mas para estas coisas a minha cabeça jánão dá.O Gonçalo e a Mariana andam na mesma escola e aí é que é aconfusão em que eu estava a pensar há bocadinho (a ideia agorafoge-me muito para as recordaçÕes, deve ser isto a que chamamvelhice). Acho que passam muitas horas fora de casa, nem têmtempo para almoçar comigo e os pais estão sempre em cimadeles, um porque estuda pouco, a outra porque estuda de mais.A minha filha é professora de outro liceu e talvez por issoestá sempre a dar opiniÕes. Para mim, acho que os professoresfaltam muito e os miúdos ficam sem nada para fazer. Também nãopercebo muito bem o que lá aprendem, porque não sabem fazercontas de dividir, nem sequer arranjar o candeeiro que noutrodia fez uma pequena faísca e deixou de dar luz. Não percebonada dos "agrupamentos", ou "áreas" ou lá que raio é, oGonçalo está sempre a dizer que quer mudar, com a mãe aresponder-lhe que é um disparate, pois terá de andar paratrás, do 12.o ano parece que para o 10.o (que confusão, nãosei se é assim...).O Gonçalo anda a faltar às aulas. No meio da papelada que ocarteiro me entregou com montes de propaganda de computadorese produtos de beleza, não pude deixar de ver um papel doliceu, com uns números e umas letras a vermelho. Achei melhornão dizer nada aos pais. Conheço bem os papelinhos do liceu dotempo do meu filho António e, além disso, vejo o miúdo tãotriste que não lhe quero arranjar mais problemas. E se osprofessores faltam tanto, não hão-de os rapazes faltartambém??A minha vizinha contou-me umas coisas estranhas sobre asescolas, porque o filho dela também é professor e até teveproblemas. Viu dois alunos à luta, um calmeirão a bater numpequenito, e não esteve com meias-medidas: pregou uma valenteestalada no maior. Foi o cabo dos trabalhos! Uma coisa a quechamam Associação de Pais (no tempo dos meus filhos nãohavia...) fez logo uma reunião, telefonaram para atelevisão... o que sei é que o professor, filho da minhaamiga, está agora sem poder dar aulas. Não é que eu seja afavor do bater só por bater. Na escola primária dos meus

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filhos a régua servia para tudo, para castigar a falta deestudo, a má educação e até a burrice... e não havia essacoisa de discutir com os professores. Lembro-me que o Antónionão gostava lá muito do professor, mas tinha-lhe medo, ourespeito... só não aceitava era quando o professor se iaembora por uns tempos e ficava o chefe de turma a tomar conta,

escrevendo no quadro o número dos alunos malcomportados. Foicoisa que eu nunca fiz na minha escola primária e ria-me com omeu filho, quando o António hesitava em bater no colega oudar-lhe um "custoso" cromo da bola, como eles diziam naaltura!Há uma coisa que deve estar na mesma. Dizia-me o António, nosseus tempos da primária e do liceu, que o melhor da escolaeram os recreios. O meu filho, como estava na primeira fila(não havia essas chinesices modernas de os alunos escolherem olugar), saía a correr com um bando de colegas e ia para asarcadas do liceu jogar à carica. Uma vez fui lá falar com umprofessor e fiquei um tempo a olhar. Com um piparote, atiravama tampinha de modo a meterem golo na outra arcada, que servia

de baliza. Podia usar-se a cabeça ou as mãos para evitar ogolo. O António às vezes prolongava o jogo e chegava tarde àaula seguinte. Divertia-se muito nos intervalos e, felizmente,acho que isso continua assim. +s vezes passo pela escola dosmeus netos e ouço uma grande barulheira. O posto de rádio daescola, uma ideia dos alunos que acho bem, dá música modernamuito alto e eles andam para ali a conversar e a namorar. Bem,isso de namorar como elas fazem agora também me faz uma certaconfusão... e a Mariana disse-me que uma colega dela tinhaaparecido grávida! Cá na minha acho que cada qual deve sabertomar conta de si e uma rapariga, se quer ser mulher, devesaber tomar conta de si própria. Também no meu tempohavia rapazes que faziam avanços, mas nós sabíamos pô-los comdono.No fundo, isto da escola e da família tem mudado muito. Outracoisa que eu não percebo é esta mania que os pais agora têm dequerer mandar na escola! É isso, a Associação de Pais, mas...parece que não é só para fazerem coisas para melhorar aescola, também querem reuniÕes com os professores e decidir...não, isso não acho bem. Quem manda na escola são osprofessores. A Manuela tinha uma professora que pertencia àMocidade Portuguesa Feminina e que acabou por ser a reitora.Ninguém gostava dela, dava sermÕes sem parar e tinha um ar deAA (auxiliar do apostolado), uma coisa que havia no tempo doSalazar. Recebia os pais de vez em quando, mas não deixavadúvidas que era ela quem mandava em tudo e todos. Pela minhaparte, não gostei nada de a conhecer, mas reconheço que àsvezes agora se facilita demasiado.Nas minhas aulas também tive alunos com algumas dificuldades.Chamava os pais à parte e tentava dizer como poderiam ajudar.Sei, pela Manuela, que na escola dos meus netos os professoresque mandam ralham um bocado aos pais, à frente de outraspessoas. Agora que o Gonçalo anda tão triste, disseram à minhafilha para o rapaz ir ao psicólogo. Não sei se têm razão, sótenho a certeza que ninguém tem nada a ver com isso e que oassunto deveria ter sido tratado em privado.Como professora que fui, sei bem que ensinar não é nada fácil,mas todas as crianças são capazes de aprender. Sempre tive aideia que não podia ensinar todos da mesma maneira e que unsaprendiam mais depressa que outros. Não era por serem "burrosmachos" ou "burras fêmeas", como dizia a Regente Escolar dasraparigas da minha escola, acontecia simplesmente que uns

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estavam mais à vontade que os outros ou se mostravam maisinteressados pela leitura ou pelas contas.Faz-me hoje um bocadinho de confusão tanta gente na escola,com um programa igual para todos... se calhar é por isso quevejotantos miúdos a deixarem de estudar e ficarem por aí ao deus-

-dará.O meu genro nunca foi à escola dos filhos. Está sempre a dizerque não pode largar a empresa e ir a uma reunião a meio damanhã.Estaria tudo bem se em casa se interessasse um pouco mais.Tenho a certeza que os filhos que o João vai ter vão ser maisacompanhados pelo pai, porque o meu neto não se atrapalha nadaa pegar num bebé ou a tomar conta de uma criança. Quem sabe seessa não será uma solução para o problema, os pais e as mãespoderem estar um pouco mais em casa a educar os filhos, demodo a deixarem os professores mais livres... porque eu achoque se pede demasiado à escola. Os professores não podem fazertudo e afinal são pagos é para ensinar o que aprenderam!

Os meus netos dizem-me que a escola agora é muito diferente.Têm lá sentados, bem junto a eles, miúdos com muito poucasposses e às vezes sem família. Os pais de um colega da Marianatêm problemas de droga e já foram presos. Outros vieram daGuiné e de Cabo Verde e têm muita dificuldade em falarportuguês. E por isso é que eu digo que a escola dos meusnetos é uma grande confusão! A ideia com que fico, depois detudo observar, é que as pessoas falam pouco umas com asoutras. Se conversassem mais, muita coisa se resolveria, comocá em casa. Talvez haja televisãoa mais... embora eu não perca a minha telenovela brasileira eàs vezes fico contente, porque consigo vê-la com os meus ne-tos.Há uma semana tive outro sonho. A escola onde eu tinha dadoaulas tinha sido aumentada com umas construçÕes prefabricadasde aspecto frágil e o pátio tinha ficado mais pequeno, comuma espécie de telheiro a tirar-lhe o sol. Os miúdos nãotinham cara e estavam todos vestidos de igual, com uns fatosde corte militar e uns capacetes com viseira, parecidos com osda polícia de choque, como no tempo em que a Manuela andava naFaculdade. Não havia salas de aulas e tudo se passava cá fora.Os professores pareciam umas crianças e estavam todos debibinho às riscas, sentados numa espécie de estrado ao arlivre, bem encostados uns aos outros. Os alunos não pareciamligar nenhuma importância ao estrado e organizavam-se emgrupos de combate, batendo-se uns contra os outros. A certaaltura, levantou-se uma professora--menina e tentou falar com os alunos, mas não conseguiu serouvida. + medida que a luta continuava, a minha escola iaficando destruída e alguns miúdos caídos. Fiquei na dúvidasobre se aquele lá no fundo seria o Gonçalo. Corri a toda apressa até lá chegar e encontrei sangue por todo o lado.Acordei com o coração a bater muito e a pensar que se o Manuelestivesse ao meu lado, ouviria o seu meigo assobio para meacordar de vez, e poderia ficar abraçada a ele até serenar.Ando a pensar demasiado na escola. Foi tudo ao mesmo tempo: amorte do Manuel, a minha reforma e a minha mudança para estacasa, que me faz reviver constantemente a minha juventude e ocrescimento dos meus filhos. Ou se calhar ando preocupada como que se passa na escola, porque tenho visto muita televisão eestão sempre a falar mal dos professores, coisa que me irritamuito. No meu tempo não se podia dizer mal de Deus, dos

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médicos e dos professores, agora só é poupado Nosso Senhor enem sequer é sempre. Quem ouvir os telejornais, até pode ficarcom a ideia que não há nada de bom na escola, o que não éverdade. A Mariana sabe imensas coisas e quer sempre aprendermais e mesmo o Gonçalo, que não tem boas notas, ganhou noutrodia um prémio num concurso de poesia organizado pela

Associação de Estudantes. A minha vizinha diz-me que na escolado filho dela há muitos miúdos com problemas, mas só perdemtempo em campeonatos da bola e em exposiçÕes de pintura. O quesei é que os meus netos gostam imenso de ir para a escola efazem lá bons amigos. Como se divertem os jovens de hoje!Francamente, sinto inveja e nessas alturas é que me lembro quejá ultrapassei os setenta anos. Adoro pôr-me na sala e ouvirao longe as combinaçÕes telefónicas de saídas nassextas-feiras à noite, ou as discussÕes sobre dúvidas nasvésperas dos testes.Estou absolutamente convencida de que as coisas vão melhorar.Para mim, nada é pior que o desinteresse e vejo muita gente atentar mudar a maneira de estar na escola. Se for possível

vencermos certos medos, receios afinal de ser diferente que eutambém tenho (acho que o meu sonho mostra como no fundo tambémeu ando assustada), havemos de conseguir compreender asmudanças da escola e os filhos dos meus netos ficarão melhor.

Entra-se na escola por um portão verde mal pintado, ladeadopor uma guarita onde está um porteiro com ar envelhecido.Atravesso um pátio com chão de cimento, ocupado bem no meiopor um triângulo de terra batida, ladeado por um fio apretender proteger uma relva inexistente. Os alunos estão empequenos grupos: sentados em bancos semiapodrecidos, de péencostados à parede ou à entrada em magotes barulhentos. Oposto de rádio da Associação de Estudantes grita uma músicaque não parece interessar a ninguém.A entrada do prédio principal tem uma divisória de vidro,cheia de cartazes amontoados, que uma funcionária de batacinzenta se apressa em abrir para me dar passagem. Numaespécie de antecâmara, vejo mais alunos a conversarem, duasprofessoras a trocar fotografias de bebés e uma escada depedra igual em tantas escolas. Sou encaminhado para o ConselhoDirectivo, uma sala pequena com duas secretárias cobertas depapéis e vários telefones sempre a tocar. Já está na hora daacção de formação e mal tenho tempo para entrar na Sala dosProfessores, ao menos para ver o ambiente e tomar um café. Osprofessores entram e saem com ar apressado, alguns sentam-seem pequenos sofás de napa e falam da família ou do Ministério.Há um bar ao canto da sala, para uso exclusivo dosprofessores, para onde me dirijo apoiado nas organizadoras daacção. Um pequeno tabique separa a sala e na zona mais pequenaamontoam-se os professores fumadores,que parecem um grupo à parte. Há placards de cortiça portodo o lado, um deles diz "informaçÕes sindicais" e é umagrande confusão, uma vez que fala de pelo menos quatrosindicatos diferentes.Não temos mais tempo e vamos para a acção de formação. A salaescolhida é numa parte do refeitório, limpa e arranjada, masimpessoal e com cadeiras desconfortáveis. Os professoreschegam em pequenos grupos, não são mais de quarenta e trazemmalas e dossiers a mais.Como metodologia de trabalho, proponho a discussão decasos-problema, apresentados pelo Director de Turma ediscutidos pelos professores da turma, sendo mais tarde

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generalizada a discussão. Os professores olham para os papéisou murmuram para o lado palavras ininteligíveis. Aguardo comtranquilidade. "Gostaria que nos falasse da indisciplina,temos cada vez mais alunos que não conseguem estar numa salade aula", "não sei se conhece a zona, os pais estão muitodesinteressados e não aparecem na escola, os miúdos são

deixados muito sós", "temos uma turma completamente apática.Estão no 12.o ano e não se interessam por nada. Faltam muito ealguns estão para lá e é como se não estivessem. Não consigofazer nada deles. Para mim é uma novidade. Os alunos do 12.oano às vezes até têm a mania das notas, são muito competitivose estão sempre a exigir mais matéria. Estes não. Parecemextraterrestres", foram algumas intervençÕes que registei. Aúltima pareceu-me mais mobilizadora. Alunos do 12.o anoapáticos? Vamos ver. Pedi para escolherem um aluno desta turmaque os preocupasse particularmente. A Directora dessa turmadescreveu assim: "Estou muito preocupada com o Gonçalo. Eu soude História, na minha disciplina consegue atingir os níveispretendidos, mas a Matemática está uma desgraça. Um aluno que

quer ir para Economia! Em IDES e em ITI também teve negativano primeiro período. É uma família diferenciada, está a ver, opai trabalha numa boa empresa e a mãe é nossa colega. Pareceque tem uma irmã doente e um namorico que não está a correrbem. A rapariga deixou-o, trocou-o por outro colega, o rapazestá cada vez mais desinteressado. A família, sabe..."Interrompi esta torrente informativa. Comecei por tentardecifrar as siglas, fiquei a saber que IDES queria dizerIntrodução ao Desenvolvimento Económico e Social e ITIIntrodução às Tecnologias de Informação, se bem percebi.Depois, interessava-me trabalhar sem grandes dados sobre afamília. Uma das dificuldades que tenho sentido no trabalhocom os professores relaciona-se com o foco do problema. Ondeactuar? Com quem actuar? Quando actuar? Que informaçÕes sãorelevantes para a acção e quais as que a embaraçam?Pedi para que os professores do Gonçalo ocupassem a primeirafila. Como é habitual, não estavam todos. É muito curiosoverificar numa escola a falta sistemática de algunsprofessores a acçÕes de formação onde vão ser discutidas assuas dificuldades. "Alguns professores moram longe", disse umaprofessora de cabelos brancos e saia e casaco de bom gosto.Não pretendi polémica. "Vamos trabalhar com os que estão", ecomeceipor identificar os presentes. Estavam quatro de um total desete.O professor de Matemática era um jovem de faces coradas, todovestido de bombazina castanha e camisola de gola alta: "OGonçalo não tem bases e não estuda. É insolente eindisciplinado, nunca faz os trabalhos de casa e é hostil paraos colegas nos trabalhos de grupo. Não percebo o que ele querfazer da vi-da."A professora de Introdução ao Direito era muito magra e alta,tinha os cabelos sobre os olhos e um sorriso tímido: "É aprimeira vez que estou nesta escola. O Gonçalo senta-se naúltima fila e passa as aulas a olhar para o tecto. Nãoparticipa, mesmo quando solicitado. Os conteúdos curricularesnão parecem interessá-lo."A professora de Português teve um discurso surpreendente: "OGonçalo escreve lindamente. Ganhou um prémio de poesia, sabem?Gosta de ler e acho que tem talento. Nas minhas aulas estáagora mais calado e um pouco triste, mas ontem fez um poema.

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Querem ouvir?" A Directora de turma: "É pena os testes deHistória estarem tão mal escritos, denotam uma falta deestudo. Não satisfaz minimamente os objectivos da disciplina."O que mais me impressionou foi o facto de os professores destaturma só se terem reunido para questÕes de avaliação. Propusque me falassem da turma como um todo. As opiniÕes

dividiam-se: "Há miúdos com meios familiares muito diferentes.A turma é muito heterogénea. Uns querem aprender e outrosnão"; "Há um grupinho muito bom, mas a maioria estádesinteressada e prejudica os outros"; "Não temos tempo parafalar com eles, coitados, têm muitas carências afectivas mastenho de dar a matéria, é ano de exame e eles, no fundo,querem é entrar para a Universidade..."Propus um salto: "Vamos deixar esta turma em banho-maria efalar de outra, onde também tenham dificuldades.""O 8.o 10.a", gritou uma professora de blusão castanho eóculos presos por uma corrente. As respostas ao meu pedido dedefinição da turma referida foram as seguintes: "Turmacompletamente sem regras. Há imensos rapazes filhos de

toxicodependentes. Pelo menos dois têm a mãe na prostituição.O Vasco esteve num colégio de ensino especial e não dárendimento nenhum"; "Desculpe, colega, ele vê mal. Tem osóculos todos riscados e a avó não lhe pode dar uns novos. Jáfalei ao SASE e nada consegui"; "A verdade é que alguns malsabem ler, não percebo como chegaram até aqui. Não compreendemo que se lhes está a explicar, como hão-de ter boas notas?";"Em EVT não são maus. Aquele de que vocês estão sempre a dizermal, o Ricardo, tem feito uns trabalhos com piada"; "Saiodessa turma esgo-tada, passo a vida a tentar controlá-los enão consigo. Francamente, acho que muitos deveriam ir para oscurrículos alternativos."Sentei-me na mesa que me estava reservada e comecei a pensar.Estava perante um grupo de professores interessados (osdesmotivados tinham faltado), mas descrentes e semestratégias. A definição do problema não existia, ou era tãocontraditória que não permitia compreendê-lo. Uns professorespunham a tónica na sala de aula, outros no psiquismo dosalunos, outros ainda nas suas famílias de origem. Apesar deensinarem na mesma escola e alguns nas mesmas turmas, nãoformavam um grupo coeso.

Escola:intervir face a um problema

Não se pode intervir face a um problema escolar sem se ter umateoria sobre a mudança. A exigência face ao papel dosprofessores é cada vez maior e os docentes oscilam entre umentusiasmo militante de alguns e a rotina do deixar andar deoutros.O grande problema perante uma situação problemática na escolaé que as teorias sobre a mudança estão todas centradas nointerventor (na maioria dos casos, um membro do corpodocente).Este foco no papel do professor leva às seguintes afirmaçÕes:

-- só posso intervir se conhecer o problema na sua totalidade;-- só posso intervir se tiver apoio técnico claro, variante denão podemos continuar sem psicólogo e sem assistente social;-- não posso intervir porque não tenho conhecimentos técnicos,

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variante de sou professor de Química e não percebo nada dedroga e de insucesso escolar;-- já tentei todas as intervençÕes possíveis, sem resultados;-- vou continuar a tentar, esforçando-me cada vez mais,variante simpática de "eles em breve darão cabo de mim".

A verdade é que há cada vez mais professores a seguir umacarreira psiquiátrica, em vez de obterem formação para poderemactuar melhor. Todos os técnicos de Saúde Mental sabem que umgrande número de docentes do ensino básico e secundáriorecorre a consultas de psiquiatria, esgotados por uma práticaquotidiana na escola para a qual não se vê saída.

Numa linha oposta, parece-me essencial que as teorias sobre amudança na escola estejam centradas no sujeito, objecto deintervenção. Foi o grupo de Palo Alto, na Califórnia, quempela primeira vez chamou a atenção para a importância dopróprio indivíduo na génese da sua própria mudança (1). Estaconcepção

(1) Watzlawick, P. Weakland, J., Fisch, R., Change: principlesof problem formation and problem resolution, Norton, N. I.,1974.

parte do princípio de que cada sujeito-problema tem ideiassobre a sua própria mudança, isto é, possui um conjunto depensamentos, atitudes e sentimentos que pensa estaremrelacionados com as causas do problema e com as ideias sobre aforma de o resolver. Cada sujeito-problema é essencial para aredefinição e deve ser o protagonista da intervenção, tendodireito a ser ajudado a reflectir sobre novas perspectivas demudança. O papel de interventor é o de criar o contexto ondevai emergir a intervenção.

1.o passo -- avaliação do problema

A reunião que descrevi atrás mostra que o problema "Gonçalo"não está correctamente avaliado. Trata-se de um aluno"insolente e indisciplinado" (professor de Matemática),"desinteressado, não participativo" (professor de Introduçãoao Direito), "talentoso" para a escrita (professora dePortuguês), com "falta de estudo" (Directora de turma eprofessora de História), eventualmente "deprimido" (poderia eusugerir), em agrupamento errado, a estudar Economia em vez deLetras...A primeira coisa a fazer é avaliar correctamente o problema.Nas questÕes de comportamento indisciplinado, por exemplo, éraro que os professores se juntem para decidir em conjunto asmedidas a tomar, depois de um trabalho de análise da situação.Este trabalho de avaliação deve ter vários passos:

(a) Avaliação da natureza do problema

De que estamos de facto a falar? Para o sabermos, devemoschamar todas as pessoas que tenham sido "tocadas" pela questãoe pô-las a falar brevemente, de uma forma eficaz e precisa.Algumas sugestÕes:

-- dê um exemplo recente do problema-- imagine que tinha na mão uma câmara de vídeo. Que filmaria?

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-- o que acontece primeiro? E depois? E depois? -- Apossibilidade de descrever a sequência do comportamento éessencial para podermos descobrir os elos que o podem estar aperpetuar-- quantas vezes ocorre? Quanto tempo dura?-- o que faz parar o problema? O que faz aumentar?

(b) Procura de soluçÕes

Numa escola não há tempo a perder. Temos de rapidamenteperceber o que foi tentado anteriormente e não resultou, assituaçÕes de excepção face ao problema e a definição deobjectivos para a mudança:

-- exploração de "soluçÕes anteriores" -- o que fez pararesolver a questão, por favor diga detalhadamente; o quepensou fazer e não fez, ou não foi capaz de fazer?; o quefizeram as outras pessoas;-- exploração de excepçÕes -- é muito importante determinar

onde e quando o problema não se manifestou e as consequênciasdesse comportamento diferente. Procederemos do seguinte modo:quando não ocorreu o problema?, o que mudou desde o problema?,quando é menos (mais) evidente o problema?, desde que oabordámos, o que mudou?, que acontecerá (por exemplo, aosprofessores e aos pais) com o fim do problema?, que seránecessário para fazer cessar o problema?

(c) Definição de objectivos simples para mudar

Não é possível transformar um aluno violento e hostil numcavaleiro branco, através de um passe de mágica. Um dosproblemas existentes nas escolas é o de não ser definidoexactamente para onde se quer ir na alteração do comportamentosentido como desajustado.Nas fases iniciais da intervenção, é importante perceber queuma pequena mudança, por mais simples e diminuta que pareça,vai mobilizar e tornar possível uma alteração posterior maisaprofundada. Curiosamente, quando trabalhamos numa escola comprofessores ou funcionários sobre questÕes da indisciplina, hágrandes diferenças na valorização que é dada ao comportamentoproblemático.É assim importante seguir um método, como agora se sugere:

-- classifique a gravidade do problema: de 1 (mínimo) a 10(máximo);-- que pode fazer para deslocar, no sentido do melhorcomportamento, apenas um número nesta escala;-- que podem os outros (pais, professores, funcionários,colegas do aluno) fazer para essa deslocação;-- se conseguirmos mudar uma casa nessa escala, o queacontecerá?-- vamos admitir que o problema se resolveria por um truque deilusionismoque acha das alteraçÕes que iria notar?quando imagina que os outros notarão a diferença?

Só depois de este primeiro e importantíssimo passo (avaliação)ter sido dado é que se torna possível intervir. Não se podeavançar sem compreendermos a dimensão do problema e averdadeira direcção da mudança que pretendemos.

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2.° passo -- intervenção

(A) EXCEPÇõES

Após uma avaliação do problema, cuidadosamente elaborada,poderemos intervir. E essencial não fazer "mais do mesmo",

porque a pseudo-solução encontrada agrava o comportamentodisfuncional. Se o aluno é indisciplinado ou pouco atento, aintervenção deve centrar-se não no seu comportamento habitual,mas antes nas ExcepçÕes ao seu modo de estar.Começamos, assim, por valorizar todas as excepçÕes do proble-ma -- no caso do Gonçalo, atrás referido, teríamos desalientar o seu comportamento de excepção nas aulas dePortuguês, em vez de insistir nas suas dificuldades em IDES eITI. Em seguida, vamos redefinir positivamente essasexcepçÕes, atendendo às condiçÕes e às circunstâncias em quese verificam. Um aluno indisciplinado e apático como o Gonçaloé valorizado na sua criatividade poética.Não basta ficar por aqui. É preciso promover a expansão das

excepçÕes; por exemplo, poderemos detectar qual a disciplinaem que será possível a aproximação a um novo comportamento, ouseja, onde poderá o aluno estar menos longe do padrão desejado(no caso do Gonçalo, talvez a professora de Introdução aoDireito tivesse sido menos crítica e fosse mais fácilmobilizar o aluno). Em seguida, deveremos conotarpositivamente toda e qualquer evolução positiva, mesmo quemínima, e manter o progresso efectuado através doenvolvimento, participação e encorajamento do aluno-problema.

Soube hoje, meu filho, que houve uma reunião dos professoresda tua turma para discutirem os problemas dos alunos. A tuamãe foi chamada à escola e insistem na ideia do psicólogo.Parece que esteve lá um médico que teve um programa natelevisão, que vocês viam pela noite fora ou aos bocadosdepois de o terem gravado. Sabes que a tua avó deu aulasmuitos anos e por isso tenho a certeza de que estás triste porcausa da rapariga te ter deixado, ou então não estás a estudaruma coisa que minimamente te inte-resse. No meu tempo e mesmo na época da tua mãe, era maisfácil a opção entre Letras e Ciências e acho que o teuproblema começou aí. Desde há três anos que te vejo a lerpoemas e a escrever versos num bloco que levas para todo olado. Parece que o tal médico, que anda por aí a falar com osprofessores e os alunos, quis ler os teus poemas e encorajou atua professora de Português (a única de quem verdadeiramentegostas) a ajudar-te a publicá-los. A tua mãe está muitopreocupada com as tuas negativas e as tuas faltas, eulembro-me do teu tio António e tenho medo de que tedesinteresses da escola. A verdade é que o teu tio tocavaviola espantosamente e eu nunca dei importância a isso. Quemsabe se ele deveria ter ido para músico?A tua mãe ficou com a ideia que a Directora de Turma se sentiuposta em causa pelo tal Professor de Medicina. Parece que osenhor só falava no facto dos professores da tua turma nuncase terem reunido antes para conversarem e cada um ter umaopinião diferente sobre ti e sobre os teus colegas. Pela minhaparte, só me lembrei que não fiz nenhum comentário quandofoste à cozinha ler um poema, estava eu a fazer leite-cremepara o jantar. No fundo, estamos todos a pensar que tens deentrar para a Faculdade para seres economista, não será melhordizeres já se não queres nada disso? Também, para dizer a

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verdade, como podes viver da poesia? No meu tempo e apropósito de um escritor qualquer, dizia-se que não vivia dapena, vivia da pena que a mãe tinha dele.Pego agora no livro que me ofereceste no Natal e sinto umarrepio. Não posso deixar de pensar que não estás bem e queessa apatia e falta de interesse pelos estudos é afinal uma

grande tristeza. Abro o pequeno livro de capa castanha, deVasco Graça Moura, deve ser um senhor que aparece natelevisão, eu em poesia fiquei no Fernando Pessoa. Li:

"Vem, quando o coração não aguentaa atroz pressão dos versos numa pregamais da realidade, a violentamorte cujo revólver, se fumegapor disparar assim à queima-roupa,guarda inda balas no tamborde uma melancolia que não poupaas sua muniçÕes e o mais que for

da praxe para um dia, no grau zero,se apagarem sinais do coração,quer o queiram sincero ou insincerovem, de certeza, quando já não são

os golpes da paixão arrebatadaa comandar a vida, o desafiode jogar de uma vez a tudo ou nada,como a roleta russa, a sangue frio."

... paixão, revólver, a sangue-frio... Gonçalo, neto adorado,pede ajuda. Não te mostres desinteressado ou hostil quandoqueres que te amparem. Não te mostres preguiçoso ouindiferente quando sei que a tua cabeça não pára de pensar ebem lá dentro não sossegas um momento.

(B) ALTERNATIVAS

Insisto na ideia de que muitos problemas se avolumam naescola pelo simples facto de a estratégia fracassada serrepeti-da sem cessar. A breve trecho, o professor está esgotado e ocomportamento desajustado permanece inalterável.A busca de alternativas para a resolução dos problemasavaliados requer grande criatividade por parte do professor. Éfundamental alterar o modo de proceder: por exemplo, mudarcompletamente o método de ensinar, utilizando o vídeo em vezda exposição cansativa, a simulação de papéis em vez doconfronto directo, a leitura de recortes de revistas em vez domanual do costume. Basicamente, é preciso fazer o imprevistopara obter mudança comportamental. Todos os professoresexperientes utilizam estratégias inesperadas para resolver osdilemas com que se confrontam. Não é possível nem desejável aexistência de uma cartilha de receitas para qualquer situaçãoque possa surgir no âmbito da relação professor-aluno. Atítulo de sugestão, dão-se algumas ideias que poderão serúteis (1):

(1) Cf. Murphy, J. e Duncan, B., Brief intervention for schoolproblems, Guilford Press, N. I., 1997.

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-- mudar a frequência do problema -- por exemplo, em vez derecomendar em todas as aulas a elaboração do trabalho de casa,fazê-lo apenas uma vez por semana;-- alterar a duração do problema -- se um aluno discute toda aaula com um colega, propor-lhe só o fazer cinco minutos emcada aula;

-- mudar a localização do problema -- sugerir ao professorciciar um comentário ao aluno em vez de respondersimetricamente ao grito do estudante;-- alterar a sequência das questÕes à volta do problema -- seo estudante sistematicamente se comporta de modo desajustado edepois pede sempre desculpa e diz "para a próxima vou atinar",sugerir que no princípio das aulas seguintes ele comecejustamente pela frase "vou atinar".Esperemos que os professores que eventualmente lerem estelivro não o apliquem como uma receita da Maria de LurdesModesto. Pretendo somente dar exemplos de alternativasinesperadas que surpreenderão, em vez de seguir, sem chama ouimaginação, o comportamento habitual que o estudante já sabe

controlar.

3.o passo -- acreditar/manter a mudança

Toda e qualquer evolução obtida, mesmo que mínima, deveria servalorizada. Impressiona verificar a descrença que seestabelece tantas vezes na sala de aula, com o alunogenuinamente a tentar melhorar um bocadinho, o professor aalterar ligeiramente o seu modo de actuar e os dois sem verema melhoria já conseguida. É preciso encorajar diariamente efazer notar ao estudante que foi ele que conseguiu a alteraçãodo comportamento avaliado como indesejável. Se ele foi capazde mudar, será capaz de manter a mudança, se o interventorpermanecer disponível.A partilha dos resultados obtidos é, por si própria, umestímulo para conseguir mais e melhor. É preferível fazê-lo emprivado, no intervalo a seguir à aula, do que enfileirar numdiscurso paternalista em frente dos colegas. Um velhoprofessor do Liceu Pedro Nunes, no meu tempo de estudante,oscilava entre dizer "você, que era um rapazinho tão brioso,que se passa consigo?" ou "temo-lo cá outra vez!", em todas assituaçÕes de quebra e posterior recuperação. As frases, tãorepetidas, provocavam o riso de toda a turma e novos focos deindisciplina. Mais de trinta anos depois a situação repete-senalguns locais...

Problemas graves,professores paralisados

Nas dezenas de escolas que visito anualmente em todo oterritório nacional, procuro transmitir a crença napossibilidade de mudança e a convicção de que estamos nummomento decisivo para a construir. Encontro muitos professoresmotivados ou mesmo entusiasmados, alunos criativos esaudavelmente críticos, funcionários atentos e paismobilizados para a melhoria da escola. É com este vastoconjunto de pessoas que é possível trabalhar, é para eles todoo meu esforço e reflexão.Não esqueço o muito que é exigido aos professores do ensinobásico e secundário. Apesar de o seu número de horas de

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trabalho semanal não ser muito elevado -- bem menor do que emmuitos países da Europa --, a pressão dos acontecimentosproblemáticos na escola, o impressionante conjunto de tarefasburocráticas a que são sujeitos e a falta de recursos externosà escola tornam difícil o seu quotidiano.A situação é mais grave na periferia das grandes cidades.

Quando visito escolas na periferia de Lisboa, Porto, Setúbalou Amadora, encontro muitos professores paralisados perantealunos com muitas dificuldades, escolas com problemas desegurança e pais sem lá aparecerem, com AssociaçÕes de Paispermanentemente queixosas da sua ausência.Sei que cerca de 100 000 estudantes abandonam anualmente osistema escolar sem terem concluído o 9.o ano da escolaridadeobrigatória, mesmo quando a escola está pedagogicamente bemorganizada e os professores aplicam, por exemplo, muitas dasestratégias referidas. Oiço então dizer: "os alunos não têmregras, vivem em barracas"; "os pais estão na droga, é uma avóque toma conta dele"; "já foi ao psicólogo uma data de vezes enão deu nada, não admira, em casa só há violência"; "chegam

aqui sem terem comido nada, como podem aprender?". EstasposiçÕes traduzem um profundo mal-estar do grupo docente,gerador de uma descrença que leva ao desinteresse ou aoesgotamento. Professores que leram o meu livro Voltei à Escolasorriram com benevolência e consideram que tenho uma visãoidealista da sala de aula. "Deveria vir dar aulas para aBrandoa ou para o Laranjeiro", gritou-me uma vez umaprofessora aflita de uma escola perto de Almada.Compreendo bem a gravidade destas situaçÕes e a dificuldade emencontrar alternativas. Sei que não é possível pretender que aescola tenha êxito e recupere crianças permanentementeexcluídas de uma sociedade do faz-de-conta. Julgo, contudo,que é preciso conhecermos um pouco melhor o problema.A questão começa no jardim-de-infância e nas escolas do 1.ociclo. Com o pai e a mãe a trabalharem ou à procura deemprego, quem toma conta das crianças até aos dez anos, quandoas instituiçÕes falham ou acabam as actividades escolares? Umestudo recente, na região da Grande Lisboa (1), mostra que

(1) Estudo de Anália Torres e J. L. Santos Castro, apresentadona Assembleia da República em Janeiro de 1998.

apenas 16% das crianças ficam com os avós e que as redesfamiliares são frágeis ou inexistentes, sobretudo nos casos demaior necessidade. As soluçÕes institucionais com preçosacessíveissão claramente insuficientes e é solicitado o apoio para aaquisição de competências específicas para a educação dascrianças, maisdo que é reivindicada uma política de simples atribuição desubsídios.Estas crianças vivem em condiçÕes de vida muito desfavoráveis,o que constitui à partida uma situação de risco psicossocial.Existe uma causa estrutural para este problema: a pobreza. Ascausas da pobreza estão na sociedade. Tive ocasião de afirmar,em colóquio realizado na Assembleia da República em Janeiro de1998, que a ausência de uma política de habitação que desseuma casa a todos os portugueses e acabasse com as barracas eraa vergonha da classe política. Pouco se poderá fazer por umapessoa que não tem casa, cujos pais lutam diariamente por umemprego precário e em que os filhos desde muito cedo contactamcom a droga ou a prostituição infantil. Muitas destas crianças

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de risco vivem desde o seu nascimento em situação de pobreza eexclusão social que tornam logo à partida problemática a suavida. Desde muito cedo são abandonadas, maltratadas ounegligenciadas pelos pais, não porque estes sejam à partidamal-intencionados, mas porque as suas condiçÕes de vida são detal modo problemáticas que são necessárias estratégias de

simples sobrevivência, incompatíveis com o desempenho defunçÕes parentais.Para sobreviver, a pré-primária e a escola do 1.o ciclo nãosão a solução. Não admira, pois, que muitas destas criançascomecem desde logo por não ir à escola e entrar em esquemas detrabalho infantil, ou em estratégias ilícitas, para obter apossibilidade de continuarem vivas. +s vezes fazem falta àfamília para "trabalharem" na mendicidade ou na droga, nãopara aprende-rem a ler e a escrever. Sabe-se hoje que 80% a90% das crianças que estão na rua provêm de famílias muitocarenciadas, em que cerca de metade são de origemcabo-verdiana. Impressiona ver como a protecção destasfamílias e em particular destas crian-

ças dos 0 aos 2 anos não constitui a prioridade dasprioridades, como costumam dizer os nossos políticos. Mas não.Provavel-mente é mais rentável eleitoralmente falar todo otempo de serviços para toxicodependentes, esquecendo que aprevenção detodos os comportamentos desviantes começa exactamenteaqui!Estas crianças vivem desde cedo na rua, nos seus bairros deorigem e perto das suas casas (?) degradadas. Adoptam desdemuito cedo códigos linguísticos característicos, muitas vezesrelacionados com os países africanos de onde vieram os seuspais. Vadiam pelos bairros de miséria, roubam ou desenvolvemexpedientes para vencerem o seu dia-a-dia. Colocam-se emsituaçÕes de risco para tentarem, desesperadamente, conferirum sentido para a vida. Julgam-se livres, mas estão numaprisão. É natural que desenvolvam sentimentos de profundaaversão face a uma instituição formal, cheia de regras e desaberes pseudo--organizados como é a escola tradicional.Estes problemas, a escola dita "regular" não pode resolver.Infelizmente, os professores perderam a sua função de agentesprodutores de cultura e hesitam no caminho a seguir. Alguns,num esforço notável, procuram suprir estas carênciasmultiplicando-se em actividades muito louváveis, masdestinados ao insucesso, porque a concepção do actual sistemade ensino, planeado para meninos brancos e da classe média,como eu costumo brincar,não permite respostas adequadas. É essencial que os professo-res se organizem e denunciem a impossibilidade de ensinarestascrianças na escola tradicional. Infelizmente, vejo muitos adesistir ou a reivindicar psicólogos, polícias e assistentessociais. Mais técnicos para burocratizarem o sistema, se ascausas são estruturais? Mais do mesmo, novamente! Adiantefalarei de outras propostas que julgo pertinentes. Para já, écrucial evitar a paralisia dos professores perante a dimensãodos problemas de certos alunos em determinadas escolas.Os professores estão muito habituados a olhar para os factoresde risco, embora o conhecimento desses dados não se revelemuitoútil para a sua acção. É deste modo que muitos docentesdesen-volveram competências para detectar os seguintes

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factores de risco:

-- a nível individual -- história de abuso ou violência, baixaauto-estima, doença física ou mental;-- a nível de família -- doenças nos pais, desorganizaçãofamiliar, pobreza, toxicodependência;

-- a nível da comunidade circundante -- desemprego,isolamento, poucas redes de suporte social, problemas dehabitação.

Que fazer com estes dados? Proponho um corte radical com esteolhar.Vamos fazer antes duas coisas: pesquisar factores protectorese organizar pedagogicamente a escola.Sabemos, da investigação psicossocial, que crianças e jovens,mesmo a viver em circunstâncias muito desfavoráveis, conseguemdesenvolver aspectos da sua personalidade que os tornam maisresistentes às condiçÕes adversas. Todo o esforço deverá serconcentrado, não na análise dos factores de risco, mas antes

na potenciação dos factores protectores, que a seguir seexemplifi-cam:

-- a nível individual -- boa saúde e aparência física,episódios de envolvimento afectivo com sucesso face a algunsadultos (por ex., um professor), algumas competênciasinterpessoais;-- a nível da família -- existência de algum familiardisponível, família com dificuldades mas com regras claras;-- a nível da comunidade -- suporte social, envolvimentoautárquico, estratégias de ligação entre a escola e o emprego,espaços para jovens.

Um aluno de insucesso só poderá melhorar se descortinarmos umconjunto de factores onde ele possa triunfar, por maisdiminutos que nos pareçam de início. Olhemos em volta edescobriremos. O que tem de ficar bem claro à partida é que aescola está pensada para a sociedade dominante e por isso areproduz. A escola é selectiva e por isso exclui. Jamaispoderemos pensar que cabe à escola resolver os problemasestruturais das sociedades actuais, caracterizadas cada vezmais por pobres cada vez mais pobres, ricos cada vez maisricos, consumismo exacerbado e quebra de redes desolidariedade da vizinhança.É preciso compreender também que as perturbaçÕes emocionaisestão relacionadas com dificuldades escolares, mas não competeao professor o seu tratamento. Para que fique bem claro o meupensamento: sou a favor da presença do Técnico de Saúde Men-tl na escola, sou CONTRA a psicologização ou psiquiatriza-ção da escola. Quer isto dizer que a escola não pode funcionarcomo um consultório gigante, com um psicólogo afogado em ca-sos que vão desde simples questÕes de indisciplina causadaspela relação professor-aluno, ou pela má organização da salade aula, até graves problemas de doença mental ou de carênciasocial.O psicólogo deverá trabalhar muito ligado aos professoresprocurando, com a sua visão do problema, ajudar a redefini-loe a enquadrá-lo de um modo diferente. Deverá estar muito bemarticulado com as estruturas de Emprego e de Saúde existentesna zona, fazendo os encaminhamento, necessários. Combateráfirmemente a estigmatização e a marginalização existente emmuitas escolas, que leva a serem considerados de insucesso

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alunos simplesmente diferentes. Dinamizará projectos dosalunos que julgue pertinentes para a melhoria do climaescolar. Lutará pela estranhamente abandonada Saúde Escolar(onde estão essas equipas, que não se sentem nas escolas?)através de uma colaboração interdisciplinar.Os professores não são psicólogos. Não lhes compete fazer

diagnósticos, nem dissertar sobre as dificuldades familiaresdos alunos, nem sobre as suas eventuais rupturas afectivas.

O meu neto foi hoje ao psicólogo e a entrevista não correumal. O Gonçalo estava muito desconfiado. Sabe que o seu casotem sido falado na Sala dos Professores e parece que houve umaprofessora qualquer que falou do fim do seu namoro à frentedos colegas. Tentei explicar-lhe que deveria ser para ajudar eser compreensiva, respondeu-me agressivamente que de boasintençÕes estava o inferno cheio. Por isso, faltou à primeirareunião com o psicólogo e disse-me Avó, não vou lá. A avó querque a escola inteira saiba que eu ando passado dos carretos?Resolvi sugerir-lhe que talvez fosse bom falar primeiro com

algum dos professores, que tal a professora de Português dequem ele às vezes falava? Olhou para mim muito sério e nãorespondeu.Nessa noite, sonhei que ele estava à beira de um precipício eeu sem forças para o agarrar. O Gonçalo gritava pela avó eeu,velha como os trapos, com as pernas a tremer e sem ter forçaspara o puxar para o pé de mim! Manuel, não me deixes agora, seestivesses ao meu lado agarravas este rapaz! Acordei com aroupa completamente revolta e semiatravessada na cama.No dia seguinte, soube que o Gonçalo tinha mesmo falado com aprofessora de Português. Parece que ela vai publicar os poemasnum jornal qualquer. Muito a bem, pela positiva, ofereceu-separa falar com o psicólogo. Foi por isso que o meu neto láfoi. Felizmente o psicólogo encorajou-o muito e sugeriu-lhefalar de novo com a mesma professora. Parece que não vai fazernenhum tratamento especial na escola e ainda bem. Detestariater o meu neto com um diagnóstico na testa.

Aos professores compete um conjunto mínimo de conhecimentosque permita detectar algumas situaçÕes de risco e compreenderalguns elos do desenvolvimento susceptíveis de articulação coma didáctica da sala de aula. É bom que o professor seja umareferência estável, a quem o aluno possa recorrer, mas quedeverá parar rapidamente se não se sentir à vontade no seupapel. Uma prática de vinte anos com professores e alunosdiz-me que muitas vezes a fronteira entre o professor e opsicólogo não está bem definida. Se não se sabe o que vaifazer com a confidência que se recebe ou com a informação quese obteve, é melhor não fazer nada. É terrível criarexpectativas de suporte afectivo e social que não podem sersatisfeitas.O texto seguinte fornece pistas de compreensão eesclarecimentos importantes sobre a acção do Técnico de SaúdeMental perante as perturbaçÕes emocionais no contexto escolar.

Aprender a viver (perturbaçÕes emocionaise dificuldades escolares) --PEDRO STRECHT

Caderno de significados

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 E um caderno de linhas aberto, calmamente esperandomovimentos compassados do lápis a desenhar letras, pala-vras, números, contas... Aprender é isto, mas felizmente quea vida é muito mais. Há coisas que se aprendem tão bemsem quase ninguém ter que ensinar e tanta coisa que se

ensina que quase ninguém aprende. Ainda bem que há sem-pre uma certa ironia aliada da verdade, um escrever direitosobre linhas tortas, um acertar que segura e confirma, umfalhar que descobre e alerta, um mal-estar que lembra edesperta.Há uma mensagem que se resume a isto: descobrir de novo asimplicidade esquecida das coisas, a harmonia secular do bomsenso e em caso de dúvida (como no palco da tragédia ou dacomédia) "sê sempre tu próprio!".O verdadeiro ensino não está só nos manuais, não se aprendesoletrado em 10 liçÕes, não se compra estafado na encomenda deocasião, nunca chega por decreto (quanto a isso, nunca). Maisforça que todas as leis tem o homem e dentro dele as crianças:

o poder de inverter a certeza de alguns movimentos, muitasvezes antes que o Sol feche o seu círculo no céu, o contráriode uma certa tendência para pensarmos demasiado em nóspróprios, o secreto entender que de altos e baixos se faz atranquilidade.Antes que as crianças sejam velhas de mais para verem sozinhaso que há para ver, ensinemos-lhes ternamente a Vida, a maiordas sabedorias.

Contas de cabeça

No trabalho diário do médico de Pedopsiquiatria as queixas daescola continuam a ser das principais que trazem pais ecrianças ou adolescentes às nossas consultas. Destacam-se duascomponentes:

-- dificuldades de aprendizagem (capacidade de adquirir e usarconhecimentos);-- problemas de comportamento (habitualmente instabilidade,hiperactividade e agressividade/destrutividade).

Estes últimos são muito importantes. Julgo mesmo que grandeparte dos professores de hoje passa muito tempo, mais do que atentar ensinar o seu grupo de alunos, a tentar contercomportamentos mais ou menos disruptivos. Também de uma formageral, e em muitos casos em particular, as estruturas defuncionamento depressivas, nas suas diversas formas, continuama ser as mais vulgares perturbaçÕes emocionais que condicionamestas dificuldades. O contributo da Psiquiatria Infantil eJuvenil para a compreensão de algumas destas situaçÕes não éúnico nem exclusivo; contudo, ela pode ser extremamente útilpois ajuda a perceber o que se passa no mundo interior destascrianças e adolescentes. Dito de outra forma, pode constituirum meio de entender o que será que afinal eles aprenderam tãobem que não os deixa aprender o que lhes queremos ensinar.A questão não é fácil, mas existem alguns pontos prévios queconvém não esquecer. Eles constituem o básico de uma propostade discussão para o entendimento de perturbaçÕes emocionaisque podem condicionar dificuldades escolares:

-- que a maioria das situaçÕes graves de dificuldadesescolares de crianças e adolescentes expressa também um

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mal-estar psíquico que não se originou apenas no momento emque se tornou observável; começou seguramente num qualquerponto anterior da evolução infantil, tomou corpo e deu sinaisexteriores provavelmente na altura em que vários mecanismos dedefesa não foram mais capazes de o conter internamente. Aconclusão mais rápida que este pressuposto permite é a de

assim ser possível reforçar a ideia de estarmos atentos eaptos a reconhecer sinais precoces de sofrimento psicológico,antes que eles resultem numa espectacularidade de queixas comrepercussÕes no meio (no caso, a escola);-- que a maioria desses mal-estares tem um significado na vidaemocional inconsciente dessa criança ou adolescente. Ou seja,que é preciso compreender a ligação entre o que eles pensam esentem, e o que simbolicamente expressam. Por exemplo, ummenino que dá um pontapé na porta da sala de aula não estápropriamente mostrando uma zanga contra a porta, mas simprovavelmente contra alguém ou algo que lhe provocou essesentimento. Aqui, a ajuda pressupÕe também que os adultoscompreendam isto e que saibam descodificar uma mensagem que,

aparentando uma coisa, quer dizer outra. O Diogo era um rapazde 10 anos que fazia muito repetidamente este tipo decomportamentos que descrevemos. Da conversa com ele, com a suaprofessora e com a avó com quem vivia, foi possível entender aligação entre estes actos e ausência dos pais, para a qual nãoencontrava significado (o pai recons- tituíra família e poucoo contactava e a mãe ausentara-se do país por razÕesprofissionais): "Sou como uma rã de um filme que eu vi. Era ahistória de uma rã verde que tinha ido parar a um mundovermelho e então não sabia lá muito bem o que fazer..." Estafrase do Diogo parecia bem elucidativa da desadequação dasrespostas do meio às suas necessidades afectivas e vice-versa;-- que nesse casos, aquilo que normalmente funciona na escola,falha; leia-se: um contacto adequado entre professor ecriança, um currículo interessante e moldado (dentro dopossível) às realidades individuais e do grupo, uma respostaafectuosa de estímulo positivo quanto aos resultados obtidos.

As estruturas depressivas destas crianças e adolescentes dizemcada vez mais respeito a falhas narcísicas (auto-estima) cujasraízes se desenvolveram desde os primeiros anos de vida,condicionando paragens, desvios ou distorçÕes de um sólidocrescimento emocional. A estabilidade de fases mais evoluídasdo desenvolvimento psíquico está longe de ser o que predomina.Um nível muito comum de funcionamento é o que podere-mos chamar de "incorporativo-evacuativo", de que uma boaimagem pode ser a de "água a correr para uma pia de raloaberto"; isto é, a informação flui sem que nada fique retidono interior e na riqueza das ligaçÕes psíquicas. Na melhor dashipóteses, quando mecanismos defensivos de clivagem conseguemmanter mais afastada a dor psíquica, assiste-se a uma colagemde conhecimentos feito à custa de processos de "identificaçãoadesiva". O resultado final é que não existe aplicaçãopossível, de forma autónoma e criativa, desses conhecimentos:a repetição imediata por condicionamento (amestração) é omelhor que eles podem dar em resposta ao que lhes pedem.Contudo, o contrário também é verdadeiro; ou seja, podemosnotar em crianças rotuladas pela escola de inaptas para aleitura (por exemplo)uma notável disponibilidade para o funcionamento nessa área,quando ultrapassados níveis de conflitos que bloqueavam essacapacidade.

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A Luísa era uma menina de 8 anos, muito instável na escola,com dificuldades na escrita e que não sabia ler a palavra Pai.Quando a conheci em consulta e lhe pedi para desenhar o queseria que ela pensava quando estava na escola e que não lhedeixava espaço para poder estar tranquila para aprender,desenhou a sua casa. + medida que nos fomos conhecendo melhor,

falou-me depois do pai que estava emigrado na Alemanha, e quejá não via há mais de um ano. Quando lhe desenho a bandeiratricolor alemã, disse-me rapidamente: "Essa palavra eu sei. ÉA-le-ma-nha!" Desenho então um avião e escrevo por baixo"avião". A Luísa olha e diz com olhar vivo: "Mas essa eutambém sei ler! Queres ver?... É TAP."Existe, portanto, uma forte ligação entre dificuldadespsíquicas (tanto maiores quanto mais precoces) e o impacte noequipamento necessário para uma criança aprender na escola,isto é, em algumas crianças e adolescentes existem níveis deconflitos psíquicos tão importantes que dificultam adisponibilidade interior para o conhecimento.Numa simplificação de mensagem diria: aprende melhor quem é

gostado. Aprende-se melhor do que se gosta. Para uma criançagostar de aprender tem que primeiro gostar dela e, depois, teralguém de quem gostar.

Noves fora, nada

As falhas no funcionamento deste tipo de crianças estão tambémhabitualmente associadas a dificuldades sociais e familiares.Sobretudo do ponto de vista familiar, é possível comfrequência destacarem-se:

-- perturbaçÕes da vinculação pais/criança nos primeiros anosde vida: muitas vezes o que predomina é o abandono, anegligência ou o abuso emocional. Em muitas encontramos mesmoabusos físicos e sexuais. As experiências relacionais sãopobres, intermitentes, descontínuas, distorcidas e por issosentidas como pouco gratificantes;-- perturbaçÕes psicológicas de um dos pais (ou prestadores decuidados), de ambos ou da sua dinâmica relacional; porexemplo, destacam-se as perturbaçÕes narcísicas e border-lineda personalidade, tais como as dos pais alcoólicos,toxicodependentes, etc. Nesses casos, os filhos não crescemnuma tranquilidade envolvente nem são pensados conforme osseus direitos e necessidades de crianças. Nos casos maisgraves, funcionam mesmo como objectos utilizáveis à mercê deproduçÕes mentais patológicas dos adultos;-- desagregação sociofamiliar intensa, isto é, ausência de"meio facilitador", ainda para mais mantida numa perpetuaçãotransgeracional de problemas. Depois, finda a possibilidade demanter uma maleabilidade psíquica e alguma capacidadereparadora, restará a algumas crianças (tal como na geraçãoanterior a seus pais) fazerem uso do processo de"identificação ao agressor", como forma de sobrevivênciapsíquica: "se nada podes contra eles junta-te a eles", se nãosuportas a violência que sobre ti exercem, serás violento,pois essa é a melhor forma de tu próprio a poderes controlarsem desistires e assim sobreviveres...

O Miguel tem 9 anos, e este é um excerto do nosso diálogo numaconsulta:

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 "-- Tu fazes-me um desenho de mim lindo?"-- Eu sei que tu passaste por muitas coisas que foramdifíceis e que com certeza sentiste como feias, mas isso nãoquer dizer que tenhas de te sentir sempre assim, feio."-- Sou, sou... Tu que és lindo, todo enfeitado."

E um outro, não muito tempo depois:"-- É que eu não gosto de ir à minha escola. É tudo feio..."-- Por que será que tu pensas isso assim?"-- Olha, sei lá! Também não gosto de ver cães a levarempontapés! "

O Miguel veio à consulta porque não aprende na esco-la, é instável no seu comportamento e agride os seus colegase professora. É trazido pela avó paterna, que com ele habitanum bairro degradado da cidade e que também nos diz "nãoter estudos...". As expectativas em relação ao progressoescolar do neto são pobres. Foi abandonado pela mãe. O pai étoxicodependente desde a adolescência, altura em que também

abandonou a escola, e até recentemente utilizava esta criançapara passar droga, sobretudo durante os períodos da noite,vagueando até altas horas...A distorção da auto-imagem deste menino por interiorização de"maus objectos" era muito importante. Muitas vezes, este tipode crianças e adolescentes organiza-se em volta de imagens tãodistorcidas como aquela que a "Casa dos Espelhos" poderia dar:e como explicar que, de facto, eles tomam como mais importantea imagem que os reflecte ora "muito altos e magrinhos" ora"muito baixos e gordos" do que uma outra que lhes estamos atentar devolver? Porque quem funciona como o verdadeiroespelho emocional nos primeiros anos de vida são os pais ou osadultos que moldam o esqueleto das primeiras relaçÕesemocionais, e, quando estas são vividas como negativas oudesadequadas, o padrão de funcionamento futuro fica assimprecocemente afectado.Outras vezes, não se trata tanto de uma distorção, massobretudo de uma falha (ausência) de uma construção, que seráa responsável por um enorme vazio interior. A pobreza emiséria psicológica de algumas famílias condicionam que desdemuito cedo as estruturas destas crianças seja um pouco como aprimeira casa da história dos Três Porquinhos: frágil,desmoronável ao primeiro impacto adverso. Aqui, depressãoseria também a dificuldade em pensar a ausência, trabalhoespecialmente difícil, sobretudo porque os pais são as maisaltas coisas que os filhos criam. Um risco futuro seria aorganização progressiva num estado de rarefacção psíquica, compredomínio das desligaçÕes.A Margarida tem 6 anos e é uma menina que vive numainstituição. Respondendo a uma sugestão da Professora para quefaça um desenho da família diz:"-- Família? (pausa)... Família? Vou desenhar um boneco,pipocas e um bolo."António, 11 anos, bom nível sociocultural, para quem a morterecente da mãe se tinha tornado um assunto nunca falado pelopai e irmão mais velho, respondeu assim ao mesmo pedidodurante uma consulta:"-- Então vou fazer um pára-quedista e depois... era uma veztrês homens que andavam à procura de uma arca perdida. A arcatinha o maior tesouro do Mundo, mas ela estava mesmo perdidapara sempre."

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 O imperfeito do verbo gostar

Os factores sociofamiliares referidos anteriormente levamvulgarmente a outras tantas dificuldades individuais:

-- falhas nas boas experiências emocionais primárias. Estastornam-se impensáveis para as crianças e adolescentes, dada asua qualidade traumática, ou distorcidas na expressão deimagens compensatórias (tanto maiores e mais idealizadasquanto piores as experiências reais). O padrão relacional é deuma desconfiança básica em relação a adultos e meio exterior;-- dificuldades na separação/individuação, acabando nafalha de definição de limites (no próprio interior e dointerior com o exterior). As aproximaçÕes são sentidas comointrusÕes; as ausências como abandonos. A distância emocionaltorna-se muito difícil de gerir e torna-se um factor principala ter em conta. Algumas das questÕes mais intensas de"indisciplina" na escola têm aqui as suas raízes;

-- dificuldades na capacidade de pensar: como dizia umadolescente que segui em consulta, 14 anos, 3.a classe, "é queà porrada é mais rápido...". Os conhecimentos da escola serãono máximo conglomerados (ilhas ou arquipélagos) nãoabsorvíveis ou integráveis no funcionamento global do "eu". Aenergia psíquica permanece canalizada para a satisfação depulsÕes muito primitivas; sobreviver na luta por necessidadesinvestidas (falsamente) como gratificantes e poderosastorna-se então uma das estratégias procuradas. Muitos delesacreditam que o peso do passado -- e das primeirasexperiências escolares negativas -- terá de permanecer parasempre, e que nada mais lhes resta que agi-lo no presentecontra eles próprios ou contra os outros.

Temos assim nestas crianças uma sintomatologia caracterizadapor:

-- uma ansiedade predominantemente de perda de amor;-- distorção das relaçÕes criança/meio, ou seja, criança//família/escola, maioritariamente expressa em respostasreactivas, quer dizer, comportamentos disruptivos. A criança éa ferida que fere, a que aniquila por medo de ser aniquilada,a que abandona por medo de ser abandonada;-- uma patologia do agir visível numa dupla vertente: actosnão pensados, pensamentos não agidos ou comunicados. O comboioque leva do agir ao pensar não pára no apeadeiro do pensar.Existe uma precariedade na forma como expressam sentimentos,que vulgarmente não é por palavras; é que muitas vezes asdificuldades mais importantes ocorreram em níveis de evoluçãopré-verbais (primeiros anos de vida).

O Zé tem 12 anos e a sua história não é única; é comum etípica de outras situaçÕes que conhecemos.O Zé viveu com os pais até aos 4 anos, num bairro social muitoproblemático. A mãe abandonou-o então. A criança ficou aoscuidados do pai, homem com problemas de alcoolismo e empregoincerto. Quando entrou para a escola, aos 6 anos, oscomportamentos agressivos tiveram início, não sem que antesexistissem já referências claras de instabilidadeincontrolável no jardim infantil. Chegou a agredir aprofessora, batia noutros meninos. As dificuldades escolareseram globais. Nenhuma resposta foi posta em prática. Os

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problemas aumentaram. Passou a faltar com muita frequência.Circulava à pendura nos eléctricos da zona."-- Eu achava que sabia onde a minha mãe estava e ia à procuradela", explicou-me um dia.Por se achar incapaz de controlar a situação, o pai colocou-onuma ama "selvagem". Aos 12 anos repetia pela terceira vez o

5.o ano de escolaridade. Quando entrava na escola era de talmodo conhecido que colegas e professores temiam pelos seusactos. O mal-estar era imenso: por exemplo, pendurava-se nasjanelas altas simulando eventuais quedas. Noutro episódio,baixou as calças à frente de todos, numa aula de Matemática.Estava em risco de abandonar a escola, apesar de ser um miúdomuito esperto. Dizia-me:"-- Eu bem quero ir, mas é assim... Vou pela rua e a estradafoge-me. Eu odeio lá ir. Eles também não gostam de mim... +svezes gozam-me. Um dia, eles vão ver."

Como vemos por este caso, na ausência de uma estabilidadeemocional adequada, em que as pulsÕes de ódio (em vez das de

amor) já podem ser importantes, o tal saudável desejo decrescer e prazer de aprender é apenas uma miragem para estascrianças.A vida psíquica organiza-se para um padrão de sobrevivênciaperante as lutas internas e externas que constantementeameaçam o seu funcionamento. A escola é por excelênciao palco destes dramas; a aprendizagem ainda mora ao la-do!Acresce ainda um ponto: por vezes, o desfasamento entre o quea escola pode ou quer oferecer e o que estas crianças aliprocuram é enorme. Ninguém procura em alguém o mínimodenominador comum.

P.rà rua (ou talvez não)

As mais preocupantes situaçÕes de crianças e adolescentes quenão aprendem têm um enorme impacte no dia-a-dia da escola,levando habitualmente os adultos a sentir a ansiedade, aconfusão e o caos que elas produzem. Como muitas vezes édifícil a escola estar adaptada para responder a isto mesmo,todos parecem reagir, não reflectindo, dando vulgarmenterespostas que como consequência reproduzem afinal asexperiências precoces de falhas na contenção do meio.

O João tinha 9 anos, nível escolar quase zero. Ou melhor,estava "oficialmente numa 3.a classe, a um nível de 2.a,fazendo fichas de 1.a". As queixas de comportamentosagressivos eram por todos sentidas como imparáveis. O Joãotinha-se tornado o "menino-problema" da sua escola. Para quese possa entender um pouco melhor a razão deste quadro,podemos acrescentar que este menino tinha sido vítima de abusosexual. Os próprios pais estavam longe de conhecer a questãoquando falámos nas primeiras consultas.Contudo, a resposta da escola para esta situação tinha sidocolocar a criança a saltitar de sala em sala (todos os diasuma), numa fórmula em que "repartir o mal pelas aldeias" foitida como a acertada. Bom exemplo perpetuante de umadescontinuidade, de ausência de limites, até impeditivo daorganização de um sentimento de integridade e pertença tãonecessário para a reestruturação psíquica do João. A escola émais que uma "federação de salas de aula"; uma criança é maisque o somatório de várias funçÕes.

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Este caso relembra ainda uma questão essencial: para que seatinja a tão desejável "inclusão escolar" será semprenecessário actuar junto daqueles que não podem (porque estãopsiquicamente doentes) fazer uso dela, e que, portanto, seexcluem ou acabam por ser excluídos; justamente porque aprimeira etapa, a da própria "inclusão e integração" das

funçÕes psíquicas, ainda não existe ou sofreu uma rotura. Omesmo em relação à questão das puniçÕes e castigos: podemospunir ou compreender. Vulgarmente, quanto mais compreendermosmenos necessidade teremos de punir, embora a questão primeiraseja sempre: que uso faráa criança dessa mesma punição? Controlar por ameaças, pelador, humilhação, privação, ou não controlar de todo, sãoextremos a evitar.Assim, para estas crianças e adolescentes cujas perturbaçÕesemocionais condicionam problemas na escola, "aprender a viver"será o primeiro e decisivo passo para a sua evolução. Paraisso, é essencial a reconstrução de uma identidade básica quefacilite um novo modelo de relação com o adulto que lhes está

próximo, de forma a que possam progressivamente recuperar aconfiança em si mesmos, depois no adulto enquanto pessoa eprofessor e só depois (e de novo) com os outros em geral, como mundo, num nível estável de um prazer de funcionar. Só porfim poderão estar aptas para "viver a aprender". Sabemos que otrabalho é longo, e nem todos conseguiremos recuperar para asua própria vida, para uma profissão, para a sociedade. Mas éde pequenos gestos que se podem mudar alguns destinos que,deixados à sorte, levarão sucessivamente ao absentismo,insucesso, abandono escolar, desinserção socioprofissional,toxicodependência, marginalidade, tendo como destinos últimosos hospitais, a prisão ou simplesmente a rua.

Alguns jogosde escola/brincandocom coisas sérias

"Jogo do Mata" -- "Lado de lá": Despotismo. Medo.Humilhação. Confusão. Arrogância. Intolerância. Inveja.Insegurança. Crueldade. Amestração. Indiferença. Descon-tinuidade. "Lado de cá": Confiança. Tolerância. Verdade.Respeito. Gratificação. Exigência. Esperança. Previsibilidade.Descoberta. Admiração. Disponibilidade.Podem entrar mais participantes. Mesmo que haja quem jogue do"lado de lá", é obrigatório para os adultos terem de jogar do"lado de cá". O objectivo é ir trazendo todos para o nossocampo, enfraquecendo aos poucos o adversário.

"Jogo da Macaca": tem de se atirar a marca sucessivamente de 1a 9 a ver se se acerta e depois fazer o percurso saltitando.São naturais alguns balanços e hesitaçÕes. Nem sempre é fácilacertar no número que se pretende.

1 -- +s vezes, todos erramos.2 -- Vale sempre a pena ouvir.3 -- Mesmo que a cabeça não pense, o coração bate.4 -- Não há nada que não possa ser posto em palavras (no tempoe local certo).5 -- Os olhos dizem (quase) tudo e o sorriso vale ouro.6 -- A empatia vale mais do que qualquer técnica.7 -- O passado não tem que ser o destino.8 -- É uma pergunta: que chance tem a minha voz de atingir a

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tua e deixar nela um traço?9 -- Mesmo que a verdade seja "não posso ajudar", a esperançanão pode morrer.

Boa sorte!

"Cabra-Cega": um tapa os olhos com uma venda e anda à rodapara ficar sem norte. Depois, tem de apanhar outro e descobrirquem ele é. Ganha se acertar. Moral da história:

-- não nos conhecemos só pelo que já sabemos;-- as aparências iludem;-- quem vê caras não vê coraçÕes;-- descobrir os outros leva tempo (mas é decisivo);-- é possível, por momentos, sentirmo-nos perdidos. Mas tambémé possível encontrar alguém;-- há sempre boas surpresas (especialmente quando se tiram asvendas).

"Apanhada" (é um dos mais conhecidos; será um dos maisesquecidos?): as mãos suavemente poisadas, as mãos abertasminuciosamente -- a esquerda ou a direita (é indiferente) --numa folha de papel branco, cuidadosamente definidas numcontorno anguloso de lápis, o sorriso então pronunciado comalgumas falhas do risco nas curvas acentuadas.As mãos docemente postas, ternamente apertando (as minhas),seguras ou frágeis, grandes ou pequenas. Pelas mãos nãosentimos apenas; descobrimos, falamos, vemos, saboreamos,ouvimos, escorregamos pelos declives da vida, subimos ao cumeda vida, a aspereza da vida, a lisura davida.As mãos em tanta coisa bela, no regaço das mães entrelaçadas,abraçadas no colo, postas ao serviço de amar. Muitas formas deamar -- sabemos disso -- só são possíveis assim, pelas mãosque seguram, juntam, apertam, cuidam, desprendem, afastam,dizem adeus...E agora, hoje, que as nossas palavras são sempre rápidas,breves, duras -- já quase não falamos nos braços uns dosoutros --, se cada mão com uma outra sempre existisse, nãoficaria ninguém por ser tocado.

Sobre a organização da escola (contribuição breve a tentardesfazer alguns equívocos)

1 -- Autonomia

Sou claramente a favor do desenvolvimento da autonomia dasescolas. Como já afirmei no meu livro Voltei à Escola, oestabelecimento de ensino é uma organização comcaracterísticas diversificadas. Uma escola do interior não éigual a uma escola do centro elegante de uma grande cidade. ONorte de Portugal é bem diferente do Sul. Embora sejamos umpaís pequeno, somos grandes em tradiçÕes e culturas locais. Ogigantismo centralizador do Ministério não tem permitido aflexibilidade organizativa que é cada vez mais necessária àescola.Quando se analisa a legislação existente sobre a autonomia,fica-se por vezes com a ideia de que se pode ir mais além emclareza e precisão. No meu entender, é necessário esclarecer

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vários aspectos: autonomia deve significar o apagamentoprogressivo do poder central, até aqui o único capaz dedecidir as questÕes educativas. A existência de muitasescolas, de norte a sul, com uma identidade e uma culturapróprias permite a construção de projectos educativos locais(1), aliás já existentes em muitos estabelecimentos de ensino.

(1) Cf. Macedo, Berta, A Construção do Projecto Educativo daEscola -- Instituto de Inovação Educacional, Lisboa, 1995.Agradeço à Autora algumas sugestÕes para a elaboração destesubcapítulo.

Autonomia, contudo, não significa independência. Umadolescente pode ser autónomo em relação à família e continuara depender financeiramente dos pais; mas jamais conseguirá serindependente se não tiver passado por uma progressivaautonomia. Os interlocutores desta questão, em Portugal,confundem sistematicamente os dois conceitos e ficamaterrados, pois pensam que as escolas que não forem capazes de

caminhar para a autonomia vão ficar sem funcionar. Tal como asfamílias, há filhos mais rápidos que outros a ser autónomos:só em famílias muito patológicas é que os mais lentos ficamsem o pão da boca. No mesmo sentido, é evidente que algumasescolas se vão autonomizar mais depressa. Qual o problema? Oque é importante é que o Ministério garanta que cada escolafuncione como um centro de formação e educação, que tem deresponder de forma diversificada às necessidades locais.Para mim é evidente que não basta legislar bem a nívelcentral. Basta que o corpo docente de uma escola se alteresubstancialmente para que esta passe a ser uma organizaçãodiferente. Então a autonomia é um meio e não um fim: é apossibilidade de encontrar soluçÕes a partir da organizaçãodo sistema. Tal como no sistema familiar, capaz de se au-to-organizar -- e as novas terapias familiares têm bemdemonstrado a capacidade de auto-organização das famílias --,também a escola se deverá auto-organizar como sistema local deeducação. As áreas de competência das escolas deverão, emconsequência, ser reforçadas e os estabelecimentos de ensinodeverão ser capazes de gerir, com mais ou menos rapidez emaior ou menor autonomia, as dependências necessárias para oseu melhor funcionamento.Para que uma escola seja protagonista de um processo deautonomia, deverá negociar e obter os recursos necessáriospara realizar o que pretende. Se a escola quer ter umaidentidade que lhe permita fornecer um contexto propício pararealizar o seu projecto educativo específico, deveráorganizar-se internamente e ligar-se ao exterior, para poderser diferente. Não poderemos continuar a ter programas,recursos e pedagogias iguais em todo o lado.O Ministério da Educação não deverá precipitar a autonomia deuma escola se esta não tiver condiçÕes para o fazer. Oscontratos deverão ser transparentes, mas diversificados e deacordo com o grau de desenvolvimento. Assim como um pai nãofaz passar o seu filho do colo para a bicicleta, o Ministérionão deverá avançar um projecto de autonomia sem um corpodocente estável, um projecto educativo realista e uma partilhade responsabilidades a nível local, e a possibilidade de umaformação contínua dos professores.É minha convicção que é preciso ir mais longe naresponsabilização autárquica do sistema escolar. Não bastadizer que os autarcas terão assento na Assembleia da Escola, é

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preciso que a administração central transfira verbas para ascâmaras municipais, de modo a que estas tenham progressivasresponsabilidades na gestão das escolas. Esta é a única formade evitar o centralismo imobilizador, ou uma excessivaautonomia potenciadora de uma independência demasiado precoce.Para que a autonomia possa funcionar, é preciso criar ou

dinamizar os Conselhos Locais de Educação, infelizmente compouca expressão em muitas zonas do país. Quando funcionam,esses Conselhos constituem uma estrutura essencial, geradorade projectos verdadeiramente inovadores e ligados ao meio.

Em resumo, autonomizar progressivamente, responsabilizarclaramente as autarquias, ligar a escola ao emprego e à vidaactiva em cada região.

Vi hoje no jornal, Gonçalo, que ganhaste outro prémio, 1.olagar nos Jogos Florais de Poesia da Câmara! Não pudestedeixar de sorrir. Talvez vá falar com o Presidente da Câmara epropor-lhe a edição de um livrinho com as obras dos premiados.

Sabes que o Presidente era muito amigo do teu avô Manuel?

2 -- Os pais e a escola

Para que também não fiquem dúvidas: sou absolutamentea favor da cooperação dos pais em projectos da escola queenvolvam os professores, alunos e funcionários. Julgo, noentanto, que os papéis deverão ser bem definidos.A vida constrói-se em diferentes narrativas e em espaçosdiferenciados. É essencial que as crianças e os adolescentespercebam o papel dos pais e o papel dos professores. Um alunodisse-me uma vez que o professor era um "pai escolar". Queconfusão ia naquela cabeça! Também ouço professores dizerem àsvezes que são uma "espécie de mães". É preciso dizer bem altoque esta escola dos afectos, assim indefinida, só traz consigoa confusão, sobretudo em jovens à pro-cura da sua identidade ou já a funcionarem em pseu-do-seres.O crescimento, como tão bem o demonstrou João dosSantos (1)

(1) Santos, João dos, Ensaios sobre Educação I e II, LivrosHorizonte, Lisboa, 1983.

(um autor estranhamente desconhecido para grande número deprofessores actuais), faz-se à custa da conquista de parcelas,em que o adulto é um mediador entre a criança e o espaçoexterior. Crescemos também através de pequenas transgressÕes,de jogos de cumplicidades entre nós e alguns dos outros, comos quais os restantes nada têm a ver. Aescola é um espaço de liberdade essencial para as crianças,que os pais devem acompanhar, mas que não devem CONTROLAR.É preciso que exista uma confiança básica entre as geraçÕes.Para estruturarem a sua personalidade, os jovens precisam deregras fornecidas por adultos seguros do seu papel e sem medodas suas convicçÕes.Faz-me muita confusão a presença de pais em ConselhosDisciplinares e a acorrerem à escola ao menor sinal demal-estar dos seus filhos. Estamos a caminhar para umadesresponsabilização sistemática de todos: professores têmmedo dos pais, pais comentam a didáctica da sala de aula,alunos não sabem quem manda na escola e em casa vêem uma

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conversa, que desejariam ser sobre afectos, desaguar nostrabalhos de casa.Os pais de hoje têm muitas dificuldades e hesitam no caminho aseguir. Consomem literatura sobre a adolescência à procura desoluçÕes mágicas. Infelizmente, adultos com mais formação nãosignificam sempre adultos bem formados. Por vezes, parecem

perder a espontaneidade necessária à educação livre queideologicamente dizem defender. Como os professores são umgrupo muito pouco coeso e cheio de dúvidas, arriscamo-nos ajuntar na escola dois conjuntos de adultos inseguros,disputando o poder e o controlo, mas deixando os jovens semsaber para onde olhar. Experiências de outros países têm aliásdemonstrado que a presença constante de pais na escola nãomelhorou a indisciplina (na maioria dos países da UniãoEuropeia, os pais não têm assento nos órgãos decisórios dasescolas).Os pais tendem a ser parciais com os filhos. O contrário é queseria de espantar. Por isso, vejo com dificuldade serem juízesem causas próprias. Assim como os médicos não devem tratar os

familiares, penso que os pais o precisam de ser em casa, maisdo que na escola.Em que ficamos, afinal? Na palavra "cooperar", que significatrabalhar em conjunto. Organizar e dinamizar projectos. Lutarpela melhoria das condiçÕes da escola. Responsabilizar osfilhos para que eles sejam progressivamente os gestores dosseus deveres escolares. Participar, em minoria, na Assembleiade Escola. Ter apenas um papel consultivo no ConselhoPedagógico. Penso, aliás, que com a dinamização de activosConselhos Locais de Educação, é sobretudo nessas estruturasque as organizaçÕes de pais devem trabalhar com exigênciaseficazes no plano educativo.É de louvar todo o trabalho efectuado pelas AssociaçÕes dePais, com quem trabalho em todo o país. É bom não esquecer,contudo, que uma grande percentagem dos pais dos alunos sãocompletamente alheios a todo esse labor. Numa investigação quecoordenei em 1996 (1), com uma

(1) Sampaio, Daniel (coordenador), Inquérito "Escola, Famíliae Amigos" -- Programa de Promoção e Educação para a Saúde,Ministério da Educação, Lisboa, 1996.

amostra de 9608 estudantes do 8.o ao 11.o ano, média de idadesde 15 anos, recolhida em 111 escolas oficiais de PortugalContinental, 53,3% dos pais e 51,9% das mães tinham apenas a4.a classe. As mães com licenciaturarepresentavam 8% e os pais licenciados não atingiam os 10%(9,7%). Como pode esta avalanche de pais, infelizmente com tãopouca instrução, compreender o discurso por vezes herméticodos dirigentes das associaçÕes de pais, cheios de siglas dedifícil compreensão (FERLAP, FRAPAL, CONFAP, etc.)? Só umtrabalho em comum, a partir de experiências muito pequenasvividas em cada escola, concretizadas a partir de um projectoeducativo redigido em português simples e não em "eduquês",pode levar a uma participação clara e útil dos pais na escola.Por isso, não faz para mim sentido a proposta da FERLAP(Federação Regional de Lisboa das AssociaçÕes de Pais), deJaneirode 1998, ao defender que "ao Conselho Pedagógicodevem ser atribuídos poderes decisórios e não apenasemissão de pareceres, nomeadamente no que diz respeito aprojecto educativo da escola; orçamento; avaliação do pessoal

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docente e não docente; plano anual de actividades". A caminharneste sentido, iremos para uma escola onde ninguém se entende.O Ministério da Educação deve pensar todo o sistema, no seuconjunto. Fico com a sensação de que, espartilhado entre apressão dos sindicatos dos professores e as associaçÕes depais, esquece um pouco os alunos, afinal a razão de ser de

tudo isto. É inegável o progresso introduzido pela actualequipa ministerial, sem dúvida merecedora de aplauso pelavontade de mexer no sistema, em vez de apenas o gerir. Porisso é que é preciso aproveitar e não ter receio de ir maislonge.Aproveitemos a força política das associaçÕes de pais paraexigir um melhor ensino. Lutemos para que o Estado seresponsabilize pelo apoio aos alunos que não têm estruturasfamiliares. Cooperemos com os professores, mas deixemos a salade aula para eles se entenderem com os nossos filhos.Não controlemos permanentemente o que os jovens fazem naescola, talvez seja melhor falar com eles em casa (1).

(1) Agradeço a Eulália Barros algumas sugestÕes utilizadasneste subcapítulo.

3 -- Sobre a sala de aula

João dos Santos introduziu em Portugal a pedagogiaterapêutica, como ajuda alternativa para crianças eadolescentes que necessitassem de cuidados especiais. Nofundo, é um tratamento de jovens inadaptados que, emborainteligentes, têm maus resultados escolares. As escolasportuguesas estão cheias de crianças nestas condiçÕes. Sãomuitas vezes intitulados "meninos de insucesso" e empurradospara o ensino especial, para turmas de repetentes ou paracurrículos alternativos. Este mito de que as escolas e classesespeciais resolvem todos os problemas pedagógicos tem levado àprogressiva descrença e desresponsabilização de muitosprofessores.Uma escola bem organizada tem de ter sempre em conta asrelaçÕes estabelecidas entre os que ensinam e os que aprendem.As educadoras de infância sabem bem que, se a criança não seconseguiu autonomizar minimamente, não consegue aprender.Para muitas crianças e jovens de hoje, a sala de aula é umespaço que não serve as suas necessidades afectivas, comoatrás escreveu Pedro Strecht.Em crianças com dificuldades de aprendizagem, Eulália Barrosdefende a existência "de um conjunto de regras elaspróprias contentoras e organizadoras do funcionamento dascrianças e dos adultos" (1).

(1) Barros, Eulália, A Pedagogia Terapêutica em João dosSantos, Monografia CESE em Saúde Mental Comunitária, ISPA,Lisboa, 1996.

Seja qual for a turma em causa, defendo um conjunto depressupostos essenciais para o ensino:

(a) O envolvimento pedagógico permanente e activo é in-compatível com um comportamento persistentementeindisciplinado ou agressivo.

Alunos a trabalhar todo o tempo durante a aula, eis o que

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proponho. Trabalhar é também pensar, debater, para além deler, escrever e contar. O que não faz sentido é ter alunos nãoenvolvidos no trabalho ou a fazerem as fichas de outradisciplina. Não pode haver dúvidas de que quem manda na escolaé o Director ou o Presidente do Conselho Directivo ouExecutivo; quem manda na aula é o professor. A escola não é

uma comunidade onde todos têm os mesmos direitos e deveres. Ainfeliz expressão "comunidade educativa", um dos vocábuloscaracterísticos do "eduquês", leva a uma permanentedesresponsabilização completamente deseducativa. Os alunossabem bem o que esta mistificação esconde porque, emderradeira análise, o professor (e muito bem) acaba por ser oúltimo juiz que o avalia e o faz progredir ou estagnar.Nenhuma organização social, nenhum sistema humano podefuncionar sem hierarquia. Já viram um governo funcionar bemsem primeiro-ministro? Uma equipa de futebol sem treinador?Uma família onde os filhos mandam é recomendável?Não me parece correcto, por conseguinte, toda e qual-quer medida que faça diminuir a autoridade do professor,

que lhe é conferida (mal ou bem) por uma qualificaçãoacadémica que o torna diferente do aluno e do pai. Tambéma sociedade em que o aluno vai trabalhar quando deixar deestudar não é uma sociedade em que cada um pode fazer o quepretende.Ter autoridade não significa não ouvir o aluno. Precisamoscada vez mais de ter retroacçÕes sobre a forma como estamos aensinar. Por isso:

(b) A metacomunicação (comunicação sobre a comunica-ção) é essencial para assegurar progresso.

Ouçamos os alunos de uma forma organizada. Procuremoscompreender como estamos a ser entendidos. Depois decidimos.

(c) A turma deve ser transformada num grupo de trabalhocooperativo.

Mesmo que a turma fosse artificialmente homogeneizada(tentação totalitária infelizmente praticada em algumasescolas), os ritmos de aprendizagem são diferentes, porquedíspares são os desenvolvimentos cognitivos.É preciso ajudar os alunos, desde o início do ano, a ouvir aopinião dos outros, a deixar falar cada um e a fazercontribuiçÕes concisas para o trabalho da turma. É essencialtorná-los responsáveis pela ajuda de outros, tendo como meta otrabalho da turma. Alunos mais "rápidos" podem auxiliar outroscom maiores dificuldades de aprendizagem. Alguns professores ecertos militantes do movimento associativo de pais ficam muitoinquietos com os "bons alunos" a "perderem tempo" a ajudaroutros. A verdade é que é educativo perceber que existemdiferenças, modos dissemelhantes de encarar um problema evárias estratégias para o resolver. Ajudar um colega é óptimopara consolidar conhecimentos e cria sentimentos positivos desolidariedade. "Ce qui se pense bien s.enonce clairerr ent",dizia Boileau. Já no velhoLiceu Normal de Pedro Nunes eu trocava os meus bonsconhecimentos de Inglês por umas explicaçÕes do "mate-mático"da turma.E evidente que para trabalhar em grupo é preciso acreditarque:

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(d) Só a diferenciação das práticas pedagógicas no grupoturma possibilita a disciplina consentida.

Existem muitos professores que dizem ser isto impossível.Nunca mo conseguiram demonstrar. Os que não estãodefinitivamente ancilosados têm esta experiência como

enriquecedora. É preciso perceber a rede de comunicaçãoexistente em cada turma e trabalhar de acordo com um planopreviamente estabelecido, resultante da análise feita em aulasanteriores.

(e) O reconhecimento de factores sociofamiliares relaciona-dos com o comportamento agressivo não isenta o estudante deser responsabilizado pelos seus actos.

Dito de outra forma: se o aluno não tem regras em casa, aescola é a última oportunidade para que ele as conheça. Numaescola de Lisboa onde trabalho com regularidade, foi curiosoverificar como alunos outrora considerados sem regras foram os

primeiros a cumpri-las, quando os professores se transformaramnum grupo coeso e procederam, sob o ponto de vista do controlodisciplinar, de um modo concertado.

Contra a exclusão escolar

O início do século XX foi caracterizado por algumasideias ingénuas. Uma das que teve mais continuidade foi ade que era preciso criar uma escola obrigatória para todos osalunos. Rapazes ou meninas, ricos ou pobres, com famíliaou sem família, todos os alunos deveriam ser ensinadoscomo se fossem um só. Estava criada a ideia da escolapopular e da turma homogénea, que tem perdurado até aos nossosdias.Não demorou muito tempo até o sistema perceber a ilusão quecriara. Muitos alunos começaram a "atrasar-se" e, com o apoiodas célebres escalas de Q. I. (quociente de inteligência),foram considerados "diferentes" e muitas vezes colocadosem colégios "especiais". Os meninos não aprendiam por-que não eram inteligentes, logo era necessário criar formasde compensação para que ultrapassassem a sua falta dedons.O grande problema resultante desta evolução tem levado a queum número crescente de alunos não possa acompanhar o chamadoensino "regular" (!), passando a engrossar os dispositivos"especiais" ou a iniciar a sua carreira de tratamentopsiquiátrico. A situação tornou-se profundamente paradoxal:uma escola de massas, que se quer democrática porque "paratodos", vê sair do seu sistema muitos dos seus membros; apretendida escola para todos tornou-seapenas para alguns. É evidente que as crianças com doen-ças orgânicas, ou com graves problemas de desenvolvimentoafectivo, são as principais vítimas desta exclusão mais oumenos disfarçada.Felizmente que muitos se têm apercebido desta realida-de. Foi claro para os investigadores, a partir dos anos se-tenta, que o "não aprender" é a resultante de uma complexateia de variáveis. Pode-se não aprender porque não se ouvebem, porque se tem uma doença mental ou porque o climada sala de aula e a relação professor-aluno dificultam a

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aprendizagem.Foi então que se começou a pensar de maneira diferen-te: se a escola se organizasse e fosse capaz de criar meiose estratégias de apoio à educação, talvez fosse possíveldiminuir o número de alunos de "insucesso" e minorar oproblema da exclusão escolar. Para isso era preciso

distinguir os alunos que necessitam de médicos daqueles quepodem evoluir se o modelo educativo se modificasse demodo a incluí-los.Foi graças a esta evolução que alunos com deficiênciaspassaram a receber apoios adequados que lhes permitiramfrequentar a escola regular. Passou a falar-se de "alunoscom necessidades educativas especiais", pediu-se maisclaramente o apoio dos pais à escola e muitos professoresreceberam formação específica para o ensino destes alunos.É neste sentido que se fala da "escola de inclusão",definida na Declaração de Salamanca (assinada por muitospaíses, entre os quais Portugal, em 1994) com o princípio "deque todos os alunos devem aprender juntos [...]; as escolas

devem reconhecer e satisfazer as necessidades diversas dosseus alunos, adaptando-se aos vários estilos e ritmos deaprendizagem, de modo a garantir um bom nível deeducação para todos através de currículos adequados, deuma boa organização escolar, de estratégias pedagógicas, deutilização de recursos e de uma cooperação com as respectivascomunidades [...]". Como escreve Sérgio Niza num texto onde meinspirei directamente, "as escolas que queiram corresponder aeste novo desafio contra a exclusão terão de implementar novosmodelos pedagógicos de cooperação e de diferenciação [...]; sóuma pedagogia diferenciada centrada na cooperação poderá vir aconcretizar os princípios da inclusão, da integração e daparticipação".Os debates sobre a disciplina e a autonomia das escolasnão podem esquecer o problema da exclusão escolar. Impressionaver, em tantos textos dos jornais ou nodebate do Parlamento, como se fala de autoridade e decastigos, de regras tradicionais e de medidas a tomar, como sefosse possível aplicar o mesmo fato a alunos de tamanhos tãodiferentes.Precisamos educar com exigência e qualidade, mas sem esquecera exclusão.

Tomaste a decisão certa. Vale mais andar para trás e iresfazer uma coisa que gostes. O teu pai teve dificuldade emaceitar que voltasses para o 10.o ano, com a tua nova meta deEstudos Portugueses. Pela minha parte e como velha professoraque sou, apesar de reformada, acho que gostar de ler eescrever poesia é uma coisa linda. Ainda és muito novo e tenstempo à tua frente. Acho que o psicólogo te ajudou, masconfessa uma coisa à avó: não achas que a professora dePortuguês foi uma querida?Felizmente estás mais bem-disposto e tornaste a sair à noite.Telefona muito cá para casa uma Rita, mas acho que não tedeves precipitar. É pena não estares mais em casa para falarescomigo.

Alguns temas para reflexão

a) Os estudantes estão diferentes. Têm novos saberes,acreditam muito pouco nos políticos e receiam o futuro

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imprevisível. Todos iguais em dignidade e em direitos(apregoa-se!), cada vez estamos mais dissemelhantes. Fala-se,há muito tempo, da "modificação do perfil psicológico dosdiscentes" (1), facto

(1) Bertaux, P., "Um novo projecto humano", in A Educação do

Futuro, Unesco, Bertrand, Lisboa, 1978.

que muitos professores parecem não querer ver. Quando aInternet revolucionar a escola, poderá ser tarde. A verdade éque Bertaux falava, há vinte anos, "do aumento dasensibilidade visual e audiovisual e regressão dasensibilidade auditiva pura; maior rapidez a aprender símbolose sinais; considerável dificuldade em se concentrarem mais dedois ou três minutos seguidos sobre o mesmo tema". Se isto éverdade, é altura de ensinar de outra maneira a todo o vapor.Infelizmente, a nossa sociedade faz pouco apelo à vida mental.Passamos a vida a pôr pensos rápidos nos problemas que

encontramos e isso é também o slogan da moda acerca da nossamente: "eu penso rápido".

Felizmente, a sociedade do século XXI vai ser cadavez mais auto-reflexiva. É bom começar a fazê-lo na escola.

b) Os valores cultivam-se no relacional. Não vale a penaescrevermos frases sobre a cidadania e a solidariedade, se sósomos capazes de pensar na humanidade e não no homem que estáao pé de nós. Que me interessa a bandeira da escola "educaçãopara os valores" se as pessoas se desconhecem.

c) É preciso investir fortemente no ensino recorrente e no 9.oano ligado à vida activa. Os alunos que completam 15 anos até15 de Setembro de cada ano podem ser integrados em turmas deensino regular, irem para uma turma do 3.o ciclo do ensinorecorrente ou serem integrados em currículos alternativos(Circular 16/97, Dep. Educação Básica). É bom que as escolasnão esqueçam esta possibilidade. O Despacho conjunto n.o123/97 do Ministério da Educação e do Ministério para aQualificação e o Emprego permite a articulação com a vidaactiva através de um ano de formação profissional que garantea obtenção de um certificado profissional. É uma perspectivaque não pode ser desperdiçada.

d) A prática do desporto e da educação física tem de serrevolucionada. Acabemos com velhos ginásios de espaldar e comregras de desportos que ninguém gosta de jogar. O confrontocom o espaço natural, a imprevisibilidade do meio envolvente,o risco e a aventura, a liberdade de opção pela práticadesportiva, são necessidades actuais do corpo adolescente. Asnovas culturas juvenis apropriam-se dos ambientes e exigemoutro tipo de confrontaçÕes. Ousemos, também aqui, propor asmudanças necessárias (1).

(1) Cf. Rodrigues, A., Valores e RepresentaçÕes Corporais emCulturas Juvenis Escolares, dissertação de Mestrado, Faculdadede Motricidade Humana, Lisboa, 1997.

e) Alteremos também a prática do jardim-de-infância e criemosestruturas de apoio à primeira infância inspiradas no modelo

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familiar. Crianças sem família deverão ser acolhidas em casascom ambiente afectivo o mais próximo possível de uma família.Acabemos com a picotagem e a iniciação cedo de mais à leitura,numa criança que ainda não aprendeu a olhar e a registar o quevê.

f) Reforcemos o papel do pai na família. Os homens tambémsabem tomar conta de bebés. As licenças de maternidade devemser iguais às de paternidade e aumentadas urgentemente.

g) Conciliemos a vida profissional e a vida familiar, atravésda flexibilidade de horários, licenças nos empregos para ir àescola dos filhos e formação profissional contínua dasauxiliares de infância e das ajudantes familiaresprofissionais. Melhoremos os centros de saúde com consultasacessíveis a jovens pais e a seus filhos (educação parental).

E, por último, e acima de tudo: a escola não pode ser igualpara todos. Como diz Eulália Barros, "não podemos submeter

todos os seres diferentes a um modelo único de ensino(teórico, formal-abstracto)"

A própria Lei Bases do Sistema Educativo prevê orientaçÕesvocacionais diferentes até ao 9.o ano. Temos de começar desdejá a ensinar coisas diversas, conforme as capacidades e osinteresses dos alunos, em diálogo com os pais e tendo umapermanente perspectiva de ligação escola-vida activa. O ensinoaté ao 9.o ano deve possibilitar a cada aluno a descobertaprecoce das suas tendências e capacidades. Só assim a escolaretomará sentido.

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Anorexia Nervosa:o templo de ar

Um diário -

Dulce Bouça

Ando preocupada com a Mariana. Alguma coisa se passa com elaque me está a escapar. Com a minha idade e a experiência deter criado dois filhos e três netos sinto que a minha Marianatem algum problema que não conta aninguém.O sorriso lindo que sempre teve e a alegria que trazia para afamília têm-se apagado desde há uns tempos. Passa o diafechada no quarto a estudar, ou então na cozinha aexperimentar receitas que eu fui juntando desde há muitos anose depois quase nos obriga a comer tudo, insistindo sobretudocom os irmãos para que se alimentem bem. Ela, pelo contrário,nem sequer prova o que faz e cada dia a vejo pôr menos comidano prato.Recusa-se a sentar-se connosco à mesa e leva o tabuleiro parao quarto dizendo que a televisão lhe faz dores de cabeça ou

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que vai adiantando os trabalhos enquanto janta.A minha filha o que quer é que ela tenha boas notas, diz comalguma vaidade que é para não perder tempo de estudo e o meugenro nem repara no que se passa porque só pensa na empresa enos negócios.A Manuela também não anda bem e sinto que não é só a escola

que a preocupa, mas não desabafa nem pede ajuda. Há diasdeixou escapar que se sentia muito sozinha e incapaz de ajudaro Gonçalo e eu não consegui dizer nada. O meu genro é um bomchefe de família, um pai extremoso que não falta com nada aosfilhos, mas como marido é pouco carinhoso, não namora amulher, habituou-se a que ela resolva tudo e não perde tempo aouvi-la.As vezes ouço-os a discutir no quarto e receio que ela me falenos desentendimentos que têm, porque não sei que conselhos lhehei-de dar.Sinto muito a falta do meu marido, que se estivesse vivo teriatempo para me ouvir e me sossegar.Tenho muitas saudades dele e é à noite na minha cama que choro

a falta das suas palavras sensatas para me ajudarem a aceitara mudança dos tempos e dos hábitos.Sobre a Mariana acho que ele me diria não andes atrás damiúda, deixa-a resolver os seus problemas, mas como estousozinha não consigo ver a minha neta tão estranha e não fazernada.Há dias veio cá o meu outro filho porque o João fazia anos e aManuela quis juntar todos num jantar. Nesse dia a Mariana nãopôde desculpar-se com os estudos e veio comer à mesa.Quando se serviu pôs no prato uma quantidade tão pequena decomida, que a tia disse Oh! Mariana, só comes isso? Como é queconsegues estudar a comer tão pouco? Todos olharam para oprato da Mariana e ela começou subitamente a chorar, numaangústia que deixou todos em silêncio. Pensei que o pedacinhode carne e os bagos de arroz iam ficar a boiar nas lágrimasque escorriam pela face da Mariana e caíam uma a uma no prato.Toda a família ficou suspensa naquela aflição, a minha filhadisse que a menina anda cansada por causa do estudo, o meugenro irritado disse que esta gente nova não sabe o que quer,e os rapazes disseram em conjunto ao pai que não chateasse.

Resolvi salvar a Mariana daquela situação e menti. Disse queela tinha comido enquanto me ajudava a preparar o jantar e queagora não devia ter fome e assim acabaram as lágrimas,permitindo que a festa continuasse.Vou ver se consigo arranjar maneira de falar com ela semparecer que me quero meter na sua vida.Alguém tem que fazer qualquer coisa, porque a minha filha andamuito cansada para tomar decisÕes.Passei toda a noite com um pesadelo terrível. Toda a minhafamília estava num barco a fazer uma viagem para outro paísonde o meu genro ia trabalhar. Eu era ao mesmo tempo acozinheira do navio e a avó que realmente sou.A viagem era muito atribulada porque o mar estava muitorevolto e as indicaçÕes do comandante eram para ninguém sairdos camarotes.A minha filha passava o dia deitada, doente e cada vezmais fraca; o meu genro jogava às cartas com os rapazes e oGonçalo parecia muito menos triste do que o costume.Eu andava numa correria, todo o dia a cozinhar e a tentarfazer a comida que a Mariana mais gosta, mas na hora darefeição já eu era de novo a avó, uma onda gigantesca entrava

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na sala e levava toda a comida para o mar. Ninguém sepreocupava com isso, excepto a Mariana que corria pelo convés,batida pelo vento e arrastada pela onda a tentar apanhar a suacomida sem o conseguir, porque escorregava, caía, voltava alevantar-se e a cair de novo.Eu voltava à cozinha, preparava tudo de novo e voltava sempre

aquele temporal para impedir a Mariana de comer.Acordei exausta, mais cansada do que me deitara, e pensei quetinha sido um aviso para fazer alguma coisa pela minha neta.

Fui ao quarto dela disposta a puxar conversa, mas já não aencontrei, tinha saído para as aulas. Reparei então num sacode plástico debaixo da cama e quando me aproximei para vermelhor, encontrei vários sacos com restos de comida dasrefeiçÕes dos últimos dias.Percebi que a Mariana não come quando vem para o quarto,esconde a comida para depois a deitar fora e é por isso quenão toma as refeiçÕes à mesa connosco.Estará doente? Só pode ser alguma coisa grave e de que não se

queixa para não preocupar a mãe.Que doença é esta que não deixa a menina comer, e que está adeixá-la triste e enfadada da vida?O que me intriga é que ela continua inteligente e ambiciosanos estudos e as notas que traz da escola são sempre asmelhores.Os pais, com tantos problemas para resolver, só têmolhos para os bons resultados escolares e não reparam como elaanda triste, há muito que não traz amigos cá a casa,nem é convidada para as festas de anos onde dantes costumavair.Dantes... quando tudo estava bem e o Gonçalo não tinha aquelamaldita depressão que deixou a minha filha acabada e infeliz.Dantes... quando a Mariana era a princesa da casa, semprebem-disposta e pronta a ajudar todos.Dantes... quando os miúdos eram pequenos e a casa se enchia debarulhos, de risos e correrias e cada um de nós sabia qual erao seu papel.A minha filha era feliz e eu sentia-me útil a ajudá-la e atratar das crianças porque tinha um testemunho a passar.Revivi com os meus netos a minha experiência de ser mãe, commenos ansiedade e menos pressa para fazer tudo.A Mariana sempre foi um bebé com ritmo próprio que faziaimpacientar a mãe, pressionada por horários a cumprir e umacarreira como professora em que sempre se empenhou muito, daíresultava pouco tempo para se adaptar às dificuldades da bebépara comer.Apesar de crescer bem e ser sempre saudável a Mariana nuncamostrou grande gosto pela comida, era preciso entretê-la nahora das refeiçÕes, caso contrário, se pressionada cuspia oucerrava os dentes e nada a convencia. Nunca a minha filha teveo gosto de a ver comer com interesse e desesperava-se achandoque a menina se alimentava mal e iria ficar doente.Felizmente eu tinha tempo, contava-lhe histórias e iaconseguindo que fizesse uma refeição completa, por isso mehabituei a fazer-lhe os pratos que mais lhe agradavam e assimlibertei a minha filha de preocupaçÕes.Hoje sinto que a Mariana já não se deixa levar pelas minhasideias nem pelos meus petiscos, bem gostaria de poder entendero que a preocupa. Será alguma doença do crescimento que está aconsumi-la? Mas porquê esta tristeza e revolta que lhe sintono olhar e nas palavras?

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Dantes eu sabia sempre o que fazer e se tinha dúvidas o meumarido tinha sempre uma ideia para me aliviar a alma.Hoje sinto-me assustada porque acho que se falar ninguém vaientender o que sinto, acham-me fora de época e não vão perdertempo a pensar nos meus pensamentos.Eu própria sei que tudo mudou tanto e tão depressa, que o

que era certo ontem pode já não o ser hoje e os meus olhosvêem um mundo que pouco tem a ver com o da minha infância.Contudo não deixo de pensar que preciso de ter uma ideia nova,ainda que a minha memória me atraiçoe comrecordaçÕes antigos em que a força me vinha do Amor e daEsperança; um já me deixou, a outra anda a precisar decuidados, de frágil que está.Mais uma discussão ao almoço de domingo e o meu genro a perdero controlo e a dizer que não respondia pelos seus actos se elacontinuasse a não comer, a minha ilha a chorar dizendo que nãoaguentava tantos conflitos e a Mariana parecia um pássaro adebicar grão a grão o arroz, com um dedo de bife todo desfeitoe espalhado pelas bordas do prato.

Deixei-os todos sair de casa para irem visitar a outra avó eeu voltei ao quarto da Mariana. Precisava de encontrar algumsinal que me permitisse dar um passo para sair deste drama queestamos todos a viver.Encontrei na gaveta da secretária o diário dela, aberto, etinha escrito no dia de ontem "Quando penso no meu corpoimagino-me uma estalactite, afilada e luminosa pela suatransparência".Não entendi nada e por isso não resisti a ler outras folhas,mesmo sabendo que estava a violar os segredos da minha neta.Sentei-me na cama e fui lendo o que estava escrito nos últimosmeses e que me revelou um drama que a Mariana tem vivido desdeJunho do ano passado, já lá vão nove meses. Nessa altura diziaassim:

"Junho"A minha vida não tem mais interesse, porque o Diogo começou acurtir com a minha melhor amiga, que é mais bonita e maismagra do que eu, não tem papos nem pernas gordas como asminhas e sabe conversar. Eu nunca sei o que hei-de dizer enunca curti com ninguém, por isso fico sempre de parte e nãoconsigo ser boa companhia."Estou gorda, as pernas roçam uma na outra e o raboé enorme. Detesto o meu corpo cheio de gordura, ninguém podegostar de mim, assim.

"Julho"Comecei a fazer dieta. Tenho que perder uns quilos, 3 ou 4talvez já cheguem para eu ficar com menos rabo e coxas."Deixei de comer doces, açúcar e pão e na balança já tenhomenos l Kg mas ainda não se nota nada. Tenho que continuar,sem perder tempo e com muito controlo para não falhar.

"Agosto"Já perdi mais 3 Kg, mas tive que deixar de comer sopa ecarne. Ainda ninguém percebeu que estou a fazer dieta, porquecontinuo a comer peixe e verduras; a mãe até acha bem porqueela própria queria emagrecer, mas nunca consegue por causa dosdoces."A avó é que já me disse que ando a alimentar-me mal para aminha idade, mas eu disse-lhe que comia nos intervalos dasaulas que é quando tenho mais fome.

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"Não quero preocupar a avó porque ela é a força da nossafamília."

Aqui parei de ler. Estou muito aflita porque descobri osegredo da Mariana e não posso usá-lo, nem dizer à minha filhao que sei porque ela não seria capaz de guardar esta

confissão, ia entrar em desespero e querer esclarecer logotudo e a minha neta nunca me perdoaria ter lido o seu diário.Estou num túnel sem saída porque não posso fazer nada com oque descobri. Hesitei em continuar a ler, mas depois de unsminutos em que me senti sufocada, decidi continuar. Já quevou ter que suportar este peso sozinha vou tentar saber mais,saber tudo se possível.

"Outubro"Hoje pesei-me e tenho menos 10 Kg. Sinto-me vitoriosa por terconseguido, mas tenho medo de me olhar no espelho, de me verainda gorda porque é assim que ainda me sinto, gorda e confusaporque a pele está seca, o cabelo fraco e não tenho peito

nenhum. Mas sinto a barriga ainda grande e não me vejo magracomo as pessoas dizem que estou."O pior de tudo é que não me vem a menstruação e tenho medo deestar a ficar doente."+s vezes tenho uma grande vontade de comer doces, mas nãoposso descontrolar-me depois de tudo o que consegui."Ainda tenho que perder uns 2 ou 3 quilos para poder provar umdoce no Natal."O Diogo já não anda com a Madalena, pode ser que me convidepara a festa de anos dele."

Parece-me impossível que a Mariana tenha perdido tanto pesosem darmos por isso.Tenho que inventar um pretexto para ela aceitar ir aomedico.A menstruação recolhida é muito perigosa, sempre disse a minhamãe, até pode subir à cabeça e levar à loucura.É urgente a Mariana ir-se tratar, mas como?

"Dezembro"Estou cheia de medo do Natal. Aqueles doces todos na mesa e afamília a comer... a comer... e a insistirem comigo paraprovar, posso perder a força e ganhar todos os quilos que jáperdi -- 15 Kg.

"O Diogo não me convidou para a festa, os meus amigos olhampara mim como se fosse doente, não foi para isto que eu luteitanto!"Agora já não posso fazer nada e engordar é impossível,voltaria tudo ao mesmo."Já não me custa passar sem comer, porque já não tenho apetitee qualquer coisa que cai no estômago provoca-me dores e umpeso enorme que nunca mais passa."Ainda me falta perder a barriga que parece cada vez maior,talvez porque os intestinos passam mais de uma semana semfuncionar, apesar dos laxantes da mãe que tomo todos osdias."A menstruação nunca mais veio, mas a mãe não pode saber ou ialogo pensar que estou muito doente e eu não quero que soframpor minha causa."É fácil disfarçar o corpo com roupa larga."

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Há dois dias que não durmo a pensar no que está a acontecercom a Mariana e eu sem saber o que fazer.Disse à minha filha que achava a menina muito emagrecida e commá cara, que talvez fosse melhor levá-la a um médico e elarespondeu que o Gonçalo não estuda, não conversa nem querestar com os amigos, decerto que anda de novo deprimido e

acrescentou Mãe, a minha vida está tão complicada, que não seipara onde me virar, e eu respondi-lhe Deixa, filha, dá tempoque tudo se há-de resolver.Também eu passei por momentos difíceis e não tive uma mãe aquem pudesse confiar as minhas magoas, a vida era dura paraela e sempre me ensinou que era preciso lutar contra a vontadede baixar os braços, porque a dignidade e a esperança sãocoisas que nunca acabam.Assim eu cresci, sempre à procura de uma razão paradar graças a Deus por estar viva e poder descobrir novasoportunidades para ser feliz.Assim eu vivi, assim tentei ensinar os meus alunos a nuncadesistirem e a acreditarem na sua vontade, assim cheguei a

este tempo a querer transmitir aos meus filhos e netos quevale a pena viver e agarrar a alegria, mas não estou aconseguir passar-lhes o meu testemunho, porque os valores dehoje são outros e talvez mais difíceis de manter.Aos 15 anos eu pensava no futuro e sonhava, o Gonçalo pensaque não tem futuro e a Mariana não sonha, vive de medos.Alguma coisa se perdeu no fio das nossas vidas e é precisoencontrar de novo um sentido para continuar, a minha angústiaé que não sei por onde começar.Fiquei um serão sozinha com os pequenos, porque os meus filhossaíram os dois, o que já não faziam há muito tempo e issopareceu-me um bom sinal para algo poder mudar.Estávamos os quatro na sala em frente da televisão a ver atelenovela e eu perguntei O que é curtir?As três cabeças voltaram-se na minha direcção de olhosespantados e o João disse Oh! Avó, isso não são assuntos paraa sua idade... o que é que lhe deu?Expliquei que no café tinha ouvido uma conversa entre duasraparigas em que uma dizia à outra que tinha curtido com umVasco, e como não entendi a que se referia resolvi pedir aosmeus netos que me ensinem alguma coisa nova.A Mariana sorriu, o Gonçalo não se manifestou e o João uma vezmais tomou a palavra para dizer Avó, curtir é mais ou menos umrapaz e uma rapariga gostarem de estar um com o outro, eacrescentou Estarem numa boa, assim como numa transe, aconhecerem-se.Perguntei se não era o mesmo que namorar, porque eu tambémnamorei e tive muito prazer nesses momentos em que conheci omeu marido e ele me enchia de carinho.A Mariana entrou na conversa e disse Namorar é mais sério, temmais compromisso, percebe? Curtir é curtir...Disse-lhes que no meu tempo isso se chamava "flirt" porque nãodeixava marcas e o João rectificou Mas curtir deixa marcas,porque pode ser uma boa experiência, mas também pode corrermal e ser um fracasso.A Mariana ouvia com atenção o que o irmão dizia, por issoaproveitei a deixa e perguntei como é que os rapazes de hojegostam que seja uma rapariga. O João respondeu Gira, com bomcorpo, bem-disposta e que saiba conversar.Aqui, o Gonçalo deu a sua opinião Isso não existe, vivem todasa pensar só no corpo e têm a cabeça oca.A conversa que estava a chegar onde eu queria ficou por ali,

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porque o telefone começou a tocar e nunca mais parou.A Mariana foi estudar, e eu fiquei sozinha na sala a pensar nodesgosto que ela tinha por não conseguir ser como queria.Ainda voltei mais uma vez ao diário à procura de uma novainspiração.

" Janeiro"O Natal foi horrível porque havia muita comida e eu sem poderprovar nada, nem sentir-me feliz como os outros."Quando me sento à mesa os alimentos parecem-me pedaços dejornal e as letras todos os bocadinhos em que os corto."Quando engulo sinto a tinta do papel a escorrer da boca atéao estômago e quando a comida lá chega são pedras que caempesadamente e me deixam cheia e dilatada como se estivessegrávida."Por isto tudo e pelo medo, muito medo, de engordar não possocomer, mas como me sinto fraca e a perder as forças souforçada a escolher alguns alimentos que me mantenham viva.Preciso de fazer mais exercício para queimar calorias. Vou

experimentar comer em pé, estudar em pé, ver televisão em pé,para a gordura não se acumular.

"Fevereiro"Já não aguento mais esta vida que tenho levado. Pensava queum dia poderia despreocupar-me com a comida, mas agora vejoque isso nunca vai acontecer. Perdi os meus amigos e vejo osmeus pais tristes, sempre a discutirem por minha causa esinto-me culpada."Pensei falar com a avó, mas não posso fazê-lo porque a mãe iasentir-se traída por eu não ter confiado nela."Não tenho saída nenhuma, se morresse era menos umapreocupação para todos, talvez se unissem mais e voltássemos aser uma família feliz."Estou perdida e sozinha no meu sonho que era de ouro e setornou cinza. Morrer seria a minha glória possível."

Dói-me a alma como se estivesse para parir um filho morto.Dói-me a memória de uma vida construída para amar, que chegoua este momento de trevas em que me sinto semforças para me libertar desta criança morta que trago dentrode mim.Esta noite não vou dormir porque o céu está cheio de estrelase a luz de todas juntas entra no meu coração, como para memostrar um sinal que não descobri ainda.As estrelas dão-me qualquer coisa de paz e de consolaçãoporque têm uma ordem fixa que dá segurança e assegura acontinuidade. Sinto-me esta noite em ligação com elas, quemesmo sem me enviarem calor me inundam de uma luz tão forteque parece capaz de gerar vida e sabedoria.Quando eu era criança a minha mãe costumava vir para o quintalconnosco, nas noites estreladas de Verão, e fazia-nos repetiruma conversa com as estrelas que dizia assim: estrelinhacintilante que no céu estás a brilhar se nesta altura o...(pai, avó, amigo, etc.) em mim estiver a pensar faz que um cãoladre, um gato mie ou um homem assobie.Depois, ficávamos todos, muito calados, sem respirar à esperado sinal desejado.Como isto se passava no campo havia sempre um animal ou umhomem noctívago que nos alimentava o sonho.E eu acreditava nessa união entre todos, protegida pelasestrelas da nossa aldeia.

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Hoje, da janela do meu quarto repeti o mesmo pedido ao céudesta cidade onde vivo e que acredito estar ligado ao céu domeu passado.Perguntei às estrelas se o Manuel lá em cima estava a pensar efiquei de respiração presa à espera de uma resposta.Nem cão nem gato nem homem deram sinal.

Mas eu não desisti e aguardei que ele ouvisse a minha súplica.Então, de repente uma estrela deslocou-se no firmamento, acorrer como aquelas que diziam que anunciavam a entrada de umaalma no céu.Sei que foi o Manuel a dizer-me Vai em frente, faz o que tensa fazer!Deitei-me na minha cama em paz e com a mesma esperança desempre, para me entregar ao que me é pedido.Tive um sonho tão real que estava com certeza relacionado como movimento da estrela.Quando tinha 12 ou 13 anos, fui com a minha mãe visitaruma rapariga que vivia na nossa terra e que toda a gentedizia que era possuída por uma alma que nela tinha entrado

para cumprir uma penitência que em vida não tinha completado.Era uma rapariga de 18 anos que tinha deixado de comer. Sóvivia de água, a que misturava vinagre e fruta de uma arvoreque tinha no quintal.No Inverno comia pão de vários dias que guardava em caixas queacumulava no quarto.Era magrinha, magrinha, como os tuberculosos do sanatório, mastinha uma força para trabalhar em casa e no campo que a todosadmirava.Era ela que cuidava de toda a família, uns diziam que erapossuída de uma alma pecadora, outros que era uma santa quenão precisava de comer porque se alimentava do bem que fazia.Quando fui visitá-la tive medo do olhar penetrante com que mefixou e à salda disse-me uma coisa que nunca entendi:Alimenta-te bem, para cresceres saudável e seres feliz.Um dia caiu à cama com tosse e morreu em poucos dias.No meu sonho real, a certa altura essa rapariga tinha a carada Mariana e servia-nos à mesa, a mim, aos pais e aos irmãos,uma comida quente e saborosa que ela nunca provava.Acordei alagada em suor.A Mariana não pode morrer!Encontrei-me com ela no quarto onde estava a estudar. Agorasei que além do estudo está a pensar na dieta, no peso e nocorpo em que se sente presa. Perguntei se podia interrompê-launs minutos para lhe contar um segredo. A Mariana olhou-meassustada, como se nunca tivesse imaginado que também possoter segredos. (Mal sabes, Mariana, que o meu maior segredoneste momento, roubei-to, do teu diário que nunca devia terlido e para o que não tenho qualquer perdão.)E disse-lhe Quero confessar-te que pela primeira vez na minhavida me sinto velha, porque percebi que nunca mais vou amarninguém para além de vocês, e agora só me preocupo em nãoperder as memórias que são a prova do que vivi, embora àsvezes me pergunte se terá sido verdade aquilo de que merecordo. A avó está doente?, perguntou. Não, minha querida,estou um bocadinho triste, o que não é muito o meu género,como sabes, porque tenho receio de cada vez menos podercorresponder ao que esperam de mim.A avó é a força da nossa família, disse a Mariana com um olharpreocupado que me fez sentir mais pesadas as forças que vãofraquejando desde que perdi algumas certezas (... Manuel nãome deixes agora sozinha...).

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Disse-lhe que a força desta família eram ela, o João e oGonçalo, o avô que não continuou na nossa vida, como eugostava, mas não sei se sou capaz de os ajudar a nãodesistirem de ser felizes.A avó foi feliz?, quis saber a Mariana, nesta altura já com avoz apertada e um mar de emoção contido por trás de um olhar

voltado para o seu martírio glorificado.Respondi-lhe que sim sem nenhuma hesitação, mas tive que lutarpara não perder a esperança nos momentos em que pensei que nãoia conseguir o que queria.Eu também tenho medo, avó, de não ser capaz... e aslágrimas da Mariana saltaram puras, luminosas e cheias devida.(Manuel, dá-me a tua mão para eu ser capaz de aliviar osofrimento da nossa neta, que quando nasceu veio ajudar aresolver um momento difícil que estávamos a viver os dois,lembras-te?)Avó, acho que tenho uma doença que se chama AnorexiaNervosa,... é tão difícil explicar-lhe o que é.

Respondi-lhe que tenho lido nas revistas que é uma doença dasprincesas, que sendo bonitas e admiradas se sentem feias einfelizes, que era difícil imaginar o que a fazia a elainfeliz e ainda mais difícil ter uma solução para os seusproblemas, fossem eles quais fossem, mas que era precisorapidamente e sem medo procurar ajuda.Conversámos longamente, nessa tarde, a Mariana esqueceu osestudos e fez-me perguntas sobre a minha adolescência, a damãe e sobre os seus primeiros tempos de vida.Parecia querer avidamente encontrar um sentido para a sua vidae um lugar de pertença e de direito na família.Não fiz perguntas (para quê, já sei tanta coisa...) porqueseria obrigá-la a devassar a sua intimidade (perdoa, Mariana,teu segredo irá comigo para as estrelas...) mas percebi queaquilo que a preocupa deveras é a falta da menstruação.Então combinámos que falaria com a mãe para a levar ao nossomédico de família e lhe contaria tudo para ele a orientar.Tenho medo avó, quero mudar mas não quero modificar o meucorpo, e eu respondi-lhe Tens medo, minha filha, mas tenstambém muita força, tanta que eu nem consigo entender...

Uma doença

A Anorexia Nervosa (AN) é uma doença complexa e fascinante,descrita há muitos anos e que desde sempre tem suscitado ointeresse dos investigadores e a inquietação dos famílias ondese manifesta.As protagonistas desta história que atravessa o tempo sãoquase sempre mulheres, uma vez que a doença só atinge o sexomasculino em 5% a 10% dos casos. São uma espécie de heroínastrágicas, com um percurso em que se entrecruzam o misticismo,a rebeldia e a dedicação e onde surge algumas vezes a morte.Lembremos Catalina Bennicasa, mais tarde Santa Catarina deSiena, notável mulher do século XIV. Filha de um artesãoitaliano e com mais de vinte irmãos, nasce em Siena em 1347,um ano antes do aparecimento da epidemia de peste queatravessaria a Europa. Desde criança, decide permanecer virgeme sacrificar-se comendo muito pouco, de modo a "retirar a estacarne qualquer outra carne, pelo menos aquilo que forpossível" e passando muito tempo preocupada a alimentar osseus familiares e animais domésticos. A família de Catarina

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compreende mal as suas privaçÕes e não aceita a sua recusa emtentar um casamento que lhe garanta mobilidade social. Apesarde castigada, a jovem mantém as suas privaçÕes e o seuestoicismo, comendo cada vez menos e autoflagelando-sefrequentemente.Com uma determinação e uma inteligência notáveis, Catarina

envolve-se na vida religiosa da cidade, onde acaba por ter umpapel importante. É assim que em 1376 vai a Avignon convencero papa Gregório XI a deixar a França e a instalar-se em Roma,como era tradição. Passa desde então a ter um papel activo naluta por uma Igreja mais austera e interveniente, ao lutarpela unidade das instituiçÕes religiosas até à sua morte, em1380, por provável AN.É sempre delicado fazermos um diagnóstico retrospectivo, masas descriçÕes do seu confessor e os seus próprios escritosrevelam períodos de jejum prolongado, recusa alimentar,mastigação incompleta dos alimentos seguida de vómitosautoprovocados e um emagrecimento progressivo até à inanição.O sacrifício por um ideal é levado ao extremo, deixando de se

alimentar e entregando-se à causa de Deus com uma dedicação eum estoicismo absolutos, até à sua morte com 33 anos.Muitas outras mulheres célebres são hoje consideradasanorécticas. Elisabete da ¦ustria, a imperatriz Sissi, rainhada Hungria, tinha 1,72 metros e não queria ultrapassar os 50Kg, pelo que fazia dieta muito restritiva e exercício físicointenso, quer no ginásio junto ao seu toucador quer em longospasseios a cavalo. A sua biografia é atravessada peladedicação à família e à causa real e preenchida poracontecimentos trágicos, entre os quais o suicídio do seufilho Rodolfo, a loucura do seu primo Luís da Baviera e a suaprópria morte, num regicídio, em 1898.Lembremos também a magreza e o idealismo de Virginia Woolf eKaren Blixon, escritoras que alguns autores têm comoanorécticas, e particularmente a filósofa francesa SimoneWeil, que falava da espiritualidade no trabalho e se dedicou àcausa dos trabalhadores até ao esgotamento. Escreve ela:"desde os doze anos que sofro de uma dor à volta de um pontocentral do sistema nervoso, no sítio de reunião da coluna e docorpo, que permanece durante o sono e que nunca parou, nemsequer um segundo". Existem muitos testemunhos da sua extremamagreza e recusa alimentar,até à sua morte, em 1943, com 34 anos, seguramente por AN.Mais perto de nós, quem pode esquecer a princesa Diana deGales, que sofria de anorexia bulímica? Em 1993 tive oprivilégio de assistir, em Londres, ao discurso que fez naabertura do mais importante congresso internacional sobredoenças do comportamento alimentar e que se realiza,alternadamente, em Nova Iorque e na capital de Inglaterra.Diana fez uma intervenção em que assumiu a sua própria doençae exortou os mais de quinhentos participantes, de muitospaíses, a lutarem pela melhoria do tratamento destas doenças.A sua declaração ocupou a primeira página de todos os jornaise noticiários televisivos do mundo ocidental e foi importantecomo estímulo para a participação das autoridades de saúde nocombate às consequências destas afecçÕes. Quando hojeassistimos a programas de televisão sobre a sua vida, podemosverificar as oscilaçÕes do seu peso. Na famosa entrevista àBBC fala da sua bulimia e dos seus períodos depressivos. A suavida de Princesa do Povo, na feliz expressão de Tony Blair,terminou num acidente trágico que impressionou o mundo.Qual a relação entre o misticismo de Catarina de Siena, o

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sacrifício de Simone Weil, a infelicidade de Diana e asanorécticas anónimas que o final do século XX vê aumentar emcada dia? No momento actual dos nossos conhecimentos, aindanão podemos responder completamente a esta questão.

Minha querida neta Mariana, tenho tanto medo da tua doença. Li

noutro dia que, ao contrário do que eu pensa-va, não é uma coisa só dos jovens de hoje. Julgava que eraprovocada pela vossa mania de serem magras ou pelo vossocostume de comerem a correr. Sei agora que no passadoexistiram muitas pessoas com anorexia e algumas delas morrerampor não comer. Embora não consiga entender o seu sofrimento,não deixarei de pensar em ti.

Sabe-se que a primeira descrição médica da doença foi feita em1689 pelo inglês Norton, que a designou por "consumpçãonervosa", mas só no século XIX o francês Lasègue e o inglêsGull a identificaram claramente como entidade clínica. Lasègueacentuou a causa psiquiátrica da doença e William Gull

recomendou o afastamento de familiares e amigos para aumentara eficácia do tratamento, ao mesmo tempo que, em 1873, criavao termo Anorexia Nervosa, que ainda hoje se mantém.Após um período em que a doença foi confundida com umainsuficiência da glândula hipofisária, é a partir dos anossetenta que a investigação e a clínica da AN sofrem impulsosdecisivos, em grande parte devidos à contribuição de trêspioneiros: Hilde Bruch, Arthur Crisp e Gerald Russell. Bruchchama pela primeira vez a atenção para a perturbação da imagemcorporal de que sofrem muitas destas doentes.

Não percebi, Mariana, a tua pergunta de ontem. Estavas no meuquarto a olhar para o espelho e a dizeres que estavas maisgorda. Tu, gorda? Agora que te vejo a emagrecer dia após dia,sem conseguires parar... agora que deixaste de gostar dos meuscozinhados e dizes que eu faço tudo com muita gordura... agoraque saltas refeiçÕes porque dizes que não tens fome!Crisp conceptualizou a AN como uma "fobia do peso", devido aoreceio mórbido que estes doentes têm de engordar,relacionando-a com as dificuldades psicológicas de encarar astransformaçÕes maturativas da puberdade e da adolescência.Segundo este investigador inglês, o crescimento pubertárioconstituiria uma ameaça psicológica para uma rapariga ou umrapaz até aí sem grandes desafios, resguardados por umafamília protectora e estimulados por uma capacidadeintelectual muitas vezes acima da média. A mudança do corpo,as questÕes levantadas pelo grupo adolescente, a sexualidadeemergente e o desejo de autonomia levariam a uma "fuga aocrescimento", explicativa da regressão a um padrão infantilcaracterístico desta afecção.A contribuição de Gerald Russell é crucial. Reconhecidointernacionalmente pelo seu contributo decisivo para a clínicae investigação da AN, foi também muito importante para o nossogrupo. Conheci-o pessoalmente em Pavia, em 1992, numinesquecível jantar num castelo medieval, após um congressointernacional. É alto e magro, lembra incrivelmente um mochosábio tal como o imaginámos na infância e impressiona pela suaeducação e simplicidade. Hoje, reformado e com mais de setentaanos, continua a tratar doentes e a escrever, mas também écapaz de se sentar a ouvir e a tomar apontamentos das últimasdescobertas ou a estimular o trabalho de um joveminvestigador. Trouxemo-lo a Portugal para uma das nossas

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reuniÕes científicas e sempre fala da beleza de Lisboa, dasimpatia com que o recebemos e da nossa crónica falta depontualidade.Em 1970, Russell estabeleceu pela primeira vez, de uma formaclara, as três características fundamentais da AN:

Comportamento persistente com o objectivo de per-der peso.

AlteraçÕes psicológicas características causadas pelo medo deengordar.Presença de uma perturbação originada por alteraçÕesendócrinas e que se traduz na falta de menstruação(amenorreia) nas mulheres e falta de potência e interessesexual nos homens.

Russell continuou a estudar sistematicamente os seus doentescom AN e verificou que muitos deles tinham uma evoluçãodiferente. Enquanto um grupo mantinha uma dieta rigorosa com

frequentes períodos de recusa alimentar, outros tinham umaalimentação muito desorganizada, com períodos de jejumalternando com momentos em que literalmente eram capazes decomer tudo o que encontravam pela frente. Estabeleceu então oscritérios para uma nova doença, a Bulimia Nervosa (BN),utilizando a palavra de raiz grega "bulimia" que significa"fome de boi". Estávamos em 1979 e o seu célebre trabalho (1)marcou um momento decisivo na história das

(1) Russell, G. F. M. (1979), "Bulimia nervosa: an ominousvariant of anorexia nervosa", Psychological Medicine, 9, pp.429-448.

doenças do comportamento alimentar. Russell considerou a BNuma variante ominosa, sinistra, da AN, definindo-a assim:

Os doentes sentem necessidade imperiosa, compulsiva, de comerem excesso.Fazem tentativas persistentes para evitar o aumento de pesoprovocado pelos alimentos, através do recurso a vómitosautoprovocados e/ou laxantes.Têm um receio mórbido de engordar.Mais tarde compreendeu-se que a BN poderia surgir em doentesque não tinham um passado de anorexia. Foi a época em quefalámos de bulimia de peso normal, pois estes doentes nãotinham a quebra ponderal característica da AN ecaracterizavam-se sobretudo pela sua alimentação caótica epelos comportamentos compensatórios destinados a não aumentarde peso.A partir de 1987, Russell coordenou importantes estudos deterapia familiar no Hospital Maudsley, em Londres. Foi apartir destes trabalhos que ficou bem marcada a vantagem dotratamento familiar, sobretudo nas anorécticas de menos de 18anos.

Diagnóstico da AN

O diagnóstico pressupÕe sempre um exame físico detalhado eexames complementares (análises e radiografias) que excluam

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outra doença, mas é relativamente fácil quando a doença estábem estabelecida. Baseia-se actualmente em critérios bemdefinidos, tais como surgem na classificação americana dasdoenças mentais (DSM IV, 1994):

A) Recusa em manter o peso corporal igual ou acima do normal

para a idade e para a altura, o que deve ser entendido comoperda de 15% de peso em relação ao esperado ou fracasso noganho ponderal justificado para o período de crescimento (amaioria destes doentes são adolescentes).

B) Medo intenso de aumentar de peso ou ficar gordo/a, mesmoquando muito emagrecido/a.

C) Perturbação na apreciação do peso e forma corporais,indevida influência destes na auto-avaliação ou negação dagravidade do baixo peso actual.

D) Nas mulheres, amenorreia durante pelo menos três meses

consecutivos.

Alguns autores valorizam o índice da massa corporal, que seobtém dividindo o peso em Kg pela altura em metros, elevada aoquadrado (normal 20 a 25). Um índice igual ou menor que 17.5,na presença de outros sintomas, é muito sugestivo deAN.Consideramos a existência de dois tipos de AN: a ANrestritiva, a mais conhecida, caracterizada por grande perdade peso; e a AN com ingestão compulsiva (bulímica), em que osvómitos, o uso de laxantes, diuréticos e inibidores doapetite, o jejum e o exercício físico intenso complicam oquadro clínico e são indicadores do mau prognóstico.O diagnóstico da AN é hoje mais frequente. Discute-se muito seexistem de facto mais casos, ou apenas se os serviços de saúdeestão em melhores condiçÕes para reconhecer a doença. EmPortugal, não tenho dúvidas de que a doença está emcrescimento, sendo fundamental que todos os que lidam comjovens a reconheçam, pois o diagnóstico precoce é essencialpara uma boa recuperação.Nos diversos estudos dos outros países e para a população emgeral, a prevalência da doença (número de casos por 100 000habitantes, por ano) é inferior a 1%, mas este número sobemuito se avaliarmos a população adolescente. A BN é uma doençamais frequente.Num estudo realizado pelo nosso grupo (Núcleo de Doenças doComportamento Alimentar -- Hospital de Santa Maria, Lisboa) ecoordenado por Isabel do Carmo, partimos de um questionáriorealizado a 2422 estudantes do sexo feminino da região deLisboa e Vale do Tejo, dos 10 aos 21 anos de idade e afrequentarem 29 escolas. Encontrámos uma prevalência de AN de0,4%, inferior a outros países ocidentais, mas outros dados doestudo permitem afirmar que estamos num momento de transição,que parece indicar um provável futuro aumento de casos. Nestetrabalho, 12,6% das estudantes tinham perturbação da imagemcorporal e perda de peso, 7% revelavam alteraçÕes da formacomo apreciavam as reais dimensÕes do seu corpo, 38% desejavamemagrecer e 51,5% tinham terror de engordar.Noutro estudo (coordenação de Fernando Baptista e de mimpróprio), desta vez realizado por inquérito a estudantesuniversitárias de Lisboa, encontrámos uma prevalência de BN de3%, valor relativamente alto face a outros trabalhos no

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estrangeiro; 13,2% destas alunas tinham crises de in-gestão alimentar compulsiva (comer grandes quantidades decomida em curto espaço de tempo), mais de metade queria perderpeso e 12% estavam a fazer dieta no momento do questionário.Na nossa consulta do Hospital de Santa Maria sentimossemanalmente o aumento de casos de AN, a exigir uma melhor

articulação com outras estruturas e a colaboração de técnicosde diversa formação.

Causas da AN

Não podemos afirmar com segurança o que provoca o aparecimentoda doença. Muitos dos sintomas que a caracterizam são causadospelo efeito da privação de alimentos, isto é, a recusaalimentar leva a um enfraquecimento progressivo visível emvárias partes do corpo. Foram estudos americanos dos anoscinquenta, repetidos mais tarde por autores alemães, quemostraram as consequências desta persistente falta de

alimentação.A pele torna-se seca, o cabelo quebradiço, pode aparecer umpêlo fino na face e nos antebraços. A nível cardiovascular,encontramos hipotensão e arritmias cardíacas, no aparelhogastrintestinal é vulgar a prisão de ventre e a sensação deenfartamento. Por falta de estimulação da hipófise, há baixadas hormonas sexuais, com falta de menstruação e diminuição dointeresse sexual. Os ossos vão enfraquecendo progressivamentee o psiquismo altera-se, com diminuição da concentração,perturbaçÕes do sono e sintomas depressivos.Estes estudos, realizados em voluntários, mostraram que estessintomas desapareceriam com a recuperação do peso obtido poruma alimentação regular e equilibrada.

Disseste-me que eu era a força da família, tu que parecesperdê-la dia após dia. Foste hoje ao médico de famíliacom a tua mãe. Sei que ele te receitou vitaminas e teencorajou a comer, falou de uma anorexia no início. Eu sei,Mariana, que a tua doença começou há muito. O importante é queo médico te disse que tudo passaria se começasses a comer.Tenho medo que não seja verdade, como é possível a falta dealimento deixar uma pessoa sem o período? Fiquei admirada pelomédico não te receitar nada para te voltar a menstruação,talvez seja melhor falar com a tua mãe e irem ao ginecologis-ta.

A situação é, no entanto, mais complexa. A AN não é uma doençade dietas, nem é provocada só por falta de comida. Existemfactores hereditários na génese desta afecção: os familiaresdo 1.o grau dos doentes com AN e BN têm um risco de contrairessas doenças 6 a 10 vezes maior do que a população geral; egémeos verdadeiros, mesmo vivendo separados, têm tendência asofrer ambos de AN. No entanto, não se trata de uma doençatotalmente hereditária, com passagem directa e total de paispara filhos.Outros factores poderão ter influência. Será diferente aprimeira infância e a relação precoce com a mãe? O nossogrupo, em estudo coordenado por Dulce Bouça, realizouentrevistas semiestruturadas centradas nas recordaçÕesafectivas, ligadas à relação precoce com as filhas, em quatrogrupos de mães de 19 raparigas com AN, 19 obesas, 9 com BN e19 raparigas sem doença do comportamento alimentar, tendo

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encontrado maior desinteresse, recusa alimentar e insatisfaçãomaterna na sua relação com as filhas no grupo de mães de AN,quando comparado com os outros grupos. Esta nossa investigaçãoenquadra-se nos estudos de Bruch, que salientaram asuperprotecção materna ou inadequação da resposta da mãe àsmínimas solicitaçÕes do bebé (futura anoréctica), respondendo

com comida aos menores sinais de desconforto da filha ou, pelocontrário, não os captando rapidamente. Daqui resultaria umaperturbação da interpretação da criança face às sensaçÕes defome e de mal-estar, gerando um sentimento de inadequaçãopermanente que apareceria potenciado na adolescência.Ponto fundamental: as doenças do comportamento alimentar sãodesencadeadas por uma dieta, muitas vezes sem justificação. Éem regra uma menina que ouviu uns comentários sobre o seuexcesso de peso e começou a comer menos, ou alguém que nãoestava gorda, mas que se sentia com peso a mais e alvo deobservação permanente. Vimos atrás, nos nossos inquéritos,como a pressão para ser magra e o desejo de fazer dietaexistem nas jovens portuguesas. Trata-se de um padrão estético

que influencia fortemente as adolescentes dos paísesindustrializados, onde a doença é mais frequente. Quem nãoobservou já os modelos femininos das actuais revistas demodas? Compreende-se que uma adolescente, à procura da suaidentidade, possa querer assemelhar-se a um modelo muitomagro. Provavelmente, muitas raparigas se confrontam com estedesejo de emagrecer para se aproximarem do actual padrão debeleza, mas são poucas as que sofrem de anorexia. Se osfactores socioculturais fossem a causa principal, certamente adoença apareceria mais. Dito de uma forma mais simples: quasetodas querem ser magras, felizmente a maioria vence essedilema sem adoecer com AN.Embora durante algum tempo se tenha pensado que a famíliapudesse "causar" a AN, hoje sabe-se que não é assim. Estaconclusão é importante: nenhum pai se deve sentir culpado porter um filho com esta doença, o que não significa que o seucontributo para a terapia não seja essencial. Longe vai otempo em que se responsabilizavam os progenitores pelaanorexia ou bulimia das filhas, criando um mal-estar terrívelnos pais, que bloqueava o processo terapêutico. Faz-me lembraraqueles colegas que estão sempre a falar da mãe fria ou dopai ausente para justificarem os seus fracassos terapêuticos!O sofrimento dos pais que têm um filho com uma doença docomportamento alimentar é já de si tão grande, para quêaumentá-lo com culpabilizaçÕes que não encontram justificaçãocientífica?Não existe uma estrutura familiar típica que conduza à AN emuitas características destas famílias, descritas em váriosestudos, são na verdade resultantes dos problemas causadospela doença.

Vejo a tua mãe muito preocupada e a fazer-me perguntas sobre avida dela. Sei que ela tem um bocado a mania das dietas, àsvezes grelha tanto a carne que fica como carvão. Já fez adieta das bananas e a sopa de Toronto, de vez em quando temumas crises de ginástica ou fala da barriga do teu pai. Eu,que sou a mais velha lá de casa, nunca me preocupei muito seestava gorda ou magra, também não havia o desejo de férias quehá agora, nem as dietas que toda a gente começa a fazer emAbril para caber no fato de banho. Tenho dito à minha filhaque, infelizmente, essa coisa da anorexia deve ser maiscomplicada.

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 Numerosos estudos têm procurado determinar alteraçÕesbiológicas características dos doentes com AN, que de certomodo traduzissem uma vulnerabilidade específica. Nessesentido, tem sido encontrado um conjunto de alteraçÕesrelacionadas com uma substância denominada serotonina, que

está alterada nas doenças do comportamento alimentar.A serotonina é um neurotransmissor, isto é, um mensageiroquímico que transporta informação de um neurónio para outro, anível do sistema nervoso central. Os neurotransmissoressão sintetizados nos neurónios, guardados em vesículas elibertados para serem ligados a receptores cerebrais eexercerem os seus diversos efeitos. Existem pelo menostrês tipos de neurotransmissores: os aminas biogénicas,como por exemplo a serotonina, os aminoácidos e osneuropéptidos.A serotonina está relacionada com vários estádios afectivos docórtex cerebral, sendo a sua disponibilidade química muitoimportante na compreensão de certas doenças, como a

perturbação obsessivo-compulsiva e a depressão. A diminuiçãoda função da serotonina seria corrigida, por exemplo, atravésde fármacos antidepressivos que a manteriam "captada". Aserotonina tem um papel importante na ingestão alimentare na saciedade, isto é, na sensação de satisfação e dereplecção após termos comido. A libertação de serotonina nohipotálamo produziria a sensação de saciedade e inibição daingestão, enquanto a sua falta determinaria o comer emexcesso.É com base nestes complexos estudos, que apresentamos aqui deforma muito resumida (1),

(1) Para desenvolver este termo, consultar V. Turón Gil,Trastornos de la alimentación, Masson, Barcelona, 1997.

que se tem conceptualizado a vulnerabilidade biológica da AN eda BN como estando relacionada com uma perturbação dometabolismo da serotonina. Na AN, haveria um aumento daactividade serotoninérgica responsável em parte peloscomportamentos de restrição alimentar e pelo carácter rígido,obsessivo e perfeccionista destes doentes(neste caso aproximando-se da perturbação obsessivo--compulsiva, afecção com pontos comuns com as doenças docomportamento alimentar). Na BN, existiria uma diminuição daactividade da serotonina e o aumento de outro neurotrans-missor, a noradrenalina, responsáveis pela diminuição dasaciedade destes doentes e pelas crises de voracidadealimentar compulsiva.Experiências muito interessantes realizadas para estudar ocomportamento alimentar de um grupo de doentes com AN, de umsegundo grupo de doentes com BN e finalmente de um terceirogrupo de pessoas sem problemas de doença alimentar mostrapadrÕes muito diferentes, mesmo em diferentes fases dotratamento das pessoas com patologia. As doentes com AN comemsempre pouco, as pessoas normais comem o suficiente e ficamsaciadas e as bulímicas comem vorazmente, muito dificilmenteingerindo a quantidade necessária de comida para ficaremsaciadas. Neste sentido, poderá haver um substrato biológicopara compreender a restrição alimentar na AN e as grandes erepetidasingestÕes na BN. Outras substâncias químicas poderão ter um

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papel relevante no comportamento alimentar destas doenças.Como poderemos então compreender a evolução de uma AN? Nonosso grupo de investigação, conceptualizamos a AN como umadoença grave, a evoluir por fases:

Fase 1 -- vulnerabilidade

Vimos atrás que é muito provável a vulnerabilidade biológicanesta doença, o que significa uma variação real na estruturada pessoa que a predispÕe para a AN (distinguir de risco,característica ou condição específica cuja presença estáassociada ao possível aparecimento da doença. Porexemplo, uma dieta muito restritiva na adolescência pode estarligada ao risco de adoecer com perturbação do comportamentoalimentar; esta afecção será muito mais provável numa pessoavulnerável à partida).Nesta fase, intervêm factores genéticos contribuindo para ossintomas da doença ou para a formação de características depersonalidade -- perfeccionismo, rigidez, fuga aos conflitos;

e factores neurobiológicos, com alteração de neurotrans-missores como a nor-adrenalina e particularmente a serotonina(5-HT).Também podem ser importantes factores ligados aodesenvolvimento, como as dificuldades da alimentação infantil,problemas na relação precoce com a mãe ou dúvidas desta nainterpretação dos sinais de desconforto da criança. Daquipoderiam resultar problemas na separação e independência faceàs figuras familiares, com a construção de uma maneira de serda filha (futura anoréctica) caracterizada por obediência semrevolta e sem autonomia, menina perfeita e aceitante de tudo oque a rodeia, permanentemente preocupada em agradar aos pais,mas incapaz de construir a sua imagem interna.

Fase 2 -- precipitação

Algo faz surgir a AN nesta pessoa vulnerável. A doençapode surgir entre os 7 e os 13 anos, antes da adolescência.Nestes casos, existem muito mais rapazes (20%-25%)e a evolução grave exige estratégias terapêuticas intensivas.Os autores ingleses têm acentuado a importância dodiagnóstico das anorexias nesta faixa etária, porque o seu nãotratamento provoca um atraso do crescimento que pode terconsequências irreversíveis. É possível que factores externospossam ter um papel importante: mudança de escola, conflitosgraves entre os pais, obesidade criticada, ameaças aoequilíbrio familiar pelos primeiros passos da autonomia dacriança. O certo é que a AN não tem nada a ver com faltas deapetite que podem surgir na evolução de uma criança normal. Osintoma principal continua a ser uma persistente, por vezesbizarra, recusa alimentar, com medo de engordar, e profundossentimentos de mal-estar interno.A maioria dos casos ocorre, como é sabido, na adolescência,sendo raro o aparecimento da AN depois dos 25 anos.Praticamente em todas as situaçÕes, a doença é precipitadapor uma dieta progressivamente exigente e cada vez maisrestritiva.O ciclo patológico inicia-se assim pela redução da ingestãoalimentar. Em muitos casos o doente com AN não tem peso amais: sente-se mais gordo e rejeita a sua aparência corporal.O começo da doença é gradual, não sendo visíveis para afamília os esforços iniciais para perder peso. A dieta pode

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aparecer justificada por motivos de excesso de peso ou,pelo contrário, feita às escondidas num jovem de pesonormal.Muitas vezes a restrição alimentar coincide com dificuldadesdo processo da adolescência ou com acontecimentos de vidamarcantes: mudanças de casa ou de escola, rupturas afectivas,

doenças físicas no próprio ou em familiares, perda de pessoaschegadas ou pressÕes na escola. Não podemos esquecer operfeccionismo destes doentes, que os faz ter um grande graude exigência face ao seu quotidiano.Frequentemente, e no contexto escolar, os testes são vividoscom grande ansiedade e ficamos surpreendidos com ainsatisfação profunda sentida pela baixa de apenas um valornuma avaliação momentânea. É importante que os professorespossam compreender que as altas classificaçÕes, sebem que desejáveis, podem esconder graves dificuldades dosalunos, surgindo como uma tentativa de sobrecompensaçãoperante dúvidas internas. Os estudantes com AN são um exemploclaro de que um adolescente "perfeito" pode estar doente.

As disciplinas ou cursos relacionados com a necessidade dealtos desempenhos a nível físico são muitas vezes o contextopropício ao desencadear da AN. Refiro-me a alunos de classesde ginástica ou bailado, particularmente exigentes em relaçãoao peso e forma corporais. Temos na nossa consulta do Núcleode Doenças do Comportamento Alimentar do Hospital de SantaMaria, em Lisboa, várias frequentadoras assíduas de aulas deEducação Física e bailado. Contam-nos histórias espantosas.Referem a grande exigência dos treinadores e professores,pesando-as constantemente e exigindo uma dieta rigorosa,acompanhada de comentários críticos face a ligeiros aumentosde peso ou pequenos erros alimentares. Relatam-nos os truquesusados para enganar os professores e os chocolates comidos àsescondidas ou vomitados antes do início do treino. Falam-nosdos seus sentimentos de culpa e dos receios de não serem acampeã de barra fixa ou a nova edição da bailarina famosa deque conhecem pormenorizadamente a biografia. Nos rapazes comAN, a grande exigência desportiva também pode funcionar comofactor de precipitação: é o caso de praticantes da modalidadede luta ou de boxe que querem perder peso para poderemcompetir numa categoria de menos pesados e iniciam um controloalimentar cada vez mais exigente.A adolescência fornece, na maioria dos casos, o contextopsicossocial onde vai emergir a doença anoréctica. à dietasoma-se muitas vezes o exercício físico excessivo, vivido comgrande obsessão e rigor, acompanhado de uma hiperactividadeque impressiona num corpo tão frágil. O lema parece ser, comoescreve Beaumont: "Nunca sentar se se pode ficar de pé, nuncapermanecer de pé se se pode andar, nunca andar se se podecorrer." As refeiçÕes são vividas com enorme sofrimento eacompanhadas de um cortejo de comportamentos que deixamperplexos os familiares. A doente pode pesar a comida, contaro número de batatas ou de colheres de arroz, recusarcompletamente primeiro os doces e depois todos os alimentos,esconder que não come ou exigir que ninguém olhe para eladurante a refeição. Uma das nossas doentes impôs ser elaprópria a cozinhar as suas refeiçÕes, fechando-se na cozinha eimpedindo a utilização dessa parte da casa durante horas;outra proibia o pai de olhar para ela enquanto tentava comer,porque sentia na simples inquietação do pai uma críticapermanente à sua pouca alimentação. Um rapaz que tratámos comêxito, muito rigoroso consigo próprio, controlava no início do

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tratamento tudo aquilo que ingeria, não permitindo aos pais asimples sugestão de um ligeiro aumento nas quantidades decomida.São também frequentes as mentiras no que se refere àsrefeiçÕes, por exemplo, a informação de que comeram bem aoalmoço na escola sem o terem feito, ou procedimentos bizarros

para esconderem a comida. Uma das nossas doentes ocultava osalimentos num espaço existente sob o tampo da mesa, outrautilizava o cimo de um armário, pouco visitado pela empregada,para guardar aquilo que não conseguiacomer.É importante os familiares compreenderem que a recusaalimentar não é uma teimosia. Mais do que a perturbação daimagem corporal, é o controlo da fome e o horror de engordarque constituem as verdadeiras características da doença. Destemodo, não adianta forçar a ingestão de comida, nem estarsempre a falar da necessidade de comer. As recriminaçÕesconstantes dos pais e das mães, embora compreensíveis, nãoajudam. É necessário apoiar os familiares através de grupos

de pais ou de terapia familiar, para lhes fornecer o apoionecessário para enfrentarem a situação. É muito difícil a umamãe aceitar que uma filha esteja disposta a morrer por faltade alimentação. Foi a comida o primeiro elo que se estabeleceuentre o bebé e a mãe e muitos dos bons momentos da vida de umafamília saudável ocorrem depois de rituais familiares,organizados a partir de uma festa onde a comida abunda.Mas é essencial ajudar os pais a compreender que a ANcorresponde a algo muito profundo na vida interna da doente eque foi conseguido com muito esforço. Controlar um instintotão básico como a fome exigiu grande pertinácia e sacrifício.Só poderá ser alterado quando a pessoa com a afecçãocompreender que poderá "trocar" esse controlo por uma coisamelhor, não ameaçadora da sua vida. Por isso, costumamosrecomendar às famílias para não falarem em comida e sobretudonão castigarem os filhos doentes com AN, quando eles recusamalimentar-se. O pai de uma das nossas doentes, com apenas onzeanos de idade, confidenciava-nos: "as pessoas não compreendemo nosso problema. Dizem-nos: por que razão não a obrigam acomer? É só dar um tabefe e meter a comida pela boca abaixo!".A verdade é que estas manobraspseudo-heróicas geram mais resistência à mudança. Sendocapaz de dizer não às ameaças e pressÕes familiares, a pessoacom AN reforça o seu controlo e engrandece a sua capaci-dade de luta, embora com evidentes custos para a sua saúde.Como vimos atrás, sucede bastantes vezes a passagemde uma situação de AN restritiva para um quadro de ANcom voracidade alimentar compulsiva e manobras para con-trolar o peso (AN tipo ingestão compulsiva/purgativo outambém designada AN bulímica). Trata-se de um sinal degravidade, como já Russell tinha salientado há cerca de vinteanos. Nestes casos, é frequente o doente fazer um jejum quasecompleto durante o dia, para à noite comer grandes quantidadesde comida num curto espaço de tempo. O carácter imperioso,compulsivo, persistente e recorrente, e a grande quantidade decomida ingerida rapidamente caracterizam a crise bulímica.Podem comer tudo o que encontram à mão. Durante muito tempopensou-se que certo tipo de alimentos eram preferidos, hojesabe-se que o que verdadeiramente marca a crise bulímica é aquantidade ingerida. As pessoas com AN bulímica ou BulimiaNervosa (bulimia sem antecedentes de AN) não conseguem ficarsaciadas e têm muita dificuldade em parar de comer.

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O grande problema destes doentes, contudo, reside nas manobrasrealizadas para controlar o peso. Utilizam vómitosautoprovocados, introduzindo os dedos na boca até vomitarem.Chegam a ter calosidades no dorso das mãos, devido ao contactorepetido dos dedos com os dentes (sinal de Russell). Uma dasnossas doentes andou de médico de clínica geral para

dermatologista e vice-versa, usou várias loçÕes e cremespara tratar as erosÕes dos dedos, sem explicar as causas daslesÕes e sem que os médicos pusessem a hipótese diagnósticacorrecta!Os vómitos significam sempre um sinal de gravidade de urna AN,pelas graves consequências resultantes. O conteúdo ácido doestômago destrói o esmalte dentário e provoca infecçÕes naboca, podendo também causar inflamaçÕes no esófago ehemorragias gastrintestinais. Uma doente que tratámos foi a ummédico gastrenterologista queixando-se de azia. Com a pressa ea destreza técnica que caracterizam alguns actuaisprofissionais da medicina, fez imediatamente uma gastroscopiae iniciou um tratamento. O médico não tinha pensado em AN

bulímica e não perguntou se ela provocava o vómito. Escusadoserá dizer que o problema sóse resolveu com o tratamento da doença base. Por outro lado, aalimentação caótica pode agravar a obstipação já existente, eem casos graves de grandes ingestÕes provocar uma dilataçãoaguda do estômago que leva à sua ruptura, exigindo umaintervenção cirúrgica de urgência. Os vómitos conduzem tambémmuitas vezes a situaçÕes de desidratação e delitíase (pedras) no rim, com alteraçÕes do equilíbriohídrico e electrolítico graves. A nível cardiovascular,podem surgir hipotensão e arritmias cardíacas que podem serfatais.Como vimos, os doentes com AN tipo ingestão compulsiva(bulímica) podem ter comportamentos purgativos, isto é,recorrem muitas vezes ao uso repetido de laxantes e diuréticoscom o intuito de perderem peso. Para além de não o baixaremsignificativamente (apenas perdem água), o uso destassubstâncias provoca graves alteraçÕes metabólicas, se oprocesso terapêutico não conseguir cessar esteprocedimento.As diarreias provocadas pelo uso dos laxantes levam aimportantes perdas de potássio e a lesÕes da mucosaintestinal, agravando a obstipação e o desconforto abdominal.A conjugação dos vómitos e do uso de laxantes e diuréticos éparticularmente perigosa, pelos desequilíbrios do meio internoque provoca.Os comportamentos que estes doentes realizam, com a intençãode perder peso, constituem assim uma grave ameaça à sua vida.É importante que as famílias compreendam o sofrimento que elesprovocam. Numa das nossas habituais reuniÕes nocturnas compais de doentes com AN, os familiares falavam dos "truques"das anorécticas e da necessidade de vigilância apertada. Acerta altura parecia que estávamos numa investigação policial!Um controlo obsessivo, por parte dos pais, leva a que estescomportamentossejam ainda mais escondidos do que a sua própria natureza jáimpÕe. É assim que uma anoréctica bulímica pode vomitardiariamente, durante um ano, sem que a família se apercebadeste comportamento. Num rapaz que tratámos com BN, a mãeprocurava controlar a frequência dos vómitos, e o filhoapurava cada vez mais a forma de se esconder. A mãe chegou acomprar uma lupa e pesquisar fragmentos de comida

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eventualmente deixados na casa de banho, depois do vómito,mesmo sabendo que o filho era muito cuidadoso na suaocultação.Pais e filhos bulímicos vivem um complexo problema de culpa erecriminaçÕes mútuas. Nada se pode conseguir sem oestabelecimento de uma confiança recíproca que permita falar,

mesmo que seja de comportamentos desajustados. É crucialajudar as pessoas a falar dos seus comportamentos purgativos,garantindo que serão compreendidas; é essencial ajudar os paisa exercer uma vigilância apenas discreta, sem crítica oupessimismo. A pessoa esconde o vómito porque sabe que não éuma boa solução, mas de momento é o único mecanismo que lheconsegue acalmar um pouco a ansiedade provocada pela grandequantidade calórica da crise bulímica. Não esqueçamos,contudo, que muito provavelmente a pessoa com AN já não sesentia bem, por isso fez dieta. Comeu exageradamente e ficoupior. Vomitou para não engordar, mas culpabilizou-se por isso.Jejuou durante muitas horas, com a ideia de finalmente sercapaz de controlar o peso. Falhou e por isso, em desespero,

vomitou o que comeu. Os familiares precisam compreender que ovómito é um sintoma da doença. Ninguém critica um doente compneumonia por tossir e escarrar muito. O vómito é difícil desuportar por toda a família. Que pode sentir uma mãe que tãocuidadosamente preparou uma refeição e a vê depois cuspida nacasa de banho? Como se deve sentir uma doente que sentefalhar todo o seu plano e não consegue evitar a expulsão doque ingeriu? Há duas coisas que não é possível esquecer:

1) A presença de vómitos repetidos e/ou o uso de laxantes ediuréticos traduzem sempre um sinal de gravidade da doença docomportamento alimentar, mesmo que o peso esteja normal.

2) Tais comportamentos exigem, para além do tratamentopsiquiátrico, uma avaliação feita por médico com experiênciadestas doenças.

Algumas pessoas confundem as crises bulímicas que podem surgirem diversos contextos com o quadro de Bulimia Nervosa. Sabemosque existem em Portugal sessÕes de discussão, em grupos deauto-ajuda, onde se misturam senhoras de cem quilos comadolescentes esqueléticos que vomitam! As crises bulímicassurgem algumas vezes num tratamento para a obesidade, mas nãotêm a gravidade nem o carácter obsessivo que caracterizam osepisódios da BN. É por isso importante não confundir ocomportamento bulímico com a doençaBN.Os familiares precisam de criar proximidade e permitir orelato do comportamento disfuncional. Talvez pensar nosofrimento dos filhos ajude os pais a não criticarem. Talvez aperplexidade que estas doenças provocam na família faça aspessoas procurarem mais ajuda. De qualquer modo, o tratamentodeve criar condiçÕes para que tudo isto seja falado.A fase de precipitação da AN está relacionada com umsentimento de profundo mal-estar e de inadequação, ponto departida para uma série de comportamentos desajustados quedescrevemos, desde a dieta sem cessar até aos vómitosfrequentes. Acontecimentos da vida são importantespara o desencadear da doença, mas não parecem serdecisivos.Não temos ainda ideias claras sobre as causas deste sentimentode inadequação, mas sabemos que temos de o vencer. Trata-se de

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uma convicção lentamente instalada desde a infância e quepassa a fazer parte da identidade profunda da anoréctica.

Não me suporto, avó, a verdade é que não me suporto,disseste-me ontem. E acrescentaste que chegas a pedir a Deuspara te castigar com mais sofrimento, porque não mereces ter

bem-estar. Não compreendo como essa parte de ti cresceu tantoe escondeu a tua alegria e o teu prazer. Reages com grandezanga a qualquer aproximação da tua mãe ou do teu pai erespondes que eles estão sempre a dizer mal. Muitas vezespensei que eras perfeita de mais. Lembro-me dos problemas quetive com o teu tio e sei agora que ele tinha uma coisa boa:protestava e não aceitava facilmente as coisas. Tu, Mariana,parecias um anjo. Boa aluna, obediente, arrumada, caladinha. Ooposto do que és agora. Tornei a encontrar restos de comidanum canto do teu quarto, e pareceu-me, a meio da noite, ouviruma espécie de arrancos na casa de banho, sei lá se estás aprovocar o vómito como li noutro dia numa revista feminina.Sinto-me cada vez mais preocupada porque ninguém se pode curar

sem se sentir bem por dentro. Sempre que tive problemas naescola, acabava por resolvê-los com uma espécie de exame deconsciência, em que chegava à conclusão de ter feito o meumelhor, mas que havia muitas coisas impossíveis para mim. Tupareces querer atingir a lua só com um olhar! E depois virastudo contra ti e sentes-te pior.

Muitas pessoas com AN tentam tornar-se perfeitas num esforçode agradar aos outros e vencer os sentimentos de inadequaçãoque as preenchem. A sua subjectividade hipercrítica fá-lassentir tudo virado contra si próprias. Todos os comentáriosouvidos ou imaginados são sentidos como críticos e há umavivência de exclusão e de culpa face a todos osacontecimentos, mesmo que objectivamente não lhes digamrespeito.Esta situação de negatividade confirmada ("confirmednegativity condition") na expressão da sua autora (1), é o

(1) Cf. P. Claude-Pierre, The secret language of eatingdisorders, Times Books, Random House, N. 1., 1997.

culminar de uma vivência negativa acumulada ao longo dos anose depois persistentemente virada contra a própria. Todos oscomentários alheios ajudam a confirmar estes sentimentosnegativos, escondidos durante algum tempo por uma perfeição aoserviço dos outros. Este aparente altruísmo é, por vezes,evidente no modo como a pessoa com AN se preocupa com aalimentação dos familiares. Num dos nossos casos, a raparigaanoréctica caminhava para a morte, enquanto empanturrava airmã mais nova com doces e mais doces. Noutra situação, adoente praticamente não comia, mas preparava opulentos lanchespara o seu irmão adolescente. Só o internamento e a terapiafamiliar permitiram ultrapassar estas situaçÕes. O mal-estarinterno destes doentes só pode ser compreendido em muitoscasos através de uma história do relacionamento familiar, querevela uma criança permanentemente preocupada com os outros edespojada de interesses pessoais. Muitas vezes a respostaparental, de um modo inconsciente, pode ter contribuídoindirectamente para o problema, através de uma aceitaçãoacrítica desta criança perfeita ou, noutras situaçÕes, graçasao reconhecimento de observadora e cuidadora dos pais, quealgumas das anorécticas revelam na sua infância. Não estamos a

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culpabilizar os pais, já atrás afastámos esse ponto de vista:nunca é de mais, contudo, insistir em que uma criança semmácula ou demasiado responsável não é sinal de saúde. Maistarde essas meninas continuam a competir para serem asmelhores na escola, no desporto e na dança. Representamum papel, não se conhecem por dentro. A certa altura,

particularmente na adolescência, olham à volta à procura deuma das pessoas ou ideais a que tão devotadamente seentregaram. Não está lá ninguém, está um corpo a crescer, umasexualidade a nascer e um novo grupo de jovens a observar.Também as pessoas com quem se preocuparam seguiram o seucaminho, melhor ou pior.

Mariana, não posso esquecer a tua preocupação com a minhapneumonia, tinhas tu dez anos. Ficavas muito tempo ao pé demim e não te deitavas sem saber se eu precisava de algumacoisa. Estava tão fraca que nem tinha forças para te dizerobrigada. Quem me dera poder agora ajudar-te, mas olhas paramim como se eu fosse transparente, o teu olhar está bem longe,

não o encontro... não sei por onde pára...

A capacidade de controlo alimentar significa o último redutofortificado de um castelo que há muito deixou de serinexpugnável. A comida significa vida, a anoréctica não mereceviver porque não tem valor e não salvou os outros, logo nãodeve comer. A vulnerabilidade biológica descrita encontra-seaqui com o mal-estar psicológico que caracteriza esta fase daAN. O papel da pessoa na vida e no mundo deixou de fazersentido, a não ser que se consiga dealguma forma ser forte para não quebrar às primeirasmanifestaçÕes de fome.O contexto sociocultural contribui para o aumento daincidência da AN ou, para alguns autores, seria responsávelpelo aparecimento das formas bulímicas da doença ou docrescimento das situaçÕes da BN. A pressão para um corpofeminino magro e esbelto, ligado ao sucesso e à promoçãosocial, veiculado frequentemente pelos meios de comunicaçãosocial, justificaria também o maior número de casos do sexofeminino. Embora a AN e a BN sejam doenças mais frequentes nospaíses industrializados ocidentais, crescentes descriçÕesnoutras culturas mostram que estes factores não são decisivos.Um autor japonês, Suematsu, estudou 1011 raparigas com AN, dasquais o importante número de 26,6% não tinham medo deengordar. Parecem predominar, nestes casos, experiênciassubjectivas de ascetismo e rigor, determinantes do sintomacardinal, a recusa alimentar.Sabemos hoje que o modo como a família reage à possívelautonomia do adolescente pode contribuir para melhorar, ouagravar, o quadro clínico, sem ser determinante na génese daafecção. Um dos pais das nossas reuniÕes comentava: "A certaaltura, já não sabia onde acabava a anorexia e começava aadolescência!"Famílias rígidas receosas da independência dos filhos,controladoras do seu espaço individual, ficam profundamenteabaladas no seu funcionamento pela presença dos sintomasanorécticos. Podem reagir com mais controlo e comentárioscríticos, agravando o problema. Noutros casos há uma evidentedificuldade em expressar emoçÕes, a afectividade é pobre e osproblemas são evitados, unicamente cristalizados para otratamento da pessoa com AN. Muitas destas características nãosão específicas e resultam das situaçÕes problemáticas

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causadas pela doença. Todo o apoio à família é essencial paraa recuperação, podendo revestir várias formas, como veremos.

Fase 3 -- manutenção

Após o aparecimento da AN, a doença pode ser mantida durante

bastante tempo ou tornar-se uma situação crónica, com longaevolução e prognóstico reservado.Na nossa perspectiva, é importante evitar a cronicidade doprocesso e instituir a terapêutica o mais precocementepossível. Muitas vezes o diagnóstico é feito tardiamente, odoente recusa o tratamento ou este fracassa. A pessoa passa aviver com um parasita dentro de si, que a pouco e pouco se vaialimentando dela. São os efeitos da privação alimentar queprolongam o processo. A falta de alimento conduzprogressivamente a um processo de inanição, com queixas eproblemas em vários aparelhos e sistemas do organismo. Há umprogressivo isolamento e uma cada vez mais marcadadesadaptação social. A anoréctica recusa convites, fecha-se em

casa e falta aos seus compromissos profissionais, a suapersonalidade vê acentuarem-se os traços já existentes derigidez e sentimentos de ser acusada.A osteoporose (fraqueza dos ossos) é a consequência maisgrave, a longo prazo, da AN. Muitas vezes surgem fracturaspatológicas, após pequenas quedas ou entorses que não teriamproblemas em pessoas normais. Contribuem para a osteoporose adiminuição de hormonas sexuais (importantes para o metabolismodo cálcio), a deficiente ingestão deste, o défice de vitaminaD e o aumento de cortisol. Torna-se imperioso avaliar aosteoporose em todos os doentes com mais de um ano deevolução da doença, através de um exame relativamente simplesdenominado densitometria óssea.Nos últimos anos tem crescido a investigação sobre as funçÕesreprodutiva e materna das mulheres atingidas por AN crónica.Sabe-se que a doença pode ser causa de infertilidade e aumentoda frequência de abortos espontâneos, e que os filhos dasanorécticas têm frequentemente baixo peso à nascença. Outrosinvestigadores têm procurado demonstrar a dificuldade quemuitas anorécticas têm na alimentação dos seus bebés. É comose um ciclo patológico de défice alimentar se perpetuasse, nãosendo de excluir os factores genéticos eventualmenteimplicados. Muitas mães com AN alimentam mal os seus filhos,ou porque fornecem pouca quantidade de comida, ou porque estãomuito ansiosas na altura das refeiçÕes infantis, ou aindaporque certa turbulência do bebé aobrincar enquanto come provoca uma situação de poucaordem que choca com o seu sentido de perfeição de que jáfalámos.Muitas das nossas doentes têm dificuldade em abordar o tema deuma possível gravidez. Nas fases iniciais do tratamento, aquestão da sexualidade é problemática, mas mesmo após amelhoria evitam abordar o assunto. Sabemos que é necessário umpeso mínimo e uma menstruação regular para se poderengravidar, factores muitas vezes só atingidos após umtratamento prolongado. A alteração da imagem corporal causadapor uma gravidez é vivida com ansiedade por muitas doentes.Uma delas descreveu-me um dos seus sonhos: "Estava grávida edei à luz uns estranhos bichos, qualquer coisa entre cães elobos. A minha mãe estava ao pé de mim, mas a sua carametia-me medo. Pedi ao médico que matasse os bichos e mecosesse depressa a barriga, para eu ficar magra como sou e

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quero continuar a ser."Outra doente tem agora uma relação afectiva estável e desejaengravidar, mas a situação é ansiogénea e secretamenteambiciona que tudo passe muito depressa e o marido seencarregue da criança. Um rapaz com AN questiona-nosconstantemente sobre a sua falta de interesse sexual. Tem

dificuldade em compreender o entusiasmo dos seus colegas comfilmes pornográficos e racionaliza toda a questão ao dizer:"Não me importo de ser estéril ou impotente, não sei bem qualé a diferença. O que sei é que nesta sociedade quem quer terfilhos não deve estar bom da cabeça. Já viu a quantidade decrianças vítimas de maus tratos que andam por aí, perdidas narua?"Afectividade, sexualidade e parentalidade são profundamenteafectadas pela AN crónica. A anorexia atinge, nestes casos, omais profundo do ser e só um processo terapêutico activo eprolongado no tempo pode reestruturar a pessoa doente.A longo prazo, também a personalidade se modifica. Em 34% doscasos, existe uma associação entre a perturbação da

personalidade denominada estado limite e a AN tipo bulímico oua BN (1).

(1) Cf. Dennis, "Treatment of patients with personalitydisorders", in Garner e Garfinkel (eds.), Handbook ofTreatment for eating disorders, Guilford Press, N. I., 1997.

A AN tipo restritivo está, por sua vez, associada a perfis depersonalidade caracterizados por evitamento, dependência ouobessivo-compulsivos. Uma forma particularmente grave é aBulimia multi-impulsiva, descrita pelo investigador inglêsLacey. No quadro clínico, surgem frequentemente o abuso deálcool e drogas, queimaduras e cortes autoprovocados, roubos,excessiva desinibição sexual e tentativas de suicídio.Persiste durante muito tempo um padrão de falta de controlodos impulsos, causador de sérios problemas ao doente e seusfamiliares. Por vezes, estas doentes aparecem comotoxicodependentes ou alcoólicas, sendo inclusivamenteinternadas em instituiçÕes de recuperação de toxicodependentessem falarem do seu problema de comportamento alimentar! Vemospsiquiatras experientes perplexos pela sucessão de tentativasde suicídio, ou incrédulos perante a sucessão de pequenosgolpes nos antebraços e nas coxas, mostrados por estas doentesnas consultas. Percorrem os seus livros de texto ou consultamcolegas, sem chegarem a conclusÕes sobre o diagnóstico,facilmente perceptível se tivesse havido um correcto inquéritoalimentar. Uma das nossas doentes, rapariga tímida sempremetida em casa em obsessivas limpezas do quarto, transforma-senuma ambiciosa autora de pequenos furtos em grandeshipermercados. Na relação terapêutica, falo-lhe do seu"tesouro", que guarda escondido numa gaveta do quarto. É umimpressionante conjunto de pastas dentífricas, produtos paralavar e colorir os cabelos, cassetes de vídeo e cremes debeleza. De vez em quando abre o tesouro e oferece à mãe algumacoisa, ou utiliza-a em seu proveito sem nada dizer. Tem poucaconsciência da razão destes actos ilícitos e, embora às vezesprometa não repetir, não resiste a uma nova oportunidade. Abulimia multi-impulsiva tem um prognóstico reservado enecessita de uma abordagem terapêutica multifocal.As doenças do comportamento alimentar podem estar associadas aoutras perturbaçÕes psiquiátricas. É muitas vezes referida acoexistência de depressão e tempos existiram em que a AN foi

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considerada uma forma de doença depressiva. Sabe-se, noentanto, que os sintomas depressivos podem ser causados apenaspela desnutrição e desaparecem quase sempre com a recuperaçãoponderal. Embora a depressão surja muitas vezes nos familiaresdos doentes com AN e BN, a inversa não é verdadeira, isto é,as doenças do comportamento alimentar não existem

frequentemente nos familiares de doentes com depressão.Estaremos, portanto, perante duas patologias diferentes,mantidas em contacto pelos efeitos da fome.São mais complexas as relaçÕes da AN com o abuso de álcool edrogas. É frequente dizer-se que a comida está para a BN comoa droga está para o toxicodependente.Não estou de acordo com esta perspectiva, que me parececonceptualmente redutora. Infelizmente, algumas das nossasdoentes parecem aceitá-la e frequentam locais de tratamentoonde a ideologia anti-droga impera, esquecendo o tratamento docomportamento alimentar, essencial para o seu bem-estar. Paraalém de outras razÕes, não existe apetência especial dabulímica por uma determinada comida, como acontece com o

utilizador de drogas em relação a uma determinada substância.O que está perturbado, como vimos atrás, é a quantidade decomida ingerida, não os macronutrientes da refeição bulímica.A ingestão não "acalma" a doente, como aconteceprovisoriamente com a droga, antes determina um aumentode angústia e agressividade. Na AN, alguns autoresfalam de "dependência" face à fome, ficando sem se percebercomo se pode estar viciado numa coisa ou na total ausênciadela.Na evolução da AN surgem frequentemente sintomas obsessivos oua personalidade adquire progressivamente essascaracterísticas. É possível que a perturbação da serotonina,que descrevemos, possa justificar os elos existentes entre asdoenças do comportamento alimentar e a perturbaçãoobsessivo-compulsiva.No esquema seguinte resumimos a nossa visão global daAN:

Fase 1Vulnerabilidade

Fase 2Precipitação

Fase 3Manutenção

DietaA. Vida

Inadequação -- Anorexia Nervosa

Nascimento -- AdolescênciaFactores BiológicosFactores DesenvolvimentoFactores FamiliaresFactores Culturais (BN)Efeitos Privação Alimentar

GenéticosPersonal.?

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Neurobiol.NA, 5 HTDificuld. alimentaçãoprecoce

Avaliação e tratamentoda Anorexia Nervosa

1 -- Avaliação

A avaliação clínica pressupÕe um terapeuta (psiquiatra oupsicólogo) com treino e formação em doenças do comportamentoalimentar, que deve motivar a doente para o tratamento atravésde uma relação empática e respeitadora da sua intimidade (ver,mais adiante, "Relação terapêutica na Anorexia Nervosa", p.146). Deve ser feita uma história detalhada do peso e do

padrão alimentar actual, das crises de voracidade alimentarcompulsiva e comportamentos purgativos, bem como dasconsequências psicológicas da privação alimentar e do controloda ingestão.ImpÕe-se sempre uma avaliação física a cargo de um médicoconhecedor destas situaçÕes. Exames complementares diversosaprofundam a investigação do internista. Não esquecer,contudo, que análises normais podem esconder uma profundacrise psicológica na pessoa com AN.É também essencial, nas primeiras consultas, averiguar ostratamentos anteriores e as perturbaçÕes psiquiátricasconcomitantes, bem como determinar as característica dodesenvolvimento da pessoa com AN.A entrevista do diagnóstico familiar é obrigatória em quasetodos os casos, seguida de uma terapia familiar nasdoentes mais jovens. Devem ser abordados os seguintes pontos:

-- Definição do problema pelos membros da família.-- Tentativas de resolução anteriores.-- Papéis familiares, alianças e coligaçÕes na família.-- Acontecimentos relevantes da história familiar.-- RefeiçÕes na família.-- Espaço individual e espaço familiar.

Do médico de família à psiquiatra foi um salto que nãoacompanhei. Pensei que as análises iriam explicar a razão porque a minha neta não come, mas parece que não. Que doença tãomisteriosa! A Mariana reagiu mal. Disse que não estava malucae que tinham de aceitar que ela não quisesse ser "pançuda"como o pai e a mãe. O meu genro disse que a vida dele era uminferno e que felizmente se conseguia embebedar com otrabalho. Foi o João, mais uma vez, quem salvou tudo.Ofereceu-se para ir com a irmã à psiquiatra, o que foi óptimo,porque a Mariana disse então que preferia ir sozinha. Quandoregressou, pareceu-me que tinha chorado e foi a correrfechar-se no quarto. Nesse dia não jantou nem apareceu nasala.Voltou lá uma semana depois e pareceu-me mais animada. Tem defazer uma psicoterapia, parece que é um tratamento semremédios para se conhecer melhor e conseguir vencer a doença.A minha filha e o marido também vão ser chamados. Oxalá sejatudo para bem da Mariana.

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 2 -- Tratamento

O tratamento da AN realiza-se, na maior parte dos casos, emconsulta externa. Consiste numa psicoterapia individual,muitas vezes acompanhada por uma terapia familiar. Os

medicamentos são pouco úteis nesta doença, podendo ser usadosfármacos para controlo da ansiedade ou da hiperactividade eantidepressivos, se os sintomas da depressão persistem após arecuperação ponderal. Na BN, pelo contrário, antidepressivosserotoninérgicos, como a fluoxetina(60mg/dia), são úteis para controlo das crises de voracidadealimentar compulsiva e dos comportamentos obsessivos. Não seprescrevem fármacos, contudo, desligados de um projectoterapêutico global, em que a psicoterapia ocupa o lugarfundamental. Nenhuma pessoa com AN deve ser tratada sem umpsiquiatra e/ou psicólogo experiente, visto que se trata deuma doença do foro psíquico. Impressiona ver dietistas ounutricionistas acompanharem estes doentes sem a colaboração de

um técnico de Saúde Mental, como se o tratamento consistisseapenas no planeamento das calorias a ingerir! Ouginecologistas receitarem a pílula para provocar a menstruaçãosem cuidarem de ver como a rapariga (não) come!O tratamento em ambulatório compreende três fases, que aseguir se apresentam de modo muito resumido:

1 -- A recuperação. Pedimos o registo escrito de tudo o que apessoa com AN e BN come, bem como dos comportamentos decontrolo ponderal e dos sentimentos associados. Planeamos asrefeiçÕes com horas marcadas, aumento da quantidade dealimentos e introdução progressiva de novas comidas.Discutimos as ideias do doente face ao peso e à forma do corpoe procuramos, desde cedo no processo terapêutico, descortinaros sentimentos de inadequação que marcam a sua vivênciaquotidiana. Iniciamos a terapia familiar.

A família toda foi hoje à consulta. Começámos por nos perdernaquele hospital enorme e cinzento, cheio de pessoas a correrde um lado para o outro em corredores gelados. Na Psiquiatriaenganámo-nos no piso e ficámos meia hora em frente de umcubículo de vidro, onde jaziam umas plantas abandonadas e umcomputador que ninguém parecia utilizar.A minha filha perguntou pela psiquiatra e disseram-lhe queera no piso de cima. A porta estava fechada à chave etivemos que subir um andar de elevador, fugindo de um doentede chapéu enterrado na cabeça que dizia frasesincompreensíveis.No andar de cima a confusão era enorme. Estudantes de botabranca faziam um baralho infernal, dois doentes pediram ao meugenro cigarros e dinheiro, havia médicos de sapatilhas ecalças de ganga misturados com outros com fatos de bom corte.Duas senhoras de bata azul tentavam, em vão, pôr ordem naquilotudo. Os médicos corriam de um lado para o outro com araborrecido e não esperavam até ao fim das perguntas dosdoentes, que os interpelavam constantemente a arrastar os pés.Duas raparigas que mais tarde percebi serem psicólogosaguardavam à porta de um gabinete, numa atitude deexpectativa. Mais doentes apareceram com ar de mortos-vivos,uma enfermeira chamou alguém ao telefone e quatro delegados depropaganda corriam atrás dos médicos a oferecerem canetas epapéis coloridos. A Mariana disse que se queria ir embora,

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felizmente consegui distraí-la com o olhar simpático de umaenfermeira que nos perguntou ao que vínhamos.Só então apareceu a psiquiatra, acompanhada por um senhorolheirento e de barba a quem chamavam professor (professor dequê?...). A médica da Mariana tinha um ar decidido, um poucoameaçador, mas que rapidamente desaguava num olhar de ternura.

O terceiro elemento da equipa era um médico jovem de peso amais e cabelo a menos, com um sorriso tão disponível que meapeteceu logo agarrar-me a ele.Levaram-nos para uma sala ao fundo do corredor. Tinha umatelevisão esventrada, uma jorra de pirosas flores de plásticoe uma série de maples de napa preta esburacada, remendados compedaços de adesivo de diferentes tamanhos. A certa altura viuma médica a fumar, que confundi com a psiquiatra da Mariana,mas que rapidamente desapareceu para outro gabinete com umgrupo de alunos.A sala onde ficámos tinha um cortinado meio pendido a taparuma janela com vista para a relva do Hospital e dois quadroscertamente comprados numa loja de trezentos. Mariana, vamos

embora. Não suporto estar aqui. Como é possível melhoraresnesta nave de loucos?E, de repente, tudo mudou. Os médicos estavam de tal maneirahabituados a trabalhar em conjunto que pareciam adivinhar oque o outro ia dizer. Tinham uma atitude de interesse erespeito pelo nosso problema e, embora um pouco apressados,tiveram algum tempo para nos ouvir. O médico do sorrisoentendeu-se muito bem com o João e o Gonçalo, pareciamconhecer-sehá muito. A Mariana olhava constantemente para a suapsiquiatra e o mais velho, o tal professor, pareceu animar-see rapidamente começou a falar com a minha filha e o meu genro.Sem darmos conta, em breve estávamos todos envolvidos numaemocionante conversa, infelizmente algumas vezes interrompidapor uma porta que se entreabria, para deixar veruma enfermeira com um tabuleiro de medicamentos namão.Falámos da comida e do corpo, os rapazes pareciam estar emcasa com um amigo e a Mariana não perdia oportunidade para seconfrontar com a mãe. Pareceu-me que o professor esbarrou comos problemas da minha filha e do meu genro, mas passou adiantee centrou a conversa na força da família para salvar a minhaneta. Pediu-me histórias da sua infância e eu contei-lhe comosempre achava demasiado perfeita aquela menina, tão habituadaque estava ao barulho dos meus alunos. Combinaram-se váriasmaneiras de lidar com a situação e pareceu-me que havia umagrande preocupação dos técnicos em não deixar ninguém de fora.Pensei que ainda não era altura de contar o meu segredo dodiário, embora ficasse com a ideia de que teria de o fazermais cedo ou mais tarde.Saímos todos, mas a médica chamou a Mariana para uma conversaa sós e esperamos de novo naquela entrada barulhenta.Cheguei a casa mais animada e com vontade de lutar.

2 -- O progresso. Nesta fase do processo terapêutico emambulatório, continuamos a luta por uma alimentação saudável ecombatemos os pensamentos disfuncionais e as distorçÕescognitivas que são frequentes nas pessoas com AN (exemplo --"como não consigo uma dieta rigorosa, sou uma pessoafracassada; sinto-me magra, é porque estou magra; as pessoasestão sempre a olhar para mim porque eu estou gorda como umabaleia", etc). São particularmente importantes, nesta fase, as

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acçÕes psicoterapêuticas visando o autoconceito da anoréctica,o controlo dos impulsos, a capacidade de expressão dosafectos, o combate ao perfeccionismo e à rigidez.A terapia familiar centra-se agora mais na comunicação e nosconflitos face à identidade e à autonomia da anoréctica.

Não percebi bem as consultas seguintes com a família. Fiqueicom a ideia de que tudo se poderia ter resolvido em casa, semnecessidade de falarmos das coisas lá no hospital. O médicomais novo reparou na depressão do Gonçalo e o professor nãoparou de falar da semanada e das soídas à noite. Fiqueiadmirada por não terem ligado grande coisa às questÕes daanorexia.

A relação individual com a pessoa com AN deverá neste momentoter-se solidificado. É um processo longo e difícil, que vaidesde o contacto inicial com o terapeuta até ao final daterapia. Nos anorécticos com menos de 18 anos, a terapiaindividual é feita por um psiquiatra ou psicólogo,

obrigatoriamente presentes em todas as sessÕes de terapiafamiliar, conduzidas por outro técnico. Nas pessoas maisvelhas, a terapia familiar realiza-se em famílias com elevadograu de disfunção ou em pessoas com perturbação docomportamento alimentar e grande grau de depen-dência.Uma relação terapêutica empática e firme é essencial para oêxito. Vejamos como um membro da equipa, Dulce Bouça, adescreve pormenorizadamente.

Relação terapêutica na anorexia nervosa -Dulce Bouça

Quando uma pessoa procura tratamento para a sua AnorexiaNervosa, traz consigo o pedido de solução para um problema masao mesmo tempo impÕe regras a quem pede ajuda, para atingir umobjectivo IDEAL que apenas faz sentido ao próprio que oprocura.Assim, um paciente que se apresenta fisicamente debilitado ecom a vida em risco pela desnutrição diz que não se sentemagro e quer ser ainda mais magro, porque só assim conseguiráviver. Precisa de ajuda, mas diz que quer e conseguecontrolar-se sozinho, ao mesmo tempo que pede ao médico que ooriente neste objectivo, sem interferir nas suas convicçÕesnem o pressionar a seguir um caminho diferente do queescolheu.É neste labirinto de expectativas, esperanças e medos que seprocessa o primeiro encontro entre o médico e o paciente comAnorexia Nervosa, um de quem se espera que possa curar, ooutro pedindo cuidados adequados à sua própria realidade e aosentido mais profundo e individual do que é para si a vida e omodo como a quer viver.Para qualquer ser humano, a intenção de procurar uma vidamelhor não é nunca tão simples como parece ao ser formulada.Seguir em frente com um objectivo de mudança significa encetarum caminho que pode culminar num triunfo ou numa derrota eobriga a optar entre várias alternativas que levariam, sefossem as escolhidas, a outras possibilidades que ficam porconhecer.No caso de uma Anorexia Nervosa, significa substituir o valorde um ideal de corpo controlado através da magreza por outros

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que permitam experimentar novas formas de realização pessoal,e outras alternativas para encontrar amor por si próprio edescobrir o prazer no encontro com o que é novo e diferente.Quando lhe é sugerido um tratamento que implica mudança noshábitos alimentares, no peso, nas convicçÕes e no objectivo aatingir, isto é sentido como uma destruição maciça do "templo"

em que se enclausurou e que o tem protegido dos estímulos doexterior, onde todos os elementos biológicos, psicológicos esociais estão em constante interacção, dando lugar ao emergirde novas possibilidades.No seu santuário de privaçÕes, onde as experiências emocionaisse passam entre a culpa e a penitência, sente-se protegidopara continuar no seu ideal de purificação esperando vir a sermais forte e mais perfeito, acreditando que um diaserá capaz de não falhar e então, aí sim, a vida está ao seualcance.Por isso, diz prontamente e com a veemência de quem conseguiuprescindir de se alimentar para viver: Quero melhorar mas nãoquero aumentar de peso, Quero ter uma vida normal, mas não

quero comer mais, Se começar a comer perco tudo o que jáconsegui, deixo de me controlar.

Esta comunicação aparentemente paralisante e contraditória,mas que resulta de uma longa e dura experiência de luta, temque ser aceite, porque é a única ponte para chegar ao mundo daAnorexia, mas simultaneamente tem que ser descodificada desdeo primeiro momento e devolvida ao doente, nos limites que elaintroduz e que impedem que sejam encontradas outraspossibilidades de saída para a sua vida.O médico terá que dar um sentido ao que aparentementenão tem sentido -- querer e não querer --, um sentido decriação, para dar uma nova forma ao que parece rígido eimutável.Se reage à magreza insistindo nela está a violar uma convicçãoinabalável e fortemente reivindicada; se aceita esta aparenteliberdade de escolha, estará a abandonar uma pessoa em perigo.Em qualquer caso será mal aceite e ineficaz se a suaintervenção se basear apenas no que é objectivo, sematender à subjectividade que a contradição contém em siprópria.Perante si, tem uma pessoa com uma história pessoal, umaidentidade única, uma origem e uma cultura que lhe sãoparticulares, uma família que é o seu núcleo fundamental desuporte e afecto e uma experiência própria de fracassos esucessos, que constituem ao mesmo tempo o limite e apossibilidade de tratamento.Mas se é preciso atender e aceitar a ambivalência de quem quere não quer, tendo contudo vindo procurar ajuda, é tambémnecessário desde o início retirar a auréola de poder absolutoao médico, que poderá ser investido pelo doente e família decapacidades ilimitadas para tratar uma pessoa mesmo que elanão queira, ou se recuse a estabelecer um compromisso decolaboração com ele.Ainda que o tratamento da Anorexia Nervosa seja sempredolorosamente lento, a sua aceitação tem que ser conseguida emtempo útil, isto é, tão curto e tão longo quanto possível enecessário, para que seja eficaz.Iniciar um processo terapêutico com um paciente anoréctico àpressa e sob pressão, sem os objectivos claramente definidos eaceites por ambas as partes, não resulta. Na primeira consultahá que explorar a constatação de um sofrimento devastador e um

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apego determinado à doença, entre uma dor emocional que já nãoé mais suportável e uma ordem rígida e imutável decomportamento.Não é possível nem desejável garantir o sucesso do tratamento,não só porque seria uma promessa com possibilidades defalhar, mas porque tornaria desnecessária a responsabilização

do doente pela sua evolução e ao mesmo tempo lhe retirariao controlo sobre si próprio e sobre a relação terapêuticaque vai iniciar, dado que, no início da terapia, talvez aúnica competência que o doente não viu desmoronar-se foi a suacapacidade para controlar as mudanças.Em vez de uma fórmula mágica que o doente espera para oproblema, o médico poderá dizer: Veremos se é possível a suavida mudar, ou se tudo terá que ficar assim parasempre.Perante esta antecipação do futuro, qualquer paciente comAnorexia Nervosa responde vivamente: ... Isso não quero... temque mudar!A Anorexia Nervosa foi uma tentativa de solução para

um problema e essa solução tornou-se em si mesma o problema.Quando um paciente admite a hipótese de tratamento não temideia de como será árduo e perturbador o processo que vaienfrentar. De início sentirá uma súbita esperança para o fimdo seu sofrimento, esperando que de um momento para o outro arelação com a comida se modifique e o corpo se liberte danecessidade de controlo, sem ter que passar pelo assustadorprocesso de mudança e adaptação. Pouco a pouco vaiconfrontar-se com a necessidade de prescindir das restriçÕes elimites que se auto-impôs para conseguir tornar-se mais forte,mais perfeito, mais amado, e ver-se-á obrigado a abandonar asolução que encontrou na anorexia, o que será sentido como umfracasso mais doloroso ainda do que o motivo que fezdesencadear todo o processo.É assim muito importante que logo na primeira consulta sejadiscutida a necessidade de ser negociado um contratoterapêutico que responsabilize tanto o médico como o doentepelo seu cumprimento e que implique a família como parteactiva e fundamental na evolução da situação. O objectivo naformulação deste contrato é o de avaliar se a mudança épossível ou admitida pelo paciente e família e se é aceite queo médico possa ser o orientador dessa mudança.Aparentemente seria desnecessário perguntar ao paciente seconsidera que precisa de tratamento, mas é fundamental que apergunta seja feita claramente ou a consulta ficará desprovidade sentido e não marcará diferença em relação a outrostratamentos previamente tentados e falhados, que podem tersido vivenciados como violação e coerção à liberdadeindividual.O que é um objectivo inquestionável para o médico (otratamento) é para o paciente um dilema assustador, porqueacredita que libertar-se da tirania da sua anorexia vaiempurrá-lo para um mundo de infinito terror (aumentar depeso), e assim a clarificação da necessidade de mudança temque atender nos seus objectivos às característicasparticulares de cada doente e de cada situação.A premência de uma intervenção mais rápida e intensivaserá diferente conforme se trate de um jovem de 10 anos, em emque todo o processo de desenvolvimento pode ficarirreversivelmente comprometido se não for tratada aanorexia em tempo útil para a puberdade se poder manifestar,ou numa pessoa de 40 anos em que as funçÕes orgânicas,

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hormonais e metabólicas já tiveram tempo de estabilização eadaptação a um funcionamento diminuído, ainda que com osriscos inerentes à cronicidade que comportam.A decisão de iniciar um tratamento terá que ser tomada emconcordância de objectivos, aceites pelo médico e pelopaciente, introduzindo a família no espaço terapêutico, com

tempo e espaço para porem as suas dúvidas e pedidos, semprena presença do paciente.Os pais, ao aceitarem que o seu filho necessita de umtratamento longo, com avanços e recuos e muitos períodos deaparente impasse, confrontam-se com uma impotência angustiantepor se sentirem incapazes de lhe aliviar o sofrimento.Frequentemente procuram respostas para uma culpa que pensamter tido no aparecimento da doença e na sua detecção tardia,dado que é comum terem decorrido vários meses ou anos atétomarem consciência da situação e admitirem que ela não seiria resolver apenas com o seu empenhamento.O doente, por seu lado, traz consigo a vergonha e a culpa deter "enganado" a família, utilizando todos os truques

possíveis para que não percebessem que estava consciente doseu estado e que o mantinha escondido, por medo de ser forçadoa abandonar o controlo do corpo que se propusera.No primeiro momento de encontro de todos com o médico, énotória a necessidade de encontrar causas externas para asituação, atribuindo-a à moda, às influências dos amigos, aoscomentários de outras pessoas fora da família, aos temposmodernos e à adolescência perturbadora.As alusÕes às mentiras, às promessas não cumpridas e àdesconfiança mútua são reveladoras de uma enorme angústia,pelo receio de que o inexplicável e incompreensível dasituação destrua definitivamente os laços de afecto e uniãoque pais e filhos vêem ameaçados, perante um conflito que seinstalou e parece ser irreversível.Qualquer pai ou mãe dariam tudo, até a própria vida, paraimpedir o seu filho de sofrer, e qualquer filho desejaria queos seus pais se orgulhassem de si, mas na Anorexia Nervosauma e outra aspiração estão impossibilitadas de seconcretizar, porque uma ameaça impossível de ser compreendidae explicitada se instalou minando os afectos e as expec-tativas.Por isso todos esperam uma solução rápida e mágica que garantaque tudo vai voltar ao normal, isto é, "igual" ao que eraantes da anorexia. É necessário explicar que nada voltará ao"dantes", que o processo de recuperação será lento masprogressivo e só será levado a bom termo se a família, opaciente e o médico trabalharem em conjunto para o mesmoobjectivo, que será a mudança à qual todos terão que sereadaptar.Assim, qualquer tratamento imposto que não parta da aceitaçãoda mudança global e particular será inoperante porque nãovaloriza as competências individuais e familiaresindispensáveis para o sucesso terapêutico.A decisão de iniciar o tratamento da anorexia terá que sertomada sem omissÕes nem promessas e poderá mesmo ser adiada,ainda que a situação seja grave, enquanto se mantiveremposiçÕes rígidas que impeçam uma intervenção para a mudança,como sejam:

-- recusa de uma recuperação ponderal, ainda que lenta, mas ainiciar de imediato segundo objectivos definidos a curtoprazo;

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-- insistência por parte da doente numa atitude passiva dedependência: Faça o que quiser... não me comprometo com nada;-- se o fracasso de tratamentos anteriores for apenasatribuído a causas externas, livres de auto-responsabilização;-- se a família não for um aliado no tratamento e se seauto-excluir da participação na mudança.

É frequente também o doente afirmar: Primeiro preciso demelhorar psicologicamente e o peso depois se verá...; emboraseja certo que, sem um trabalho psicológico, a recuperaçãofísica será muito difícil, também é claro que tal condiçãoassim posta não pode ser aceite porque serviria para manteruma clivagem artificial entre corpo e mente, que a doente temvindo a fazer ao longo da sua doença.Pretende-se, nesta clarificação inicial de um processoterapêutico, que o paciente com anorexia possa admitirexperimentar outras possibilidades para a solução dos seusproblemas com a garantia de o não fazer sozinho nemapressadamente ou por imposição, e que se pergunte se oterapeuta e o modelo de tratamento poderão trazer algo de novo

para a sua vida.Uma vez aceite um tratamento com regras e por etapas, seráiniciado um trabalho interdisciplinar em que a avaliaçãofísica está a cargo de um médico internista, a reeducaçãoalimentar a cargo do nutricionista e o trabalho psicológicoque permita a mudança e o crescimento a cargo do psiquiatra oupsicólogo com experiência no tratamento destas doenças.A psicoterapia individual será o cerne e o motor de umprocesso de reorganização e reconstrução psíquica num Eufragilizado por experiências anteriores de insucesso emenos-valia pessoal, encapsuladas por um comportamento rígidoe obsessivo, na procura de um Ideal de perfeição que iluda epreencha um vazio de inadequação à vida e às suas exigências.Numa relação psicoterapêutica é encetada uma viagem ao mundointerno do paciente com a sua anorexia, e esse percurso serádirigido e controlado pelo próprio paciente, umas vezesdirigido ao mais recôndito lugar das suas memórias de umainfância que os pais consideram sem problemas, outras vezes,quando mais difícil se torna procurar sentimentos nasrecordaçÕes, centrando-se nas comidas, gordura e calorias quenão são mais do que temas de passagem para aliviar opensamento e a sua dor.Uma menina de 11 anos com a sua anorexia de 18 meses deevolução diz durante a sua terapia: "Eu era duas pessoas, euprópria e a Anorexia. Esta era muito mais firme e forte do queeu e comandava todos os meus actos e se eu falhasse sentia-mecriticada por ela. Agora sinto que eu começo a não ter tantomedo d.ela e talvez seja um dia capaz de me libertar. Peço-lhe[ao médico] que me oriente e me ajude a ser como eu quero, masque seja devagar, pouco a pouco, porque tenho muito medo doque me possa acontecer."Neste longo caminho entre as memórias e o conhecimento do medovão-se abrindo portas para novas opçÕes, com períodos deaparente paragem, com avanços e recuos, mas com uma granderiqueza de possibilidades para poder trocar o medo da gordurapelo desejo de sonhar. São vividos pelo paciente e peloterapeuta compassos de espera que permitirão a continuidade deuma experiência tão assustadora quanto desejada, que precisade tempo para o paciente se assegurar de que vale a penaconhecê-la e integrá-la na sua particular e única existência.A par deste processo de crescimento individual será sempreoferecido à família um espaço de crescimento e reflexão, numa

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terapia familiar, que permita também reunir memórias econfiança num futuro que perdeu previsibilidade.O tratamento da Anorexia Nervosa terá assim que ser adaptado acada situação, porque nem todos os doentes responderão damesma maneira ao mesmo tratamento, dado que em cada caso estãoimplicados factores específicos como sejam a personalidade do

paciente, a idade, a duração prévia da doença, a condiçãofísica, ambiente e a estrutura familiar.Tratar a alma implica também cuidar e fortalecer o corpo que éa sua casa e a sua condição.Assim é sugerido na metáfora do peixe-lua que diz assim:

Um mestre muito velho e muito sábio tinha um discípulo muitojovem e muito estudioso.Um dia o mestre pô-lo em frente de um aquário onde vivia umpeixe-lua e pediu-lhe que lhe dissesse como era aquele peixe.O discípulo descreveu exaustivamente a forma, as cores e todasas escamas e sua orientação e no fim o mestredisse-lhe: "Descreveste o peixe-lua, mas não disseste como Ele

É."Então o discípulo descreveu todos os movimentos que opeixe-lua fez durante um dia inteiro em função da luz, datemperatura e do ambiente e o mestre disse: "Descreveste osmovimentos do peixe-lua mas não disseste como Ele É."

Então o discípulo passou dias e dias a estudar tudo o quediziam todos os livros sobre o peixe-lua e a descrever todasas modificaçÕes por que passava.Um dia o mestre disse-lhe: "De tanto olhares para o peixe-luaa fim do o tentares conhecer, esqueceste-te de o alimentar enão reparaste que ele morreu. Agora já não poderás saber comoEle Era!"

3 -- A resolução. O tratamento da AN é prolongado e difícil. Asua duração é variável, mas nunca inferior a um ano depsicoterapia individual. O modelo mais utilizado é o dapsicoterapia cognitivo-comportamental, mas não deve ser postoem prática de uma maneira rígida, sendo importante acontribuição da perspectiva psicodinâmica, da psicoterapiainterpessoal e das terapias de grupo. Na nossa equipa, temosexperiências animadoras com grupos de doentes com BN e AN, quepermitem o entrecruzar de narrativas de vida e a partilha desituaçÕes quotidianas, mobilizadoras para a mudançanecessária.A psicoterapia é essencial, mas não pode esquecer que jamaisterá êxito sem a recuperação do peso e sem o estabelecimentode uma alimentação equilibrada. Impressiona verificar aexistência de tratamentos prolongados, às vezes de anos, cominterpretaçÕes constantes por parte do técnico, mas semimprimirem mudança real na pessoa com AN. Como vimos atrás,são os efeitos da privação alimentar os responsáveis peloagravamento e cronicidade do processo anoréctico. Sem oscorrigirmos, não interessa que a doente "compreenda" o que sepassa, se isso não a fizer comer. "Usava muita roupa paraesconder a minha magreza mas só agora, que como melhor,percebi que também punha muitas camisolas para não ter frio.Tinha tanto frio! Agora até está mais frio lá fora e nãopreciso de tanta roupa, porque como mais", dizia-merecentemente uma das nossas doentes. Estava a falar, sem osaber, dos efeitos da fome sobre as hormonas da tiroideia.Esta glândula é responsável pela termogénese e a sua má

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função, determinada pela falta de comida, provoca o frio tãocaracterístico das pessoas com AN.Na evolução do tratamento precisamos de continuar a fazer arevisão dos problemas físicos (papel do médico internista ouendocrinologista) e trabalhar persistentemente os problemaspsicológicos, com destaque para os sentimentos da inadequação

já referidos.As questÕes da diferenciação e autonomia são temas frequentesnas sessÕes de psicoterapia. É preciso ajudar a pessoa com ANa construir a sua identidade, até aí inexistente ou confundidacom o conjunto aglutinado da família. O processo de construçãodessa identidade é longo ecomplexo. Numa adolescente normal, processa-se atravésda acumulação de sentimentos, vivências e emoçÕes individuais,experimentados ao longo de várias fases e acontecimentos davida. A este self (que significa aquilo que é próprio, que édistinto dos outros) individual é necessário juntar o selfsocial, obtido a partir da interacção com a sociedade e com ogrupo de pares (companheiros). O adolescente saudável, embora

com avanços, recuos e momentos de turbulência, é capaz de sedesprender da protecção da infância, autonomizar-se face aospais, conseguir a sua maturação intelectual, resolver asquestÕes do amor e da sexualidade e com tudo isso adquirir asua identidade. O fim da adolescência corresponde justamente àcapacidade de atingir a autonomia, ter um projecto e mostrarcapacidade de decisão, definir uma identidade sexual eadquirir um sistema de valores. Os investigadores daPsicologia Social têm chamado a atenção para o facto de esteprocesso ser completado "para fora", com o grupo de amigoscomo uma dimensão fundamental. O adolescente observa o meio,simplificando-o, e interage com o grupo, diferenciando-sesocialmente dos companheiros. A forma como os adolescentes eos seus pais se interrogam sobre esse grupo é muito diferentee a compreensão destas duas perspectivas é importante para otrabalho clínico com adolescentes (1).

(1) Cf. Pereira, M. Gouveia, A Percepção do Papel do Grupo dePares nas Tarefas de Desenvolvimento em Adolescentes e Pais,Tese de Mestrado, Instituto Superior de Psicologia Aplicada,Lisboa, 1995.

A auto-estima e a identidade estão relacionadas com todasestas tarefas da adolescência.Num jovem com AN, quer a construção do self individual quer aformação do self social estão profundamente alteradas. Durantemuito tempo e a nível da família, a pessoa anoréctica observouos pais, cuidou das suas fragilidades ou satisfez os seusdesejos. Não conseguiu diferenciar-sedo sistema parental. Quando surgiu a pré-adolescência ou aadolescência, não tinha capacidade para se desprender da redeprimária da família e lutar por um lugar no grupo de jovens,para construir a sua identidade social e ser uma pessoa comcapacidade de decisão e projectos de futuro. Fica assimperdida entre a lealdade à família e as solicitaçÕesconstantes dos colegas, vendo aumentar a cada dia que passa oseu mal-estar e a sua inquietação. Ao menos a dieta é qualquercoisa de próprio e íntimo que só depende de si.As crises de voracidade alimentar compulsiva (crisesbulímicas), os vómitos e os outros comportamentos purgativosjá descritos, exigem estratégias terapêuticas específicas. Autilização já referida do diário alimentar, o sair de casa ou

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telefonar a alguém antes de começar a comer sem parar, esobretudo a regularidade sistemática das refeiçÕes, sãoestratégias habitualmente usadas para interromper o círculovicioso ingestão/expulsão.O contacto com outras pessoas com o mesmo problema é útil, masdeve ser feito com supervisão médica. Precisamos garantir à

pessoa com AN uma disponibilidade mantida, que resolva asituação actual, mas também previna as recaídas.Na evolução do tratamento (ou no início, se ele começoutardiamente), pode ser necessário o internamento hospitalar.Torna-se obrigatória esta medida quando existe uma grande e/ourápida perda de peso (índice de massa corporal menor que 13),quando surgem complicaçÕes médicas graves ou os níveis deperturbação psiquiátrica são significativos, particularmentedepressão e risco de suicídio, ou se existe grave disfunção oufalta de apoio familiares. Um tratamento em consulta externaque não leve a uma subida de peso ao fim de alguns meses devefazer encarar também a hipótese de internamento.

Sistematizemos, então, a atitude terapêutica em ambulatórioface a um quadro de AN (1):

(1) De acordo com J. Treausure, comunicação pessoal.

(a) Síndrome parcial (perda de peso, dieta excessiva,preocupaçÕes face ao corpo, sem serem preenchidos os critériosde diagnóstico para AN): a intervenção deve consistir numaabordagem psico-educativa com vigilância do peso, que poderáser realizada por médico de clínica geral ou endocrinologista.(b) Anorexia Nervosa (critérios preenchidos): psicoterapia emconsulta externa, conduzida por psiquiatra ou pedopsiquiatra.Encarar a hipótese de grupo terapêutico. Terapia familiarrecomendada, obrigatória em doentes com menos de 18 anos.Procurar técnicos com experiência no tratamento das doenças docomportamento alimentar, já existentes em Portugal nosserviços universitários de Psiquiatria de Lisboa, Porto eCoimbra. Deverão ser realizadas reuniÕes de apoio e informaçãoaos familiares, à semelhança das que o nosso grupo realiza emLisboa. Mesmo que a pessoa doente recuse ir a uma consulta, afamília deve procurar ajuda numa destas reuniÕes ou através docontacto com um técnico conhecedor do problema.

É muito importante que os pais compreendam a necessidade dotratamento psiquiátrico e o risco de dietas da moda, oumedidas correctoras simplistas, baseadas em reforçosalimentares e contagem de calorias. A AN é uma doença graveque ameaça a vida, por isso não se deve perder tempo.Numa revisão de 68 estudos de evolução, correspondendo a 3104doentes com AN (1), verificou-se recuperação em 43%

(1) Steinhausen, H. C., "The course and outcome of AN", inBrownell e Fairburn (eds.), Eating disorders and obesity,Guilford Press, N. I., 1995.

dos casos, melhoria em 36% e má evolução, com cronicidade, em20% (valores médios). A mortalidade neste grupo de mais de3000 doentes foi de 5%.

Internamento

Como vimos atrás, o agravamento do quadro clínico torna

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necessário o internamento hospitalar. Este deve decorrer emunidade especializada de Serviço de Psiquiatria ou dePedopsiquiatria, infelizmente ainda não existente entre nós.à falta de melhor, os serviços universitários de Psiquiatriade Lisboa, Porto e Coimbra, onde existem equipas com treinonesta patologia, constituem alternativas menos más para o

tratamento hospitalar.

Na última reunião familiar quase entrei em pânico. Tive de mecontrolar para não desatar a chorar. Tinhas perdido muito pesoe a tua psiquiatra descobriu que vomitavas. Na sessão,o teu pai falou com repugnância dos teus vómitos e de como nãovalia a pena estarmos ali todos a perder tempo, porquetu arranjavas maneira de boicotar o que se conseguiaavançar.Senti-me salva pelo médico jovem. Fez-me sentar ao pé de ti eperto dele e, com um leve sinal de olhos, incitou-me aabraçar-te. Ficámos as duas abraçadas e senti o teu corpo atremer de encontro ao meu.

No dia seguinte, Mariana, foste internada. Não compreendo porque não me deixam visitar-te. Tenho a certeza queprecisas de mim. Fui contigo até à enfermaria e, coma tua mãe, arrumamos as tuas coisas que insististe em levar:um velho walk-man, um livro da Susanna Tamaro de que nãorecordo o título, dois pijamas que te devem estar larguíssimose uma coelha de peluche de que nunca te separas. Ficasteirritadíssima de te teres esquecido da escova de dentes e deuma toalha e começaste a chorar e a bater com os pés no chãocomo se tivesses cinco anos.A enfermaria é sinistra. As paredes estão pintadas de azul. Ascamas parecem desconfortáveis e há flores de plástico equadros pirosos por todo o lado. Antes do internamento, fomosatendidos num gabinete minúsculo onde, por cima da porta, selia "Quarto do médico". Havia um armário vazio com uma rede depalha esburacada, um armário de ferro semiaberto donde pendiambotas brancas com ar mal cuidado e capotes azuis com buracosde traças. O telefone estava sempre a tocar e a tua psiquiatradespachava os telefonemas o mais rapidamente possível para sepoder concentrar em ti. O professor era constantemente chamadopara outras tarefas e movia-se pesadamente entre cadeirassemipartidas e cestos de papéis forrados com sacos pretos deplástico. Só o médico jovem permanecia calmo e ia explicando àfamília as regras do internamento. O teu pai não teve direitoa cadeira e sentou-se na cama que deveria ser para o médico deurgência. Tinha uma colcha de festão e quatro pequenasalmofadas roxas com cornucópias alinhadas em diagonal ao longodo colchão. O restante cenário era constituído por umasecretária velha, duas garrafas de água, cinzeiros atulhadosde beatas, um lavatório e um gigantesco espelho que me deixouver de alto a baixo o teu corpo tão magrinho.Pedi para ir à casa de banho e nunca mais a encontrei. Fuisalva por uma doente muito velha que me agarrou pelo braço eme conduziu a uma gigantesca banheira sem águacorrente, separada por uma parede fina de um minúsculocubículo só com uma sanita. Outra doente explicou-me que asdoentes tinham de tomar banho do outro lado do serviço, nãolonge da enfermaria e da casa de banho dos homens. Fiqueiperplexa. Mariana, com a tua mania das limpezas, como vaissuportar esta falta de condiçÕes? Como vais conseguir passarsem nós? Sinceramente, acho crueldade ficares ali ao pé degente com tão mau aspecto!

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O professor explicou a razão da separação da família. "AMariana precisa de tempo para reflectir. Sabemos como édifícil esta separação, mas a intensidade das relaçÕes de amorna vossa família é tão grande que provavelmente teriamtendência para aparecerem muito. Se isso acontecer, a Marianaficará muito emocionada e não estará em condiçÕes de lutar

para vencer a doença. à medida que o peso for aumentando, terámais visitas e poderá até passar um fim-de-semana em casa.Faremos várias sessÕes de terapia familiar durante ointernamento e estaremos ao vosso dispor para todas asperguntas, mas não falaremos convosco sem a Mariana saber".Foi nessa altura, minha querida neta, que era preciso dizer-teadeus e deixar-te ali, naquele sítio tão deprimente e malcuidado, junto de tanta gente louca e diferente de ti.Deixei-te e saí com os outros.Ficaste a falar com a tua médica. A intensidade da vossarelação impressionou-me. Era como se existisse um pactosecreto que não percebíamos, mas que nos permitia ir emborasem terror.

Durante o internamento hospitalar é essencial que a equipaterapêutica tenha os papéis bem definidos e discutapermanentemente as medidas a tomar. No Hospital de SantaMaria, em Lisboa, o internamento processa-se em trêsfases:

a) Fase inicial -- informa-se a família e a pessoa com AN docontrato terapêutico e das regras a cumprir. Definem-se osobjectivos do tratamento intensivo e o regime de visitas.b) Fase principal -- promove-se a recuperação do peso,através do estabelecimento de um regime alimentar regular eequilibrado, negociado entre a dietista e a anoréctica, massem abdicar dos princípios de uma alimentação saudável.Tratam-se as perturbaçÕes psiquiátricas eventualmenteassociadas. Insiste-se na resolução das principais distorçÕescognitivas e, através da terapia familiar, procuramos amelhoria das relaçÕes da família.c) Fase final -- após recuperação ponderal, prepara-se a alta

junto da pessoa com AN e em colaboração com a família.

Todos os elementos da equipa têm um papel importante. Aenfermeira vigia as refeiçÕes e o peso, através de uma relaçãoempática e firme. A dietista estabelece uma dieta progressivade 1000 a 3000 calorias/dia, visto haver perigo numarealimentação rápida. O psiquiatra é o responsável pelapsicoterapia individual (em colaboração com o psicólogo) ereceita os fármacos que entender necessários. Outro psiquiatraé o responsável pelas sessÕes de terapia familiar, onde oterapeuta individual não pode faltar. O médico está atento àresolução dos problemas médicos.

Passou um mês e parece que vais ter alta em breve. Vejo-te comoutro aspecto e até aquele ar irritado desapareceu. Sonhotodas as noites que já estás em casa e que vais ficar curada!Até o teu pai está diferente, deve ser das conversas nassessÕes de família. A psiquiatra é muito prudente, está semprea falar na tua amiga anorexia, acho que ela está a puxar porti para ver se consegues viver por ti própria.

Prevenção da AN

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Vimos anteriormente que a origem das doenças do comportamentoalimentar não é conhecida, apesar dos notáveis progressosobtidos no tratamento destas situaçÕes.A nossa concepção pressupÕe, como dissemos, a existência defactores predisponentes, individuais e do desenvolvimento;factores precipitantes, com influência familiar e cultural,

geradores de sentimentos de insatisfação com o peso e aforma do corpo e que levam a uma dieta persistente eprogressivamente mais restritiva, na esperança errónea deobter melhor autoconceito e maior controlo; e finalmentefactores que mantêm a doença e a podem tornar crónica,derivados dos efeitos devastadores sobre o organismoprovocados pela desnutrição. Esta visão do problema,próxima da de Garner (1), impÕe uma abordagem multifocal,

(1) Garner, D. M., "Pathogenesis of anorexia nervosa", Lancet,341, pp. 1631-1635, 1993.

com necessidade de uma equipa multidisciplinar e uma

investigação permanente sobre o melhor caminho para o êxitoterapêutico.A prevenção das doenças do comportamento alimentar é muitodifícil, pelo conjunto de problemas implicados. Todos osautores concordam, contudo, na importancia do esclarecimentosobre dietas, afinal o factor precipitante maisconcretamente individualizado. Sabendo a elevada percentagemde jovens, sobretudo do sexo feminino, preocupados com a formade perderem peso, é essencial levá-los ao médico de clínicageral se essa preocupação se torna excessiva ou injustificada.Precisamos dizer que há grandes variaçÕes nos pesos daspessoas e factores constitucionais importantes que determinamo facto de sermos mais gordos ou mais magros do queeventualmente desejaríamos. A prevenção essencial estará,assim, na luta por uma alimentação saudável e pelo controlomédico permanente de uma dieta em adolescente.O segundo aspecto preventivo consistirá numa detecção precocedas primeiras manifestaçÕes da AN e da necessária intervençãoterapêutica. Existem muitas pessoas com aquilo que designámospor síndrome parcial, ou seja, sintomas já detectáveisclinicamente por um observador atento e que não devem sercomentados superficialmente, género: podes ficar sem almoçoque recuperas à noite, ou, como estás a fazer exercício, aofim da tarde deves comer pouco até à hora da ginástica. Umadolescente deve fazer quatro refeiçÕes por dia, duas dasquais sentado à mesa para almoçar e jantar. Vejo certos pais emães criticarem as pizzas e os hamburguers tão do agrado dosjovens de hoje, sem se preocuparem com o hábito tão portuguêse saudável de os fazer gostar de uma boa sopa de legumes ou deum bacalhau no forno.Precisamos melhorar o conhecimento sobre a patologia alimentarem grupos de adultos que lidam com jovens, desde médicos quenão sabem fazer o diagnóstico até professores exigentes ecompetitivos, tão agradados com as notas da menina que nãovêem que ela está a definhar dia após dia. Professores emonitores de dança, ginástica, bailado e luta precisam de serespecialmente alertados. A ânsia deter um campeão, exigindo que ele esteja persistentemente magropara obter melhores marcas, pode ser um factor precipitantenuma pessoa vulnerável. No momento em que escrevo estecapítulo, trato a AN de três raparigas onde os factores deexigência competitiva no plano desportivo foram importantes no

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desencadear da doença: uma campeã de ginástica, uma jovembailarina e uma nadadora pré-seleccionada para uma competiçãointernacional. Nas três situaçÕes, os monitores exigiram dietarigorosa, exercício físico intenso com muitas horas de treinoe pressão permanente para a obtenção de cada vez melhoresmarcas. Perderam-se três estrelas, esperemos que eu consiga

ajudar a ganhar três mulheres saudáveis!O terceiro aspecto preventivo diz respeito à recuperação daspessoas já atingidas por um processo bem marcado da AN.Precisamos reduzir a morbilidade, isto é, os diversos aspectospatológicos que esta doença contém, como descrevemos. Paraisso, é necessário uma actuação rápida e eficaz a cargo deuma equipa treinada. Qualquer família atingida por um problemade doença do comportamento alimentar, não só deverá procurarajuda psiquiátrica imediata como também necessitará questionaro técnico sobre a sua experiência neste campo. Em Portugal, osutentes dos serviços de saúde são de uma passividadepreocupante. Vão a um centro de saúde ou a um consultório epodem sair de lá com uma indicação de uma psicanálise ou de um

electrochoque, sem perguntarem nada sobre a patologia ou otratamento. Infelizmente, em Portugal, muitos técnicos, cheiosde boas intençÕes, começam a tratar pessoas com AN e BN de umaforma simplista, semum plano terapêutico definido ou com terapêuticascontra-indicadas. Uma das minhas doentes anorécticas foi a umpsiquiatra que a achou deprimida e lhe receitou um medicamentoque a fez aumentar muito de peso. Não voltou lá mais, masperdeu três meses de tratamento eficaz. Outra andou seis mesesa tomar um contraceptivo "para regularizar a menstruação" eperdeu catorze quilos. Um rapaz com grave AN, hoje recuperado,foi diagnosticado com possível esquizofrenia e só não foisupermedicado nesse sentido porque os pais não se convenceramdo diagnóstico.Não pretendo criticar ninguém. Luto apenas para que a doençaseja conhecida das famílias e dos profissionais de saúde epara que quem estuda possa ter melhores condiçÕes de trabalhopara tratar melhor.

Alguns resultados

O Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar (NDCA) doHospital de Santa Maria, de Lisboa, fez a revisão recente doscasos tratados.Desde 1993 até ao fim de 1996 tratámos 124 doentes com AN, 120mulheres e 4 homens. O ano de 1997 traduziu-se por um grandeaumento de novos casos (40 diagnósticos de AN durante esseano).Procedemos a uma avaliação detalhada das 120 doentesreferidas, destinada à apresentação na minha lição deAgregação na Faculdade de Medicina de Lisboa (Outubro de1997). Predominou a AN tipo restritivo (76,6%), face à AN tipoingestão compulsiva/purgativo (23,4%). A grande maioria destasdoentes são estudantes (85% dos casos). A idade de início dadoença oscilou entre o mínimo de 11 anos e o máximo de 27, comuma média de 16 anos.Em muitos casos, os doentes chegaram muito tardiamente àconsulta, desde um espaço aceitável de três meses até umaespera de cento e vinte meses. Neste caso a doente esteve, porconseguinte, dez anos sem tratamento adequado! O intervalo de

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tempo, em média, foi superior a dois anos -- 25 meses, o quenão deixa de ser preocupante. O não conhecimento da existênciade uma equipa especializada por parte da população contribuipara esta demora, que é imperioso reduzir.A média dos pesos foi de 41Kg, com índice de massa corporalbaixo (média IMC 15,63). O tempo de amenorreia oscilou entre o

mínimo de 3 meses -- critério para o diagnóstico -- e o máximode 84 meses.Procedemos ao estudo da evolução destes doentes, o que foipossível em 97 casos. Dezanove dessas doentes tinham sidointernadas no serviço de Psiquiatria, com uma média de trêsmeses de tempo de internamento. Melhorámos o peso de um modosignificativo, visto que a média de peso passou a ser de 49,9Kg. Deu-se a recuperação da menstruação em 67% dos casos.Pesquisámos também as restriçÕes alimentares praticadas poresse grupo de 97 AN nos últimos seis meses antes da avaliação.Sabemos que mesmo com peso e menstruação normais, muitasdoentes com AN fazem selecção de alimentos e têmpeculiaridades face à comida. Concluímos que 27% das doentes

nunca tinham feito dieta ou restriçÕes específicas dealimentos; 18,1% tinham feito sempre; 28,2% em menos de metadedas vezes e 27,2% em mais de metade das vezes.A autonomia face à família, definida apenas pela própriaanoréctica, foi considerada satisfatória em 49,3% dos casos.Estes nossos dados são semelhantes aos de outrosinvestigadores e provam que a AN é uma doença de tratamentodifícil. Demonstram, no entanto, de forma inequívoca, que valea pena tratar as pessoas atingidas. Mesmo que não se consigauma completa remissão dos sintomas, as melhorias obtidas namaioria dos casos evitam as complicaçÕes da doença e permitemuma evidente recuperação a nível da auto-estima e dorelacionamento social.

Fui hoje a casa da minha amiga Aurora. Com o problema daMariana há muito que não tinha disposição para lá ir. AAurora não compreende a doença e acha que tudo se deve aquestÕes de educação. Hoje contei-lhe que tudo começou acorrer bem depois do internamento. A Mariana aumentou de pesoe está com muito melhor aspecto, embora ainda sem o período. Amédica que trata dessa parte disse que isso leva mais tempo.Continua a pedir-me que grelhe muito a carne e quando comemais doces fica muito preocupada, vem logo ter comigo paradesabafar. O certo é que agora come de tudo e dorme muitomelhor. A disposição também é outra.Fiz a minha última pesquisa ao diário. Como tenho medo quealguém apareça, só leio aos bocadinhos e volto a pôr tudo comoestava. Os últimos meses deixaram-me contente. Fala dos amigose da família, de ser feliz e de ter saúde. Voltei a ler tudodesde o princípio e fiquei assustada. Tanto tempo com aquelesofrimento, sem dizer nada a ninguém! É uma doença muitoestranha. Para mim, é uma espécie de sacrifício, parece que aMariana quis toda a vida provar que era boa e, como não oconseguiu, teve de se castigar. O professor, numa das sessÕes,chegou a pôr a hipótese de ela ir para freira, porque de tãomagra que estava os rapazes não poderiam gostar dela. Acheiuma estupidez, mas vi que a minha neta ficou furiosa, o quesignificou que o tema lhe tocou de alguma maneira. Não sei,continuo um bocado confusa acerca desta coisa da anorexia, mastambém nunca percebi a tensão alta e se não tomo oscomprimidos fico com dores de cabeça. Fiquei com a ideia que acomida era o remédio na doença da Mariana e a verdade é que

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quando ela começou a comer como deve ser tudo pareceumelhorar. "Há ainda um longo caminho a percorrer, a Marianaestá muito mais independente da sua amiga anorexia, mas aindanão está completamente pronta para seguir em frente", disse apsiquiatra dela numa dasúltimas sessÕes, enquanto o professor e o outro médico

concordavam. Sinto a família mais próxima dos médicose com grande confiança neles. De certa forma, todos estamosdiferentes. Também se discutiu a depressão do Gonçalo eo seu desejo de morrer, só agora percebi que se calhar issotambém teve importância no aparecimento da doença da Mariana.Quando a médica falou no "caminho a percorrer", fiqueiassustada e fui logo ver o diário. Havia uma parte terrívelque eu tinha esquecido. Era uma série de páginas tiradas de umlivro, parece que se chamava Santificada ou qualquer coisa dogénero. O que mais me arrepiou foi o desenho de uma raparigamuito, muito magra e a letra da Mariana a transcrever "Emalguns dias não me consigo levantar porque todo o chão se movedemasiado debaixo dos meus pés e eu sorrio pois estou lá, eu

sou quase um anjo. Um dia, em breve, quando estiver quase aextinguir-me, irei lá fora, abanando as mãos para conseguirvoar, e estarei tão transparente que passarei por todos vóssilenciosamente como o vento". Oh, Mariana, é como se todos osteus sonhos de felicidade tivessem desaparecido dentro de ti etu fosses um pedaço de ar a pairar por aí... Felizmente seique hoje já não serias capaz de fazer aquele desenho ou passarpara o papel uma frase tão terrível! Sei que hoje já se podefalar contigo sem tu nos atirares pedras, sei que sentiste bemtodo o amor da tua família e o apoio dos teus colegas. Nofundo, talvez o teu esforço e sofrimento tenham feito com quetodos olhássemos mais para dentro, e ao mesmo tempo paraaquele que está ao pé de nós e que deixámos de ver. Não valeua pena foi teres corrido tantos riscos, sei bem agora que senão tivesses sido internada poderias ter morrido.Decidi hoje contar-te que andei a ler o teu diário às :;escondidas. Tenho a certeza que vais ficar muito triste, masque acabarás por compreender. No fundo, acho que a anorexia étambém uma falta de comunicação e eu só agora sou capaz defalar contigo directamente. Vou prometer-te que nunca maisentrarei no teu quarto sem tua licença e tenho esperança queme perdoarás.

As cartas da anorexia (1)

I -- Braga, Setembro 96

Em primeiro lugar, gostaria de o cumprimentar por essabrilhante ideia que foi o programa Verdes Anos e ao qual o Sr.Doutor deu vida. Além de alertada, acho que fiquei maissensibilizada para o que é a doença "Anorexia Nervosa". E é naqualidade de mãe de uma adolescente anoréctica que tomei aliberdade de lhe escrever.

(1) Transcrevo extractos da correspondência trocada entre mime a mãe de uma rapariga com AN. Todos os factos são reais, comexcepção dos elementos de identificação. A publicação dosexcertos foi autorizada pela autora das cartas, a quemagradeço.

Tenho uma filha de 14 anos de idade, a Ana Paula, inteligente,estudiosa, "paranóica" das notas escolares, como eu costumava

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chamar-lhe, e que igualmente assistiu, gravou e reviu essebendito programa. Foi a partir dessa altura que ela mais seconsciencializou da doença. Esta começou pelo processo dabulimia, passou a anorexia, quase sem eu me aperceber. Só aofim de 3/4 meses, quando já estava imensamente magra (dos47/48 passou para os 38 Kg, com 1,63m de altura), é que eu

"acordei" verdadeiramente. Procurámos então ajuda junto donosso médico de família, que deimediato a encaminhou para a respectiva especialidade. Depoisde algumas consultas de Psiquiatria para controlo do peso epsicoterapia, fomos aconselhados a semi-interná-la numaclínica psiquiátrica. Lá, fazia o tratamento que a médicaachou conveniente e ao fim do dia voltava para casa. Daqueletratamento, tenho imagens da minha filha que nunca imagineinem vou esquecer! Desde alergias, lapsos de memória,convulsÕes, desmaios, alucinaçÕes, tudo eu vi sem nadaentender. Pensava eu, e depois confirmaram-me, que isto era oresultado do tratamento, "nada preocupante". Nada me eraexplicado, tudo era normal, repetiam-me [...] por favor

ajude-nosa tratar a nossa filha.

II -- Braga, Outubro de 1996

Obrigada pela sua carta. Já contactámos o serviço que nosindicou. A Ana Paula está a ser acompanhada por uma médica ejá se falou na terapia familiar, mas não se marcou por faltade disponibilidade dos médicos. Continuo muito confusa acercadesta doença e sem saber que atitudes devo tomar. Acho quedevia haver muito mais informação sobre este tema, osprogramas de televisão que elucidassem as pessoas [...].

III -- Braga, Dezembro de 1996

Desde que recebi a carta do Sr. Professor, tentoauto-analisar-me acerca do meu comportamento em relação àminha filha. Tem toda a razão quando diz ser eu demasiadoprotectora Até serei obsessiva A nossa vida, tanto a minhacomo a do meu marido, giram em função da sua. E quando meaconselha a "não entrar no seu território", sinto-me emdificuldades para seguir à risca este conselho. Qualquer dosseus passos são uma fonte de preocupaçÕes. Tento, no entanto,proceder de forma a que ela não se aperceba [...]. Mas ondepára a Terapia Familiar? A falta de meios (raramente existe umgabinete livre para as consultas) e a burocracia a que estamossujeitos são grande obstáculo para que o processo decorra comoseria desejável [...].Há quanto tempo tenho a minha filha doente e só me dizem queesta situação pode durar anos. Nem mesmo há a certeza da suacura! E os dias passam e sinto-me cada vez mais entregue àminha sorte, continuando a navegar sem conhecer o rumo. A AnaPaula passa todo o tempo que pode a devorar alimentos para, aseguir, os deitar fora. Nos dois ou três dias que antecedem aconsulta seguinte, usa de mais algum cuidado e reequilibra opeso que porventura tenha perdido. E o saldo final até vaisendo positivo: há um aumento de 300 ou 400 gramas, e "tudovai bem" neste controlo [...].O que me pareceu na altura em que procuramos ajuda pelaprimeira vez e me forçou a mudar, é que a médica que tratava aAna Paula não estaria muito preparada no ramo da AN. Por isso,e sem hesitaçÕes, recorremos aos médicos que nos indicou,

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acreditando que aí a minha filha seria melhor acompanhada.E como o Sr. Professor diz que nunca falei da minha filha, massim da sua doença, aqui vai, sem falsa modéstia, o "retrato"da Ana Paula. É uma criança cheia de personalidade, mas dócil,de uma sensibilidade extrema e a quem não se pode falar numtom de voz mais elevado sem que isso lhe provoque o escorrer

das lágrimas. Julgo que tem dificuldades em manifestar os seussentimentos. Até à data, tem sido sempre uma aluna decomportamento exemplar, inteligente, estudiosa até à exaustão,sempre preocupada em atingir as melhores notas, nunca criandoconflitos com quem quer que seja, mas muito reservada, sórespondendo, nas aulas, quando solicitada.

IV -- Braga, Janeiro 97

Mais uma vez, muito obrigada pela sua carta. Eu bem disse queabusaria. Pensei é que não fosse tão rápido. O Sr. Professornem pode imaginar o bem que me fazem as suas cartas. Fazem-mesentir que existe Alguém que, mesmo não me conhecendo de lado

algum, me apoia e ajuda, demonstrando um interesse incrívelpor uma criança que não lhe diz nada, é apenas mais uma aprecisar de ajuda e isso basta-lhe [...]. "Não fique bloqueadapela burocracia. LUTE." Esta simples frase foi o suficientepara ganhar novas forças para mais um "combate" [...]. Umanova postura da Ana Paula: vejo-a ficar mais tempo junto denós quando acaba as refeiçÕes, chegando a reduzir asquantidades de comida para fugir à tentação de provocar ovómito, acto este que é uma constante sempre que ingeria umagrande quantidade (e não julga mal).[...] Também me diz que falo pouco do meu marido. É verdade,sim, mas não é intencional. Não pensei que fosse tãoimportante. O meu egoísmo é que me faz pensar assim. O certo éque a minha vida quase depende da da Ana Paula, que passou aser o meu foco de atenção. Ao proceder assim, reconheço, omeu marido vai sendo relegado. Para ele restam os poucosmomentos que "sobram", que é nada. E, conhecendo-o como oconheço, sei que sofre tanto como eu. É uma pessoa deverassensível, terno, carinhoso, delicado e dedicado, o mais que sepossa imaginar. Estes sentimentos são recíprocos na filha, queo adora e não suporta vê-lo magoado. Nós duas, acho eu, somoso seu mundo, para o qual vive. A sua sensibilidade é de talordem que chega a "adoecer" se vê a mulher ou a filha doentes.Assim, enquanto pude, ocultei o estado da Ana Paula, pensandoque resolveria a situação sozinha. Queria poupá-lo [...]. Nãoé raro vê-lo a um canto da casa com as lágrimas aescorrerem-lhe pela cara abaixo. Sente-se incapaz (por nãosaber como) de ajudar a filha e pergunta-se se não lhe caberáalguma culpa no que está a acontecer, e se não será também umaconsequência das muitas vontades que raramente lhe nega, pornão saber responder não a um qualquer pedido seu.[...] Ela foi por mim muito desejada, mas só o consegui aos 35anos, e esta não terá sido a melhor idade para uma mulher tero seu primeiro filho. Só pensei nisso depois. E por mais quefaça a minha autocrítica, a conclusão é sempre igual: "a minhafilha tinha de nascer". Há talvez por isso um sentimento maiorde "responsabilidade" ao ponto de a hiperproteger, quase não adeixando dar os seus próprios passos. Fui ao ponto de nuncasair de casa, a não ser para trabalhar, para que não ficassesozinha ou com a família. Já bastava o infantário e mais tardea escola infantil, para estar longe dos pais o dia inteiro.Sempre que nos era e é possível, a nossa vida é vivida a três.

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E, quem sabe, terá sido esta uma actuação negativa?

V -- Braga, Janeiro 97

[...] Como o Sr. Professor já se apercebeu, e seguindo o seuconselho, li o livro A Vida por Um Fio, de Isabel do Carmo.

Deixou-me impressionada, para não dizer perplexa, não só pelosrelatos das jovens envolvidas, mas porque me pareceu queexistem algumas em situação bem pior do que a Ana Paula. Comoé óbvio, isso não me conforta, bem pelo contrário. Aindafiquei mais convicta de que a minha filha vai ser um "casocrónico". Não quero perder a esperança, mas tenho momentos demuita incredulidade. A minha saúde já se ressentiu bastante esó com antidepressivos me vai sendo possível encarar menos mala situação.Quando ali se diz que chegam a atingir um peso de 27 ou 28quilos, e já é necessário internamento para alimentaçãoatravés de sondas, é de arrepiar. Obriga-me a pensar se aminha filha não estará muito perto de atingir esse estado. E

que não há uma refeição em que a Ana Paula não provoque ovómito [...]. Pelo que li, esta doença remonta aos séculospassados. Embora tivesse características semelhantes e chamadade nome diferente, a conclusão é sempre a mesma: anorexia.Agora, que vivemos num outro mundo (?) que devia ser de menosignorância, mais esclarecido, parece que voltámos à IdadeMédia! E o pior de tudo é que se está a estender a um universomuito mais vasto! E a isto há quem chame de progresso!

VI -- Braga, Fevereiro de 1997

Acabo de receber a sua carta exactamente no dia seguinteàquele em que teve lugar a Terapia Familiar tão ansiosa-mente esperada e desejada. Esta carta do Sr. Professorobrigou-me a pensar como devo ter sido desagradável paraalguém que tão prestativo tem sido comigo. +s vezes osnossos desabafos acabam por atingir e magoar alguém eessa não é, nem nunca foi, minha intenção. Isto deu-meuma sensação angustiante de ingratidão e fico com o senti-mento de culpa pelo uso e abuso que cometi ao escrever--lhe, manifestando a minha revolta pelo que me estava aacontecer, e sem saber parar na hora certa [...]. O que devofazer ou como reagir em certas situaçÕes só o Sr. Profes-sor, com a sua generosidade, me entendeu e indicou algunsdos passos que eu devia seguir e julgo ter aproveitado [...].Falando, agora, sobre a Terapia Familiar, acho quenesta primeira abordagem ela serviu apenas para os técni-cos da terapia conhecerem um pouco do ambiente familiarque rodeia a Ana Paula [...]. Depois de tudo filtrado, ficouapenas um ponto com algum significado para começar: aquestão da sua mesada ou semanada a que eu nunca atri-buí alguma importância mas que, pelos vistos, poderá ter.A Ana Paula começou por ter, há já uns tempos largos, umamesada simbólica, visto que ela não gastava um centavodessa importância que lhe dávamos e tudo o que precisavae pedia poucas vezes lhe terá sido recusado. A par dissocomeçou, como incentivo ao seu empenhamento no estudoda Matemática, matéria em que sentia e sente alguma difi-culdade, a ganhar um prémio em dinheiro sempre que ti-rasse nota mais alta, acabando por se tornar um hábito emtodas as disciplinas, o que significa que a Ana Paula temsempre algum dinheiro com ela. Passamos, agora, a seguir o

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conselho que nos foi dado, ou seja, dar-se-lhe a semanada paraela poder gerir como muito bem entender.[... ]

VII -- Braga, Julho de 1997

A Ana Paula foi hoje a mais uma das suas consultasindividuais. Gostaria era de ter coisas novas para dizer, masnão. Sempre que vem daquela consulta, surge a minha perguntasacramental: "como correu?". A Ana Paula responde do seu modohabitual "está tudo normal". E a nossa conversa termina aqui,como nos foi aconselhado. E fico sem saber o que fazer. Setelefono, estou a ser insistente, se não falo, estou anegligenciar. Como proceder, então?[...] O meu marido tem uma personalidade muito fechada e quasenão deixa transparecer o que lhe vai no espírito. A suarealização profissional foi afectada, e de que forma, e adoença da filha, que se lhe veio juntar, são motivos mais doque suficientes para não encarar com optimismo o futuro que o

espera [...]. Não é muito dado a novos conhecimentos e, porsistema, não toma iniciativa. Qualquer programa que o obriguea fugir ao ritmo familiar, já é razão para ficar infeliz.Prefere ficar em casa agarrado ao seu computador, quer sejapara o trabalho, quer seja para passar o tempo, não dando azoa convívios familiares ou com amigos, que se foram perdendo notempo [...]. Na sua personalidade há algum conservadorismo,mas tenho de reconhecer que lá o vou moldando no sentido de,pelos menos, deixar a filha "viver", agora que "acordou".

VIII -- Braga, Julho 1997

Penso que a minha carta se cruzou com a sua, recebida hoje eque muito feliz me deixou. Quando a Ana Paula tiver a suaconsulta e eu souber quando haverá terapia familiar, dareinotícias ao Sr. Professor. Não esquecerei o seu conselho sobre"Planeamento do próximo ano lectivo" e "Tentativa de acabarcom os vómitos". Pela minha parte, sinto uma completaignorância acerca de como actuar. As tentativas que vouexperimentando não dão qualquer resultado positivo. Quandofalo no assunto, a minha filha só me responde: "tu não podesperceber o que se passa comigo"; "não compreendes que se eunão fizer isto, nem que seja só um bocadinho, não fico bem";"sinto necessidade e, como vês, não perco peso"; "se não façoisto, que agora é muito menos, tenho a certeza que vou ficarcom uma enorme barriga e o meu corpo, neste momento, estáexactamente como eu gosto, acho que já me olham na rua comoutros olhos" [...].A Ana Paula encontra-se neste momento no campo de férias daempresa onde trabalho. Foi o primeiro ano que a inscrevi eserá o último em que ela pode estar presente devido à suaidade. Estas colónias e campos de férias destinam-se acrianças que têm idades compreendidas entre os 6 e os 15 anos.Este ano, como seria o último, inscrevi-a. Não havia nada aperder e, depois de muitas indecisÕes e incertezas e mesmorecuos da sua parte, lá foi ela, e agora parece-me feliz.Segundo afirma, já arranjou novas amizades, participa em todasas actividades organizadas pelos monitores e já teve o"desaforo" de me responder: "mãe, não achas que estás a falarde mais? estás a tirar a oportunidade a outros pais!".

IX -- Braga, Agosto de 1997

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 A Ana Paula chegou ontem da colónia de férias, onde passouumas férias como nunca teve. Por de mais cansativas, mas muitoagradáveis ("fixes", diz ela). Apareceu-me com um aspectofísico fantástico, bonita, como há muito tempo eu não a via.Durante a sua permanência lá, telefonei-lhe algumas vezes,

escrevi também, a seu pedido. Na única carta que recebi dela,transmitiu-me alguma tranquilidade e confessava-se felizporque os dias estavam a correr tão bem que nem queriaacreditar. O tempo era sempre muito pouco para tantos afazeres[...]. Em certo ponto da sua carta, dizia (e pareciasatisfeita com o facto) que até à data em que estava aescrever apenas tinha vomitado umas quatro a cinco vezes "eisto porque tinha realmente exagerado". Quando ontem a vi, deumesmo para acreditar. Mas depressa esqueceu os bons hábitos e,ao jantar, lá repetiu a dose habitual. Hoje, em frente aoespelho, já afirmava: "engordei muito"; "tenho uma barrigaenorme" e "as pernas já estão grossas" [...]. Só espero que ascurtas férias que vamos fazer juntos também ajudem, por pouco

que seja. Tornou-se-me impossível tê-la sempre ocupada de talmodo que não dê para pensar o que não deve. Lá se foi mais umaesperança de que o campo de férias a tivesse modificado porpouco que fosse. Mais uma batalha perdida (mas valeu, enquantodurou) e sinto vontade de a tratar com alguma intransigência,como seja recusar os seus pedidos de compra disto e daquilo.Só que, já sendo difícil da minha parte a recusa, surgemdepois problemas de consciência: será esta uma boa actuação?Ou, pelo contrário, a hostilidade vai prejudicar ainda mais?Só interrogaçÕes no meu espírito. O "não" da nossa parte nãoirá provocar nela alguma revolta e retaliação? Tirando isto,continua a ser aquela menina ternurenta, até mesmo humilde,mas que, apesar do carinho com que a rodeamos, se sentecarente de outros afectos. Não sei se já disse ao Sr.Professor que ela passou agora para o 10.o ano, com notasespectaculares: apenas 3 quatros e o resto tudo cincos.

X -- Braga, Setembro de 1997

Muito obrigada por mais uma carta que teve a amabilidade de meescrever [...]. Faz-me pensar que a partir de agora ela"acordou mesmo para a vida". Os pais já não conseguem o melhorpara elas, por muito que tentem. Só a sua classe etária aatrai, o que é normal, nesta idade. Mas aqui surge um "senão".Nós, os pais, talvez por não estarmos habituados ao ritmo queela imprimiu à sua vivência, no fundo nos parece exagerado. Equando chamo a atenção para os seus "15 anos apenas", sempreme responde: "Então agora que me estou a divertir é que achamque estou a exagerar? Até aqui queixavam-se que não saía domeu casulo, agora saio de mais!" [...]. Qualquer bocado detempo livre é motivo para se encontrar com os amigos para "nãosofrer a tentação de, em casa, exagerar no que come e deseguida, deitar fora" [...].Continuo a dar a ler à Ana Paula as cartas do Sr. Professor.Fica sempre apreensiva com o que lê, promete tentar ser maisrazoável no seu comportamento, mas depressa esquece(convém-lhe). Mas pediu-me para agradecer, em seu nome, todo ointeresse e carinho que manifesta por ela. Manda um grandebeijinho. É mesmo fã do Sr. Professor e volta e meia fala quegostaria de o conhecer pessoalmente. Oxalá surja umaoportunidade. Ambas ficávamos felizes.

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XI -- Braga, Outubro de 1997

Acabo de receber a sua carta, que muito agradeço. Continuo aafirmar que só o Sr. Professor, mesmo a quilómetros dedistância, me orientou e indicou os melhores passos para nãocair redonda [...]. Já não sou só eu a "agarrar-me" ao Sr.

Professor. O meu marido, que agora está bem por dentro daquestão, sugeriu e eu não desperdicei a ideia: assim, aqui vaia pergunta: será que está dentro dos seus planos uma vinda aBraga? Em caso afirmativo, poderíamos ter alguma chance de over e de lhe falar, nem que fossem só cinco minutos antes daentrada para o lugar onde vai trabalhar? Estamos a pedir demais? Eu sei que sim, mas a ideia agradou-me tanto que nãoresisti à tentação. Gostaria imenso que o Sr. Professorolhasse para a Ana Paula e a conhecesse e a nós também.No meu espírito paira imensas vezes a vontade enorme de ir aLisboa só para o podermos conhecer e falar pessoalmente. Aindanão me atrevi, sequer, a pôr a questão, no entanto, se surgiruma oportunidade, não a deixarei fugir.

XII -- Braga, Novembro de 1997

É sempre com uma enorme ansiedade que abro as suas cartas. Seique vou sempre encontrar nelas algum conselho, ou mesmo umapalavra amiga. O meu marido e a minha filha não ficam menosansiosos. Esta que acabo de receber é bem prova disso. Bemhaja por tudo quanto tem feito por nós, é só o que encontropara exprimir toda a nossa gratidão.Finalmente, realizou-se a tão falada e desejada TerapiaFamiliar! [...] O fundamental, quanto a mim, foi o que serelacionou com a chamada liberdade da Ana Paula quanto às suassaídas. Depois de muito debatido o tema, chegou-se à conclusãode que a minha permissão era sempre mais rápida do que a doPai [...]. O Pai queixa-se de que a filha só se dirige a eledepois de previamente consultar a mãe, de quem, quase sempre,recebe logo o apoio, se acha que deve apoiar, iniciando odiálogo com um "já falei com a mãe que não se importa que euvá..." [...]. Foi sugerido que se assentasse no número devezes que a Ana Paula poderia sair, porque num dos seuspedidos para ir à discoteca, eu respondi que sim, mas deviater em conta que eu não ia consentir uma ida semanal.Primeiro, porque só tem 15 anos e há muito tempo para viver,depois porque não vou aguentar todos os sábados ousextas-feiras deitar-me às 4 ou 5 horas da manhã, para a irbuscar [...].

P. S. -- No próximo dia 13 de Novembro estaremos naconferência, nem que seja só para termos o prazer de ocumprimentar, se nisso não vir inconveniente. Muito obrigadapela informação.

XIII -- Braga, Novembro de 1997

Os meus melhores votos para que o seu regresso a Lisboa tenhasido feito na melhor forma. Fez ontem precisamente 8 dias quetive o prazer de o ver pessoalmente. Confesso que crieigrandes expectativas à volta deste encontro, apesar dementalizada para a brevidade com que ele ia decorrer -- o meumarido não se cansava de me recomendar: "vê se te controlas enão comeces com conversas inoportunas ao momento; não podesesquecer que o tempo voa e há horários a cumprir".

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Naturalmente, eu estava já sensibilizada para tudo, masnaquele momento também tudo esqueci e só pensava que o"milagre" podia acontecer. Este não sucedeu, por meu mal, eveio a grande frustração. Felizmente, quando o Sr. Professorestava na minha frente, eu fiquei como que hipnotizada e malabri a boca, doutro modo teria dado uma pior imagem de mim. Já

passou, eu vi-o, todos nós o vimos, tivemos o prazer enorme deo cumprimentar e devia ter sido o suficiente para me sentirfeliz. Porém, como não passo de um ser humano, sou umainsaciável, pretendo sempre mais do que está ao meu alcance.Sendo assim, mal posso esperar por nova oportunidade (iráhaver?). Para completar, não pude assistir ao colóquio. Quandome informei, foi-me respondido ser necessária uma inscriçãoprévia e antecipada. Para quem tanto queria qualquer coisa,tinha obrigação de não desconhecer estes pormenores. Ninguémme manda pensar que tudo me vem ter às mãos de bandeja. Parase alcançar algo que se deseja devem ser removidas todas asmontanhas. De futuro, e se a oportunidade surgir, esta não meescapará.

O Sr. Professor deve estar admirado por eu não escreverimediatamente a seguir ao encontro. No mínimo era oque devia ter feito. O que aconteceu foi eu ter ficado semsaber o que dizer, tal como neste momento. É que, depois doque me foi dado ver naquele auditório, mais me critico pelaperturbação que tenho causado ao seu tão valioso tempo. Vi-odemasiado solicitado naqueles poucos minutos antes de entrar,e fez-me imaginar, se calhar ainda por defeito, o quanto éabsorvido pelo trabalho e pelas pessoas. Devia ser maiscontida, mas a vontade de escrever é sempre mais forte que nãome deixa parar. Parece é que estou viciada como a Ana Paula,só que noutro sentido. Estou mesmo a pedir um abanão fortepara aprender! E esse abanão o Sr. Professor vai-mo darqualquer dia. Já pedi desculpa vezes sem conta, prometi nãoser muito "chata", como diz a minha filha, e, acima de tudo,sei que nada disto me absolve.Agora, à distancia, sinto que deveria ter usado qualquer tipode luta pelos direitos que assistiam a uns pais ignorantes detodo naquela matéria, para serem devidamente acompanhados, epor que não ensinados, a viver com a doença da filha. E quandofalo nestes direitos, refiro-me ao começo da doença e nãoquando ela atingiu o seu auge e a atirou para uma casa desaúde, onde eu assisti a todo o desenrolar de um tratamento(?) que ainda hoje ponho em causa. Nessa altura é que devíamoster sido consciencializados para as prováveis situaçÕes queiríamos enfrentar. Infelizmente não encontrámos a pessoacerta, no momento certo. Só quando me apercebi da existênciado Sr. Professor, como médico dedicado e tão defensor dosideais dos nossos jovens, aí sim, não hesitei em lhe escreverpela 1.a vez a pedir socorro e, posso confessar agora, semesperança de obter resposta. Bendita a hora em que tomei essadecisão.

XIV -- Braga, Dezembro de 1997

[...] Notava uma certa melhoria no comportamento alimentar daAna Paula, não vendo com tanta frequência aquela sua forma tãocaracterística de devorar em vez de comer pausadamente, masconheço bem quais os seus passos imediatamente a seguir àsrefeiçÕes, que fingimos não ver, mas a verdade é que ela nãoconsegue superar aquele seu vício, como ela própria lhe chama.Continua a sentir-se demasiado gorda, mas falta-lhe a força de

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vontade suficiente para seguir uma dieta equilibrada ondepossa perder algum peso (está com49Kg, mede 1.64m) sem se prejudicar.[...] O curioso de tudo isto é que os problemas giram sempre àvolta do mesmo: saídas para o "desconhecido", como sejam umcinema à noite ou discoteca. Uma festa em casa dos amigos e

companheiros da escola já não traz tantas contrariedades. Sóas horas, porque a tendência é para estes convívios acabaremcada vez mais tarde. Acontece ainda, nestas festas, surgiremnovos conhecimentos e, em consequência, motivo para maissaídas, motivo para novas arrelias entre os pais. Foiengraçadíssimo a intervenção do médico nesta parte -- "entãoquando não houver problemas da Ana Paula para resolver, quevão os pais fazer? Ficam no desemprego?". Ficou para meditar.

XV -- Braga, Dezembro de 1997

Recebi a sua carta, cheia de interesse, a que só hojerespondo, por falta de oportunidade. Esta cruzou-se com a

minha, que escrevi depois da Terapia Familiar, em fim deNovembro passado.Nela, o Sr. Professor dá-me conta de uma iniciativa fantásticaque aí em Lisboa começou a empreender -- reuniÕes periódicascom pais de anorécticas. Será a melhor ajuda que poderãoreceber. Nos meus momentos mais difíceis, procuro conhecerpessoas que tenham problemas comuns aos meus e, se mais nãoconsegui, pelo menos encontrei alguém com quem a Ana Paula seidentificou bastante e, desde logo, nós as mães, marcamosencontro para elas. Foi o início de uma amizade que ainda hojeperdura [...].Dou comigo imensas vezes a pensar que, se não fosse esta faseda vida que atravessei, teria perdido a oportunidade deconhecer algumas pessoas que de uma forma ou doutra memarcaram profundamente [...]. Precisamos é de agarrar com todaa força a mão que nos é estendida quando estamos no fundo doabismo, cheios de raiva ou então meio adormecidos. Na alturaprópria, uma subida forçada à superfície ou um abanão faz-nosrepensar toda a nossa empatia. Felizmente eu encontrei quem medeu força bastante para alcançar uma vida mais plena deesperança e estou a tentar vivê-la em toda a sua grandeza.

XVI -- Braga, Dezembro de 1997

Está a aproximar-se o fim-de-semana e gostaria de nãoo acabar sem voltar a escrever-lhe [...]. Fui ao escritório egravei em disquete todos os ficheiros que tinha no meucomputador. Só receio que algum se tenha danificado. Ascópias de que disponho remeto-as agora ao Sr. Professorpara que faça delas o que muito bem entender. Sem falar noserros encontrados, reler este montinho de papéis deixou-meenvergonhada, primeiro pelo tempo que o fiz perder, depoispelo tom que imprimi em algumas destas cartas, cheia dedesespero e raiva por tudo quanto me estava a acontecer e quefazia de mim a pessoa mais infeliz da terra[...]Convenceu o pai a deixá-la passar o fim-de-semana com a turmado colégio, numa quinta de um dos colegas. Só faz 16 anos nopróximo mês. Será isto sintoma e princípio de afastamento dafamília? Eu nem quero crer. Dou comigo a pensar se não estareimesmo a contribuir para uma liberdade demasiada, e da qual mevou arrepender. Acusada pelo pai eu já sou, de estar sempre do

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seu lado, de ser sua aliada. Está a ser muito difícilencontrar o termo de equilíbrio. Há uma relação decumplicidade muito grande entre nós, devo admitir, e não seise poderá ser prejudicial. Acontece que as nossaspersonalidades (minha e da Ana Paula -- ambas somosaquarianas) são muito idênticas e julgo estar a transmitir à

Ana Paula um grande sentido de independência, comresponsabilidades assumidas, mas nunca de forma calculada,tudo acontecendo do jeito mais natural. A questão é se estareicerta quanto à minha forma de agir. Fico sempre na dúvida senão estou a empurrá-la para a "arena" cedo de mais.O meu bem haja por tudo o que tem feito pela minha família. Ese precisar de alguma coisa em que eu possa ser útil, aqui noNorte, a minha disponibilidade é completa.Os melhores votos de muita saúde, e que o ano de 1998 seja omelhor da sua vida, assim como de todos os seus.

XVII -- Braga, Janeiro 1998

Este dia 27 de Janeiro tem para mim um significado muitoespecial e gostaria de o partilhar com Alguém que o tornouainda mais alegre do que o habitual. A minha filha faz hoje 16anos, está linda e eu estou feliz. Há um ano atrás eu não viafuturo na minha frente e a esperança de que alguma coisamudasse era quase nula. O Sr. Professor nem pode imaginara alegria de hoje, comparando com o que vivi há um anoatrás e que foi um verdadeiro pesadelo. Agora tenho despertadolentamente dele, embora saiba que preciso estar prevenida paraas crises que ainda poderão ocorrer. Sempre que a oportunidadesurge, não deixo de lhe falar como está bonita e peço-lhenunca esqueça os conselhos do Sr. Professor [...].Pelo meu lado, tento fazer o meu melhor (?), querpreparando-lhe umas refeiçÕes mais leves quer motivando-a anovo visual, com roupas apropriadas ao seu aspecto físico, queneste momento considero francamente bom, e elogiando, sempreque há lugar para isso [...].Há momentos na vida em que tudo parece estar bem. De repente,outros surgem que nos dão a sensação que o mundo vai ruir; ochão foge debaixo dos pés e o tecto desaba nas nossas cabeças.Nestas alturas gostava de fazer como a avestruz, mas sei quenão posso nem devo e o que mais preciso é de toda a lucidez,para ajudar a minha filha com todas as armas de que disponho.Os melhores cumprimentos, com votos de muita saúde, e o maiorsucesso para o novo livro que anseio encontrar nas livrarias.

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Epílogo

O aniversário da minha avó (1)

8 de Junho de 2001. A minha avó faz 121 anos. Acordou bemcedo, como de costume, com a empregada de sempre a levar-lheum chá e uma torrada. Está agora sentada na cama, recostada emduas almofadas, a pentear o seu cabelo branco com uma escovade cabo de prata. Pensa na família e no seu dia de anos.Depois de arranjar-se, vai esperar a chegada das duas filhaspara almoçar.

(1) Texto previamente publicado na revista Avós e Netos, apedido de Laurinda Alves.

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 Está agora um pouco sonolenta, não sabe bem se adormeceu hábocadinho e sonhou. Estava sentada no jardim de Sintra numacadeira de madeira, com uma almofada às florinhas presa poratilhos. Olhava em volta para a buganvília do torreão epensava no marido que morrera há muito, sem conseguir ver as

flores atingirem o cume. O neto mais novo, o Daniel, estava aseu lado a ler um romance, com um enorme gato preto a dormirno colo. De repente, começou a ficar muito escuro e o nevoeiroinvadiu tudo, molhando as dálias e as zínias e enchendo-a defrio. Deixou de ver o neto e pareceu-lhe que o gato fugia aolonge. Levantou-se e começou a procurar. Foi à sala de jantar,pode ser que o Dani estivesse a ler no lugar do costume,procurou atrás da magnólia onde ele se escondia às vezes,olhou para a casa dos vizinhos e pensou lá ir, mas teve medodo cão que a todos perseguia e não se aventurou. Começou aficar muito inquieta. Como era possível ter perdido o neto? Esubitamente, muito devagarinho, pôs-se à escuta. Alguémrespirava com dificuldade em cima do vaso das begónias.

Aproximou-se e viu o Dani muito pálido, com o nariz a abrir ea fechar e a respiração ofegante. Tentou controlar-se e enchero peito de ar muito lentamente, mas o coração começou aossaltos e cada vez respirava pior. Deu a mão ao neto e ficaramos dois, entre as flores, a respirar, a tentar respirar...Acordou muito angustiada e começou a pensar. Talvez o sonhoque tivera se relacionasse com a pneumonia do neto Daniel. Orapaz tinha sete anos e procurava-a muito. Dizia um amigo dogenro, psicanalista, que era devido à "relação precoce". Paraela, a "relação precoce" tinha sido tomar conta do neto com umano de idade, quando a filha, o genro e o outro neto tinhamido para a América, para que o genro aprendesse uma coisa queela sempre achou não existir e a que a filha chamava "PublicHealth". Ficar com o neto foi das coisas boas da sua vida(teria sido para ele?). Foi com ela que o neto disse asprimeiras palavras e começou a andar. Chegava a casa, depoisde lanchar com as amigas, e o neto corria ao seu encontro,para pôr o chapéu que trazia (sempre adorou chapéus,compreendia tão bem que os rapazes e raparigas de agoraandassem com aqueles barretes esquisitos), e caminhavam pelocorredor da casa de Campo de Ourique. Como o Dani ficavaengraçado com aqueles chapéus!Quando ficou de novo sozinha com ele para outro estudo dogenro, o neto andava na escola e já lia muito bem. Lembra-sede o miúdo chegar a casa, olhar para as portas da cozinha eler "sa-bão, esfre-gão, a-reia", com um grito de "avó, já seiler!". Recorda agora a sua pneumonia. Ficava horas ao pé dele,a ler ou a bordar, a respeitar o silêncio e a espreitar a suarespiração ofegante. O gato estava aos pés da cama quasepermanentemente. Quando o médico deu o neto como curado, numatarde fria de Setembro, dormiu bem pela primeira vez, ao fimde trinta dias de preocupação permanente.O dia de anos estava a passar depressa. Pensava tanto que sesentia pouco atenta. As recordaçÕes apareciam em vertigenspermanentes, quadros inacabados do seu passado que não queriaapagar, mas que lhe impediam a concentração. Uma das filhasestava muito surda e a outra falava sem parar. Sempre namesma, duas mulheres que amava tanto, mas tão diferentes desi!Num instante, estava no seu jantar de anos. Viu chegar toda afamília mais ou menos à mesma hora. Os três netos eram pessoasconhecidas e de que ela se orgulhava. Não podia deixar de

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sentir que tinha contribuído para isso. Ainda agora jantavatodas as terças-feiras com o seu neto Daniel e a mulher, tinhao cuidado de se vestir como se fosse para uma festa. Com oalfinete de peito de que ele gostava e um discreto bâton queimaginava ele apreciaria nos seus lábios. O Jorge e o Filipeapareciam menos, mas lia coisas sobre eles e telefonava muito.

Quando, em 1971, nasceu o seu primeiro bisneto João, sentiuque renascia. Afinal, o seu neto mais novo foi quem sedespachou primeira Adorava agora reunir os seis bisnetos,quatro rapazes e duas raparigas, naquilo a que eles chamavamos almoços da avó Bi (ou avó Sáli, como lhe chamava o marido).O nascimento da primeira trinetra, em 1997, foi maravilhoso.Tanta gente que não conhecia nem via muito bem, a abraçá-la ea considerá-la linda! Tinha sidobonita, é verdade, mas com 117 anos já só se pode ser bela pordentro.Estavam todos na sala do jantar. Tinha a certeza de que tinhaconseguido passar a ideia de que os laços familiares intensossão o mais importante da vida. As avós são as historiadoras da

família, as pessoas que dão continuidade dentro de cada um denós e que nos fazem sentir pertencer. Naquele momento, comtodos à sua volta e já sem grandes forças, sentia uma energiaimpressionante. O seu olhar procurava abarcar todos, sobretudoos bisnetos e os trinetos, que eram quem mais precisava de si.Com os pais e avós sempre a trabalhar, não podia parar nunca.Haveria de continuar a bordar as suas toalhas com os netos aescolher as cores, conseguiria continuar a ler os seus livrosporque o João fazia no escritório umas fotocópias aumentadas,e já sabia carregar numas teclas dos computadores portáteisdos bisnetos para ver aqueles jogos, afinal não muitodiferentes do dominó ou do mah-jong do seu tempo.Quando apareceu o bolo enorme, com 121 velas mais ou menosenterradas no creme, estava feliz. Afinal o mundo não tinhaacabado no ano 2000 e, embora difícil, estava maisinteressante que nunca.Chamou todos os bisnetos e trinetos para apagar as velas, oque foi motivo para uma daquelas explosÕes de alegriabarulhenta que sempre tinha estimulado na família.Passou tudo num instante. +s onze da noite ligou o vídeooferecido pelos bisnetos e começou a trautear uma ária deMozart, que dantes costumava ouvir na rádio. Tinha sido um diabem passado. Valia a pena o facto de nunca se ter afastado,nem demitido de dizer o que pensava Vivia sozinha, mas comtodos dentro de si.P. S.: Querida avó Sarah, quando leres este texto -- onde querque estejas! --, vais ficar preocupada comigo. Sei quecivilmente morreste em 1976, com 96 anos, logo a seguir aonosso jantar de terças-feiras. Que me importa isso? As avósverdadeiras são imortais.

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Aseus, obrigado e... até breve

O livro que acabou de ler pretende resumir a investigação e otrabalho clínico, por mim efectuado, em três sectores que metêm mobilizado durante os últimos vinte anos: a família e aadolescência, a escola, e uma doença que sempre me fascinou, aAnorexia Nervosa.

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Procuro ser um professor universitário que olha em volta eeventualmente possibilita alternativas aos constrangimentosvários que todos sofremos. Penso que o título do livro éapropriado; o leitor decidirá.Agradeço a Ana Paula Gomes o cuidado havido com o textoinicial, à Dulce Bouça (pp. 85-100 e pp. 146-155) e ao Pedro

Strecht (pp. 47-62) a colaboração escrita, à Eulália, à Nazarée ao António Neves a amizade e o estímulo permanentes, e aoAntónio Lobo Antunes, sempre.Até breve.