violência de gênero na perspectiva da saúde mental

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  • 8/14/2019 Violncia de gnero na perspectiva da sade mental

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    Ionara Vieira Moura Rabelo, Maria de Ftima Arajo

    Revista de Psicologia da Unesp, 7(1), 2008. 123

    Violncia de gnero na perspectiva da sade mental1

    Ionara Vieira Moura Rabelo2

    Maria de Ftima Arajo3

    Faculdade de Cincias e Letras da UNESP-Assis

    Resumo: Este texto tem como objetivo refletir sobre a violncia de gnero nocampo da sade mental. Discute-se o conceito de gnero e patriarcado comoformas de relao social que contribuem para a dominao e explorao damulher. Levanta e debate estudos atuais que avaliam a violncia de gnero emdiferentes contextos: famlia, cidade e por fim, no campo de ateno sademental. Ao final discute-se como a violncia de gnero tem sido reproduzida nocotidiano da ateno sade quando reduz o sofrimento feminino a aspectosbiolgicos.

    Palavras-chave: psicologia, violncia de gnero, sade mental.

    Este texto buscar refletir sobre a violncia de gnero e suas implicaes na sademental, especialmente na sade mental da mulher. Inicialmente discute-se os conceitos

    de gnero e patriarcado, para em seguida levantar estudos sobre violncia de gnero emdiferentes contextos e, por fim, discutir como essa forma de violncia percebida nocampo de ateno sade mental.

    Como propor estudos que pudessem dar visibilidade s diferenas entre homens emulheres? Como desconstruir desigualdades tradicionalmente aceitas como naturais? Apartir de questionamentos como os exemplificados acima, feministas iniciaram aconstruo de estudos que tentassem captar como a sociedade construiu e ainda reeditauma organizao social baseada nas relaes entre os sexos. Nasce neste contexto acategoria de estudo: gnero.

    Para Scott (1995), a primeira tentativa feminista foi levantar estudos que

    demonstrassem a participao da mulher na histria, tentando uma releitura quesalientasse aspectos invisibilizados por uma histria que enaltecia sempre herismasculinos. Porm tal tentativa foi alvo de crticas, porque no conseguia tocar na

    1A primeira verso deste texto foi apresentada na mesa-redonda Violncias: Trabalho, Sade e Judicirio,que ocorreu no VII Encontro Cientfico do Programa de Ps-Graduao em Psicologia: integraograduao / ps-graduao da Faculdade de Cincias e Letras da UNESP-Assis, em 2008.2Psicloga, doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Cincias e Letras da UNESP-Assis,pesquisadora do NEVIRG vinculado Ps-graduao em Psicologia da Faculdade de Cincias e Letras daUNESP-Assis.3

    Psicloga, Doutora em Psicologia, pesquisadora do NEVIRG e professora da Ps-graduao emPsicologia da Faculdade de Cincias e Letras da UNESP-Assis.

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    percepo atual sobre esta organizao social que utilizava, e ainda utiliza acaracterizao sexual para elaborar a forma como se percebe e vive em sociedade.

    Esta autora ressalta que os estudos que a princpio caracterizavam-se comoestudos sobre mulheres, tinham um enfoque sobre a objetivao sexual da mulher, oumesmo a dominao sobre o corpo feminino atravs da reproduo sexual. Terminavamassim por voltar a insistir na diferenciao fsica como produtora de desigualdade e noexplicavam como esta construo ocorria. Sendo assim, Scott (1995) pontua quegradativamente os estudos sobre mulheres, passam para uma outra perspectiva: estudosde gnero. Com esta categoria, tentam evitar estudos separados sobre homens emulheres e passam a designar as relaes sociais entre os sexos. Enquanto o termomulher ainda carregava o aspecto poltico do movimento feminista o termo gneroserviu de categoria de anlise da entrada destes estudos na academia, de forma menosameaadora. Sendo assim, esta autora caracteriza gnero como: uma construo social,que envolve uma dimenso relacional, e um campo onde o poder se articula.

    Para algumas pesquisadoras a origem da subordinao feminina estaria na

    necessidade dos homens em dominar as mulheres. Sendo assim, argumentam que ocontrole sobre o processo de reproduo seria a resposta sobre a origem do patriarcado.Mas como explicar que nas sociedades industriais, com as tecnologias reprodutivas jdisponveis ainda so presentes as relaes de desigualdade e submisso entre homens emulheres, sendo que, so estas ltimas que na maior parte das vezes cumprem os papismenos valorizados socialmente?

    Saffioti (1987) chega a questionar se haveria argumento biolgico para afragilidade feminina? Porm, ela mesma rebate tal suposio ao levantar estudos sobremorbidade e mortalidade que afirmam o contrrio. Ou seja, as mulheres so menossuscetveis a doenas e apresentam menores ndices de mortalidade, com exceo de

    situaes especificas como alcoolismo e tabagismo. Com isto ela afirma que acaracterizao da inferioridade feminina um fenmeno exclusivamente social.

    Para esta autora, a construo social da superioridade masculina ocorre junto coma construo social da inferioridade feminina, e ambos saem mutilados. O homemsempre dever ser o provedor e no falhar nas tarefas como chefe da casa. Ao homemcaber assumir um papel de Macho-Forte-Racional, e mulher caber o papel de Dcil-Frgil-Emotiva. Esta polarizao manter o sistema do patriarcado que se sustenta emdois aspectos: a dominao e a explorao da mulher. A dominao ser reeditadaatravs do sistema poltico e ideolgico, enquanto que a explorao ser atravs dasrelaes econmicas.

    As mulheres da atualidade so independentes?

    E como a compreenso e pesquisas sobre gnero podem estar relacionadas comviolncia? Como seria possvel falar que mulheres ainda sofrem algum dano, visto quehoje em dia fala-se em igualdade entre homens e mulheres, ou mesmo, que asmulheres j conquistaram novos espaos na sociedade, e j no so mais comoantigamente. Exatamente neste cenrio de relativa igualdade, Saffioti (2004) conseguiurealizar uma pesquisa que descortinou novas perspectivas para se pensar as relaes em

    sociedade, visto que ps em questo a to divulgada paz e igualdade entre os sexos.

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    Esta autora publicou o estudo nomeado como Violncia Domstica: questo depolcia e de sociedade. Nesta pesquisa foram entrevistadas 300 mulheres vtimas deviolncia domstica apresentando os seguintes resultados:

    - 70% das mulheres confirmaram ter sido vtima de algum tipo de violncia(exceto violncia sexual) por parte de seu parceiro;

    - 53% delas j haviam sofrido algum tipo de ameaa fsica com armas por partedos companheiros;

    - 15% das mulheres apontaram as humilhaes dentro de casa como sendo asferidas na alma mais difceis de curar;

    - 12% das entrevistadas relataram j ter sofrido violncias verbaisdesrespeitosas e desqualificadoras no trabalho ou em casa;

    - 11% j havia sofrido Leso Corporal Dolosa;

    - 9% passou pela situao de crcere privado e teve que faltar ao trabalho;

    - 8% foram ameaadas com arma de fogo por parte do companheiro;- 6% das entrevistadas foram foradas a prticas sexuais que no lhes

    agradaram.

    Tais dados formam o cenrio de um lar no to doce e pacfico como a maiorparte das pessoas imagina como sendo o local onde um casal estabelece laos afetivosem comum acordo. Pelo contrrio, aponta para uma relao afetiva transversalizada porsituaes de desrespeito e violncia, onde o homem assume o posto de agressor e amulher passa a ser vtima do ato agressivo.

    Chama ateno que entre os casais com filhos, 18% das mulheres foram acusadas

    de no serem boas mes, o que demonstra que os atos de agresso tambm utilizam ospapis sociais construdos para compor o perfil do que deve ser a funo materna, eportanto, so usados para violentar a mulher nos momentos de discusso do casal.

    Com relao s mulheres que foram vtimas de espancamento, Saffioti (2004) fazuma interessante anlise da amostra, pois, se 11% das entrevistadas confirmaram jterem sido espancadas pelos companheiros, ela estimou que, at aquele ano, 6,8 milhesde brasileiras j haviam passado por esta experincia. Sendo assim, 2,1 milhes demulheres foram agredidas por ano, chegando proporo de quatro vtimas por minuto.Desta forma, seria preocupante insistir na afirmao sobre a independncia femininaquando, ainda hoje em dia, as mulheres no encontram suporte familiar, social e jurdicopara romper com o ciclo da dominao enredado pela cultura do patriarcado.

    Para esta autora a violncia de gnero aparece como uma forma de produo ereproduo das relaes de poder. Esta violncia expressa uma forma particular daviolncia global mediada pela ordem patriarcal e abrange tambm a violncia contracrianas adolescentes. Saffioti (2004) reafirma que homem e mulher precisam de auxiliopara transformar a relao de violncia. Esta autora afirma que a violncia de gnero uma categoria mais geral para a descrio do fenmeno que tambm pode ocorrer entrehomem contra homem ou mulher contra mulher, mas o mais difundido homem contramulher. O termo violncia de gnero contempla as demais situaes de violncia, comopor exemplo:

    - Violncia familiar que envolve membros de uma famlia extensa ou nuclear,tanto por consaguinidade como por afinidade. No interior ou fora dodomicilio.

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    - A violncia domstica assemelha-se a familiar, acrescentando que podeenvolver agregados, empregados.

    Para Saffioti (2004) a violncia domstica tem uma importante caracterstica: arotinizao. A transformao do comportamento violento em um fenmeno quase quecotidiano contribui para que o casal construa uma relao de co-dependncia, o que porfim, termina por promover a fixidez da relao. Como a situao de violncia ocorre nointerior de uma relao afetiva a autora considera que haja a necessidade de intervenoexterna para auxiliar o casal a reconfigurar a relao. Para ela, as formas de resistnciaencontradas pelas mulheres no podem ser caracterizadas como cumplicidade, pois spode se avaliar o consentimento de algum numa relao quando h igual poder entreambos.

    importante destacar que nos estudos multicntricos realizados pelo grupo depesquisa de dOliveira et al. (2009) comparando amostras de So Paulo com a Zona daMata de Pernambuco (ZMP), conseguiu-se novamente demonstrar a existncia daviolncia cometida por parceiro ntimo, sendo que, apareceu a prevalncia de 28,9% em

    So Paulo e de 36,9% na ZMP. As anlises destacaram dois fatores de risco paramulheres sofrerem violncia por parte de parceiro ntimo: as mulheres terem sidovtimas de abuso sexual na infncia e terem presenciado suas mes sendo vtimas deviolncia por parte do companheiro. Este estudo conseguiu tambm demonstrar como asrelaes de violncia de gnero esto conectadas s condies socioeconmicas dogrupo estudo, bem como s questes culturais. Tal constatao aparece quandoanalisados o grupo de mulheres que estavam vivendo na forma de unio informal com ogrupo de mulheres separadas ou vivas. Enquanto na ZMP as mulheres em unioinformal foram as que mais relataram terem sido vtimas de violncia por parte doparceiro ntimo, isto ir aparecer entre o grupo de paulistanas separadas ou vivas. Asautoras e autores deste estudo analisam que as condies para sada do casamento foram

    facilitadas para paulistanas vtimas de violncia, enquanto que as pernambucanassofrem em unies instveis por viverem em uma sociedade onde altamente valorizadaa castidade feminina e o casamento formal, o que fragiliza triplamente aspernambucanas em unies no-formais.

    Os contornos diferenciados que a violncia de gnero apresenta em diferentesregies e cidades tambm pode ser observado no estudo feito pelas pesquisadorasArajo, Martins e Santos (2004) vinculadas ao Ncleo de Estudos de Violncia eRelaes de Gnero da UNESP (NEVIRG), na cidade de Assis. Esta cidade possuicerca de 100.000 habitantes e localiza-se na regio oeste do estado de So Paulo. Apesquisa analisou as ocorrncias registradas na Delegacia da Mulher deste municpio,

    no perodo de 1990 a 2000. A amostra de 3627, do total de 10.136 processos, revelou2166 casos de violncia de gnero. Este estudo destacou que 57% das vtimas eramcasadas, 88% das denunciantes eram as prprias vtimas, salientando o quanto a rede deapoio social ainda reticente em no denunciar ou mesmo apoiar a vtima de violncia.A falta de apoio social e a dificuldade em dar visibilidade violncia de gnero fazemcom que muitas mulheres busquem no setor sade o cuidado para as dores fsicas epsquicas que ocorrem dentro da experincia da violncia.

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    Como a violncia de gnero e sade constroem um mesmo cenrio

    Ao observarmos como a violncia de gnero pode ser detectada atravs de umaobservao mais acurada dentro do setor de sade, percebe-se que em muitos estudosneste campo no h clareza nos dados para avaliar o adoecimento a partir dascategorias: sexo, raa, classe scio-econmica. Por outro lado, as anlises recentes sobreas polticas de sade no Brasil, tm questionado que as mesmas terminaram porreafirmar papis sociais ao focar a ateno nos programas para sade vinculados sadesexual feminina, maternidade e cuidados com a criana (Giffin, 2002).

    Ludemir (2008) destaca que h problematizaes importantes a serem feitas nocampo da sade mental que deveriam observar as categorias classe social e gnerocomo fontes de sofrimento. Ressalta que na maior parte das vezes os fatores sociaiscomo escolaridade, emprego, renda e gnero tm sido invisibilizados tanto pelosservios de sade como pelos gestores do sistema na formulao das polticas pblicasem sade mental.

    Uma importante contribuio deste texto de Ludemir (2008) foi selecionar estudosque examinaram diferentes indicadores sociais em sua relao com a sade mental,destacando quatro reas: educao, emprego, renda e gnero.

    No critrio educao a autora levanta estudos que apontam existir associaoinversa entre anos de estudo e sofrimento psquico, por exemplo, numa comparaoentre chilenas e inglesas houve um maior risco de desenvolver transtornos afetivos ogrupo das chilenas com baixa escolaridade. Com relao ao indicador emprego, estudoscomprovam que desempregados tm pior sade mental em relao a empregados; asade mental preexistente um importante fator de manuteno do emprego; estudolongitudinal de indivduos saudveis mostra efeitos adversos do desemprego na sademental, revertida quando novamente empregado; a associao entre desemprego e

    transtorno mental mais freqente entre homens que mulheres; h maior risco dedepresso entre desempregados de baixa renda (mais vulnerveis em funo de maiordificuldade econmica).

    A autora discute que no Brasil a prevalncia de transtornos mentais comuns entremulheres trabalhadoras informais foi maior que entre mulheres desempregadas. Oindicador renda o mais estudado nacional e internacionalmente, porm os resultadosso contraditrios sobre dificuldades financeiras a longo ou curto prazo na relao comos transtornos mentais. H diferenas entre pases desenvolvidos (desigualdade de rendanomeada como pobreza relativa) e pases em desenvolvimento (pobreza absoluta). Comrelao ao indicador gnero, os estudos avaliam que a desvalorizao dos afazeres

    femininos como provocadores de maior desgaste e maior percepo de piora na sade,tal fato leva maior procura de mulheres pelos servios de sade; mostram tambm queas mudanas no mundo do trabalho, sobreposio dos papeis (dupla jornada de trabalho)tambm so provocadores de fadiga, estresse e sintomas psquicos; muitos estudosdemonstram a relao entre violncia domstica e transtornos mentais (para aOrganizao Mundial de Sade a principal causa vinculada a gnero que provocadepresso); avalia-se que o sofrimento mental duradouro o que mais provoca buscapor consultas em sade.

    A dificuldade em detectar as tramas que envolvem gnero e indicadores sociaistambm pode ser notada nos estudos, mesmo que escassos, na rea da sade mental. No

    Brasil, de acordo com Ferraz e Arajo (2004) h um imbrincamento de fatores onde amulher sendo pobre, ter menos recursos e uma sobrecarga maior de trabalho em funo

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    do esteretipo de cuidadora, devendo ser me, esposa, dona de casa. Tambm teropiores condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho,transporte, emprego, lazer, acesso e posse da terra e acesso a servios de sade. Comtodo este conjunto desfavorvel as autoras afirmam que este grupo apresenta maiormorbi-mortalidade por causas previsveis que o grupo dos homens. Outra problemtica

    discutida pelas autoras que dentro do campo da sade mental o modelo biomdicohegemnico, diminui a relevncia de fatores econmicos e sociais nas condies desade da populao.

    Nas anlises epidemiolgicas os estudos afirmam que a depresso ocorre duasvezes mais em mulheres do que em homens, e tambm mais persistente e com maiorndice de reincidncia entre mulheres. Porm, para Ferraz e Arajo (2004) asexplicaes biolgicas so insuficientes para explicar este fenmeno. Mesmo ao seconsiderar as diferenas hormonais, importante perceber como as desigualdades degnero podem privilegiar o masculino e afetar a auto-estima feminina bem como suascondies de poder.

    Mulheres so mais vitimizadas pela discriminao de gnero, so mais pobres,bem como sofrem mais fome e desnutrio, violncia domstica (humilhao,subordinao e depreciao), sexual e reprodutiva. Da serem mais vulnerveis atranstornos psquicos como depresso, ansiedade e estresse ps-traumtico. Tais ndicesso mais altos entre pessoas que sofreram violncia. H uma correlao positiva entre agravidade e durao da exposio violncia e a gravidade do transtorno mental(Ferraz & Arajo, 2004, p. 62). As autoras tambm salientam que mulheres vtimas deestupro e explorao sexual, mulheres que so obrigadas a manter relao sexual comparceiros, ou mesmo, serem expostas a constrangimentos quando se recusam a ter taisrelaes tm mais depresso, ansiedade, estresse ps-traumtico, transtorno obsessivocompulsivo e abuso de drogas e lcool. Existem diferenas nos diagnsticos para os

    mesmos sintomas entre homens e mulheres. Com mesmos sintomas maior aprobabilidade da mulher ser diagnosticada como depressiva ao invs do diagnstico deabuso de lcool. Ser mulher um importante preditor para a prescrio de drogaspsicotrpicas.

    Como exemplo da relao que alguns estudos estabelecem entre violncia edoenas mentais cita-se o estudo de Adeodato, Carvalho, Siqueira e Souza (2005) quecorrelaciona a violncia ao aparecimento de transtornos mentais. O estudo avaliou umaamostra de 100 (cem) mulheres que foram agredidas por seus parceiros e fizeramdenncia junto a Delegacia da Mulher do Cear, e obteve como resultado: depresso(72%), sintomas de ansiedade e insnia (78%), ideao suicda (39%) e incio do uso de

    medicao ansioltica aps as situaes de agresso (24%).Vale ressaltar que no estudo supervisionado por Carlini (2006), nomeado como II

    Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrpicas no Brasil: estudoenvolvendo as 108 maiores cidades do pas-2005 ficou evidenciado alto consumo demedicamentos benzodiazepnicos (BZD) por parte das mulheres. Este estudo destacouque, com relao ao uso de BZD alguma vez na vida, 6,9% eram mulheres enquanto que3,4% eram homens. A diferena entre os dois grupos aumenta acentuadamente quandoobservadas as diferentes faixas etrias. Sendo assim, no grupo de 25 a 34 anos existem6,6% de mulheres para 2,5% de homens, enquanto que com mais de 35 anos estesvalores sobem para 8,0% mulheres e 4,4% homens.

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    O estudo estimou que 0,5% da populao brasileira possuem dependncia a BZD,sendo que este valor sobe para 0,8% na regio sudeste. Os medicamentos BZD maisutilizados foram: Diazepam (3,05%), Lexotam (1,54%) e Valium (0,50%).

    Para Mendona, Carvalho, Vieira e Adorno (2008) h uma estreita relao entregnero, envelhecimento e aumento do consumo de ansiolticos, favorecendo,contraditoriamente, para que as relaes de submisso sejam reeditadas quando asmulheres de classes populares envelhecem e encontram apenas no remdio a fora paracontinuar vivendo. O estudo de Alves (2002) descreve como idosas caracterizam suaqueixa como nervoso quando querem descrever o sofrimento por que passaram, eainda passam, vivenciando diversas formas de violncia e situaes vinculadas pobreza. A percepo sobre o sofrimento feminino deveria dar visibilidade s formascomo o mesmo apresentado aos profissionais da sade evitando que uma novaviolncia seja cometida contra estas mulheres, quando profissionais elegem a queixafsica e desconectam as situaes sociais e culturais que a envolvem, negligenciandoassim a violncia de gnero presente no fenmeno.

    Muito parecido foi o resultado do estudo de Orlandi e Noto (2005) onde mdicosprescritores entrevistados afirmaram que o perfil do usurio, por tempo prolongado, debenzodiazepnicos (BZD), so: idosos com dificuldade para dormir, e mulheres comdificuldade em lidar com o stress cotidiano. Para estas ltimas os mdicos nomeiam oremdio como uma espcie de muleta. Todos os usurios entrevistados negaram teremsido informados sobre o tempo total do tratamento com esta droga psicotrpica e algunsnem sabiam relatar quais os riscos envolvidos no seu uso continuado.

    Vrios estudos nacionais reafirmam que o grupo de mulheres o que tem o maiornmero de pessoas tratadas com benzodiazepnicos (Carlini et al, 2006; Carvalho &Dimesntein, 2004; Cruz et al, 2006; Ribeiro, Azevedo, Silva & Botega, 2007). O estudo

    de Carvalho e Dimenstein (2004) avaliou o discurso de mulheres usurias deansiolticos, de uma Unidade de Ateno Bsica de Sade (UABS) da cidade de Natal, eperceberem que sete das dezessete entrevistadas utilizavam esta medicao por umperodo de doze a mais de vinte anos, sendo que a orientao para prescrio mdicasempre foi de usar de 2 a 12 semanas com retirada gradual. A maioria das entrevistadasno fez referncia a nenhuma outra forma de enfrentamento das situaes de sofrimentoa no ser o medicamento.

    As autoras acima discutem como o modelo de ateno sade, oferecidoatualmente, d pouca importncia constituio da subjetividade de mulheres nosconfrontos cotidianos, naturalizando a dor. Este estudo sugere que profissionais nodevem pensar apenas em estratgias de retirada do ansioltico, alm disso, devem pensarna resignificao do uso dos mesmos, pois eles so vistos como o que d fora paraestas mulheres lidarem com sua vida. E este significado de fora termina por impedir aconstituio de alternativas para lidar com o sofrimento.

    Experincias entre equipes de sade mental e equipes da estratgia sade dafamlia (ESF) j tentam fazer propostas conjuntas para o atendimento mulher sob umaperspectiva de gnero, bem como, desencadear a sensibilizao dos profissionais dasade para estas questes atravs da capacitao em servio. As pesquisadoras Rabelo eTavares (2008) propuseram um trabalho conjunto entre um Centro de AtenoPsicossocial (CAPS) da cidade de Goinia e duas ESF com o objetivo de escutar osofrimento psquico vinculado a questes de gnero que perpassam as vivncias

    femininas e masculinas na comunidade atendida. A experincia relatada funcionou sob algica do matriciamento, mesclando atividades em grupo com mulheres usurias de

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    BZD e estudos de caso com toda a equipe da ESF. Planejaram e executaram dinmicasque propuseram a problematizao do papel da mulher em conjunto com o significadodo remdio na construo desta identidade.

    As autoras discutem que o grupo ajudou tanto s mulheres, bem como a equipe desade a compreenderem e entenderem o sofrimento psquico no mais apenas como umsintoma, ou mesmo, apenas a reduo queixa no consigo dormir. Propicioutambm a oportunidade para que as mulheres pudessem ter uma reavaliao das drogasutilizadas, por parte da equipe de mdicos da ESF e CAPS, promovendo a retiradacompleta da medicao em alguns casos e troca de medicamentos com uso racional emoutros.

    Consideraes Finais

    Os estudos acima destacam como o sofrimento psquico feminino, seja eledenominado como nervoso ou simplificado como insnia, no tem conseguido serouvido de forma adequada pelas equipes de sade.

    O nmero de BZD prescritos em sua maioria para mulheres aponta para umaprtica j nomeada h vrios anos como medicalizao da vida (Illich, 1975). Talfenmeno aponta para uma naturalizao do sofrimento feminino, anulando as relaesfamiliares, sociais e culturais ao considerar que fenmenos biolgicos seriam osprincipais determinantes, quando na verdade, eles seriam apenas as conseqncias defatores mais complexos que envolveriam, por exemplo: gnero, raa, emprego e renda,faixa etria.

    Ao negligenciar estes fatores na ateno sade feminina, os profissionais dasade envolvidos podem reproduzir relaes e prticas de cuidado que impedem ogrupo de mulheres em reconhecer as amarras vinculadas a gnero que temdesencadeado dor e adoecimento. Tal fato, da forma hegemnica como tem sidoreproduzido torna-se ento mais uma forma de violncia a este grupo, pois ao noconsiderar, ou mesmo negar as especificidades vinculadas s iniquidades de gnero ainstituio sade tambm passa a ser autora de violncia ao invisibiliz-la.

    A discusso que hora propomos problematiza o carter curativo das aes emsade, predominantemente medicalizante, salientando a ineficcia das mesmas visto ano alterao do quadro de sofrimento psquico e violncia a que as mulheres sosubmetidas ainda nos dias atuais.

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    Rabelo, I. V. M. e Arajo, M. F.(2008). Gender-based violence analysis through mentalhealth perspective. Revista de Psicologia da Unesp, 7(1), 123-132.

    Abstract: This work aimed at to discuss the gender-based violence into mental

    health context. It is discussed the concept of gender and patriarchy as ways ofsocial relationship, those ways are responsible for establishing of social

    domination and exploration of men over women. It clarifies and debates

    ongoing studies that are researching gender-based violence in different

    settings: family, city and into mental health approaches. Finally, the text

    discusses how the gender-based violence has been reproduced in daily routine

    of mental health practices when it reduces the female suffering into a biological

    problem.

    Key words: psychology, gender-based violence, mental health.

    Referncias

    II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrpicas no Brasil: estudo

    envolvendo as 108 maiores cidades do pas-2005. (2006). Carlini, E A (superv)[et al]. So Paulo: CEBRID- Centro Brasileiro de Informao sobre DrogasPsicotrpicas; UNIFESP- Universidade Federal de So Paulo.

    Adeodato, V. G; Carvalho, R. R.; Siqueira, V.R.de; Souza, F.G. de M. (2005).Qualidade de vida e depresso em mulheres vtimas de seus parceiros. Ver. Sade

    Pblica, So Paulo, 39(1), 108-113.Alves, P. C. (2002). Nervoso e experincia de fragilizao: narrativas de mulheres

    idosas. In M. C. S. Minayo; C. E. A Coimbra Jr (Orgs.), Antropologia, sade eenvelhecimento (pp.153-174). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

    Arajo, M. F.; Martins, E. J. S.; Santos, A. L. dos (2004). Violncia de gnero eviolncia contra a mulher. In M. F. Arajo; O. C. Mattioli (Orgs.), Gnero eViolncia (pp. 17-35). So Paulo: Arte e Cincia.

    Carvalho, L.F.; Dimenstein, M. (2004) O modelo de ateno sade e o uso deansiolticos entre mulheres.Estudos de Psicologia, 9(1), 121-129.

    Cruz, A V; Fulone, I; Alcal, M; Fernandes, A A; Montebelo, M I; Lopes, L C. (2006).Uso crnico de diazepam em idosos atendidos na rede pblica em Tatu-SP.

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  • 8/14/2019 Violncia de gnero na perspectiva da sade mental

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