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vírus #12 — abril/maio 2011 Passado e Presente das lutas estudantis rui bebiano estudantes em movimento: uma tiPologia localizada da reivindicação guya accornero a rePressão contra os estudantes no estado novo (1956-1974) Jorge costa crise de 1962: como a ditadura Perdeu os estudantes diana andringa 1965, a crise silenciada miguel cardina crises, história e memória José manuel loPes cordeiro radicalismo Político e activismo estudantil nos últimos anos do fascismo (1969-1974) alexandra silva do biénio revolucionário à luta “anti-ProPinas” – movimentos estudantis em Portugal (1976-1992) andrea Peniche era uma vez uma lei José soeiro, nuno serra, ana drago a Praxe em Portugal: origens e significados elísio estanque movimentos e culturas estudantis hugo ferreira a contra-revolução no ensino suPerior João teixeira loPes desigualdades de Percurso no ensino suPerior fabian figueiredo futebol de causas, um documentário de ricardo martins

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Page 1: vírus - amigoscoimbra70.pt Sobre o Movimento... · ruptura exerce uma diferença axial: da lamentação não reza a história. por isso mesmo, o resgate da memória é aqui funda-mental:

vírus#12 — abril/maio 2011

Passado e Presente das lutas estudantis

rui bebiano estudantes em movimento: uma tiPologia localizada da reivindicação

guya accornero a rePressão contra os estudantes no estado novo (1956-1974)

Jorge costa crise de 1962: como a ditadura Perdeu os estudantes

diana andringa 1965, a crise silenciadamiguel cardina crises, história e memóriaJosé manuel loPes cordeiro radicalismo

Político e activismo estudantil nos últimos anos do fascismo (1969-1974)

alexandra silva do biénio revolucionário à luta “anti-ProPinas” – movimentos

estudantis em Portugal (1976-1992)andrea Peniche era uma vez uma lei

José soeiro, nuno serra, ana drago a Praxe em Portugal: origens e significados

elísio estanque movimentos e culturas estudantis

hugo ferreira a contra-revolução no ensino suPeriorJoão teixeira loPes desigualdades de Percurso no ensino suPeriorfabian figueiredo futebol de causas, um documentário de ricardo martins

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vírus abril/maio 2011 [2] editorial

EstE é um númEro sobrE o papEl dEcisivo que diversas gerações de estudantes exerceram na mu-dança social em portugal, conjugando a visão histórica com a abordagem sociológica, sem prescindir de teste-munhos directos de alguns protagonistas.num momento em que a “crise” invade os discursos, as representações e as práticas, parece-me crucial reflec-tirmos sobre o seu potencial transformador. depois de uma “crise”, nada fica na mesma, embora também nada nos garanta um progresso ou “salto” qualitativo, ao con-trário das visões evolucionistas e lineares. das crises podem brotar regressões significativas. mas, como se poderá constatar ao longo destas páginas, a capacidade de levar até às últimas consequências o propósito de ruptura exerce uma diferença axial: da lamentação não reza a história.por isso mesmo, o resgate da memória é aqui funda-mental: ela permite uma transmissão que, não sendo paternalista, porque cada crise tem a sua configuração própria, as suas lutas, os seus actores, nos mune de uten-

sílios para evitar o desperdício de uma visão descontex-tualizada e débil.os estudantes não são uma geração, embora por vezes se resvale no erro dessa generalização abusiva. mas constituem um grupo com especial visibilidade nas so-ciedades contemporâneas. Estas páginas ilustrarão o seu potencial de generosidade, solidariedade e atraves-samento de fronteiras. a condição estudantil não pode ser nem um oásis, nem um gueto, antes um ponto de apoio para se pensar e transformar um país.Queria agradecer ao miguel cardina, ao rodrigo rivera e ao Hugo dias o imenso labor e rigor na organização deste número. aos leitores e leitoras da vírus gostaria de comunicar que este é o último número que dirijo. Foram doze ex-periências inigualáveis, desde Fevereiro de 2008 até ao momento, impregnadas da enorme qualidade visual e gráfica da responsabilidade do luís branco, que fez de cada número um deleite para o olhar. Espero que tenham usado esta revista com genuíno prazer e sentido crítico.

editorialJoão teixeira loPes

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estudantes em movimentouma tiPologia localizada da reivindicação

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vírus abril/maio 2011 [4] Passado e Presente das lutas estudantis

até aos inícios do século XiX, não EXistE notícia em portugal de movimentações colec-tivas situadas fora da defesa dos privilégios e dos inte-resses pontuais da corporação estudantil universitária. no espaço ocupado pela nossa única universidade, as repetidas rixas, estúrdias e arruaças, que definiam um relacionamento por vezes violento com a população não universitária, designada «futrica», eram integradas dentro de uma dimensão de manutenção das prerroga-tivas académicas. no interior de uma sociedade rigida-mente hierarquizada, o aluno universitário permanecia submetido à ordem magistral e corporativa, ocupado com a preparação para o lugar social de destaque que lhe estava seguramente reservado. a universidade de coimbra era assim, exclusivamente, um espaço de for-mação de futuros «mandantes»: doutores e bacharéis cujo título se afirmava, independentemente da efecti-va qualificação, como sinal indiscutível de autoridade e de privilégios. no entanto, a partir da segunda metade de oitocentos, esta condição começou a mudar. podem identificar-se três tendências que a iniciativa colectiva estudantil irá definir como de índole conflitual.

a primeira une-se à afirmação regular de formas de oposição, declarada e colectiva, às atitudes discricioná-rias ou a determinadas orientações das autoridades aca-démicas. é neste contexto que ocorreram movimenta-

ções como aquela que levou à constituição da sociedade do raio (1861-1863) e, logo de seguida, aos aconteci-mentos da chamada Rolinada (1864). a sociedade per-maneceu durante cargas décadas como uma das referên-cias centrais do movimento académico coimbrão: a luta vitoriosa contra o reitor basílio alberto, a valorização que atribuía à participação dos estudantes pugnando por «uma reforma que distinguisse ciência e costumes» e o manifesto-proclamação «à opinião pública ilustra-da do país», redigido por antero de Quental e assinado por perto de metade dos 725 estudantes então matricu-lados. por sua vez, a Rolinada conduziu o movimento numa outra direcção, ultrapassando pela primeira vez os limites físicos da cidade. o êxodo de praticamente toda a academia para o porto, onde se manteve, com escândalo do país, durante algumas semanas, esvaziando uma coimbra dia e noite patrulhada por companhias armadas de infantaria, despojando-a da presença efec-tiva do seu símbolo maior e provocando o pânico das autoridades e a preocupação dos familiares mais zelosos, sublinhou, como jamais acontecera, a importância vital do estudante para a cidade, representando um dos mais extremos acto de protesto estudantil nela produzidos.

Em 1907, a greve geral académica irá culminar a contestação das estratégias conservadoras de um «es-pírito universitário» que, salvo algumas excepções, se

revelara incapaz de se adaptar verdadeiramente às prá-ticas e às exigências do liberalismo político e filosófico. provocada pela reprovação de José Eugénio dias Ferrei-ra, por motivos pessoais, em provas públicas de douto-ramento, abrangeu rapidamente a generalidade da aca-demia, principalmente após a expulsão dos alunos mais intransigentes, que haviam tido um papel mais activo na organização dos protestos. apesar de semi-derrotada, esta luta estudantil, repleta de episódios rocamboles-cos, decorreu em função de um conjunto de factos e cir-cunstâncias que lhe conferiram uma dimensão nacional, alargando-se a outras escolas superiores e aos liceus, sempre acompanhada de um amplo e inflamado debate a respeito da política educativa e da própria sociedade académica, com uma larga projecção na imprensa peri-ódica da época e uma presença assegurada no lastro de memória da academia.

a segunda tendência preenchida pela acção reivindi-cativa estudantil definiu-se através da sua intervenção empenhada na tentativa de suscitar a alteração das polí-ticas governamentais para a educação pública, em parti-cular para a universitária. possui também momentos de grande dinamismo, em regra centrados, pela força das circunstâncias que implicavam uma maior vulnerabili-dade do Estado, nos períodos de intensa instabilidade política. primeiramente, aqueles que se seguiram à pro-

estudantes em movimento: uma tiPologia localizada da reivindicação rui bebiano | Professor na faculdade de letras da universidade de coimbra. investigador no centro de estudos sociais da univ. coimbra

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clamação da república; depois durante os anos de uma «primavera marcelista» coincidente com a fase crítica e de declínio do Estado novo; em seguida nos tempos imediatamente posteriores ao 25 de abril; e, finalmente, em 1993, dentro de um contexto bastante diverso, quan-do o ministro «cavaquista« couto dos santos lançou a ideia da revogação do anterior regime de propinas, abrindo um conflito que permanece em aberto.

logo em outubro de 1910, coimbra foi palco de mo-vimentações destinadas a pôr em causa a ordem univer-sitária vigente durante a monarquia. os estudantes in-vadiram em fúria a sala dos capelos, desfazendo os seus cadeirais em pedaços e rasgando as vestes dos lentes. no dia 23, ao mesmo tempo que era suprimida a Faculdade de teologia, abolia-se o foro académico e declarava-se facultativo o uso da capa e batina, terminando-se tam-bém com os cerimoniais académicos. manuel de arria-ga, o recém-empossado reitor republicano, e antónio José de almeida, ministro do interior, anunciarão, sem quaisquer insígnias universitárias, perante uma assem-bleia de lentes e estudantes reunidos sem distinção de nível na sala dos capelos, a confirmação destas e de outras medidas, num indício simbólico das profundas mudanças sociais e na organização do ensino que, an-tes ainda de iniciado o recuo de um republicanismo mais radical e jacobino, pareciam anunciar um progra-ma político capaz de promover uma reforma global do sistema universitário.

muitos anos mais tarde, em plena crise académica de 1962, mas principalmente durante a fase conturbada vi-vida no ano lectivo de 1968-69, os estudantes de coim-bra iriam afirmar a divergência perante o autoritarismo do regime, no que se refere à sua política educativa para

o ensino superior. a forma razoavelmente pacífica que tomou a célebre manifestação do 17 de abril de 1969 no edifício das matemáticas, na presença da «veneranda figura do chefe de Estado» américo tomás e do seu ministro da Educação José Hermano saraiva – tornada «irreverente» e «inadmissível» por um regime que se mantinha intransigentemente autoritário e autista –, bem como as palavras de ordem estudantis na altura avançadas, anunciavam esse projecto de, pela iniciativa estudantil, promover a mudança na política educativa do governo. Quando se requeriam fundamentalmente medidas no sentido de uma renovação da universidade e da «democratização», a par do respeito para com os dirigentes associativos eleitos e da proposta de reinte-gração de professores e alunos expulsos por motivos políticos, colocava-se a voz estudantil num espaço que até então a ignorava, e a própria cidade no centro da contestação de uma política educativa e cultural com a qual as autoridades académicas, salvo raríssimas excep-ções, compactuavam sem grandes problemas.

somente a situação criada com a revolução de abril viria, de facto, a propiciar a possibilidade de uma in-tervenção activa nesta área, se bem que, nessa época, a voz reformadora dos estudantes – e particularmente a dos estudantes universitários – tivesse sido de algu-ma forma abafada por outras urgências revolucionárias. Existe, todavia, toda uma história da actuação estudan-til no período imediatamente pós-revolucionário – des-de o dia da abolição do regime salazar-marcelista até à promulgação do decreto-lei n.º 781-a/76, a chamada «lei cardia» – que se encontra ainda por fazer, mas sem a qual não será possível entender de forma cabal o de-senvolvimento da vida universitária ao longo dos últi-

mos trinta anos. basta lembrar que foi a confluência da tradição corporativa universitária com a intervenção de alguns dos objectivos do calendário revolucionário que criou as condições para a produção dos instrumentos da «gestão democrática das escolas» que, anos depois, associados em coimbra a uns conciliatórios e ambíguos Estatutos da universidade, consignados em 1989 por despacho normativo, produziram uma situação de blo-queio institucional em relação à intervenção dinâmica da iniciativa estudantil e à própria capacidade operativa dos organismos gestionários, utilizada como argumen-to para fundamentar a concentração do poder decisório que está agora em curso.

após a época que correspondeu sensivelmente à dé-cada de 1980, na qual prevaleceu um movimento dirigi-do por militantes dos destacamentos partidários juvenis (as chamadas «jotas»), quase exclusivamente centrado numa actividade meramente associativa, irá dar-se iní-cio à procura de um novo modelo de actuação. a luta estudantil contra o pagamento de propinas emergirá assim dentro de um contexto de indefinição progra-mática, mas também de uma nítida e crescente recusa da interferência dos partidos políticos. uma orientação menos formal, então adoptada por alguns sectores po-liticamente desenquadrados da frente anti-propinas – a qual lhes valeu o qualificativo público, atribuído pela im-prensa, de actores de uma «geração rasca» – resultou em larga medida desse processo de busca, que nos anos mais recentes tem vindo a possibilitar o crescimento de um movimento menos dependente de programas reivindicativos excessivamente localizados. no caso de coimbra, a relativização do lugar outrora central da sua universidade correspondeu também à moderação

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do papel, importante mas já não decisivo, do segmento nativo de uma iniciativa estudantil agora dotada de di-mensão claramente nacional.

porém, o que mais duradoura e profundamente mar-cou o movimento académico coimbrão ao longo dos últi-mos 150 anos, foi, como terceira e última das tendências enunciadas, o seu envolvimento em iniciativas dotadas de elevada responsabilidade política, buscando intervir activamente nas transformações operadas na sociedade portuguesa e, por vezes, nas mudanças do próprio re-gime. mais intensa e agitadora, é também esta vertente aquela que tem sido abordada de forma mais superficial, sendo, por este motivo, mais facilmente apagada da me-mória das ulteriores gerações de estudantes, desvalori-zada por comparação com um certo memorialismo «cas-tiço» na construção das imagens identitárias da cidade.

na primavera de 1828, alguns dos lentes que iam a lisboa beijar a mão a d. miguel, monarca absoluto, foram agredidos e assassinados na aldeia de sangardão, perto de condeixa-a-nova, por um grupo de estudantes liberais mais exaltados. Esta acção marcou a sangue o início do envolvimento estudantil nas grandes questões da ordem política, confirmada pouco depois pela inter-venção dos batalhões académicos em diversos confli-tos, nos tempos difíceis da Guerra civil (1832-34) e da patuleia (1846-47). terá sido, porém, a já aqui referia sociedade do raio, a assumir claramente a intervenção estudantil enquanto espaço-tempo de preparação dos es-tudantes para uma intervenção que deveria ser perspec-tivada, como a própria proclamava, para «fora daqui». por isso a realidade do país, no seu conjunto, esteve tão presente nas razões que determinaram esta acção aca-démica, projectando-a para além dos limites do meio

universitário e da cidade, mobilizando um conjunto de re-ferências internacionais no plano das ideias, e definindo como objectivo essencial, na palavra de Eça, «livrar um século novo do fantasma doutro século morto e en-terrado».

o alargamento do grau de politização do movimento associativo e estudantil coimbrão e o seu empenho em iniciativas apontadas contra o regime, verificaram-se, entretanto, na fase posterior ao 28 de maio e à implan-tação da ditadura militar. nessa altura, dentro de uma área social já adaptada à intervenção pública que tinha sido estimulada pelo ambiente cívico vivido durante a i república, foi no sentido de assegurar a sua defesa que foram lançadas diversas acções. derrotada por um regi-me que entrava então nos anos da estabilização política e da afirmação junto de largos sectores da população que se seguiram imediatamente à proclamação do Esta-do novo, este tipo de intervenção quase desaparecerá de seguida, durante o período que se prolongou até ao fim da segunda Guerra mundial e à integração de amplos sectores estudantis nos actos de uma oposição que, após a vitória militar dos aliados, por instantes acreditara encontrar-se próxima do poder.

a eleição de uma direcção associativa chefiada por Francisco salgado Zenha, em assembleia-geral de es-tudantes que teve lugar em 1944, foi um sinal desse tempo fugaz: os dez anos seguintes corresponderão, de facto, ao regresso do associativismo estudantil a uma posição defensiva. tal aconteceu dentro de um ambien-te cultural definido, muito particularmente no caso de coimbra – na sua condição de centro de reduzidas di-mensões, fortemente marcado pela actuação de índole conservadora dos círculos próximos do salazarismo, por um certo provincianismo atávico e pela origem rural da larga maioria dos seus corpos – por intermédio de um nítido deslocamento em relação às práticas sociais e às iniciativas culturais que vinham já sendo detectadas junto dos ambientes urbanos alargados, mais complexos e abertos a uma razoável influência cosmopolita, junto dos quais as outras duas grandes academias nacionais se vinham definindo.

apenas no decorrer dos anos 60 esta situação se verá verdadeiramente alterada. durante esses cerca de vinte anos, aquilo que outrora fora concebido como zona de consenso – ou seja, o universo de um saber que conseguia atravessar as gerações, diferentes segmen-

o alargamento do grau de Politização do movimento

associativo e estudantil coimbrão e o seu emPenho

em iniciativas aPontadas contra o regime, verificaram-se,

entretanto, na fase Posterior ao 28 de maio e à imPlantação

da ditadura militar.

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tos sociais e o próprio sistema educativo – começava a ver-se transformado em campo de batalha, ao mes-mo tempo que a cultura passava de parte da solução a parte do problema. isto significa que a afirmação de uma nova cultura-mundo, de dimensão planetária, se fez então em pleno combate contra as matrizes dominantes da modernidade, funcionando enquanto base energética e campo de influência de toda a corrente contestatária. será, porém, no contexto das alterações operadas den-tro de um universo juvenil em expansão que se torna-rá possível detectar a origem de boa parte das grandes transformações que ocorreram na época, bem como do ponto de não retorno que, em particular no que respeita à afirmação de uma atitude recorrente de valorização das formas de protesto antidisciplinar, elas puderam configurar.

um número importante de jovens, particularmente aqueles que povoavam os espaços urbanos e universitá-rios, questionavam agora a sua transformação em meros porta-vozes dos impulsos políticos e das expectativas culturais das suas elites de origem. assumiam-se como sujeitos sociais que questionavam e contestavam o seu modo de inserção na sociedade, constituindo a sua pró-pria condição juvenil o objecto de interesse em redor do qual foram capazes de construir a sua área de inter-venção política. não era apenas nova a existência de jovens associados às formas de crítica, contestação e re-beldia, com as quais confrontavam as autoridades, mas era igualmente novidade que, a um ritmo cada vez mais veloz, eles se mostrassem em condições de apresenta-rem alternativas, ou fossem capazes de empreender uma acção distinta da dos mais velhos, e por vezes se lhes opusessem. afirmava-se, enquanto facto totalmente in-

contornável, a sua própria visibilidade social.Esse lugar distinto emergia também como território

de resistência, dentro do qual se desenvolvia uma exis-tência específica, social e culturalmente desenraizada, capaz de afirmar um viver entre parêntesis, idealmente percorrido numa dimensão transnacional, que conferia aos meios juvenis, e nesta fase particularmente aos uni-versitários, uma autonomia – longe da família, distante do trabalho – que suscitava, ao mesmo tempo, o distan-ciamento e mesmo a recusa em relação às condicionan-tes do meio envolvente.

Em coimbra, no espaço tradicionalmente fechado sobre si próprio da antiga cidade universitária, produ-ziram-se assim, nesta fase de intensa mudança geracio-nal, modalidades de uma subcultura de elevado poten-cial subversivo, as quais, crescendo no mesmo ambiente físico, se foram gradualmente alargando e separando dos localismos e das formas de exaltação do local e do nacional que resistiam a essa lenta mas poderosa inva-são. pode dizer-se que foi nesse contexto que a acade-mia coimbrã viveu, em plenos anos 60, uma das mais notáveis transformações da sua história. não se tratava agora do núcleo restrito e incontornável, quase exclu-sivamente masculino, ocupado com a formação de um sector indispensável das elites, nem era já o território de afirmação de uma ordem cultural e de uma concep-ção do país e do mundo que o salazarismo pretendera fixar, uma vez que se vinha transformando no segmento especialmente dinâmico de um movimento amplamen-te participado, em larga medida internacional, marcado também por uma crescente participação feminina, de re-sistência aos modelos interpretativos da modernidade autoritariamente impostos e ao papel da universidade

como seu caldo de cultura. a intensa politização do meio estudantil coimbrão ocorrida principalmente a partir de 1971, sob as ondas de choque do maio de 1968 e a influ-ência de um novo tipo de activismo, ao apontar já para o aniquilamento do regime, para a destruição do sistema social e económico dominante e para o fim da guerra colonial, mas contestando também com uma grande ra-dicalidade, tanto ao nível das opções políticas como na área das vivências quotidianas, a “cultura de regime”, tem a marca dessa influência.

Enquanto instrumento de resistência, produzia-se então uma alternativa à vivência do pequeno mun-do, cerrado sobre si próprio, e ao desenvolvimento da universidade como espaço de alguma forma perverso, ocupado essencialmente com o fomento de leituras do mundo que eram cada vez mais radicalmente questiona-das. Em alternativa, a cultura juvenil universitária pro-duzia territórios da imaginação que permitiam conceber outras regiões, capazes de funcionarem como paragens de auto-estrada, não-lugares pontuando novos trajectos sem lhes imporem constrangimentos. o mais simples deambular funcionava então como momento libertador da prisão representada por aquele pequeno mundo. per-correr pontos no mapa, somá-los como elementos de um património individual, possibilitou, nestas condições, a produção de uma cartografia do desenraizamento, que buscava modelos alhures e marcou profundamente os jovens universitários presentes em coimbra neste pe-ríodo, determinando a sua desafectação em relação ao regime vigente e reduzindo acentuadamente a impor-tância simbólica e vivencial detida pela própria cidade.

no pós-25 de abril de 1974, esta situação ver-se-á alterada de uma forma rápida e profunda, não apenas

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em consequência da democratização do sistema político, mas, sobretudo, por causa do desenvolvimento de pode-rosos movimentos sociais em condições de intervirem na definição dos seus contornos institucionais e progra-máticos. E devido também à redução do papel destacado da antiga cidade universitária, em boa parte determina-da pela marginalização de uma parte significativa das suas elites, directa ou indirectamente comprometidas com o regime derrubado, mas relacionada também com um processo de explosão do ensino superior que já en-tão se antevia.

deste trajecto temporalmente alargado – e pro-positadamente centrado no caso de coimbra – pode inferir-se uma generalização: grande parte do sucesso das iniciativas estudantis de teor reivindicativo resultou sempre da sua capacidade para ultrapassarem a mera defesa dos interesses próprios e imediatos. para integra-rem movimentos de um carácter mais ambicioso, visan-do intervir em áreas nas quais esses limitados objectivos se transformassem em metas de uma participação cívi-ca de maior alcance. dentro de uma dimensão planetá-ria, foi nessas ocasiões que se tornou possível instalar as movimentações estudantis num lugar de destaque, dando-lhes um protagonismo histórico considerável, em condições de ultrapassar as fronteiras sociais ou nacio-nais dentro das quais haviam permanecido confinadas, e conferindo-lhes um grau de exemplaridade e uma ca-pacidade motriz capaz de estimular o aparecimento de movimentos de uma natureza social e territorial mais alargada. nos últimos cinquenta anos, de berkeley a tien-an-men, entre nanterre e praga, desde a cidade do méxico até dili ou seul, tem sido essa iniciativa a pautar, em larga medida, o desenvolvimento político e o

empenhamento cívico nas regiões dentro das quais elas tiveram lugar, conferindo à acção estudantil um elevado sentido emulativo e emancipatório, com capacidade para se afirmar na condição de fenómeno social contínuo e vital, associado à mudança e dotado de uma natureza global.

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a rePressão contra os estudantes no estado novo (1956-1974)guya accornero | investigadora. centro de investigação e estudos de sociologia (cies-iul-iscte) e institute d’études Politiques et inter-nationales de l’université de lausanne (iePi-unil).

o pEso rElativo da violência como Fun-damento do poder político varia muito entre os dife-rentes Estados e a forma como os governos recorrem à ela é também considerado um elemento caracterizador para distinguir os sistemas políticos. no caso do simples poder coercitivo, o objectivo da violência seria o de pu-nir comportamentos que são considerados desviantes, através instrumentos preestabelecidos. isso permitiria aos cidadãos calcular os custos das condutas desobe-dientes. Embora as fronteiras entre as classificações se-jam sempre incertas, seria este o caso dos «Estados de direito», enquanto nos regimes autoritários a violência seria mais imprevisível e o seu objectivo a difusão do terror.

como afirmam donatella della porta e Herbert reiter: «a capacidade de conciliar o respeito das liber-dades e dos direitos individuais com a protecção da se-gurança e da ordem pública» seria um dos principais indicadores do êxito democrático, enquanto a própria «medida» da violência do Estado em contextos autori-tários seria sobretudo a sua eficácia1. Estes dois autores também afirmam, no que concerne à noção de ordem pública sobre a qual se fundava a legislação fascista ita-liana, «que ela ia muito além de uma concepção material da própria ordem pública, geralmente entendida como garantia da saúde, da segurança pública e do pacífico

desenvolvimento das actividades sociais, estendendo-se até envolver a ordem pública ideal, como instrumento de homogeneização do pluralismo social à luz de valores específicos»2. por seu lado, o historiador italiano do di-reito, paolo ungari, tem afirmado que um dos aspectos que distingue a essência da codificação do direito no fascismo é a tentativa de resolver os conflitos e as lace-rações sociais por via normativa, isso é: «considerar a lei como fonte estruturante da sociedade»3.

achamos que estas interpretações podem ser úteis também para a análise da forma como o Estado novo português encarou o controlo do conflito social e da oposição política, no caso do nosso estudo, de matriz estudantil.

o controlo das associações dos estudantes

desmobilização dos opositores e mobilização dos cidadãos nas estruturas da Estado são, como salienta leonardo morlino, os dois elementos principais sobre os quais se funda a legitimação dos regimes autoritá-rios4. o Estado novo não escapa a este modelo, embora a utilização de técnicas repressivas fosse sempre muito bem ponderada por parte do regime, uma situação que Hermínio martins definiu com a feliz expressão de «co-eficiente óptimo de terror»5. alem disso, se o livre asso-ciativismo de cidadãos era legitimado, em princípio, pela

própria constituição de 1933, que só impedia a formação de associações secretas, a associação e reunião de cidadãos foi igualmente perseguida, no portugal salazarista, como instrumento potencial de subversão e de perturbação da ordem pública.

as associações de Estudantes escapavam parcialmente a estas dinâmicas, sobretudo por serem organismos cor-porativos muito estruturados dentro das universidades, ainda que frequentemente se tornassem em meios de insu-bordinação relativamente ao regime. o principal factor na base desta capacidade estava no facto de as associações de Estudantes serem um dos poucos espaços efectivamente fora da chancela ideológica do regime. através das asso-ciações, os alunos dispunham assim de um instrumento efectivo e independente de representação, sem que exis-tisse nada de parecido para outras categorias sociais, como no caso dos operários.6

Em 1956 o Governo tentou, através da elaboração do decreto-lei 40.900, instituir uma normativa semelhante à que vigorava no mundo sindical, para regulamentar a vida das associações de Estudantes e pôr a eleição dos representantes dos alunos sob estrito controlo do Estado. Embora esta normativa não tenha chegado a ser aprovada, também graças a agitação estudantil que a bloqueou, o Governo conseguiu a sua afirmação sucessivamente com o decreto 44.632, adoptado depois da crise académica de 1962. todavia, a sua efectiva aplicação, à qual as associa-

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vírus abril/maio 2011 [11] Passado e Presente das lutas estudantis

ções Estudantis tentaram resistir, foi sempre muito pro-blemática, representando um dos principais elementos de conflito entre estudantes e autoridades.

de facto, a luta estudantil de 1956 contra o decre-to-lei 40.900 foi o primeiro sinal de um iminente ciclo de protesto que encontrou na candidatura do General Humberto delgado às eleições presidenciais de 1958 um poderoso factor de intensificação. Foi nas mobilizações em volta da campanha delgado que se realizou o «baptismo político» de uma geração de militantes, entre os quais mui-tos dos futuros líderes do movimento estudantil. Este ciclo de protesto, operário e estudantil, conheceu o seu pico nas grandes agitações de 1962. no período abrangido por esta análise, 1956-1974, o 1962 foi também o segundo ano com mais estudantes presos, depois de 1973. E foi mesmo a partir de 1962 que a repressão e o controlo dos ambientes estudantis se tornou mais abrangente, sobretudo através da introdução, em todas as universidade, de uma enorme rede de informadores.

Presos e Prisões Políticas

o tema da repressão não pode evidentemente ser resolvido com a questão da prisão e da coerção física: o exercício da violência politica passa de facto por dife-rentes níveis e tem infinitas facetas, das mais subtis até às mais manifestas7. algumas destas facetas podem ser ilustradas pela aplicação de uma legislação restritiva das liberdades associativas ou pelo controlo, por exemplo através de informadores, dos espaços públicos e priva-dos, como se mencionou anteriormente. por outro lado, a própria questão da prisão não se pode resumir com o recurso simples aos dados numéricos, existindo toda uma serie de elementos relativos aos interrogatórios e à

vida dos presos que escapam a uma analise quantitativa. Entretanto, achamos que alguns dados quantitativos

sobre os presos políticos podem dar uma imagem ime-diata da repressão contra os estudantes “subversivos” entre 1956-1974. com este objectivo, de seguida ana-lisamos primeiro de forma mais geral o conjunto dos 29.470 presos políticos detidos pela pidE/dGs e a sua distribuição por anos no período compreendido entre 1934 e 1974, a fim de determinar a curva das prisões durante todo o período de vigência da polícia política. Em segundo lugar, mostramos o grupo dos estudan-tes presos por crimes políticos entre 1956 e 1974, ou seja, no período coberto pelo nosso estudo. nesta análi-se, definimos presos políticos todos os cidadãos presos pela pidE ou os que, no caso de serem presos por ou-tra polícia, foram depois levados para alguma das sedes

da pidE, na capital ou algures. os limites conceptuais da definição de preso político estão portanto ligados à especificidade da fonte, ou seja o cadastro dos presos políticos da pidE/dGs.

a seguir, apresentamos, antes de mais, a curva sinté-tica das prisões efectuadas pela pidE/dGs entre 1934 e 1974 (gráfico 1). com respeito a este período, o dado que emerge logo é que o momento em que as prisões são mais numerosas coincide com os anos de consolidação do regime e, por outro lado, com o eclodir da guerra civil de Espanha. relativamente ao período mais espe-cificadamente considerado pelo nosso trabalho (1956 e 1974), vemos um crescimento das prisões entre 1958 e 1959, logo depois das «eleições delgado» e uma outra vaga entre 1963 e 1964, logo depois do pico do ciclo de protesto (1962).

Gráfico 1. Prisões efectuadas pela PIDE/DGS entre 1934-1974 (todos os presos)

0 500

1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000

1934 1936 1938 1940 1942 1944 1946 1948 1950 1952 1954 1956 1958 1960 1962 1964 1966 1968 1970 1972 1974

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no gráfico 2, extraímos, do total dos presos entre 1956 e 1974, o grupo dos estudantes. Este grupo com-preende 939 casos, enquanto que no mesmo período o total dos presos políticos é de 7339: isso significa que, no conjunto dos presos entre 1956 e 1974, a compo-nente estudantil representa mais de que 12%, com uma média de cerca de 49 prisões de estudantes por ano. a primeira constatação que pode surgir é que as duas li-nhas coincidem em muitos pontos e têm um percurso semelhante. todavia, a linha representando os estudan-tes atinge o seu pico em 1973, quando estes, sendo mais de a metade de todos os presos, chegam a representar a categoria social mais atingida pelas prisões políticas. um dado, este, que nos parece muito significativo da perda da hegemonia do Estado novo em ambientes de-terminantes.

no gráfico 3 mostramos a linha dos estudantes pre-sos, onde se pode ver de forma mais clara o pico de 1973. é oportuno sublinhar que, se a linha parece descer em 1974, de facto para este ano são representados apenas quatro meses, até 25 de abril, durante os quais são pre-sos 45 estudantes, quer dizer mais do dobro da média anual.

o pico de prisões no final do Estado novo pode ter diferentes significados, sem que um exclua o outro. Em síntese, temos que considerar que a agitação estudantil conheceu desde o inicio dos anos setenta uma difusão e intensificação exponenciais.8 as universidades, so-bretudo lisboetas, têm uma vida surpreendentemente convulsa neste período, com contínuas greves, ocupa-ções, cursos livres e, em consequência, frequentes en-cerramentos por parte das autoridades. a mobilização

Gráfico 2. Prisões efectuadas pela PIDE/DGS entre 1956-1974: outras categorias e estudantes

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Outros

Estudantes

Gráfico 3. Prisões efectuadas pela PIDE/DGS entre 1956 e 1974 (só estudantes)

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torna-se também mais radical, quer do ponto de vista das reivindicações, que das próprias acções de protesto, com a adopção de estratégias mais agressivas, como é o caso das manifestações relâmpago. E é mesmo durante este tipo de acções que é presa a maioria dos estudantes - os quais, muitas vezes, são libertados pouco depois. Esta situação, a somar à perda de legitimidade do regi-me, pode ter contribuído para que este recorresse com maior intensidade à forma mais explícita de repressão na cadeia de controlo social: a prisão política.

notas:1 - donatella della porta e Herbert reiter (2003), Po-lizia e protesta. L’ordine pubblico dalla Liberazione ai “no global”. bolonha: il mulino, p. 11.2 - Ibidem, p. 31.3 - paolo ungari (1963), Alfredo Rocco e l’ideologia giuri-dica del fascismo. brescia: morcellina, p. 67.4 - cfr. leonardo morlino (2003), Democrazie e democra-tizzazioni. bolonha: il mulino, p. 99. 5 - Hermínio Martins (1998), Classe, status e poder e outros ensaios sobre o Portugal contemporâneo. Instituto de Ciências Sociais: Lisboa, pp. 44-45.6 - com respeito a este ponto, maria Fátima patriar-ca salienta que os sindicatos nacionais, aos quais em 1939 o Governo tinha imposto por decreto a inscrição obrigatória, tinham-se transformado com a chegada do salazarismo em «emanação do Estado» (1995, A questão social no salazarismo, 1930-1947, vol. 1-2, lisboa: im-prensa nacional casa da moeda, p. 224), respondendo principalmente à exigência de «a coordenação e o de-senvolvimento da economia nacional fazerem parte da organização política» (ibidem, p. 220).7 - para uma análise destes aspectos, ver João madeira, irene Flunser pimentel e luís Farinha (2007), Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política. lisboa: a Esfera dos livros e irene Flunser pimentel (2007), A História da Pide. lisboa: círculo de leitores.8 ver miguel cardina (2008), A tradição da contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo. coim-bra: angelus novus e Guya accornero (2010), Eferves-cência estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo politico no final do Estado Novo, tese de doutoramento em sociologia histórica, ics-ul.

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crise de 1962: como a ditadura Perdeu os estudantes

Jorge costa

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crise de 1962: como a ditadura Perdeu os estudantesPor Jorge costa | Jornalista e dePutado do bloco de esquerda

sEntEm-sE ainda os EFEitos do «Furacão» Humberto delgado. a esperança frustrada e o exemplo de desafio à ditadura, protagonizado pelo general dis-sidente, aproximam muitos jovens da política. apenas uma elite termina o ensino liceal e preenche os lugares do ensino superior.

no virar da década, um projecto agita os universi-tários mais activos: a instituição de uma união nacio-nal dos Estudantes. com esse objectivo, dois dias antes do dia do Estudante, em março de 1961, realiza-se em coimbra um encontro nacional. os tempos são contur-bados: o assalto ao paquete Santa Maria, conduzido por um alto dignitário do Estado novo, Henrique Galvão, expõe a vulnerabilidade do regime. ao recusar uma condenação explícita da operação, o jornal República é suspenso durante vários dias. nos meses seguintes, este ambiente é reforçado pelo assalto ao quartel de beja e pelo movimento de Galvão, que desvia um avião e lança panfletos sobre a capital. angola vive os primeiros con-frontos do que será a guerra colonial. pouco depois, Goa é invadida pela união indiana.

turbulência na academiaEntre os estudantes, os «convívios» vão pondo fim

a um tabu. não sem resistências. Em março de 1961, o jornal A Voz explica à sua maneira este tipo de iniciativa: «coexistência e convívio são duas palavras muito em

voga no dicionário comunista e que significam a mesma coisa, com a diferença que a primeira diz respeito às relações internacionais e a segunda à penetração entre a juventude universitária, no sentido de subvertê-la e aliciá-la aos seus ideais. os convívios são para tudo, para troca de impressões sobre teatro, arte e literatura, e até para ataques audaciosos e descarados à ‘moral retró-grada’. parece haver em tudo isto o que o prof. adriano moreira chamou ‘provocação à transigência’, há dias oficializada no pretório da onu». o «jornal católico» resume assim o distanciamento do regime, tanto em re-lação às potências suas aliadas, em virtude da questão colonial, como em relação às novas gerações urbanas incompatibilizadas com os bons costumes oficiais.

é neste ambiente que, em abril, rebenta o escândalo da publicação do texto “carta a uma Jovem portugue-sa”, do estudante marinha de campos, no Via Latina, semanário da associação académica de coimbra. o tex-to torna-se um manifesto contra o moralismo serôdio do salazarismo: «a minha liberdade não é igual à tua. separa-nos um muro, que nem eu nem tu construímos. a nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós favorece. para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietan-te da sombra e da repressão mental. (…) beijas-me e sofres. dizes, não o devia ter feito, porque julgas que o deverias ter pensado.» sucedem-se as acusações e, nas

hostes associativas, o embaraço é grande. mesmo para as estudantes mais emancipadas, como as do conselho Feminino da aac, não é fácil tomar partido pelo texto. no Encontro, jornal da Juventude universidade católi-ca, é denunciada a «apologia descarada do amor livre e a negação de toda a espiritualidade do matrimónio». a direcção associativa remete-se ao silêncio e o jovem ma-rinha de campos aceita dar explicações em assembleia magna, onde se defende timidamente, tentando evitar o encerramento da aac, temido por muitos. o Via La-tina publica uma edição aberta às críticas à carta, sem a valorizar, em nome da liberdade de expressão.

o encontro nacional de estudantes

o ano de 1962 inicia-se com o assalto ao quartel de beja, operação chefiada pelo capitão oposicionista João varela Gomes. trata-se do mais grave episódio desde as eleições fraudulentas para a assembleia nacional, em novembro. nessa altura, o pcp convoca manifestações que resultam em confrontos de envergadura em diver-sas localidades. Em almada, o operário cândido capilé é morto pela polícia.

À distância, o movimento estudantil acompanha es-tas movimentações. desde 1958, quando o decreto 40 900 atribui ao Governo capacidade de intervir directa-mente na vida das associações de estudantes e dos seus

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órgãos, a «autonomia» é a causa que move os associati-vos. nestes quatro anos, o decreto está em banho-maria, pairando como uma ameaça, mas sem aplicação efectiva. mas nos corredores das universidades, as nuances so-bre o papel das associações de estudantes vão-se extre-mando. do corporativismo estudantil, que defende um lugar próprio para as associações, respondendo apenas às autoridades universitárias (autonomia em relação ao Governo), a um sindicalismo estudantil cada vez mais explícito (na defesa de interesses próprios, à imagem das experiências europeias), vai um passo. é por isso que o Governo proíbe o primeiro Encontro nacional de Estudantes, marcado para 9 de março de 1962, manda interceptar os autocarros que levam para coimbra os estudantes de lisboa e porto. mesmo desfalcado, o En-contro realiza-se, abordando os temas do alojamento e da saúde, questões pedagógicas. o Governo ordena então à reitoria um processo disciplinar contra os diri-gentes da aac e manda encerrar as suas instalações. é decretado o «luto académico»: os estudantes trajados usam a batina fechada, as secções da aac cessam toda a actividade.

dia do estudantemas a ignição da crise estudantil de 1962 é um pou-

co mais tarde, em lisboa. sob o pretexto de não ter respondido ao pedido das associações e comissões pró-associativas de lisboa – e portanto não as ter autoriza-do –, o Governo proíbe a realização das comemorações anuais do dia do Estudante, entre 24 e 26 de março. na manhã de 24, há estudantes espancados e presos, instalações universitárias sitiadas, cantinas ocupadas. o Governo actua por sua conta. muitos professores e mes-

mo parte das autoridades universitárias reagem mal. o director da Faculdade de direito impede a detenção de estudantes nas instalações que tutela. o próprio reitor da universidade de lisboa negoceia com o ministro do interior, sem sucesso, uma retirada das forças policiais da recém-inaugurada cidade universitária. dirigindo-se aos estudantes, que ali realizam algumas das activi-dades planeadas, marcelo caetano promete nova data para o dia do Estudante e convida-os para jantar num restaurante próximo. uma carga policial impedirá o repasto. trinta estudantes são hospitalizados. os pro-fessores lindley cintra, oliveira marques e veríssimo serrão tratam de resolver com os agentes a saída de quem está no interior do restaurante.

na imprensa do dia seguinte, só cabe uma nota ofi-ciosa do ministério da Educação nacional: os «convites insidiosos» não poupam sequer os alunos «do magisté-rio primário». Em comunicado citado no Diário de Notí-cias, o Governo «chama a atenção dos pais e educadores para o dever, que no plano nacional lhes impende, de colaborar em tudo o que não perverta a inteligência e o sentimento patriótico da nossa juventude».

o centro da crise académica é o Estádio universitá-rio, onde se realizam plenários diários, a dois passos das faculdades de letras, direito e medicina. À noite, em Económicas, encontra-se a reunião inter-associações (ria), onde pontificam representantes das diversas as-sociações e pró-associações da capital. é decretado o luto académico, um eufemismo para greve às aulas. «até que se realize o dia do Estudante. até que seja reaberta a cantina universitária. até que sejam libertos os estu-dantes presos.» a 27 de março, tudo parece compor-se. os estudantes são libertados e a cantina é reaberta. o

ministro da Educação, lopes de almeida, recebe uma delegação estudantil e marca as comemorações para 7 e 8 de março. desanuviamento também em coimbra, depois de, no dia 25, uma assembleia magna com 2000 estudantes decretar o luto académico em solidariedade com lisboa. o reitor anuncia a 27 de março um recuo no processo aberto pelo Governo à aac pela realização do primeiro Encontro nacional de Estudantes.

caetano demite-seporém, a trégua dura apenas uma semana. a 5 de

abril, o ministério da Educação publica uma nota ex-plosiva: «aos reitores de duas cidades universitárias não foi dado conhecimento, como cumpria, de qualquer projecto de programa [do dia do Estudante]. nestas circunstâncias, e uma vez que não se realizaram as con-dições de que o ministro da Educação fizera depender a autorização, desde já se declara que não é autorizado o dia do Estudante na data em que os seus organizadores o têm anunciado». depois de aprovar o programa pro-posto pelos estudantes, marcelo caetano não esperava ser desautorizado através dos jornais e bate com a porta. mas salazar insiste em deixá-la aberta, em carta priva-da a caetano: «é pena ver interrompido um reitorado brilhante e que podia ser o mais possível fecundo para a vida universitária de lisboa. mas pelo amor de deus, não tome decisões para o futuro, porque ninguém sabe o que a nação pode exigir-lhe em determinado momento e os serviços passados lhe imporão a si próprio».

no dia seguinte à demissão de marcelo caetano, a polícia carrega sobre a manifestação silenciosa que se dirige ao ministério da Educação. a nota do Governo, transmitida pela rtp e pela Emissora nacional, identi-

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fica as propostas dos estudantes com as orientações do pcp. com algum excesso de zelo, chega a recomendar a leitura da imprensa comunista: «as mesmas [propos-tas]. nem mais, nem menos. as mesmas. é só lerem [O Militante].»

Plenários e greveo novo reitor é Gonçalves rodrigues, um professor

que se distinguira no senado universitário pela dureza contra os estudantes. Estes retomam o luto académico e as reivindicações: revogação do decreto 40 900, nova re-gulamentação da «vida circum-escolar», constituição de associações de estudantes nas escolas onde não existem, autonomia universitária. os plenários reúnem diaria-mente milhares de estudantes em greve. a acumulação de faltas torna-se questão sensível.

Em coimbra, as ondas de choque da queda de ca-etano são imediatas. braga da cruz, o reitor, já só fala com os estudantes na presença de duas testemunhas. a associação académica exige a sua demissão.

lopes de almeida, o ministro da Educação, confia na pressão das famílias, durante as férias pascais, para tra-zer os estudantes à boa ordem. opta por mostrar dureza na questão crítica das faltas e do aproveitamento esco-lar: solicita às universidades o cumprimento rigoroso do regime de faltas, a afixação dos sumários das aulas, mesmo quando não se tenham realizado, o registo das faltas desde 26 de março, a comunicação diária das fal-tas a partir do fim das férias e a indicação dos grevistas que sejam bolseiros, isentos de propinas ou beneficiários de outros apoios.

nesse contexto de pressão, um velho professor da Faculdade de direito e ex-ministro, costa leite (lum-

brales), apresenta-se aos estudantes na disponibilidade de interceder pela relevação das faltas, desde que seja suspenso o luto académico. a ria aceita a proposta e, a 10 de abril, o ministro de Estado correia de oliveira recebe o decano de direito e uma delegação associativa composta por Jorge sampaio, vasconcelos abreu, me-deiros Ferreira, tavares da cruz e manuel magalhães. mas depressa os estudantes percebem que o objectivo do encontro é apenas criar confusão a poucos dias das férias da páscoa. atónitos, vêem-se perante um ministro que os recebe com um extenso discurso escrito que o Di-ário de Notícias do dia seguinte reproduzirá na íntegra: «o poder não pode ser desafiado porque o poder não pode ser vencido. Quando o for, só na aparência terão os ganhadores obtido uma vitória, pois que na realidade se limitaram a derrotar o que, na verdade, era já inexis-tente. (…) não tenho dúvidas de que nunca o Governo vos poderia apoiar em caminho que conduzisse a um sindicalismo estudantil, primeiro à escala regional ou nacional, depois a uma escala maior, qual ‘confederação Geral do trabalho’ para estudantes. Esta via, depois de generalizada a outros sectores, levaria à própria diluição da consciência nacional. mas o Governo apoiar-vos-á,

posso garanti-lo, na realização de um corporativismo universitário autêntico, de raiz e destino genuinamente portugueses.»

o 1.º de maio de 1962o regresso às aulas, a 27 de abril, coloca os estudan-

tes perante uma escolha difícil: manter a greve durante o dia do trabalhador, com risco de abrir o flanco às acusações governamentais de «conspiração comunista», ou zelar pela amplitude da crise, que envolve sectores comprometidos com o Estado novo. os dirigentes divi-dem-se na ria: isabel do carmo e valentim alexandre, ligados ao pcp, propõem a manutenção do luto; mas é o grupo liderado por Jorge sampaio, maioritário na ria, que acabará por ganhar o plenário estudantil de 30 de abril que decide suspender a greve. o comunicado dos estudantes sublinha a «maturidade» da sua conduta. ao mesmo tempo que procuram reforçar os laços de «senti-do corporativo» com os professores que não se reconhe-cem na atitude do Governo, os estudantes pedem, com o levantamento da greve a 1 de maio, «o reconhecimento do carácter puramente académico» do seu protesto.

o dia do trabalhador é marcado, em lisboa, por

em coimbra, as ondas de choque da queda de caetano

são imediatas. braga da cruz, o reitor, Já só fala

com os estudantes na Presença de duas testemunhas.

a associação académica exige a sua demissão.

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carga Policial à entrada do restaurante castanheira de moura(Para onde os estudantes se encaminhavam a convite de lindley cintra, dePois da cantina encerrada)

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uma manifestação operária muito significativa, dadas as condições. dos confrontos com a polícia de choque resulta a morte do militante comunista Estêvão Giro, além de vários feridos. no alentejo e no ribatejo, a es-trutura clandestina do pcp coordena uma greve de as-salariados agrícolas pelas 8 horas diárias.

no dia 4 de maio, com o luto ainda suspenso, o se-nado universitário pede ao ministro da Educação que autorize «o funcionamento normal, provisoriamente suspenso, das associações de estudantes». a resposta do ministro é dada em coimbra, com a revogação da parte dos estatutos da aac relativa ao funcionamento da assembleia magna, impedindo-a na prática. a di-recção da académica é suspensa por portaria e, para a substituir, são nomeados os presidentes da assembleia magna, do conselho Feminino e da secção de Futebol. todos recusam. Em título, sem referir a académica, o Diário de Lisboa especula sobre «o que aconteceria se um grupo desistisse do ‘nacional’ de futebol».

a ocuPação da cantina universitária

os estudantes de lisboa declaram solidariedade to-tal com a academia coimbrã. a 9 de maio, o plenário de lisboa decreta «luto académico total», com greve a au-las, frequências e exames finais, e ainda o início imediato de uma greve de fome… na cantina. Em ambiente de grande fraternidade, rodeados de centenas de colegas, 86 estudantes recusam alimentação. pela noite fora, can-tam-se baladas de Zeca afonso, coros de lopes Graça, lê-se carlos oliveira e antónio aleixo.

perante a ocupação, o senado, em reunião extraordi-nária, manda chamar um representante dos estudantes.

a mensagem, recebida por medeiros Ferreira, é simples: têm uma hora para abandonar a cantina. Findo o prazo, o senado decide a entrega das instalações à responsabi-lidade do Governo, pedindo que não sejam empregues meios violentos. pouco depois das três da manhã, for-ma-se um cordão policial, na presença do comandante-geral e do chefe de estado-maior da psp. lá dentro, 1200 estudantes e alguns professores, como lindley cintra, pereira de moura, rui oliveira, entre outros. cintra consegue negociar uma detenção pacífica. Entre os estudantes embarcados em autocarros da carris, es-tão 90 raparigas. o número surpreende: poucas são as que estão autorizadas a sair à noite… do governo civil seguirão para a pidE, onde são interrogadas e, depois, libertadas. os rapazes têm sortes diferentes - medeiros Ferreira é libertado com a maioria, no dia seguinte, mas Eurico de Figueiredo é um dos 70 que ficarão detidos vários dias no quartel da parede. sampaio fica três dias em caxias. são filhos das boas famílias da sociedade por-tuguesa. À porta da prisão, multiplicam-se os automó-veis caros, esperando grevistas para os levar para casa. na imprensa dos dias seguintes, o Diário Ilustrado titula que «a evacuação decorreu sem incidentes», enquanto o Diário de Lisboa apenas reproduz a resolução do senado abdicando da tutela das instalações.

Em coimbra, a situação é também de conflito aberto. a assembleia magna de 9 de maio delibera a reocu-pação das instalações da aac. cerca de mil estudan-tes respondem à chamada, mas, cercados pela polícia de choque, acabam por entregar as chaves da sede. a Queima das Fitas está cancelada, o que representa um choque económico não só para a aac, mas para toda a cidade. por ordem do Governo, é adiado o jogo da

académica com o beira-mar, a que se prevê falta de comparência dos estudantes. a vaga repressiva motiva a solidariedade da intelectualidade oposicionista. uma declaração de apoio aos estudantes é subscrita por se-tenta escritores, entre os quais aquilino ribeiro, baptis-ta-bastos, abelaira, namora, ilse losa, Francisco sou-sa tavares, cardoso pires, saramago, sophia de mello breyner, urbano tavares rodrigues. o luto académico faz títulos no Herald Tribune, Le Monde, L’Express, Fi-garo, Daily Telegraph.

escalada na rePressãoa 18 de maio a crise agrava-se em coimbra. a maio-

ria dos cerca de 2000 estudantes reunidos no campo de santa cruz recusa o acordo proposto por alguns profes-sores, encabeçados por paulo Quintela. Esta «comissão particular» propõe a convocação de novas eleições para os corpos gerentes da aac, mas não assegura a cessação dos processos disciplinares e o levantamento da suspen-são do Via Latina, jornal da aac. os estudantes exigem a devolução imediata da sede, selada pelas autoridades durante a tentativa de mediação pelos professores. acto contínuo, 180 alunos tentam barricar-se no palácio dos Grilos, enquanto os restantes se manifestam no centro da cidade, em confrontos com a polícia. todos os barri-cados são detidos. libertada a maioria, 44 rapazes são enviados para caxias e quatro raparigas para as instala-ções da pidE em coimbra. desta vez, a passagem pela prisão é de cerca de duas semanas. a duração da estada não é o único sinal de endurecimento: a polícia passa a ocupar em permanência a associação académica, mas também a universidade. o sni manda publicar na im-prensa o decreto que atribui ao ministro da Educação

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o poder de ordenar procedimentos disciplinares contra alunos de escolas públicas. a medida suscita o protesto dos professores assistentes da universidade de lisboa, que tomam posição conjunta. a par do decreto disci-plinar, é aprovado outro que determina facilidades de acesso ao ensino para os filhos de «indivíduos falecidos, mutilados, estropiados ou de alguma forma incapacita-dos ao serviço da pátria».

no final de maio, em lisboa, Eurico de Figueiredo é levado de um café, de táxi, por desconhecidos. a li-bertação do presidente da pró-associação de medicina torna-se bandeira do movimento estudantil, o que con-figura um elemento novo do discurso estudantil e um novo patamar de confronto com o regime: a denúncia explícita da repressão.

levantada a greve aos examesJunho é o mês das provas finais. num comunicado de

dia 2, os estudantes dão conta de um boicote aos exames que ronda os 50% e convocam para dois dias depois uma manifestação pela libertação dos presos. Quem se junta em frente à reitoria encontra a cidade universitária ocupada pela psp. os estudantes deslocam-se para a Faculdade de medicina, no Hospital de santa maria, ali perto. a entrada está bloqueada por um canhão de água. lindley cintra, o decano da Faculdade de letras, permanece ao lado dos estudantes. perante a iminên-cia de uma carga policial, cintra procura negociar uma retirada do recinto hospitalar, mas é dos primeiros a ser agredido e ferido na cabeça à bastonada. o caso é chocante a todos os títulos e multiplica as expressões de indignação entre docentes.

a 11 de Junho, perante a intransigência governa-

mental e a repressão que se agudiza, os estudantes aban-donam a greve aos exames: «contrariamente ao que se-ria de supor-se, o decurso do luto a exames veio revelar dois factores complementares. o primeiro mostra que muitos estudantes vão a exames. o segundo revela que há uma diferenciação entre escolas, de modo que, con-sideradas no seu conjunto, elas divergem na sua posi-ção. Há que interpretar estes factos e extrair deles as suas consequências. (…) a falta a exames implica um sacrifício grande, condicionado por toda uma estrutura sentimental e económica de infinitas repercussões…» a aposta na repressão produz resultados e nem perante o recuo estudantil no plenário de 14 de Junho, o Governo alivia a pressão. a concentração na cidade universitária transfere-se, por intervenção da polícia, para o instituto superior técnico.

«não Presto declarações»o período antes das férias é dedicado pelos activistas

estudantis à campanha pela libertação de Eurico Figuei-redo. Há manifestações reprimidas na baixa de lisboa e carga policial sobre estudantes durante as festas dos santos populares, em alfama. vitorino magalhães Godi-nho, referência da historiografia portuguesa, é afastado da universidade sem direito a reforma por ter apresen-tado uma moção ao conselho escolar do instituto de Es-tudos ultramarinos, onde leccionava, responsabilizando o Governo pelo curso da crise. os 21 participantes na greve de fome da cantina são excluídos de todas as fa-culdades de lisboa. Em coimbra, as sanções são ainda mais duras: 34 estudantes são ameaçados com penas de seis meses a dois anos de exclusão de todas as universi-dades do país. o responsável pelo inquérito recebe dos

estudantes sempre a mesma resposta: «não presto de-clarações a não ser que a assembleia magna [suspensa] me autorize. tudo o que fiz foi no âmbito da associação académica e esta é autónoma.» com o início das férias escolares, é libertado Eurico de Figueiredo.

salazar ganha a batalha, mas Perde a universidade

depois da administração da força, e da longa trégua de verão, salazar trata da política e da reunificação do seu campo. Em outubro, é publicado o decreto-lei 44 632, que substitui o 40 900. no preâmbulo, o legisla-dor explica que «os acontecimentos que durante o ano findo perturbaram a vida nas academias de coimbra e de lisboa fizeram sentir vivamente a necessidade de se definirem normas legais para regular a instituição e actividade das organizações circum-escolares». mas as regras da nova legislação são muito semelhantes às do velho decreto 40 900. Em dezembro, salazar substitui o ministro da Educação, lopes de almeida, por inocêncio Galvão teles. com a posse do novo ministro, as asso-ciações continuam fechadas, mas são libertados todos os estudantes presos, entre os quais medeiros Ferreira, secretário-geral da ria, preso há dois meses. para o pcp, «a substituição do ministro da Educação nacional poderá ser aproveitada positivamente pelos estudantes, na medida em que ele parece disposto a entabular con-versações». mas o Avante! recomenda firmeza ao mo-vimento estudantil, quanto às suas principais reivindi-cações: revogação do decreto 44 632, readmissão dos expulsos, libertação dos presos, normalização da vida associativa e possibilidade de criação de uma união na-cional dos Estudantes.

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derrotado, o movimento começa a reunir forças. o Governo venceu a batalha de 1962 e a «crise» extin-guiu-se com o ano lectivo 1961/62. mas a amplitude da repressão franqueou uma fronteira sem regresso. a universidade vai tornar-se uma arena de confronto permanente com o regime e uma fonte de recrutamento para todas as oposições ilegais, actuais e futuras. Em poucos meses, a agenda estudantil deslocou-se da defe-sa da «autonomia universitária» e do «convívio» entre rapazes e raparigas para um confronto directo com a repressão policial e a censura.

Enquanto decorre a crise, a Fnla proclama, em Kinshasa, o Governo da república de angola no Exílio e Eduardo mondlane torna-se presidente da FrEli-mo. desde já, o espectro da incorporação militar dos contestatários marca a vida estudantil. no anos seguin-tes, será toda a guerra colonial a confrontar a juventude universitária com a ditadura.

este artigo foi originalmente Publicado na colecção “os anos de salazar”, vol.19, ed. Planeta agostini, 2008.

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1965, a crise silenciadaPor diana andringa | Jornalista e realizadora

no dia 21 dE JanEiro dE 1965, como dE cos-tume, cheguei cedo à Faculdade, no Hospital de san-ta maria. não sendo ainda horas de aula, dirigi-me à secção de propaganda da comissão pró-associação, na sala de alunos, de um dos lados do palco onde se rea-lizava o natal dos Hospitais. Estranhei a ausência de algumas das pessoas que esperava ver ali, àquela hora. continuavam a não estar lá, quando regressei da pri-meira aula. se bem me lembro, foi o osvaldo a dar a primeira pista: «o aguinaldo foi preso. a pidE foi a casa dele, esta manhã.»

preso, o aguinaldo? por essa altura, embora estando na universidade há

apenas três meses, já aprendera que a prisão de estu-dantes não era assim incomum. tomara parte em mani-festações pela libertação do Zé luís saldanha sanches, alguns dos meus recentes amigos tinham já passado pela cadeia, nomeadamente durante a crise de 62, havia vários estudantes do técnico na prisão. ainda assim, a notícia da prisão do aguinaldo apanhou-me de chofre. como é que alguém podia pensar em prender uma pes-soa tão correcta, tão cordata, tão gentil? a indignação foi crescendo, à medida que chegavam informações so-bre a prisão de mais estudantes de medicina, alguns que conhecia bem, outros nem tanto: o Filipe rosas, o pinho monteiro, o carlos sebrosa, o max, o palminha, o pedro lemos… o irmão gémeo, o luís, teria conseguido esca-

par, disse-me depois alguém – e fiquei contente porque o luís, então, salvo erro, finalista, fora uma das primeiras pessoas a acolher-me na pró-associação e tinha por ele um imenso respeito. mas não fora só medicina a ser atingida: a todo o momento chegavam notícias de outras prisões. de direito teriam sido presos, pelo menos, o Fernando rosas (dizia-se que, depois de prenderem o Filipe e o Fernando, os agentes da pidE tinham per-guntado se não havia mais nenhum irmão), o salgado matos, o artur pinto, o alfredo caldeira; de ciências surgiam, entre outros, os nomes do rui pereira e da sara amâncio; mais tarde chegaram nomes de estudan-tes dos liceus, alguns deles com 15 anos de idade. (dois anos mais novos do que eu!?)

como era isto possível? Que crime podiam ter come-tido esses estudantes, quando quase todos os que conhe-cia me pareciam pessoas exemplares?

por entre as notícias susurradas e o nervosismo cres-cente, tive nesse dia a minha primeira missão clandes-tina: havia um dirigente escondido no próprio Hospital de santa maria e era preciso ir a casa dele, no bairro de santos e, com uma qualquer desculpa, conseguir que a senhoria me deixasse entrar e retirar de lá papéis e di-nheiro que deixara escondido. pensei que seria melhor não ir sózinha, sermos duas estudantes muito jovens a ir buscar um livro que o colega mais velho generosamen-te nos emprestava. se bem recordo, foi a Zé cabeçadas

quem me acompanhou, cada uma emprestando à outra um pouco do sangue-frio que não tinha, uma distraindo a senhoria para a outra poder pesquisar, entre os livros, qual escondia o que procurávamos. missão cumprida, voltámos a pé para o Hospital, esperando a cada mo-mento ouvir uma ordem de prisão. mas nada aconteceu.

ao longo de todo o dia a lista de nomes foi crescendo nos cartazes, numa agitação de informações e desmen-tidos, palavras em voz baixa sobre fugas, solidariedade, desafio e medo, exaltações e desânimos. Eram cerca de cinquenta estudantes, quase todos activos nas associa-ções de lisboa. no dia seguinte, dia da universidade – que um comunicado inspirado escrito por medeiros Ferreira descrevia como «dia de uma universidade ca-tiva», gritámos a nossa indignação na cerimónia oficial, com o ministro da Educação a fazer-se cada vez mais pequeno no grande cadeirão. uma voz aguda de mulher gritando «libertem o meu filho!» aumentava a emoção e tornava ainda mais jovens esses jovens presos.

nessa tarde, a primeira edição do diário de lisboa publicava na sua página 14, a três colunas e sem qual-quer menção aos incidentes ocorridos, a notícia sobre “os actos comemorativos do ‘dia da universidade de lisboa’”. E só algumas páginas mais adiante, na 18, a uma coluna, sob o título “comunicado da p.i.d.E.” – a que se seguia a menção “para efeitos de publicação, recebemos por intermédio do s.n.i. a seguinte nota da

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p.i.d.E.” – havia referência às prisões da véspera: “a polícia internacional e de defesa do Estado, no

prosseguimento da sua acção repressiva das actividades contra a segurança da nação, obteve elementos precisos acerca da organização do chamado “partido comunis-ta português” no “sector estudantil”, abrangendo esta designação universidades, liceus e Escolas técnicas. na posse de tais elementos procedeu-se à detenção de alguns membros do referido “partido”, a maior parte dos quais com responsabilidade de chefia nos diversos gru-pos sobre o seu “contrôle”, dentro das escolas que fre-quentavam. a polícia conhece igualmente todo o plano de agitação no meio universitário, emanado do “comité central” do “partido” e destinado ao enfraquecimento da unidade da nação na actual conjuntura.

na verificação a que está a proceder-se do volumoso material apreendido, encontraram-se já, além de docu-mentos importantes sobre as normas de agitação no meio estudantil, detonadores e outros artigos de natu-reza explosiva.”

na ingenuidade dos meus 17 anos, serem do parti-do comunista português não tinha qualquer espécie de gravidade: grave era que alguém – e, no caso, qualquer estudante – fosse preso pelas suas opiniões. tal como, nos cartazes sobre os presos, incluía, lado a lado, nomes do pcp e da Fap, assim também ousei escrever, no bo-letim que então publicámos, que o dever de todos os es-tudantes era defenderem os colegas presos, independen-temente de serem ou não do partido comunista. só vim a perceber que ultrapassara a habitual prudência das associações de Estudantes quando, numa assembleia Geral em direito, alguém – julgo que o nuno brederode santos – salientou esse “salto em frente” dos colegas da

pró-associação de medicina. a partir daí, as memórias são menos claras, as da-

tas dos acontecimentos confundem-se. lembro-me de uma primeira convocatória das comissões de apoio aos Estudantes presos, a que responderam centenas de estudantes, dispostos a pintar e colar cartazes, lançar panfletos, preparar uma manifestação. o entusiasmo foi moderado por um dirigente da ria que, quando todos clamavam por acção, gastou um tempo precioso a expli-car como fazer a melhor cola para fixar os cartazes. de um plenário exaltado, de que se seguiu para a cantina, onde o reitor paulo cunha tentou impedir-nos a entra-da. pior: lembro-me de ter sido posta na frente por dois colegas mais velhos, que entenderam, talvez, que o meu ar infantil desarmaria o reitor. E de quando, na exalta-ção do momento, me preparava para ser presa – como vários foram nesse dia – ter sido de lá tirada por um ou-tro membro da rip (o secretariado inter-propagandas), com o argumento de que os homens e mulheres da pro-paganda eram mais úteis soltos. talvez tivesse razão...

... porque esse ano foi fértil em cartazes, panfletos, agitação. E em manifestações, greve às aulas, a aprendi-zagem da repressão, mas também da solidariedade. não apenas entre estudantes, mas de professores, da popu-lação, como a dessa senhora que, nas escadas de santa Justa, vendo a polícia carregar, me puxou para dentro de uma loja e fechou a portada atrás de mim.

passei também horas à entrada da sala do tribunal plenário, na boa Hora, quer esperando a minha vez de testemunhar, quer simplesmente para apoiar os presos – quando foi a minha vez confirmei quão agradável era poder ver, mesmo fugazmente, uma cara amiga, nessas duras sessões de julgamento. mas quando, depois de

testemunhar a favor do pinho monteiro, quis perma-necer na sala, não me autorizaram: aos 17 anos, podia ser presa, podia ser testemunha, não podia assistir ao julgamento, era um espectáculo para maiores de 21.

no final do ano lectivo, grande parte dos presos ti-nha saído, mas corria um processo disciplinar a diversos activistas estudantis.

Em protesto por o processo estar a cargo, não de uma instituição universitária, mas de um Juíz-desem-bargador que fora agente do ministério público no tri-bunal plenário e era deputado pela união nacional, a maioria dos estudantes chamados a depor respondeu com uma simples declaração: “atendendo a que apenas ao senado universitário compete tratar assuntos uni-versitários, declaro que me recuso a prestar qualquer declaração.”

o mesmo não fizeram, naturalmente, os reitores das universidades clássica e técnica, professores pau-lo cunha e Francisco leite pinto, bem como diversos funcionários, que relataram “diversos incidentes de in-disciplina”.

Em causa, “actos de incitamento à indisciplina in-cluindo a greve, e à perturbação da ordem, quer dentro de edifícios sujeitos à jurisdição das autoridades aca-démicas quer nas ruas”, “edição e distribuição, afixação ou exibição de escritos panfletários, com frequentes e graves ofensas e insultos ao Governo, a autoridades aca-démicas e a outras entidades”.

“carácter particularmente indecoroso” era atribuído aos protestos do dia da universidade, no qual, “com a presença dos reitores, dos directores das Faculdades, de professores, de adidos culturais às Embaixadas e de numeroso público”, um grupo de estudantes se en-

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tregara “a graves e concertados actos de indisciplina, interrompendo com ruidosos ataques de tosse e risos as orações do reitor e de outro professor e dirigindo soezes insultos àquela autoridade académica.”

a crise de 1965, que mobilizara, sobretudo, os acti-vistas associativos e, por isso, é normalmente esquecida no cômputo das crises académicas, acabava com a apli-cação de penas de suspensão e expulsão de vários estu-dantes de todas as escolas portuguesas, até um máximo de oito anos. a universidade expulsava alguns dos seus melhores alunos. mas muitos tinham entretanto com-preendido que o que estava em causa era a natureza do regime e que havia que derrubá-lo.

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crises, história e memóriaPor miguel cardina | investigador. centro de estudos sociais da universidade de coimbra (ces)

DecorriDas quase quatro DécaDas sobre a queda do estado Novo, o passado das lutas estudantis contra a ditadura continua a aparecer frequentemente referido nas narrativas memorialísticas de antigos acti-vistas e nos discursos das actuais estruturas académicas. a evocação mais ou menos constante desse passado não significa, porém, que dele se tenha uma imagem com-pleta e complexa. Pelo contrário, as leituras propagadas têm privilegiado a glorificação de alguns momentos es-pecíficos, mais espectaculares, em detrimento de um es-forço compreensivo mais amplo. a referência constante às “crises académicas” é um exemplo que ilustra bem esta situação. Fomenta-se assim uma história episódica que interpreta as contestações da época mais como erup-ções desconectadas entre si e que, deste modo, tende a relegar para segundo plano as dinâmicas mais fundas da politização estudantil. Daí que 1962 e 1969 apare-çam como os momentos áureos das lutas estudantis no estado Novo, acompanhados, cada um deles, de uma respectiva circunscrição espacial: 1962 seria o ano da “crise” lisboeta, 1969 seria a data da “crise” coimbrã.1 Detenhamo-nos então neste último exemplo.

afrontar o regimeo episódio é conhecido: a 17 de abril de 1969, al-

berto martins, então presidente da direcção-Geral da associação académica de coimbra (dG/aac), levan-

tou-se para pedir a palavra em nome dos estudantes na cerimónia de inauguração do departamento de mate-mática. na mesa, américo tomás dá a palavra, balbu-ciante, ao ministro das obras públicas, e encerra depois a sessão de maneira abrupta. À saída, a comitiva é vaiada pela multidão de estudantes que decide fazer a sua pró-pria inauguração após a retirada das autoridades. Havia começado a “crise”.

nessa mesma noite, alberto martins é preso. no dia seguinte, após a sua libertação, realiza-se uma assem-bleia magna na qual se exige a participação dos estu-dantes no senado universitário. a 22 de abril, quando a situação parecia tender para a normalidade, alguns dos principais dirigentes são informados da sua suspensão da universidade. logo nesse dia, uma assembleia mag-na decreta luto académico, exortando-se os estudantes a transformar as aulas em debates sobre a actual situação. no dia 30 de abril, o ministro da Educação nacional, José Hermano saraiva, vai à televisão apontar o dedo à “onda de anarquia que tornou impossível o funcio-namento das aulas”, dando estranhamente a conhecer a agitação que os jornais, a rádio e a televisão estavam impossibilitados de mostrar.

a 6 de maio a universidade de coimbra é encerrada por decisão ministerial, sendo mantido o calendário de exames. no dia seguinte, a Queima das Fitas é anula-da. a dG/aac publica então a “carta à nação”, numa

estratégia de abertura do movimento ao exterior. aí se afirma que “a nossa luta só poderá fazer tréguas quando tivermos atingido uma universidade nova num portu-gal novo”.

nos círculos de discussão e convívio que então subs-tituem as aulas, a greve aos exames é equacionada. a nova opção táctica é problemática, pois a sua viabili-dade dependeria de uma vasta adesão. caso falhasse, a proposta teria efeitos desgastantes, desde logo a título pessoal: a reprovação dos faltosos e um possível passa-porte antecipado para África. a 28 de maio, uma con-corrida assembleia magna ratifica por ampla maioria a proposta de “abstenção aos exames”. com a zona da universidade militarmente ocupada, os estudantes or-ganizam um esquema de piquetes de greve e accionam uma série de iniciativas em sintonia com o “espírito do tempo”: soltam balões na baixa coimbrã, distribuem flores à população, difundem cartoons humorísticos, ar-madilham com tachas as zonas por onde os carros da polícia circulavam.

a 22 de Junho, na Final da taça de portugal, nu-merosos estudantes deslocam-se a lisboa para assistir à partida que oporia académica e benfica. de coimbra levam cartazes e comunicados que distribuem à popu-lação da capital, por entre palavras de ordem entoadas em coro. no final, a equipa da luz venceria por 2-1 com um golo marcado por Eusébio já no prolongamento. o

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encontro não é televisionado e, pela primeira vez, o pre-sidente américo tomás não está presente para entregar a taça.

Em finais de Julho, a percentagem de exames boi-cotados era de 86,8%. como facilmente se conclui, a grande maioria adere à difícil estratégia da greve aos exames. aqueles que rompiam – muitos por pressão familiar – viam o seu nome inscrito em listas públicas de “traidores” e eram alvo das mais variadas formas de ostracismo. Entretanto, a polícia vai efectuando dezenas de prisões que se prolongariam pelos meses de verão.

Já no início do ano lectivo seguinte, quarenta e nove destacados activistas estudantis são incorporados nas fileiras do exército. no momento da despedida, na Es-tação de coimbra-b, gritam-se palavras de ordem con-tra a guerra colonial. o tema havia estado ausente do catálogo explícito das reivindicações, mas a partir daí segue-se um caminho que em lisboa já se havia come-çado a trilhar: contestar a guerra e contestar o regime tornar-se-iam faces da mesma moeda.

laPsos da memóriaEm novembro de 2006, por ocasião da remodelação

do bar instalado no rés-do-chão do edifício da aac, o jornal estudantil A Cabra publicou uma notícia na qual se descreve a decoração como sendo feita de imagens “alusivas a momentos marcantes da academia, como o maio de 69”. a referência amalgamada à “crise de 69” e ao “maio de 68” pode muito bem ilustrar uma apro-priação do passado feita, simultaneamente, de excesso e carência. o mesmo se pode dizer de uma recente sonda-gem feita pelo mesmo jornal a um considerável número de estudantes: se a grande maioria sabe que se passou

algo de grandioso em 1969, muito menos são aqueles que conseguem identificar episódios concretos.

desde logo, são curiosas algumas “imagens erra-das” que o inquérito mostra, como a ideia de que “crise” foi despoletada pelo aumento de propinas ou a funda convicção de ter existido uma manifestação nacional durante esse período. isto parece confirmar um proces-so amplamente documentado: a representação que os grupos fazem do seu passado é sempre “contaminada” pelo presente. ou seja, os estudantes reconhecem que em 1969 houve uma forte de contestação e isso signifi-ca, segundo as suas grelhas de leitura, “luta contra as propinas” e “manifestações nacionais”.

a verdade é que não se podem pensar os proces-sos de construção das memórias estudantis sem se ter em conta a particular instabilidade dos estudantes en-quanto grupo social. o facto de os estudantes do ensino superior serem indivíduos em trânsito, permanecendo meia dúzia de anos no terreno universitário, faz com que a transmissão da memória tenha de lidar regularmente com interrupções e curto-circuitos. se, por vezes, esta condição pode funcionar como potenciadora de um en-volvimento mais criativo e descomplexado, muitas vezes o desconhecimento do lastro histórico pode dificultar a adopção de perspectivas mais preocupadas com os po-tenciais legados da memória, que fica assim reduzida a alguns símbolos, observados num misto de admiração e negligência interpretativa.

se relativamente a outros momentos da história do movimento estudantil grassa o desconhecimento, no que concerne à “crise de 69” é notória a deslocação do terreno da história para o terreno da simbologia, trans-formando-a numa espécie de arquétipo mobilizador

despojado de complexidade hermenêutica. repare-se o modo como, sempre que existem picos de contestação, aparece a comparação com esse momento, integrando a iniciativa do presente numa espécie de legitimidade ética (e épica) que teria o seu momento mais marcan-te naquele episódio. num estudo sobre o movimento “antipropinas” da década de 1990, ana drago refere a presença à época de uma “memória romantizada” que fornecia uma “imagem de heroicidade da condição de estudante” e que funcionava como instrumento de mobi-lização colectiva e como inspiração para o envolvimento pessoal.2

estranhos consensospor outro lado, a inegável força simbólica de 69 leva

a que antigos estudantes que se remetiam a uma posição de distanciamento ou de efectiva recusa do movimento ainda hoje tenham dificuldades em se assumir como per-tencentes à minoritária direita académica, produzindo declarações, no mínimo, desconcertantes. Em entrevista publicada a 30.09.2006 na revista Tabu, do jornal Sol, souto moura admite que furou a greve aos exames, que o seu grupo de amigos se centrava nos sectores da direi-ta mais radicalizada, mas que se considerava “de esquer-da” e adepto de uma democracia de tipo sueco. nas suas palavras, estava equidistante quer dos simpatizantes do regime, quer “dos maoístas” – caricaturando deste modo o activismo da época, já o advento organizado do maoísmo em coimbra apenas ocorre no ano lectivo de 1971/72.

de modo semelhante deve ser lida a presença de José miguel Júdice, líder da direita académica de então, na comemoração dos 35 anos da “crise”, organizada em

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2004 pela dG/aac. apesar de anotar as diferenças ideológicas em jogo, Júdice definiu-a na altura como uma revolta geracional, e nessa medida também sua. Em ambos os casos, a pertença ao campo afectivo da “crise” confunde-se com a estadia num domínio etário e geográfico comum, numa estratégia de naturalização que visa esbater a importância das clivagens políticas, culturais e morais traçadas à época.

à sombra de abriltermine-se com uma ideia que ficará aqui suspensa

à espera de uma outra altura para se desembrulhar. E que é esta: não se pode compreender as leituras actuais sobre a “crise de 69” sem termos sobre elas o horizonte aberto com o 25 de abril de 1974. não só porque 1969 representou um marco importante no processo de de-safectação das elites relativamente ao Estado novo, mas também porque foi o posterior vinco democrático que permitiu a existência de narrativas sobre o aconteci-mento e a consequente reordenação entre “vencedores” e “vencidos”. uma antiga activista estudantil, Fátima saraiva, recorda como ela e outros companheiros só co-meçaram verdadeiramente a rememorar a “crise” quan-do começaram as “comemorações”.3 com efeito, foi a partir de finais da década de setenta que se começou a divulgar uma arrumação narrativa desse período baseada numa certa “memória de vitória”. Esta viria a assentar na valorização do papel da unidade em detri-mento da divergência ideológica, na análise das linhas políticas do movimento em detrimento da consideração das componentes culturais e de costumes, mais espon-tâneas e menos tácticas, e na acentuação de um certo “imaginário de festa”, necessariamente feliz, em detri-

mento de um olhar menos romântico, que contemplasse também o peso das experiências de cárcere, as ressacas, os desânimos e os caminhos distintos que o movimento estudantil trilhou no seguimento da “crise de 69”.

notas:1 - isto apesar dos estudos existentes sobre ambos os acon-tecimentos mostrarem que os conflitos eclodiram em ambas as cidades e se inseriram num fluxo reivindicativo que tran-scendeu, a montante e a jusante, os referidos anos. ver, por exemplo, Álvaro Garrido (1996), Movimento estudantil e crise do Estado Novo: Coimbra 1962. coimbra: minerva; marta be-namor duarte (1997), Foi apenas um começo: a crise académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos sessenta e da luta contra o Estado Novo. tese de mestrado apresentada à Faculdade de ciências sociais e Humanas da universidade de lisboa.

2 - ana drago (2004), Agitar antes de Ousar: O movimento estudantil «antipropinas». porto: afrontamento, p. 181.

2 - maria manuela cruzeiro e rui bebiano (org. e pref.) (2006), Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Co-imbra (1961-1974). porto: afrontamento, p. 208.

não se Pode comPreender as leituras actuais sobre

a “crise de 69” sem termos sobre elas o horizonte aberto com o

25 de abril de 1974, (...) que Permitiu a existência de narrativas

sobre o acontecimento e a consequente reordenação

entre “vencedores” e “vencidos”

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vírus abril/maio 2011 [30] Passado e Presente das lutas estudantis

radicalismo Político e activismo estudantil

nos últimos anos do fascismo (1969-1974)

José manuel loPes cordeiro

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vírus abril/maio 2011 [31] Passado e Presente das lutas estudantis

o isolamEnto E o atraso a QuE a ditadu-ra fascista submeteu portugal durante décadas começou a dissipar-se, ainda que de uma forma tímida e lenta, ao longo dos anos 60. Foram inúmeros os factores que con-tribuíram para essas transformações, que se acentuaram e generalizaram à medida que o tempo ia passando.

a entrada de portugal na EFta em dezembro de 1959, no Gatt em 1961, assim como o acordo comer-cial celebrado em 1972 com a então cEE, permitiram uma progressiva abertura e modificação na estrutura económica do país. registou-se um considerável desen-volvimento económico (incremento da industrialização, emergência do sector terciário), ao mesmo tempo que se verificava uma progressiva diminuição do peso da ruralidade, fruto do fenómeno da emigração económica para o estrangeiro e do início da deslocação da mão-de-obra rural para as periferias de lisboa e porto (e de uma maneira geral para o litoral), onde a oferta de emprego na indústria começava a exercer uma maior atracção.

a emigração massiva para os países europeus a par-tir do início da década de 1960, nomeadamente para a França e a alemanha contribui, de facto, para uma pro-gressiva modificação do país. para além de ter contri-buído para a melhoria das condições de vida de largos estratos da população, o contacto com uma realidade po-

lítica, social e cultural completamente diferente por par-te destes emigrantes – cujos reflexos em portugal não deixaram de se fazer sentir –, contribuiu para a aber-tura de novos horizontes e perspectivas que se foram progressivamente instalando na sociedade portuguesa.

por último, a guerra colonial, cujo prolongamento provocava uma generalizada insatisfação, desgastando o regime – política, económica e militarmente – o qual não encontrava nenhuma solução para a mesma, senão o seu prolongamento indefinido. a guerra era particular-mente impopular junto da juventude estudantil univer-sitária, que a vinha rejeitando de uma forma crescente, principalmente desde o início da década de 1970. o in-cremento das deserções, agravando as dificuldades do regime em dispor de quadros militares para prosseguir a guerra, constituiu um factor não negligenciável para a futura eclosão do golpe militar que porá cobro ao re-gime fascista.

a substituição de salazar por marcelo caetano em setembro de 1968, e o surgimento da denominada “pri-mavera marcelista” anunciando uma liberalização po-lítica do regime, criou de início uma considerável ex-pectativa – rapidamente defraudada – cujo ponto alto se traduziu na mobilização para a participação nas elei-ções para a assembleia nacional de outubro de 1969,

as quais representaram também o terminus dessa tímida e fugaz “abertura” política. contudo, será durante esse breve período que, aproveitando a prometida “liberali-zação”, se registarão algumas iniciativas políticas que, embora tenham padecido de inúmeras dificuldades resultantes da repressão, prosseguirão até ao final do regime: a criação do movimento da Juventude demo-crática (novembro de 1969), a constituição da comissão nacional de socorro aos presos políticos (novembro de 1969), o nascimento do movimento das cooperativas culturais (já no rescaldo das eleições), assim como a criação da intersindical, a qual, não obstante só ter sido formalizada em 1 de outubro de 1970 teve a sua génese durante as movimentações da campanha eleitoral.

será também a partir das eleições de 1969 – e até ao final do regime – que se registará um crescente aumento das lutas operárias e populares, em boa medida espontâ-neas, nas quais se enquadrará um movimento estudantil cada vez mais politizado e radicalizado, cujo primeiro anúncio ocorreu com a crise académica de 1969 na uni-versidade de coimbra. o pano de fundo em que se ins-creviam estas movimentações estudantis era no entanto a permanência da guerra colonial, a qual, precisamente, registou uma progressiva agudização a partir de então, principalmente na Guiné e, depois, em moçambique.

radicalismo Político e activismo estudantil nos últimos anos do fascismo (1969-1974)Por José manuel loPes cordeiro | Professor. universidade do minho

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no final da década de 1960, e prolongando-se até ao 25 de abril, registou-se também algo de novo no panorama editorial e, em menor escala, na imprensa. no primeiro caso, com o surgimento de livros e de au-tores marxistas, traduzidos em português, e no segun-do, com a reformulação de alguns jornais e revistas que alteraram o seu conteúdo. publicados por pequenas, e por vezes efémeras, editoras – quase todas sobrevivendo nos limites da marginalidade e com grande parte do seu acervo editorial “fora do mercado” –, estes livros de na-tureza marxista tiveram larga circulação nos meios da oposição, particularmente no sector estudantil universi-tário, possibilitando um conhecimento das obras desses autores até então praticamente impossível de encontrar no país. Este aspecto, até agora praticamente esquecido nas análises sobre o “marcelismo”1, teve na nossa opin-ião uma enorme importância na formação política da ge-ração de jovens que agora despertava para a luta contra o regime, proporcionando-lhes não só um conhecimento dos clássicos do marxismo, como das polémicas que tin-ham existido no movimento comunista internacional, aquando do conflito sino-soviético, ainda que, no respei-tante a estas, com um considerável atraso.

importa salientar também o surgimento de uma imprensa de (subtil) oposição ao regime, marcada ini-cialmente pelo Comércio do Funchal – uma iniciativa de jovens, entre os 17 e os 22 anos, que souberam aproveit-ar uma inesperada oportunidade de relançar, em novos moldes, um título que estava quase a extinguir-se –, cujo exemplo e sucesso motivou, já próximo do 25 de abril, idêntica transformação no Jornal do Centro. a particu-laridade do Comércio do Funchal residia no facto de ter surgido à margem da tradicional “oposição democráti-

ca”, ou seja, de sectores em maior ou menor grau in-fluenciados pelo pcp, como sucedia, por exemplo, com o Notícias da Amadora, embora entre os seus colabora-dores contasse também com elementos afectos àquele partido. por último, saliente-se a transformação ocor-rida no seio da revista O Tempo e o Modo, que originou o surgimento de uma nova série a partir de novembro de 1969, onde as posições maoistas passaram a ser pre-dominantes.

Entre as múltiplas transformações que a sociedade portuguesa então registou importa também salientar aquela que ocorreu no domínio musical a partir do memorável outono/inverno de 1971, com a publicação dos álbuns “cantigas do maio” (José afonso), “Gente de aqui e de agora” (adriano correia de oliveira), “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” (José mário branco) e o Ep “romance de um dia na Estrada” (sérgio Godinho), que tiveram uma profunda influência na juventude da época.

a maior mobilidade que os estudantes começaram a usufruir a partir de então, não obstante as restrições impostas pela necessidade de uma “licença militar” para os jovens do sexo masculino quando se ausentavam do país, contribuiu não só para um alargamento de hori-zontes que o contacto com outras realidades culturais, sociais e políticas lhes proporcionavam, como para a in-trodução em portugal de literatura clandestina, assim como “revistas e livros proibidos”.

os acontecimentos internacionais registados duran-te a década de 1960, nomeadamente a Guerra do viet-name, a revolução cultural na china e o maio de 1968 em paris, assim como a invasão da então checoslováquia pelas tropas do pacto de varsóvia, tiveram também uma

influência considerável, principalmente junto da juven-tude estudantil politicamente mais esclarecida.

a revolução cultural e o maio de 68

a década de 1960 registou também o surgimento de um fenómeno novo, traduzido na emergência da juven-tude como um grupo social reclamando uma identidade própria e uma intervenção política autónoma. Este pro-tagonismo da juventude conheceu o seu primeiro ponto alto em outubro de 1964, nos Estados unidos, através do movimento pela liberdade de Expressão (Free Speech Movement), na universidade de berkeley, o qual pro-testava contra a proibição da realização de actividades políticas no respectivo campus e contra os “valores con-servadores” que a instituição universitária representava.

o envolvimento dos Estados unidos na Guerra do vietname – que já durava desde 1959 –, contribuiu consideravelmente para a radicalização do movimento estudantil norte-americano, ao qual se virão em breve juntar os ecos da revolução cultural na china. alguns anos mais tarde, será paris o epicentro de movimenta-ções semelhantes, em maior escala e afrontando directa-mente o poder político, as quais se alastrarão a outros países do continente, como a itália, alemanha ociden-tal, bélgica, reino unido, Espanha, e mesmo à polónia e Jugoslávia. a influência do maio de 68 chegou, também, a portugal, ainda que o isolamento e a repressão então existentes tivessem limitado consideravelmente o seu impacte e consequências.

também a revolução cultural irá influenciar esta juventude estudantil universitária, como se constatou nos acontecimentos do maio de 68 em paris. Em portu-

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gal, após o retrocesso que se seguiu aos acontecimentos de 19652, a juventude estudantil voltou a despertar para a luta política, como o evidenciou a crise de coimbra (e as incorporações compulsivas no Exército dela re-sultantes), assim como as eleições legislativas de 1969, tanto mais que sobre ela pendia permanentemente o cu-telo da mobilização para a guerra colonial. no que res-peitava à guerra colonial, a questão da deserção – e da deserção com armas – constituía também uma linha de demarcação entre esta juventude estudantil radicalizada e o pcp, que defendia uma posição de recusa à deserção.

será principalmente através dos acontecimentos do maio de 68 que a influência da revolução cultural chinesa se irá exercer em portugal. não será, por con-seguinte, de estranhar que, precisamente em outubro de 1969, se registe o surgimento de uma organização comunista para a juventude, neste caso estudantil, – a união dos Estudantes comunistas (marxista-leninista) [uEc (m-l)] promovida pelo então comité marxista-leninista português –, pela primeira vez desde a dis-solução da Federação da Juventude comunista portu-guesa no mud Juvenil, em 1946, com o objectivo então proclamado de procurar congregar a juventude antifas-cista numa única organização.

as novas forças políticas de influência marxista-leninista que, como é conhecido, se constituíram neste período irão lançar, a curto prazo, as suas organizações estudantis, sendo as mais importantes3 constituídas pela Federação dos Estudantes marxistas-leninistas (FEml), criada pelo movimento reorganizativo do partido do proletariado (mrpp) em Junho de 1971, e os comités revolucionários de Estudantes comunistas (crEc’s), cujas bases são lançadas em abril de 1971 no

porto, e em outubro do mesmo ano em coimbra, pela or-ganização que editava o jornal O Grito do Povo. Em 1972, já perto do final do regime surgirão também as primeiras organizações estudantis influenciadas pelo trotskismo, com a constituição do Grupo marxista revolucionário (Gmr) e dos Grupos de acção comunista, que em 1973 iniciaram a publicação do jornal Toupeira Vermelha.

o aspecto mais significativo registado durante este período de 1969-74, no seio da oposição estudantil ao regime fascista, consistiu na subalternização da im-portância das organizações estudantis do pcp face ao surgimento das organizações criadas pelas novas forças políticas marxistas-leninistas. Esta hegemonia resul-tou mais de uma adesão ao maoismo pelos estudantes que despertavam para o combate anti-fascista, do que das dificuldades internas registados a partir de 1965 pelas organizações estudantis do pcp, após a traição do funcionário nuno Álvares pereira, que entregara à pidE toda a estrutura que aquele partido possuía entre os estudantes de lisboa. no entanto, o pcp irá não só progressivamente recompor-se, como tentará disputar o terreno do combate estudantil às novas organizações marxistas-leninistas, criando a união dos Estudantes

comunistas (uEc) em 21 de Janeiro de 1972, numa re-união realizada em budapeste, na qual participaram Ál-varo cunhal, carlos brito e militantes do interior liga-dos ao sector estudantil, entre os quais albano nunes – apesar de já ter mais de trinta anos e não ser estudante deste 1964 –, que passou a integrar a sua comissão Ex-ecutiva. ainda nesse mês, a uEc publicará a sua “decla-ração” programática, redigida por cunhal.

incremento das lutas estudantis (1969-1974)

uma das temáticas mais debatidas durante o período final do regime fascista, consistiu na denominada “crise da universidade”4, quer do ponto de vista da sua inca-pacidade para formar os quadros técnicos necessários para acompanharem o desenvolvimento económico que o país estava a registar desde o início da década de 1960, quer do ponto de vista do seu funcionamento institu-cional, devido à crescente contestação estudantil que se vinha manifestando nas três academias, principalmente na de lisboa.

o incremento das lutas estudantis que se começou a verificar a partir do ano lectivo de 1969/70 pode ser

o asPecto mais significativo registado durante este Período de

1969-74, no seio da oPosição estudantil ao regime fascista, consistiu

na subalternização da imPortância das organizações estudantis

do PcP face ao surgimento das organizações criadas Pelas novas

forças Políticas marxistas-leninistas.

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uma das temáticas mais debatidas durante o Período final do regime fascista, consistiu na denominada “crise da universidade”, quer do Ponto de vista da sua incaPacidade Para formar os quadros técnicos

necessários Para acomPanharem o desenvolvimento económico que o País estava a registar desde o início da década de 1960, quer do Ponto de vista do seu funcionamento institucional

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classificado, por comodidade de exposição, em três níveis distintos. um primeiro nível, dizia respeito à tradicional “luta pedagógica” – melhores condições de estudo, exames de recurso, publicação atempada pe-los professores de elementos de estudo –, assim como a contestação da actuação arbitrária na avaliação de conhecimentos, que provocava reprovações massivas. inclui-se também neste nível a luta contra a desactu-alização pedagógica e, em muitas áreas, científica, que grassava em muitas escolas superiores, ou ainda contra a transmissão de conteúdos arcaicos e reaccionários. o insuficiente apoio à acção social (residências, cantinas, bolsas, etc), a carência de instalações adequadas (salas superlotadas, falta de equipamentos nos laboratórios), também suscitavam o descontentamento por parte dos estudantes e revelavam a incapacidade do regime para dar resposta às transformações que se tinham operado durante a década anterior, na qual se registou o início da massificação do Ensino superior. como sublinhou rui Grácio, “em cerca de vinte anos, o número de alunos inscritos no ensino superior triplicou, sobretudo graças à ex-pansão do universitário (3,7 vezes), sendo mais acentuado o crescimento no segundo decénio (2,4) [década de 1960] do que no primeiro (1,5) [década de 1950]”5.

o regime procurou responder a alguns destes prob-lemas com a nomeação de veiga simão para ministro da Educação nacional, em Janeiro de 1970, substituindo o desacreditado José Hermano saraiva, medida com a qual pretendia também resolver dois problemas em si-multâneo: afastar um dos responsáveis pela repressão associada à crise de coimbra de 1969 e, assim, satis-fazer e “sossegar” o movimento estudantil, ao mesmo tempo que procurava modernizar o Ensino superior

recorrendo a um tecnocrata que se apresentava com dis-curso condizente com essa necessidade de mudança. a apresentação, em 1971, das “linhas Gerais da reforma do Ensino superior”, constituiu a primeira medida ten-dente a concretizar aquele objectivo.

Esta solução irá desembocar na reforma veiga simão, com a qual o regime não só procurava adaptar o Ensino superior às necessidades de desenvolvimento económico do país, como descongestionar as quatro uni-versidades existentes – o que não só respondia à mas-sificação como contribuiria para a diminuição da con-testação e a “normalização” do ensino –, com a criação de novas escolas, tanto em lisboa (instituto superior de ciências do trabalho e da Empresa – isctE, em dezembro de 1972), como “na província” (as univer-sidades do minho e de aveiro, assim como o instituto universitário de évora), para além da universidade nova de lisboa, todas elas criadas em agosto de 1973. também a universidade de coimbra passou a dispor de cursos de carácter tecnológico, tendo sido criados, em 1972, os cursos completos de Engenharia, uma vez que até então apenas se leccionavam os preparatórios, e a Faculdade de Economia. o plano concluía-se com a criação, também em agosto de 1973, do ensino politéc-nico, com base nos novos institutos politécnicos e das Escolas normais superiores em vários pontos do país.

Esta profunda reforma do ensino não surtiu os efei-tos pretendidos, não só porque uma alteração desta en-vergadura demoraria tempo a produzir os seus resul-tados e necessitava de recursos financeiros e humanos consideráveis, como os estudantes – nomeadamente os do Ensino superior – lhe dedicaram um combate sistemático, denunciando-a como aquilo que na reali-

dade ela era: a urgência do sistema capitalista em dis-por dos quadros de que necessitava para acompanhar as transformações que a economia do país vinha registan-do. a contestação estudantil aumentou e, a curto prazo, os estabelecimentos de Ensino superior caminharam para uma situação de ingovernabilidade, principalmente os da capital, pois tanto no porto como em coimbra a situação era muito mais calma.

apesar de englobar, essencialmente, lutas considera-das “recuadas”, o ambiente então existente nas universi-dades conduzia a que, frequentemente, as lutas inseridas neste primeiro nível respeitante à tradicional “defesa dos interesses dos estudantes” adquirissem muito facil-mente uma rápida politização, em grande medida devido à imediata repressão que enfrentavam.

o segundo nível de desenvolvimento das lutas estu-dantis registado neste período traduzia um maior nível de consciência política e de radicalização, situação que começou a assumir uma certa predominância a partir do ano lectivo de 1970/71. os estudantes contestavam o “conteúdo de classe” do ensino, apresentando-o como um “instrumento ideológico da burguesia”, defendendo que “a ciência não era neutra”, para referirmos algumas das temáticas então mais debatidas; reclamavam tam-bém a liberdade de reunião e de associação, uma vez que as associações de Estudantes estavam na sua maior parte encerradas, e aquelas que ainda funcionavam eram frequentemente invadidas pela polícia e também encer-radas, ainda que algumas o fossem temporariamente. denotando uma cada vez maior radicalização, os estu-dantes organizavam “meetings”, confrontavam os pro-fessores nas aulas, boicotavam conferências considera-das reaccionárias, e desenvolviam uma intensa e paralela

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actividade editorial, publicando textos de apoio sobre os mais diversos temas, na sua maioria abertamente políti-cos e de carácter marxista. tratava-se de uma atitude mais ofensiva, de contestação aberta do sistema de en-sino, que colocava na ordem do dia a questão de saber ao serviço de quem estava a universidade.

Este segundo nível da luta estudantil constituía tam-bém uma demarcação das novas correntes associativas influenciadas pelas organizações marxistas-leninistas estudantis face à orientação seguida pelas organizações estudantis do pcp, que em geral se limitavam à tradi-cional luta pedagógica. a partir de 1970/71, e embora dependesse das Faculdades, a as lutas estudantis apre-sentavam uma maior incidência neste tipo de reivindi-cações, em detrimento da mera “luta pedagógica” ainda que, como veremos, esta pudesse adquirir muito facil-mente elevados níveis de politização.

o incremento da contestação estudantil era nesta época particularmente visível em lisboa, com os estu-dantes a insurgirem-se contra as frequentes invasões das instalações universitárias pela polícia, o encerra-mento temporário das Faculdades, a invasão e destru-ição das associações de Estudantes, as suspensões e prisões de colegas, ou contra os processos disciplinares, que muitas vezes conduziam à expulsão e incorporação forçada no Exército.

o regime não apresentava outra solução que não a do aumento da repressão. Em Janeiro de 1973, o minis-tro veiga simão criou a categoria de vigilantes (que os estudantes rapidamente denominaram “gorilas”), cuja função era a de exercerem um controlo policial sobre as actividades estudantis, a que se seguiu um outro diploma, em novembro do mesmo ano, que concedia

aos reitores a faculdade de recusarem a matrícula ou a inscrição aos alunos que fossem considerados “prejudi-ciais à disciplina dos estabelecimentos” (d.-l. n.º 629/73). é claro que estas medidas só vieram agravar a situação, particularmente em lisboa, desencadeando autênticas lutas corpo a corpo com os odiados “gorilas”, e agra-vando a ingovernabilidade de várias faculdades, que acabavam por ser encerradas pelo Governo, enquanto a situação não acalmasse.

o terceiro nível de desenvolvimento da contestação registado durante este período assumia características politicamente mais avançadas, como organização de manifestações de rua contra o fascismo e o colonialismo, com acções violentas – como o estilhaçar de montras de bancos –, ou de solidariedade com lutas travadas pela população. momentos particularmente importantes da luta estudantil contra o regime ocorreram em maio de 1972, e depois em outubro do mesmo ano, aquando do funeral do aluno da Faculdade de direito de lisboa, José antónio ribeiro dos santos, com os estudantes a desafi-arem abertamente a repressão. também as lutas contra a Queima das Fitas, em 1971 no porto, e em 1972 em coimbra (tentativa frustrada de um pequeno grupo de apodados de “reaccionários”, que não teve problemas em desrespeitar o luto académico6), assumiram um carácter massivo e vitorioso, tendo os estudantes das respectivas academias deixado de organizar aquelas “festividades”, até à sua ressurreição ocorrida já depois do 25 de abril.

breve conclusãoapesar de circunscritas a um grupo social relati-

vamente restrito – os estudantes –, estas organizações estudantis conseguiram mobilizar e integrar, em cerca

de cinco anos, centenas de activistas e formar dezenas de quadros políticos que ainda hoje – embora noutros quadrantes partidários – se mantêm em actividade, beneficiando em grande medida da formação e da ex-periência adquiridas naquela época. Estas organizações conseguiram, também, superar pela primeira vez a in-fluência do pcp no movimento estudantil7, benefici-ando da emergência de uma nova geração que se sentia mais atraída pelos acontecimentos do maio de 68 e, em particular, pela revolução cultural, então em curso na república popular da china.

a oposição ao regime fascista – não só em relação aos métodos caducos de ensino como à sua política de manutenção da guerra colonial – desenvolvida por estas organizações, conquistou uma grande popularidade e adesão junto de numerosos estudantes, causando sérias dificuldades ao regime e obrigando-o a tomar um con-junto de medidas no sentido de evitar o seu isolamento junto da opinião pública. a imprensa do regime, assim como a televisão, constituíam as únicas armas – embora extremamente importantes – de que dispôs para tentar confundir o povo português sobre os verdadeiros mo-tivos por que lutavam os estudantes, e foram inúmeras as ocasiões em que se viu obrigado a recorrer àquele expediente.

Estas organizações estudantis conheceram o seu período áureo durante a primeira metade da década de 70. após o 25 de abril, com o restabelecimento das liberdades fundamentais, a maior parte dos militantes destas organizações envolveu-se na luta política que marcou o período revolucionário, passando a interven-ção no movimento estudantil a assumir uma importân-cia secundária.

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notas:

1 - Excepção feita para o estudo de antónio ventura sobre a recepção do marxismo em portugal [antónio ventura (2000), “o marxismo em portugal no século XX”, in pedro calafate (dir.), História do Pensamento Filosófico Português. lisboa: Editorial caminho, vol. v, pp. 195-229], e mais recentemente miguel cardina (2008), A Tradição da Contestação. Resistência estudantil em Coimbra no Marcelismo. coimbra: angelus novus, pp. 252-255.

2 - Em Janeiro de 1965, cerca de cinquenta estudantes de lisboa foram presos pela pidE, acusados de perten-cerem ao pcp. as lutas de solidariedade então travadas não foram capazes de impedir a expulsão de cinquenta e três estudantes de todas as universidades do país e a suspensão de mais de cem estudantes.

3 - não consideramos, dada a sua efémera existência – de Janeiro a setembro de 1972 –, para além da sua reduzida actividade e importância, o movimento das Juventudes comunistas (marxista-leninista) criado pelo comité marxista-leninista de portugal (O Bolchevista). no entanto, também o título do seu jornal, denominado Jovem Guarda (nº 1, Janeiro de 1972), do qual se publicaram quatro números, traduzia claramente a influência da revolução cultural.

4 - para além de debates, mesas-redondas, artigos, em jornais e revistas, ver, entre outros exemplos, J. p. miller Guerra, e a. sedas nunes (1969), “a crise da universidade em portugal: reflexões e sugestões”, Análise Social, vii (n.º 25-26), pp. 5-49, ou a colectânea de artigos coordenada por adérito sedas nunes (1970),

O Problema Político da Universidade. lisboa: publicações dom Quixote.

5 - rui Grácio (1990), “a expansão do sistema de ensino e a movimentação estudantil”, in antónio reis (dir.), Portugal Contemporâneo. lisboa: publicações alfa, vol. v, p. 225.

6 - “viva a vitoriosa luta dos estudantes de coimbra contra a Queima dos burgueses!”, Servir o Povo, nº 1, maio de 1972, pp. 1-2 e 6. [Órgão do crEc de coimbra].

7 - deve referir-se, contudo, que a partir de 1971/72 a uEc recuperou alguma influência no movimento estudantil, nomeadamente em lisboa, onde listas afectas à sua orientação conquistaram a direcção de algumas associações de Estudantes.

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movimentos estudantis em Portugal (1976-1992)

alexandra silva

luta

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à luta “anti-ProPinas”

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tEm sido tradicionalmEntE considEra-do que após a revolução de abril se perdeu a dimensão criativa e espontânea dos órgãos associativos estudantis, assistindo-se a uma simples reprodução dos esquemas políticos e culturais dominantes. mas quando observa-das com cuidado, pode verificar-se que essas experiên-cias políticas e culturais, vividas dentro da estrutura universitária, estão bem presentes1 e inserem-se numa lógica participativa dos estudantes que, no caso portu-guês, se apropria de um legado indiscutível dos “anos sessenta”2.

podem distinguir-se no pós-25 de abril, e até à “luta anti-propinas”, três períodos fundamentais: um que decorre durante o chamado “biénio revolucionário” (1974-75) e que necessita ainda de trabalhos aturados da historiografia portuguesa; outro, que se estende, grosso modo, desde a institucionalização da chamada “lei cardia” até à lei de bases do sistema Educativo (1976-1986); e um terceiro que decorre daí até cerca de 1992, quando se iniciou um novo período do movimento estudantil e que ana drago já estudou com detalhe em Agitar antes de ousar3.

o período que diz respeito ao “biénio revolucionário” caracteriza-se sobretudo pela profusão de assembleias e reuniões gerais de faculdades, que conduziram a cente-

nas de saneamentos de professores, com a intervenção directa dos sectores mais politizados e radicais da popu-lação estudantil, em sintonia com a “legitimidade revo-lucionária” que, na época, pautava a dinâmica política do país. Foi dentro deste ambiente que ocorreu, em 1975, a escolha, em assembleia magna, por votação de braço no ar, de uma direcção-Geral da associação académica de coimbra (aac) conotada com a esquerda radical.

caracteriza-se ainda pelo desligamento progressivo dos estudantes do movimento, orientando os interesses e a capacidade de intervenção para outras áreas sociais que se encontravam em profunda mudança, nomeada-mente a participação nas campanhas de alfabetização e de dinamização cultural, ou a integração nas equipas de apoio à aplicação da reforma agrária no alentejo ou a dedicação à militância partidária no grande número de organizações políticas que então despontavam, so-bretudo na sua forma de organizações partidárias de juventude – as “jotas”4.

no segundo período, que se inicia no período seguinte ao 25 de novembro de 1975, embora se vislumbre um declínio no movimento estudantil, assistiu-se a reivin-dicações e lutas estritamente universitárias centradas essencialmente nos aspectos organizativos, verificando-se contudo neste período alguns picos de reivindicação.

primeiro, em consequência do “decreto de Gestão” de sottomayor cardia5, em que os órgãos de “gestão democrática das escolas” foram sendo substituídos por organismos de carácter associativo ou de intervenção política, essencialmente assentes na actividade de quad-ros juvenis das principais forças partidárias. os estu-dantes manifestaram-se activamente contra o decreto, desencadeando-se uma onda de resistência por parte de várias associações de Estudantes, que se organizaram a nível nacional, entrando num período de greve geral, por se tratar de um novo modelo de gestão das escolas do ensino superior, que contribuiu para esgotar o poder dos estudantes, contribuindo para o esbatimento da ex-periência participativa em colectivo.

logo em 1977, devido à reintegração de um con-junto de professores saneados da Faculdade de ciên-cias, o partido socialista promoveu uma greve, tendo-se mesmo chegado a encerrar universidade de coimbra. a profunda convulsão colectiva, que gerara agressões aos professores, provocaria o encerramento da faculdade, a realização de assembleias magnas altamente participa-das, uma consequente greve geral com taxas de adesão muito significativas, desfiles e manifestações pelas ruas e, por fim, o encerramento da universidade e cantinas pelo ministério da Educação6.

do biénio revolucionário à luta “anti-ProPinas” – movimentos estudantis em Portugal (1976-1992)Por alexandra silva | historiadora

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a resolução da contenda fez-se através de um refer-endo domiciliário sobre a reabertura da universidade de coimbra pelo ministério da Educação, mas que provo-caria, nas palavras de nuno caiado, o “estilhaçamento do movimento associativo estudantil”, cada vez mais afectado pelas sensibilidades e estratégias partidárias, que rapidamente promoveriam o acentuado refluxo das lutas estudantis, assinalado pela “falência do movimento político-associativo meramente reivindicativo” e pelo “peso burocrático das juventudes partidárias”, através das quais os partidos procuraram implementar as suas posições políticas no espaço académico7.

Efectivamente, este período caracteriza-se pela afir-mação de um movimento dirigido por militantes e sim-patizantes das organizações partidárias de juventude, fazendo com que, muitas das vezes, as lutas se tenham realizado em prol das conveniências políticas, aplicando-se os modelos de participação existentes nos partidos políticos e levados para o interior das estruturas asso-ciativas académicas.

paralelamente, aconteceram alterações curriculares profundas: o alargamento da escolarização, o aumento da oferta do ensino superior público e privado, universi-tário e politécnico, a criação de novas áreas curriculares e extra-curriculares8. Estas modificações traduziram-se num forte aumento do número de matriculados no ensino superior (cerca do dobro, em apenas 15 anos) criando um problema de estrangulamento do sistema de acesso ao ensino superior e, mais tarde, no que respeita às saídas profissionais. ao mesmo tempo, as universi-dades foram revelando uma profunda incapacidade de satisfazer as necessidades e expectativas dos estudantes, tanto em termos materiais, como institucionais, educa-

cionais ou culturais.Este cenário seria agudizado pela implementação da

lei de bases do sistema Educativo (lbsE) de 1986, o novo quadro regulador do sistema educativo, que con-sagrou e consolidou a grande maioria das iniciativas que vinham sendo desenvolvidas desde 1976. por to-das as medidas que implementou, criou uma barreira à democratização do ensino porque muitos alunos fi-caram de fora por não poder recorrer às universidades privadas contribuindo para a criação de desigualdades de oportunidades, na obtenção de credenciais escolares e no acesso ao trabalho, ajudando à desvalorização dos diplomas escolares, pois o aumento dos efectivos no ensino superior não foi acompanhado pela criação de saídas profissionais e emprego9.

tudo isto teve amplas implicações na vida estudan-til, na sua participação cívica, na sua reconfiguração e da própria universidade. contribuiu para o enfraqueci-mento da força simbólica e política dos estudantes, que passaram a ver o espaço académico como um lugar in-strumentalizado e de alcance de objectivos profissionais e pessoais, pairando sobre o seu percurso académico o espectro do desemprego. a vida estudantil tornou-se mais auto-centrada, individualista, concentrada no es-tudo intenso e numa competição entre colegas em busca da melhor média, cortando assim muitos laços de con-vívio e o espaço a outras formas de aprendizagem e de cultura, oferecendo um quadro geral de aparente indife-rença diante dos combates democráticos e da própria ac-tividade associativa, inaugurando um “novo paradigma de participação cívica democrática”10.

Esta profunda reconfiguração na universidade e na cidade conduziu a práticas, preocupações e atitudes dos

estudantes que adaptaram o seu quotidiano às novas re-alidades, aspecto que se traduziu em diferentes práticas artísticas e culturais, na recriação de novas formas de participação cívica e na reconfiguração das identidades estudantis11.

a partir de então, inaugura-se uma terceira fase do movimento estudantil, que se caracteriza por uma tendência para a apropriação de planos e estratégias que se dividem, grosso modo, em dois modelos para-digmáticos: um, centrado nos problemas pedagógicos e questões relacionadas com o ensino, encabeçado pelas associações de estudantes; e um outro, mais preocupado com as questões culturais, protagonizado pelos organis-mos culturais mais alternativos.

não sendo muito conhecida a realidade estudantil noutras universidades, em coimbra a primeira tendên-cia teve expressão nalguns picos de contestação e agi-tação estudantil. nomeadamente as preocupações ped-agógicas e com sentido pragmático ganharam nova urgência, apresentando-se novas bandeiras de luta: as condições dos serviços sociais, nomeadamente a criação de infra-estruturas como cantinas, residenciais, salas de aulas, bibliotecas e laboratórios especializados, que pos-sibilitassem melhores condições aos alunos, a ampliação de bolsas e o fim do numerus clausus como requisito de ingresso que limitava a democratização do ensino, ou o aumento da formação complementar dos alunos.

são exemplos disso o protesto que se desencadeou sob a forma de greves gerais contra o aumento do preço das refeições, reuniões gerais de alunos pela reestrutu-ração dos cursos, acções de rua contra a estrutura do internato Geral de medicina, com críticas à criação des-regrada de universidades privadas paralelas às estatais,

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à instrumentalização da educação e da investigação, e ao financiamento das universidades não estatais com fun-dos de Estado, numa clara crítica à privatização.

paralelamente, criaram-se espaços onde surgiram novas possibilidades de actuação dentro do movi-mento estudantil, revitalizando o próprio movimento através do plano cultural como campo privilegiado da expressão das preocupações estudantis. são signos de-stas novas linguagens as actividades culturais desen-volvidas, concretamente em coimbra, pelos organismos autónomos e secções culturais da aac, onde a dimensão cultural ganhou novo impacto na forma de intervenção estudantil. são exemplo disso as actividades regulares de alguns dos organismos com a organização de festi-vais, encontros, exposições temáticas, bienais, debates, ciclos, etc.

destacam-se os Encontros de Fotografia de coim-bra, organizados pela secção de Fotografia da aac; as Jornadas de cultura popular, organizadas pelo Grupo de Etnografia e Folclore da academia de coimbra (GE-Fac); a semana internacional do teatro universitário, dinamizada pelo teatro de Estudantes universitários de coimbra (tEuc); ou o Festival internacional do Filme amador de coimbra, criado pelo centro de Estudos cinematográficos (cEc). merece ainda profunda aten-ção a actividade cultural e artística do centro de artes plásticas (cEc), da rádio universidade de coimbra (ruc) ou do círculo de iniciação ao teatro académico de coimbra (citac), cujas iniciativas, actualizadas e pedagógicas, visavam a divulgação de formas artísticas contemporâneas nas suas expressões mais inovadoras.

todas estas iniciativas suscitavam e promoviam a vantajosa apreciação da produção cultural enquanto

fenómeno estético, artístico e social, constituindo assim espaços onde se podia falar, compreender e descobrir a cultura. Foram espaços onde os estudantes puderam afirmar e fortalecer um projecto político cultural que urgia (e urge) ser assumido e divulgado no interior do próprio movimento estudantil e das universidades, assumindo-se como estratégias de rejeição da cultura dominante, massificada, promovida pelas associações de Estudantes, envoltas num clima de partidarização e instrumentalizadas pelos poderes políticos.

as acções estudantis, articuladas das mais variadas formas, (re)criaram espaços de organização e luta, pela garantia de políticas públicas que incluíssem as suas ne-cessidades e desejos, não só ao nível político e social, mas cultural e educacional. por tudo isto, nos anos oitenta, os níveis de participação estudantil, ainda que visivel-mente reduzidos e centrados nas questões pedagógicas, revestiram-se (sobretudo em coimbra), de uma activa e forte componente de intervenção cultural, devedora da experiência da contestação, da divergência e da resistên-cia que fez parte da história da universidade12.

perante o fenómeno de democratização, a crise fi-nanceira que atingia o sector universitário, no final da década de 1980, acabaria por reequacionar a questão das propinas, realidade que veio a acontecer efectivamente no início dos anos noventa, altura em que entram em força os chamados sectores “independentes”. criticavam o esgotamento do modelo anterior e apresentavam-se como favoráveis à “despolitização formal” e dinam-izaram o “movimento anti-propinas”, pautando-se por um novo pico de radicalização, que viria a unir de novo e a mobilizar centenas de estudantes13.

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notas:

1 - alexandra silva (2009), Movimento estudantil e re-sistência cultural em Coimbra na década de 1980. disserta-ção de mestrado em História das ideologias e das uto-pias contemporâneas, apresentada à Fac. de letras da univ. de coimbra.2 - rui bebiano e Elísio Estanque (2007), Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra. lisboa: imprensa de ciências sociais.3 - ana drago (2004), Agitar Antes de Ousar: o Movimento Estudantil «Antipropinas». porto: Edições afrontamento.4 - luísa tiago de oliveira (2004), Estudantes e Povo na Revolução: o Serviço Cívico Estudantil (1974-1977). oei-ras: celta Editora.5 - ministro da Educação e investigação científica de 23 de Julho de 1976 a 23 de Janeiro de 1978 e ministro da Educação e cultura de 23 de Janeiro de 1978 a 29 de agosto de 1978.6 - alberto sousa lamy (1990), A Academia de Coimbra: 1537-1990 - história, praxe, boémia e estudo, partidas e pia-das, organismos académicos. lisboa: rei dos livros.7 - nuno caiado (1990), Movimentos estudantis em Portu-gal: 1945-1980. lisboa: iEd, p. 258.8 - stephen stoer (1986), Educação e mudança social em Portugal. 1970-1980, uma década de transição. porto: af-rontamento.9 - balsa et al. (2001), Perfil dos estudantes do Ensino Su-perior: desigualdades e diferenciação. lisboa: Edições co-libri.10 - rui bebiano e Elísio Estanque (2007), Ob. Cit., p.99.11 - nick stevenson (2001), Culture and citizenship. lon-don: sage publications.

12 - alexandra silva (2009), ob. cit.13 - ana drago (2004), ob. cit.

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1992. cavaco silva é primEiro-ministro E couto dos santos ministro da educação. Em pleno mês de agosto é aprovada a lei 20/92, a famosa lei das propinas. apesar de o movimento estudantil secundaris-ta vir de uma importante vitória, a revogação da pGa (prova Geral de acesso), no ensino superior as principais academias eram dominadas pelo psd. o fim do «ensino tendencialmente gratuito» e o início da privatização da escola pública originou a emergên-cia de um forte movimento estudantil que foi capaz de derrotar muitas destas direcções associativas de direita. no porto, a Fap era dominada por diogo vasconcelos (psd) e apenas as aaEE de ciências, belas-artes e letras (mais tardiamente) se opuseram abertamente a esta lei e organizaram a resistência. 1992 foi um ano de manifestações e greves. mesmo nas faculdades e academias em que o poder se mantinha sob influência do psd, os estudantes desafiaram-no e convocaram greves e manifestações um pouco por todo o país. a 18 de novembro de 1992 ocorreu uma grande manifestação nacional que conseguiu juntar nas ruas mais de 10 mil estudantes. um ano depois, cerca de 1000 estudantes dirigiram-se para são bento e foram recebidos à bastonada pela polícia de choque. o governo de cavaco silva revelava-se: primeiro tin-

ham sido os trabalhadores da tap, agora eram os es-tudantes e seguir-se-iam ainda os manifestantes con-tra as portagens na ponte 25 de abril e os vidreiros da marinha Grande. cavaco silva marcava, definitiva-mente, a política nacional e impunha as leis à bastonada. a carga policial veio permitir que a contestação ex-travasasse as faculdades. a manifestação de resposta aconteceu a 7 de dezembro e pôs na rua mais de 20 mil pessoas. aos estudantes do superior juntaram-se estu-dantes do secundário, professores, cidadãos anónimos e alguns sindicatos. o ministro couto dos santos caía nesse dia e era substituído por manuela Ferreira leite. se é verdade que o movimento contra as propinas não conseguiu revogar a lei, também é verdade que impediu que o valor proposto, já para o ano de 1994/95, de propi-na máxima, 750 euros, não fosse além dos 300 euros. mas, na verdade, aquilo que hoje a distância nos permite perceber é que este movimento falou verdade quando disse que esta lei representava o fim do ensino público, gratuito e universal. avisámos que aceitá-la seria per-mitir o aumento progressivo dos valores a serem pagos; chamámos a atenção para o facto de esta escolha expul-sar estudantes da universidade; lembrámos que a acção social escolar não era capaz de responder a estes casos e que o ensino se estava a tornar cada vez mais elitista,

a reproduzir as desigualdades sociais, e a afirmar-se como um privilégio daqueles que o podiam pagar. E, por isso, boicotámos a lei e gritámos «não pagamos!». E o resultado está aí: o valor das propinas já ronda os 1000 euros, o que significa que aumentaram cerca de 450% desde que a lei entrou em vigor; um douto-ramento pode custar 35 mil euros. Hoje há estudantes que não chegam sequer ao ensino superior; há estu-dantes que são obrigados a desistir da sua formação porque não têm dinheiro para pagar propinas. Hoje, um agregado familiar de quatro pessoas, com um ren-dimento de cerca de 1500 euros, não tem direito a bolsa e paga as propinas por inteiro. Hoje, o ensino superior é um privilégio de quem o pode pagar, diga o ministro mariano Gago o que quiser para sossegar a consciên-cia. Hoje, já quase não há universidades, mas fundações. a lei 20/92 significou um retrocesso civilizacional. an-iquilou a possibilidade de portugal recuperar de quase meio século de atraso e de se preparar para os desafios dos tempos que correm. Quem patrocinou e aceitou o fim do ensino superior público, universal e gratuito é, pois, responsável pelo atraso do país.

era uma vez uma leiPor andrea Peniche | editora

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a Praxe em Portugalorigens e significados

José soeiro , nuno serra e ana dragoluta

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as praXEs académicas não são dE aGora mas também não existiram sempre. de acordo com o historiador paulo archer de carvalho, as praxes “ainda hoje são a sobrevivência simbólica de rituais de passa-gem, de presentificação e de heterorreconhecimento, balizadas por gestos que tentam assinalar a desbestiali-zação do aprendiz e a sacralização do ofício intelectual, partindo do princípio – consagrado na própria nomen-clatura (o burro, a cabra, o chocalho, a “magna besta”, etc.) – de que o ser humano é à nascença uma besta e que só pela formação intelectual ou espiritual se liberta dessa primitiva condição” (in Grande reportagem, no-vembro de 1996).

com efeito, as praxes académicas definem-se, de acordo com um código de praxe do instituto superior técnico de lisboa, por exemplo, como “um conjunto de usos e costumes existentes entre os estudantes do ist – taguspark, que vise a recepção, acolhimento e integração dos alunos recém-chegados ao mesmo”.

de facto, muitos estudantes consideram a praxe uma boa ocasião para integrar os novos alunos de uma insti-tuição e um ritual entusiasmante de entrada no ensino superior, que tem como objectivo acelerar o processo de interconhecimento entre quem ingressa numa escola. outros, criticam o facto de esses rituais estarem marca-

dos pela hierarquia da praxe – por exemplo, os “bichos” (alunos matriculados pela primeira vez), os caloiros (alunos baptizados na semana de recepção ao caloiro), os “putos” (alunos com duas matrículas), “veteranos”, entre outras categorias –, o facto de esta gerar arbitrarieda-des e violências e questionam a invocação da “tradição académica”. a praxe pode ser exercida sobre os caloiros pelos alunos mais velhos.

Existem hoje várias instituições do ensino superior em que não se verificam rituais praxísticos. muitas ou-tras foram desenvolvendo esses rituais. o próprio con-ceito de praxe é marcadamente polissémico, isto é, um conceito a que diferentes pessoas atribuem diferentes significados, sendo que alguns grupos de praxe (comis-sões de praxe) possuem regulamentos (códigos de pra-xe) que definem o funcionamento desses rituais.

o sentido da praxe consiste, basicamente, em trans-formar um “animal” num “ser humano”, ou seja, assen-ta num ritual iniciático de passagem entre um estado e outro, que marca a pertença a um determinado “corpo social” – os estudantes do ensino superior, neste caso. o termo “praxe” data, provavelmente, de finais do século XiX, mas as histórias destes rituais no ensino univer-sitário é bem anterior a essa data. no século Xviii, os novatos eram recebidos em coimbra “com touradas, in-

sultos, picaria, patente (outro nome para roubo, que hoje se continua a praticar) e troças” (vd Gr, 1996), o que terá levado d. João v, em 1727, a proibir as “investidas aos novatos”, na sequência da morte de um estudante, uma vez que aquelas se “faziam com tal excesso que padeciam barbaridades”. também o historiador teófilo braga reflectiu sobre o assunto, afirmando que “enquan-to o estudante vivia em coimbra, envolvido ou exposto às violentas investidas, tinha de andar armado até aos dentes”. as praxes violentas não são, portanto, uma re-alidade de hoje.

no século XiX, a praxe mais comum era o canelão – prática que consistia nos estudantes mais velhos darem pontapés nas canelas dos novos alunos – e também o ra-panço – que consiste em rapar pêlos aos estudantes – en-tre outras. Em 1902, o canelão foi abolido por um grupo de estudantes e a praxe foi mesmo completamente abo-lida com a instauração da república em 1911. voltaria a ser restabelecida em 1919, novamente abolida na década de 1960 e restabelecida na década de 1980.

curiosamente, o ressurgimento da praxe no final do século XX associa-se a um período de massificação do ensino superior e à abertura de novas universidades, nomeadamente as universidades privadas. Este regres-so da praxe corresponde a uma ritualização que parece

a Praxe em Portugal: origens e significadosPor José soeiro (dePutado), nuno serra (geógrafo), ana drago (dePutada)

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compensar simbolicamente o próprio esvaziamento do estatuto social de estudante enquanto forma de distin-ção social e garante de posições elevadas na estrutu-ra do mercado de trabalho. a relativa desvalorização social dos títulos académicos (que deriva da própria massificação da certificação escolar) e a necessidade de legitimação de novas instituições foram um poderoso factor do renascimento das praxes enquanto retórica de tradicionalismo.

a violência nas Praxes: uma realidade ainda desconhecida

não existe em portugal nenhum estudo exaustivo sobre a realidade das praxes, apesar de algumas insti-tuições, no âmbito de investigações sobre a condição estudantil, terem integrado a dimensão da praxe nos estudos realizados. é o caso de um trabalho da universi-dade de trás-os-montes e alto douro que data de 2006 e que foi dirigido por artur cristóvão (coordenador, à época, do departamento de Economia, sociologia e Ges-tão); de um projecto sobre culturas juvenis desenvolvi-do pelo centro de Estudos sociais da universidade de coimbra, da autoria do sociólogo Elísio Estanque e do historiador rui bebiano, divulgado em maio de 2006 e, por exemplo, de um estudo realizado pelo centro de investigação e intervenção Educativas da Faculdade de psicologia e ciências da Educação da universidade do porto, no âmbito de um projecto sobre os quotidianos discentes na licenciatura de ciências da Educação, pu-blicado em 2007.

apesar de estas e de outras investigações fornece-rem elementos e análises importantes, as mesmas não permitem, por si só, ter uma ideia rigorosa sobre a re-

Breve cronologia de alguns casos de praxes violentas divulgados nos órgãos de comunicação social nos últimos 10 anos. novembro 1999uma aluna da Escola superior de Educação de leiria declara-se vítima de agressões físicas e humilhações durante as praxes: num “tribunal de praxe” a “sentença” dita o corte do seu cabelo. é a primeira vez que alguém anuncia a vontade de iniciar um processo em tribunal – o que não chegou a acontecer. Janeiro de 2003ana sofia damião, aluna do institu-to piaget de macedo de cavaleiros, denuncia publicamente as agressões de que terá sido alvo durante as pra-xes do início do ano lectivo. insulta-da, obrigada a despir-se e a vestir-se novamente – agora com a roupa in-terior por fora –, forçada a simular orgasmos, a relatar pormenores da sua vida sexual e a simular relações sexuais com colegas.pedro lynce, ministro da ciência e

Ensino superior da altura, declara que levará “até às últimas conse-quências” uma investigação sobre o sucedido e que revela que, entre 1997 e 2000, foram arquivados 9 ca-sos de violência nas praxes.no final deste caso, agressores e agredida foram sancionados, por igual, com uma repreensão escri-ta – ana sofia damião “pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravi-dade que decorre da sua exposição”; os agressores “por não terem a pre-ocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir susceptibilida-des individuais”. março de 2003ana santos, estudante da Escola superior agrária de santarém, de-cide avançar com a denúncia públi-ca. Faz uma queixa na polícia, envia uma carta para a direcção da escola e uma carta para o ministro do Ensino superior. teria sido “esfregada” com bosta, insultada e impedida de usar o telemóvel durante várias horas e, fi-nalmente, abandonada a quilómetros de casa. o presidente do conselho directo da Esas, Henrique soares cruz, abre um inquérito. Fazendo contudo saber que, no seu tempo de

estudante, também tinha “recebido bosta no corpo”, o que era uma “tra-dição da escola”.o processo prolonga-se até hoje, tendo a aluna sido transferida para uma escola em lisboa e decorrendo neste momento o julgamento dos alegados agressores. trata-se do primeiro julgamento por violências ocorridas na praxe que existe em portugal.

maio de 2003um grupo de alunos do instituto piaget de macedo de cavaleiros denuncia ter sido agredido durante um “tribunal de praxe”. os alunos agredidos chegam a prometer fazer queixa na polícia, mas acabam por não avançar.o presidente do instituto suspende, durante 15 dias, os 25 alunos que organizaram o “tribunal” e anuncia a suspensão das praxes “por tempo indeterminado”, pelo menos “até à elaboração do código de praxes com base na carta de princípios”.

outubro de 2003mais uma queixa no instituto su-perior de Engenharia de coimbra: um aluno denuncia que foi obrigado

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alidade da praxe em portugal, nem sobre a dimensão das violências que acontecem no seu âmbito. de facto, as violências na praxe são uma realidade ainda desco-nhecida, desvendada apenas por alguns casos que têm vindo a ser conhecidos através dos órgãos de comuni-cação social.

Esta breve cronologia, que é com certeza incom-

pleta, permite contudo compreender o tipo de práticas violentas ocorridas no âmbito de praxes que origina-ram denúncias. Em alguns casos, estas foram alvo de inquéritos por parte das direcções das escolas, em ou-tros casos de acções das comissões de praxe ou dos con-selhos de veteranos. E noutros casos ainda, originaram denúncias na polícia e processos nos tribunais, sendo que nunca até hoje ninguém foi condenado por tais actos por parte do Estado.

sabe-se, por outro lado, que algumas denúncias são posteriormente retiradas e que em alguns casos as pró-prias instituições tentam evitar que as situações de pra-xe violenta sejam tornadas públicas ou avancem para outras instâncias. por isso, importa conhecer o posicio-namento das instituições sobre este problema.

a PersPectiva das instituições de ensino suPerior

a missiva enviada pela comissão de Educação, ci-ência e cultura, a 8 de Janeiro de 2008, a instituições de ensino superior público e privado e associações de estu-dantes de todo o país, visou essencialmente a recolha de reflexões, pareceres e propostas de intervenção em rela-ção à questão das praxes académicas, tendo sido recebi-

a atar, no seu pénis, um cordel que amarrava um tijolo. a ministra da Educação recebe um carta assinada pelo pai do aluno e declara que exi-girá todos esclarecimentos à escola. o caso ficará por aqui. novembro de 2003as praxes na polícia são notícia. “praxe sexual” no instituto supe-rior de ciências policiais. Há quei-xas e ameaças de expulsão. segundo as notícias, os caloiros teriam sido obrigados a lamber chantilly num pénis de borracha aplicado num ma-nequim. uma das vítimas afirma na imprensa (correio da manhã, 22 de novembro): “estive duas noites sem dormir e nunca fui tão humilhado”. outubro de 2004a revista Grande reportagem publi-ca um artigo em que revela a morte, em circunstâncias estranhas, de um membro de uma tuna da universida-de lusíada de Famalicão. “morte na tuna” ou “vítima da praxe” são títu-los da responsabilidade da jornalista Felícia cabrita, que pretendem dei-xar clara a sua tese: diogo macedo foi assassinado, pelos seus colegas, numa “praxe” da tuna.

novembro de 2004o processo judicial da ana sofia damião chega à fase decisiva. o juiz responsável pelo processo declara não haver razões para o julgamen-to, alegando-se que a aluna, ao ter participado nas praxes, o teria feito com consentimento, sem se declarar anti-praxe. agosto de 2006ana sofia damião avança com um processo cível contra o piaget de macedo de cavaleiros. perdido o processo-crime contra os agresso-res, tenta agora responsabilizar a escola, exigindo 70 mil euros pelos “danos morais e patrimoniais” de-correntes do caso. é a primeira vez que uma faculdade se vê obrigada a defender-se em tribunal pela sua negligência e conivência com as vio-lências da praxe. outubro de 2006no porto, uma estudante apresenta queixa na psp contra uma agressão por um grupo de estudantes e uma ameaça de agressão por parte de dois estudantes, recorrendo a uma colher de pau de grandes dimensões utiliza-da na praxe.a reitoria da universidade de avei-

ro proíbe as praxes no interior do “campus”, na sequência de “exces-sos” que obrigaram à hospitalização de uma aluna. E lança um ultimato: ou se regulamentam as praxes ou são simplesmente proibidas. maio de 2007a imprensa relata o caso de um alu-no da Faculdade de medicina da universidade de coimbra que terá sido ferido no escroto durante um “rapanço” e de outro que teria vá-rios ferimentos no crânio resultante de lhe terem rapado o cabelo. Esta sanção terá sido deliberada por um tribunal de praxe. as vítimas de-cidem não avançar com queixa para além dos organismos das praxes. novembro de 2007a comunicação social dá conta do caso de dois estudantes que ficaram gravemente feridos em iniciativas ligadas à praxe. um deles ficou pa-raplégico.

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do um total de 38 contributos. as respostas e propostas apresentadas não permitem estabelecer diferenciações em termos da natureza institucional de ensino (público ou privado), verificando-se todavia que as associações de estudantes tendem a assumir uma posição de maior defesa das práticas e dos princípios subjacentes às pra-xes académicas, sublinhando de modo tendencialmente mais enfático a sua importância na integração dos novos alunos nas diversas instituições.

aliás, o papel das praxes académicas na integração escolar e até social dos alunos em novos contextos é referido pela larga maioria das instituições, sendo to-davia consensual a rejeição de toda e qualquer prática que – neste âmbito –, contrarie os princípios do respeito pela dignidade da pessoa humana, pela sua integridade física e psicológica e recuse o pressuposto da liberda-de de opção de cada aluno quanto à decisão de aderir às actividades de praxe académica. com efeito, mesmo no caso de perspectivas mais favoráveis à existência de praxes académicas e inclusivamente nos casos em que se defende a necessidade da sua preservação, não deixa de ser reconhecida a gravidade dos abusos e reconhecido o risco latente de ocorrências, sendo em regra veemente a sua condenação.

as respostas dos órgãos directivos das instituições de ensino superior e das associações de estudantes que acederam a apresentar os seus pontos de vista sobre estas matérias (ver documentos em anexo), tendem a focalizar-se num conjunto delimitado de questões. Em primeiro lugar, é reconhecida a existência de praxes académicas na generalidade das instituições, sendo que apenas num número muito reduzido de casos estas ac-tividades alegadamente não têm lugar, em virtude de

se encontrarem proibidas pelos respectivos órgãos de gestão.

nas funções sociais e relacionais desempenhadas pelas praxes académicas, é claramente destacado, na generalidade das respostas, o seu suposto papel inte-grador. trata-se, nestes termos, não só de uma forma muito específica de integração escolar dos novos alunos (conhecimento dos colegas através de lógicas induzi-das de convívio, estabelecimento de laços relacionais, etc.), mas igualmente – num menor número de casos –, da integração dos alunos no novo contexto social (no-meadamente quando as actividades de praxe académica incluem práticas de apoio na obtenção de alojamento, recursos escolares, etc.). a questão da tradição subja-cente às praxes académicas é igualmente invocada, num número restrito de casos, enquanto parte integrante do património cultural das instituições de ensino superior, defendendo-se por conseguinte a necessidade da sua preservação.

a questão mais inquietante que as instituições de ensino superior e as associações de estudantes colocam reside, por conseguinte, nas situações de particular abuso e violência. a generalidade das respostas obtidas aponta, neste sentido, para a inexistência ou afirmação de desconhecimento de situações concretas nos tempos mais recentes, ou seja, para uma ausência de queixas e denúncias concretas por parte dos alunos, sobretudo que encerrem circunstâncias de manifesta gravidade. contudo, nos casos em que houve participação de alu-nos decorrente da ocorrência de práticas que sinalizam práticas de relativo abuso, é em regra afirmado que os mesmos foram sanados pelos órgãos, instâncias ou pro-cedimentos internos estabelecidos para o efeito.

os mecanismos actualmente vigentes nas institui-ções de ensino superior e associações de estudantes que responderam à solicitação da comissão de Educação, ci-ência e cultura, e que se referem aos modos instituídos de regulamentação, gestão e decisão perante situações de abuso e violência resultantes das praxes académicas, configuram algumas tendências que importa assinalar.

Em primeiro lugar, tende a ser prevalecente o enten-dimento de que as praxes académicas e a gestão concre-ta das situações de transgressão das normas instituídas (designadamente nos códigos da praxe existentes, mas igualmente em regulamentação emanada pelos órgãos de gestão), deve caber às comissões de praxe ou, em me-nor grau, às associações de estudantes que promovam actividades de recepção dos novos alunos. no estabele-cimento destes mecanismos, é considerado por algumas instituições, enquanto boa prática, o estabelecimento de contactos regulares entre os órgãos de gestão das insti-tuições e os organismos que assumem a responsabilida-de pela execução das próprias praxes, de modo a clarifi-car procedimentos, evitar cenários que possam conduzir a situações abusivas e, em alguns casos, proceder a um escrutínio prévio (por parte dos órgãos de gestão), dos programas e actividades de recepção aos novos alunos, concebidas pelas associações de estudantes ou comis-sões de praxe.

os mecanismos de gestão interna das praxes aca-démicas são assim prevalecentes, embora em situações que configurem práticas susceptíveis de enquadramento criminal, se defenda claramente o recurso à justiça e aos tribunais, posição que tende a ser expressa de modo mais inequívoco pelos órgãos de gestão das instituições de ensino superior. aliás, é perceptível, no conjunto de

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respostas, o intuito, por parte dos órgãos de gestão, em situar as praxes académicas num espaço que, de algum modo, seja exterior, ou em certa medida paralelo, à pró-pria instituição. num conjunto significativo de casos encontram-se proibidas as actividades de praxe no inte-rior das instalações das instituições de ensino superior, dando assim a entender-se que tais práticas não fazem parte do seu funcionamento instituído regular, ocupan-do nessa medida um espaço que é envolvente, exterior, não institucionalmente assumido.

Em casos mais extremados, e que são aparentemen-te muito raros se considerarmos as respostas obtidas como representativas do total de instituições de ensino superior, os órgãos de gestão decretam a proibição abso-luta das praxes académicas ou expressam a discordância relativamente à sua existência. noutros casos, em que a exterioridade das praxes académicas às instituições é de algum modo defendida e assumida, sustenta-se a des-necessidade da sua regulamentação interna, entenden-do-se desse modo que as situações de infracção e abuso têm um enquadramento criminal (respeitando a ataques à integridade física e psicológica dos novos alunos) e devem, portanto, ser tratadas e resolvidas nas devidas instâncias judiciais. aliás, entende-se neste sentido que nem os processos de proibição, nem a regulamentação interna das praxes académicas se adequa a um princípio de educação para a cidadania, pelo que os alunos que se considerem vítimas de actos que ferem a sua dignidade e integridade devem accionar autonomamente os meca-nismos que a lei coloca ao seu dispor.

numa variante desta perspectiva, mas que pode assumir contornos de maior ou menor exterioridade institucional, é defendida a instituição de mecanismos

que facilitem o acesso à justiça, designadamente atra-vés da criação do provedor do estudante. nuns casos, o provedor do estudante é entendido num sentido inter-no, ou seja, a pessoa a quem os alunos, que consideram ser vítimas dos abusos praticados no âmbito das praxes académicas, se podem dirigir, podendo nestes termos contar com o seu apoio para accionar os mecanismos ou a intervenção dos órgãos responsáveis pela análise e aplicação de sanções face a essas mesmas infracções. noutros casos, o papel do provedor pode ser o de apoiar os alunos no acesso ao sistema judicial, sobretudo se as situações em apreço assumirem contornos susceptíveis de enquadramento criminal.

a concertação de procedimentos entre órgãos de gestão, associações de estudantes e comissões de praxe é assim vista como uma boa prática no combate às situ-ações de abuso, permitindo estabelecer, de forma con-sensual, as regras, procedimentos e sanções a atribuir, e que em regra oscilam entre a repreensão dos infractores e a sua expulsão do estabelecimento de ensino superior.

noutros casos, os órgãos de gestão entendem dever assumir posições de maior pró-actividade, criando regu-lamentos, códigos de procedimento, normas e instâncias

de resolução das situações atentatórias dos direitos e da dignidade dos novos alunos. nestes casos, a proble-mática das praxes académicas é assim partilhada – em termos de esfera de acção e responsabilidade –, entre os órgãos de gestão das instituições e as comissões de praxe ou associações de estudantes, configurando por vezes situações de duplo quadro regulamentar, na me-dida em que, vigorando códigos da praxe que têm um âmbito circunscrito ao universo dos estudantes, das suas organizações e da esfera das praxes académicas, são definidos mecanismos de regulamentação adicional, com valor jurídico institucionalmente mais relevante, que procuram colmatar a insuficiência ou ineficácia das formas de auto-regulação das praxes.

as orientações e perspectivas das instituições de en-sino superior que responderam ao repto da comissão de Educação, ciência e cultura da assembleia da re-pública, sobre as praxes académicas, podem assim ser enquadradas em três tipologias essenciais. por um lado, o entendimento de que a legislação criminal vigente, designadamente em matéria de ofensas à integridade física e psicológica é suficiente, pelo que as instituições de ensino superior se devem abster de criar regulamen-

nem os Processos de Proibição, nem a regulamentação interna das

Praxes académicas se adequa a um PrincíPio de educação Para a

cidadania, Pelo que os alunos que se considerem vítimas de actos

que ferem a sua dignidade e integridade devem accionar

autonomamente os mecanismos que a lei coloca ao seu disPor.

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tação própria, aplicável internamente às situações de-nunciadas de abuso e violência.

Em segundo lugar, um entendimento que sustenta a necessidade de criação e instituição de regras, formas de regulação e de gestão interna dos conflitos, processos em que os órgãos de gestão das instituições assumem um papel activo, e que vão desde a simples proibição das actividades de praxe académica até ao estabelecimento de mecanismos e instâncias nas próprias instituições, incumbidas de analisar e sancionar as práticas abusivas, bem como viabilizar formas de encaminhamento de pro-cessos para o sistema judicial.

por último, o entendimento de que as praxes acadé-micas são um universo autónomo e em certa medida ex-terior às próprias instituições, dotado de uma natureza autónoma face a estas e que, por conseguinte, deve ser auto-regulado no interior das fronteiras desse mesmo universo. trata-se de considerar uma espécie de regime autonómico da praxe académica no seio das instituições de ensino superior, perante o qual os órgãos de gestão se devem abster de intervir, sendo sublinhado o facto de caber aos organismos da praxe e aos próprios alunos o estabelecimento dos mecanismos necessários a prevenir, regular e sancionar as situações de abuso.

conclusões e ProPostasa praxe corresponde a um conjunto de práticas mui-

to diversas no seu conteúdo, variáveis de instituição para instituição e com uma implementação ora antiga ora recentíssima. Em comum, as praxes têm o facto de se integrarem num conjunto codificado de relações de autoridade entre alunos e, normalmente, numa estrutu-ra de órgãos que as praticam, supervisionam as activida-

des que nelas se integram e têm poder de sanção sobre situações de desrespeito por esses códigos. acontece que, de facto, esses mesmos códigos da praxe não têm valor legal nem legitimação democrática.

desse ponto de vista, as situações de violência na praxe existem porque há uma estrutura de relações que as sustentam e que, baseando-se na obediência dos mais novos em relação aos mais velhos e na sujeição daqueles às ordens destes, abre espaços para o abuso e a violência. a praxe constitui, num elevado número de instituições, a única forma organizada de receber os estudantes no ensino superior. o facto de grande parte das institui-ções se terem demitido de criar espaços igualitários de recepção ao novo aluno levou a que a praxe se impusesse como obrigatória, na prática, para muitos estudantes. a desinformação e a inacção reforçaram essa hegemo-nia e a ausência de regulação teve como consequência a instituição de um conjunto de práticas não sujeitas a discussão nem a mecanismos de intervenção fora dos órgãos da própria praxe. Esta ausência fez com que as situações de violência praxista em portugal se tenham vindo a banalizar, muitas vezes com a complacência e a cumplicidade das próprias instituições e dos seus órgãos directivos, em muitos casos assim responsáveis pela au-sência de medidas concretas e, nas escolas, pela ridicu-larização de quem denuncia as agressões.

Em Fevereiro de 2006, um estudo realizado pela utad, já anteriormente citado, revelou que a maioria dos alunos considera que a praxe “dura demasiado tem-po, é intensa, degradante, cansativa e prejudicial para a organização da vida pessoal e do estudo”. numa inves-tigação de maio do mesmo ano, referida anteriormen-te, e levada a cabo pelo centro de Estudos sociais da

Faculdade de Economia da universidade de coimbra, o inquérito realizado mostrou que 72% dos estudantes consideravam que “a praxe deve ser facultativa e respei-tar quem não quiser aderir”, sendo de 68% o peso per-centual dos alunos que consideram dever “repudiar[-se] qualquer forma de violência física ou simbólica”. além disso, 52% consideram que a praxe académica “deve ser revista, de forma a receber melhor os novos alunos”. Estes dados exigem reflexão e convocam a ac-ção pedagógica e política para garantir que ninguém se submete à praxe devido à inexistência de alternativas, ou por falta de informação, lutando assim para que mais nenhum aluno do ensino superior seja vítima de violên-cia no âmbito das actividades praxistas.

para isso, é preciso sublinhar-se a devida responsa-bilidade, das instituições e do próprio ministério da ci-ência e do Ensino superior, na promoção da visibilidade pública em relação a normas instituídas nesta matéria, fomentando uma cultura de democracia e de igualdade nas escolas do ensino superior, e que por conseguinte rejeite “culturas” de obediência e de discriminação, que originam muitos dos abusos que acontecem no âmbito da praxe.

mediante o diagnóstico que é possível traçar a partir das informações prestadas pelas escolas do ensino supe-rior, órgãos de gestão e associações de estudantes, e co-nhecendo o contexto dos casos de violência nas praxes que acabaram por chegar a conhecimento público – bem como o seu desfecho e consequências para as vítimas –, consideramos que é necessário avançar com propostas concretas que permitam melhor conhecer a realidade, criar mecanismos que quebrem o isolamento e facilitar as denúncias, bem como evitar que as próprias institui-

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ções legitimem as práticas de violência praxista.assim, consideramos prioritária a concretização das

seguintes medidas:

1. realização de um estudo nacional sobre a rea-lidade da praxe em Portugal, levado a cabo por uma equipa multidisciplinar independente de um centro de investigação de uma universidade pública de compro-vada idoneidade, com metodologias diversificadas e que produza conhecimento acerca das práticas de praxe académica nas instituições e em relação às representa-ções sociais que sobre ela têm estudantes, professores e funcionários. Este estudo deverá ser financiado pelo ministério da ciência e do Ensino superior e os seus resultados tornados públicos e acessíveis online.

2. criação de uma linha telefónica nacional e gra-tuita para alerta, denúncia e atendimento dos estu-dantes, sob a responsabilidade de profissionais devida-mente preparados, quer em matéria de apoio jurídico, quer em termos de apoio psico-social.

3. criação de equipas de apoio aos estudantes em cada cidade onde existam instituições de ensino su-perior, que deverão disponibilizar recursos de acom-panhamento psicológico e jurídico aos estudantes que solicitem apoio e que denunciem situações através da linha telefónica.

4. Edição de um folheto informativo sobre a pra-xe, que clarifique a não obrigatoriedade de participação na praxe por parte dos alunos, que contenha um enun-ciado dos direitos garantidos a qualquer pessoa no que respeita à sua integridade física e psicológica, e que di-

vulgue a linha telefónica nacional. O folheto deverá ser distribuído no acto das candidaturas, juntamente com cada formulário de inscrição, a todos os alunos que se candidatem ao ensino superior.

5. os órgãos directivos das escolas devem assu-mir uma postura que não legitime as práticas de praxes violentas, nomeadamente incluindo – nas ceri-mónias oficiais de apresentação da escola (sessões de re-cepção ao novo aluno, cerimónias de abertura oficial do ano lectivo) –, apenas os representantes dos organismos que compõem a estrutura de governação das institui-ções e os órgãos formal e legitimamente reconhecidos como representantes dos estudantes (o que exclui, neste contexto, as comissões de praxe).

6. A sistematização e divulgação activa de boas práticas, por parte do ministério da ciência e do En-sino superior, considerando para esse efeito iniciativas desenvolvidas por algumas instituições de ensino e cujo mérito a sua aplicação tem vindo a comprovar.

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o tEma dos movimEntos Estudantis tEm vindo a perder interesse à medida que, ao longo das úl-timas três décadas, se vem desvanecendo a ideia de uma contracultura de rebeldia associada, desde a década de 1960, à juventude universitária. na verdade, a heran-ça histórica desse legado geracional, até por ter sido em boa medida veiculada por alguns dos seus antigos protagonistas, acabou por dar lugar a uma espécie de “congelamento” de uma unidade imaginária dessa ge-ração em torno do chamado “espírito de 68”, com isso construindo uma identidade histórica fictícia e dotada de um peso desmesurado, que se tornou impossível de suportar pelas gerações posteriores1 .

Esse processo de reconstrução ficcionada do passado caminhou de par com as novas tendências de mudan-ça sociopolítica no ocidente. assistiu-se, na fase final da “guerra fria”, a processos de institucionalização, in-dividualização, crise e fragmentação do Estado social e das economias nacionais, ao triunfo da globalização neoliberal, ao desmoronamento do modelo socialista e à implosão das utopias que, nos anos 60, animaram os movimentos sociais e estudantis. mas, apesar de a nova realidade ter pulverizado muitos dos idealismos em tor-no de uma mítica “rebelião mundial” promovida

pelo radicalismo da classe média estudantil dos six-

ties, a sua herança continuou a fazer história, fosse pelas sucessivas releituras que suscitou em torno de novos ac-tivismos e movimentos progressistas (feministas, paci-fistas, ambientalistas, etc.), fosse pelos novos rumos que o capitalismo tomou sobretudo após o colapso soviético. tiveram uma influência marcante quer no plano cultu-ral, quer no plano político, contaminando os modos de vida de sucessivas gerações e as formas de acção colec-tiva de velhos e de novos movimentos e abrindo espaço a novas concepções, linguagens e referências ideológicas no plano social e institucional2.

os movimentos de há quarenta anos introduziram rupturas que ainda hoje se repercutem em múltiplos domínios. pode dizer-se que os padrões de gosto desen-cadeados a partir dos movimentos juvenis dos anos 60 no ocidente – no plano estético, no vestuário, na música, nos interesses literários e intelectuais, na expressão da sexualidade, etc. – não só alteraram o quotidiano e os modos de vida das gerações seguintes como dotaram a esfera pública e política de novos contornos. a impor-tância da chamada crítica artística3 inseriu-se no proces-so de desconstrução culturalista4 que esses movimentos imprimiram, alterando, até certo ponto, a própria natu-reza do capitalismo, apesar das respostas que se segui-ram – ou por causa delas – sob a acção canibalizadora

das instituições e do mercado, abrindo caminho a novos valores e novas modalidades de acção colectiva, não ape-nas no mundo desenvolvido, mas na escala internacio-nal5. por outro lado, sobretudo após a queda do muro de berlim e o consequente colapso do império soviéti-co, esbateram-se largamente as ideologias que durante mais de um século inspiraram os principais movimentos sociais sob formas de acção colectiva inspiradas em mo-delos utópicos de cariz emancipatório. no quadro deste processo, as novas tendências do capitalismo global vêm colocando novos obstáculos e desafios à acção colectiva, esgotando, em larga medida, os “velhos” movimentos e, ao mesmo tempo, estimulando novas redes e formas mais fluidas de “alterglobalização” e de activismo no “ciberespaço” onde importantes segmentos juvenis in-tervêm permanentemente6 .

o propósito da presente abordagem não é tanto o de uma discussão sobre os movimentos sociais e polí-ticos da juventude estudantil, mas antes o de chamar a atenção para a dimensão cultural das atmosferas de sociabilidade dos estudantes, de onde em geral emana o seu sentido de rebeldia. assim, começarei por apre-sentar uma breve reflexão sobre a construção da juven-tude como categoria social e as recentes tendências de incerteza e imprevisibilidade que marcam hoje as sub-

movimentos e culturas estudantis*

elísio estanque | Professor do centro de estudos sociais da faculdade de economia da universidade de coimbra.

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jectividades juvenis, bem como sobre as experiências e vivências dos jovens universitários, ou alguns sectores minoritários de estudantes, associadas à boémia e que decorrem sobretudo na esfera informal do quotidiano.

desde a revolução industrial e ao longo da primeira modernidade, as sociedades ocidentais construíram o Estado-nação e promoveram a organização dos merca-dos e economias nacionais com base na ideia de progres-so e de planeamento, procurando responder à exigência de controlo do futuro e de regulação das expectativas. o crescimento económico do pós-guerra permitiu sus-tentar um Estado social que favoreceu importantes transformações e conquistas sociais, mas, ao mesmo tempo que procurava programar o futuro, contribuiu, paradoxalmente, para proporcionar uma viragem de paradigma que fez emergir diversas perversões e en-tropias no sistema, dando lugar a novos protagonistas e movimentos anti- -sistémicos que, embora clamando por um “futuro agora”, acrescentavam novas incertezas que mais tarde culminaram na “crise do futuro”7.

Foi nesse quadro que a juventude se impôs como categoria social, intimamente associada à expansão do sistema de ensino em todos os seus níveis, incluindo o universitário. mas, se o acesso à educação e o progressi-vo aumento da escolaridade levaram a um alargamento cada vez maior do período de formação e, portanto, da fase de transição para a vida adulta, tal não implicou uma absoluta homogeneidade entre os jovens. de resto, se o fenómeno juvenil mereceu inicialmente a atenção dos teóricos, assinalando os seus traços convergentes enquanto geração8, foi, por outro lado, também subli-nhada desde cedo a sua heterogeneidade, rejeitando-se, assim, a existência de uma “juventude” enquanto en-

tidade uniforme, tendo ficado célebre a expressão de bourdieu “la jeunesse n’est q’un mot”9. Quer em termos sociais mais gerais, quer no caso da juventude univer-sitária, os pontos de aproximação ou de clivagem entre diferentes segmentos juvenis não devem, porém, ser considerados em absoluto.

dependendo do nível de análise adoptado e do pró-prio objecto de estudo, será sempre possível observar tanto convergências como divergências no seio de uma dada população ou numa mesma camada geracional. a própria mudança social em curso nas últimas décadas tem obrigado a rejeitar não só o critério etário – que, de resto, a sociologia sempre recusou10 – mas até a ideia de “transição para a vida adulta”, isto é, de um período instável associado a uma semi dependencia (ou semiau-tonomia) correspondente a uma fase da trajectória evo-lutiva entre a família de origem e a de chegada, tem sido objecto de discussão e é hoje questionada pela maioria dos sociólogos11.

é certo que, no caso particular da juventude uni-versitária, a suposta homogeneidade pareceu facilmente sustentável, sobretudo enquanto o acesso a este nível de ensino foi exclusivo das elites. todavia, também a aná-lise deste segmento – especialmente com a chegada de novos contingentes de jovens das mais diversas proveni-ências sociais – requer novas reformulações conceptuais que permitam um melhor ajustamento ao seu carácter mais complexo e heterogéneo, antes de mais por se ter tornado desadequada a ideia de que a frequência do ensi-no universitário prenunciaria o acesso, no passo seguin-te, a uma situação profissional cujo status seria compatí-vel com o título académico “superior”. ao mesmo tempo, importa realçar que as vivências do percurso universi-

tário são, como sempre foram, diferenciadas. ainda que hoje se possa falar de uma universidade “massificada”, continuam presentes segmentos particulares de estu-dantes cujas práticas, subjectividades e orientações se pautam por padrões de vida e valores alternativos, dis-tintos da maioria (e internamente diversificados).

para alguns sectores estudantis, não é tanto a apren-dizagem adquirida nas bibliotecas e salas de aula, mas sim as experiências adquiridas fora da instituição e em torno dela, que mais claramente irrigam as suas poten-cialidades formativas, criativas e subversivas. é provável que as modalidades clássicas de “boémia” e “tertúlia” estejam em vias de extinção ou a sofrer profundas alte-rações. mas, até pelo simbolismo que transportam, vale a pena tê-las em conta a este propósito. o estilo de vida boémio que floresceu em redor dos principais centros urbanos a partir do século XiX12 com as suas conota-ções com a vagabundagem, a errância, o descomprome-timento e a irreverência ou, por exemplo, a cultura do riso carnavalesco, a imagem subversiva do corpo grotesco, das celebrações populares da época renascentista, pro-jectadas na apologia da algazarra, do consumo de álcool e da promiscuidade sexual13 ilustram alguns contornos dos ambientes estudantis que ao longo da idade média germinaram nas antigas “nações”, nos pubs e taverns das cidades universitárias da Europa14.

no caso de coimbra, as repúblicas estudantis, com as suas formas alternativas de organização, de convívio, festa e de encontro com o desconhecido deram igual-mente expressão a esse modo de vida15. por isso, consti-tuem uma dimensão importante da análise do universo estudantil, quer para captar formas específicas da cul-tura académica, quer para ajudar a traçar a diversidade

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de lógicas e comportamentos que compõem, ainda hoje, a população universitária da cidade.

é evidente nos dias que correm a enorme diversida-de social entre a população universitária, inscrevendo-se a sua recomposição num processo de redefinição da es-tratificação social dos estudantes, dada a presença cres-cente de filhos das classes trabalhadoras e o aumento da oferta (e procura) dos cursos de pós-graduação16 . uma redefinição que acompanha as actuais tendências de flui-dez e de imprevisibilidade, inscrevendo-se, portanto, a vivência do presente em percursos e trajectórias pesso-ais cada vez mais incertos17. a própria ideia de projecto como antecipação de um futuro distante parece deparar-se com lógicas e subjectividades que a recusam, aparen-temente por se inserirem em biografias de novo tipo, desvinculadas da noção de projecto e marcadas pela ex-perimentação e pelo nomadismo. segundo a. melucci, os “nómadas do presente” não perseguem um objectivo, antes avançam envoltos no provisório, rodeando lugares não conectados, passando por estações singulares das suas biografias e experimentando sucessivas aplicações de recursos e talentos em que o sucesso possível de-pende mais da própria mobilidade e procura do que da acomodação a uma meta previamente estabelecida18.

numa época de riscos globais, como a presente, a incerteza ganhou um alcance universal e, por isso, dei-xou de ser entendida como governável a partir de uma qualquer racionalidade instrumental19. a colonização do

futuro projectado pelo presente, como se de um destino imponente se tratasse, tornou-se, nos planos individual, político e social num cenário pintado de tintas foscas. uma ideia de futuro que a actual juventude, ao contrá-rio das gerações precedentes, não consegue antever nem porventura deseja perscrutar . porque a constru-ção subjectiva do futuro, alimentada por experiências – próprias ou alheias – de frustração e descompensação, além de contornos obscuros e indefinidos, é rodeada de sentimentos difusos de alarme e de insegurança. onde os “novos” movimentos sociais dos anos 60 e 70 viam a possibilidade de uma “terra prometida”, as sociabili-dades estudantis de inícios do século XXi desenham-se sob horizontes sombrios. as viragens ainda em curso no sistema universitário, na esfera política e no campo do emprego estão a marcar profundamente a actual gera-ção, acentuando essas perplexidades.

as tendências de fragmentação, de individualização e desligamento social, de diluição dos velhos laços co-lectivos, da comunidade, da família, etc., recolocam em novos moldes o processo – hoje amplamente aceite – de prolongamento do estatuto de “jovem”, e consequente adiamento ou talvez recusa da condição de “adulto”. pe-rante o panorama geral de divórcio dos cidadãos face ao sistema político democrático e de relativo esvaziamento da esfera pública, as possibilidades de ancoragem e de partilha colectiva das experiências vividas pelos jovens ao longo das suas trajectórias (em espaços de sociabili-

dade e estruturas organizadas, incluindo as instituições sociais e políticas) vêem-se, assim, fortemente constran-gidas. por outro lado, quer as trajectórias fragmentadas, quer as metamorfoses que têm atingido os sistemas de emprego, têm igualmente condicionado o aparente dis-tanciamento dos jovens em relação aos movimentos so-ciais e associativos. as transições múltiplas deixaram de ser uma sucessão linear de etapas até à vida adulta, po-dendo as trajectórias biográficas tornar-se reversíveis, e em larga medida aleatórias, com milhares de jovens deambulando num vai e vem entre o sistema de ensino e o emprego ou “biscate” precário, numa espécie de “ge-ração yô yô”, como notou J. machado pais20.

nestas circunstâncias, aquilo que comummente é tomado por individualismo, ainda que objectivamente se constate o afastamento ou indiferença dos jovens pe-rante a acção política e associativa, não pode deixar de ser situado no seu devido contexto. a erosão de diver-sos marcos de referência que prevaleciam em gerações passadas, tanto na relação familiar e no percurso escolar como nos processos de socialização política, repercutiu-se, naturalmente, no plano cultural e ideológico que no passado não muito longínquo serviram de fio condutor a diversos sectores estudantis, mais ou menos politiza-dos, mais ou menos familiarizados com os meios cultu-rais e as atmosferas de rebeldia académica21.

retirado de elísio estanque “Jovens, estudantes e ‘rePúblicos’: culturas estudantis e crise do associativismo em coimbra”, revista crítica de ciências sociais, 81, Junho 2008: 9-41.

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a contra-revolução no ensino suPerior

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a contra-revolução no ensino suPerior hugo ferreira | estudante da faculdade de direito da universidade de coimbra.

a EXprEssão contra-rEvolução traduZ a ideia de retrocesso social, concretizado através da reposição histórica de um determinado modo de orga-nização de vida comunitária, precedente a um período revolucionário e substituído por este. de facto, com a revolução de 25 de abril de 1974, deu-se uma trans-formação radical na sociedade portuguesa, não só com a restituição das liberdades democráticas básicas (liber-dade de expressão, liberdade de imprensa, etc), mas so-bretudo com o entendimento socialmente prevalecente, segundo o qual uma democracia pressupõe que ineren-tes àquelas liberdades estejam os direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, à protecção no trabalho e na velhice, entre outros.

com efeito, foi esse o caminho trilhado pela consti-tuição portuguesa de 1976. só a àrea da saúde poderá, talvez, rivalizar com os avanços alcançados em matéria de educação. nesta última, por mais longo que pudesse parecer o percurso, a ideia firmada no período revolu-cionário era a de destruir todas as barreiras existentes no acesso à educação a todas as classes sociais. a edu-cação, dizia-se naquele tempo, “deveria constituir um desígnio nacional”. a qualificação dos cidadãos era in-terpretada como condição necessária do progresso do país e do consequente aumento da qualidade de vida das populações.

é sabido que o sistema capitalista gera, pela sua pró-pria natureza, injustiças sociais gritantes e nesse senti-do, metido que foi o socialismo “na gaveta”, importava criar um sistema de acção social escolar que permitisse atenuar aquelas injustiças no acesso ao ensino. assim aconteceu durante algum tempo.

a contra-revolução na educação expressa precisa-mente a desistência da elite dirigente, leia-se ps, psd e cds, em corrigir aquelas injustiças sociais, em particu-lar no Ensino superior, com a introdução das propinas na década de 90 do século passado, com a implementa-ção do processo de bolonha e do novo regime Jurídico das instituições do Ensino superior (rJiEs) já durante a primeira década do novo milénio. daí até à promoção dos empréstimos bancários a estudantes, entenda-se ao seu endividamento precoce, e ao decreto-lei 70/2010, foi apenas uma questão de tempo. mais do que desistir daquele desígnio, os sucessivos governos empenharam-se gradualmente em promover a cultura da injustiça no acesso à educação.

reflectir, ainda que de forma sumária, sobre cada uma das “contra-reformas” introduzidas no Ensino superior e a “passadeira vermelha” estendida pelo mo-vimento estudantil, em quase todas elas, é o que me proponho a fazer. centrar-me-ei essencialmente sobre o período que decorre entre 2003 com a lei que estabele-

ceu a diferenciação entre propina máxima e mínima, até ao dia 12 de março de 2011, data da manifestação das “Gerações à rasca”. por ser estudante da universidade de coimbra (uc) e por não ter realizado um trabalho in-tensivo de investigação, compreender-se-á que o centro da análise passe, a maioria das vezes, pela experiência que tenho do movimento estudantil de coimbra.

da ProPina máxima/mínima às invasões do senado da universidade coimbra

Quando foi feito o anúncio de que no Ensino supe-rior público se iriam pagar propinas, os responsáveis governativos esforçaram-se por explicar que a propina teria um valor reduzido e simbólico, servindo apenas “para contribuir um pouco para as despesas com educa-ção”. o objectivo era claro: conter a revolta estudantil.

com efeito, no ano lectivo de 1992/1993 a propina estava fixada em cerca de 1200 escudos (6,5 euros) , ten-do passado no ano lectivo seguinte para o valor de 150 mil escudos (750 euros). sucederam-se as manifestações de contestação contra esta subida, de que são exemplo as “bastonadas” dadas pela polícia aos estudantes em protesto em frente da assembleia da república em 1994.

Foi contudo durante o período que coincide com o fim do Governo de cavaco silva e a entrada em funções

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dos executivos de antónio Guterres (1995-2002) –dois anos após com a lei 113/97 de 16 de setembro indexa-das ao salário mínimo nacional- e durão barroso (2002-2005) que se deu a subida mais acentuada no valor das propinas. a este factor não será alheio o desfalecimento gradual do movimento estudantil português durante aquele período...

Em 2003, sob a égide do governo de direita (psd/cds), o ministro da ciência e Ensino superior, pedro lynce, anuncia um conjunto de proposta de revisão da lei de bases do sistema de Educativo (lbsE) e do fi-nanciamento do ensino, que concretizam a diferencia-ção entre propina máxima (770 euros) e propina mínima (463 euros), consagrando uma subida de 30% do valor das propinas. a resposta dos estudantes não demorou, tendo sido convocada uma greve geral na uc para dia 14 de maio e aprovada em Encontro nacional de diri-gentes académicos (Enda) uma greve geral do Ensino superior para dia 22 do mesmo mês. Em coimbra, os es-tudantes eleitos para o senado universitário promovem a ausência de quórum, remetendo o valor da propina para o mínimo estabelecido por lei.

Em 2004, temendo a fixação da propina no seu va-lor mais elevado, os estudantes invadem o senado por duas vezes. durante a segunda invasão, a 20 de outubro desse ano, o reitor seabra santos, quebrando um prin-cípio que vinha desde a revolução de abril, convoca as autoridades policiais para o espaço universitário, repri-mindo severamente os estudantes ali presentes. alguns são inclusivamente detidos. os estudantes cortam rela-ções com o reitor e só 3 anos e meio depois se dá o seu reatamento.

rJies e bolonha “é tudo uma vergonha”

a lógica de elitização do Ensino superior, por via da exclusão por motivos económicos dos estudantes mais carenciados, teve no rJiEs e na implementação do pro-cesso de bolonha dois dos principais capítulos.

para se perceber bem o que primeiro representava e o modo como foi imposto, atente-se no texto de uma pe-tição pública promovida pelo movimento “parar a lei”:

“a recente proposta do governo de um novo rJiEs, constitui uma profunda alteração da con-cepção do sistema de ensino, quer da sua estru-tura e modo de funcionamento, quer da sua na-tureza e função na sociedade em que vivemos. pela sua importância, uma tal proposta deverá ne-cessariamente obrigar à participação de todos os que constituem a comunidade académica: funcio-nários, estudantes, investigadores e professores. Em face do calendário adoptado pelo governo, que implica a discussão e aprovação do presente diploma legal no próximo dia 28 de Junho na ar, tal expec-tativa será completamente gorada. é inadmissível que o essencial da discussão tenha lugar durante o período de exames que antecede as férias de verão, comprometendo de um modo decisivo a participa-ção exigente e rigorosa de uma boa parte do corpo docente e da quase totalidade dos estudantes.

2. a gravidade do que está em jogo não se esgota na questão metodológica comportando, para além desta, um fundado receio de que a nova proposta de rJiEs possa pôr em causa a autonomia das institui-ções de Ensino superior, desvirtuando aspectos fun-damentais da natureza plural do seu funcionamento.

a colegialidade inerente à governação das uni-versidades é substituída por um conselho Geral, diminuindo drasticamente a representação e parti-cipação de estudantes e acabando na prática com a representação de funcionários não docentes. o cG terá no mínimo 30\% de personalidades de reco-nhecido mérito externas à instituição, de entre as quais se elege o presidente deste órgão de gestão. caberá ao cG definir as linhas estratégicas de orientação e gestão das universidades, incluindo competências de natureza científica, pedagógica e académica, como seja a abertura dum concurso público para nomeação do reitor, que substitui o actual sufrágio pelos três corpos que compõem a universidade.

3. a possibilidade de transformação de ins-tituições de Ensino superior público em Fun-dações públicas de direito privado, administra-das por um conselho de curadores externos à instituição e nomeados pelo governo, remete fortemente para um quadro de governamenta-lização e empresarialização das universidades. Qual a verdadeira margem de manobra, em insti-tuições de direito privado, para prosseguir linhas estratégicas de orientação em função de critérios que não sejam eminentemente economicistas? Que espaço para áreas não tecnológicas como as ligadas às ciências puras ou às ciências sociais? o Ensino superior não pode ser tutelado pe-los princípios de funcionamento do mercado. pelo contrário, deve um serviço público fundamen-tal para o desenvolvimento do país, integrado na administração autónoma do Estado, e regido pelo

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direito público 4. por estas razões, os signatários apelam à as-

sembleia da república pelo alargamento do prazo de consulta e discussão da posposta do governo do novo rJiEs, até início do ano 2008. ”

o conteúdo da petição fala por si. os senados uni-versitários assumiram-se como um órgão consultivo e o conselho Geral (cG) assumiu o papel principal como órgão de governo das universidades. a tudo isto acresce a obrigatoriedade de o cG ser integrado por elementos externos à universidade, a tal “abertura à sociedade ci-víl” que se pautou, na verdade, pela entrada de empresas na gestão das universidades e a consequente, subordi-nação dos interesses destas a critérios economicistas, baseados no lucro. o novo regime consagrou igualmen-te a possibilidade de passar as universidades a fundações públicas de direito privado, o que já se verificou designa-damente nas universidades do porto e aveiro.

por sua vez, o processo de bolonha, isto é, “a unifi-cação dos sistemas universitários europeus com vista a criar uma área europeia de educação superior” (boaventura de sousa santos), resulta da assinatura da declaração de bolonha em Junho de 1999 por 29 ministros da Educa-ção, incluindo o ministro português e pretendia, dizia-se, “facilitar a mobilidade e o emprego dos estudantes da Europa”. na verdade, esta contra-reforma, como a caracteriza boaventura de sousa santos, consubstan-ciou-se numa alteração profunda e radical dos ciclos de estudos das múltiplas licenciaturas. destacam-se entre outras coisas: a redução temporal das licenciaturas; e a divisão entre mestrados científicos e mestrados de filei-ra; a intenção em apostar na formação ao longo da vida; o ensino de proximidade

a implementação do processo de bolonha tem sido, pelo menos no que diz respeito à universidade de coim-bra, um desastre. o encurtamento das licenciaturas con-duziu à redução do nível de qualificação dos estudantes, o que seria (supostamente) resolvido com os segundos ciclos (mestrados) que desempenhariam doravante um papel de “tapa buracos” da licenciatura, mas com uma diferença fundamental... o valor das propinas do se-gundo ciclo é em média 1500 euros mais caro do que o valor das propinas do primeiro ciclo. por outro lado, a tão apregoada internacionalização tem sido sucessiva-mente negada na prática, pelo facto de as universidades de países como portugal “não serem tão competitivas como, por exemplo as britânicas ou alemãs”... a aposta na formação ao longo da vida torna-se impossível com o nível de precarização dos recém-licenciados, na me-dida em que estes, para além das dificuldades em pagar mestrados ou pós-graduações, se encontram sujeitos a um ritmo de trabalho de uma intensidade incompatível com o estudo universitário. por fim, aposta no ensino de proximidade, alicerçado na redução do número de estu-dantes por turma, na avaliação contínua, etc, torna-se inexequível em face dos sucessivos cortes no financia-

mento do Ensino superior, impedindo a contratação de mais professores ou a renovação das infra-estruturas das universidades (mais salas de aulas, por exemplo).

concluindo este ponto, julgo que será importante reflectir sobre as razões que estão na origem da inca-pacidade dos dirigentes associativos e de activistas de esquerda em criarem um movimento forte anti-bolonha e anti-rJiEs, tamanha foi e continua a ser a sua impor-tância para a vida dos estudantes... do meu ponto de vis-ta, a razão primordial para tal insucesso está na ausência de uma verdadeira alternativa àquelas contra-reformas. o discurso que invariavelmente está “contra”, mas não garante uma escolha alternativa, conduz sempre à indi-ferença de quem nos ouve...

o decreto-lei 70/2010, os emPréstimos e alguma luta de rua Pelo meio

a promoção da cultura da injustiça no acesso à edu-cação que dei conta na introdução deste texto, atinge o seu clímax com os cortes brutais na acção social Es-colar durante o Governo de José sócrates e mariano Gago. isto significa que depois de ter aumentado o nível

a aPosta na formação ao longo da vida torna-se imPossível

com o nível de Precarização dos recém-licenciados, na medida em

que estes, Para além das dificuldades em Pagar mestrados ou

Pós-graduações, se encontram suJeitos a um ritmo de trabalho de

uma intensidade incomPatível com o estudo universitário.

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de despesas dos estudantes do Ensino superior, em re-sultado do aumento do valor das propinas (actualmente fixadas nos 1000E, quando o salário médio é de cerca de 800E...) e das contra-reformas de bolonha e rJiEs, o Governo em resposta, reduziu o nível de apoio aos estudantes mais carenciados.

com efeito, portugal é o país da zona Euro em que as famílias mais desembolsam para pagar o Ensino supe-rior, tendo-se registado um aumento de 7,5% para 30% do contributo directo das famílias para pagar os custos com a educação académica.

a desresponsabilização do estado nesta matéria teve em 2007 mais um capítulo a assinalar. nesse ano, o governo português criou um sistema de empréstimos para estudantes do ensino superior que visa “auxiliar, endividando”, fundamentalmente, os estudantes que não tendo bolsa de estudo, não têm rendimentos suficientes para prosseguir os seus estudos. segundo notícias re-centemente publicadas “esta linha de crédito a estudantes já disponibilizou 150 milhões de euros a quase 13 mil alunos do ensino superior.”. o sistema de empréstimos é apenas mais uma via de promoção da precariedade, se não veja-mos, ainda antes de obter qualquer tipo de rendimentos o estudante já está endividado. a esta situação acresce que, obtendo um emprego (a avaliar pelo presente pano-rama, um emprego precário), parte do seu salário estará desde logo “penhorado” e destinado a pagar a sua dívida.

Foi para combater este e outros problemas que a 4 de novembro de 2009, os estudantes de coimbra, reunidos em assembleia magna, convocaram uma manifestação nacional de estudantes do ensino superior, rompendo com o passado recente, marcado pela predominância de acções simbólicas ou acções de rua de âmbito regional,

em detrimento de mobilizações nacionais. o protesto contou com a presença de mais de 4 mil estudantes, quase todos eles de coimbra, mas mais que o valor dos números interessa ressalvar o seguinte: pela primeira vez desde 2005, uma manifestação nacional teve lugar, quebrando a lógica da “política de gabinete” promovida pela maioria dos dirigentes associativos. naquele dia 17 de novembro de 2009, voltou a falar-se da luta dos es-tudantes do ensino superior.

E deste protesto resultaram algumas respostas. Em Janeiro de 2010 o Governo celebrou com as reitorias um “contrato de confiança”, através do qual se com-prometia a aumentar o financiamento das instituições do Ensino superior para valores semelhantes aos de... 2005! Em resposta a esta situação, conjugada com o acentuar da crise económica e social, é convocada uma nova manifestação nacional de estudantes para o dia 24 de março de 2010, dia do estudante. Esta acção de rua acaba por representar um retrocesso para o movimento estudantil, porquanto contou com um número signifi-cativamente inferior (cerca de 600 estudantes) à de 17 de novembro de 2009.

acontece que em maio é anunciado o decreto-lei 70/2010, diploma inserido no segundo pacote de auste-ridade (pEc 2). Este diploma, aprovado pelo Governo e ratificado pelo psd, regula as condições de acesso e atribuição de prestações sociais do Estado, entre elas as bolsas de Estudo. as grandes e mais prejudiciais no-vidades deste decreto prendem-se, fundamentalmente, com as alterações à forma de cálculo dos rendimentos dos agregados familiares, que retirarão a bolsa de estu-do a mais de 25 mil estudantes. de entre outras coisas, altera-se o valor atribuído aos membros dos agregados

familiares, que deixam de valer uma unidade para o efei-to do cálculo, para passarem a valer 0,7 ou 0,5, conforme sejam adultos ou menores respectivamente. por outro lado, o valor indexante aos apoios sociais (ias) passa de 475E, correspondente ao valor do salário mínimo nacional, para 419E. além disto, diz-nos o 70/2010 que o valor pago pelas famílias na renda da sua casa, ou no empréstimo para sua aquisição, são um valor a conside-rar para efeito de cálculo da bolsa. o objectivo é simples: aumentar artificialmente os rendimentos dos agregados familiares, para que assim se possa cortar no número e no valor das bolsas. mas há neste decreto uma mani-festação de opressão de classe que não nos pode passar indiferente: ps e psd dizem-nos agora que o princípio do sigilo bancário só deve ser quebrado para controlo das prestações sociais, permitindo ao Estado aceder às contas bancárias de todos os seus candidatos. o princí-pio sagrado da burguesia cai por terra, na versão oficial, para poupar 200 milhões de euros, através do combate à fraude. princípio que se mantém firme e hirto quando se trata de combater as grandes fraudes fiscais, avaliadas em 30 mil milhões de euros, equivalentes a 12 anos de orçamento do Estado para o Ensino superior.

desde cedo se aperceberam os activistas de esquer-da da gravidade deste diploma legal, ao contrário da grande maioria dos dirigentes associativos que perde-ram demasiado tempo com a crítica pública, ao invés de acções concretas. com a entrada em vigor do decreto-lei 70/2010, a publicação do novo regulamento de atri-buição de bolsas e o atraso na publicação das normas técnicas, a situação tornou-se insustentável. assim sen-do, a 30 de setembro de 2010, a assembleia magna de coimbra convoca mais uma vez para o dia 17 de novem-

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na verdade, a luta Por mais e melhor acção social, bem como a luta contra as ProPinas, sendo embora

reivindicações estudantis, não se distanciam em quase nada da luta Por melhores salários, contra a

Precariedade ou contra a exPloração da força de trabalho. mas mais imPortante é Perceber que essa

unidade, essa articulação de forças, é hoJe imPeriosa Para conseguir qualquer vitória social.

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bro, uma manifestação nacional. é verdade que grande parte dos manifestantes era de coimbra, o que espelha a grande desmobilização de outras academias de estu-dantes, mas o certo é que os mais de 7 mil estudantes presentes foram capazes de pressionar os deputados da assembleia da república a aprovar em dezembro (na generalidade) a saída das bolsas de estudo do âmbito de aplicação do decreto-lei 70/2010. uma vitória parcial, sem dúvida. mas é destas pequenas vitórias que se pode ir alimentando o movimento estudantil, pelo menos por enquanto.

12 de março de 2011- o Poder tem de estar na rua

daquele dia 12 de março, impressionante não são apenas os números (mais de 300 mil pessoas por todo o país), mas sobretudo o sentimento generalizado de que, de facto, o habitat natural do poder é a rua.

Estive presente na manifestação do porto. sei que em lisboa estiveram mais de 200 mil pessoas e talvez esse número não impressione sobremaneira os presen-tes, seja porque ali se concentram grande parte dos ma-nifestantes de outros pontos do país, seja porque outras manifestações se realizaram com números semelhantes àqueles. digno de registo, porém, é o facto de apesar dos 200 mil presentes em lisboa, outros 100 mil terem saí-do à rua, em mais de 8 cidades do país, o que constituiu uma novidade assinalável. no porto foram mais de 80 mil e o que lá se passou, eu nunca tinha vivido.

primeira nota: impedir que o dia 12 de março se transforme apenas numa memória inofensiva, sem se-guimento no futuro e que perca, por isso, o poder trans-formador que assustou as elites dirigentes. não quere-

mos ser mais uns “vencidos da vida”.a organização do porto (não sei se foi assim noutras

zonas do país), disponibilizou um microfone para to-dos os que quisessem dar a seu testemunho o fizessem. ouvi gente de todas as idades e com as mais diversas experiências: estudantes do ensino secundário e supe-rior, recém-licenciados, trabalhadores precários e não-precários, reformados, desempregados. das mais de 300 intervenções que ouvi, bem como dos comentários que ia absorvendo durante a marcha, a todas era comum um sentimento: a indignação, suportada na injustiça da pre-cariedade como inevitabilidade do presente e do futuro, dos salários, das reformas e bolsas de estudos baixos/as (agora, pEc atrás de pEc, cada vez mais curtos/as). mas se houve palavra repetida por muitos, foi a palavra solidariedade, o que evidencia que aquele sentimento de indignação é também partilhado por muitos daque-les que não estão (ainda) no estado de desespero dos desemprecários.

segunda nota: politizar essa indignação e saber direccioná-la contra os agentes políticos e económicos responsáveis por esta crise, sem que isto queira dizer o controlo e a asfixia do movimento.

se não foi o primeiro, foi com toda a certeza o mais estrondoso protesto que juntou trabalhadores, reforma-dos, estudantes e outras camadas da população, depois do 25 de abril. para quem dedica grande parte do seu activismo no Ensino superior e se bate diariamente por essa unidade necessária, o dia 12 de março constituiu uma vitória política importante. os estudantes são hoje os primeiros precários. precários pagando 1000€ de propinas, quando o salário médio nacional não chega a 800E. precários vivendo praticamente 6 meses sem

receber a sua bolsa de estudo, devido aos atrasos na análise dos seus processos. precários porque depois de a receberem, pouco mais do que a subsistência lhes so-bra. precários pois, depois do curso terminado sabem que 9 em cada 10 novos empregos criados, são trabalho precário.

na verdade, a luta por mais e melhor acção social, bem como a luta contra as propinas, sendo embora rei-vindicações estudantis, não se distanciam em quase nada da luta por melhores salários, contra a precariedade ou contra a exploração da força de trabalho. mas mais im-portante é perceber que essa unidade, essa articulação de forças, é hoje imperiosa para conseguir qualquer vi-tória social.

terceira nota: sem essa unidade, não será possível reverter a relação de forças vigente e isso significa, consciente ou inconscientemente, abdicar da vitória contra a burguesia.

Esta manifestação, não só o dia 12, mas o antes e depois, mostra também que algo pode estar a mudar no grau de consciencialização das massas, na sua pré-disposição para a luta e transformação social. descer a rua de sta. catarina (veio-me ali à memória as imagens daquele sem número de pessoas que desciam as ruas de lisboa, rumo ao largo do carmo, em 1974), gritanto palavras de ordem há muito esquecidas, como “o povo unido jamais será vencido!”, ou cantado a “Grândola vila morena”, simbolizam em boa medida esse espírito. mas o que impressionava mesmo, era o rosto convicto com que os manifestantes de 2011 percorriam as ruas do país, sabendo que agora já “não podem, nem querem voltar para trás”.

não quer isto dizer que a revolução “esteja ao fim

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da esquina”, ou que para isso baste “ficar sentado no sofá à espera do dia triunfal”. nos próximos tempos, todos assistiremos a uma campanha massiva de propaganda capitalista, não de descrédito do protesto (essa foi a es-tratégia inicial), mas de instrumentalização desta luta, através do elogio cínico, quanto à forma da sua organi-zação, mas sobretudo fazendo alusão às “grandes vitó-rias” que alcançou. no dia em que o Governo caiu, não faltaram comentadores convertidos, a assinalar como ponto-chave dessa queda o protesto das “Gerações à rasca”.

Esses elogios são, sem dúvida, merecidos. é verdade que para o sucesso deste protesto, contribuíram não só o sentimento de indignação generalizado, mas também a forma espontânea e autónoma como foi convocado e organizado. é igualmente verdade que as vitórias (como será a queda deste Governo) são necessárias para re-forçar o movimento, motivando-o e moralizando-o. no entanto, decisivo é que depois da queda do Governo, o manifesto das “Gerações à rasca” possa ser cumprido e que as aspirações daquele sem número de manifestantes sejam atendidas.

Quarta nota: para vitória das “Gerações à rasca”, é condição necessária a derrota da grande maioria polí-tica e económica, corporizada por ps, psd, cds, que impõem esta a cultura da precariedade, do desemprego e da miséria como modo de vida. não menos importante, é que as forças anticapitalistas tenham a capacidade para interpretar os sinais dados por este protesto. comba-ter as tentações de apropriação ou hegemonização do movimento e saber aprender com esta nova forma de marcação e organização de luta.

e agora, “que fazer”?vão longe os tempos em que a luta estudantil assu-

mia pendor ofensivo e tinha ínsito no seu discurso a mu-dança radical de sistema económico e/ou regime políti-co. o processo reivindicativo da época histórica que me esforcei por relatar com algum rigor neste texto, para além de simbolizar o refluxo do movimento estudantil, revela que a luta nas universidades tem carácter defen-sivo na actualidade. de derrota em derrota, o discurso predominante tem sido o da resistência às sucessivas contra-reformas.

Já o disse a propósito do processo de bolonha e do rJiEs, mas não é de mais repeti-lo. na origem destas derrotas está a completa ausência de alternativas con-sistentes e mobilizadoras, quer no plano das reformas na Educação, quer mesmo em relação à mudança sisté-mica. não quer isto dizer que não existam pontos espe-cíficos dos programas antisistémicos que não tenham o seu valor. o que na realidade faz falta é um programa global alternativo que possa rivalizar teórica, científica e socialmente com as contra-reformas hoje em vigor.

no que concerne ao movimento estudantil pro-priamente dito, muito do seu fracasso passa pela sua incapacidade na inovação do seu discurso, organização e actividade. a completa subordinação da maioria das associações de Estudantes e dos seus dirigentes à agen-da governativa, ou melhor a sua dependência em face daquela agenda, não tem encontrado nos colectivos à esquerda a resposta necessária. Este colectivos encon-tram-se hoje ainda muito ligados ao discurso e métodos clássicos, ou seja, um discurso de denúncia, panfletário, mas que já não é capaz de aglutinar as forças necessárias para poder vencer.

talvez a descida ao fundo do poço se tenha dado por meados de 2008. de lá para cá alguma coisa mudou indubitavelmente. os ataques radicais à acção social Escolar e o extremar da crise social, potenciaram um nível de indignação colectiva, com expressão no dia 12 de março de 2011, surpreendentes. por outro lado, as revoltas estudantis europeias e no mágrebe, de finais de 2010 e início de 2011 respectivamente, comprovam o espírito de mudança que se sente.

dizer se estas revoltas têm continuidade e força su-ficiente para impor transformações radicais na vida das populações, é coisa que só o futuro dirá. de qualquer forma, certo e sabido é que condição inerente a essas transformações é a existência e construção daquelas al-ternativas consistentes. Esse é o nosso trabalho.

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desigualdades de Percurso no ensino suPerior

João teixeira loPesluta

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vírus abril/maio 2011 [67] Passado e Presente das lutas estudantis

o proJEcto ETES – OS ESTUDANTES E OS SEUS no Ensino Superior (coordenado por antónio Firmino da costa e por mim próprio), apoiado pela Fundação para a ciência e a tecnologia, no quadro de um pro-grama específico promovido pelo ministério da ciência, tecnologia e Ensino superior, nasceu de um consórcio entre o ciEs-iul e o isFlup, com o intuito de levar a cabo um estudo de âmbito nacional sobre os facto-res de sucesso, insucesso e abandono escolar no ensino superior, contribuindo para a detecção, transferência e promoção de “boas práticas”, inscrevendo-se na dinâmi-ca de monitorização reflexiva que institui as modernas políticas públicas.

apesar de tais processos estarem já sob intenso es-crutínio da pesquisa científica, nomeadamente aos níveis estrutural e institucional, sabemos ainda pouco sobre as formas através das quais os estudantes apropriam e vivenciam essas dinâmicas estruturais e institucionais.

desta forma, revelaram-se particularmente úteis as contribuições de bernard lahire sobre os modos de estu-dar e as matrizes de socialização institucional de certos subsistemas de ensino, a par do seu entendimento dos processos de socialização enquanto génese e constitui-ção de disposições plurais, contextuais e sob condição.

assim, a utilização extensiva de uma técnica quali-

tativa, permitiu-nos recolher e construir 170 retratos sociológicos a partir de entrevistas semi-directivas de cariz biográfico aplicadas a actuais e antigos estudantes do ensino superior, através de uma amostra estratificada por variáveis como o resultado formal dos seus percur-sos escolares até ao momento (sucesso, insucesso, aban-dono), o subsistema de ensino frequentado (universitá-rio ou politécnico, público ou privado), a área de estudo, o género, a experiência laboral dos estudantes, a classe social de origem e o capital escolar dos pais.

Foi justamente a análise fina destas singularidades sociais que permitiu a descoberta de novos padrões de regularidades nos percursos dos estudantes do ensino superior. mas trata-se agora de regularidades – tipos de percursos – que incluem explicitamente tanto as condi-ções estruturais partilhadas como os contextos situa-cionais diversificados e a efectividade da agência pes-soal, nos graus e modalidades variáveis em que ela se manifesta.

nos percursos tendenciais (ou “percursos esperados”) e nos percursos de contratendência (ou “percursos inespe-rados”) o que está em causa é a congruência ou não (ou, talvez melhor, a confirmação ou não da probabilidade de essa congruência acontecer) entre condições sociais e acção pessoal, na construção pelo estudante do seu

percurso social e escolar.as chamadas “teorias da reprodução social” têm

apresentado repetidas análises sobre este tipo de per-cursos, e algumas hipóteses explicativas de como é que eles ocorrem, mas a sua fragilidade teórica maior é as-sumirem-nos como um pressuposto, de carácter aprio-rístico, e a sua mais evidente fragilidade empírica é o facto de também se encontrarem na sociedade bastantes percursos de contratendência. Estes últimos são tão so-ciais como os outros.

Encontramos igualmente percursos focados na edu-cação protagonizados por estudantes provenientes de famílias de todas as classes sociais e com todos os níveis de escolaridade. o mesmo se pode dizer dos percursos com inflexões. porém, os primeiros conduzem pratica-mente sem excepção ao sucesso escolar. Já os segundos caracterizam-se, justamente, por não se desenrolarem de maneira directa, podendo envolver as mais variadas combinações de fases, de menor ou maior envolvimento nos estudos, sendo que muitas vezes acabam por desem-bocar também no completamento dos cursos, mas mais tarde e levando consigo experiências de vida complexas, pontuadas por mudanças muitas vezes radicais.

Finalmente, importa ainda referir percursos com pro-blemas de transição (para a vida adulta, para o ensino supe-

desigualdades de Percurso no ensino suPeriorPor João teixeira loPes | sociólogo

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rior), percursos com dificuldades de conciliação (entre esfe-ras de vida). pelo seu lado, percursos com dificuldades de integração no ensino superior (institucional e relacional) e percursos com problemas nos modos de estudar.

Em conclusão, a análise realizada pretendeu elucidar não só as condições sociais em que os indivíduos se en-contram mas também as relações activas desses indiví-duos com essas condições sociais. com as desigualdades no acesso, marcadas pelas distribuições desiguais de re-cursos estruturalmente constituídas, e com as desigual-dades de sucesso, formalmente consignadas pelas instân-cias institucionais do ensino superior, entrelaçam-se as desigualdades de percurso que podemos identificar numa análise fina dos casos individuais e dos seus contextos sociais.

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Psó

dia documentário «futebol de causas», Por fabian figueiredo

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vírus abril/maio 2010 [70] raPsódia

o futebol Já se moveu Por causas fabian figueiredo

Em plEno século XX viGorou um lonGo regime ditatorial em portugal. da miséria da fome à mi-séria da guerra, urgia derrubar um sistema repressivo que encontrava a sua razão de ser no subdesenvolvi-mento e no autoritarismo.

o documentário “Futebol de causas”, da autoria de ricardo martins, convida-nos a viajar até aos anos sessenta de coimbra, para nos reencontramos com a peculiar e efervescente contestação estudantil. defron-tamo-nos com uma geração instruída, com a coragem de afrontar o Estado novo e os seus tentáculos arbitrários.

para além do enunciar da bravura de uma geração, “Futebol de causas” presta um notável serviço público ao contribuir para a inscrição destes acontecimentos na história. relembra as mentes mais esquecidas do horror da actuação da pidE e as vozes mais frescas da capaci-dade de triunfo da vontade colectiva perante as aparen-tes inevitabilidades.

passando pelo 24 de março (hoje dia do estudan-te), pela crise académica de 69, a greve às aulas e aos exames e por toda a repressão contra o movimento es-tudantil, o documentário estreia no mundo cinemato-gráfico a realidade de um clube de futebol, que detinha a particularidade de se constituir diferente em pratica-mente tudo.

de sua graça associação académica de coimbra – secção de Futebol , composta na sua maioria por es-

tudantes de coimbra, abraça como clube da primeira divisão as dores e as reivindicações dos estudantes. com isso torna-se também vítima da repressão, desde do impedimento de treinar às constantes ameaças aos jogadores de serem mobilizados para a guerra colonial. o regime esforçou-se para que as reivindicações vindas da academia não ganhassem eco na sociedade, dado o protagonismo que a presença na 1ª divisão atribuía ao clube.

apesar de todos os zelos para que a contestação não levantasse a sua voz, na chegada à final da taça de por-tugal em 1969 o jogo académica-benfica, transformou-se no maior comício contra o regime. “Futebol de cau-sas” não só nos traz, deste modo, o retrato de um clube militante, mas de uma equipa que acima de tudo estava no futebol pelo desporto.

futebol de causas, documentário de ricardo martins

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vírus abril/maio 2011 [71] ficha técnica

revista vírus #12abril/maio 2011

direcção João teixeira loPes

edição gráfica luís branco

conselho editorial ana drago

andrea Peniche Jorge costa

José soeiromanuel deniz silva

mariana avelãsnuno teles

Pedro salesrita silva

rui borges

www.esquerda.net/virus

registo erc no 125486 || ProPriedade: bloco de esquerdarua da Palma, 268 – 1100-394 lisboa

esta obra está licenciada sob uma licença creative commons

fotos nesta edição:Páginas 38 e 43 isabel aires de sousa

Páginas 53, 58, 63 e 66 Paulete matos

Página 45 soniart