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VIOLÊNCIA, POPULAÇÃO NEGRA,e a atuação do sistema de justiça
criminal: a polícia
Ciclo de Debates do Ano Internacional dos Afrodescendentes
Brasília, 07 de outubro de 2011
O sistema de justiça criminal
Existem várias formas do Estado atuar sobre o diagnóstico apresentado pela
Carla. O Estado possui um grande aparato de políticas públicas que precisa
incidir sobre o problema do racismo (pois envolve várias dimensões: culturais,
educacionais, econômicas, etc.).
Mas o foco será no sistema de justiça criminal, diretamente responsável por
atuar quando um direito individual é violado através do cometimento de um ato
criminoso.
Trata-se, na verdade, de uma das atribuições mais claras e fundamentais do
Estado contemporâneo ocidental.
O sistema de justiça criminal
O controle da criminalidade foi consolidado como atividade estatal no decorrer
de aproximadamente 300 anos, entre os séculos XVII e XIX, em um processo
histórico que culminou com o estabelecimento das instituições responsáveis
pelas novas atribuições da esfera pública.
Qual a função dessas instituições hoje, no contexto de um Estado Democrático
de Direito? Resposta óbvia: Distribuir de forma equitativa o bem público
denominado “segurança”.
O sistema de justiça criminal
A atividade de controle do crime consiste em várias etapas concatenadas e
sucessivas que definem o papel do Estado na consecução da ordem pública
nas sociedades contemporâneas. Envolve um complexo sistema organizacional,
com vários subsistemas carregados de singularidades, frouxamente articulados
pela complementaridade de suas funções: as polícias, o judiciário e o aparato
penal. O conjunto desses subsistemas forma o que geralmente é denominado
como sistema de justiça criminal .
O sistema de justiça criminal
A frouxa articulação do sistema de justiça criminal aponta para a tensão
envolvida na implementação da ordem pública nas sociedades democráticas. A
lei deve ser utilizada como instrumento para alcançar a ordem pública, mas não
há justaposição simples entre essas duas dimensões.
Como diz Luís Flávio Sapori no seu livro Segurança Pública no Brasil – Desafios
e perspectivas, “a lei não é nem foi concebida como um instrumento eficaz da
ordem social” (pág.64).
O sistema de justiça criminal: uma agenda de pesquisa
As culturas das organizações que compõem o “sistema”, por exemplo, devem
ser consideradas para se entender seu real funcionamento.
A cultura policial, imbuída de vários saberes práticos, desloca a observância de
princípios formais para segundo plano; a ordem interna das prisões resulta de
negociações entre agentes e presos; administrar pilhas de papéis referentes ao
“atraso” pode corresponder a critérios de “eficiência” nas varas criminais, etc.
O sistema de justiça criminal: uma agenda de pesquisa
Não há muitos números sobre as ações do Estado na área.
A eficácia da política de segurança pública, da política judiciária e penitenciária no
país pressupõe a existência de informações básicas sobre as ações dos diferentes
atores envolvidos no processo de identificação, apuração, julgamento e
responsabilização dos envolvidos com crimes.
A falta de informações dificulta ainda a análise dos impactos que mudanças nas leis,
como a tipificação de novos crimes, o aumento das penas previstas e as restrições à
progressão penal, têm sobre o sistema de justiça criminal.
O sistema de justiça criminal: centralidade da atuação policial
Não há muitos dados e informações confiáveis sobre as ações do Estado na área...
mas de algumas coisas relevantes temos certeza!
1. As polícias são a parte mais visível do Sistema de Justiça Criminal (Pesquisa
ICJBrasil, da FGV) e uma das presenças mais atuantes do Estado no cotidiano da
população (Presença do Estado no Brasil, IPEA).
2. As polícias são o principal “filtro” (ou “gargalo”) do Sistema de Justiça Criminal
(Michel Misse, 2010).
3. Policias atuam de forma discriminatória ao buscarem sua “clientela”, com base em
estereótipos que tem na cor da pele dos “suspeitos” seu elemento principal.
A distribuição da segurança pública e a polícia
“Cabe subinhar aqui o paradoxo de a PM, uma instituição com presença maciça de negros
nos seus quadros, praticar a discriminação racial, ser percebida como muito racista por
boa parte da sociedade e, ainda assim, esquivar-se defensivamente de qualquer
questionamento, de qualquer debate, interno ou externo, sobre o problema”.
(Sílvia Ramos, Elemento Supeito – abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro,
2005, pg. 215)
A distribuição da segurança pública e a polícia
“(...) a evidência disponível sobre a operação de organizações policiais mostra a clara
tendência da organização a sobrepor sua própria definição de ordem ao respeito à
legalidade. Aqui ganha sentido político a ‘lógica-em-uso’ – o método da suspeita
sistemática – do policial: ela significa basicamente o que um policial [entrevistado]
chamou de ‘o trabalho fora dos formalismos’, que inclui desde a inspeção cotidiana e
metódica de locais e indivíduos; a seleção de um elenco permanente de suspeitos; o
trabalho baseado em informantes secretos até o uso, também metódico e sistemático, de
violência e tortura como recurso da aplicação da lei – que passa a significar meramente a
resolução de ocorrências”.
(Antônio Luiz Paixão, “A distribuição de segurança pública e a organização policial”, Revista da OAB,
1985, pg. 180. Ver também: “A organização policial numa área metropolitana”, ANPOCS, 1980)
A distribuição da segurança pública e a polícia
Estado do Rio de Janeiro – pessoas mortas em confronto com a polícia (“auto de
resistência”)
ANO No. Tx.
2008 1.137 7,2/100 mil Fonte: MJ/SENASP; IBGE; FBSP, 2010
2009 1.048 6,5/100 mil
E os jovens pobres e negros do sexo masculino, vivendo em favelas e bairros pobres, são
as principais vítimas da violência letal do Estado.
A distribuição da segurança pública e a polícia
PM, alunos CFO e CFSD de Pernambuco – Quem abordar primeiro em uma situação de
suspeição de um homem branco e um homem preto
QUEM PRIMEIRO? PMs CFO CFSD
Preto depois branco 51,3% 83,0% 67,9%
Branco depois preto 8,3% 0,0% 3,9%
(Geová da Silva Barros, “Filtragem racial: a cor do suspeito, RBSP n. 3, 2008)
A distribuição da segurança pública e a polícia
Percepção sobre o contato anterior com serviços policiais e variáveis sócio-
demográficas: coeficientes de regressão logística.
Coeficientes Modelo 3 Exp(B) Variáveis Pseudo R2 = 0,023
N = 1.215 Freq. Var. dependente = 497
Idade (desagregada) -,008 ,992 Idade ao quadrado ,000 1,000 Homem -,083 ,920 Escolaridade: ginasial -,081 ,922 Escolaridade: colegial (2o
grau) -,274 ,760
Escolaridade: nível universitário
-,102 ,903
Não branco -,244 * ,784 Renda familiar mensal ,005 1,005 (Constante) -,104 ,901 Variável dependente: Avaliação específica positiva. Valor de referência para variável escolaridade: “Nível primário (Até 4ª série do 1º grau)”. Obs: O N é reduzido, uma vez que abrange apenas os entrevistados que passaram por experiência anterior com serviços prestados por policiais. * Impacto significativo no nível de 5%. Fonte: Pesquisa SIPS – Ipea, 2010.
A distribuição da segurança pública, a polícia e o racismo de Estado
“É essa convivência paradoxal e ambígua entre teoria e prática, entre um discurso da lei e
da ordem e da soberania do indivíduo (...), que vai permitir a Foucault falar no racismo de
Estado (...). Não se opera mais simplesmente com o critério político do inimigo de Estado,
como se organizavam as guerras (...). O nível de controle agora é o das populações e é
preciso, então, identificar um inimigo abstrato e ao mesmo tempo calcado em um critério
aberto, onde todas as formas de exercício da morte possam passar [O Estado mata e deixa
matar] ...
A distribuição da segurança pública, a polícia e o racismo de Estado
Nesse sentido, vemos que a confluência entre pobreza e cor, entre pobreza, cor e periferia,
entre geopolítica e raça, cor e economia vai se confundir num critério genérico de
eliminação da vida, no critério genérico da morte, que, em última análise, corrobora a
perspectiva provocante de Foulcault de mostrar como nas relações de força ainda atuam
as estratégias de guerra.
O racismo de Estado, então, visto por Foucault, vai mostrar como os Estados mais
assassinos são os mais racistas.”
(Gabriela Maia Rebouças, “Cores e partes: narrativas de subjetivação”In: Representações sociais e
políticas de formação, 2009, pgs. 117-8)