violÊncia domÉstica e familiar contra a mulher: o projeto · funcionamento sob o nome de patrulha...

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: O PROJETO “BOTÃO DO PÂNICO” NA PERSPECTIVA DA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR Herlam Wagner Peixoto 1 Ingrid Mischiatte Taufner 2 Monique Silva de Paiva Garcia 3 O objetivo deste artigo é apresentar o Projeto Experimental de Fiscalização das Medidas Protetivas em Favor de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e Familiar, conhecido como “Botão do Pânico”, sob a perspectiva da Equipe Multidisciplinar da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Vitória, do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), desenvolvido no período de 2013 a 2016. Na primeira parte, são abordados os conceitos de violência doméstica e familiar, violência de gênero e feminicídio, e aspectos da Lei Maria da Penha. Em seguida, discute-se a inserção e a atuação da Equipe Multidisciplinar, formada por assistentes sociais e psicólogos, na referida Vara. Descreve-se a execução do Projeto Botão do Pânico, apontando algumas repercussões na vida das mulheres participantes. Por fim, identifica-se potencialidades e limites do projeto como instrumento complementar às medidas de proteção. Palavras-chave: Violência contra a mulher, Lei Maria da Penha, Equipe Multidisciplinar, Botão do Pânico, Poder Judiciário. Introdução A violência contra a mulher é um fenômeno persistente na sociedade brasileira. Apesar de não ser recente, seu enfrentamento ganha visibilidade a partir da década de 1970, sendo bandeira de luta dos movimentos feminista e de mulheres (PINTO, 2003). Durante os últimos 40 anos, muitas foram as conquistas na área, dentre as quais se destacam: 1 Psicólogo da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 2 Assistente Social da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 3 Psicóloga da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: O PROJETO

“BOTÃO DO PÂNICO” NA PERSPECTIVA DA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR

Herlam Wagner Peixoto1

Ingrid Mischiatte Taufner2

Monique Silva de Paiva Garcia3

O objetivo deste artigo é apresentar o Projeto Experimental de Fiscalização das Medidas

Protetivas em Favor de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e Familiar, conhecido

como “Botão do Pânico”, sob a perspectiva da Equipe Multidisciplinar da 1ª Vara

Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Vitória, do Tribunal de

Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), desenvolvido no período de 2013 a 2016. Na

primeira parte, são abordados os conceitos de violência doméstica e familiar, violência de

gênero e feminicídio, e aspectos da Lei Maria da Penha. Em seguida, discute-se a inserção e a

atuação da Equipe Multidisciplinar, formada por assistentes sociais e psicólogos, na referida

Vara. Descreve-se a execução do Projeto Botão do Pânico, apontando algumas repercussões

na vida das mulheres participantes. Por fim, identifica-se potencialidades e limites do projeto

como instrumento complementar às medidas de proteção.

Palavras-chave:

Violência contra a mulher, Lei Maria da Penha, Equipe Multidisciplinar, Botão do Pânico,

Poder Judiciário.

Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno persistente na sociedade brasileira. Apesar de não

ser recente, seu enfrentamento ganha visibilidade a partir da década de 1970, sendo bandeira

de luta dos movimentos feminista e de mulheres (PINTO, 2003).

Durante os últimos 40 anos, muitas foram as conquistas na área, dentre as quais se destacam:

1 Psicólogo da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de

Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 2 Assistente Social da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca

de Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected] 3 Psicóloga da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de

Vitória/ Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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a criação de serviços de atendimento à mulher em situação de violência; a criação das

Delegacias de Defesa da Mulher na década de 1980; a ratificação pelo Brasil de instrumentos

internacionais de combate à violência contra a mulher como a Convenção Interamericana para

Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará"

(1994); a publicação da Lei Federal nº. 11.360, de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha,

e da Lei Federal nº. 13.104, de 2015, que trata do feminicídio.

Contudo, apesar dos avanços ocorridos, as taxas de homicídio e outras violências contra a

mulher continuam elevadas. O Brasil, segundo dados do Mapa da Violência (WAISELFISZ,

2015), ocupou em 2013 a 5ª posição em taxa de homicídio de mulheres (4,8 por 100 mil),

num grupo de 83 nações. Em 2015, o serviço Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180

registrou 76.651 relatos de violência contra a mulher no país (BRASIL, 2016). Esses dados

apontam para a necessidade de se trabalhar na prevenção e enfrentamento da violência.

No campo da segurança pública algumas ações têm sido adotadas visando prevenir o

agravamento ou a continuidade de situações de violência doméstica de mulheres que

recorreram às Delegacias, tais como a Patrulha Maria da Penha4, o uso de tecnologias como a

tornozeleira eletrônica5 e o “Botão do Pânico”.

A primeira experiência no Brasil de utilização do “Botão do Pânico”- nome popularmente

concedido a um equipamento de localização por GPS entregue a mulheres envolvidas em

situação de violência doméstica e familiar, com o objetivo de contribuir para a fiscalização

das medidas protetivas deferidas judicialmente - ocorreu em Vitória/ES, por meio de uma

parceria entre a Prefeitura Municipal de Vitória - PMV , o Instituto Nacional de Tecnologia

Preventiva - INTP e o Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo - PJES.

A Equipe da Central de Apoio Multidisciplinar da Comarca de Vitória, especificamente

assistentes sociais e psicólogos atuantes na 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher, acompanhou o desenvolvimento deste projeto em sua fase

4 Programa que consiste na realização de visitas periódicas a mulheres em situação de violência doméstica e

familiar para o acompanhamento do cumprimento das medidas protetivas, por meio da guarda municipal ou

da polícia militar. Atualmente há um Projeto de Lei de iniciativa do Senado (PLS 547/2015) que prevê a

instituição de tal programa no âmbito da Lei Maria da Penha. No Espírito Santo, o programa está em

funcionamento sob o nome de Patrulha da Família. 5 Vigilância eletrônica de homens autores de violência doméstica e familiar contra a mulher por meio do

acoplamento de tornozeleira. Para mais informações ver: MACIEL, W.C. Os “Maria da Penha”: uma

etnografia de mecanismos de vigilância e subversão de masculinidades violentas em Belo Horizonte.

Dissertação de mestrado. UNB, Brasília, 2014.

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experimental – 2013 a junho de 2016.

Neste artigo, busca-se apresentar algumas reflexões sobre a experiência profissional vivida no

acompanhamento deste projeto, iniciando por uma breve discussão sobre violência e seu

enfrentamento jurídico-legal e pela contextualização da inserção da Equipe Multidisciplinar

na 1ª Vara Especializada.

1. A Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e seu enfrentamento jurídico-legal

A violência é um fenômeno complexo que tem sido objeto de estudo e de trabalho nas últimas

décadas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) a define como “o uso intencional de força

física ou poder, real ou como ameaça contra si próprio, outra pessoa, um grupo ou uma

comunidade, que resulte ou tem grande probabilidade de resultar em ferimentos, morte, danos

psicológicos, desenvolvimento prejudicado ou privação”(OMS, 1996 apud OMS, 2014, p.2)6.

No campo da produção teórica sobre o fenômeno da violência encontramos diferentes

expressões utilizadas para exprimir a problemática feminina: violência contra a mulher,

violência de gênero, violência doméstica e violência familiar. Saffioti (2004) e Santos &

Izumino (2005) chamam atenção para o fato de, frequentemente, tais expressões serem

utilizadas sem a devida distinção e clareza.

Para Saffioti (2004) “A violência de gênero é, sem dúvida, a mais geral”(p. 69). A autora

concebe gênero como construção social do masculino e do feminino7, uma categoria histórica

e geral, que “compreende também relações igualitárias” (p. 119). No entanto, chama a atenção

para o fato de, não raro, as relações de gênero se darem de forma desigual e produzirem

violências. Para a autora, “a violência de gênero deriva de uma organização social do gênero

6 A compreensão da violência como ruptura da integridade física, psíquica e emocional pode mostrar-se

insuficiente. Para Saffioti (2004), “(...) a ruptura de integridades como critério de avaliação de um ato violento

situa-se no terreno da individualidade” (p.75). Neste sentido, o que é violento para uma pessoa, pode não o ser

para outra, em função do processo de naturalização da violência. Assim, essa autora prefere trabalhar com a ideia

de violência como “todo agenciamento capaz de violar” (p. 76) os direitos humanos. Pasinato (2015, p. 231)

afirma que no campo teórico “não há consenso sobre as vantagens dessa aproximação com os discursos dos

direitos humanos”.

7 A autora entende que esse é o único consenso entre as feministas que estudam “gênero” e considera

“sexo e gênero uma unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica independente do contexto social

em que é exercida”(SAFFIOTI, 2004, p. 108).

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que privilegia o masculino”(p. 81). Neste sentido a violência de gênero está ligada a

desigualdade/assimetria de poder e de direitos entre homens e mulheres.

A violência doméstica contra a mulher é aquela perpetrada por pessoas que coabitam o

mesmo domicílio. Frequentemente, é no âmbito da residência, que a mulher sofre agressões e

violências. Esse tipo de violência é praticada mesmo na ausência de vínculos familiares, como

por exemplo, as violências envolvendo empregadas domésticas.

A violência familiar é entendida como a que atinge as mulheres em suas relações

intrafamiliares, sendo exercida por pessoas com vínculos consanguíneos ou por afinidade,

independente de coabitação. A família, que deveria promover cuidado e proteção, muitas

vezes, oprime e provoca múltiplas violências.

Dados sobre a violência contra a mulher no mundo apontam que os homicídios são

frequentemente praticados por parceiros íntimos. Estimativas realizadas pela Organização

Mundial de Saúde e outras entidades apontam que em 2013 “38% dos homicídios de mulheres

em todo o mundo foram cometidos por parceiros do sexo masculino” (OMS, 2014, p. 10) e

“cerca de 30% das mulheres que já tiveram um parceiro sofreram violência física ou sexual

em algum momento da vida” (OMS, 2014, p. 14).

No Brasil, o enfrentamento à violência contra a mulher tem ocorrido, dentre outros, no campo

jurídico-legal. Um dos mecanismos mais importantes foi a publicação da Lei Federal nº.

11.340, de 2006 - Lei Maria da Penha. Por suas inovações, tem sido considerada um

verdadeiro avanço para o enfrentamento da problemática. Trata-se de “um marco político nas

lutas pelos direitos das mulheres no Brasil e no reconhecimento da violência contra as

mulheres como problema de políticas públicas”(PASINATO, p. 534).

No artigo 1º desta lei está expresso seu objetivo: “coibir e prevenir a violência doméstica e

familiar contra a mulher”. Em seguida, em seu artigo 5º, caracteriza esta violência como

“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,

sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” seja no âmbito da unidade doméstica, no

âmbito da família e em qualquer relação íntima de afeto na qual haja ou tenha havido

convivência, independente de coabitação (BRASIL, 2006). Assim, limita-se às situações de

violência doméstica e/ou familiar baseadas no gênero, o que significa que nem toda violência

contra a mulher será abrangida por esta legislação.

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A Lei Maria da Penha estabelece 05 formas de violência doméstica e/ou familiar contra a

mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Seu enfrentamento não se restringe a

sanções penais e cíveis, ressaltando a importância, entre outras, de medidas integradas de

prevenção (a produção de estudos e estatísticas, a realização de campanhas educativas, e

programas de erradicação da violência doméstica) e da oferta de assistência à mulher.

Uma das inovações trazidas foi a criação das medidas cautelares de proteção, conhecidas

como medidas protetivas de urgência – MPUs, que podem ser direcionadas à ofendida ou

gerar obrigações ao agressor (BRASIL, 2006). No primeiro caso, estão elencadas nos artigos

23 e 24 desde medidas de encaminhamento da mulher à programas de proteção e atendimento,

tais como programas de abrigamento, até medidas de proteção patrimonial de seus bens.

As medidas que obrigam o agressor são estabelecidas no artigo 22 da Lei:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas (...);

II- afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III- proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida,

de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre

estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por

qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de

preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de

atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V- prestação de alimentos provisionais ou provisórios (BRASIL, 2006).

Cabe ressaltar que outras medidas podem ser aplicadas com base na legislação em vigor e de

acordo com a necessidade e circunstâncias de cada caso. Nesse sentido, algumas ações tem

sido empreendidas visando o acompanhamento das MPUs e a ampliação de sua efetividade,

terreno em que se insere a experiência que será relatada adiante.

Outro avanço legislativo foi a publicação da Lei Federal nº 13.104, de 2015, que alterou o

artigo 121 do Código Penal Brasileiro, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

Pasinato (2015) ao realizar uma revisão de bibliografia, aponta que o termo “femicídio8” é

atribuído a Diana Russel, socióloga e feminista anglo-saxã, que em parceria com Jill Radford

desenvolveram o entendimento de que o “femicídio” apresenta duas características: “mortes

intencionais e violentas de mulheres em decorrência de seu sexo, ou seja, pelo fato de serem

8 Marcela Lagarde, deputada federal mexicana, propõe o uso da palavra “feminicídio” por entender que a

palavra “femicídio”, ao ser introduzida no castelhano perde força. (PAZINATO, 2015).

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mulheres”(p. 229) e não se configura como “um evento único na vida de certas mulheres” (p.

230), reforçando a ideia de “femicídio” como o resultado de uma série de violações e

violências ao longo da vida, parte de um sistema de dominação patriarcal. Com esse conceito,

busca-se superar a neutralidade contida nos estudos e levantamentos sobre homicídios, que

muitas vezes invisibiliza a questão da violência contra a mulher por razões de gênero.

Atualmente não existem estatísticas precisas no Brasil sobre o feminicídio. Entretanto na

edição do Mapa da Violência 2015, Waiselfisz (2015) estimou que 50,3% dos homicídios de

mulheres no país foram perpetrados por um familiar.

Ainda que a violência contra a mulher não escolha classe social, raça/cor ou idade, a vivência

de tais situações se apresenta de forma diferenciada nos diversos segmentos (SAFFIOTI,

2004). No que se refere ao quesito raça/cor “a população negra é vítima prioritária da

violência homicida no País” (WAISELFISZ, 2015, p. 29). O Mapa da Violência aponta que

em 2013 o Índice de Vitimização Negra, ou seja a diferença relativa entre as taxas de vítimas

brancas e negras foi de 66,7%, o que significa proporcionalmente que morreram assassinadas

66,7% mais mulheres negras do que brancas. (WAISELFISZ, 2015).

Esses dados nos dão a dimensão do desafio que hoje temos no Brasil: prevenir e enfrentar à

violência contra a mulher, num contexto em que a vida feminina é banalizada. Essa tarefa é

urgente e requer o envolvimento dos diferentes poderes públicos em ações não apenas no

campo jurídico-legal, mas também na criação e qualificação de serviços de atendimento,

orientação e apoio a pessoas em situação de violência, na promoção de ações educativas e

preventivas, no questionamento das bases de socialização machista de nossa sociedade e dos

fatores geradores das desigualdades sociais.

No campo do atendimento à mulher em situação de violência e seu acesso à justiça, a Lei

Maria da Penha possibilitou a inserção de equipe multidisciplinar nos Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, tema que será tratado na próxima seção.

2. A inserção e o trabalho da Equipe Multidisciplinar na 1ª Vara Especializada em

Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Vitória

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A inserção de assistentes sociais e psicólogos no Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo

(PJES) remonta à década de 1950. Os primeiros profissionais foram demandados a atuar no

Juizado de Menores da Capital: os assistentes sociais na década de 1950 e os psicólogos na

década de 1980. Apesar da presença do trabalho dessas profissões datar da metade do século

XX, o primeiro concurso que contemplou as duas categorias profissionais somente ocorreu

aproximadamente 60 anos depois (ALBERT, SARTÓRIO, 2015).

A ampliação do quadro desses profissionais no âmbito do poder judiciário ocorreu à medida

que houve avanços na promulgação de legislações sociais, normatizações e sensibilização

sobre a necessidade de apoio técnico especializado às questões envolvendo os diferentes

públicos que figuram como partes em processos judiciais – crianças, adolescentes, idosos,

pessoas com deficiência, mulheres em situação de violência, homens e mulheres egressos do

sistema penal, entre outros.

Ao ser sancionada, a Lei Maria da Penha recomendou a criação dos Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, unidades judicantes com competência cível e criminal

para processar e julgar causas referentes à violência doméstica contra a mulher.

A lei também estabeleceu em seu art. 30 que os Juizados

(…) poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar que terá como

atribuições fornecer subsídios por escrito ao juiz, Ministério Público e à Defensoria

Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de

orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida,

o agressor e os familiares (BRASIL, 2006).

No Espírito Santo, a primeira Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar Contra a

Mulher foi instituída em 2007, no município da Serra (ALBERT, SARTÓRIO, 2015). Em

Vitória a Vara foi instalada em julho de 2008.

A partir de julho de 2009, a Vara da capital passou a contar com uma equipe multidisciplinar

contratada9, a qual exerceu suas atividades até o início de 2012, quando entrou em

funcionamento a Central de Apoio Multidisciplinar10 da Comarca de Vitória – CAM Vitória.

9 Contrato de prestação de serviços com a Clínica de Orientação Psicológica do Espírito Santo - Copes. 10

As Centrais de Apoio Multidisciplinar das Zonas Judiciárias - CAMs foram criadas pela Lei

Complementar Estadual nº. 567/2010, e regulamentadas pela Resolução nº 066/2011, do PJES. São estruturas

compostas por profissionais de serviço social e psicologia, destinadas ao atendimento de demandas judiciais

referentes às matérias de Família, Violência Doméstica, órfãos e sucessões, e demandas de Varas de Infância e

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Em março de 2012, com a publicação da resolução 013/2012 do PJES, dois assistentes sociais

e dois psicólogos da CAM Vitória passaram a atuar exclusivamente no atendimento às

demandas da Vara de Violência Doméstica, o que possibilitou o desenho e a execução de um

trabalho estruturado e continuado, a despeito dos limites e desafios impostos pelas condições

físicas e de organização do trabalho.

No que se refere ao marco legal, o exercício profissional de assistentes sociais e psicólogos é

balizado pela lei e decreto de regulamentação das profissões e seus respectivos códigos de

ética profissional11. Na Vara de Violência doméstica, esse exercício também é orientado pela

legislação social que cria mecanismos para prevenir e coibir a violência contra a Mulher e

suas atribuições e competências são tratadas no Código de Normas da Corregedoria Geral de

Justiça.

Em função da complexidade do fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher a

intervenção junto aos sujeitos envolvidos em tais situações requer o acionamento de

diferentes saberes e práticas, capazes de possibilitar uma atuação integrada.

Neste contexto, os assistentes sociais e os psicólogos utilizam um conjunto variado de

instrumentos – entrevistas, visitas domiciliares e institucionais, estudos de caso, reuniões e

registros – para desenvolver seu trabalho, no sentido de subsidiar decisões judiciais, mas

sobretudo, contribuir para o acesso a direitos e para a reflexão acerca do fenômeno da

violência doméstica e familiar.

Atualmente, a equipe multidisciplinar estrutura sua atuação a partir das seguintes conjuntos

de ações, entre outros:

- Atendimento e/ou acompanhamento a mulheres e homens envolvidos nas situações de

violência e seus familiares. O objetivo desse trabalho é, a partir da compreensão do contexto

gerador e mantenedor das situações de violência, prestar suporte e orientação aos sujeitos em

suas demandas sociais e psicológicas. Em Vitória, ao ser deferida uma medida protetiva, é

determinado judicialmente o comparecimento das partes à Equipe Multidisciplinar para

atendimento. Neste momento, inicia-se por parte da equipe um processo de compreensão das

situações que geraram as medidas protetivas, o que pressupõe uma escuta atenta, crítica e

Juventude nas comarcas do interior. 11 Lei Federal nº 8662 de 1993, Decreto nº 53.464 de1964, Resolução CFESS 273/1993 e Resolução CFP

10/2005

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respeitosa. Conforme ressaltam FAVERO, MELÃO e JORGE(org.):

Trabalhando em uma instituição em que o sofrimento se põe cotidianamente nas

situações atendidas, suas funções [da psicologia], tais como as do Serviço Social,

alargam-se para além da prática pericial, apresentando-se enquanto um espaço de

escuta do outro, uma escuta que deve ser crítica (p. 132, 2015).

A partir dessa escuta, os sujeitos recebem informações e orientações sobre os diferentes tipos

de violência contra a mulher e sobre as medidas aplicadas. São realizados encaminhamentos

às instituições da rede de atendimento, conforme as demandas apresentadas, e a partir de cada

situação específica são construídos e estabelecidos com os sujeitos processos de

acompanhamento no decorrer do curso processual, ou ao seu fim, se necessário.

- Produção de documentos técnicos12. O subsídio a decisões judiciais é uma atribuição

técnica dos profissionais da psicologia e do serviço social no judiciário. Este subsídio pode

ser concedido de forma oral, mas é predominantemente na modalidade escrita que ele se

consubstancia. Na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de

Vitória a equipe multidisciplinar trabalha na elaboração de relatórios sociais e psicológicos e

relatórios informativos mediante determinação judicial ou em situações em que avalia

necessária a produção de tais documentos.

- Grupo Reflexivo de Gênero “Espaço Fala Homem”. Trata-se de um trabalho

desenvolvido com homens que possuem processos em tramitação nessa Vara, visando

contribuir para que os participantes possam construir formas de pensar, agir e sentir que

possibilitem a vivência de relações de gênero não violentas e mais igualitárias, no âmbito

doméstico e familiar. Este projeto é desenvolvido em Parceria com a Coordenação de

Atendimento à Vítimas de Violência e Discriminação - CAVVID/PMV e acontece desde

2013. Segundo Saffioti “O consentimento social para que homens convertam sua

agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte apenas as mulheres, mas também a

eles próprios” (2011, p. 75). Ao chegarem na Vara Especializada muitos homens não se

reconhecem como agressores, dado a naturalização da violência nas relações familiares, o

machismo e o modelo de sociedade baseado na centralidade do homem e em relações

12 Na Psicologia, o tema da produção de documentos técnicos é tratado pela Resolução nº. 7/2003, do Conselho

Federal de Psicologia (CFP, 2003) que institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos

pelo psicólogo. No Serviço Social, o Conselho Federal de Serviço Social - CFESS publicou em 2003 o livro

O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres Técnicos (CFESS, 2014), documento que, ao lado de

outras produções teóricas, orienta a produção de documentos sobre a matéria de Serviço Social.

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hierarquizadas. Tais compreensões alimentam situações de violência, e do ponto de vista

jurídico podem trazer para o homem restrições cíveis e condenações penais.

- Ações educativas, preventivas e reflexivas. A equipe multidisciplinar participa e

desenvolve ações educativas que tratam de diferentes formas de violência contra a mulher,

especialmente a violência doméstica e familiar. Um exemplo é o Projeto Sala de Espera cujo

objetivo é criar e manter espaço de difusão de informações e de reflexões acerca das

desigualdades de gênero, da violência contra a mulher e dos direitos e políticas sociais. Este

trabalho é desenvolvido na Recepção da Vara Especializada, e prevê além da inserção de

informações em painéis, a utilização de vídeos e intervenções educativas diversas. Outro

trabalho, em fase de planejamento, é o Projeto de Capacitação de Educadores Sociais do

Programa de Aprendizagem do Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador de Vitória/ES,

sobre a temática Gênero e Violência contra a Mulher.

Outra importante frente de ação, que se relaciona ao tema deste trabalho, é o

Acompanhamento ao Projeto Experimental Botão do Pânico, do qual trataremos a seguir.

3. O projeto “Botão do Pânico”13

No ano de 2012 Vitória foi classificada como a 3º capital em homicídios de mulheres,

apresentando uma taxa de 10,3 por 100 mil mulheres, enquanto o Estado do Espírito Santo

destacou-se como o estado brasileiro com o maior índice de homicídios femininos,

apresentando uma taxa de 9,4 (WAISELFISZ, 2015). Essas dados apontaram a necessidade de

ações para a redução da violência contra a mulher no município e no estado .

Neste contexto, um convênio firmado entre o TJES, o INTP e a PMV no ano de 2013

implantou o Projeto Experimental de Fiscalização das Medidas Protetivas em Favor de

Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e Familiar, conhecido como Projeto Botão do

Pânico, no município de Vitória.

Com o objetivo de definir e organizar a implantação do Projeto, formou-se um Comitê Gestor

13 Parte dos dados constantes nesta seção encontram-se no documento: Equipe Multidisciplinar da Central

de Apoio Multidisciplinar de Vitória. 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Relatório da Equipe Multidisciplinar acerca do projeto Botão do Pânico. Vitória/ES: agosto, 2015.

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composto por representantes das instituições envolvidas e pela Equipe Multidisciplinar. Nas

reuniões do Comitê, no ano de 2013, foram deliberados os critérios e fluxos para a concessão

do Dispositivo de Segurança Preventiva (DSP)14, o “Botão do Pânico”, a saber: a) possuir

Medidas Protetivas de Urgência (MPU´s) deferidas pela 1ª Vara de Violência Contra a Mulher

de Vitória; b) ter idade igual ou superior a 18 anos; c) ter interesse em receber o botão do

pânico; d) apresentar risco potencial de reincidência de agressões por descumprimento das

MPU´s; e) residir no município de Vitória, em local com cobertura GPS e com possibilidade

de atuação da Guarda Civil Municipal.

A Equipe Multidisciplinar atuou na avaliação dos processos de medidas protetivas para

inclusão das mulheres no projeto, considerando os aspectos peculiares a cada situação, além

de realizar o acompanhamento às participantes.

No período de abril de 2013 a setembro de 2014, 61 DSP´s foram entregues. Em outubro de

2014, em função do não aditamento do convênio entre o TJES, a PMV e o INTP, a entrega de

novos dispositivos foi suspensa. O Projeto Experimental encerrou-se em junho de 2016,

quando novo Termo de Cooperação foi firmado e iniciou-se uma nova etapa e modalidade do

projeto. As mulheres que ainda mantinham os dispositivos concedidos foram intimadas a

devolvê-los.

Foi frequente o relato de mulheres de que, após terem recebido o DSP, os homens passaram a

cumprir as Medidas Protetivas. Durante os três anos de duração do projeto, 19 mulheres

realizaram 23 acionamentos. Destas, 13 acionaram o DSP ao menos uma vez, devido a

situações de descumprimento das MPU´s. Outras 6 mulheres o fizeram de forma acidental.

Duas15 mulheres relataram que tentaram acionar o equipamento mas este não funcionou.

Situações de descumprimento de MPU´s sem o acionamento do dispositivo também foram

relatadas. Envio de mensagens via celular ou redes sociais, telefonemas, recados por meio de

terceiros, caracterizaram as situações mais comuns nas quais o dispositivo não demonstrou

aplicabilidade.

Apesar de 77% das mulheres não terem necessitado acionar o Botão do Pânico, verificamos,

14

O DSP é um microtransmissor com GPS, que ao ser acionado envia à Guarda Municipal de Vitória a

localização da mulher em tempo real, para que esta seja atendida prontamente. Durante o período em que

permanece acionado o dispositivo grava o áudio ambiente, o qual pode ser usado como prova processual. 15 Uma destas mulheres acionou o equipamento em outra ocasião e este apresentou funcionamento adequado.

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pelos relatos registrados, que além da fiscalização do cumprimento de Medidas Protetivas, o

dispositivo contribuiu em outros aspectos para a vida das participantes.

A sensação de Segurança devido ao uso do DSP, foi apontada por 77% das participantes que

responderam ao Formulário de Acompanhamento da Equipe Multidisciplinar. A vivência de

Pilar e Vivian16 ilustram como o dispositivo contribuiu para o processo de empoderamento

das mulheres.

Pilar, 38 anos, mãe de 3 filhos, auxiliar de serviços gerais, permaneceu por 20 anos em um

relacionamento no qual sofria agressões físicas e psicológicas. Após o marido ameaçá-la de

morte e agredi-la em via pública, deixando-a desnuda na frente de vizinhos, solicitou as

MPU's. Mesmo após ter recebido as medidas, apresentava receio de sair de casa e medo de

que o ex-marido adentrasse sua residência e a matasse. Relatou que o DSP a fez sentir-se

segura para retomar, aos poucos, sua vida. Em um encontro grupal apresenta a seguinte fala

“Eu passei anos com medo dele, e agora é ele quem tem medo de se aproximar de mim graças

ao botão do pânico. Isto faz com que eu me sinta segura”.

Vivian, 21 anos, solteira, estudante universitária, foi agredida fisicamente pelo ex-namorado

em local público, na presença de amigos. Após a agressão e a concessão das MPU´s, ele

continuou a persegui-la e ameaçá-la de morte. Vivian tinha medo de sair de casa, distanciou-

se de seus amigos e deixou de frequentar as aulas. Após receber o dispositivo conseguiu

retomar suas atividades, contatos sociais e concluir sua graduação.

Sobre os tipos de violência que levaram as mulheres a solicitar as medidas protetiva, a

violência física foi citada por 79% das participantes e ameaças por 49%. A violência

psicológica compareceu em mais da metade dos casos (52%), e a violência sexual (3%)

também se fez presente. Cabe registrar que das 61 participantes, 82% relataram ter sofrido

mais de um tipo de violência.

A maioria das mulheres (76%) mantinham relações conjugais ou ex-conjugais com os autores

da agressão na época da solicitação das MPU´s. Também participaram mulheres agredidas por

namorados e ex-namorados (16%), e nas relações parentais17 (8%).

Acerca das características pessoais e socioeconômicas deste grupo, verificamos sua

16 Nomes fictícios atribuído às participantes, de modo a preservar suas identidades. 17

Relações entre mãe-filho, sogra-genro, neta-avô e irmã-irmão

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heterogeneidade:

Participaram do projeto mulheres com idade entre 16 a 59 anos, sendo que a faixa etária de 30

a 59 anos representou 74% dos casos. Apesar de inicialmente um dos critérios estabelecidos

para a concessão ser a idade mínima de 18 anos, o DSP foi entregue a duas adolescentes

devido às peculiaridades destas situações.

Acerca do perfil sócio-econômico, 11% das mulheres não possuíam nenhuma fonte de renda,

16% possuíam renda de até meio salário-mínimo e 26% relataram possuir rendimentos entre

meio e 1 salário-mínimo. Este dado aponta a necessidade de articular ações conjuntas com a

política de assistência social, visto que esta faixa de renda, considerando-se a composição

familiar, pode implicar a necessidade de acesso a benefícios assistenciais. Apenas 8% das

mulheres afirmaram possuir renda acima de 3 salários-mínimos.

No que se refere à escolaridade, cabe destacar que 20% das participantes possuíam poucos

anos de estudo, não chegando a concluir o Ensino Fundamental. Apenas 13% apresentaram

Ensino Superior completo.

As participantes foram provenientes de 38 bairros do município de Vitória-ES, sendo Maruípe

a Região Administrativa do município com o maior número de dispositivos entregues (26%).

Por se tratar de um projeto executado pela Guarda Municipal, houve situações de

indeferimento deste dispositivo devido a ausência de condições de atendimento das

ocorrências em algumas localidades.

Acerca da devolução do dispositivo, não existiu um critério que a regulamentasse, enquanto

as MPU´s se mantivessem. Algumas mulheres devolveram o equipamento espontaneamente,

mas outras o mantiveram até a conclusão do projeto experimental. Situações onde a mulher

manteve o dispositivo desligado por longos períodos foram frequentes e relevantes ao final do

projeto. Tais situações podem sinalizar processos de adaptação, superação das situações de

ameaças e violências, entre outros.

Considerações finais

O fenômeno da violência contra a mulher, em suas diversas expressões, quer seja pela

violências de gênero, doméstica e familiar, e ao extremo expressas no feminicídio é uma

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problemática grave, que apresenta-se fortemente inserida em nosso país. A complexidade

deste fenômeno merece e precisa ser tratada por diversos olhares em múltiplas frentes e ações,

envolvendo os diversos atores e poderes neste processo.

Pensar e discutir a violência contra mulher, criar dispositivos legais, tais como a lei Maria da

Penha e Lei do Feminícidio e desenvolver políticas públicas na área propiciam que a violência

contra a mulher passe a ser menos invisibilizada em nossa sociedade.

A inserção dos profissionais do serviço social e da psicologia na 1ª Vara de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher de Vitória possibilita a oferta de serviços psicossociais

para as mulheres vítimas de violência, sobretudo no momento em que buscam ajuda e deixam

de silenciar as violências sofridas.

As presentes considerações partem deste lugar profissional, e se limitam às reflexões e

envolvimento desta equipe no Projeto Botão do Pânico, em sua fase experimental, no período

de 2013 a 2016.

O Botão do Pânico teve sua aplicabilidade em situações nas quais as violências doméstica e

familiar contra a mulher já ocorreram, e mesmo com a aplicação dos dispositivos legais

(MPUs) o risco de novas agressões a esta mulher, pelo mesmo homem, persistia. Assim,

caracteriza-se como um instrumento auxiliar na fiscalização das medidas protetivas,

apresentando potencialidades e limites, não devendo ser considerado como “a solução” para a

violência contra a mulher.

A partir do atendimento às mulheres e aos homens que possuem processos de medidas

protetivas na 1ª Vara, percebemos que na maioria dos relatos, as MPU´s são cumpridas

adequadamente pelo homem. Logo, nem todas as situações em que as medidas cautelares de

proteção são aplicadas necessitam do Botão do Pânico.

As participantes do Projeto, em sua maioria, relataram que o dispositivo contribuiu para que

se sentissem mais seguras. No aspecto objetivo, o DSP quando acionado favorece uma

intervenção ágil, pela Guarda Municipal. Na dimensão subjetiva, portar um dispositivo de

segurança trouxe para estas mulheres um sentimento de cuidado e proteção pelo poder

público. O conjunto dos aspectos objetivos e subjetivos propiciaram condições para que as

mulheres se empoderassem e retomassem suas atividades.

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Acerca da devolução dos dispositivos, o projeto experimental não apresentou critérios que a

definisse. Verificou-se a resistência de algumas mulheres em se desprenderem do dispositivo,

como se este simbolizasse uma “garantia absoluta” de segurança, mesmo quando mantinham

o aparelho desligado e sem utilização por longos períodos.

No aspecto operacional, duas mulheres informaram que o DSP não funcionou quando

tentaram acioná-lo. Este fato sinaliza a necessidade de condições técnicas satisfatórias (sinal

de telefonia e condição física adequada do equipamento), e da correta utilização do

dispositivo (manutenção do equipamento carregado e em local acessível e comunicação

imediata em caso de identificação de problemas técnicos) para garantir seu pleno

funcionamento. No decorrer do projeto o INTP efetuou constante suporte e manutenção

técnica, contudo a falha em equipamentos eletrônicos é passível de ocorrer, visto ser esta uma

condição inerente ao uso de tecnologias.

As estratégias para a redução da violência doméstica e familiar contra a mulher devem ir

além da fiscalização. Mostra-se extremamente importante pensar e desenvolver outras ações

para o enfrentamento e prevenção da violência, incluindo ações preventivas e educativas que

possam promover reflexões e mudanças nos âmbitos sociais, culturais e nas relações entre

homens e mulheres.

No decorrer do desenvolvimento deste projeto várias inquietações nos mobilizaram, para as

quais não temos respostas, e que podem ser objeto de estudos futuros, tais como: Essa é uma

experiência que deve ser replicada para outras localidades? Comparada a outras tecnologias -

como o uso da tornozeleira eletrônica - é a melhor alternativa para garantir a segurança da

mulher? Suas ações atuam no sentido da ampliação do Estado Penal? Recai sobre a vítima a

responsabilização sobre a sua segurança? Essa experiência reforça e consolida a dicotomia

vítima-agressor?

Esperamos que a partilha dessa experiência possa contribuir e estimular pesquisas, estudos e

iniciativas de prevenção e de enfrentamento da violência contra a mulher.

REFERÊNCIAS:

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