violência s

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006. EDITORIAL E stamos nos aproximando das comemorações natalinas e finalizando mais um ano de produtivas transferências de trabalho. Certamente, muitas seriam as possibilidades de escrita para compor o último número do ano do Correio. Entretanto, pensamos em resgatar um debate que sempre esteve em pauta ao longo da história da APPOA, seja pelo seu compromisso com as interrogações advindas das complexas articulações do sujeito com a polis, seja pela sensibilidade e persistência de seus mem- bros em abordarem temas, que não se deixam capturar por explicações causalísticas, pois interrogam as insuficiências de nossos saberes e os limi- tes de nossas categorias de análise, a saber, as nossas Violências Cotidia- nas. Quando abordamos o estranhamente-familiar universo da violência, sentimos uma necessidade imperiosa de recorremos aos plurais. Talvez isto se dê porque estamos diante de um excesso com infinitos repertórios e formas de materialização, o qual, por vezes nos cala, por outras nos fala, ainda que, sempre exala um resto impossível de nomear. Seu território obs- curo de múltiplas tensões, de um lado insiste em apontar os limites de nos- sa compreensão; de outro, do ponto de vista psicanalítico, convoca-nos a interrogar a nossa cômoda posição de vítima de supor a violência sempre no campo do outro. Além disso, conforme destaca a passagem presente no editorial da revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – “Psicaná- lise em tempos de violência”, em se tratando da violência, podemos ser facilmente fisgados pelo gozo do espectador: “Seria muito agradável acreditar que a violência nos encontra em posi- ção passiva, vitimizada. Porém se pensarmos que ela subjaz ao pai, à lei, enfim a tudo aquilo que embasa e viabiliza uma sociedade, podemos por fim compreender porque a contemplamos com fascínio compulsivo e a ronda- mos com verdadeira evitação fóbica.” (ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE, 1995, p. 04) Neste sentido, quer seja na dimensão do fascínio, quer seja na tenta- tiva de repudiar veementemente qualquer ato violento, as diferentes manei- ras de materialização da violência nos defrontam com algo estranhamente

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  • 1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.

    EDITORIAL

    Estamos nos aproximando das comemoraes natalinas e finalizandomais um ano de produtivas transferncias de trabalho. Certamente,muitas seriam as possibilidades de escrita para compor o ltimonmero do ano do Correio. Entretanto, pensamos em resgatar um debateque sempre esteve em pauta ao longo da histria da APPOA, seja pelo seucompromisso com as interrogaes advindas das complexas articulaesdo sujeito com a polis, seja pela sensibilidade e persistncia de seus mem-bros em abordarem temas, que no se deixam capturar por explicaescausalsticas, pois interrogam as insuficincias de nossos saberes e os limi-tes de nossas categorias de anlise, a saber, as nossas Violncias Cotidia-nas.

    Quando abordamos o estranhamente-familiar universo da violncia,sentimos uma necessidade imperiosa de recorremos aos plurais. Talvez istose d porque estamos diante de um excesso com infinitos repertrios eformas de materializao, o qual, por vezes nos cala, por outras nos fala,ainda que, sempre exala um resto impossvel de nomear. Seu territrio obs-curo de mltiplas tenses, de um lado insiste em apontar os limites de nos-sa compreenso; de outro, do ponto de vista psicanaltico, convoca-nos ainterrogar a nossa cmoda posio de vtima de supor a violncia sempre nocampo do outro. Alm disso, conforme destaca a passagem presente noeditorial da revista da Associao Psicanaltica de Porto Alegre Psican-lise em tempos de violncia, em se tratando da violncia, podemos serfacilmente fisgados pelo gozo do espectador:

    Seria muito agradvel acreditar que a violncia nos encontra em posi-o passiva, vitimizada. Porm se pensarmos que ela subjaz ao pai, lei,enfim a tudo aquilo que embasa e viabiliza uma sociedade, podemos por fimcompreender porque a contemplamos com fascnio compulsivo e a ronda-mos com verdadeira evitao fbica. (ASSOCIAO PSICANALTICA DEPORTO ALEGRE, 1995, p. 04)

    Neste sentido, quer seja na dimenso do fascnio, quer seja na tenta-tiva de repudiar veementemente qualquer ato violento, as diferentes manei-ras de materializao da violncia nos defrontam com algo estranhamente

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    EDITORIAL

    3C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.

    NOTCIAS

    FESTA DE FIM DE ANO DA APPOA

    Caro Colega,Estaremos realizando no sbado, dia 02 de dezembro a tradicional

    festa de fim de ano da APPOA (Associao Psicanaltica de Porto Alegre).Venha comemorar conosco, contamos com a sua presena!

    Data: 02 de dezembro, sbadoHorrio: 21hLocal: Sede da APPOA

    Para maiores informaes entrar em contato com a Secretaria.

    familiar, ou seja, com resduos do recalcado ameaador, incestuoso e parricida.Hana Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalm, ao desenvolver o

    clebre conceito de banalidade do mal, mostra-nos com muita clareza que acrueldade se d mediante a absoluta incapacidade de se identificar diante dador e do sofrimento dos outros. Ao perceber que Eichmann era um idealistadisposto a sacrificar a tudo e a todos, estando apenas determinado a fazersua linha de montagem operar de forma rpida e eficiente, assim como,genuinamente incapaz de pronunciar uma nica frase que no fosse umclich, ou seja, um simples burocrata seguidor de ordens, convoca-nos demaneira enftica a pensar nas relaes entre as micro-burocratizaes davida cotidiana e suas relaes com a violncia.

    Desta maneira, o presente nmero do Correio busca manter a discus-so aberta e levantar novas questes que possam lanar luz a esse tema todesafiador, justamente por nos convocar desde a banalidade do nosso cotidi-ano at as expresses massivas da violncia1.

    1 Editorial escrito por Norton Cezar da Rosa Jr. e Mrcio Mariath Belloc.

    TRADUO DOS SEMINRIOS DE LACAN

    A seguir publicamos material enviado por Claudia Berliner sobre atraduo dos seminrios de Lacan. Os leitores do Correio da APPOA tmacompanhado a traduo do Seminrio XI Os conceitos fundamentais dapsicanlise, feita por Claudia, e que est sendo aqui publicada, lio a lio.No material a seguir, acompanhamos a pesquisa e debate em torno da tradu-o da expresso maque--tre. Na seqncia, os sites da Internet queoferecem material sobre os seminrios e as tradues, bem como uma listade publicaes brasileiras dos seminrios.

    Maria Cristina Poli

    ALGUMAS REFLEXES SUSCITADAS POR MEU CONVITE PARATRADUZIR MANQUE--TRE

    (PUBLICADO NO CORREIO DE OUTUBRO)POR CLAUDIA BERLINER

    Minhas sugestesquerer-serfalta-de-ser (confunde com Sartre, mas a melhor traduo)

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    NOTCIAS NOTCIAS

    falta-do-serfalto-de-sermanco-de-serfalta-serfaltassermanquessermanquejar-do-sercaresserser-falto

    Ricardo Goldenberg sugere falta-para-ser e enviou seus comentriospor e-mail:

    Celebro a iniciativa. H anos que prego no deserto por uma empreita-da desta feita. Sobretudo, acho fundamental partir do uso corrente da lnguado autor a ser traduzido. Neste sentido, parabns para o francs. Quanto aoingls... Embora seja inegvel a inteno de servir-se do verbo querer,voc deixou passar o fato de que Lacan queria deixar ouvir o substantivocarncia e falta que est bem corriqueiramente na palavra want, comoem: the ship is rotting for want of paint. Safouan, que estava presente nasconferncias de Baltimore, me disse que Lacan tentava fazer os america-nos escutar que the subject fades away for want of being. Logo, querer sererra o alvo.

    Por outra parte, seria bom evitarmos fazer naufragar o conceito portrs da mera traduo. Isso quer dizer que necessrio sine qua non atentarpara o que Lacan diz sobre o ser e que o leva a forjar, a partir das expressesque voc oportunamente comenta, o sintagma em questo. Isto posto, falta-para-ser d conta da causalidade retroativa pelo significante (o futuro dopretrito, o imperfeito, etc.), ou seja, quase era, mas ainda falta para ser etambm do ser que est em falta, como uma mercadoria na quitanda, quevoc muito bem observa na expresso para lucro cessante: manque gagner.Portanto, para que complicar quando possvel simplificar?

    Comentrios e sugestes de Maria Lopes, amiga tradutora, acresci-dos de consideraes sobre a traduo de parltre, para o qual sugere parlente.

    Experimentando:O sujeito como manco-de-ser sujeito a desejar.O sujeito como falto-de-ser sujeito a desejar.O sujeito como faltasser sujeito a desejar.O sujeito como caresser sujeito a desejar.O sujeito em falta do ser sujeito a desejar.Gosto de todas essas opes acima. Caso tivesse que optar, iria em

    falto-de-ser, ou faltasser.Por falar nisso, tambm no gosto de falasser para parltre.Estive dando umas olhadinhas:1) em ingls eles usam talking being, ser falante;2) em alemo, das Sprechwesen (o ente falante, ou o ser que fala);3) em italiano quase nunca traduzem, mas quando o fazem usam

    essere parlante ou parlessere que, alis, fica uma perfeio (embora percaainda o sentido do signo, da letra, que s mesmo o francs tem).

    4) Em espanhol rebuscaram tanto que ficou ser palavreante que, con-venhamos, verdadeiramente um horror!

    Agora, sabia que existe o verbo parolar em portugus?PAROLAR Datao 1634 cf. BPProAcepes verbotransitivo indireto e intransitivo1 falar demasiadamente; tagarelarEx.: transitivo indireto2 trocar palavras, idias; conversarEx.: gosta de p. com os vizinhosEtimologiaparola + -ar; ver palavr-

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    NOTCIAS NOTCIAS

    Sinnimosver sinonmia de conversar

    Parolar vem de parola, ao passo que falar vem de fabular, contarfbulas. Ambos tm o sentido de conversar o segundo vem do latim, oprimeiro vem do grego. Veja s essas referncias, todas do Houaiss:

    FALAR - Etimologia lat. fblo, s, vi, tum, re falar, entreter-se conversando, conver-

    sar, por fabulari; segundo Cornu, Huber e SSNeto com prov. infl. de calar,com o qual figura em muitos provrbios; divg.: fabular; ver falar

    PARLAR Datao sXIII cf. CBNAcepes verbotransitivo indireto e intransitivom.q. parolarEtimologiaparolar, com sncope; ver palavr-; f.hist. sXIII parllar, sXV parlar

    E veja s PALAVRA (vem de parbola, emprestado do grego parabol):Etimologia

    lat. parabla,ae (pelo vulg.), tomado de emprt. ao gr. parabol pelalngua da retrica no sentido de comparao; (...)

    De PALAVRA originaram-se: palra, palrador, palrar, plrea, palraria,

    palratrio..... isso pra citar apenas alguns. Vejam a etimologia dePALRA Datao sXV cf. FLCronAcepes- substantivo femininoUso: informal.palavra ou troca de palavras; conversao; palraria, palratrio, plrea

    Etimologiaregr. de palrar; ver palavr-; f.hist. sXV palrraSinnimosver sinonmia de conversa e loquacidade

    Bom, ento, se temos palrar, parlar e tambm parolar, podemoscriar um termo muito melhor que falasser (que at parece falo-a-ser), comopor exemplo parolente , ou simplesmente parlente, para traduzir o parltre(lembrando que existe a palavra parlante, e que ela significa exatamente omesmo que falante).

    No fica bonito, parlente?

    ANEXO 1: FONTES DE CONSULTA (ON-LINE) SOBRE OS SEMIN-RIOS DE LACAN E A TRADUO

    http://www.erudit.org/revue/meta/ revista online de e sobre traduohttp://www.erudit.org/revue/meta/1982/v27/n1/index.html nmero especifica-mente sobre trad de psicanlise, coincide com lanamento traduoLaplanchehttp://www.erudit.org/revue/meta/1982/v27/n2/index.html com texto de BettyMilan sobre a trad do seminrio 1http://213.251.159.110/ListRecord.htm?list=table&table=5 thesaurus da Ecolede la cause freudienne por temahttp://perso.orange.fr/espace.freud/topos/psycha/psysem/semin.htm Espa-ces Lacan biblioteca de textos online, Freud, Lacan e outros textos dereferencia, links diversoshttp://www.lutecium.fr/Psychoanalysis.html transcries de seminrios deLacan, linkshttp://pros.orange.fr/espace.freud/ Espaces Lacan psicanlise e poltica, bi-blioteca, links para textos e seminrios de Lacanhttp://www.psy-desir.com/biblio/spip.php?article1217 O mito individual do

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    NOTCIAS NOTCIAS

    neurtico em vrias verses francsh t t p : / / w w w . e t u d e s - l a c a n i e n n e s . n e t / E t u d e s / P s y c h a n a l y s e /Lexique_de_lacan.htm lexique de Lacan, principais termos definidos por meiode trechos extrados da obrahttp://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php?id=19 contm relao dasverses existentes de cada seminrio.http://jacsib.lutecium.org/thesaur4/node304.html relao dos principais con-ceitos lacanianos. Clicando-se em cada um deles, tem-se acesso s passa-gens da obra em que aparecem (em francs)http://www.nosubject.com/Main_Page prope-se a ser uma enciclopdia depsicanlise lacaniana em ingls. Tambm aborda a obra de Zizek.http://www.psicomundo.org/lacan/textes.htm links vrios Psicomundohttp://www.freud-lacan.com/ Navegar no site da Association LacanienneInternationale: existem vrios trabalhos sobre trad em fr, pt e esp.http://pages.globetrotter.net/desgros/carte.html La Psychanalyse site fran-cs com textos de Freud, de psicanlise e psicanalistas de mltiplas esco-lashttp://soc.enotes.com/psychoanalysis-resources/translation-concepts-notionsglossrio de psicanlise em 5 lnguashttp://soc.enotes.com/psychoanalysis-encyclopedia/ dictionary ofpsychoanalysishttp://www.oedipe.org/fr/archives Oedipe - site de psicanlisehttp://www.carnetpsy.com/ Le carnet Psy site da revistahttp://epf-eu.org/glossary/ glossrio da IPA para vrias lnguashttp://www.elortiba.org/ El ortiba imenso site argentino de poltica, cultura(letras de tango para quem gosta), psicanlise, dicionrio de lunfardo, temat um dicionrio de psicanlise em lunfardo muito engraado, na janelahttp://www.elortiba.org/faunapsi.html textos de Freud, Lacan e outros, dicio-nrios, link para comprar o CD-rom ou DVD com as obras completas deFreud (Ballesteros e Amorrortu) e Lacan em espanhol (tudo em um nicoCD, com busca cruzada), vdeos e muito maishttp://aejcpp.free.fr/biblio.htm biblioteca da Associao dos jovens pesqui-

    sadores em psicopatologia e psicanlise com arquivo para baixar de lindexthmatique des oeuvres de Freud, Abraham et Ferenczi, organises par motsclefs:

    DICIONARIOS;http://www.sensagent.com/dictionnaires/fr-fr/http://francois.gannaz.free.fr/Littre/accueil.phphttp://atilf.atilf.fr/tlf.htmhttp://elsap1.unicaen.fr/dicosyn.htmlhttp://www.wordreference.com/index.htmhttp://www.lib.uchicago.edu/efts/ARTFL/projects/dicos/

    ANEXO 2: Os seminrios que esto e que no esto traduzidos, e por quem(cf. informaes fornecidas pelas respectivas instituies):

    Sem. 1 os escritos tcnicos - Jorge ZaharSem. 2 o eu na teoria tcnica de Freud e na tcnica da psicanlise - JorgeZaharSem. 3 as psicoses - Jorge ZaharSem. 4 a relao de objeto - Jorge Zahar // APPOASem. 5 as formaes do inconsciente - Jorge ZaharSem. 6 o desejo e sua interpretao - CEF de Recife, publicado pela APPOA// Hamlet por Lacan Liubliu/EscutaSem. 7 a tica da psicanlise - Jorge ZaharSem. 8 a transferncia - Jorge ZaharSem. 9 a identificao - CEF de RecifeSem. 10 a angstia - Jorge Zahar // CEF de RecifeSem. 11 os 4 conceitos fundamentais da psicanlise - Jorge Zahar// trad.Claudia Berliner, publicado mensalmente pelo Correio da APPOA (em anda-mento)Sem. 12 problemas cruciais para a psicanlise - CEF de Recife (finalizando)Sem. 13 objeto da psicanlise

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    NOTCIAS

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    TORTURA: ASPECTOS PSICOLGICOS1

    Paulo Endo2

    no apagar dos holofotes que a tortura sofrida mostra sua insdia.Quando a imprensa se desinteressou, porque o assunto saiu de moda,quando a sociedade civil j no debate, nem suporta mais ouvir sobreseu passado recente, quando a tortura se reinstala no corpo do torturado,como um grito silencioso que no pode mais ser escutado. Assim a experi-ncia traumtica adquire uma outra virulncia: a do desconhecimento e dainvisibilidade. Ela passa a operar como um defeito, uma deficincia, umaidiossincrasia negativa impossvel de esquecer, mas que se procura, parado-xalmente e com esforo, apagar, ocultar, colocar longe dos prprios olhos edos olhos alheios e assim mistur-la entre as experincias desagradveis docotidiano.

    A tortura, os massacres e as formas contemporneas do extermniono so ainda, de modo algum, intolerveis para grande parte da populao.Ao contrrio, elas parecem ganhar uma consistncia nova, cuja somatriapesa demasiado nos ombros de quem quer que se aventure a voltar a elas ecombat-las.

    Ao que parece, no desejvel falar mais do que uma e nica vezsobre o assunto. No desejvel voltar a reproduzir o que no deveria maisser dito. A tortura, o massacre, a chacina, em instantes, viram tabus. No sepode falar neles, mas eles permanecem ali, fixos, indenes pelas vtimasque mortificaram e soberanos.

    1 Esse trabalho foi originalmente apresentado no seminrio Todos contra a Tortura, realizadona Secretaria da Justia do Estado de So Paulo em dezembro de 2004.2 Psicanalista, Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP, ps-doutorado CEBRAP/CAPES, autor do livro A Violncia no Corao da Cidade: Um estudo psicanaltico-prmioJabuti 2006, Pesquisador Colaborador do LIPIS (Laboratrio Interdisciplinar de Pesquisa eInterveno Social)

    Sem. 14 a lgica da fantasiaSem. 15 o ato psicanaltico - Unisinos (Mario Fleig e colegas) (em

    andamento)Sem. 16 de um outro ao Outro - CEF de RecifeSem. 17 o avesso da psicanlise - Jorge ZaharSem. 18 de um discurso que no seria do semblante - CEF de RecifeSem. 19 ... ou pior. - Espao moebius (Bahia)Sem. 19 o saber do psicanalista (1971-1972) - CEF de RecifeSem. 20 mais, ainda - Jorge Zahar// Letra freudiana do Rio de Janeiro

    (em andamento)Sem. 21 les nos-dupes errentSem. 22 RSISem. 23 o sintoma - Letra freudiana do Rio de JaneiroSem. 24 linsu que sait de lune-bvue saile mourreSem. 25 o momento de concluirSem.26 a topologia do tempoSem. 27 dissoluo

    SEO TEMTICA

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    SEO TEMTICA

    que foi atravessado, de algum modo, pela violncia, a linguagem se impecomo tarefa.

    Por isso faz-se necessrio, produzindo confrontos linguageiros,reinventar outras formas de falar do mesmo, atordoando os sentidos poss-veis que repousam magnnimos no silncio dos que foram torturados, violen-tados, exterminados. Faz-se necessrio reinstaurar falas coletivas que aco-lham as falas singularizadas na expresso da dor prpria, peculiares que-les que se dispem a revisitar a prpria dor.

    Georges Vigarello em sua Histria do estupro5 permite dar a ver queo saber psicolgico contribuiu decisivamente para evidenciar: as marcas docorpo so dspares das marcas da alma e do psiquismo. As marcas docorpo podem desaparecer, cicatrizar, enquanto o psiquismo j as absorveu,j as alojou em lugares que s a linguagem pode dar a ver e j se incumbiude faz-las aparecer em outro lugar. As marcas do corpo quando so acom-panhadas de humilhao e crueldade so inultrapassveis. Perduram e re-sistem ao do tempo.

    Ferreira Gullar6, em comentrio sobre a tortura, dizia: a dor, quandodi mesmo, estril. Ou seja, a dor no seu limite de tolerncia no gerapoema, nem obras plsticas, nem msica. Sua nica e fundamental expres-so o grito e depois, o silncio. O silncio diante daqueles que gritam.

    O CORPO E O PSIQUISMO DIANTE DA TORTURAO risco de perder o corpo e a alma nas mos de quem mais se com-

    bateu, permanecer merc daqueles que se queria ver derrotados, impoten-te diante de um algoz disposto a qualquer tipo de crueldade uma experin-cia ante a qual o psiquismo freqentemente fracassa.

    A experincia de tortura poltica o exemplo tpico do excesso. Ex-cesso que insiste no ultrapassamento do psiquismo para derrot-lo e impeli-

    5 Vigarello, Georges. Histria do Estupro: Violncia Sexual nos sculos XVI-XX. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1998.6 Em entrevista para a TV Cultura em 2004.

    Freud nos alertou para o carter ambivalente dos tabus.3 Eles prome-tem certa ordem e pacificao em troca do silncio e da submisso. Recai-se na iluso supersticiosa que faz das violncias um fato em si, imutvel eaceito.

    Assim, as violncias reinam no territrio dos silncios. A linguagem nica forma de atorment-las fica inibida diante da sua fora e contundncia.Quando isso acontece, fracassamos todos.

    Aos que no desistem, aos que insistem em voltar ao assunto, voltarao sintoma revelando seu dolo repetitivo, permanece o compromisso e arelutncia em retornar a essas experincias sob diversas formas e diferenteslinguagens. quelas que nos permitiro olhar novamente para o intolervel eressignific-lo. Evidenciando outros aspectos no vistos, outras repercus-ses escamoteadas e, tambm, outras sadas possveis.

    Psicanlise cabe uma responsabilidade especial nessa tarefa. Oque ouvimos e vemos na clnica cotidiana no propriamente o evento violen-to, mas suas repercusses, seqelas e restos. A escuta analtica escuta oque ainda inaudvel, aquilo que, muitas vezes, o analisando ainda no podedizer a si, no pode escutar de si. Uma proibio que envergonha e maltratao ego e que permanece ferindo e fazendo estragos.

    Mais ainda, trata-se tambm de acompanhar a luta dos sujeitos, oesforo de singularizao que insiste naqueles que combatem a prpria dor;aquela que perdura para alm da sua conscincia, para alm de sua vonta-de, freqentemente no escuro e no silncio. Luta singular e solitria que, seno pode ser delegada a nenhum outro, tambm no deve ser relegada aontimo, ao privado, como lugar secreto onde escondemos nossas vergonhas.Encontrar essa dupla via, singular e coletiva, tem se evidenciado como formanecessria para o ultrapassamento das violncias em todos os nveis.

    Retomo aquilo que aprendemos com Blanchot4 e que est presenteno trabalho psicanaltico com todas as formas do traumtico: para aquele

    3 Remeto o leitor leitura de Totem e Tabu, texto de Sigmund Freud escrito em 1913.4 Blanchot, Maurice. Lecriture du desastre, Paris: Galimard, 1980.

    ENDO, P. Tortura: aspectos...

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    SEO TEMTICA

    quer dor que no passa gera o desespero e a inaptido para quaisquer outrasformas de satisfao.

    Uma dor que se eterniza desloca toda a atividade psquica para salva-guardar o ego e se desabilita para outras funes vitais do psiquismo, entreelas a satisfao e o prazer. isso que o torturador reconhece e salientaquando diz a Pedro, um militante poltico latino-americano, na descrio doPsicanalista Marcelo Viar:

    Tenho o tempo que for necessrio, uma semana, um ms um ano.Alguns resistem mais, outros menos, mas voc viu, no fim todo mundo cede,eles falam. Voc v o que lhe convm, voc me economiza trabalho e sepoupa de sofrimento, no final, vai ceder.7

    O torturador avisa: eu tenho a eternidade, voc a espera.O tempo que for necessrio para lhe provocar dor, o tempo necessrio

    para subjugar sua alma, j que seu corpo j est ostensivamente subjugadoe derrotado. Tempo para fazer o torturado abdicar de sua autonomia em trocada anomia e do fracasso identitrio. Um tempo maior que a histria extraor-dinria de tantos militantes que, diante da violncia da ral (como diz HannahArendt8), acabam por renunciar prpria histria.

    Esse tempo largo que o torturador possui o tempo da demolio,como diz Marcelo Viar, tomando o termo de emprstimo de um analisandoseu. Tempo de fazer emergir a vergonha onde havia orgulho, de fazer jorrar omedo onde havia coragem, de fazer advir um superego cruel, onde havia aesperana no porvir, que a ao poltica, egica, viria a possibilitar.

    No por mera analogia que recorremos experincia infantil. Reco-nhecemos na regresso um mecanismo do qual o sujeito lana mo a fim de

    7 Viar, Marcelo e Viar, Maren1989). Exlio e Tortura. So Paulo: Escuta, 1992, p.40.8 Hannah Arendt(1949), em As Origens do Totalitarismo, faz uma distino fundamentalentre a ral(grupo no qual so representados resduos de todas as classes) e o povo.Essa distino se aplica inteiramente ao grupo de torturadores cujos padres seguem arisca a necessidade de, por todos os meios, acumular privilgios. Ver especialmente p.129-140 e p.176-187

    lo a acreditar em sua prpria derrota. A tortura e o torturador visam melan-colizar o sujeito. Querem que ele sobreviva como morto-vivo. Um vivo quedesejaria no estar mais entre outros, um vivo que no tem o prazer e odireito de viver. Aquele que entristeceu para sempre, aquele que desprezara si mesmo por no ter suportado o pior e o impossvel, aquele que sedesconhecer para sempre porque no pde suportar o que imagina queoutros suportariam.

    Sabemos como o psiquismo trabalha. Diante da experincia excessi-va, consciente ou inconscientemente, ele se pe ao trabalho. Sabemos queum beb recm-nascido, logo aps o parto, quando ocorre a mudana radi-cal ao seu corpo, que marca o fim da simbiose com o corpo materno, realizaseu primeiro feito psquico extraordinrio: ressimbiotiza com a me. Isto ,ele reinventa, psiquicamente, uma me que lhe contnua e no apartada.Assim como havia um corpo para dois, agora a criana reinstaura umpsiquismo para dois.

    fundamental que, num primeiro momento, a me atenda esse arran-jo do recm-nascido. Que ela reconhea nos sinais que o beb emite umpedido, uma demanda, um rudimento de linguagem para que a criana pos-sa suportar a separao, desta vez psquica, que ocorrer mais tarde. Oimportante aqui que a primeira tarefa do psiquismo, do ponto de vista daPsicanlise, juntar o separado, e ele o faz.

    A dor da separao do corpo materno ento parcialmente restaura-da para ser, mais tarde e sucessivamente, perturbada ao longo do processode autonomizao do corpo do adolescente e do adulto do corpo e psiquismomaternos. Diante da dor o aparelho psquico se pe ao trabalho para evit-la.

    No importa agora discutirmos a eficcia desse trabalho, mas desta-car que sempre trabalhamos psiquicamente para evitar o que acreditamos,imaginamos e esperamos seja o pior.

    Vemos isso numa criana muito pequena que chora desesperada-mente quando bate a cabea ou picada por um inseto. H a dor e htambm o desespero. Em geral uma aproximao cuidadosa do adulto reco-nhece a dor (doeu?) e ao mesmo tempo garante que a dor vai passar. Qual-

    ENDO, P. Tortura: aspectos...

  • 16 17C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.

    SEO TEMTICA

    Ter sobrevivido gera mal-estar. Uma experincia que pode desautorizaro viver. O que fizemos para continuarmos vivos onde tantos morreram? Qualnossa culpa? Qual o erro?

    Novamente gostaria de recorrer experincia do estupro. Sob vriosaspectos ela se assemelha tortura. O uso do corpo de outrem, o prazerobtido desse uso, a radicalidade do excesso onde se imbricam todas asformas de violncia e onde o prazer exclusivo do agressor, pode desabilitarpermanentemente o agredido ao prazer.

    Tanto o estuprador quanto o torturador, afogados em sua necessida-de de prazer e poder, esto submetidos a um fundamento que os isola e osconfunde: a prtica covarde e subalterna que exige o esquecimento da pr-pria alteridade e o dilema indeciso que os rebaixa a animais, de onde jamaisse erguero.

    Pensar exclusivamente em si, em sua prpria satisfao , como lem-bra Helene Clastres, em seu livro A terra sem mal10, igualar-se aos bichos.Ela extrai seus exemplos de vrias tribos sul-americanas onde aquele queno d aos outros a comida que caou, vira animal; mais ainda, bestializa-sequem come, no mato, a comida caada. E isso porque o correto levar acaa para a aldeia, distribu-la aos outros e, por isso mesmo, nem sequertocar nela, no a comer. Quem come o que caou, ou quem come escondi-do, porque no quer repartir, e por isso vira bicho.

    Todavia, a bestializao que envolve os torturadores, os grupos deextermnio e de intolerncia, mais radical e inconsciente; trata-se de fazero outro desistir de desejar, abdicando de sua singularidade por intermdio daviolncia. Tal como nas prticas inquisitoriais, o torturador poltico quer criarartificialmente a submisso para, artificialmente, circunstancialmente e sescondidas, se fazer superior. Ele sabe que tem de faz-lo escondido, elesabe que seu grupo, sua escria, o ampara. Ele sabe da covardia que come-te contra aqueles que jamais poder ser, aqueles que por falar e agir em

    10 Clastres, Helne. A Terra sem Mal, So Paulo: Brasiliense, 1978.

    reencontrar algum indcio, algum sinal identitrio esfacelado repetidamentenas sesses de tortura. O psiquismo trabalhando para restituir alguma lem-brana de prazer, ainda inscrita num corpo ferido e desolado.

    O torturador quer convencer que a dor no vai cessar, a tortura no vaicessar, seno por uma informao, atitude ou comportamento do torturadoque dependeria nica e exclusivamente dele. A salvao do corpo e do eu dotorturado estariam, ento, sob sua inteira responsabilidade. S ele, o tortura-do, poderia fazer cessar a dor.

    Ao se recusar, apostando que a informao, a resistncia e a manu-teno dos princpios a nica maneira de garantir uma sobrevida anmica,o torturado relanado para uma outra senda estreita, para uma outra arma-dilha, a da auto-responsabilizao. Est muito prxima da identificao como agressor que, mais adiante, comentarei.

    Primo Levi observa a esse respeito sobre aqueles que sobreviveram incluindo ele mesmo tendo passado por Auschwitz:

    Voc tem vergonha porque est vivo no lugar de um outro? E, particu-larmente, de um homem mais generoso, mais sensvel, mais sbio, maistil, mais digno de viver? impossvel evitar isso: voc se examina, repassatodas as suas recordaes, esperando encontr-las todas, e que nenhumadelas tenha se mascarado ou travestido; no voc no v transgressesevidentes, no defraudou ningum, no espancou (mas teria fora para tan-to?), no aceitou encargos (mas no lhe ofereceram...), no roubou o po deningum; no entanto impossvel evitar. s uma suposio ou, antes, asombra de uma suspeita: a de que cada qual seja o Caim de seu irmo ecada um de ns (mas desta vez digo ns num sentido muito amplo, oumelhor, universal) tenha defraudado seu prximo vivendo no lugar dele. uma suposio, mas corri; penetrou profundamente como um carcoma; defora no se v, mas corri e grita.9

    9 Levi, Primo. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.46

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    por um animal, a criana se v e se sente atacada por um objeto de amor.Pelo pai que ela tanto ama quanto admira e teme.

    Entretanto o que funda a dor psquica da criana, obviamente, noso as eventuais dores fsicas que possa sentir durante o abuso, mas a dorem perceber, de modo inequvoco, que seu objeto de amor age em prol deseu aniquilamento, de sua humilhao e subservincia. Que aquele comquem ela deveria experimentar relaes ternas e ldicas, sexualiza absolu-tamente a relao e destri uma passagem j extremamente difcil para amenina a travessia do dipo feminino , sobre o qual falaremos em outraocasio.

    Diante dessa catstrofe perceptiva e desse sofrimento psquico queinclui a perda de seu alvo de investimentos amorosos em relao ao qualsente que deposita a prpria vida a menina, muitas vezes, recorre a umaao psquica que procura poupar o objeto, preserv-lo, em detrimento deseu prprio ego. Assim, a criana se culpabiliza, atribui a si a culpa peloocorrido e se melancoliza, tornando-se muitas vezes aptica e desinteres-sante. A menina salvou o objeto pai e destruiu-se, subjetivamente falando.

    No incomum vermos meninas atriburem a culpa a si pelo ocorrido,ou apresentarem um histrico com vrias tentativas de suicdio; ou ainda seculpabilizarem permanentemente noutras ocasies potencialmente amoro-sas e sexuais, indicando a presena de uma condenao interna que nocessa, condenao por uma culpa indesculpvel, atribuda a si.

    Esse o modelo do que indiquei a vocs l atrs como a identificaocom o agressor. A introjeo do estuprador em ns, a introjeo do tortura-dor em ns. Ter-se reduzido ao discurso de quem, uma vez, colocou emrisco nossa vida, violou nossos corpos e, por esse meio, colapsou nossosrecursos de sobrevivncia psquica apenas para satisfazer uma vontade uni-lateral que, sem a violncia extrema, no poderia ser realizada.

    H identificao com o agressor quando ele , por instantes, confun-dido com um salvador benevolente, uma autoridade suprema que tudo podefazer cessar, um pai dedicado que traveste de ternura um objetivo exclusiva-mente sexual.

    primeira pessoa so presos e torturados por isso. Ao contrrio, o torturadorpassar a vida desmentindo o que , o que fez e o que disse, escondendo-seem suas mscaras rotas. A democracia os envergonha, ns os envergonha-mos.

    Sndor Ferenczi, psicanalista hngaro e discpulo de Freud, traz umasrie de reflexes importantssimas feitas na dcada de 30, que retomareibrevemente j no contexto do processo que costuma se denominar de iden-tificao com o agressor. 11

    Ele examina a situao do estupro em crianas, cometidas pelo pai.A criana tem, na figura paterna, um alvo de investimento amoroso macio.Custa muito para uma criana pequena constatar seu dio pelas figurasparentais, o que a obriga a fraturar os objetos dicotomicamente: o bom e omau.

    A me boa no a m, de modo que a me que desaparece doquarto, a que frustra, a que d bronca ou expressa seu cansao e insatisfa-o, no a mesma que acolhe, conversa e d de mamar. A criana percebeduas figuras dspares e o faz para preservar, de seu dio, a me como objetos bom. Pois bem, o mesmo ocorre com a figura paterna, especialmente nocaso da menina e, mais especialmente, quando a menina enamora-se dopai, a partir dos seis, sete anos at uma fase tardia de sua vida.

    Vejamos ento, com o auxlio de Ferenczi, a complexidade desseprocesso. A criana est diante de um pai abusador que invade seu quarto,nica e exclusivamente para sua satisfao pessoal. Este age como umagressor, mas no um agressor qualquer.

    Como um animal em busca da presa que devota toda sua fora, suaspalavras e seu comportamento a um nico fim: a obteno de seu prprioprazer. Para a criana uma cena estarrecedora. Pior do que ser atacada

    11 Ferenczi, Sandor. Confuso de lnguas entre os adultos e a criana..In: Sandor Ferenczi-Obras Completas.So Paulo: Martins Fontes, 1992, v.4, p.97-106

    ENDO, P. Tortura: aspectos...

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    VIOLNCIAS E ASPECTOS DO CONSTITUINTE

    Sonia Maria Bley1

    Oque se convenciona situar no mbito das violncias tem delimita-es e matizes diversos. Os delineamentos por onde elas se ins-crevem como questo, so partilhados por diferentes reas do co-nhecimento e que, com abrangncias singulares, abrem novas e velhas in-terrogaes. Algumas abordagens, por vezes, implicam recuos e esvazia-mentos no desconforto dos efeitos de violncias assistidos, compactuados,vividos, sentidos na pele, no corpo individual, social e cultural.

    As violncias no so novidades, mesmo que se acrescente a, nomenos violenta, explorao por nuanas sensacionalistas, do que instiga odesafio sempre maior a padres j conhecidos de sua materializao. En-to, um dos questionamentos comuns sobre as possveis modificaesque especifiquem o engendramento de suas formataes na atualidade.

    No raras vezes se atribui s mudanas a um avano quantitativo,por conta do desenvolvimento tecnolgico e cientfico, que proporcionamcondies cada vez maiores ao homem para afinao de seus instrumentospotencialmente destruidores. No entanto, a orquestrao do instrumentaloriundo da cincia linguageira. Ela, em seus moldes, consiste na depura-o crescente de um conjunto de enunciados esterilizados e higienizadosde fatores intervenientes e de incompatibilidades. Em que medida isso favo-rece uma violncia operacional de banir o sujeito falante da cena, onde esseproduz sua singularidade, at mesmo e, principalmente, quando se trata detentar explicar cientificamente as causas das violncias? No entanto, naera cientfica, tecnolgica, articulada ao estgio atual do capitalismo, cujomodelo econmico promotor de excluses e objetivador de relaes, per-

    1 Presidente da Associao Clnica Freudiana So Leopoldo RS

    Mas a troca mais espria: oferece-se a vergonha em troca do alvio;o desejo, a fidelidade, a honra e o compromisso, sustentado at ento aduras penas, em troca da prpria vida. Nada mais justo e perdovel. Mas, aocontrrio, quele que se permitiu sobreviver resta a culpa de ter se animalizado,como diz Helne Clastres, virado bicho.

    Nada mais ingrato para aquele que foi castigado pela fora de suaspalavras, de seu discurso e de sua ao poltica. Aquele que lutou por umanova cidade, um novo pas, e que se v, muitas vezes, auto exilado, incapazde ser devolvido a ela.

    isso que perfaz a identificao com uma figura srdida que, numinstante de fragilidade extrema, foi admirada, querida ou idealizada. Umailuso forjada pelo trabalho psquico para poupar-se da dor e do sofrimento.Encontrar algo familiar em meio ao deserto da tortura. Criar uma miragempacificada onde tudo isolamento, dor e eternidade.

    Embora fracassada, a identificao com o agressor um recurso limi-te de sobrevida do psiquismo e deve ser acolhido como uma forma de sobre-vivncia psquica em meio ao sofrimento absoluto e ao terror da aniquilao.Conduz a culpabilizao e ao sofrimento, mas seu princpio a sobrevivn-cia. Paradoxo que s pode ser explicado atravs da elucidao dos proces-sos inconscientes e dos mecanismos de proteo do eu.

    Circunscrevi-me nesses breves comentrios tortura poltica, porquejulguei importante voltar a falar sobre ela. Convivemos com muitas e novasformas de tortura, onde os resultados, os processos e os personagens sooutros. Outrora os militantes, agora os pobres. Em outra ocasio precisocontinuar falando sobre isso.

    BLEY, S. M. Violncias e aspectos...

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    Instaurado o mbito da falta no Outro, o falante ter que articul-la emnveis constitutivos muito diferenciados de descompasso entre a palavra e acoisa que se presentificam, ora mais, ora menos, quando algo representauma ameaa que incide na constante revisita dialtica eu-outro.

    Se a ajuda alheia, ento, que primeiro se presentifica como Outro,ela no em si suficiente no que vai se constituindo como o complexoprocesso das identificaes, no qual o no mais alcance no Outro e doOutro, no desdobramento da Coisa enquanto perdida, sofre destinaes quedo tinturas na gradao da suportabilidade ao lidar com a alteridade. Nocaptulo VII do texto Psicologia das Massas e Anlise do Eu (1921) a iden-tificao dita como: [...] desde o comeo precisamente ambivalente, elase presta tanto para expresso de ternura como para virar desejo de elimina-o. (p.44) O ato canibal implica que a apreciao do objeto equivale aaniquil-lo pela incorporao em si.

    Lacan situou a antecipao no plano psquico da unidade ideal docorpo, que seria uma captao pela imagem como primeiro momento naarrancada da dialtica das identificaes. Essa captao vem, desde ento,demonstrar toda a dialtica do comportamento da criana na presena deseu semelhante, cujas reaes emocionais esto articuladas em umtransitivismo normal, como no exemplo da criana que bate e diz que bate-ram nela. numa identificao com o outro que ela vive da impotncia ostentao uma ambivalncia estrutural que faz identificar o seduzido com osedutor, o submetido com o tirano e o autor com o espectador. H a umaencruzilhada estrutural que, se fixada na imagem que aliena em si mesmoo eu, cristaliza numa tenso interna que desperta o seu desejo pelo objetode desejo do outro, o que no se d sem uma concorrncia agressiva.

    Como observa Freud, no texto Das Unheimliche (1919), na histria deHerdoto bem como nas de outros autores, passeamos por lugares como,por exemplo, no do ladro e no no lugar da princesa (vtima). Noutros mo-mentos a vitimizao nos causa efeito risvel e em outros, ainda, efeito repul-sivo. Ou seja, h uma veiculao do si mesmo na conduta do outro, seja porao, cumplicidade, vitimizao ou como algo expectvel.

    duram singularidades regionais, diferenas pessoais e culturais entre comu-nidades e pases, tambm no que tangencia as apresentaes das chama-das violncias. Diferenas e peculiaridades essas que no declinam diantede explicaes homogeneizantes e simplificadoras. Neste sentido, uma com-plexidade especfica tambm acompanha as tentativas metapsicolgicas deabordagem dessa temtica.

    Considerando que a entrada da cria humana na linguagem no se dsem uma violncia de efeito humanizante, as marcas singulares atraves-sam, tanto a criatura, como o contexto onde ela se insere e, para o qual tam-bm contribui singularmente. Tendo como matriz que o encontro com o outro sempre violento, uma vez que se trata sempre da alteridade que capaz debrotar do si prprio, est sempre lanada a questo de suportar o si mesmoem outrem. Ou seja, suportar a diferena, pois no surgir do outro no se tema si prprio. o que Freud prope como matriz desse exerccio de estran-geiridade, desde seu Projeto para uma Psicologia (1885), quando em rela-o s vivncias (erlebnisse) de satisfao e de dor, situa a ajuda alheia(fremde Hilfe), como presentificao do outro em ao especfica, enquantorequisitada a partir de um escoamento (Abfuhr) condutor de alterao inter-na, como o choro ou o grito. Alterao essa, enquanto via de escoamento(Abfuhrbahn), que supe a luta ativa, viva e [...] alcana assim, a maisimportante funo secundria do entendimento/ do acordar [...] (p. 410-11).Nessa interao ativa desde o incio, na instigao para que o outro seapresente, que o objeto hostil substitui, do mesmo modo, o estado da dor,caso haja algum investimento (Besetzung) por uma nova percepo. Ora,so os resduos dos dois tipos de vivncias que passam a engendrar, adesdobrar-se, desde o comeo no topar com o Outro, os estados de afeto edesejo.

    Um ano aps a escrita do Projeto, Freud escreve a Fliess, em suacarta 52, de 06 de dezembro de 1896, ao referir-se s vertigens e ao choro[...] tudo isso creditado (berechnet) a outrem (auf den Anderen), em geral,aquele inesquecvel pr-histrico Outro, o qual no mais acessado/alcan-ado posteriormente.(p.9)

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    de cada falante. Cada singularidade constituda por violncias e que ela,por sua vez, engendra como co-partcipe em seu contexto.

    Como ressalta Freud (1915), fundamentando seu posicionamento so-bre a no existncia da erradicao do mal, apesar da consistncia daspulses, em si mesmas, no ser nem boa nem m, a manifestao do malse d na relao com as necessidades e as exigncias da comunidadehumana. (p.41)

    As moes pulsionais passariam por um longo caminho de desenvol-vimento para ativarem-se com a expresso que tm no adulto. Sofreriaminibies, novos endereamentos, fuses, alteraes, transmutaes e re-verses, inverses e fixaes como possveis destinos. Ento o humanoseria [...] bom em algumas relaes; ruim em outras ou bom sob certascondies externas; sob outras, decisivamente mau. (p.41-2)

    Muito embora mal e violncia no se recubram enquanto conceitos,os malefcios da violncia humana, s vezes se mostram como irrompimentosbruscos e em outras situaes como imbricados de forma mais sutil notecido linguageiro.

    Abordamos no texto Familiaridade Estranha da Violncia (2005) umacomplexizao necessria do estranho-familiar, naquilo que tende a fechar-se em polarizaes convencionadas por seu carter de incompatibilidade.Um dos exemplos iniciais trabalhados naquela ocasio trazia a notcia deuma pesquisa, a qual veiculava a idia de violncia por oposio docilidade,presteza e solidariedade, demonstradas na populao da mesma cidade. Aomesmo tempo surgia ali uma abertura para o lugar da surpresa e doestranhamento, onde comumente se esperaria que um plo ocultasse,secretasse ou anulasse o outro. O vir luz de algo que deveria ter permane-cido inacessvel participa da abrangente questo do Unheimliche. oestranhamento, a partir do familiar, que d a este ltimo algum estatuto deidentidade. A identidade do lado da alteridade, da estrangeiridade abre umleque em que se perdem as purezas das antteses. Em que registros entoestariam operando os contrastantes heimlich e unheimlich para, por vezes,um recobrir o seu oposto?

    A agresso enquanto tensionamento da estrutura narcsica de identi-ficao com o rival s possvel se preparado pela primitiva rivalidade consi-go mesmo. A identificao edipiana transcende essa primeira agressividadeconstitutiva numa possibilidade outra da assuno afetiva do prximo. Porvezes as frustraes ficam detidas num curto-circuito na situao edipiana,sem nunca mais se engajar numa elaborao [...] (Lacan, 1950, p.136).Para tanto, o exerccio da agressividade humana, enquanto um motor pulsional,deve seu incio a essa precariedade e desamparo do aparelho psquico. Apa-relho esse que, segundo Freud, percebe, traceja, inscreve traos simultne-os, de tempos em tempos revira-os, ou seja, promove uma Umordnung. Amemria de traos, por sua vez, desdobrada em vrios tempos, onde sem-pre sob novas circunstncias tambm passvel de uma mudana nessainscrio/reordenamento de escrita (Umschrift). Os descompassos do cor-po psicofsico, enquanto inscritos (Niederschrift) e retranscritos (Umschriften),implicam representaes das perdas na traduo em vrios nveis deestratificaes.

    O desdobramento desse operador sempre Outro desfusionador deum corpo unificado na dupla me-criana, na abolio do tudo amor outudo indiferena violncia necessria. Sem essa operao, no resul-taria no Um que outro contvel e, portanto simbolizador da falta. Semela, um fusionamento unificador massivo imporia sua violncia maior.Desse modo, o Outro alteridade no s, porm prioritariamente discursivaque permeia e agencia, dentre outras coisas, violncias. Essa instnciaOutra abrange aquilo que Freud reitera no Mal-Estar na Civilizao (1923),enquanto sendo a relao do humano com o outro o que lhe impe suamaior fonte de sofrimento. E, de certa maneira, as outras duas fontes,por ele apontadas, subordinam-se a mesma questo no Outro, uma vezque a relao consigo mesmo e com os bens e a propriedade portam eveiculam as mesmas marcas de sofrimento que a relao com o semelhan-te.

    Desse modo, a complexidade que pode suscitar as preocupaescom as roupagens violentas no social, abre-se da mesma forma na escuta

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    seja, de um outro do si mesmo, diz do que se fixa no empossamento doOutro. Fixao unificadora essa, que materializa o diferente, o estrangeirocomo inimigo.

    A imaginria positivao da mesmice mortfera pode, na tentativa delidar com estilhaamentos do eu primitivo, solucionar-se pela agresso comoprocesso resultante do fracasso de outra soluo defensiva. A ao defensi-va ancorada na relao dual e igualitria forclusiva do Outro. E o que seimpe, desde Lacan, que as modificaes, que tambm podemos esten-der para as formataes violentas atuais, implicam em grande parte, que areferncia tridica vem se reduzindo autoridade paterna. Essa, enquantotrao de palavra subsistente, cada vez mais encontra-se instvel e obsoletana valorizao e participao social, incidindo com fora violenta naspsicopatologias.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BLEY, S. M. Familiaridade Estranha da Violncia. In. HARTMANN, F; ROSA JR,N.C. D. da (org.) Violncias e Contemporaneidade. Porto Alegre. Artes e ofci-os, 2005.

    FREUD, S. Carta 52(1886). In . Bulletin de LAssociation Freudienne Internationale(Novembro, 2001), no 95.

    ______, S. Massenpsychologie und Ich-Analyse.(1921). Frankfurt-am-Main. FischerBcherei. 1967.

    ______, S. Das Unheimliche(1919). Frankfurt-am-Main:S.Fischer Verlag,Studienausgabe, 1989.

    ______, S. Zeitgemsses ber Krieg und Tod (1915). Frankfurt-am-Main. FischerVerlag. 1993.

    ______,S. Das Unbehagen In Der Kultur (1923). Frankfurt-am Main. F. Verlag.1984.

    LACAN, J. Introduo Terica s Funes da Psicanlise em Criminologia. 1950.Rio de Janeiro: Zahar. 1995.

    O Unheimliche est ligado a uma desorganizao fantasmtica ondeos limites imaginrios entre sujeito e objeto, como irreconciliveis, precipi-tam um delineamento pela sada destrutiva, violenta. O estranhamento en-quanto inquietante no especfico de um nico tipo estrutural escutado naclnica, e sim participa de vrios, onde ativadas algumas representaes, ourestos de imagens estratificadas de forma varivel para cada um, no seencontra, s vezes, definitivamente no que j estaria recalcado. Como jmencionei2 em outra oportunidade, pode estar rejeitado, recusado ou aindaem reserva de ser construdo, falado, elaborado.

    O temor, o estarrecimento, o amortecimento, a banalizao, a queixa,a vitimizao, a viso, o ato e, mesmo o relato de algo violento praticado,engendram recursos de linguagem como obscurecimentos, deslocamentos,deturpaes, alheamentos, alienaes, repdios, negaes e recusas quedizem do jogo de aes defensivas (Abwehren). Jogo esse, que articuladornos meandros tambm daquilo que irrompe como mal na aparncia de fratu-ra exposta a ser nomeada como violncia.

    O estranhamento como expresso crua do ntimo, primitivo engolfadorfamiliar, no que traz de aparncia inatingvel, inexplicvel, estrangeira, com-parece quando o que comanda a cena no ainda nomeado. O no nomea-do ancora-se no desamparo do que seria o extremo do familiar, longe doolhar interventor forasteiro. Esse endosso incide na possibilidade do retornoda alteridade viabilizar-se como hostil e persecutria. As negaes mortfe-ras so geradas, confundindo dois momentos em que o sujeito nega a simesmo e acusa o outro, imputa algo a ele, na estruturao paranica do eu,que pode mostrar-se pela projeo.

    A execrao do diferente, daquele que s vezes visto apenas comoobstculo a uma satisfao pessoal imediata, e que no se suporta emdiferentes medidas, mas que identificado sempre a partir do si prprio, ou

    2 BLEY, S. M. Familiaridade Estranha da Violncia. In. HARTMANN, F; ROSA JR, N. C. D. da(org.) Violncias e Contemporaneidade. Porto Alegre. Artes e ofcios, 2005.

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    condutor de toda a narrativa do documentrio e revela o quanto o poder narrare expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escom-bros e dos detritos. Por isto, este filme fala de limite. Mrio Peixoto, em umde seus inmeros poemas sobre o mar, traz uma imagem inquietante e infe-lizmente to atual. H os que preferem no ver. A vista das coisas profun-da demais para to pequeno contato. No conforto do cinema, podemos ouvire ver a vida resistindo em palavras e tirando da invisibilidade e do esqueci-mento tanta potncia. Diante da tela, fazemos contato com nossa cegueira,contato com nosso desprezo pelos miserveis, contato com o que abjeto enojento, sensaes que nada mais so do que ver o que produzimos, nasmos de outros e nas bocas de outros.

    A indignao de Estamira seu alimento e nossa esperana. No meiodos restos de uma sociedade cada vez mais voraz, ela tem o tempo demostrar o avesso das boas intenes, desmascarar o que ela chama dosespertos ao contrrio, elaborar um longo discurso em defesa da verdade (Aminha misso, alm de ser a Estamira, mostrar a verdade e capturar amentira). O lixo armazena restos e pensamentos e nos surpreende com oslaos de solidariedade e reconhecimento mtuo entre Estamira e algunsparceiros de trabalho. Ela a porta-voz desse coletivo de seres humanospotentes e esquecidos que sobrevivem graas fora do que tem a dizer.Estamira no tem papas na lngua. Sua revolta surge misturada com seudelrio, o qual tem a lucidez de apontar alguns traos do sintoma social denosso tempo: a burocratizao do saber se faz presente em sua queixa deencontrar doutores copiadores de receitas semifabricadas; o declnio dopoltico, o engano da religio, o catastrfico das pequenas e grandes violn-cias. Estamira como um espelho quebrado que revela fragmentos da vidade muitos brasileiros. Conta, por exemplo, que aos 12 anos foi levada prostituio pelo av materno, que abusava sexualmente da filha. Segue-seum casamento infeliz, marcado por um enredo to conhecido: lcool e vio-lncia. Ela sabe o valor do que tem a dizer, e o filme se sustenta em grandeparte em suas palavras. Elabora uma teoria contra o que nomeia o trocadilo.Segundo ela, este faz as pessoas viverem na iluso, e acreditar em coisas

    ESTAMIRA UMA MULHER COM QUALIDADES 1

    Edson Luiz Andr de Sousa

    Hoje em dia ningum mais parece como devia ser, pois usamosnossas cabeas de maneira ainda mais impessoal do que nossas mos.

    Robert Musil em O homem sem qualidades

    Fui ver Estamira. Experincia do limite. Pude entrar em um cenrioonde talvez jamais entraria. Pude ver o que talvez jamais veria. Pudeouvir o que certamente jamais teria a chance, no fosse a coragem ea sensibilidade de Marcos Prado, que dirige este documentrio. Lembrei dogrito de Mnch na clebre pintura: a angstia lquida se esvaindo no meio datravessia da ponte. Lembrei tambm do grito de Paolo (Massimo Girotti), orico industrial caminhando em seu deserto de desespero no final do clssicoTeorema de Pasolini. Lembrei ainda de Alain Resnais e seu perturbadorHiroshima, mon amour. Para quem se lembra, o filme comea com um em-bate de vozes entre o ver e o no ver. Diz uma voz feminina em off: Eu vi oshospitais em Hiroshima!. A voz masculina: Voc no viu Hiroshima!. Apergunta que se impe, depois de tantas imagens, a seguinte: o que ainda possvel ver?

    Estamira nos surpreende com inmeros excessos: da misria, dador, da negligncia, da violncia, do abuso sexual, das toneladas de lixo quechegam diariamente no aterro sanitrio de Jardim Gramacho, na BaixadaFluminense no Rio de Janeiro. Este excesso, contudo, contido, em parte,na determinao de Estamira, uma mulher de 63 anos, diagnosticada comoesquizofrnica e que h mais de 20 anos vive recolhendo seu sustento nolixo. Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz o fio

    1 Publicado no Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora em 4 de novembro 2006.

    SOUSA, E. L. A. DE. Estamira uma mulher...

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    Em um tempo to assptico e tcnico, seduzido pelo capital e veloci-dade, pela imagem e as vitrines coloridas, pelo prestgio sem obra e pelosespertos, pela indiferena com o outro, pela violncia que nos afoga e osilncio diante do horror, pela burocratizao do amanh o alm dos almpode ser simplesmente a recuperao de uma sensibilidade que possa seindignar diante do intolervel. No basta o talento e a coragem de mostrarem imagens esta realidade, como fez Marcos Prado, preciso ainda depessoas que queiram ver, cumprindo a fundamental funo de testemunhar.Certamente, destas imagens outras atitudes surgiro.

    que no existem. O que existe est diante de nossos olhos, para quemquiser ver. O documentrio potente em imagens e costurado com umatrilha musical densa e no ritmo dos contrastes luz/escurido, vida/morte,palavra/silncio, terra/mar. Discordo dos que tm falado em estetizao dapobreza. Prado tenta mostrar outro universo, outro olhar, e que nem sempreestamos dispostos a ver. H muitas imagens eloqentes e que nos ajudam apensar: Estamira caminhando em silncio e um mar revolto no fundo dacena, indicando uma espcie de transbordamento interior; os plsticos pre-tos do lixo no cu junto com os urubus e o som inquieto do vento mostramuma monocromia e sinfonia do desespero. Contudo, uma das cenas quemais me comoveu foi ver um dos amigos de Estamira surgir do meio do lixoe nomear um a um seus ces. Ele surge, como Fnix do meio das cinzas, erecria o mundo com a fora das palavras. Aqui nomear reconhecer, e talvezpor isto Estamira insista tanto em repetir seu nome. Prado foi preciso aointitular o documentrio com um nome prprio. O nome reconhecido faz avida resistir.

    Marcos Prado precisou de mais de trs anos para preparar estedocumentrio. Soube ser paciente e respeitar o tempo do acontecimento.Teve a autorizao de Estamira e foi para ela que mostrou em primeira moa verso final, pedindo o seu consentimento. Portanto, este um filme deverdadeira parceria e legitimidade. Prado tambm produziu em 2002 o exce-lente documentrio nibus 174 dirigido por Jos Padilha.

    Estamira nos humaniza, abre outros horizontes e recupera na voz egritos de indignao a responsabilidade do viver. Mostra tambm a mulher/me que, mesmo na misria e mergulhada no sofrimento psquico, soubecuidar dos filhos. Ela nos indica o limite, mas sonha com o alm dele. Aindabem! Como lembra Ernst Bloch, em seu Principio Esperana, A falta deesperana , ela mesma, tanto em termos temporais quanto em contedo, omais intolervel, o absolutamente insuportvel para as necessidades huma-nas. A filosofia de Estamira se move em outros universos mas no deixa demirar esta esperana. Olha o que nos diz: Tem o eterno, o infinito, o alm eo alm dos alm. Este vocs ainda no viram....

    SOUSA, E. L. A. DE. Estamira uma mulher...

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    que a experincia de escuta com adolescentes em conflito com a lei poderiafacilmente ser a resposta mais lgica e racional. No entanto, naquele mo-mento, resolvi dizer apenas que precisava pensar. Creio que tanto a questoquanto a resposta possibilitaram alguns efeitos enunciativos, pois na manhseguinte, to logo acordei, ainda tropeando nos fragmentos que restavamdo meu sonho, pronunciei uma nica palavra: tomate. Isto era tudo o queat ento eu podia lembrar do meu sonho apenas um tomate! Quanto maisforava para resgatar algum outro esboo qualquer de imagem, maior pare-cia o esquecimento. O que certamente relativamente bvio, at mesmo,para os iniciados em psicanlise.

    Ento, quando percebi o quo intil seria a minha insistncia, resolvifazer o desjejum. Olhei para minha ajudante e pronunciei um lapso: gostariade caf com toradas. Ela recentemente fora contratada e tinha um sotaquemuito forte, tpico da colnia. Diante disso, achou por um instante que eupoderia estar brincando, riu e repetiu torada? Quando ouvi a sua voz (emespelho), lembrei-me de um estimado amigo da adolescncia que no vejoacerca de 20 anos, chamava-se: Torata.

    Torata era um japons, filho de um homem muito ntegro que, alm deser um plantador de tomates, fora o nosso mestre de Karat durante ainfncia e adolescncia. Esta lembrana, imediatamente, produziu-me umasucesso de imagens desde as nossas aulas, que sempre eram acompa-nhadas de alguns princpios de filosofia oriental e de tcnicas de meditaoe controle respiratrio o que me produziu uma sensao de muito bemestar naquele momento , at a recordao de uma imagem muito forte,petrificadora, haja vista os efeitos de emudecimento que o carter violentode seu ato precipitou-me enquanto espectador. Aos poucos comeava aperceber que a partir da lembrana de um tomate e de seus imprevisveisdesdobramentos, gradativamente, tornava-se possvel responder a questocolocada pelo meu interlocutor, a saber, quando comeou o meu interessepela conjuno dos temas adolescncia e violncia.

    Era uma tarde de sbado eu devia ter 11 ou 12 anos estava acom-panhado dos meus colegas e amigos Torata e Joo. Estvamos exaustosporque havamos treinado durante longas horas, para o importante exame de

    DESAMPARO E VIOLNCIA:O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI E A BUSCA

    DESESPERADA PARA ENLAAR UM OLHAR1

    Norton Cezar da Rosa Jr

    Certa feita, numa interlocuo, foi abordado o fragmento de sonhoanalisado por Freud (1900) no clebre texto A interpretao dossonhos, no captulo VII A psicologia dos processos onricos. Tra-ta-se de um momento especial, no qual o autor analisa as implicaes acercado esquecimento dos sonhos, mostrando-nos que o trabalho do psicanalistarequer uma certa paixo pelo detalhe, na medida em que muitas vezes pos-svel reconstruir aquilo que fora perdido mediante o recalcamento do sonho, apartir de um nico fragmento remanescente, no caso, em especial, um canal.

    Freud refere que uma paciente ctica tivera um sonho meio longo doqual algumas pessoas lhe falaram de seu livro sobre os Chistes. Surgiuento algo sobre um canal, parecendo tudo muito evanescente, uma esp-cie de resduo de lembrana que esboava apenas um canal. O autor cha-ma ateno que o elemento canal, por ser to indistinto, poderia parecerinacessvel interpretao. Num primeiro momento, nada ocorreu pacientea propsito do elemento aparentemente insignificante. Entretanto, posterior-mente, ela recorda de algo, um chiste que ouvira no vapor que liga Dover aCalais, onde um autor famoso comeou a conversar com um ingls e estecitou a mxima: Du sublime au ridicule il ny a qu un pas. Sim respondeuo autor le Pas de Calais, referindo Frana como sublime e Inglaterracomo ridcula. Freud refere que a lembrana fornece a soluo para o ele-mento aparentemente intrigante no sonho um canal.

    Logo aps esta discusso, estive num evento apresentando um traba-lho sobre Adolescncia e violncia, e uma pessoa, informalmente, pergun-tou-me quando comeou o meu interesse pelo tema. Inicialmente, parecia

    ROSA JR, N. C. DA. Desamparo e violncia...

    1 O presente texto baseado em minha dissertao de mestrado, Adolescncia e violncia:direo do tratamento psicanaltico com adolescentes em conflito com a lei, orientada porEdson Luiz Andr de Sousa junto ao Programa de Ps-graduao em Psicologia Social eInstitucional UFRGS, defendida em 30 de novembro de 2006.

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    pai do menino vamos, reage... reage que eu tambm o destruo. O poderdestrutivo de suas palavras, acompanhado do dio, que saltava de seus olhosesbugalhados, e da fora brutal de seus braos, que insistiam em marcardolorosamente o corpo do seu filho, rapidamente anestesiou as pernas deJoo, e ele subitamente desmaiou.

    Logo aps, seu pai largou-lhe no cho e, novamente, como numaespcie de relmpago, se dissipou pela estreita e infinita rua, donde cega-mente foi embora sem sequer olhar para o seu horrvel feito. Ao vermos ocorpo do nosso amigo estirado no cho, finalmente conseguimos sair denosso estado de petrificao e rapidamente procuramos ento acord-lo elev-lo para sua casa. Assim que chegamos, era possvel escutar os solu-os de seu irmo caula. As marcas em seu corpo denunciavam que recen-temente havia sido espancado. Como nica e desesperada tentativa paradefender-se de seu algoz, havia pronunciado ao seu pai O Joo um dia vaime proteger e bater em voc. Passados alguns meses, ficamos sabendoque o menino era espancado com relativa freqncia.

    Joo gradativamente foi se afastando das aulas, suas pernas pareci-am anestesiarem-se para sempre, pois, freqentemente, sofria distenses econtuses musculares, curiosamente sempre nos membros inferiores. Duran-te muitos anos perdemos o contato com ele, algumas informaes apontavamque sua famlia mudara-se para uma cidade vizinha. Passados alguns anos,tomamos conhecimento de que ele havia se envolvido com pequenos furtos etornara-se lder de gangue, adquirindo em sua histria as tristes marcas dealgumas passagens pela antiga FEBEM, vindo infelizmente a falecer.

    Este pequeno fragmento que restou do meu sonho um tomate ,resgatou um universo de recordaes, nas quais pude perceber que o meuinteresse para pesquisar as relaes entre adolescncia e violncia, tam-bm decorre de uma cena traumtica2 que vivenciei quando adolescente.2 Quanto s relaes entre a pesquisa psicanaltica e a cena traumtica, sugerimos a leitura dedois textos muito importantes: A cena primria do psicanalista, de autoria de Mrio Corso e,A violncia no corao da cidade, de Paulo Endo. Ambos, atravs de diferentes caminhos,demonstram que a pesquisa psicanaltica decorre de um certo resduo traumtico, o que nosleva a pensar que a formao do psicanalista, alm de ser uma espcie de tentativa deresoluo deste enigma, implica, necessariamente, ter que se haver com o processo de escrita.

    troca de faixa, que iramos prestar na prxima semana. Joo era o melhor emais dedicado aluno da academia, alm da postura conciliadora de ser com-pletamente avesso a conflitos e incapaz de agredir ou revidar com agressoa qualquer pessoa, possua um domnio tcnico admirvel, principalmentecom a destreza e flexibilidade de suas pernas, o que lhe rendeu os principaisttulos nacionais e internacionais de sua categoria. Quanto a sua vida parti-cular, sabia-se pouco, pois alm de disciplinado era muito reservado. Ape-nas tnhamos conhecimento que era de famlia humilde e que seu pai enfren-tava alguns problemas com a bebida.

    Ouvimos algum dizer que o nosso professor cerca de seis anosatrs sensibilizado com a situao do menino, que periodicamente apare-cia para assistir os treinos, ofereceu-lhe uma bolsa gratuita, fazendo apenasdois pedidos: que no se envolvesse em conflitos e cuidasse da limpeza doDojo (local onde ocorriam os treinos). Os pedidos para Joo soavam comoexigncias, o que certamente mostrava-nos que nosso Mestre teria muitosmotivos para se orgulhar de seu futuro discpulo.

    Naquela tarde, logo aps o treino, quando estvamos descontraida-mente retornando para as nossas residncias, j nas proximidades da casade Joo, como numa espcie de relmpago, vimos um homem, tomado porum acesso de fria, agarr-lo violentamente no pescoo e jog-lo em direoa um porto, deixando-o completamente encurralado e fitando-o de formafulminante e aniquiladora. Tanto a violncia do corpo que se impunha abrup-tamente quanto o poder destrutivo de seu olhar pareciam imobilizar eanestesiar o nosso amigo que, certamente, teria plenas habilidades para selivrar do agressor em fraes de segundos, caso esse no fosse o seu pr-prio pai. Quando percebemos de quem se tratava, ficamos to ou mais para-lisados que o prprio Joo. Neste momento, estvamos todos congeladosnuma cena que nos incapacitava de ensaiar qualquer tentativa de reao, aqual possivelmente iria retornar em nossos pensamentos por muitos anos,marcando sensivelmente as nossas vidas.

    Foram apenas alguns segundos em que todos pareciam medusadosem face de tamanha barbrie. O silncio foi rompido com uma nica frase do

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    quase uma absoluta incapacidade de esboar um horizonte de futuro qual-quer , a privao de acesso aos objetos de consumo, tendo como respostao furto ou a depredao como uma espcie de tentativa, ainda que s aves-sas, de exercer um poder, jogam-lhes, no raras vezes, em condies soci-ais ultrajantes. O desamparo que da possa advir se materializa como umterreno frtil para a busca de reconhecimento e visibilidade social a qualquerpreo, onde a violncia pode se apresentar como uma via perigosa parasuportar a dor da prpria existncia. justamente a, que o acesso ilegtimoaos objetos, seja para ser destrudo, furtado ou roubado, seja simplesmentepara utiliz-lo enquanto uma espcie de amuleto de ostentao de insgniasde poder ou, at mesmo, como um banal objeto de troca, pode lev-los aconfrontar a lei. Entretanto, ao interrog-la, o adolescente demanda um olharque o reconhea e ao mesmo tempo o contenha, demarcando assim, tantoa fragilidade dos laos simblicos que o singulariza, quanto a sensibilidadede precipitar-se em face de um real que insiste em invadi-lo, colocando a suavida sempre em risco, atravs da tentativa desesperada e paradoxal de semanter vivo, estando sempre no limiar da morte.

    Nessa busca desenfreada, a angstia facilmente d vazo velocida-de e ao oportunismo, presentes no famoso lema da banda Sex Pistols: vivarpido e morra jovem. O intrigante enunciado, estampado na camiseta dealguns adolescentes, os quais tive a oportunidade de escutar, aponta umimperativo a no sacrificar o prazer de hoje pelo fragilizado e incerto ideal desegurana de um possvel amanh. Ocorre que esta angstia e busca dereconhecimento situa-o numa lgica desesperada para fisgar uma espciede brilho qualquer no olhar do outro, pois o adolescente em conflito com a leiparece estar encurralado numa trgica lgica especular, pois supe que, doponto ao qual este outro o espia, recaem insgnias de morte. Isto os leva aformular a hiptese que este requer a sua perda, evidenciando assim, umaespcie de fixao no terceiro tempo do circuito pulsional proposto por Freud,em As pulses e os destinos das pulses, a saber, se fazer ver.

    Aps esta hiptese, de imediato pode surgir a seguinte questo: quaisseriam os fatores que contribuem para esta imperiosa necessidade de se

    Emudecido e paralisado, percebia o olhar fulminante de um pai que pareciadenunciar o sofrimento em face ao desamparo a que Joo estava jogado, merc de uma continncia paterna, jogando-o, posteriormente, na delinqncia,como uma espcie de tentativa desesperada de buscar reconhecimento,desafiando as bordas da lei diante da avassaladora angstia de tentar refundarum pai a cada instante.

    Em nossa prtica clnica com adolescentes em situao de conflitocom a lei, alguns detalhes, a partir da escuta dos pais, defrontou-nos com aquesto do desamparo. Num primeiro momento, estes nos pareciam, apa-rentemente, contraditrios. Entretanto, no transcorrer do trabalho, percebe-mos que a suposta contradio implicava num mesmo destino, a saber:jogavam-lhes num sentimento de profundo e radical desamparo. De um lado,apontam a quase absoluta incapacidade de reconhecer um saber prprioacerca do que se passa com o seu filho, delegando a quaisquer outros (juzes,assistentes sociais, psicanalistas, educadores, etc...), a possibilidade delidar e impor limites mediante a fragilidade de simbolizao das leis queregem o seu precrio convvio social; de outro, evidencia-se um discurso queparece encarnar um saber absoluto, onde a truculncia se apresenta comonica sada para responder aos atos delinqentes de seus filhos; emcontrapartida, ressalta-se tambm, uma espcie de sutil autorizao dospais em relao aos delitos de seus filhos, representados ora atravs danegao da gravidade do ato cometido, ora pela incapacidade de reconhec-lo como autor e responsvel pelo dano causado a si mesmo, enquanto sujei-to, e sociedade, a qual, permanentemente, busca desalojar. Diante dis-so, seja atravs da impossibilidade de, minimamente, conter os mpetos deviolncia, seja mediante a imposio da violncia fsica, ou at mesmo emfuno da incapacidade de reconhecer a gravidade e a autoria do ato infratorcometido, estes discursos denunciam a fragilidade simblica dos pais emlidar e servir de continncia frente s fraturas da relao de seus filhos coma lei.

    A fragilidade das referncias paternas, somada falta de perspectivasdos adolescentes em relaes aos seus ideais a ponto de demonstrar

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    te, podemos supor, que o adolescente infrator no possui demanda de an-lise, pois geralmente a busca de tratamento segue uma prescrio jurdica,a qual, muitas vezes, comporta um pedido explcito de padronizao s nor-mas que regem um convvio social harmonioso. O que, por sua vez, requerum delicado manejo transferencial, sobretudo no que diz respeito s deman-das corretivas e adaptacionistas, to evidentes nas falas das fontesencaminhadoras, interrogando sensivelmente o lugar do psicanalista medi-ante a demanda que lhe endereada.

    neste sentido que estes adolescentes vo testar at que ponto opsicanalista deseja escut-lo, ou simplesmente, responder do lugar de umaengrenagem que est perfeitamente instrumentalizada com manuaispsicologizantes e saberes generalistas, ou at mesmo, em sintonia com asviolentas burocratizaes instituicionais para situ-lo nos perigosos, senoperversos, caminhos do bem. Muitas vezes, esta dvida inicialmente semanifesta atravs de endereamentos pejorativos e, at mesmo, com umacerta assepsia de desqualificao do trabalho suposto no lugar do analista,como por exemplo, e a, trouxa..., esta foi a primeira palavra endereadapor um menino quando nos encontramos pela primeira vez. Em outros mo-mentos, o repdio anlise poder estar ordenado a partir de um enunciadoque tende a se repetir de forma muito intensa, qual seja: desista de mim.Ao nos depararmos com esta prtica, perceberemos a fora da suposioque, na verdade, recai no sujeito com o estatuto de uma sentena, a saber:o seu entorno deseja a sua perda. O sentimento de desamparo e a necessi-dade de reativ-lo a qualquer custo, jogam-o numa constante repetio deinsistir por diversos mecanismos que desistam dele, mesmo porque istocomprovaria sua hiptese de que o outro lhe enderea insgnias de morte.

    Isto nos leva a supor que a escuta de adolescentes em conflito com alei tem como princpio tico fundamental, semelhante a qualquer outro traba-lho clnico, acolher e apostar nas palavras enunciadas pelo analisante. Dian-te disso, somente a partir do reconhecimento de sua condio desejante,ou seja, no segregando os ouvidos na dimenso do ato violento/infrator doqual o sujeito autor, que viabiliza-se um espao possvel de escuta de

    fazer ver a qualquer custo? Desde o incio deste trabalho, supomos que estaangstia era um sinal, o qual, atravs de um tmido pedido de socorro, bus-cava enlaar um olhar que pudesse testemunhar a sua condio de desam-paro. Isto nos levou a escutar a dimenso do conflito com a lei, como umadenncia, em face da situao de desamparo que estavam submetidos, hajavista a impotncia da funo paterna para situar limites aos excessospulsionais e mpetos de violncia de seus filhos, bem como a fragilidadedestes adolescentes em lidar com alguns dos imperativos e valores sociaispriorizados em nossa cultura (os apelos frenticos do consumismo, a expo-sio do corpo enquanto mercadoria mediante o imperativo do gozo escpico,o individualismo exacerbado face ao rechao s j fragilizadas heranas sim-blicas). Ambos, potencializados pelos impasses prprios da adolescncia,configuram-se como alguns dos dispositivos que parecem jog-los na solit-ria rede do individualismo contemporneo, atravs da busca desesperada dereconhecimento.

    Esta busca faz de suas vidas um insuportvel sofrimento cotidiano,pois esse brilho que eles tanto reivindicam, parece-lhes evanescente, pulve-rizado e indiferenciado no social, podendo ser todo mundo e ningum aomesmo tempo, ou seja, pouco importa de que lugar advenha este olhar, poiso que importa mesmo , simplesmente, atestar as insgnias que ele supeque o outro lhe enderea, insgnias de morte. Isto os leva a se defrontaremcom um horizonte que tende a se dissipar constantemente, restando-lhes oarrombamento, a violao, a captura, ou seja, um verdadeiro vale tudo,como tentativa de testar todas as possibilidades para fisgar um naco deolhar, ainda que, para isto se dar, seja necessrio ir para a priso ou, atmesmo, pagar com a prpria vida. Neste sentido, sua lgica especular desupor que o outro requer a sua perda, pode lev-lo ao encontro de uma prisoreal, como uma espcie de materializao do crcere subjetivo que vive,confirmando assim, a hiptese suposta no campo do Outro.

    A peculiaridade do sofrimento psquico que o apelo deste olhar produznestes sujeitos mostra-nos apenas alguns dos inmeros questionamentos edesafios deste trabalho. preciso considerar tambm que, precipitadamen-

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    mente simbolizada face ao eminente desmantelamento da sua prpria imago.Isto nos parece fundamental, pois entendemos que o sujeito, impotente emface dessa posio de desamparo, pode encontrar como defesa, possvel eeminente, o ataque ao outro, ou seja, o desamparo vivenciado retorna atra-vs da impactante crueza que o real da violncia lhe imps. Ento, ao tocar-mos nesses significantes, possivelmente, estaremos possibilitando-lhe umacerta apropriao simblica de algo que poderia lhe precipitar num ato real,aniquilador de sua subjetividade, ou at mesmo, mortfero.

    Enfim, o trabalho implica uma certa paixo pelo detalhe, detalhe esseque busca um testemunho na medida em que parece enunciar algo da di-menso do sofrimento do outro, quer seja: um canal, um tomate ou, atmesmo, um trouxa. Como sabemos, a clnica psicanaltica nasceu da pai-xo de Freud pelos detalhes (sonhos, atos falhos, chistes, sintoma histri-co), ainda que estes fossem considerados uma espcie de lixo para o mode-lo de cincia vigente em sua poca. A partir da ressignificao destes deta-lhes, talvez o adolescente em conflito com a lei, no precise mais responderao imperativo de viver to rpido e, tampouco, morrer to jovem.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASCORSO, M. A cena primria do psicanalista. In: Narrativas em psicanlise. Cor-

    reio da APPOA. Porto Alegre, n.133, maro, 2005.ENDO, P. A violncia no corao da cidade: um estudo psicanaltico sobre as

    violncias na cidade de So Paulo. So Paulo: Escuta/Fapesp, 2005.FREUD, S. A interpretao dos sonhos (1900) In: Obras completas. Trad. Jaime

    Salomo Edio Standart brasileira, vol.IV, Rio de Janeiro, Imago, 1996._________. As pulses e os destinos da pulso (1915) In: Obras Completas.

    Trad. Jaime Salomo, Edio Standard brasileira, vol. XIV, Rio de Janeiro,Imago, 1996.

    LACAN, J. O Seminrio Livro 1 : Os escritos tcnicos de Freud (1953-54). Rio deJaneiro, Jorge Zahar, 1996.

    _________. Agressividade em psicanlise (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1998, p.104-125.

    _________. Introduo terica s funes da psicanlise em criminologia (1950).In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p 127- 151.

    algo que singularmente pode se constituir enquanto demanda em suasfalas. Entretanto, este algo no se trata de qualquer coisa, ou at mesmo,de algo que possamos julgar importante ou essencial para o tratamento.Trata-se apenas de um detalhe que, aos olhos do adolescente, possa serreconhecido como um testemunho de sua histria. Isto requer a sensibilida-de do psicanalista em apontar determinados significantes presentes no dis-curso do analisante, os quais, alm de situarem a sua condio de desam-paro, evidenciam o lugar de ignorncia acerca do que se passa com ele.Caso contrrio, o adolescente em conflito com a lei continuar vindo ao ana-lista, simplesmente, para responder ao ordenamento jurdico que lhe im-posto.

    justamente nesta condio de reconhecimento da ignorncia dosujeito, em relao aos impasses que, sobretudo, ele os reconhece enquan-to tal, que reside a possibilidade do incio de um trabalho psicanaltico. Con-forme ressalta Lacan (1953), se o sujeito no se posiciona num lugar deignorncia, no existe entrada possvel numa anlise, pois essa posioque poder implic-lo na pesquisa da verdade, ocasionando, assim, umaespcie de abertura transferncia.

    Como podemos perceber, a leitura de Lacan pode trazer importantescontribuies neste complexo, inquietante e obscuro universo. Destacamosneste momento, dois clssicos de sua obra: Introduo terica funo depsicanlise em criminologia, pois ao propor uma discusso sobre os com-plexos caminhos do crime, percebe a necessidade de recorrer ao tema dodesamparo na histria do sujeito; assim como, Agressividade em psicanli-se, onde o autor refere que uma suposta ranhura na imagem idealizada,pode desencadear uma espcie de desmantelamento da imago, da identifi-cao original, o que pode levar o sujeito a precipitar-se num ato violento.

    Portanto, Lacan lana algumas luzes para refletirmos acerca das pos-sibilidades de direo de tratamento com adolescentes em conflito com alei, convocando-nos a acolher os significantes que no transcorrer do proces-so analtico situam o desamparo vivenciado pelo sujeito ao longo de sua vida,deixando-o jogado num excesso de excitao que no pde ser suficiente-

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    xos e centrais, que so exatamente os mesmos problemas que Freud e ogrupo freudiano enfrentou nas vrias incurses do pensamento freudiano emdireo aos fenmenos sociais e polticos. Ou seja, no podemos aceitaracriticamente usos analgicos transpostos dos processos de singularizaovigentes na situao analtica para a leitura dos fenmenos sociais. Assim,termos como sintoma social, superego da cultura, fobia social, sociedadetraumatizada e outros, utilizados as pressas por psicanalistas ou no, reca-em numa mercadologia do uso social da Psicanlise que no nos ajuda, epior, no contribui em quase nada no debate interdisciplinar.

    Creio que o uso analgico de termos psicanalticos, recai num confor-mismo terico que no pode nos fazer avanar neste debate, sendo de pou-ca importncia tanto para a psicanlise quanto para outros saberes. Entopropus, em meu livro, um debate interdisciplinar tendo como ponto de partidaas descries fundamentais desta face epidrmica, complexa e fundamentaldas violncias, dialogando, sobretudo, com a antropologia urbana e o pensa-mento social contemporneo que, por sua vez, indicaram a direo de minhapesquisa metapsicolgica.

    A alegria do prmio foi sentir que o mais importante prmio literrio dopas reconheceu e compreendeu estas minhas preocupaes e este meuprojeto, embora o livro represente apenas o incio deste trabalho.

    Correio da APPOA: Em que medida a complexa relao da violncia

    urbana, geralmente consagrada como campo de investigao da sociologia,histria e antropologia, pode ser compreendida a partir das formulaesconceituais psicanalticas?

    Paulo Endo Esta uma pergunta importante. A violncia urbana aviolncia institucional, ela compreende estas formaes e sistemas violen-tos que se enrazam em determinados contextos e que neles adquire umacapacidade de multiplicao extraordinria. Se no debate sobre a violnciaintra-familiar, a violncia de gnero, a violncia contra a criana sempre hum lugar reservado para o psicanalista e para o psiclogo, o mesmo no

    ENTREVISTA COM PAULO ENDO

    Nesta entrevista, a equipe do Correio da APPOA props algumas ques-tes a respeito da temtica desse nmero.

    Correio da APPOA: O seu livro, recentemente publicado pela FASEP/ESCUTA: A violncia no corao da cidade um estudo psicanaltico sobreas violncias na cidade de So Paulo, recebeu o prmio Jabuti 2006, nacategoria Educao, Psicologia e Psicanlise. Acreditamos que esse um importante reconhecimento na cultura do trabalho de um pesquisador,diante disso, gostaramos que voc pudesse falar um pouco acerca da leitu-ra que fizestes deste momento, bem como, das interessantes relaes pre-sentes no ttulo entre violncia, corpo e cidade.

    Paulo Endo Primeiro, gostaria de agradecer a possibilidade de con-versar com os leitores do Correio sobre este trabalho. Lembro com prazer donmero do Correio que, junto com meu grande amigo Edson Sousa, organi-zamos h um tempo atrs intitulado As faces da Violncia. Queramos,naquele momento, indicar a importncia fundamental das diferentes expres-ses faciais, epidrmicas das violncias a partir da leitura de alguns psica-nalistas que j trabalhavam nesse campo interdisciplinar e tenso, onde sediscute clnica e sociedade, metapsicologia e teoria poltica.

    O mais importante que as expresses faais das violncias nopodem, de modo algum, serem negligenciadas por quem quer que queirarefletir sobre seu impacto; isto porque em uma srie imensa de situaes omodo da expresso da violncia define quase tudo do ponto de vista social epoltico. Por exemplo, a fobia coletivizada, sempre mosaica, mas coletivizadapode ser apaziguada com a boa informao ou com a truculncia dos agen-tes de segurana pblicos nas ruas. So expresses epidrmicas, mas radi-calmente diferentes uma da outra. Em geral, no Brasil, sempre se optou pelosegundo caminho. Para ns, psicanalistas, h sempre um trabalho adicionalnesse caso. Temos de nos debruar sobre alguns pontos bastante comple-

    ENDO, P. Entrevista.

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    mais ou menos vulnerveis que outros, vidas mais ou menos importantesque outras. O paradoxo da aceitao da subalternidade, da auto-exposiodos corpos dos sujeitos vulnerveis ao risco e da resignao prpriamatabilidade, fenmenos antigos no Brasil, so focos centrais das pesqui-sas sobre a violncia urbana.

    Correio da APPOA: Em seu artigo Tortura aspectos psicolgicos,

    voc faz uma importante observao dizendo-nos: Quando a imprensa sedesinteressou pelo tema porque o assunto saiu de moda; quando a sociedadecivil j no debate, nem suporta mais ouvir sobre seu passado recente omomento em que a tortura se reinstala no corpo do torturado, como um gritosilencioso que no pode mais ser escutado. Assim a experincia traumticaadquire uma outra virulncia: a do desconhecimento e da invisibilidade. Istonos levou a pensar em qual aproximao que o senhor faz entre tortura eestupro com o conceito freudiano de neurose traumtica? E ainda,existiria uma especificidade da direo do tratamento com padecimentosdesta natureza?

    Paulo Endo H dois aspectos importantes que exigem considera-

    es maiores, vou tentar simplificar. H necessariamente um reconhecimen-to pblico, que determina e orienta a nossa freqentao pelas cidades. Nonos movemos de forma absolutamente livre e nem aleatria em qualquercidade em que estivermos. H um ndice de previsibilidade em nossa circula-o cvica que o que nos permite andar desarmados, por exemplo. Se,como na idade mdia, houvesse o risco constante de ser pego em algumaemboscada, saque ou ataque surpresa a arma seria uma condio de nossacirculao.

    A tortura poltica no Brasil degradou o espao cvico e criou a figura doelemento surpresa. Ningum est seguro em sua circulao pelo espaopblico. Todos so suspeitos e podem ser traumatizados. Alvos de umaviolncia abrupta que ocorre sem aviso e sem previso. Desde ento, a pr-tica da tortura no Brasil, tornou-se um hbito de nossas polcias e a violao

    acontece quando se trata da violncia do Estado, da violncia dos aparatosde segurana pblica, a violncia dos esquadres da morte, a violncia doshomicdios. H diversas razes para isto. Por um lado a prtica clnica, odispositivo clnico pode ser transportado inteiramente para o trabalho com asfamlias, casais e crianas. Ele no tecnicamente afetado e imediata-mente aceito e assimilado nas equipes interdisciplinares. Algo completa-mente diferente ocorre com as violncias institucionais. Sua base no osujeito violento mas o grupo, a corporao, o aparato, o Estado, a nao queno podem, em momento algum, serem negligenciadas nas consideraessobre a violncia nas cidades. Diante destes conglomerados e sistemasparece no haver lugar para o psicanalista trabalhar. Como se s restasse aeles patologizar o sujeito criminoso. Quando isto feito os limites do conhe-cimento psicanaltico so mediocremente reduzidos e suas ambiesinterdisciplinares fracassam.

    Minha opinio vai numa direo completamente diferente. Creio que aescuta analtica pode restaurar e contribuir enormemente para discriminar,diferenciar os inmeros processos em jogo que conduzem os sujeitos inscri-tos nesses sistemas a aderir, a recusar, se alienar e a se disporem a matarou a morrer no interior destes sistemas. Este trabalho, entretanto supe asustentao tensa, teoricamente falando, entre a escuta psicanaltica dosujeito inscrito a e as repercusses dessa inscrio na dinmica dessessistemas, momento em que precisamos dialogar com outros pesquisadorese com os movimentos sociais.

    O que o pensamento social, os pesquisadores da rea da seguranapblica e as muitas lideranas do movimento social tem mostrado de formaesclarecedora e exemplar que processos singulares de aliciamento, prote-o, sobrevivncia, identificao e resistncia obedecem a um fluxo cujospadres esto cada vez mais enraizados subjetiva e geograficamente. Paraisso no precisaram da ajuda dos psicanalistas, mas o aprofundamento des-sas questes requer a contribuio da Psicanlise.

    So vrias cidades numa mesma cidade onde os cidados se defi-nem por suas diferenas em relao ao risco de vida que correm. Alguns

    ENDO, P. Entrevista.

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    Paulo Endo Exatamente. Em geral, o suspeito uma vtima prefe-rencial e quem suspeita um acusador imaculado. Se, com Totem e Tabu,reconhecermos que a atualizao das leis, regras, contratos e normas sso possveis se rememorarmos o sangue fresco que escorre em nossasmos, aps a morte do tirano, ento teremos uma leitura mais realista deultrapassamento das formas dicotmicas e caducas para lidar com a ques-to das violncias.

    Correio da APPOA: Atualmente, constata-se uma sensvel degrada-o dos espaos pblicos, sobretudo, nas grandes cidades, o que de algu-ma forma limita as possibilidades de circulao do sujeito, bem como, doexerccio pleno de sua condio de cidado. A recuperao destes espaospode contribuir para minimizar a gerao de atos violentos?

    Paulo Endo: Pode, mas no tudo. Recuperao de espaos pbli-

    cos implica em dispositivos de manuteno desses espaos para que nosejam novamente deteriorados, nesse caso as estratgias so sempre con-juntas, mltiplas e permanentes. A recuperao e manuteno do convviocitadino est na ossatura desse processo. A importncia em se reconhecercausas, conseqncias e seqelas das violncias caminha lado a lado coma necessidade de reconhecer que h tambm o irreparvel, danos subjeti-vos que no podem ser reparados; so eles que permitem relembrar conti-nuamente o mal que podemos fazer a ns mesmos.

    Recentemente vi uma iniciativa do Memorial da Paz em Hiroshimaque foi muito impressionante. Mais de sessenta anos depois da explo-so da bomba atmica em Hiroshima e Nagasaki a populao foi convi-dada a trazer para o museu objetos representativos do ataque atmicoamericano a Hiroshima em 1945. Muitos objetos foram trazidos. Objetosde casa e pertences de entes queridos que ainda permaneciam com aspessoas 60 anos aps o ocorrido. Louas, roupas, fotos, cartas e umaporo de pequenos objetos foram trazidos enriquecendo o acervo doMemorial. No convite explicitava-se o desejo de compartilhar sentimen-

    do corpo do cidado, uma possibilidade. A diferena que agora se tratamais ostensivamente do corpo do pobre e no do militante. Estes no tminfluncia e voz pblica. O difcil acesso justia e a irrelevncia de suasmortes para as vrias mdias torna a violao de seus corpos um eventoprivado, distinto dos eventos pblicos que, como tais, deveriam ser repara-dos, tanto quanto possvel, na cena pblica.

    A ausncia radical deste nvel impres