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Coleção Segurança com Cidadania

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ISSN 1984-7025n. 01, ano 01, 2009

289 ppBrasília, DF

Coleção Segurança com Cidadania

Subsídios para a Construção de umNovo Fazer Segurança Pública

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Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da JustiçaTarso Genro

Secretário Nacional de Segurança PúblicaRicardo Brisolla Balestreri

Diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos

Guaracy Mingardi

Coordenador Geral de Pesquisa e Análise da Informação

Marcelo Ottoni Durante

ISSN 1984-7025Coleção Segurança com Cidadania / Secretaria Nacional de Segurança Pública do

Ministério da Justiça - Ano I, 2009, n. 01. Brasília, DF.

Todos os direitos reservados ao

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ)SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA (SENASP)

Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício SedeBrasília, DF - Brasil - CEP: 70064-900

Telefone: (61) 3429.3233Impresso no Brasil

EDITORESMarcelo Ottoni DuranteMinistério da Justiça

José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)Guaracy Mingardi (RENAESP – SENASP – MJ)Marcelo Ottoni Durante ( SENASP – MJ)Th adeu de Jesus e Silva Filho (SENASP – MJ)

Maira Baumgarten (FURG)Naldson Costa (UFMT)Renato Lima (FSEADE)Ricardo Balestreri (RENAESP – SENASP – MJ)Roberto Kant de Lima (UFF)Rodrigo Azevedo (PUCRS)Sergio Adorno (USP)

Th adeu de Jesus e Silva FilhoMinistério da Justiça

César Barreira (UFC)Michel Misse (UFRJ)

Maria Stela Grossi Porto (UnB)Melissa Pongeluppi (SENASP – MJ)

Antônio Rangel Bandeira (VIVARIO)Cláudio Beato (UFMG)

Cristina Villanova (RENAESP – SENASP – MJ)Jorge Zaverucha (UFPE)

Juliana Barroso (RENAESP – SENASP – MJ)Ivone Freire Costa (UFBA)

Wilson Barp (UFPA)

COMITÊ EDITORIAL

CONSELHO EDITORIAL

CapaRafael Rodrigues de Sousa

Emerson Soares Batista Rodrigues

DiagramaçãoRafael Rodrigues de Sousa

Emerson Soares Batista Rodrigues

As matérias veiculadas nos trabalhos e artigos são de inteira e exclusiva responsabilidade dos autores

Tiragem: 1.000 exemplares

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SUMÁRIO

Editorial 7

Apresentação 9

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativode quatro capitais brasileiras 15Kathie Njaine, Simone Gonçalves de Assis, Queiti Batista Moreira Oliveira,

Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira

Códigos de deontologia policial no Brasil e no Canadá:análise dos documentos e das representações sociais 57Maria Stela Grossi Porto e Arthur Trindade Maranhão Costa

O papel dos municípios na segurança pública 83Tulio Kahn e André Zanetic

Avaliação da formação e da capacitação profi ssional dos peritoscriminais no Brasil 127Michel Misse, Alexandre Giovanelli, Décio Nepomuceno da Silva e Carlos Eduardo Medawar

Guardas municipais: resistência e inovação 159Marcos Luiz Bretas e David Pereira Morais

Polígono da maconha: contexto socioeconômico, homicídiose atuação do Ministério Público 175Jorge Zaverucha, Adriano Oliveira e Ernani Rodrigues

(In)segurança profi ssional e (in)segurança pública 195Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino,

Simone Gonçalves de Assis e Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira

Mudanças em organizações o caso do policiamento 231Karina Rabelo L. Marinho e Almir de Oliveira Junior

Trajetórias profi ssionais e carreira dos agentes penitenciários:Distrito Federal e Goiás 255Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista

Instruções aos autores 287

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7Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública |

EDITORIAL

A Coleção SEGURANÇA COM CIDADANIA tem como objetivo produzir livros que sirvam de material didático para cursos de segurança pública, em distintos níveis e formas e em diversas instituições educacionais. Nosso público inicial são os participantes da RENAESP – Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública – da SENASP do Ministério da Justiça, a qual coordena, desde 2008, cerca de 60 Cursos de Especialização em Segurança Pública, presenciais e à distância, em todas as regiões do País.

O objetivo da coleção é reunir textos que expressem o desenvolvimento atual dos conhecimentos no campo da segurança pública, bem como refl itam as inovações teóricas, metodológicas e empíricas em âmbito nacional e internacional. Trata-se de contribuir à construção de um novo paradigma para o campo de conhecimento da segurança na sociedade contemporânea e para as políticas públicas de segurança na sociedade brasileira: olhares complexos sobre uma realidade multidimensional, complexa e com processos não-lineares de transformação.

Pretendemos publicar, com intenção pedagógica, estudos sobre as dimensões sociais, econômicas, políticas, culturais e jurídicas da violência, dos processos de criminalização e do sistema de justiça criminal.

Os objetivos desta coleção é desenvolver os seguintes temas: Segurança pública e cidadania• Análise de homicídios na sociedade brasileira• Sistemas de informação, estatísticas criminais e cartografi as sociais• Estudos sobre crime e violência no século XXI• Organizações policiais e modelos de policiamento• Refl exões sobre educação policial• Meios de comunicação, violência e cidadania• Mediação de confl itos agrários e cidadania• Violência de gênero e cidadania• Sociologia da violência• Socialização, juventude e segurança• Políticas públicas de segurança pública• Confl itos sociais e processos de pacifi cação• Direitos e segurança pública• Perspectivas para o sistema prisional brasileiro• Segurança pública e criminologia• Direito penal comparado e segurança pública•

Esta lista inicial de temas expressa a intenção de estudar todo o fl uxo da violência, da criminalidade e da segurança pública, e se propõe a reconstruir o discurso e as ações das instituições, dos atores, dos ofensores da lei e das vítimas, nos módulos principais do processo da violência e da justiça criminal.

Por um lado, serão investigadas as diversas manifestações da violência social e da criminalidade violenta no Brasil: violência doméstica; violência sexual; violência agrária; a relação entre juventude, escola e violência; violência no trânsito; e a relação complexa entre violência e os meios de comunicação.

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Por outro, serão efetuadas análises de séries estatísticas dos diversos tipos de delito, no país, estados, capitais, regiões metropolitanas e municípios. Vamos salientar a importância da produção de sistemas de gestão da informação, de modelos de análise dos indicadores relevantes, da utilidade do georeferenciamento de dados e informações e da montagem de cenários e simulações para a tomada de decisão dos operadores de segurança pública. Tal conjunto de informações poderá servir de subsídio para sistemas de avaliação de instituições, programas e projetos na área da redução da violência e da criminalidade e no setor da segurança pública.

Esta Coleção propõe-se ainda a analisar a crise das organizações policiais e das distintas experiências de reformas, desde o sistema de educação policial, passando pela investigação policial e polícia judiciária, as delegacias das mulheres, as graves violações dos direitos humanos, as greves das polícias, a violência policial, e a implantação de novas tecnologias de gestão nas organizações policiais.

Também as instituições do poder judiciário, no âmbito criminal e penal serão analisadas criticamente, efetuando-se e reconstrução de estratégias, representações e decisões dos operadores do direto.

Com urgente atualidade, publicaremos textos sobre o sistema prisional dos diversos agentes sociais envolvidos e da crise das penas restritivas de liberdade, das experiências de penas alternativas e das organizações envolvidas com os egressos do sistema penitenciário, assim como das causas sociais, institucionais e biográfi cas de elevada reincidência criminal.

Enfi m, os textos pretendem estimular a avaliação das políticas de segurança pública, com a defi nição de indicadores de avaliação dessas políticas sobre todos os momentos, níveis e territórios do país, em particular a avaliação dos diferentes planos nacionais. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1996-2002), o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) (1966), o Plano Nacional de Segurança Pública (2000) e as aplicações pelos Planos Estaduais do Fundo Nacional da Segurança Pública. No Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), pretendemos avaliar o SUSP – Sistema Nacional de Segurança pública e os Planos Estaduais. No segundo mandato Luiz Inácio Lula da Silva (2006-2010), serão realizados estudos sobre a efi ciência e efi cácia das ações propostas no PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com Cidadania.

Este campo de saber teve na coleção Polícia e Sociedade, da EdUSP, coordenada pelo Prof. Sérgio Adorno (do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) um marco na atualização do conhecimento internacional sobre esta área no Brasil.

Quiçá possam esses textos da Coleção Segurança com Cidadania prosseguir nesta seara, oferecendo material didático, pautado pelo avanço teórico-metodológico das ciências e pela interpretação da sociedade brasileira e latino-americana para o ensino da Segurança Pública.

Nosso objetivo ao publicar textos sobre a multidimensionalidade dos fenômenos das violências e a complexidade da segurança pública será dar visibilidade à compreensão das questões sociais mundiais que constituem desafi os à consolidação e aprofundamento da democracia. Ao propor refl exões sobre alternativas de políticas sociais, de políticas públicas de segurança e de ações da sociedade civil, assumimos o compromisso com a o avanço do processo civilizatório na sociedade contemporânea.

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9Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública |

APRESENTAÇÃO

Os textos aqui incluídos resultam do Concurso Nacional de Pesquisas realizado pela SENASP, iniciados na Gestão do Prof. Luiz Eduardo Soares e concluídos na gestão do Dr. Luiz Fernando Correa, em convênio com a ANPOCS – Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais no período de 2003-2005.

Com o objetivo de oferecer um panorama amplo das questões envolvidas no campo da segurança cidadã em um Estado Democrático de Direito, selecionamos textos que abordam, de modo rigoroso e inovador, alguns dos temas relevantes para o ensino da RENAESP – Rede de Altos Estudos em Segurança Pública da SENASP. Aliando problemáticas densas com pesquisas empíricas, utilizando dados quantitativos e informações provenientes de documentos e de entrevistas, tais artigos podem ser estimulantes aos alunos e estudiosos dos dilemas do controle social em uma sociedade democrática, porém desigual, diversa e marcada pela exclusão social.

Neste quadro, realça a função social dos profi ssionais de segurança pública em contribuir ao Estado democrático de direito e à extensão do processo civilizatório no Brasil. O primeiro conjunto de pesquisas analisa dimensões das organizações policiais, do policiamento comunitário e da investigação policial.

Karina Rabelo L. Marinho e Almir de Oliveira Junior (Mudanças em organizações: o caso do policiamento) abordam as características organizacionais, associadas a diferentes modelos de organizações policiais, sobretudo a arranjos organizacionais estruturais nos quais as estratégias manifestam-se. Procuram conhecer as implicações do processo de mudança do modelo profi ssional-burocrático de policiamento para o modelo de policiamento comunitário. Procuram mostrar como os principais elementos de mudança estão associados à distribuição do poder organizacional, bem como das defi nições de atividades e missões das organizações. Tomam como referência empírica o Policiamento Comunitário nas Cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória. No modelo comunitário, o estreitamento da relação entre organização e ambiente externo pode gerar importantes alterações nos fatores determinantes de distribuição de poder, defi nição de missão e atividades.

O artigo de Adriano Oliveira, Jorge Zaverucha e Ernani Rodrigues (Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público) tem como objetivos: 1) contextualizar as condições socioeconômicas do Polígono da Maconha, em Pernambuco, nas regiões do Sertão e do São Francisco; 2) analisar relações de causalidade entre tráfi co de drogas e o elevado número de homicídios; 3) avaliar a efi ciência do Ministério Público no enfrentamento ao cultivo e tráfi co de maconha no Polígono. Após detalhada análise, os autores chegaram a importantes conclusões: primeiro, a análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha, não detectou uma razão principal para o cultivo e tráfi co de drogas. Porém, verifi cou-se que há grupos organizados plantando e comercializando maconha. Percebeu-se a inefi ciência e inefi cácia do aparelho coercitivo do Estado: a atuação da Polícia Civil na investigação de crimes é praticamente inexistente. Em terceiro lugar, é razoável admitir que a ousadia dos delinqüentes cresça com o aumento da probabilidade de êxito do crime. No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir grande disponibilidade de terras para a produção. Porém, o mercado local é fonte secundária de renda para o atravessador da droga; assim, o grande número de

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homicídios existentes na região não deve ser imputado ao cultivo e tráfi co de droga. Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfi co de droga resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região.

O segundo conjunto de texto estuda as representações sociais acerca dos policiais na sociedade brasileira, sejam aquelas produzidas pela imprensa escrita, sejam as inscritas nos Códigos de Deontologia Policial. Na mesma perspectiva, a análise do trabalho policial permite perceber a relação entre a insegurança profi ssional e produção da insegurança pública.

O artigo de Kathie Njaine, Simone Gonçalves de Assis, Queiti Batista Moreira Oliveira, Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira (A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras) buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as ações policiais, tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na percepção pública da força policial. O conhecimento sobre como as mensagens são produzidas pelas mídias e como as mesmas atendem a diferentes interesses e estratos sócio-econômicos também podem contribuir para entender o funcionamento da imprensa e da atuação de jornalistas responsáveis pela construção dos textos. Outro aspecto relevante do estudo refere-se às diferentes visões das instituições policiais (civil, militar e federal) representadas pelos jornais. Concluem que a permanência de um estilo jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a cobertura mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo mais factual. Poucos jornais cobram de forma mais aprofundada as ações policiais, produzindo uma representação das polícias e seus operadores de forma analítica e refl exiva. Verifi ca-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar estereótipos em relação ao policial e suas corporações que estão ligados a uma idéia de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam proporções simbólicas signifi cativas no imaginário social. Por outro lado, policiais e suas corporações também constroem imagens estereotipadas da mídia em geral. Essa imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.

Maria Stela Grossi Porto e Arthur Trindade Maranhão Costa (Representações sociais nos Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá) indagam como a experiência policial pôde ser transformada em códigos de deontologia e normas de conduta, bem como seus efeitos sobre o sistema de treinamento e avaliação das polícias. Partindo da constatação de que, nas últimas décadas, vários países criaram códigos de deontologia e normas de conduta visando aumentar o controle sobre a atividade policial cotidiana. Em todos os casos, a adoção destes códigos e normas implicou em transformações no treinamento e na supervisão da atividade policial. Este criterioso trabalho permitiu chegarem a algumas conclusões: primeiro, recomendam que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de controlar o uso da força policial; segundo, sugerem a elaboração de normas de conduta policial. Terceiro, consideram que é adequar o treinamento - uma das formas utilizadas pelas polícias para capacitar seus membros ao emprego adequado da força - às necessidades do policiamento. Finalmente, recomendam a necessidade de adequar o sistema de avaliação ou o sistema de controle interno das condutas policiais.

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Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino, Simone Gonçalves de Assis, Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira (A (In) Segurança Profi ssional e (In) Segurança Pública) escreveram um estudo comparativo entre a Polícia Civil e a Policia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual e coletiva dos riscos profi ssionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no exercício da Segurança Pública. Os principais objetivos da investigação foram produzir informações estratégicas capazes de subsidiar ações dos profi ssionais, da Corporação e de seus gestores, visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da segurança pública. Concluem que os policiais, sobretudo os operacionais civis e militares, vivenciam um confl ito entre o enfrentamento desejado pela instituição que ressalta os atributos e as marcas da masculinidade e os sentimentos de medo da morte, justifi cados pelas situações de risco reais e imaginárias a que estão submetidos. Ressaltam ser “urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de morte dos policiais, ressaltando que não existe fatalidade nessa imensa perda de vidas que tanto afeta as famílias e a sociedade como um tudo”. Enfi m, um dos grandes desafi os do Brasil e do Rio de Janeiro em particular é criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã.

O terceiro conjunto de textos salienta o novo papel dos municípios e das guardas municipais na Segurança Pública.

Tulio Kahn e André Zanetic (O Papel dos Municípios na Segurança Pública) revelam que a ampliação das intervenções na esfera da segurança ocorreu depois da Constituição de 1988. O acesso aos recursos federais pelos municípios foi vinculado à apresentação de projetos consoantes com a política de segurança pública do Governo Federal. A SENASP também tem orientado aos municípios a elaborarem um Plano Municipal de Segurança Urbana, composto de diagnósticos dos problemas existentes e de ações relevantes para seu enfrentamento. Assim, os anos 1990 também marcaram o envolvimento maior dos municípios na esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis, de Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de Leis e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança. Também relevantes foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter preventivo, focados especifi camente na questão da criminalidade e da violência.

Os autores mostraram que a ação das prefeituras na esfera da segurança tem tido algum impacto: as denúncias criminais – matéria prima do trabalho policial – crescem consideravelmente quando as prefeituras se envolvem na divulgação do Disque Denúncia; a Lei Seca pode contribuir para diminuir a quantidade de homicídios. Se corretamente alocada a guarda municipal pode contribuir para a redução dos índices de criminalidade contra o patrimônio. Quanto aos projetos de inclusão social e de prevenção primária e secundária a literatura especializada já mostrou como os indicadores sociais infl uenciam os níveis gerais de criminalidade de uma determinada área. Vimos aqui como de certa forma eles foram importantes na explicação do porque a queda dos homicídios em São Paulo ocorreu em determinado tipo de municípios e não em outro. A pesquisa mostra que a participação dos municípios na esfera da segurança pública é crescente e promissora e que o problema só pode ser debelado com a colaboração de todas as forças vivas da comunidade.

Marcos Luiz Bretas e David Pereira Morais (Guardas Municipais: Resistência e Inovação) observam que, no quadro da reformatação institucional promovida pela Assembléia Nacional Constituinte, combinava-se uma experimentação de novas

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formas de poder com uma manutenção dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo em que a nova Constituição manteve os velhos modelos das polícias e suas atribuições, mencionou pela primeira vez neste nível jurídico a presença, ou antes, a possibilidade, das Guardas Municipais. Após cuidadosa análise das várias dimensões das guardas municipais, afi rmam que um grupo expressivo de Guardas já se organiza em torno de uma proposta clara de ação, que encontra respaldo em setores do poder público tanto municipal como federal. São aqueles que pretendem fazer da Guarda uma polícia local, enfrentando criminosos e, para isso, necessariamente armados. Reconhecer o fortalecimento de tendências é o caminho necessário para uma atuação que permita defi nir como o processo será conduzido, e que diretrizes conformarão o emprego das Guardas.

O quarto grupo de estudos foca a formação e a capacitação profi ssional dos profi ssionais em segurança pública: dos peritos criminais; dos agentes penitenciários; e a análise sociológica e pedagógica do ensino policial.

Michel Misse, Alexandre Giovanelli, Décio Nepomuceno da Silva e Carlos Eduardo Medawar (Avaliação da formação e da capacitação profi ssional dos peritos criminais no Brasil) realizaram um diagnóstico da formação e da capacitação profi ssional dos peritos criminais no Brasil, no intuito de propor uma melhor formação profi ssional nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos específi cos: realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na carreira de perito criminal; verifi car a adequação do ambiente de trabalho para a aplicação e uso dos conhecimentos adquiridos; analisar a percepção dos peritos criminais quanto às defi ciências e necessidades dos cursos de formação e atualização oferecidos atualmente; analisar suas representações a respeito da carreira, do trabalho em relação às expectativas durante a qualifi cação.

Os autores fazem considerações fi nais, das quais vale destacar: 1) a seleção dos peritos criminais para ingresso na carreira deve ser por áreas específi cas e não deve ser aberto a qualquer curso de graduação; 2) A inadequabilidade do ambiente de trabalho tende a ter como conseqüência o aumento da inefi ciência de cursos específi cos de especialização e aprofundamento; 3) Isso indica novamente que alguns conteúdos essenciais para os peritos devem estar sendo negligenciados, notadamente as partes técnica e científi ca; 4) Um dos principais atores que tem infl uência na qualidade do exame pericial é a polícia militar, porém a falta de uma cultura que respeite o local de crime faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando o trabalho do perito. 5) A ausência de indicadores estatísticos confi áveis referentes às demandas periciais e à produção de exames, laudos e produtividade é um fator limitante ao planejamento, gerenciamento e avaliação sistemática dos Institutos.

Em suma, “Não investir na formação policial do perito tem como conseqüência a produção de um funcionário inefi ciente e expõem ao risco a vida do próprio profi ssional e a sociedade. Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal tende a afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial, gerando uma tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus pares”.

Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista (Trajetórias Profi ssionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás) partiram do interesse em contribuir para uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo

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recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes agentes públicos. Mais recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as agentes penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em relação ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais, predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as, repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores carrascos e desumanos. Pode considerar-se que as relações e interações sociais nos presídios e penitenciárias acontecem entre dois grupos socialmente estigmatizados: agentes e internas/os; embora permaneçam diferenciados do ponto de vista das hierarquias e dos poderes presentes nas organizações Prisionais.

A pesquisa realizada procurou compreender as carreiras e trajetórias profi ssionais dos agentes penitenciários com vistas a realizar recomendações para ajustamento dos perfi s profi ssionais desses agentes às necessidades de segurança e respeito pelos direitos humanos. Entre essas, caberia salientar “a necessidade de construir uma carreira profi ssional específi ca para a profi ssão de Agente Penitenciário a nível nacional que considere uma redução das defasagens, do ponto de vista do tempo de formação, do conteúdo programático dos cursos, dos níveis salariais, entre outros”. E a “criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda persistente na instituição penitenciária que se caracteriza por uma ambigüidade com relação ao tratamento que deve ser dispensado aos internos, isto é, ora tratados com respeito, ora tratados com desprezo e humilhação”.

Sugerem, ainda, “realizar campanhas de valorização e reconhecimento do trabalho realizado pelos Agentes”; e “pensar estratégias para administrar de maneira adequada as diversas lógicas contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da segurança e a lógica da reintegração”

O texto de José Vicente Tavares dos Santos, Jorge Zaverucha, Ricardo Balestreri, Roberto Kant de Lima e Júlio Alejandro Quejada Jelves (A Educação Policial: limites e possibilidades para a democracia ampliada) parte da concepção do ofício de policial como um agente voltado para a segurança do Estado e a proteção da sociedade. Afi rmam: “Como a função do Estado é servir à sociedade, devemos, através da educação, fazer com que o policial reconheça que o Estado é um meio e não um fi m: o policial deve ser um profi ssional que trabalha em favor da sociedade, garantindo a segurança do cidadão”. Orientados pelo paradigma da autonomização moral e intelectual e tendo como perspectiva as análises complexas da sociedade no Século XXI, propõem que a formação dos policiais incorpore a contemporaneidade do saber crítico em Ciências Humanas e Jurídicas. Para desenvolver as habilidades e competências em regulação de confl itos, na prevenção de crimes, na repressão profi ssional e na investigação criminal, é necessário uma perspectiva complexa e holística.

O objetivo é a construção de um saber teórico-prático processual e refl exivo, fundado no princípio da complexidade, que reconhece a multidimensionalidade do social, a incorporação do indeterminismo, da incerteza e do risco nas ações coletivas e a ruptura epistemológica no processo de conhecimento das situações sociais. Esta modalidade de saber teórico-prático poderá contribuir para a renovação das práticas policiais no Brasil, no sentido de adicionar-lhes qualitativamente justiça, equidade social, efi ciência e efi cácia, o que poderá agregar confi ança e legitimidade às organizações policiais brasileiras.

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Em suma, mediante várias abordagens e metodologias, a amplitude das pesquisas apresentadas neste volume salienta as enormes possibilidades para uma Educação Policial contemporânea, incorporando a pedagogia libertadora e o rigor teórico-metodológico, a fi m de construirmos uma segurança com cidadania na sociedade democrática.

José Vicente Tavares dos Santos

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15A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras |

A IMAGEM DO POLICIAL NA MÍDIA ESCRITA: ESTUDO COMPARATIVO DE QUATRO CAPITAIS BRASILEIRAS

Kathie Njaine1

Simone Gonçalves de Assis2

Queiti Batista Moreira Oliveira 3

Fernanda Mendes Lages Ribeiro4

Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira5

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as ações policiais, tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na percepção pública da força policial.

As teorias de comunicação têm demonstrado que a ação jornalística não se restringe somente à construção da notícia enquanto tarefa intrínseca dos profi ssionais que trabalham na mídia. Para muitos teóricos alguns temas permanecem na mídia enquanto houver um interesse do próprio setor em fazê-los entrar no “debate público”. Desse modo, mais que o simples registro, o tratamento jornalístico a determinadas questões ou passa por um interesse público ou são de interesse do jornalismo porque mobiliza emoções, dramas e o comércio desse produto. Para Champagnhe (1997:64)a mídia age sobre o momento e fabrica coletivamente uma representação social que, mesmo quando está muito afastada da realidade, perdura apesar dos desmentidos ou das retifi cações posteriores porque ela nada mais faz, na maioria das vezes, que reforçar as interpretações espontâneas e mobiliza, portanto, os prejulgamentos e tende, por isso, a redobrá-los.

Para Rebelo (2000) o papel da mídia impressa se realiza em dois planos: um que procura narrar as notícias do dia, procurando cumprir sua função informativa; outro, no qual se confi gura e expressa um sistema de valores, em consonância com o lugar de fala do jornal. Desse modo, essa não é uma narrativa qualquer, é a narrativa do jornal, não mais se restringindo sobre “aquilo de que se fala”, mas prevalecendo no plano do discurso, “de que modo se fala” e “porque se fala”. Os dois planos tornam o jornal socialmente reconhecido pelos leitores, o que inclui, obviamente também, o reconhecimento do estilo e do perfi l do jornalista. Essa atividade da informação escrita

1 Jornalista, Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli/Escola Nacional de Saúde pública/Fundação Oswaldo Cruz. (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ).2 Médica, Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.3 Psicóloga, Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana/Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.4 Psicóloga, Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana/Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.5 Estatística, Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.

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apresenta diferenças em relação à mídia falada, porque, por ser menos fragmentária e possuir uma temporalidade maior, produz efeitos de agendamento de temas (agenda-setting) como, por exemplo, o da atuação policial. (Wolf, 2001).

A hipótese do agenda setting a que se refere o autor acima não concorda que os meios de comunicação de massa agem persuasivamente sobre as pessoas, mas que a compreensão que a maioria das pessoas têm de grande parcela da realidade é dada por esses meios. Ou seja, há uma tendência a dar ênfase aos assuntos que a mídia e/ou o jornalismo destacam, tais como os eventos violentos e as ações que envolvem a polícia e, assim, negligencia-se ou ignora-se outros temas que não são realçados pelos meios. Essa hipótese tem integrado as teorias de comunicação no que se refere à compreensão do nível cognitivo, da organização dos conhecimentos e da relevância dada pelos consumidores dessas informações.

Alguns estudiosos do funcionamento da mídia escrita destacam que esse objeto de conhecimento merece ser aprofundado pela complexidade da questão da circulação de informação. Consideram que para além do nível do enunciado, ou o exame do conteúdo do jornal (o que se diz), encontra-se o nível da enunciação (o modo como se diz), que constrói certas imagens da realidade, estabelecendo com o leitor o que chamam de “contrato de leitura”, conforme apontado acima. A teoria da enunciação, portanto, em relação à mídia escrita, busca conhecer o funcionamento do discurso, ou como o jornal constrói uma relação com o leitor através dos textos, das imagens, dos dispositivos utilizados nos títulos, subtítulos etc. (Veron, 1985; Fausto Neto, 1999). Esses autores enfatizam que o jornal procura construir com o seu leitor uma espécie de contrato “a priori” que corresponda às expectativas, interesses e conteúdos presentes no imaginário do seu destinatário. Além disso, atendendo à evolução sócio-cultural do leitor, o jornal procura acompanhar esse movimento, resguardando a fi delidade de seu público. Todavia, por serem produtos sujeitos à comercialização, esse contrato pode modifi car se a concorrência assim o exigir.

A informação, considerada o bem mais valioso do mundo contemporâneo, torna-se ao mesmo tempo objeto de interesses e mecanismos de desregulação e desumanização (Elhajji, 2002). A imprensa tem tido forte infl uência na organização do espaço relacional (Hobsbawn,1995; Ramonet,1996). Martin-Barbero (2001) diz que para o poder se manter por meio da mídia, tem que dialogar com seus contrários e com os que, por serem do meio popular, a elite considera de mau gosto, despreza ou menospreza. Por causa dessas estratégias de concessão às diferenças, articuladas à imposição de uma forma dominante de olhar o mundo, os meios de comunicação acabam por ter forte infl uência cultural.

Ao investigar a atividade jornalística Rebelo (2000) discorda da visão muitas vezes maniqueísta de alguns intelectuais, referindo-se a Patrick Champagne, de que o jornalista é um mero narrador dos fatos, incapaz de comentar, interpretar. Rebelo coloca que, os jornalistas, na sua grande maioria, são profi ssionais assalariados e, como tal, estão sujeitos às condições econômicas das empresas que concorrem no mercado e às condições tecnológicas da própria profi ssão, que modifi ca com a chegada de cada nova tecnologia. Esse autor aborda a questão da relação entre os jornalistas e as fontes de informação, destacando que essa negociação é, principalmente simbólica “o valor da troca é, de alguma forma, coincidente com o valor de uso” (Rebelo: 2000:28). Assim, a informação, da fonte até o leitor, é compreendida por esse autor como composta por

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três estratégias: (1) a estratégia da fonte que cede ao jornal somente as informações que interessa a ela serem difundidas; (2) a estratégia do jornal que difunde somente as informações que julga mais condizentes com o seu projeto editorial; (3) a estratégia do leitor, que como destinatário último, se interessa somente pelas informações que coadunam com o seu quadro de referência. Essa síntese da circulação da informação é para Rebelo, a estrutura que funda o sistema de comunicação de massa, formada pelo jornalista e a fonte.

Mídia e Polícia

Não se pode generalizar a respeito da atuação jornalística. Alguns estudos sobre a representação de eventos violentos na mídia mostram que grande parte da cobertura policial caracteriza-se por ser um jornalismo informativo e factual (Ramos e Paiva, 2005).

A maioria das matérias faz parte das seções do cotidiano e questões mais aprofundadas sobre as ações policiais são tratadas por jornalistas especializados e em seções especiais. Outra parte dessa cobertura dedica-se a um tipo de jornalismo sensacionalista, espetacular, próprio do universo do fait divers, cujas características são a exposição da violência, da morte, do acidente, do bizarro do comportamento do homem. (Angrimani, 1995; Njaine & Minayo, 2002)

A imprensa escrita tem evoluído na cobertura policial, principalmente com a mudança editorial de alguns jornais conhecidos com os atributos de “espreme que sai sangue”. Mas ainda se verifi ca um tipo de jornalismo ambíguo, onde o suspeito é exposto na mídia e pré-julgado, a vítima é exibida como um cardápio de horror e a questão dos direitos humanos é muitas vezes ignorada. O enfoque na atuação da polícia ocupa um espaço considerável dos jornais, principalmente no que se refere às ocorrências violentas urbanas. Nessa cobertura, de modo geral, há uma ênfase no aumento da criminalidade e uma tendência em destacar a incapacidade do Estado em oferecer segurança pública de qualidade para a população. No entanto, nesse avanço da mídia escrita, observa-se também uma melhor cobertura em relação à violação dos direitos, que se deve a uma melhor qualifi cação de jornalistas nessa área. O tema dos direitos humanos também está mais presente na formação e capacitação de policiais.

Alguns órgãos de imprensa têm protagonizado também a discussão sobre questões de segurança pública, como a Rede Gazeta, que juntamente com a Assembléia Legislativa do Espírito Santo, vêem coordenando o Projeto Pacto pela Paz, lançado em setembro de 2005. O projeto conta com o apoio de algumas empresas privadas e já abordou temas como família, drogas e desigualdade social.

O Jornal O Dia, do Rio de Janeiro, também tem dedicado grandes matérias jornalísticas que ampliam a visão sobre a questão da segurança pública. A matéria do dia 8 de maio de 2005 (pgs. 18 e 19) aborda a discriminação sofrida pelos fi lhos de policiais militares, após a chacina da Baixada Fluminense, em 31 de março de 2005. O jornal coloca que após essa chacina aumentou a reação negativa da população em relação à PM. O comando geral da PM colocou, inclusive, à disposição a assessoria jurídica da corporação e possibilidade de atendimento psicológico para aqueles policiais que se sentirem ofendidos, diz o jornal. Outro aspecto que O Dia aborda é a difi culdade desses policiais alugarem casas, sob a alegação de que eles atraem confl itos para a área. Esse tipo de atuação do jornalismo impresso contribui para

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subsidiar políticas públicas de segurança e também para mostrar outros aspectos da instituição policial e seus operadores.

Com a manchete de capa Polícia Que Não Funciona, a Revista Época do dia 3 de maio de 2004, descreve a atuação de policiais do Rio de Janeiro e São Paulo. O subtítulo destaca que as polícias dessas duas capitais matam mais do que a dos Estados Unidos. A partir de fontes como a Ouvidoria de Polícia de São Paulo, da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo, de especialistas em segurança pública, de familiares das vítimas, de vítimas e Ongs, a publicação mostra os dados da violência policial nessas duas capitais. A despeito dos aspectos, relacionados aos efeitos de sentidos criados na manchete de capa da matéria, que poderiam ser objeto de análise científi ca, esse tipo de reportagem também contribui para a discussão da área de segurança pública e suas teias políticas e ideológicas. Mas, acima de tudo, confi rma o que está dito na própria matéria, que os brasileiros estão prestando mais atenção no “lado assassino da polícia” (Época, 3/5/2004, pg. 98).

Essas representações, permanentemente na mídia escrita, têm criado tensões na sociedade em relação à atuação policial. Policiais civis do Rio de Janeiro entrevistados em uma pesquisa sobre suas condições de vida e saúde se queixam da indistinção de papéis das várias corporações policiais apresentados pela mídia. Asseguram que parte da imagem negativa que possuem se deve a ações realizadas pela Polícia Militar. Esse fato ilustra que as “diferenças entre o ser policial civil e o ser policial militar podem ser tênues” (Gomes et al, 2003).

Sobre a percepção da população em relação à polícia, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania do Rio de Janeiro (Cesec), em 2004, concluiu que apesar da população em sua maior parte, aprovar as blitze, “quase metade avalia a PM fl uminense como pouco ou nada efi ciente e considera que ela tem pouco ou nenhum respeito aos cidadãos, sendo-lhe atribuída a menor nota quando comparada a outras corporações policiais. Além disso, 68% classifi cam-na como muito corrupta e 57% como muito violenta” (Ramos & Musumeci, 2004:5). A pesquisa aponta ainda o fato das abordagens a veículos e a transeuntes não se basearem em critérios de fundadas suspeitas, expressando um caráter seletivo na escolha e no tratamento dispensado a esses “elementos suspeitos”. Essa seletividade é norteada por critérios subjetivos e intuitivos, indicando uma abordagem discriminatória, mais violenta e coercitiva, dirigida principalmente a jovens negros e pobres.

A década de 80 marca uma infl exão no aumento da mortalidade por violência, representada, sobretudo, pelas altas taxas de homicídios, em quase todas as faixas de idade, mas especialmente os jovens. A questão da qualidade da informação sobre os eventos violentos, tanto na sua geração quanto na sua divulgação mostra que há uma desqualifi cação desses dados nos órgãos ofi ciais e nas formas de representação desses eventos (Njaine et al, 1997). Neste contexto permeiam as ações policiais, tanto na forma repressiva característica dessa categoria profi ssional quanto no uso e abuso da força contra a população civil indiscriminadamente. Como exemplo, tem-se uma pesquisa que traça o perfi l dos homicídios cometidos no Espírito Santo e que foram noticiados nos jornais A Gazeta e A Tribuna no período do 1994-2002, além das difi culdades institucionais, a polícia capixaba é citada como importante agente de violência (Zanotelli et al, 2004). Apesar de ser relatada uma falta de informação sobre os agentes da violência em mais de 50% das notícias, o estudo ressalta que as ações policiais

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acarretaram a morte de 276 pessoas em nove anos. Aponta uma provável conivência por parte do poder público com esses atos muitas vezes ilegais dos policiais em serviço ou não. Essa atuação vem gerando opiniões dicotômicas na sociedade que, por um lado exige mais segurança, por outro despreza essa corporação e seus membros.

A ambigüidade não se restringe à ação policial nem à mídia, mas retrata os valores presentes em uma parcela da sociedade brasileira, fortemente preconceituosa e favorável às violações (Lima, 2002). Um percentual signifi cativo de brasileiros concorda plenamente que a polícia tem direito de revistar pessoas suspeitas em função da aparência – 22% dos cariocas, 27% dos pernambucanos e 31% dos paulistas (Cárdia, 1999).

Pesquisas acadêmicas vêm relatando a visão negativa que a população tem da polícia, em consonância com imagens veiculadas pela mídia. Estudo realizado com 1220 jovens do Rio de Janeiro mostra que eles consideram a polícia como o agente principal da violência naquela cidade. Deram nota 3 para a atuação policial, num continuum que variou de 0 a 10 (Minayo et al, 1999). A imagem que os próprios policiais fazem de seu trabalho refl ete essa visão pejorativa: 1458 policiais civis do Rio de Janeiro reconheceram que o ajuizamento da sociedade sobre seu trabalho é negativo e preconceituoso. Revelaram a falta de reconhecimento, a depreciação e a incompreensão da sua missão. A mídia foi apontada por esses profi ssionais como responsável pela rejeição social que a categoria hoje possui, no intuito sensacionalista de vender jornais e revistas e aumentar a audiência televisiva (Gomes et al, 2003).

Baierl (2004) em entrevistas com policiais e moradores do município de Santo André (SP) mostra como essa percepção pública da instituição policial é permeada pelo medo. A autora coloca que,

A população, que deveria olhar a polícia como alguém em quem confi ar, ao contrário, identifi ca-a como sujeitos truculentos, que desrespeitam a lei e agridem as pessoas indistintamente, em vez de transmitir segurança. (pp. 156)

Essa autora aponta que a polícia civil, em especial, e a polícia militar são os sujeitos que mais provocam medo na população, tanto nas favelas quanto nos bairros de classe média. Conseqüentemente, as respostas à presença da polícia como garantia de segurança eram desqualifi cadas.

Entretanto, a autora ressalta que os próprios policiais também se sentem vulneráveis á violência das cidades, enquanto trabalhadores. Alguns depoimentos de policiais, sobre seu trabalho, revelam como essa violência os atinge e como a mídia colabora em boa parte com essa situação de disseminação do medo (Baierl, 2004: 157).

Essa situação de elevada tensão profi ssional se manifesta em problemas de saúde física e emocional relacionados ao estresse. Policiais civis do Rio de Janeiro, com menos de dez anos de trabalho policial, têm menor índice de sofrimento psíquico (13,2%) dos que os têm entre onze e vinte anos de serviço (24%). Essa angústia emocional fi cou refl etida nos mais elevados níveis de nervosismo, tensão, agitação, insônia, tristeza e sentimento de inutilidade. Esse grau de sofrimento emocional gerado pela profi ssão retorna à sociedade através dos confl itos envolvendo policiais, agravando a situação de violência social (Assis et al, 2003). Esses aspectos relacionados ao sofrimento decorrente do trabalho policial, pouco são trabalhados pela mídia.

Devido à freqüência e diferenciação com que a instituição policial e seus operadores aparecem nos jornais, torna-se pertinente investigar como esses atores são representados e como essa representação infl uencia a formação da opinião pública em

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relação às corporações policiais, e são por ela infl uenciadas. O aprofundamento da compreensão dessa relação entre a mídia e a instituição policial e a repercussão que possui na sociedade pode contribuir para uma melhoria da imagem que hoje vigora no meio social.

O conhecimento sobre como as mensagens são produzidas pelas mídias e como as mesmas atendem a diferentes interesses e estratos sócio-econômicos também podem contribuir para entender o funcionamento da imprensa e da atuação de jornalistas responsáveis pela construção dos textos. Um outro aspecto relevante do estudo refere-se às diferentes visões das instituições policiais (civil, militar e federal) representadas pelos jornais que podem servir como subsídio para o aprofundamento das questões de segurança pública.

O Crescimento dos Homicídios e da Violência em Cidades Brasileiras

As quatro capitais brasileiras selecionadas para esta investigação: Recife, Vitória, São Paulo e Rio de Janeiro, apresentam elevadas taxas de mortalidade por homicídio no país. Nas capitais do Sudeste sobressaem as mortes decorrentes do narcotráfi co, da formação de quadrilhas, dos grupos de extermínio e da criminalidade comum. Em Recife agrava-se a situação pelo plantio e venda da maconha e a violência gerada por esse processo. Nas capitais do Norte e Centro-Oeste a dinâmica deve-se mais a confl itos de terra, áreas de garimpo, narcotráfi co e tráfi co de armas em região de fronteira (Souza, Lima & Veiga, 2005).

Dados do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde mostram que Recife e Vitória têm um incremento das taxas de homicídio signifi cativo entre 1997 e 1998 (entre 73,6 e 81,5 por 100 mil habitantes), reduzindo as taxas nos anos seguintes, embora com índices muito mais elevados do que o do país. São Paulo tem seu ápice entre 1998 e 2000 (entre 58,5 e 66,7 por 100 mil habitantes), quando também começa a reduzir a taxa de mortalidade por homicídios. As taxas de homicídio da cidade do Rio de Janeiro crescem no começo do período, mantendo-se em valores relativamente estabilizados de 1996 até 2002 (entre 46,6 e 66,7 por 100 mil habitantes), embora com taxas inferiores as das demais cidades em quase todos os anos estudados. Para o Brasil a situação é distinta, com taxas oscilando entre 19,2 em 1992 e 28,2 por 100 mil habitantes em 2002.

Apesar das mortes por homicídios expressarem apenas uma pequena parcela da violência brasileira, sobre elas está um grande foco de interesse da sociedade e da mídia, que em primeira mão, associam violência à criminalidade e morte. A utilização da taxa de mortalidade por homicídio foi um critério de seleção das cidades para a pesquisa, visando assim compreender como se coloca a imprensa dessas cidades com tal agravamento da violência, a respeito da atuação da polícia – o principal agente de segurança do Estado.

OBJETIVOS

a) identifi car, descrever e analisar as representações sociais e percepções coletivas das organizações policiais e seus operadores na mídia escrita das capitais: Rio de Janeiro (O Globo e O Povo), São Paulo (Folha de São Paulo e

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Diário Popular), Vitória (Gazeta e A Tribuna) e Recife (Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco);

b) comparar as imagens sobre as organizações policiais e seus operadores veiculadas em jornais dirigidos aos estratos populares e médios/altos;

c) distinguir, sempre que possível, a imagem disseminada pela mídia segundo as diferentes unidades que compõem a organização policial: Polícias Civil, Militar e Federal;

d) refl etir sobre propostas de uma mudança de enfoque da relação polícia versus sociedade e a mídia.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo quanti-qualitativo sobre a imagem da polícia na mídia escrita. No estudo quantitativo foram analisadas 2851 matérias jornalísticas publicadas na imprensa escrita, publicadas nos meses de outubro e novembro de 2004. Para o estudo qualitativo, foram selecionadas 480 matérias classifi cadas como negativas e positivas em relação à atuação policial. Foram pesquisados oito jornais das quatro capitais brasileiras com elevadas taxas de homicídios: São Paulo; Rio de Janeiro; Recife e Vitória (tabela 1).

Tabela 1Jornais analisados referentes aos meses de outubro e novembro de 2004

Jornais Outubro Novembro Total

O Povo – RJ 321 299 620A Tribuna – ES 318 216 534O Globo – RJ 222 227 449Diário de São Paulo 212 228 440A Gazeta – ES 144 119 263Folha de Pernambuco 111 146 257Folha de São Paulo 84 82 166Diário de Pernambuco 67 53 120Total 1.479 1.370 2.849*

* Há duas notícias que não estão com o mês defi nido.

O critério de seleção das matérias jornalísticas é o relato da existência de qualquer tipo de atuação das organizações policiais e de seus operadores. No trabalho empírico e operacional sobre as mensagens veiculadas, buscou-se diferenciar os seguintes aspectos: (a) a contextualização da instituição policial; (b) as diferentes representações dos atores envolvidos nas ações policiais e as formas de abordagem pelos jornais; (c) as idéias mais recorrentes atribuídas pelos periódicos, como motivos para as ações e as interpretações sobre as conseqüências das mesmas.

A clipagem dos materiais selecionados foi realizada entre dezembro de 2004 e maio de 2005. As notícias foram sendo recortadas, categorizadas e organizadas em clipping que constituíram o acervo analisado. Foram elaboradas fi chas para colagem das notícias, organizadas através de um cabeçalho com o nome do jornal, página, data e título da notícia.

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Para a abordagem quantitativa foi elaborado um questionário composto por três blocos de análise: identifi cação do material; caracterização da matéria jornalística; tratamento/linguagem atribuída ao policial e às corporações. O instrumento quantitativo foi testado durante uma semana para corrigir possíveis erros. Após as correções fi nais que surgiram do pré-teste, foram impressos 3030 questionários em gráfi ca.

O treinamento da equipe de análise foi realizado pelas coordenadoras da pesquisa com os profi ssionais responsáveis pela análise das matérias durante uma semana. Também foram realizados treinamentos com os codifi cadores e digitadores.

Foi utilizado o programa EpiData 3.1 para a entrada dos dados em computador e para a análise foi utilizado o software SPSS (Versão 10.0), visando gerar análise de freqüências, cruzamentos de variáveis e testes de associações estatísticas. Durante o processamento foi realizada uma crítica do banco, sorteando aleatoriamente 5% do número total de questionários, ou seja, 143 questionários a serem revisados segundo erros de digitação. Na crítica de erros de digitação, encontrou-se 14% dos questionários com pelo menos um erro de digitação e média de 1,8 erros por questionário selecionado para crítica. O banco de dados compõe-se de 369 variáveis, com 7,1% apresentando ao menos um erro de digitação.

Para consolidação de um banco de dados mais consistente, realizou-se análise das respostas que poderiam trazer inconsistências na etapa de análise dos dados. Desse modo, 191 questionários (6,7% do total) foram selecionados nessa etapa e as suas respostas corrigidas segundo consulta às reportagens e aos responsáveis por seu preenchimento e codifi cação. Após a maioria dos erros terem sido corrigidos contabilizou-se uma média de 2,3 erros/questionário. A fase de crítica de dados demonstrou que apesar do grande volume de análises necessárias nas 2851 reportagens e a posterior codifi cação e digitação realizada em tempo ínfi mo, o processo apresentou um banco de dados consistente, podendo realizar a análise de dados.

A análise quantitativa baseou-se em análise exploratória dos dados, através de freqüências e cruzamentos, onde testes de independência como o Qui-quadrado de Pearson ou Teste de Fisher no caso bidimensional demonstram a existência de relações de dependência entre as variáveis estudadas, para possíveis afi rmações sobre as porcentagens. O nível de signifi cância utilizado para demonstrar a existência de relações foi o nível de 5%, portanto p-valores abaixo desse nível demonstram a não existência de casualidade no cruzamento, ou seja, o comportamento do objeto é diferenciado segundo a resposta.

Para a análise qualitativa foram recortadas matérias que representavam uma imagem positiva ou negativa do policial ou da corporação, identifi cadas através da análise do instrumento quantitativo. As notícias foram escaneadas e organizadas através do programa americano AnSWR 6.0. Foram selecionadas 480 matérias publicadas nos meses de outubro e novembro, e que representavam aspectos negativos e positivos das ações policiais. Foi realizada uma análise temática a partir do método de análise de conteúdo (Bauer & Gaskell, 2002).

Caracterização dos jornais

As principais características dos oito jornais analisados podem ser constatados na tabela 2, em que se verifi cam informações como: seções onde são publicadas;

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tiragem; circulação; público-alvo; custo unitário e custo de assinatura. Buscou-se também, quando possível, ilustrar a descrição dos jornais com um pouco de suas respectivas histórias, de sua formação, sobre como surgiram, etc.

Dos oitos jornais pesquisados, tem-se que a cada dois jornais de cada capital, um é dirigido aos estratos sociais médios e elevados e outro aos estratos populares. Esse direcionamento a públicos diferentes pode ser aferido pelo valor cobrado pelo periódico diariamente/mensalmente, por seu lay-out que dispõe de fotografi as e manchetes mais apelativas e/ou informativas e pela defi nição e classifi cação de suas seções, por exemplo.

Tabela 2Informações sobre os jornais analisados

JORNALCIRCULAÇÃO

PAGA

TIRAGEM

TOTAL

PREÇO EXEMPLAR PREÇO

ASSINATURAFORMATO

GRUPO

EMPRESARIALSEÇÃO

Domingo Dias úteis

SÃO PAULO

Folha de São Paulo 304.389 332.539 R$3,50 R$2,20 R$478,00 Standard -- CotidianoDiário de São Paulo 74.789 101.303 R$2,50 R$1,30 R$384,00 Standard Globo São Paulo

RIO DE JANEIRO

O Globo 268.813 296.410 R$3,00 R$2,00 R$514,00 Standard Globo RioO Povo - 32.000 R$ 0,70 R$ 0,70 Não tem Standard nenhum Polícia

ESPÍRITO SANTO

A Gazeta 26.414 31.784 R$ 2,00 R$1,50 R$ 381,60 Standard Globo CidadeA Tribuna 47.183 52.326 R$ 1,50 R$ 1,00 R$ 345,00 Tablóide -- Polícia

PERNAMBUCO

Diário de Pernambuco 37.424 32.137 R$3,00 R$ 1,50 R$ 625,50 Standard Grupo Associados

Vida urbana

Folha de Pernambuco 30.068 36.223 R$ 1,00 R$ 1,00 R$ 365,00 Standard nenhum Polícia

Na análise dos dados trabalha-se, portanto, com dois grupos de jornais: voltados para as classes populares (estratos C, D e E) e para as classes médias e altas (estratos A e B). O critério para a defi nição desses grupos foi o preço do jornal e a denominação das seções. Os dois grupos fi caram assim criados:

• Jornais direcionados para as classes populares: Diário de São Paulo, Folha de Pernambuco, O Povo e A Tribuna;

• Jornais direcionados para as classes médias e altas: Folha de São Paulo, Diário de Pernambuco, O Globo e A Gazeta.

Os dados dos jornais – O Globo e O Povo, no Rio de Janeiro/RJ; Folha de São Paulo e Diário de São Paulo/SP, em São Paulo; A Gazeta e A Tribuna, em Vitória/ES; Folha de Pernambuco e Diário de Pernambuco, em Pernambuco/PE, foram obtidos através de páginas eletrônicas dos respectivos jornais, no órgão regulador Instituto Verifi cador de Circulação (IVC) e na Associação Nacional de Jornais (ANJ). Com exceção do jornal O Povo, que não possui página eletrônica e não consta como pertencente aos órgãos pesquisados, foi realizado um contato com a redação para obter alguns dados sobre esse veículo.

No ranking dos maiores 30 mercados editoriais, segundo IVC, em agosto de 2005, os jornais estudados estão assim classifi cados: Folha de São Paulo (1° lugar);

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O Globo (3° lugar); Diário de São Paulo (13° lugar); A Tribuna (17° lugar); Diário de Pernambuco (28°); Folha de Pernambuco (30°). A Gazeta não consta nesta classifi cação dos maiores mercados editoriais do país.

RESULTADOS

Um total de 2851 matérias foram analisadas considerando-se os meses de outubro e novembro de 2004. Dentre as 2851 notícias analisadas, os jornais que mais informaram sobre polícia foram O Povo (RJ), a Tribuna (ES), O Globo (RJ) e o Diário de São Paulo (SP). Considerando-se o total de notícias segundo o Estado, tem-se que o Rio de Janeiro contribuiu com 37,4% do total, seguido pelo Espírito Santo com 28%, São Paulo com 21,2% e Pernambuco com 13,2%.

Vale a pena destacar que os dois jornais com mais notícias policiais se dirigem prioritariamente aos estratos populares – O Povo, com uma média diária de dez notícias e A Tribuna, com quase nove (tabela 3). No pólo oposto tem-se que os dois que menos informam a respeito direcionam-se mais para as camadas altas e médias da população – Folha de São Paulo e Diário de Pernambuco, cada um com menos de 6% do total de matérias investigadas e quantidade inferior a 3 notícias diariamente.

Tabela 3Distribuição proporcional das matérias segundo jornais

JORNAIS N % MÉDIA DIÁRIA

O Povo – RJ 620 21,7 10,2A Tribuna – ES 536 18,8 8,8O Globo – RJ 449 15,7 7,6Diário de São Paulo 440 15,4 7,2A Gazeta – ES 263 9,2 4,4Folha de Pernambuco 257 9,0 4,2Folha de São Paulo 166 5,8 2,8Diário de Pernambuco 120 4,2 2,0Total 2.851 100,0 46,7

No total, os oito jornais analisados publicaram uma média diária de 47 notícias policiais: 43,1% na seção policial, seguida pela que apresenta o cotidiano das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades. Por outras seções tem-se especialmente o país (27,5%), geral (24,5%), seguidas por outras partes de menor freqüência como política, esportes e economia.

Jornais populares se destacam pela intensidade com que suas matérias policiais estão na seção “polícia” (66,3% das matérias policiais divulgadas por estes jornais), praticamente ausente nos jornais que se dirigem para as camadas médias e altas. Nestes últimos, as notícias estão mais distribuídas entre: “cidade” (21,4%), “cotidiano” (16,3%), “vida urbana” (6,1%; p<.001). A exceção que se comenta é o predomínio da seção “São Paulo”, no jornal de camada popular daquele município e da seção “Rio”, existente em jornal de camada elevada deste município.

Outro aspecto que norteia a análise das matérias policiais nos jornais estudados é o pouco nível de aprofundamento desses textos. Na tabela 4 vê-se que a maioria absoluta

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deles é descritiva dos fatos, não aprofundando para a população o conhecimento e nem a complexidade dos temas de segurança pública. Há um percentual de 15% de matérias analíticas e apenas 1,1% apresentam proposições para os problemas enfrentados.

Tabela 4:Nível de aprofundamento das matérias

NÍVEL DE APROFUNDAMENTO

DAS MATÉRIAS (N=2848)N %

Descritiva 2.667 93,5Analítica 427 15,0Propositiva 32 1,1

Dentre as matérias analíticas observou-se alguns excelentes exemplos da utilização de informações complementares que ampliam o entendimento das matérias, tais como: dados e análises estatísticas sobre ações policiais, contingente de efetivos e discussões sobre violência provenientes de outras instituições como centros de pesquisas e órgãos públicos em geral; boxes contendo informações adicionais apresentando comentários de autoridades na área de segurança, de especialistas e da população; artigos legais, cronologias dos fatos, tabelas, gráfi cos e mapas; desenhos e ilustrações da cena policial, reconstituição de crimes, retratos falados. Essas matérias apresentam ainda diversas versões sobre o mesmo fato, citando várias fontes, direta ou indiretamente, como vítimas, policiais, suspeitos, representantes de órgãos públicos e da sociedade civil organizada, testemunhas, especialistas, etc.

Nas raras matérias propositivas, além desses elementos, encontrou-se sugestões para melhorias no campo da segurança pública por parte da população, de instâncias governamentais, de órgãos públicos, de especialistas e da própria polícia.

Interessa destacar que as matérias analíticas predominam entre os jornais voltados para as camadas elevadas (17,1% contra 13,9%; p<.05). Todavia, dentre os populares destaca-se A Tribuna (23,2%) por apresentar muitas matérias neste sentido, junto com a Folha de São Paulo (20,5%). O Povo quase não apresenta matérias essas matérias mais aprofundadas (1,8%).

Abrangência das notícias

As principais cidades presentes nas matérias policiais são: Rio de Janeiro, Vitória e São Paulo, seguidas por cidades que compõem as regiões metropolitanas desses Estados, como Serra, Vila Velha e Cariacica (ES), Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu (RJ) e Diadema em São Paulo. Em Pernambuco, Recife e Jaboatão dos Guararapes destacam-se das demais. Cidades de outros estados e outras municipalidades destes quatro estados são também citadas, porém com menor intensidade.

As fontes de informação das matérias policiais podem ser vistas na tabela 5 a seguir. A Polícia Civil e os delegados dessa corporação são as duas fontes de informações mais freqüentemente utilizadas nos jornais. Como se pode perceber, a Polícia Técnica está muito pouco presente, refl etindo a precária informação sobre a

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apuração técnico-científi ca ainda existente em nosso meio. A segunda principal fonte de informação é a corporação militar e os policiais a ela afi liados. As demais forças de segurança são vozes muito pouco ouvidas nos jornais analisados.

Tabela 5 - Fontes de informação das matérias policiais

Fontes de informação das matérias (N=2850) N %

PolicialPolicial Militar 412 14,5Policial Civil 258 9,1Policial Federal 48 1,7Policial Técnico 26 0,9Guarda Municipal 19 0,7Policial Rodoviário 9 0,3Policial sem especifi cação 41 1,4

CORPORAÇÃOPolícia Civil 641 22,5Polícia Militar 460 16,1Polícia Federal 127 4,5Polícia Rodoviária 21 0,7Guarda Municipal 20 0,7Polícia Técnica 16 0,6Corporação policial sem especifi cação 212 7,4

OUTROSDelegado(a) 588 20,6Outros 427 15,0Testemunha(s) 273 9,6Familiar(es) da vítima 255 8,9Poder executivo 246 8,6Vítima adulta 239 8,4População em geral 139 4,9Categoria profi ssional 130 4,6Suspeito/acusado/criminoso 115 4,0Poder judiciário 83 2,9Representante do Ministério Público 68 2,4Agência de notícias 67 2,4Jornalista 51 1,8Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 44 1,5Empresa privada 38 1,3Órgão público 36 1,3Outra mídia (TV, internet, etc.) 31 1,1Especialista 30 1,1Poder legislativo 28 1,0Vítima criança/adolescente 22 0,8Sociedade civil organizada 20 0,7Forças armadas 20 0,7Ong 18 0,6Corregedor 18 0,6Representante do Ministério da Justiça 17 0,6Segurança privada 17 0,6Universidades e centros de pesquisa 15 0,5Órgão internacional 11 0,4Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 6 0,2Defensoria pública 2 0,1Conselhos tutelares, de direitos 2 0,1

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Outras fontes de informação relatadas em 15% das matérias policiais são algumas categorias profi ssionais tais como: comerciantes e vendedores, médicos, advogados, profi ssionais que trabalham com o trânsito como taxistas e rodoviários, e professores e alunos. Os diretores costumam falar pelas empresas/instituições que dirigem. Dão ainda importante contribuição às matérias as testemunhas, as vítimas e seus familiares e o poder executivo.

Observando-se o grupo dos jornais mais populares em relação aos voltados para as camadas médias e elevadas, verifi ca-se distinção entre os dois grupos em relação a algumas fontes de informação: a) policial e corporação federal: jornais mais elitizados utilizam mais essa fonte de informação (p<.001); b) corporações militar e civil mais presentes nas mídias populares (p<.05); c) poder executivo: mais utilizado como fonte de informação pelos jornais mais elitizados (12,3% contra 6,6% nos mais populares; p<.001)

Presença das corporações policiais nas matérias

As corporações policiais que mais aparecem nas matérias são as polícias civis (60,9%) e militares (52,5%), seguidas de forma bem distante pela Polícia Federal (tabela 6). Associando-se as matérias da Polícia Técnica à Civil, tem-se que há um numero similar de notícias policiais envolvendo Polícias Civil e Militar. As Forças Armadas, a Guarda Municipal e a Polícia Rodoviária estão entre as menos mencionadas na imprensa escrita. Nota-se que algumas matérias não são sufi cientemente claras ao especifi car qual o tipo de polícia envolvida na ação descrita na notícia. Apenas leitores mais qualifi cados podem compreender a qual polícia a notícia se refere, através da análise das atividades específi cas a cada corporação. Essa desinformação contribui para criar estereótipos comuns em relação a todas as polícias, construindo uma imagem de uma só unidade, distorcendo as diferenças existentes entre as corporações policiais.

Tabela 6Corporações policiais presentes nas matérias

CORPORAÇÕES (N=2850) SIM, DE FORMA CLARA SIM, SUBENTENDIDO TOTAL

Polícia Civil 56,0 4,9 60,9

Polícia Militar 50,5 2,0 52,5Polícia Federal 10,7 0,5 11,2Polícia Técnica 6,1 0,4 6,5Forças Armadas 2,8 0,4 3,2Guarda Municipal 2,5 0,4 3,0Polícia Rodoviária 2,5 0,4 2,9Corporação não identifi cada 5,3 0,4 5,7

Não se percebem diferenças estatísticas quanto a presença das variadas corporações nas notícias, segundo o tipo de jornal: mais elitizado ou popular. Duas exceções são notadas: há mais matérias sobre a Polícia Federal e as Forças Armadas nos jornais voltados para camadas mais elevadas (15,9% e 5,4%, seqüencialmente), em relação ao constatado nos jornais mais populares (8,6% e 1,9%, respectivamente; p<.001).

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Notou-se ampla diferenciação entre os jornais (p<.001) segundo a corporação mais citada nas matérias. No que se refere a Polícia Militar, Folha de São Paulo (60,8%) e O Povo (59,5%) destacam muito mais essa corporação; no pólo extremo, que menos identifi ca essa corporação estão: Diário de São Paulo (43,0%) e Folha de Pernambuco (44,4%). Quanto a Polícia Civil, os dois jornais de Pernambuco destacam-se bastante no elevado percentual de notícias, próximo a 80% das matérias; os dois jornais de São Paulo sobressaem no extremo oposto: estão entre os que menos noticiam informações sobre essa polícia (em torno de 51%; p<.001). Informações sobre a Polícia Federal também se distinguem entre os jornais, com predomínio do Globo (22,3%); dentre os que menos noticiam estão O Povo (5,6%) e A Gazeta (7,2%).

Considerando-se a fi gura do policial, tem-se, na tabela 7 que os policiais militares são os mais mencionados, seguidos pelos civis. Os policiais federais, presentes em 114 matérias, são mais assíduos freqüentadores dos jornais mais voltados para as classes mais abastadas (6,4%), se comparados a escassa presença nos mais populares (2,7%; p<.001)

Tabela 7Presença de policiais relatados nas matérias

Policiais mencionados nas matérias (N=2849) N %

Policial Militar 992 34,8Policial Civil 550 19,3Policial Federal 114 4,0Policial Técnico 46 1,6Guarda Municipal 45 1,6Policial Rodoviário 33 1,2Policial sem especifi cação 74 2,6

Outros personagens apontados nas matérias

Além dos policiais e das corporações, outros personagens estão presentes nos textos sobre as ações policiais. Destacam-se, especialmente, os suspeitos/ acusados/ criminosos (75%) e as vítimas adultas (52,9%), como se observa na tabela 8. Em posição bem menos destacada estão os delegados, familiares das vítimas, testemunhas das ações relatadas nas notícias, população em geral e o poder executivo. Todos esses atores estão mais presentes nos jornais voltados para as classes mais abastadas, mostrando a inserção do envolvimento maior de atores presentes no evento narrado (p<.05) e, possivelmente, um contexto mais complexo da narrativa ao apresentar mais versões e fatos diferenciados.

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Tabela 8Personagens presentes nas matérias policiais

ATORES MENCIONADOS NAS MATÉRIAS (N=2849) N %

Suspeito/acusado/criminoso 2.137 75,0Vítima adulta 1.508 52,9Delegado(a) 662 23,2Familiar(es) da vítima 541 19,0Testemunha(s) 445 15,6População em geral 420 14,7Poder executivo 375 13,2Vítima criança/adolescente 285 10,0Poder judiciário 272 9,5Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 207 7,3Categoria profi ssional 206 7,2Órgão público de segurança 152 5,3Representante do Ministério Público 119 4,2Forças armadas 77 2,7Outra mídia (TV, internet, etc.) 76 2,7Segurança privada 76 2,7Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 72 2,5Poder legislativo 68 2,4Jornalista 60 2,1Representante do Ministério da Justiça 58 2,0Agência de notícias 56 2,0Especialista 32 1,1Sociedade civil organizada 31 1,1Órgão internacional 25 0,9Corregedor 22 0,8Universidades e centros de pesquisa 18 0,6Conselhos tutelares, de direitos 18 0,6Defensoria pública 2 0,1

Dentre as categorias profi ssionais mencionadas em 7,2% das matérias estão: advogados, comerciantes/vendedores, médicos, motoristas/taxistas/rodoviários.

Alguns atores são pouco presentes nas matérias policiais, destacando-se órgãos cruciais como a Defensoria Pública, os Conselhos de Direitos e Tutelares e as Universidades.

Vozes atuantes nas matérias

Os atores que têm voz direta na matéria, informando sobre as ações narradas estão apresentados na tabela 9. Como se nota, os delegados e as vítimas adultas são os que mais se fazem atuantes nas notícias, seguido pelos policiais militares e familiares das vítimas. A utilização do policial como fonte principal da informação é bastante comum nas redações dos jornais, uma vez que muitos dos eventos não são cobertos diretamente nos locais. Algumas hipóteses podem ser aventadas sobre o uso de tal fonte: uma é que os repórteres não se exponham aos riscos da violência e outra é a questão do tempo disponível para cobrir os eventos distribuídos em várias partes das cidades. As falas de autoridades superiores como os delegados é comum por serem os

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porta-vozes mais autorizados a fornecer informações sobre os fatos e investigações. As falas das vítimas adultas e familiares muitas vezes são colhidas no próprio local do evento ou nas delegacias. Conforme observou-se nas narrativas das matérias, essas falas, muitas vezes impregnadas de sentimentos de medo, revolta, indignação, sofrimento e descrença na instituição policial, são ingredientes que mobilizam muitas emoções nos leitores.

Tabela 9Personagens com voz direta nas matérias policiais

Atores (N=2848) N %

PolicialPolicial Militar 199 7,0Policial Civil 70 2,5Policial Federal 26 0,9Guarda Municipal 15 0,5Policial Técnico 13 0,5Policial Rodoviário 4 0,1Policial sem especifi cação 17 0,6

CORPORAÇÃO POLICIALPolícia Militar 19 0,7Polícia Civil 13 0,5Guarda Municipal 3 0,1Polícia Federal 5 0,2Corporação policial sem especifi cação 7 0,2

OUTROSDelegado(a) 374 13,1Vítima adulta 221 7,8Familiar(es) da vítima 185 6,5Suspeito/acusado/criminoso 119 4,2Poder executivo 118 4,1Categoria profi ssional 99 3,5População em geral 95 3,3Testemunha(s) 92 3,2Poder judiciário 48 1,7Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 37 1,3Órgão público de segurança 34 1,2Representante do Ministério Público 31 1,1Especialista 24 0,8Vítima criança/adolescente 20 0,7Sociedade civil organizada 15 0,5Poder legislativo 15 0,5Jornalista 14 0,5Forças armadas 9 0,3Representante do Ministério da Justiça 8 0,3Segurança privada 7 0,2Corregedor 6 0,2Universidades e centros de pesquisa 5 0,2Órgão internacional 5 0,2Outra mídia (TV, internet, etc.) 2 0,1Defensoria pública 1 0,1Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 1 0,1Conselhos tutelares, de direitos 1 0,1

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Além de ter uma voz mais ou menos atuante na notícia, os personagens aparecem ora como protagonistas da ação, ora como coadjuvantes. Esse destaque que é dado a esses personagens também compõe a forma como são construídas essas narrativas, que evidenciam a posição do personagem na cena do evento. Protagonistas e coadjuvantes se alternam na cena de acordo com a importância dos mesmos nos acontecimentos. Não necessariamente protagonistas e coadjuvantes têm voz direta nas matérias.

Na análise vê-se que o papel de protagonista é dado mais para os suspeitos/acusados/criminosos e vítimas adultas e crianças/adolescentes, principais atores do texto narrado. Das corporações aparecem como relevantes o papel da Guarda Municipal e da Polícia Federal. Dentre os que menos protagonizam matérias estão Polícia Técnica e Rodoviária. Alguns títulos de matérias dão essa noção: “Bandidos ameaçam lojistas na Praia do Suá”, “Estudante é baleado e pode fi car paraplégico”, “Sobrinho mata tio”, “Polícia Federal prende uma quadrilha acusada de armar o tráfi co”.

Os jornais mais populares dão espaço a vários protagonistas se comparados aos mais elitizados, destacando-se: suspeitos, acusados ou criminosos (81,5% versus 61,4%); vítimas adultas e crianças/adolescentes (76,6% contra 59,7%; p<.001); policial militar (44,2% contra 34,9%; p.<.05); e familiares dos suspeitos, acusados ou criminosos (25,9% versus 1,7%). Por procurarem atender aos interesses de seu público, cada jornal busca fornecer aos diferentes estratos sociais fatos que se aproximam de suas realidades.

Composição das matérias policiais

Como se pode perceber na tabela 10, as matérias analisadas fazem parte do gênero reportagens policiais, que por excelência tratam das ações envolvendo as corporações policiais e compõem as páginas destinadas a esse gênero. A presença maciça de reportagens não difere nos veículos estudados, sejam eles mais populares ou mais direcionados às camadas mais elevadas. As notas seguem em freqüência como outra forma comum de apresentar notícias policiais.

Tabela 10Tipos de notícias policiais

TIPOS (N=2850) N %

Reportagem 2.488 87,3Nota 352 12,4Artigo assinado 3 0,1Coluna 3 0,1Editorial 1 0,0

Todavia, constatou-se que há diferentes formatações de notícias entre os jornais analisados. Em relação as reportagens, jornais como Diário de Pernambuco e Folha de São Paulo apresentam quase que integralmente suas notícias em formato de reportagem; percentual que se reduz entre os demais, até chegar a cerca de 80% entre os jornais capixabas (p<.001). No que se refere às notas, os jornais capixabas e o Diário de São Paulo se destacam pela maior freqüência (entre 15% e 18%), contrapondo-se a

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Folha de São Paulo (1,8%) e a ausência de notas no Diário de Pernambuco no período analisado (p<.001).

Vários recursos gráfi cos são utilizados pelos jornais: fotos; box; estatísticas; desenhos e ilustrações; tabelas, gráfi cos e mapas. Os jornais que se destacam pela utilização de variados recursos gráfi cos são Folha de São Paulo e A Gazeta, direcionados para as camadas altas e médias da população. Dentre os que menos utilizam os vários tipos de recursos estão O Povo e a Folha de Pernambuco, voltados para um público mais popular. O recurso gráfi co mais utilizado é o uso de fotos, em 41,1% das matérias, seguidos pelos boxes e estatísticas.

As fotos dos locais dos eventos predominam em 19,5% das matérias (tabela 11). As fotos dos responsáveis pelos atos ilícitos e das vítimas das violências vêm a seguir. O policial ou a corporação em ação é objeto de fotografi a em cerca de 5% dos casos. A evidente apologia da violência física sobre os corpos das vítimas é mostrada por 4% das matérias. Essas fotos se distinguem das demais imagens de vítimas da violência pela opção da visualização da mutilação física explícita.

Tabela 11Fotos que ilustram notícias policiais

CONTEÚDOS DAS FOTOS (N=2850) N %

Local do evento 556 19,5Suspeito/acusado/criminoso/autores da violência 383 13,4Vítima da violência 284 10,0Policial em ação 156 5,5Corporação policial em ação 122 4,3Corpos feridos e mutilados 114 4,0Arma de fogo 84 2,9Pessoas testemunhando eventos violentos 71 2,5Outros 378 13,3

Outros tipos de fotos apresentadas são as que mostram materiais apreendidos pela ação policial (carros, cargas, armamentos, etc.), população em geral presente no local do crime, familiares das vítimas, delegados de polícia, Secretários de Segurança Pública, população de rua, bombeiros, advogados, enterros de vítimas e criminosos, manifestação de estudantes, moradores e sem tetos, passeata de estudantes, presos rebelados e veículos roubados ou de criminosos.

A opção por apresentar fotos ilustrativas das notícias policiais predomina entre os jornais populares (46,9% contra 36% no outro grupo; p<.001). Os três periódicos populares mais atuantes quanto a fotografi a são: Folha de Pernambuco (66,9% de suas matérias policiais), Diário de São Paulo (49,3%) e A Tribuna (48,5%). Em percentuais intermediários estão todos os periódicos voltados para classes médias. O Povo é o que menos ilustra com fotos as matérias que apresenta ao leitor (26,6%), assim como faz com todos os demais recursos de ilustração para suas matérias.

Outros recursos gráfi cos como o box para ilustrar as notícias são mais raros do que as fotos (12,8%). Como se pode perceber na tabela 12, este recurso informacional é utilizado mais para destacar pequenas informações relatadas no texto. Em 50

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notícias o box apresentou a cronologia dos eventos narrados nas matérias e em 34 notícias, destacou a visão da população sobre o assunto. Outros tipos mencionados são, especialmente os que trazem informações de alguns dados que antecederam o acontecimento e de depoimentos de vítimas, familiares, testemunhas.

Tabela 12Box apresentados com as notícias

CONTEÚDO DO BOX (N=2850) N %

Informações adicionais (Ex: Saiba mais, Dicas) 140 4,9Cronologia dos fatos 50 1,8Comentário da população 34 1,2Trechos de leis 16 0,6Comentário de autoridade de área de segurança 13 0,5Comentário de especialista 8 0,3Outros 190 6,7

Três jornais se destacam por apresentar mais ilustrações tipo Box (p<.001): A Tribuna (28,4%), A Gazeta (22,8%) e Folha de São Paulo (13,3%); no pólo oposto estão Folha de Pernambuco (3,9%) e O Povo (2,7%).

Estatísticas são recursos ainda menos utilizados que as fotografi as e os box, sendo sinalizadas em apenas 4,6% das notícias. Dentre elas, apenas 43 matérias (1,5%) trouxeram números da Secretaria de Segurança Pública; outras 26 de outros órgãos públicos, seguidas por dados de Centros de Pesquisa (14 matérias) e de Empresas Privadas como IBOPE e Datafolha (7). Outras estatísticas estiveram presentes em 62 matérias, provenientes de Ong, Associação de hotéis e de policiais, Conselho tutelar, sindicatos e serviço funerário, bem como fruto de trabalhos acadêmicos.

Os jornais mais populares utilizam este recurso em menor intensidade que os direcionados às camadas mais elevadas (3,4% versus 6,8%, respectivamente; p<.001). Quanto a pouca utilização de estatísticas destacam-se O Povo (1,8%) e Folha de Pernambuco (2,7%) e entre os que mais apresentam este recurso informacional estão Folha de São Paulo (12%) e O Globo (6,5%).

O uso de desenhos e ilustrações está presente em 2,1% das notícias, sobressaindo fi guras que ilustram a reconstituição dos crimes (tabela 13).

Tabela 13Desenhos e ilustrações apresentadas nas notícias

CONTEÚDOS DOS DESENHOS E ILUSTRAÇÕES (N=2850) N %

Reconstituição do crime 27 0,9Cena da ação policial 6 0,2Retrato falado 5 0,2Charge 4 0,1Outros 20 0,7

Outros tipos de desenhos e ilustrações apresentados são ilustrações de armas e de locais dos crimes/acidentes.

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Observa-se distinção entre os jornais segundo o público ao qual se dirige. Entre os voltados para as camadas altas e médias são apresentados mais tabelas, gráfi cos e mapas (3,7%) do que entre os populares (1,1%; p<.001). Dentre os primeiros destacam-se a Folha de São Paulo (7,8%) e A Gazeta (4,9%); entre os populares Folha de Pernambuco apresentou os recursos em apenas 0,4% das matérias e O Povo não os utilizou no período avaliado.

Objetivos das ações policiais

O teor das ações policiais apresentadas nas notícias, apresentado na tabela 14, é, principalmente, o da apreensão dos suspeitos, acusados ou criminosos, em 31,2% das notícias (mais relatada pelos jornais populares; p<.01) e o de elucidar sobre o processo de investigação realizado – 30,6%, mais destacado nos jornais voltados para as classes altas (p<.05). Registros de ocorrência seguem em freqüência, porém com menor importância, com maior destaque nos jornais populares (14,7% versus 11,8%; p<.05).

Tabela 14Objetivos das ações policiais mencionados nas notícias

OBJETIVOS (N=2848) N %

Apreensão de suspeitos/acusados/criminosos 889 31,2Investigação 873 30,6Outros 583 20,4Registro de ocorrência 390 13,7Operações de busca 201 7,1Crime cometido pelo policial/corporação 181 6,3Apreensão de armas 143 5,0Crime cometido contra o policial/corporação 124 4,3Apreensão das drogas 116 4,1Manutenção da ordem pública 104 3,6Ocupação de áreas 100 3,5Apreensão de adolescentes 79 2,8Apreensão de objetos roubados 78 2,7Apreensão de materiais piratas/contrabando 39 1,4Intervenção em presídios 39 1,4Blitz 29 1,0Combate à exploração sexual infantil 18 0,6Combate à exploração sexual 17 0,6Recolhimento de criança e adolescente em situação de rua 15 0,5Intervenção em instituições de cumprimento de Medida Sócio-educativa 5 0,2Combate à exploração do trabalho infantil 1 0,1Combate ao trabalho escravo - -

Outros objetivos para as ações mencionadas nas matérias são: descrição dedepoimentos realizados; informes sobre policiamentos; socorros realizados; recolhimento de cadáver; informação sobre perícias; outros tipos de apreensão tais como veículos, dinheiro, documentos, material pornográfi co, mercadorias sem nota fi scal, explosivos e material para falsifi cação de dinheiro e etc.; confronto com trafi cantes, socorro à

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vítimas de violência, transferência de presos, entre outros objetivos destacados em menor freqüência.

Dados sobre as vítimas existentes nas matérias

Como se pode observar na tabela 15, a informação mais apresentada pelas notícias é sobre o sexo da vítima. Dados sobre faixa etária, fatalidade e categoria profi ssional estão presentes em cerca de 60% das notícias. Já cor da pele é uma informação quase inexistente.

Tabela 15Informações sobre vítimas existentes nas matérias

VÍTIMAS %

Fatalidade* 60,9Sexo** 92,0Faixa etária** 64,9Categoria profi ssional** 62,1Cor da pele** 6,8

* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1720)

Considerando-se a totalidade das 2851 notícias analisadas, em 60,9% delas há dados sobre a fatalidade ou não das ações sobre as vítimas, informação principalmente apresentada nos jornais voltados para classes altas (63,5% versus 59,4% nos populares; p<.05). Há ainda uma diferenciação entre os jornais: os dois de Pernambuco apresentam essas informações em cerca de 86% das notícias, enquanto O Povo e Folha de São Paulo estão entre os que menos falam sobre vítimas (em torno de 48%; p<.001). Quase um terço das matérias (32%) apresenta vítimas fatais; vítimas não fatais sem lesões físicas são destacadas em 20,6% das matérias; e vítimas não fatais com lesões estão presentes em 18,1% das notícias.

Um pouco mais da metade das matérias analisadas (1720), traz informações sobre o perfi l das vítimas das ações narradas. A partir desse montante, é possível perceber como as diferentes mídias escritas descrevem esse personagem central das notícias.

Em 6,8% das matérias com vítimas há informação sobre a cor da sua pele, independente do jornal ter perfi l mais popular ou elitizado. Há, todavia, distinções entre os jornais (p<.001): O Povo (2%). Folha de São Paulo (3,7%), A Gazeta (4,4%) e A Tribuna (5,2%) são os que menos têm essa informação; no extremo oposto estão: Folha de Pernambuco (11%), O Globo (10,6%) e Diário de Pernambuco (9,6%).

A cor da pele de apenas uma vítima é informada em 6,4% das notícias (109), indicando a péssima qualidade desses dados, estranhamente pouco registrados, face a conhecida predominância de vítimas de cor negra entre as mortes violentas. Dentre as vítimas cuja cor da pele estão registradas nas notícias, tem-se a prioridade de brancos (58 vítimas), pardos e negros (44) e cor da pele amarela em sete pessoas.

A informação da cor da pele de uma segunda vítima foi relatada em 33 matérias. Novamente percebe-se o grau de desinformação: apenas 3,8% das vítimas estavam descritas, com 12 pessoas brancas, 18 negros e pardos e 3 de cor amarela.

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Dentre as matérias com informações sobre vítimas em 64,9% há informações sobre sua idade, independente do estrato ao qual o jornal se dirige. Dados de apenas uma vítima estão presentes em 63,1% das notícias, mostrando que este dado desperta mais interesse dos jornalistas do que a cor da pele. Um total de 4,9% das vítimas é de crianças até 11 anos de idade; 7,1% são adolescentes entre 12 e 17 anos; 12,8% são jovens de 18 a 24 anos; 19,5% são adultos entre 25 e 39 anos; 14% entre 40 e 60 anos; e 4,8% são idosos acima de 60 anos. Como se observa, os adultos predominam entre as vítimas que ocupam as páginas da mídia impressa.

Informações sobre uma segunda vítima estiveram presentes em 43% das matérias: 2,8% são crianças; 5,5% são adolescentes; 9,4% são jovens de 18 a 24 anos; 12,7% são adultos entre 25 e 39 anos; 8,1% entre 40 e 60 anos; e 4,5% são idosos acima de 60 anos.

A categoria profi ssional esteve mencionada em 62,1% do total de notícias com vítimas. Em relação à informação sobre uma primeira vítima, 60,4%, tem-se: estudantes, policiais militares, comerciantes, empresários, motoristas/ taxistas/caminhoneiro, dona de casa, aposentados, desempregados, médicos e vendedores/biscateiros. Informações sobre categoria profi ssional de uma segunda vítima foram informadas em 42,1% das matérias com a informação de mais uma vítima.

Os dados sobre sexo encontram-se descritos em 92% das matérias onde há vítimas. Em relação a primeira ou única vítima, 91,7% das matérias retratam a diferença existente: 22,4% do sexo feminino e 69,3% do masculino, demonstrando a sobre-mortalidade masculina nos eventos violentos. Nas notícias com segunda vítima, 25,8% são mulheres, 53,6% homens e 20,7% não possuem essa informação. Os jornais populares prestam mais esta informação que os demais (93,2% versus 90%; p<.05)

Dados sobre suspeitos, acusados ou criminosos nas matérias

Informações apresentadas nas matérias sobre os suspeitos, acusados ou criminosos estão apresentadas na tabela 16. Vale apontar a menor proporção desse dado, se comparado ao apontado sobre as vítimas. Sexo mantém-se como a variável mais bem informada e cor da pele como a de pior qualidade.

Tabela 16Informações sobre suspeitos/acusados existentes nas matérias

SUSPEITOS/ACUSADOS/CRIMINOSOS %

Fatalidade* 49,9Sexo** 85,3Faixa etária** 41,5Categoria profi ssional** 24,8Cor da pele** 11,3

* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1395)

Em 49,9% das notícias há dados que informam se a vítima veio ou não a óbito, com predominância dessa informação entre os jornais voltados para as classes médias ou altas (67,5% versus 40,4% nos populares; p<.001). Há também distinções entre

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os jornais (p<.000): O Povo e Folha de São Paulo são os que menos informam (8,1% e 7,8%, respectivamente) e O Globo e A Gazeta estão entre os que mais apresentam dados exatos (82,6% e 77,9%).

Os dados sobre a fatalidade existente nas notícias mostram que em 5,6% das matérias os acusados morreram; em 44,5% os suspeito foram vítimas de alguma violência, mas não apresentaram lesões e em 3,8% das notícias há lesões relatadas.

A cor da pele dos suspeitos está apresentada em 11,3% das matérias, destacando-se os jornais populares (13,9%), em detrimento dos voltados para classes médias (8,3%; p<.001). Distinções entre jornais também são notadas (p<.001): O Povo (4,1%) e Folha de São Paulo (7,7%) trazem muito pouco esta informação em relação a Folha de Pernambuco (14,1%) e Diário de São Paulo (18,2%.)

A cor da pele de um primeiro suspeito foi relatada em 10,9% das matérias que mencionavam os suspeitos dos crimes, com 4,5% de brancos, 6,2% negros ou pardos e 1,4% de cor da pele amarela. Informação sobre um segundo suspeito mostra detalhamento da cor em 6%, predominando a informação sobre cor negra ou parda.

Informação sobre a idade dos suspeitos foi mencionada em 41,5% das notícias em que se identifi cam pessoas acusadas ou suspeitas. Essa informação está mais presente entre os jornais populares (46,3% contra 36%; p.<001). A idade de um primeiro ou único suspeito foi apontada em 40,1%, apresentando as seguintes faixas etárias: 0,4% das vítimas têm até 11 anos de idade; 7,5% são adolescentes entre 12 e 17 anos; 12,8% são jovens de 18 a 24 anos; 14,5% são adultos entre 25 e 39 anos; 4,3% entre 40 e 60 anos; e 0,5% são idosos acima de 60 anos.

Em relação a um segundo acusado há menos dados informativos, em 28,1% das notícias com mais de um acusado constatou-se que predominam as faixas dos adolescentes (6,6%) e jovens adultos (18 a 30 anos), com 18,7%.

A categoria profi ssional dos suspeitos é citada 24,8% das matérias. Os jornais voltados para classes mais elevadas predominam entre os que mais fornecem essas informações (27,3% versus 22,6%; p<.05). Em relação a categoria profi ssional do primeiro ou único suspeito, 11,5% das notícias possuem essa informação, destacando-se entre eles: policiais militares e civis (na ativa ou afastados), empresários, comerciantes, desempregados, estudantes estão entre os mais apontados. A existência de um segundo suspeito foi realçada em 5,6% das notícias pertinentes.

O sexo dos suspeitos é informado em 85,3% das notícias pertinentes, destacando-se nos jornais populares (87,4% versus 83%; p<.05). Em relação ao primeiro suspeito, os homens predominam com 80,4%; as mulheres somam 4,7% e a não informação é de 14,8%. Dados sobre o sexo de um segundo suspeito reiteram a predominância masculina (71,6%).

Temas apresentados nas matérias

Alguns pontos referentes à atividade policial foram destacados pelos pesquisadores para serem investigados nas notícias analisadas e podem ser observados na tabela 17. Vale apontar o reduzidíssimo percentual (4,7%) de informação sobre um tema tão relevante como as questões gerais de segurança pública, essencial ao questionamento e aprofundamento da questão entre a população. Os jornais voltados para as classes mais abastadas se preocupam um pouco mais com esse tema (6,7%) do que os

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populares (3,6%; p<.001). Vale apontar os dois jornais de Vitória pelo maior número desse questionamento (entre 9% e 10% das notícias), opondo-se a O Povo que não tem material a respeito.

Crimes ou denúncias cometido pela polícia ou contra ela ocuparam cerca de 5% das matérias, temas também mais apontados pelos jornais voltados para as classes altas (p<.001). O Globo destaca-se de todos os demais por apresentar mais notícias sobre crimes cometidos pela força policial ou contra ela (15% e 12,1%, respectivamente).

Tabela 17Temas específi cos das categorias policiais destacados nas matérias

TEMÁTICAS (N=2848) N %Crime ou denúncia cometido pelas forças 157 5,5Questões gerais de segurança pública 133 4,7Crime ou denúncia contra as forças 127 4,5Outros 41 1,4Treinamento/qualifi cação de pessoal 35 1,2Aumento de contingente 26 0,9Processo de admissão/concursos 11 0,4Questões de saúde do policial 9 0,3Atividades lucrativas extras 2 0,1

Outros temas apresentados são o aparelhamento da guarda municipal, apuração da denúncia pela corregedoria, más condições de trabalho, comércio de armas pela policia, condições de trabalho, falta de investigação e policiamento, infra-estrutura de trabalho, instalações precárias, operação nos morros, organização das policias, planejamento estratégico da policia, recolhimento de armas, reforma de instalações policiais, superlotação de carceragem e troca de comando policial.

Os tipos de crimes ou denúncias cometidos pelos policiais podem ser vistos na tabela 18. Percebe-se que predominam os homicídios, seguidos pela corrupção e lesão corporal/maus-tratos. O envolvimento com tráfi co está presente em apenas 0,7% das notícias. Os cometimentos de homicídios e a corrupção policial ocupam mais destaque nos jornais voltados para o público de maior poder aquisitivo (p<.005), especialmente destacado na Folha de São Paulo.

Tabela 18Tipos de crimes ou denúncias cometidos por policiais destacados nas matérias

TIPOS (N=2843) N %Homicídio 91 3,2Corrupção 48 1,7Lesão corporal/maus-tratos 47 1,6Envolvimento com tráfi co 14 0,5Tortura 12 0,4Humilhação/abuso de poder 8 0,3Desvio de armas 8 0,3Outros 48 1,7

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Outros crimes/denúncias cometidos por policiais são: seqüestro, facilitação de fuga, tentativa de homicídio, roubo, atentado, formação de quadrilha, ameaças, ataque a ônibus e contra instalações da polícia, bala perdida, disparo de arma de fogo em via pública, briga, chacina, rebelião, depredação, desvio de conduta, consumo de drogas, envolvimento com atividade ilegal, estacionamento irregular, excesso de força, extorsão, facilitação de fuga e de laudo, falta ao trabalho, fraude processual, grupo de extermínio, motim, porte ilegal de armas e serviços privados.

Dentre os crimes/denúncias contra as forças, destacam-se as mortes de policiais em serviço ou fora dele (tabela 19), também mais comentado pelos jornais de maior custo (2,6% versus 1,3%; p<.05).

Tabela 19Tipos de crimes ou denúncias cometidos contra policiais destacados nas matérias

TEMÁTICAS DAS MATÉRIAS (N=2848) N %

Morte de policial em serviço 50 1,8Morte de policial fora de serviço 32 1,1Atentado /invasão contra instalaçõs da polícia 35 1,2Roubo de arma/equipamento 12 0,4Outro 43 1,5

Outros tipos de crimes ou denúncias relatados são: atentados contra policiais, lesão corporal/agressões, ferimentos à bala, tentativas de assalto e de homicídio, ameaças, roubos à casa e ao policial, manifestação contra policiais militares, refém e troca de tiros.

É muito baixo o percentual de Leis mencionadas nas matérias policiais, como se pode verifi car na tabela 20. Outras leis mencionadas são o Estatuto do desarmamento e da Polícia Militar, Código de Trânsito, leis sobre crimes contra a fauna, estatuto militar, contravenção penal, crimes ambientais, eleitoral, dentre outras.

Tabela 20Leis mencionadas nas matérias policiais

LEIS (N=2848) N %Código Penal 23 0,8Estatuto da Criança e do Adolescente 15 0,5Constituição Federal 10 0,4Lei de Execuções Penais 2 0,1Declaração Internacional dos Direitos Humanos - -Outras 38 1,3

Teor da matéria em relação ao policial e às corporações

O teor das matérias sobre os policiais, apresentado na tabela 21, mostra a concentração de notícias factuais (84,2%). Aspectos negativos foram abordados em 14,2% das notícias, com maior destaque entre os jornais direcionados para camadas

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mais elevadas (15% versus 6,4%; p<.001). O Globo destaca-se de todos os demais jornais: 20,1% de considerações negativas, seguida pela Folha de São Paulo com 16,3%; no extremo oposto estão A Tribuna (5,6%) e O Povo (5,8%). Atributos positivos mostraram-se presentes em apenas 1,6%.

Tabela 21Nível de aprofundamento das matérias em relação aos policiais

APROFUNDAMENTO (N=1900) N %Factual 1600 84,2Negativo 269 14,2Positivo 31 1,6

Observando-se apenas os atributos positivos e negativos segundo o tipo de inserção do policial, tem-se que as frases e expressões citadas nas matérias voltam-se principalmente para retratar o policial militar (tabela 22), seguido de forma distinta pelos policiais civis.

Tabela 22Atributos positivos e negativos segundo inserção dos policiais nas corporações

Policial Positivo* Negativo*

N % N %

Militar 23 69,7 196 63,6Civil 8 24,2 62 20,1Guarda Municipal - - 14 4,6Federal 2 6,1 19 6,2Técnico - - 4 1,3Rodoviário - - 13 4,2

*Há notícias que falam sobre mais de uma polícia

As matérias que falam sobre as corporações também são, em sua maioria, factuais (91,2%), especialmente entre os jornais populares (85,9% versus 71,6%; p<.001). Os jornais voltados para as camadas elevadas apresentam mais atributos negativos e positivos, especialmente Folha de São Paulo, A Gazeta e Diário de Pernambuco. Atributos positivos e negativos dessas corporações são mencionados em muito poucas matérias (tabela 23).

Tabela 23Nível de aprofundamento das matérias em relação às corporações

APROFUNDAMENTO (N=2.526) N %

Factual 2.304 91,2Negativo 134 5,3Positivo 88 3,5

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Observando-se de forma isolada os atributos positivos e negativos, tem-se o mesmo quadro relatado para os policiais. Sobressai a corporação militar, seguida pela civil (tabela 24).

Tabela 24Atributos positivos e negativos segundo corporação

Policial Positivo* Negativo*

N % N %

Polícia Militar 48 46,6 98 61,6Policia Civil 31 30,1 42 26,4Guarda Municipal 4 3,9 5 3,1Policia Federal 17 16,5 5 3,1Polícia Técnica 2 1,9 4 2,5Polícia Rodoviária 1 1,0 5 3,1

* Há notícias que falam sobre mais de uma polícia.

Em relação às idéias que as matérias apresentam sobre a ação policial podem ser visualizadas na tabela 25. Como se pode perceber, a maioria das notícias passa a visão de ação legalmente desencadeada pelas forças policiais (88,8%), seguido pela idéia de ação ilegal em 7,9%.

Tabela 25Idéias sobre as ações policiais presentes nas matérias

IDÉIAS (N=2851) N %

Ação legal 2531 88,8Ação ilegal 224 7,9Organização e estratégias do exercício da profi ssão 208 7,3Outras 50 1,8

Os jornais populares predominam entre os que avaliam as ações como legais (91,7%, contra 83,6%; p<.001). O inverso ocorre quanto as ações ilegais, que predominam nos jornais dirigidos aos estratos sociais mais elevados (11,8% contra 5,7% nos populares; p<.001). Também matérias sobre a organização e de exercício da profi ssão são mais presentes nos jornais voltados ao público de estratos médios e altos (p<.001)

Outras idéias presentes que refl etem sobre as ações policiais são: ações prejudicadas pelas precárias condições da instituição e de trabalho, necessidade de aproximação com a sociedade, ataques e atentados contra policiais, atuação do poder executivo, efi ciência policial, falta de ação, falta de infra-estrutura, falta de investigação, falta de policiamento, falta de credibilidade, falta ou demora na ação; precariedade, indignação perante as mortes de PMs, inefi ciência policial, insufi ciência de atuação, integração policia/sociedade, integração com a sociedade, más condições de trabalho, morte de PM, morte de policiais, morte de policial, não cumprimento de prazos, necessidade da

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ausência dos PMs, negligência policial, policiamento insufi ciente, posse em cargo do executivo, precariedade no atendimento.

Abordagem dos diferentes jornais quanto aos aspectos positivos e negativos atribuídos aos policiais e às corporações

A análise de conteúdo do corpus dos textos jornalísticos aqui apresentados refere-se a todas as 480 matérias publicadas nos meses de outubro e novembro, classifi cadas como negativas (365) e positivas (115).

Para compreender o signifi cado dessas representações negativas e positivas a respeito das ações policiais, incluiu-se tanto o sujeito policial quanto às corporações. Buscou-se compreender, sob a perspectiva das teorias da comunicação, como essas notícias passam de meras transmissoras de informações, para tornarem-se também produtoras de sentidos sobre a instituição policial, seus operadores e a questão da segurança pública.

No conjunto analisado, observa-se que dentre os aspectos negativos e positivos há uma clara tendência de todos os jornais em destacar os aspectos negativos das ações policiais, conforme mostraram os dados acima. Diversas ações ilícitas e violentas são divulgadas, a partir de fontes como a própria polícia, informações de vítimas, testemunhas e da investigação jornalística. Essas visões confi guram uma imagem das corporações policiais e seus operadores como instâncias do serviço público extremamente vulneráveis a julgamentos depreciativos por parte da população em geral. As principais representações negativas da ação policial dizem respeito: envolvimento da policia com o tráfi co de drogas; falta de policiamento/falta de segurança da população; homicídios cometidos por policiais; maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos ou qualquer pessoa; corrupção policial/envolvimento com outros crimes; efetivo insufi ciente; violência em geral (discriminações, ameaças, abordagem violenta, abusos da polícia em geral); despreparo dos policiais; omissão da polícia; mal funcionamento/mal atendimento da polícia; desmoralização da polícia.

As raríssimas representações positivas às ações policiais podem ser apreendidas através dos destaques aos aspectos institucionais das corporações que visam sua melhoria. Entretanto, muitas dessas menções não vêm acompanhadas de um contexto explicativo mais detalhado de políticas de segurança pública, de modo a proporcionar ao leitor informações importantes para a formação de sua opinião. São esses os aspectos positivos mais destacados pelos jornais: dicas de segurança da PM; ação cooperativa; ação efi caz; investimento em segurança; implementação de reformas; outras ações da polícia; melhoria do atendimento; co-responsabilidade nas ações policiais; investimento em qualifi cação/capacitação; moralização da polícia.

A maioria das matérias da Folha de São Paulo, direcionado às camadas mais elevadas, é de reportagens informativas, com citação das fontes e detalhamentos dos passos das investigações, citando com freqüência eventos ocorridos em outros estados brasileiros. As matérias destacam mais o envolvimento da polícia com o tráfi co de drogas, os homicídios e outros crimes cometidos por policiais e a corrupção policial. Sua linguagem, aparentemente neutra, difere da adotada pelo Diário de São Paulo, mais popular, que utiliza termos tais como “comparsas”, para retratar a conivência de policiais com a criminalidade, proporcionando ao público leitor uma leitura

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“policialesca”. O tipo de cobertura das ações negativas das polícias destaca a violência policial em geral, os homicídios cometidos por policiais, as prisões e os acontecimentos cotidianos das cidades paulistas.

Entre os jornais do Rio de Janeiro, O Globo, mais voltado para as camadas médias, e altas, divulga muitos detalhes técnicos das operações policiais nacionais. Há uma cobertura focada nos andamentos judiciais, dando destaque aos grandes eventos que têm repercussão internacional como, por exemplo, as chacinas e a participação da PM nesses crimes. As grandes investigações conduzidas pela Polícia Federal também são enfocadas, propiciando uma leitura globalizada. Evidentemente, como um dos maiores grupos empresariais que contam com vários veículos de comunicação e com ampla cobertura, atinge a uma parcela signifi cativa de leitores cujo perfi l se caracteriza por serem consumidores de informações que atendem majoritariamente a seus interesses. O jornal O Povo, essencialmente voltado para camadas mais pobres, é bastante popular na cidade do Rio de Janeiro e reconhecido por seu público, apesar do número de exemplares ser bem menor que os demais jornais. Suas matérias referem-se aos acontecimentos mais ordinários da vida cotidiana, e duas de suas principais fontes são as vozes da população e a própria polícia. O gênero jornalístico caracterizado pela reportagem policial, explora também imagens de crimes e vítimas e suspeitos/acusados/criminosos expostos cruamente nas páginas do jornal. Os tipos de aspectos negativos das ações policiais mais destacados pelo O Povo são os homicídios cometidos por policiais, violência policial em geral, corrupção policial, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados e criminosos.

O Diário de Pernambuco, direcionado às camadas elevadas, dá destaques aos acontecimentos do Estado e da grande região metropolitana, mas também cita bastante os acontecimentos violentos de outros estados brasileiros, principalmente da Região Sudeste e do Distrito Federal. A relevância dos aspectos negativos das ações policiais no Diário de Pernambuco é, eventualmente, articulada à possibilidades de resolução de alguns problemas e monitoramento da atuação violenta ou inefi caz das polícias. Esse fato pode ser exemplifi cado pelo espaço dado às reivindicações da população por políticas de segurança mais efi cazes e a questão da violência no contexto dos direitos humanos. Nesse contexto destacam-se os homicídios e outras violências praticadas por policiais, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos e população em geral. A Folha de Pernambuco pode ser caracterizada como um jornal popular que trata a questão da violência de forma extremamente sensacionalista (“Chove bala na comunidade do Coque”) e expõe os atores da violência em fotos espetacularizadas, como cadáveres com os corpos deteriorados e pessoas detidas como supostos criminosos. Sua cobertura sobre as ações policiais explora subliminarmente a inefi cácia da polícia, contrapondo-a com a quantidade de notícias sobre assassinatos. A voz da população é uma das fontes de informação do jornal, destacando denúncias contra os abusos e violências das polícias. Depreende-se da narrativa da notícia que a cobertura in loco das ações policiais e dos crimes são características marcantes do jornal, assim como a divulgação de detalhes específi cos da violência colhidos nas delegacias, como o lugar exato de partes de corpos feridos.

Entre os jornais do Espírito Santo, A Gazeta atende a um perfi l mais elitizado, tendo como uma das suas principais fontes de informação a própria população que se manifesta durante a cobertura das matérias nos locais de ocorrência dos eventos.

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As informações são complementadas com boxes e entrevistas com a população e caracteriza-se por ter um perfi l mais informativo. Os aspectos negativos mais enfatizados pela A Gazeta no período foram: falta de policiamento e falta de segurança, omissão da polícia, mau atendimento e mau funcionamento da polícia e uma visão desmoralizante da polícia. A Tribuna, com perfi l mais popular, destaca-se dos demais jornais por ser um periódico que se dedica a cobrir as notícias sobre as ações policiais visando fornecer vários pontos de vista dessas ações. Sua cobertura jornalística caracteriza-se sobretudo pelo uso de diversas fontes de informação, uso da voz direta da população e de demais atores envolvidos nos eventos, e posicionamento mais direto em relação à atuação negativa das polícias. Os aspectos negativos mais representados na A Tribuna no período foram: corrupção policial, falta de policiamento e falta de segurança refl etida na fala da população, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados e criminosos e população em geral, omissão da polícia. Sua narrativa é rica em detalhes, porém, sem banalizá-los, e apresenta um contexto mais aprofundado dessas ações, discutindo as causas e apontando as soluções propostas tanto pelos envolvidos quanto a partir do lugar de fala do próprio jornal.

Imagens negativas apresentadas nos jornais

Em síntese, as representações negativas das ações policiais, presentes nos oito jornais nos meses de outubro e novembro, indicam que há uma visão desfavorável à imagem dos policiais e suas corporações.

A representação dos homicídios cometidos por policiais nos jornais, possivelmente é o aspecto que cria o maior efeito negativo sobre as ações policiais. Destacam-se a ilegalidade, a truculência, a crueldade e a impunidade dessas ações, antevendo o forte posicionamento dos jornais em relação a esses crimes cometidos por alguns policiais e algumas corporações que legitimam esses atos. Há uma idéia recorrente nos jornais de que há uma permissão para matar e de que os responsáveis por esse tipo de crime são de alguma forma acobertados, perpetuando essa prática que tanto é repudiada por uma parte da população mais vitimizada, quanto é aceita por outra que abona a idéia de execução.

“... quando um assaltante foi executado por um policial, anos atrás, em frente a um shopping da cidade, muita gente aplaudiu” (O Globo, 18/11/2004).“A violência policial é utilizada como política de segurança n Estado do Rio. Toda vez que ocorrem mortes em confrontos com a polícia, as autoridades comemoram e, em vez de punidos, os acusados são promovidos” (A Gazeta, 22/10/2004.

De certa maneira, todos os jornais convergem em suas visões sobre esse tipo de crime, tratado pela imprensa como hediondo. Como revelam algumas narrativas:

“Arquivo morto – 72% dos casos de mortes de civis por policiais militares são arquivados a pedido do Ministério Público (...) o encerramento do caso, antes mesmo de virar processo, está longe de ser uma exceção na Justiça de São Paulo” (Folha de São Paulo, 29/11/2004)

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“Mais uma vez o BOPE está sob suspeita” (O Povo, 11/11/2004)“A promotora (...) disse que o deputado do Rio (...) teria se reunido com ex-policiais para formar um grupo de extermínio” (O Globo, 12/11/2004).

No mês de outubro destaca-se uma reportagem especial que ocupou um grande número de páginas que tratava especifi camente de crimes cometidos por policiais. Com o título “De espancamento a assassinato”, a reportagem denuncia a participação desses profi ssionais em crimes como tortura, participação em grupos de extermínio e espancamentos que levaram a morte.

“Ao invés de serem encaminhados à Diretoria de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA) os suspeitos foram espancados e um deles, (...) morreu.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)

Os jornais dão também destaque ao questionamento acerca dos autos de resistência, que muitas vezes acabam por legitimar assassinatos e difi cultar a punição dos policiais criminosos.

“... as autoridades da área de segurança se valem dos autos de resistência para mascarar os assassinatos cometidos por policiais.” (Folha de São Paulo 22/10/2004)“ A chacina chegou a ser registrada por policiais como autos de resistência (Folha de São Paulo 29/10/2004)

Uma outra representação negativa diz respeito à corrupção policial, que se dáatravés do envolvimento de alguns policiais com diversos tipos de crime. O destaque a esse tipo de crime encontra uma ressonância na população em geral, e mais especifi camente, nas classes assalariadas e no contingente de trabalhadores informais que vivem de seu trabalho. A reconstrução desse tipo crime nas narrativas jornalísticas, em especial, a dos jornais populares, ganha cores fortes e atributos lingüísticos negativos e irônicos empregados em algumas matérias:

“Na residência de um policial rodoviário federal (...) a polícia apreendeu dois carros, sendo um importado (uma BMW), duas motos, sendo uma Suzuki e uma Harley Davidson, além de 600 munições calibre ponto 40” (O Povo, 9/11/2004)“A Polícia Rodoviária Federal que apoiou o trabalho da PF, teve que cortar a própria carne: agentes da instituição estavam envolvidos com esquema de corrupção e adulteração de combustíveis, entre eles o ex-superintendente...” (O Povo, 9/11/2004)“O trafi cante confi denciou aos amigos de crime que tomara a decisão porque vinha sendo pressionado e perseguido pela chamada banda podre da polícia, um grupo formado por policiais corruptos...” (Diário de São Paulo, 14/10/2004)

A ênfase às formas de corrupção assume um contorno de denuncia dos crimes vivenciados cotidianamente por certos extratos mais baixos da população que, de

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certo modo, vêem nesta denuncia uma forma de justiça frente a essas e outros tipos de corrupção por parte das instituições públicas.

Principalmente, em um episódio de grande repercussão relativo a uma grande operação policial, os jornais marcaram também a preocupação da própria polícia, em suas investigações, com o envolvimento de policiais corruptos. Essa preocupação concretizava-se sobretudo pelo cuidado em evitar o “vazamento de informações” que poderia vir a impedir certas operações.

“Apenas poucos policiais foram mobilizados porque tínhamos medo de que as informações vazassem, já que investigações apontavam que Gangan tinha proteção de policiais”. (Diário de São Paulo, 14/10/2004)“Nada a estranhar: o mesmo ocorre nas PMs e na Polícia Federal. Mas esse caso chama atenção para o ponto a que chegou a infi ltração do crime no poder público. Ata a polícia precisa ter cuidado com a polícia.” (O Globo, 15/10/2004)

É destacada a prisão de policiais acusados de crimes, assim como sua transferência de instituições militares para presídios comuns, o que ocasiona confl itos e reivindicações dos mesmos, chamando atenção da imprensa que dá considerável destaque à problemática.

“PMs presos no Ponto Zero, em Benfi ca, reclamam supostos direitos, alegando que não são bandidos, mas agiram exatamente como criminosos ao esconder os rostos.” (O Globo 29/10/2004)

Os maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos e população em geral, é uma forma negativa da atuação policial representada nos jornais. Essa forma se caracteriza pelo tratamento agressivo das polícias dispensado a alguns grupos sociais mais empobrecidos ou discriminados socialmente. Alguns jornais populares constroem suas narrativas dando voz direta a esses grupos que sofrem esses maus-tratos “os outros PMs já chegaram batendo em minha amigas. Eu só levei um jato de spray de pimenta no rosto” (Diário de São Paulo, 29/11/2004). As agressões praticadas por policiais e narradas pelos jornais, produz um efeito de sentido no campo afetivo-emocional, pois combinada com outras formas de humilhações que determinados grupos sociais sofrem, colocam os operadores das polícias em um posição de “carrascos” da população. Alguns trechos das narrativas refl etem essa construção:

“Depois que o marginal já estava rendido, os policiais o agrediram na frente de toda imprensa que estava no local para realizar outra reportagem” (O Povo, 15/11/2004).

Os maus-tratos praticados pelas corporações policiais são destacados pelas notícias como um modo de funcionamento usual na abordagem de supostos suspeitos. A freqüência desse relato aparece também na abordagem à adolescentes, o que, por vezes, acarreta em morte e/ou graves seqüelas. A tortura, como modo de obter informações ou até mesmo forjar “confi ssões”, é retratada também como um modo de funcionamento naturalizado.

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“Foi a segunda vez que apanhei. Na primeira, minha mãe presenciou parte do espancamento... Eles achavam que a gente tinha roubado alguém” (Folha de Pernambuco 31/10/2004)“...ele negou tudo que disse nos depoimentos anteriores alegando que foi ameaçado, torturado e sofreu coação por parte de policiais civis para confessar.” (A Gazeta 20/10/2004)

Outra forma de crítica negativa percebe-se quanto ao envolvimento da polícia com o tráfi co de drogas, que coloca em jogo questões morais, éticas e institucionais relacionadas à atuação das corporações. Entretanto, esse envolvimento diz respeito à atuação de alguns policiais, mas pela freqüência com que esses atos são destacados na imprensa escrita, essas representações acabam por produzir um efeito negativo generalizado sobre as corporações na sociedade. A estreita ligação que os policiais envolvidos nesse tipo de crime estabelecem com as pessoas envolvidas no tráfi co de drogas é sublinhada nas narrativas dos jornais, principalmente relacionadas à utilização do cargo de policial para facilitar a libertação de presos, fornecer ilegalmente armas etc.

Em relação à falta de policiamento e a falta de segurança, os jornais privilegiam a fala da população na voz direta, deixando entrever o sentimento de insegurança generalizado que atinge os moradores dos grandes centros urbanos. A forma como algumas narrativas são construídas enfatizam a má atuação da polícia nesse quesito, não construindo parcerias com a população e obrigando-a a recorrer aos serviços de segurança privada. Os jornais também destacam a ambigüidade que permeia o sentimento da população, quando requer maior repressão à criminalidade, mas não acredita na capacidade das polícias de fornecer segurança pública. Como destacam algumas narrativas em voz direta e indireta dos jornais:

“Segurança nota zero” (Folha de Pernambuco, 27/11/2004)“À mercê da bandidagem” (Folha de Pernambuco, 27/11/2004)“Entregues a vontade dos bandidos” (O Povo, 20/11/2004)“Eles (a polícia) sempre chegam depois” (O Povo, 20/11/2004)

A falta de policiamento que gera a insegurança da população é articulada em algumas matérias à insufi ciência de efetivo, porém essa questão não é problematizada.

Os assaltos e arrombamentos de lojas e casas particulares nos bairros com policiamento defi ciente são destacados, o que ocorre principalmente à noite, quando tal insufi ciência se agrava. Nas datas comemorativas e no verão, quando algumas cidades recebem turistas, o policiamento é reforçado e a população destaca o desejo de que permaneça dessa forma todo o ano.

“Só no carnaval é que temos policiamento. A radiopatrulha Só passa de vez em quando”.(A Tribuna, 31/10/2004)

Uma forma de representação negativa das ações policiais bastante recorrente refere-se à violência em geral, materializada nas discriminações raciais, sexuais, sociais, nas ameaças, nas abordagens arbitrárias e violentas e nos abusos policiais. Algumas narrativas relatam o risco que as populações que vivem em comunidades pobres estão

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constantemente sujeitas quando ocorrem confrontos da polícia com a criminalidade.É comum nas entrevistas com a população enfatizar a violência com que a polícia entra nessas comunidades. Essa forma de violência vem ganhando destaque inclusive nos jornais dirigidos aos estratos mais elevados, por ter uma visibilidade grande no âmbito da defesa dos direitos humanos.

Outras formas desrespeitosas de tratamento da população também são sublinhadas pelos jornais, principalmente quando são testemunhadas por organismos não governamentais presentes hoje em várias favelas e comunidades pobres. Ainda que não articulados explicitamente ao discurso dos direitos humanos, alguns jornais dirigidos aos estratos populares constroem suas notícias sobre as incursões policiais e a atuação de alguns policiais como representativas de uma ação ilegal das polícias. A Tribuna destaca-se na representação dessas formas de violência, criticando os abusos policiais e posicionando-se claramente em relação à ilegalidade dessas ações e através da voz da população: “os policiais estão urinando e defecando lá (no local de visita íntima de um presídio). Isso é um desrespeito” (...) “os policiais falam que bandido tem que sofrer mesmo” (A Tribuna, 24/11/2004).

Entre a população mais vitimizada pela violência policial se destacam também os vendedores ambulantes que trabalham principalmente nas ruas das grandes cidades e que, muitas vezes, são vítimas da arbitrariedade da ação de certos policiais.

“Mais uma vez camelôs pegos pela GCM foram agredidos e detidos.” (Diário de São Paulo, 19/10/2004)

As matérias destacam ainda a difi culdade de punição dos agressores, ilustrada claramente no trecho:

“... a punição para os que agem de forma truculenta é difícil devido à legislação. Além de ser complicado provar, pois em vários casos é a palavra da vítima contra a dos policiais, denuncia de espancamento sempre dá apenas Termo Circunstanciado de Ocorrência.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)

Uma outra imagem negativa representada na mídia escrita se refere ao despreparo da polícia, vinculada algumas vezes a uma desmoralização das ações policiais. Os aspectos ressaltados são ações mal sucedidas que resultaram em morte ou insucesso das operações policiais. O despreparo também é vinculado à frágil resistência psicológica dos policiais frente a situações de confl itos, onde se deixam levar pelo emocional e não pelo racional:

“Ao perceber que estava compondo a foto o PM desrespeitou o profi ssional e com o dedo em riste ameaçou tomar a câmera fotográfi ca ‘Você é um bobão, um babaca, um otário, um palhaço’, gritava descontrolado o sargento (...) diante de vários colegas de farda que chegavam em auxílio” (O Povo, 12/11/2004).

Este despreparo psicológico aparece também atrelado ao despreparo técnico dos profi ssionais:

“Um estudo realizado (...) e autorizado pelo comando geral da polícia

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militar sobre os crimes militares no pós 88, revela que o despreparo técnico profi ssional, as condições adversas de trabalho, estresse, a desestrutura familiar e as relações dentro da corporação são dos motivos mais freqüentes (para os crimes militares).”(Folha de Pernambuco 31/10/2004)

Há em algumas matérias um forte componente de linguagem que abalam a competência das polícias:

“Depois de seguir 16 linhas de investigação, a polícia do Rio apostou suas frágeis fi chas no ex-caseiro...”(O Globo, 21/11/2004)“Quase um ano depois o crime continua impune. Inconformada com os rumos das investigações, a família do casal contratou um detetive particular.(...)O especialista criticou o trabalho da polícia: o crime foi muito mal investigado” (O Globo, 21/11/2004)

A desmoralização articulada aos despreparos dos policiais refl ete-se no trecho seguinte:

“Polícia confunde britadeira com fuzil e fere operário.” (O Povo, 10/10/2004)

Os atos de omissão da polícia são outras representações negativas das ações policiais. As narrativas que destacam essas ações enfatizam a ausência ou negligência de policiais em serviço

“O policial fugiu após o tiro” (Diário de Pernambuco, 4/11/2004)“Pela porta da frente. Foi assim que o acusado (...) fugiu do DPJ (...) nenhum dos sete policiais de plantão no local afi rmou ter percebido a ação), a alegação de que não está em sua área de atuação” (A Tribuna, 12/11/2004)“PMs também passaram mas não prestaram socorro, alegando que se tratava de área federal.” (O Globo, 24/11/2004)

Além disso, negar o atendimento e socorro, além de omitir-se perante o desenrolar de um delito são aspectos bastante negativos que perpassas algumas matérias:

“outros vizinhos do adolescente afi rmaram que a vítima pediu socorro por alguns minutos e os PMs se negaram a atende-lo” (Folha de Pernambuco, 4/11/2004). “Os presidiários fi zeram um túnel da cela 11 – o local sai no pátio do DPJ. No momento da fuga havia dois policiais de plantão.” (A Tribuna, 25/10/2004) “Logo que me identifi quei, percebi que eram truculentos. Um deles perguntou o que deveriam fazer e, quando expliquei a situação, ele disse que aquilo (prostituição infantil) era um fato corriqueiro e que eu deveria deixar as crianças se divertirem.”(Folha de Pernambuco, 14/10/2004)

O mal atendimento e o mal funcionamento das polícias são destacados em algumas matérias, reforçando a imagem negativa das mesmas e respaldada no aumento das denúncias que chegam às Ouvidorias de Polícia. As investigações policiais são

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objeto de críticas nos jornais (“magistrado aconselhou a polícia investigar melhor”– O Globo, 4/11/2004), (“é preciso que o serviço de inteligência da polícia descubra quem está causando toda essa confusão” – A Gazeta, 23/11/2004). O desaparelhamento das polícias e os erros administrativos são citados como aspectos negativos que indicam o mal funcionamento das polícias. As perícias também são criticadas por estarem em “estado caótico” (O Globo, 1º/11/2004) e por emissão de falsos laudos ou pela produção desnecessária de laudos que são ridicularizados pela mídia:

“Laudo da morte de um pombo: ‘para uma estrutura de segurança pública que tem muito mais o que fazer, pode-se dizer que é burocracia demais para se iniciar uma tentativa decifrar o mistério de um pombo morto numa praia deserta’” (O Globo, 24/11/2004).

Há a presença direta de falas dos próprios policiais a respeito das más condições de trabalho, que têm como um de seus principais efeitos o mau funcionamento.

“Para eles (especialistas em segurança pública) é muito preocupante ver que as pessoas encarregadas da segurança estão reclamando de insegurança (sobre o uso de equipamentos com prazo de validade expirado ou sua falta, entre ele, coletes à prova de balas e armas enferrujadas).” (O Globo, 13/10/2004)

Aspectos positivos destacados nas matérias

A pequena proporção de matérias que representam aspectos positivos das ações policiais 4,03% referem-se a alguns temas como: orientações da polícia sobre segurança; ação cooperativa das polícias; ação efi caz/investimento em segurança; reorganização das polícias; melhoria do atendimento; co-responsabilidade nas ações policiais; investimento em qualifi cação/capacitação; outras ações da polícia.

Em relação à divulgação de orientações da polícia sobre segurança, considera-se que essa é uma forma positiva dos jornais representarem as ações policias. Esse aspecto foi verifi cado no jornal A Tribuna que divulga em algumas de suas reportagens um quadro com as instruções da Polícia Militar sobre segurança, dirigida à população em geral. Há também o registro de ações das polícias com as comunidades, como rondas escolares e eventos com as escolas das comunidades, a fi m de que atuem juntas.

No que se refere à representação de ações cooperativas das polícias, foram abordados temas como: a criação de parcerias entre o Instituto Médico Legal e os hospitais de Recife para a melhoria e rapidez da produção de laudos; a integração entre a Polícia Militar e uma comunidade do Rio de Janeiro:

“Tenho o projeto de desenvolver o lado assistencial e social dos nossos policiais. Vamos promover eventos para a terceira idade e, principalmente, para as crianças. O Batalhão também tem um papel importante na revitalização da região” (O Povo, 22/11/2004).

Destacam-se, também, a realização de seminários e encontros das polícias com

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as associações de comerciantes e de moradores dos bairros atingidos por problemas como furtos e roubos, a fi m de organizar as reivindicações e orientar ações.

“O bairro Praia do Canto, também em Vitória, porém, saiu na frente e já constata os resultados de uma parceria fi rmada entre a Associação Comercial e a Polícia Militar.”(A Gazeta, 14/10/2004)

A cooperação entre as polícias de diferentes estados, como Rio de Janeiro e Espírito Santo, é destacada como gerando sucesso em operações, como a atuação em caso de seqüestro.

Os jornais abordaram também a ação efi caz/investimento em segurança das polícias. As matérias consideraram efi cazes as ações com planejamento, em tempo hábil e não violentas, dando grande destaque às operações onde não se fez uso da arma de fogo:

“Se a polícia não tivesse agido rapidamente, teria sido um massacre” (Folha de São Paulo, 23/11/2004).“Uma hora depois, sem que fosse necessário sequer um tiro, 14 trafi cantes armados com fuzis e munição sufi cientes para sustentar um longo tiroteio estavam dominados, algemados e de partida para a cadeia na caçamba dos carros da PF (...) Era o fi m de uma operação que começou a ser planejada seis meses antes no setor de inteligência...” (O Globo, 7/11/2004)“Policiais do 5º BPM esbanjam bons resultados em serviço (...) Graças à rápida atuação da polícia...”.(O Povo, 22/11/2004)“Estamos provando que investimento em segurança pública é fundamental, quando o dinheiro é aplicado em tecnologia, inteligência e policiais especializados – afi rma o delegado federal...”(O Globo, 7/11/2004)

A rapidez, que gera sucesso, de investigações que se utilizaram, primordialmente, de ações de inteligência, de parcerias entre delegados, etc, são referidas nas reportagens. A realização de operações pelas áreas consideradas problemáticas das cidades, quando mais freqüentes, também é referida como integrando a efi cácia das ações da polícia.

Os investimentos em segurança são destacados principalmente no que diz respeito à implantação de policiais motorizados para combater seqüestros, ao planejamento estratégico, a criação de disque-denúncias, etc.

Uma outra representação positiva das ações policiais refere-se a reorganização da instituição policial como ações que são implementadas visando a melhoria desse atendimento “trocou chefes da divisão, estimulou ações coordenadas. A medida, aparentemente uma mudança burocrática, desatou os nós internos da estrutura da PF.” (O Globo, 14/11/2004)

Em relação à melhoria do atendimento, A Tribuna destaca a presença de policiamento nas ruas, garantindo maior segurança e reduzindo o número de ocorrências policiais. Esse mesmo jornal dá grande destaque ao aumento da presença feminina na polícia, que é tida como positiva em vários aspectos, principalmente no que tange ao atendimento.

“Desde então, o papel da mulher dentro da corporação vem crescendo e tem sido

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de suma importância. Ela, que tinha a sensibilidade anteriormente apontada como defeito, demonstrou que a sensibilidade é qualidade muito importante nas mais diversas atividades policiais.”(A Tribuna, 26/10/2004)

É dado destaque à campanha do desarmamento e às resoluções legais que a envolvem como, por exemplo, a entrega de armas à Polícia Federal. O atendimento aparece destacado como a implantação do policiamento ciclístico.

Um outro aspecto que representa positivamente as ações policiais refere-se ao investimento em qualifi cação e capacitação de seus operadores. A Tribuna, em 18/11/2004, divulga um evento sobre o controle da criminalidade e a atuação das polícias como parte do Seminário “Polícias, Direito e Segurança Pública em Debate”, do Centro de Informação e Aperfeiçoamento da PM. A formação dos policiais é destacada, sobressaindo cursos focados nos Direitos Humanos e o realizado pela SWAT. Outros cursos, como o ministrado a porteiros, aparecem como capacitando e objetivando um aumento da segurança em condomínios.

“A grade (do curso do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças) foi formulada com base nos critérios da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). ‘Todos os estados se reuniram em Brasília e depois de três meses nossa programação já estava pronta’, conta o ofi cial. Assuntos como Direitos Humanos, noções de Direito e Segurança Pública são mencionadas, junto com mais vinte disciplinas, em oito meses de aulas.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)

Outras ações das polícias são representadas nos jornais Diário de São Paulo eA Tribuna referindo-se à atividade das polícias, nem sempre ligadas à segurança pública, mas que são realizadas como ajuda no parto e salvamento de suicidas.

“Eles dizem que a grande difi culdade para ajuda-la a dar a luz foi a falta de material de primeiros socorros no local. ‘Nem luvas recebemos da Prefeitura’.” (Diário de São Paulo, 7/11/2004).

Além das atividades operacionais, a Polícia Militar, por exemplo, desenvolve através de seus vários órgãos, uma série de atividades sociais visando o auxilio a população.

A atuação em auxílio e resgate de moradores de comunidades que, por algum confl ito violento, são impedidas de permanecer em suas casas, é, por vezes, referido nas reportagens como uma atuação positiva da polícia, já que denota um sentimento de segurança da comunidade frente à fi gura do policial.

A co-responsabilidade nas ações policiais são representadas nos jornais através da divulgação de projetos e programas em parceria com a sociedade. Escolas, comunidades, parcerias entre as próprias polícias e forças armadas, parcerias das policias com associação de moradores e comerciantes são alguns dos exemplos citados na imprensa escrita, em todos os jornais. Essa forma de representação contribui signifi cativamente para a compreensão das possibilidades de atuação policial que não se restringem aos atos de repressão.

Como conseqüência de construções positivas nas matérias sobre as atuações das

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policias, uma moralização das mesmas é percebida em alguns trechos de reportagens, como este:

“Mesmo ganhando um salário indigno, correndo risco de vida e sendo constantemente alvo de críticas, em alguns momentos policiais militares conseguem mostrar a população do Rio de Janeiro, que existem profi ssionais sérios e dedicados, que honram a farda que vestem.” (O Povo, 22/10/2004)

CONCLUSÕES

É necessário analisar continuamente essas formas de representação na mídia, para que se tenha uma concepção atualizada das mudanças que se dão tanto no campo da produção de informação quanto nas próprias polícias. A permanência de um estilo jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a cobertura mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo mais factual. Alguns jornais atuam de forma mais aprofundada as ações policiais, produzindo uma representação das polícias e seus operadores de forma analítica e refl exiva. Entretanto, a representação negativa, embora presente em uma parcela pequena de matérias se comparadas ao total de matérias factuais, produz um sentido impactante na percepção da atuação das polícias, conforme alguns estudos já vêm apontando. As manchetes, os atributos utilizados para qualifi car negativamente as ações policiais, o enquadramento das fotografi as são alguns dos elementos que devem ser aprofundados na perspectiva do discurso e da construção de sentidos sobre essas corporações. O material empírico analisado, porém, não contemplou um estudo sobre as imagens, mas procurou apreende-las sob a ótica de produção de textos, ou seja, essas imagens contêm poder de fala e como tal, também devem ser analisadas em outros estudos.

Dos aspectos positivos apreendidos, ainda verifi ca-se uma ausência de melhor qualifi cação das matérias e uma inexistência de questões que deveriam ser abordadas, além da baixa freqüência com que essas representações aparecem, em relação ao complexo tema da segurança pública e das instituições policiais como instituições prestadoras de serviço à sociedade.

Verifi ca-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar estereótipos em relação ao policial e suas corporações, que estão ligados a uma idéia de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam proporções simbólicas signifi cativas no imaginário social. Uma grande parcela das notícias informa sobre as ações legais da polícia. Mas é na narrativa das ações ilegais que se concentra um poder de disseminação dessa visão negativa, extremamente rechaçada pela população em geral, principalmente por referir-se a uma instituição pública e que tem como dever protegê-la.

Por outro lado, policiais e suas corporações também constroem imagens estereotipadas da mídia em geral, conforme apontaram algumas pesquisas. Essa imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.

Alguns aspectos, ainda pouco divulgados e disponíveis, hoje, em institutos de

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pesquisas como o Instituto São Paulo contra a Violência, em São Paulo, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, no Rio de Janeiro, e núcleos acadêmicos em diversas universidades do Brasil, podem ajudar na compreensão e na problematização de questões como: melhoria da gestão das organizações policiais; controle das polícias; integração das ações policiais; o crescimento da segurança privada; o papel das polícias comunitárias; adoção do plano nacional de segurança pública; condições de trabalho e saúde dos policiais, incluindo o aparelhamento da polícia técnica, por exemplo.

Em relação ao papel da Secretaria Nacional de Segurança Pública, algumas recomendações podem ser feitas a partir deste estudo, visando a mudança de enfoque da relação polícia versus sociedade e mídia.

Promover seminários para jornalistas e editores de jornais de forma a divulgar pontos importantes que possam complementar as notícias que envolvem ações policiais, tais como: estatísticas, referências completas ao tipo de corporação envolvida nas ações, divulgar reformas e implementação de políticas de segurança adotadas pelas corporações.

Promover seminários com policiais e seus superiores, de todas as corporações, sobre a percepção dos mesmos em relação a sua imagem nos meios de comunicação e na sociedade em geral, de forma que possam expor suas opiniões, suas experiências e propostas, através de grupos de trabalhos.

Promover encontros entre as assessorias de imprensa das corporações policiais e jornalistas que cobrem eventos envolvendo essas corporações, para que se criem alguns critérios para a produção da informação, tendo em vista questões éticas do jornalismo e, principalmente, atendendo o interesse de melhoria da qualidade da informação e melhoria da segurança para a sociedade.

Discutir com os órgãos de imprensa, sociedade civil organizada, especialistas e corporações a questão da produção da informação e a construção do medo social disseminado em relação à violência, de forma a contribuir para a desconstrução de algumas percepções presentes no imaginário social.

Propiciar debates nacionais, com base em estudos, sobre a contribuição das representações da mídia sobre as formas de violência e seu impacto na criminalização das populações empobrecidas, a fi m de subsidiar mudanças dessa visão presente na atuação de algumas mídias e de alguns policiais, e também discutir os critérios das ações policiais pautadas nessas formas de discriminação.

Promover pesquisas de âmbitos locais e nacionais a fi m de aprofundar o conhecimento sobre os meios de comunicação, políticas de segurança, violência social, práticas policiais positivas, práticas policiais violentas etc, a fi m de ampliar o debate público sobre essas questões e propiciar a criação de políticas públicas que respondam às necessidades da sociedade.

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Sites Pesquisados

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Créditos

Equipe de pesquisadores: Simone Gonçalves de Assis (coordenação), Kathie Njaine (coordenação), Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Queiti Batista Moreira Oliveira, Flávia de Assis Souza

Organização dos Clippings: Lucimar Câmara Marriel, Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Jacqueline Cardoso da Silva Martins, Fátima Cristina Lopes de Santos, Danúzia da Rocha de Paula

Codifi cação: Bruno Njaine de Anchieta Ramos

Digitação: Dayana Monteiro Motta e Luiza Cristina Fernandes Victor

Digitalização de imagem e gerenciamento do Programa AnSWR: Lucimar Câmara Marriel

Estatística: Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira

Apoio técnico-administrativo: Marcelo Silva da Motta, Marcelo da Cunha Pereira, Jerônimo Rufi no dos Santos Júnior

Normatização da Bibliografi a: Fátima Cristina Lopes dos Santos

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CÓDIGOS DE DEONTOLOGIA POLICIAL NO BRASIL E NO CANADÁ: ANÁLISE DOS DOCUMENTOS E DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Maria Stela Grossi PortoArthur Trindade Maranhão Costa

Departamento de SociologiaUniversidade de Brasília

INTRODUÇÃO

A relação entre as polícias e a comunidade tem sido objeto de debate nas sociedades democráticas. As instituições policiais são aquelas organizações destinadas ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário (Bayley, 1975). Nos regimes democráticos, a atividade policial requer um equilíbrio entre o uso da força e o respeito aos direitos individuais. Assim, podemos afi rmar que a especifi cidade da atividade policial nos regimes democráticos é a necessidade de limitar e administrar o uso da força legal, sem abrir mão de suas prerrogativas de controle social.

Nos últimos anos, diversos países têm enfrentado o desafi o de limitar e controlar o uso da força legal. Basicamente, os esforços se concentraram na criação de mecanismos institucionais de responsabilização e controle da atividade policial. Entretanto, a qualidade e efi cácia desses mecanismos, que visam a inibir a violência policial, são questões ainda pouco problematizadas tanto no interior das próprias polícias quanto fora dela, pelos pesquisadores. Além de fatores internos à organização policial, a análise e a compreensão de tais questões passam, igualmente, pelas relações entre polícia e sociedade.

Nesse sentido, alguns estudos internacionais buscaram entender os padrões de relacionamento entre a polícia e a sociedade (Bayley, 1994; Geller e Toch, 1996; Skolnick e Fyfe,1993; Monjardet, 2003), e dois temas têm sido destacados: as formas de reforçar os vínculos entre a polícia e a comunidade e a necessidade de controlar a atividade das polícias. Entretanto, pouco se sabe sobre as diferentes dinâmicas sociais, políticas e institucionais para a implantação das reformas nas polícias.

No Brasil, a situação não é muito diferente. A partir de 1980, constatou-se o crescimento dos estudos sobre as polícias, constituindo-se no que Kant de Lima et alii (2000) denominaram de “sociologia da organização policial contemporânea”. Apesar dos esforços, pouco se avançou na compreensão dos mecanismos de administração do uso da força legal, de seus instrumentos de controle e avaliação, bem como das difi culdades políticas, culturais e institucionais para sua implantação.

Sem uma clara diferenciação entre violência policial e uso da força legal não é possível estabelecer mecanismos destinados ao controle e supervisão das atividades policiais. Até que ponto e sob que circunstâncias é legítimo, ou admissível, o uso da força? Qual é a linha demarcatória entre força legítima e violência policial? Estas questões têm sido debatidas pela literatura especializada (Klockars 1996; Muniz et alii 1999; Mesquita Neto 1999; Costa 2003a; Costa e Medeiros 2002, Porto 2000, Adorno

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2002). Os estudos destacam que essa linha demarcatória não é fi xa. O limite entre força legítima e violência varia em função da forma como cada sociedade interpreta a noção de violência e representa a função policial.

Além dos problemas para defi nir o que é violência policial, há também a difi culdade de controlar e monitorar a atividade policial. O enorme poder discricionário de que gozam as polícias está no centro da questão (Walker 1993; Bandeira & Costa 2003). Possivelmente, dentre os agentes estatais, os policiais estão entre aqueles que possuem maior liberdade para exercer suas funções, tanto em termos do exercício da autoridade quanto em relação aos controles a que estão submetidos.

Nesse sentido, podemos descrever a atividade policial como um sistema perito,ou seja, como “sistemas de excelência técnica ou competência profi ssional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (Giddens 1991:35). Conhecemos muito pouco dos códigos e procedimentos adotados pelos policiais para o exercício da autoridade que lhes foi delegada. Na maioria dos casos, torna-se difícil para um leigo avaliar se a conduta policial foi adequada ou não. Assim, o controle da atividade policial para ter efi cácia, deveria levar em conta os códigos de deontologia e a normas de conduta, uma vez que estas representam a experiência acumulada pelos policiais.

Os problemas de defi nição do que vem a ser violência policial e monitoramento das práticas cotidianas da polícia têm gerado difi culdades para a efi ciência de três dos principais mecanismos de controle da atividade policial existentes: a legislação, o controle externo e a justiça.

A legislação penal e processual penal é instrumento fundamental de controle da atividade policial. Isso se deve ao fato de boa parte das ações policiais estarem ligadas ao controle da criminalidade, sendo as polícias parte direta ou indireta do processo penal. Nesse campo, o poder legal conferido às polícias varia bastante. Alguns países introduziram mudanças na legislação penal, processual penal e na jurisprudência dos tribunais com o objetivo de limitar e controlar a atividade policial. Entretanto, o efeito dessas decisões tem sido bastante variado, uma vez que não são muito claras a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as mudanças na legislação penal e processual penal só têm efeitos concretos sobre a conduta policial quando os departamentos de polícias decidem reformular suas normas internas de condutas (Skolnick e Fyfe, 1993).

A implantação de órgãos de controle externo da atividade policial é fenômeno relativamente recente. A partir de 1970, várias polícias passaram a conviver com mecanismos de controle externo. Apesar da enorme variação quanto a sua estrutura, uma questão mostra-se presente em todos os casos: Pode o controle externo ser mais efi caz que o controle interno? Em função das difi culdades de defi nição da violência policial e de monitoramento do policiamento, difi cilmente o controle externo poderá, efetivamente, limitar e controlar o uso da força legal. Por outro lado, o controle externo permite que a noção de força legítima seja interpretada de acordo com os valores existentes na sociedade. Portanto, podemos afi rmar que os controles internos e externos não se excluem, ao contrário, são complementares (Bayley, 1991 e 1994).

Outro mecanismo de controle da atividade policial existente é o sistema judicial, desde que seja independente dos outros poderes políticos. Também é importante que o sistema judicial disponha de instrumentos legais e de condições materiais que tornem

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possível a investigação das denúncias e a punição dos policiais faltosos. Com relação ao Brasil, vários autores têm apontado a incapacidade da polícia de investigar denúncias contra policiais e a defi ciência da justiça militar de punir os policiais violentos (Costa 2003 e Cano 1997).

Entretanto, estas não são as únicas difi culdades encontradas nos sistemas judiciais para controlar a atividade policial. Em diversos países, salvo nos casos mais graves, juizes e tribunais têm encontrado grandes difi culdades para avaliar a adequabilidade da conduta policial cotidiana. Analisando as mudanças ocorridas no sistema judicial dos EUA, alguns autores têm apontado as suas defi ciências para limitar e controlar o uso da força legal (Cheh 1996; Chevigny 1995). Neste caso, o problema repousa na difi culdade de defi nir, a partir de uma perspectiva externa, o que é violência policial.

Em que circunstâncias é admitido o uso da força e qual a intensidade a ser empregada? Como mencionado anteriormente, tais questões podem ser respondidas a partir da própria experiência das polícias. O exercício continuado da atividade policial possibilita a acumulação de conhecimentos que permitem a análise das situações na quais a força deve ser empregada, bem como qual a melhor forma de fazê-lo, de modo a melhor proteger os próprios policiais e os cidadãos. Um número excessivo de policiais e civis mortos ou feridos indica que estes conhecimentos não estão sendo corretamente empregados. Esses conhecimentos podem ser incorporados ao trabalho cotidiano dos policiais.

Para tal, devem ser transformados em códigos de deontologia e normas de conduta. Isso permite que as condutas individuais sejam avaliadas não só com relação a sua legalidade, mas também do ponto de vista profi ssional. Condutas que contrariem tais códigos e normas podem e devem ser punidas administrativamente, uma vez que podem ser avaliadas e supervisionadas a partir desses critérios. Os códigos de deontologia e as normas de conduta policiais são os objetos desta pesquisa.

Nas últimas décadas, vários países criaram códigos de deontologia e normas de conduta visando aumentar o controle sobre a atividade policial cotidiana. Em todos os casos, a adoção destes códigos e normas implicou em transformações no treinamento e na supervisão da atividade policial. Resta saber como a experiência policial pôde ser transformada em códigos de deontologia e normas de conduta, bem como seus efeitos sobre o sistema de treinamento e avaliação das polícias. Este é o nosso problema de pesquisa.

O trabalho desenvolvido foi motivado e fi nanciado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça.1 Adotamos o método comparado para estudados os mecanismos internos de controle do uso da força legal existentes em diferentes polícias. Foram analisados os códigos e manuais em uso na Policia Militar do Distrito Federal (Brasil) e no Ottawa Police Service (Canadá). Também foram conduzidas entrevistas como policiais destas duas instituições. Obviamente este trabalho não pretendeu tomar nenhum sistema policial como um modelo a ser seguido. A comparação neste caso serviu apenas para esclarecer aspectos ainda não conhecidos sobre os conteúdos e os processos de implantação dos códigos de

1 Além dos autores participaram desta pesquisa: Pedro de Albuquerque Neto, Rodrigo Figueiredo Suassuana, Priscila A. Landim de Castro, Rafael A. da Costa Alencar, Marília Barbosa de Barcelos e Guilherme Almeida Borges.

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deontologia e das normas de conduta, além de verifi car especifi cidades e os aspectos comuns aos diferentes sistemas policiais dos países em análise.

Inicialmente discutimos a natureza e os tipos de poder discricionário que os policiais possuem. Em seguida, estudamos algumas das formas mais frequentemente utilizadas para controlar este poder discricionário. Numa outra seção, analisamos e comparamos os conteúdos dos códigos e manuais utilizados em Brasília e Ottawa. Depois, comparamos as representações dos policiais brasileiros e canadenses sobre a natureza da atividade policial e as formas de controlá-la. Ao invés de apresentarmos uma conclusão, optamos por relacionar as recomendações que nosso trabalho produziu.2

A POLÍCIA E O PODER DISCRICIONÁRIO

Nas últimas três décadas, um dos maiores desafi os enfrentados por diversas instituições policiais foi melhorar o controle sobre o poder discricionário dos seus agentes, principalmente os de mais baixa hierarquia. Até então, o policial era retratado como um mero agente do Estado encarregado de fazer com que os cidadãos cumprissem a lei. Prevalecia a idéia de que a polícia não dispunha de liberdade discricionária ou, pelo menos, não deveria possuí-la. Ao policial não competia fazer interpretações sobre a validade dos estatutos legais vigentes. Tampouco cabia à polícia decidir aplicar a lei ou não. Em geral a atividade de policiamento tem sido vista com uma aplicação técnica do sistema de justiça criminal.

Entretanto, desde a década de 60, os estudos têm revelado que a polícia não apenas aplica a lei, mas também a interpreta (Goldstein 1963; Skolnick 1962). Sabemos também que os policiais decidem quando e como a lei deverá ser empregada (Mingardi 1992; Kant de Lima 1995; Nascimento 2003). As Pesquisas têm demonstrado que outros fatores além da legislação criminal também infl uenciam profundamente as escolhas feitas pelos policiais, tais como idade, raça, classe social, etnia e religião (Ramos e Musumeci 2005). Esses estudos têm desafi ado o mito do policial neutro realizando uma tarefa técnica.

Diferente das instituições militares, as instituições policiais conferem enorme discricionariedade aos policiais dos escalões mais baixos, dentro da hierarquia. Talvez por isso o modelo militar de controle e supervisão venha sendo tão criticado quando posto em uso nas polícias. Como sabemos, o policial no seu dia-a-dia é forçado a tomar inúmeras decisões sobre quando e como sua autoridade poderá ser empregada. Não se trata de acabar com este poder discricionário, uma vez que isso seria impossível e tampouco desejável. Sem ele, não seria possível desempenhar as funções de polícia. Por outro lado, em alguns casos este poder pode perfeitamente ser limitado e estruturado.

O não reconhecimento desta liberdade de escolha tem gerado inúmeros problemas no interior das organizações policiais. De forma geral, esta situação tem forçado os policiais a agirem sem orientações claras sobre como proceder. Em alguns casos, eles exercem sua autoridade sem o respaldo da lei. Isso gera uma situação de enorme insegurança, tanto para a população quanto para a polícia (Muniz 1999). Casos de abuso de autoridade e de uso desnecessário da força são mais freqüentes quando não existem normas que orientem e imponham limites à ação dos policiais.

2 O relatório complete da pesquisa “Condutas Policiais e Códigos de Deontologia: um estudo comparado das relações entre a polícia e a comunidade” encontra-se disponível no sítio: http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/concurso_projetos.htm

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Descobrindo o Poder Discricionário

Antes de limitar e estruturar o poder discricionário da polícia é necessário reconhecer a sua existência. Samuel Walker (1995) mostrou que no caso dos EUA este reconhecimento só aconteceu a partir da década de 60. E foi apenas nos meados dos anos 70 que alguns departamentos de polícia daquele país tomaram medidas visando limitá-lo e estruturá-lo. O mesmo pode ser dito com relação ao Canadá e a Inglaterra. Portanto, a discricionariedade policial é uma “descoberta” relativamente recente.

Segundo Walker, a discricionariedade policial foi “descoberta” no fi nal da década de 60 através de uma pesquisa nacional conduzida pela American Bar Foundation sobre o sistema de justiça criminal. Os resultados da pesquisa evidenciaram o enorme grau de liberdade que os agentes do sistema criminal dispunham quando precisavam tomar suas decisões. Ficou evidente que as ações dos policiais, juízes, promotores e advogados públicos não se limitam ao texto da lei.

A partir daí, iniciou-se um longo e amplo debate sobre a conveniência e os problemas relacionados ao poder discricionário. Praticamente todos os estudiosos do sistema de justiça criminal passaram a reconhecer os efeitos perversos da discricionariedade. Desde então, a discussão sobre discricionariedade tem girado em torno das áreas onde é possível e necessário limitá-la, bem como sobre as formas mais adequadas de estruturá-lo.

As pressões para controlar o poder discricionário vêm de diversos lados. Há casos em que o poder judiciário desempenhou papel relevante na estruturação do poder discricionário. Nos EUA, as inúmeras decisões da suprema corte norte-americana têm afetado a atividade policial. Na maior parte, são decisões que dizem respeito aos procedimentos adotados pela polícia do que propriamente à legislação criminal. Desde a década de 60, a Suprema Corte federal tem tomado decisões sobre a constitucionalidade de determinadas práticas policiais, especialmente os interrogatórios.

Embora as decisões da suprema corte de justiça americana tenham servido para restringir o uso de interrogatórios nas investigações policiais, nem todas as decisões judiciais têm conseguido mudar determinadas práticas policiais. Nos últimos anos, a justiça federal dos EUA tem se manifestado sobre o uso de animais e instrumentos de alta tecnologia nas operações de busca e apreensão. Como apontam Skolnick e Fyfe (1993), o efeito dessas decisões têm sido bastante variado, uma vez que não são muito claras a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as decisões judiciais sobre conduta policial só têm efeitos concretos quando os departamentos de polícias decidem reformular suas normas de condutas.

Outra fonte de pressão para que os departamentos de polícia passem a regular melhor as atividades dos seus membros vêm das autoridades políticas. Normalmente pressionados pela sociedade civil (movimentos sociais, ativistas políticos e organizações não-governamentais) os governos determinaram às polícias que estabelecessem normas de condutas para lidar com situações específi cas. Esse foi, por exemplo, o caso da província de Ontário no Canadá. Lá, o governador, depois de intensa pressão do movimento feminista local, determinou a todos os departamentos de polícia sobre sua autoridade que estabelecessem diretrizes e normas de condutas que obrigassem a instauração de investigações policiais e processos judiciais nos casos de violência doméstica (parttner assault), mesmo quanto as vítimas decidem retirar as queixas.

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Finalmente, as pressões para a criação de normas de condutas podem vir do interior das próprias polícias. Uma vez que tais normas servem também para proteger os policiais, posto que estabelecem orientações claras sobre como proceder, sua implantação tem sido uma reivindicação dos sindicatos de policiais. Foi o caso do Código de Deontologia da Police Nationale francesa. Sua criação resultou das pressões do sindicato de policiais daquela instituição.

Estruturar o poder discricionário da polícia signifi ca defi nir as áreas e atividades que precisam de certa liberdade de ação, estabelecer seus limites e preparar os policiais para exercê-lo da forma mais adequada possível aos anseios e necessidades da população (Goldstein 2003). A estruturação do poder discricionário não é tarefa fácil, uma vez que não é possível estabelecer orientações sobre todas as atividades e situações que os policiais se deparam nas ruas. Na prática, somente algumas situações mais sensíveis têm sido objeto de atenção dos administradores de polícia.

Há inúmeras áreas onde os policiais exercem freqüentemente sua capacidade discricionária, a saber: a) na aplicação seletiva das leis; b) nas escolhas dos objetivos e prioridades para as políticas de segurança; c) na escolha dos métodos de intervenção e d) na escolha do estatuto legal a ser empregado. Para cada área, iniciativas vêm sendo tomadas a fi m de limitar e estruturar as escolhas feitas pelos policias.

a) Aplicação Seletiva das LeisA polícia é responsável por fazer cumprir todas as leis. Mas na realidade o policial

freqüentemente tem que decidir se irá multar ou não um motorista apressado, prender ou não um marido violento, proibir ou não uma festa barulhenta, para citar apenas algumas poucas situações. Ou seja, o policial pode de fato decidir aplicar a lei ou não.

Essa é uma questão bastante delicada. Juízes e legisladores, via de regra, têm sido muito relutantes em aceitar a aplicação seletiva das leis por parte das polícias. Isso implicaria em conferir às polícias poderes políticos (legislativos e judiciários) muito mais amplos do que hoje vem sendo admitido. Na maior parte dos países, a tendência tem sido negar tais poderes aos policiais, embora na prática eles os possuam.

Na última década, alguns departamentos de polícias passaram a tratar a questão mais abertamente. Ao admitir isso, puderam discutir as melhores formas de estruturar e limitar esta discricionariedade. Na área de controle de trânsito, alguns departamentos de polícia passaram a admitir esta liberdade de ação dos policiais e ao invés de negá-la buscou-se melhor estruturá-la através da criação de diretrizes claras sobre o assunto.É o caso do Toronto Police Service (Canadá) e da Metropolitan Police (Reino Unido).

b) Escolha de Objetivos e PrioridadesAs polícias são encarregadas de diversas funções, tais como patrulhamento

ostensivo, investigação criminal, controle de manifestações, atendimentos a emergências, fi scalização, controle de trânsito etc. Comandantes e chefes de polícia podem, e freqüentemente o fazem, priorizar determinados objetivos em detrimentos de outros. Não raro privilegiam o atendimento a um tipo de problema ou a uma comunidade específi ca. Tais escolhas são condicionadas por aspectos políticos, sociais e culturais.

Esta talvez seja a área onde o poder discricionário da polícia é mais reconhecido. Além disso, é amplamente aceita a idéia de que tais escolhas dizem respeito às políticas de segurança pública adotadas em determinado lugar. São escolhas de natureza política

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e não técnicas e, portanto, devem ser tomadas por um corpo político. Nesse sentido, podemos identifi car inúmeras iniciativas visando o estabelecimento de órgãos com responsabilidade sobre a elaboração das políticas públicas de segurança, bem como a ampliação da representatividade e da participação da população no seu processo decisório.

Nos países anglo-saxões (Canadá, EUA, Irlanda e Austrália), alguns departamentos de polícia têm implantado comitês de Polícia (Police Boards), compostos por membros da sociedade civil, da sociedade política e das polícias. Juntamente com as polícias e os governos locais, tais comitês são encarregados de ditar as políticas de segurança pública. No Brasil, os secretários de segurança pública, nomeados pelos governadores eleitos, são os responsáveis por estas tarefas. Tanto no caso dos países anglo-saxões quanto do Brasil, tais órgãos têm encontrado difi culdades para se impor junto às polícias. Em alguns casos eles não controlam o orçamento dos departamentos de polícia, não possuem autoridade de fato sobre os chefes de polícia e tampouco possuem capacidade técnica para planejar, elaborar e implementar políticas de segurança.

Além destes órgãos podemos verifi car o surgimento de conselhos comunitários de segurança. Normalmente estes conselhos são resultado da nova fi losofi a de poli-ciamento comunitário e destinam-se a abrir espaços para os cidadãos participarem da elaboração das políticas de segurança a serem implantadas nas suas comunidades.

c) Escolhas dos Métodos de IntervençãoOs policiais precisam decidir sobre como intervir. Podem usar ou não a força

que a lei lhes autoriza. Podem também aplicar uma multa ou cassar uma licença de funcionamento. Podem proibir o acesso a uma entrada ou broquear uma via. Enfi m, os policiais dispõem de um número razoável de opções para exercerem a sua autoridade.

Entretanto, a forma que os policiais utilizam para intervir nas condutas dos indivíduos e rotinas das comunidades têm grande repercussão sobre a vida das pessoas. Muitas vezes, embora autorizados pela lei, os policiais agem de forma violenta e arbitrária. Visando lidar com este problema, diversos departamentos de polícia passaram a elaborar normas específi cas para estruturar o uso da força policial.

Dado a alta repercussão e a gravidade do tema, em dezembro de 1979 a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a resolução 34/169 que prescrevia a adoção de Códigos de Condutas para todas as polícias do mundo. Além disso, foram estabelecidos padrões e normas de policiamento, conhecidos como Padrões Internacionais de Direitos Humanos (International Human Rights Standards). Para lidar especifi camente com o uso da força, foram aprovados em 1990 os Princípios Básicos Para Uso da Força e de Armas de Fogo Por Policiais. De forma geral, estas resoluções da ONU enfatizaram a idéia de que polícia é uma profi ssão e que toda profi ssão deve estabelecer seus próprios padrões de conduta (Das e Palmiotto 2002).

d) Escolha do Estatuto Legal a Ser EmpregadoNão raro, o policial deve decidir sobre a aplicação de um dentre vários estatutos

legais. Ele pode decidir aplicar uma lei municipal, estadual ou federal. O policial deve decidir se o incidente implica numa infração do código de posturas municipais ou num crime previsto no código penal. Bem como, pode enquadrar uma determinada ação como crime fi scal.

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Para lidar com esta questão, alguns países estabeleceram competências distintaspara suas agências de polícias. No Brasil, Argentina e EUA, por exemplo, existem polícias federais com competências exclusivas sobre determinados temas. A existência de diferentes agências policiais num mesmo território pode gerar confl itos de compe-tências. Há também países como o Canadá onde, em determinadas cidades, uma única polícia é encarregada de aplicar diferentes estatutos legais. Nestes casos, as polícias podem dispor sobre quanto aplicar um ou outro estatuto.

Nas duas situações, as autoridades políticas têm estabelecido normas claras quanto à competência e jurisdição das agências policiais. E quando não o fazem são fortemente pressionados pelas polícias a fazê-lo. Ou seja, está é uma área onde a discricionariedade policial é pouco incentivada.

COMO CONTROLAR O PODER DISCRICIONÁRIO?

Quando a discricionariedade policial ganhou visibilidade, a idealização do policial com mero cumpridor da lei deixou de servir de justifi cativa da falta de atenção para este problema. A liberdade de ação dos policiais passou a ser bastante criticada. Algo precisaria ser feito para lidar com esta excessiva discricionariedade. De forma geral, podemos identifi car dois tipos de iniciativas propostas para lidar com o problema: a) buscou-se melhorar o nível de instrução e o processo de formação dos policiais e b) estabeleceram-se códigos de deontologia e normas de condutas para orientar a atividade policial em situações especifi cas.

A demanda pela melhoria no nível instrução dos policiais surgiu no fi nal da década de 60 em algumas cidades dos EUA e Canadá. Relatórios de comissões governamentais, ativistas políticos e pesquisadores passaram a exigir que os departamentos de polícia modifi cassem seus critérios de recrutamento, a fi m de elevar o grau de escolaridade dos policiais. A idéia era que, uma vez que desempenham funções com alto grau de tomada de decisões, seria mais adequado contar com policiais altamente instruídos.

Entretanto, este tipo de demanda encontrou forte resistência entre os policiais mais antigos. Para eles, a educação universitária era insufi ciente para habilitar os novatos ao exercício da função. De fato, os estudos posteriores mostraram que a educação universitária não necessariamente implicou num padrão diferente de prática profi ssional (Lint 2004).

A partir dos anos 80, pode-se observar a tendência em alguns departamentos de polícia de incorporar na formação dos seus membros disciplinas de conteúdo mais humanista. Uma vez que os policiais desempenham inúmeras tarefas além das relacionadas à legislação criminal. A idéia era preparar melhor o policial para estas outras funções. Apesar dos esforços para adequar os currículos às tarefas da polícia, verifi cou-se que a simples inclusão de disciplinas não habilitava os policiais a desempenharem satisfatoriamente suas funções. Era necessários apresentar-lhes um conjunto de conhecimentos, habilidades e capacidades mais próximas as suas atividades diárias. Ainda hoje, não se sabe ao certo os efeitos destas mudanças sobre os julgamentos que os policiais fazem.

Outra iniciativa para lidar com a discricionariedade policial foi a criação de códigos de deontologia e de normas administrativas de condutas. Um dos primeiros códigos de deontologia que se impôs às profi ssões das armas foi o Código de Cavalaria, ancestral

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de muitos dos códigos policiais implantado nos países europeus (Charmoillaux, 1996). Os códigos de deontologia estabelecem as regras e as obrigações essenciais que se colocam aos policiais, inscrevendo-se num quadro jurídico de referência, que defi ne com precisão a natureza das modalidades da ação policial e determina os princípios e valores que devem nortear as atitudes e comportamentos dos policiais, dentro da corporação e em sua relação com o público.

A deontologia é, etimologicamente, a ciência dos deveres e objetiva, no presente contexto, fazer com que os policiais predisponham-se a aderir a um sistema de valores que associe efi cácia e respeito pelas pessoas e pelas liberdades fundamentais, dentro e fora do exercício de sua profi ssão. Convém lembrar que na maioria dos países em que o código de deontologia foi criado objetivou-se modifi car as concepções tradicionais da prática policial, sobretudo em relação à discricionariedade usada na prática profi ssional. O policial, ao contrário do que ocorre entre os profi ssionais liberais, desempenha suas funções demarcadas por uma rígida estrutura hierárquica, embora nem sempre essa estrutura seja considerada, principalmente nas situações de patrulhamento de rua.

Pelo contrário, em sua prática cotidiana o policial age freqüentemente fora da estrutura hierárquica, dispondo de grande autonomia de ação. Nessas situações, os policiais não necessariamente regem suas ações pelo regulamento, leis ou normas de conduta. Guiam-se, no geral, pelo que denominam de sua própria experiência. A existência dessa margem de iniciativa da ação do policial constitui-se exatamente o espaço que deve ser ocupado pela deontologia. Portanto, instituir um código de deontologia signifi ca reconhecer, concomitantemente, a responsabilidade e a autonomia do policial. Nas últimas décadas, observou-se o surgimento de códigos de deontologia policial em diversos países. Tal fenômeno inscreve-se às tentativas de melhor lidar com a questão do controle da atividade policial.

Os códigos de deontologia estabelecem princípios e valores que devem nortear as atividades profi ssionais. Entretanto, sem uma clara defi nição da forma como proceder cotidianamente, tais princípios e valores difi cilmente terão aplicação efetiva. Exatamente por este motivo, algumas polícias elaboram normas administrativas de conduta para complementar (ou por em prática) os conteúdos prescritos nos códigos de deontologia.

Um dos autores mais infl uentes sobre o tema, Kenneth Davis (1971), argumenta que algum tipo de discricionariedade nas atividades do sistema de justiça criminal é inevitável. Para ele, o problema não reside na existência da discricionariedade, mas sim na falta de controle sobre ela. Uma vez limitada e estruturada, pode passar a ser algo positivo relacionado ao exercício da profi ssão de polícia. Finalmente, Davis sustenta que a melhor forma de lidar com a discricionariedade é através da criação de normas administrativas destinadas a regular o exercício da atividade policial. Passados mais de trinta anos do lançamento do seu livro, suas conclusões de forma geral continuam válidas e bastante infl uentes.

A criação de normas administrativas permite um equilíbrio entre o que prescreve a legislação e o que realmente a polícia faz no seu dia-a-dia. Embora a legislação possa orientar algumas atividades da polícia, principalmente aquelas relacionadas ao controle da criminalidade, na prática há inúmeras questões não prescritas na lei que tem enorme repercussão no exercício da atividade policial. Pode-se dizer que a lei prescreve o que deve ser feito, mas não diz quase nada sobre quando e como fazer.

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A ausência de normas administrativas reguladoras da atividade policial faz com que a distância entre a lei e a atividade cotidiana das polícias seja muito grande. Para cobrir esta lacuna, freqüentemente cobra-se dos policiais que usem o “bom senso” ao tomarem suas decisões. Nestes casos, normalmente o que acontece é a descoberta pelo policial, ao sair do seu treinamento básico, que muito pouco daquilo que lhe foi ensinado parece aplicar-se às situações que ele encontra no cotidiano da sua atividade. Em geral ele aprende informalmente com os colegas mais antigos uma série de conhecimentos e práticas a serem empregados no dia-a-dia.

Tais conhecimentos e práticas informais podem ser, às vezes, ilegais. Apesar disso, é apenas com eles que os policiais irão enfrentar os desafi os da sua profi ssão. Estas práticas, quando não são ilegais, são de alguma forma, úteis às polícias. Do contrário, a atividade de policiamento seria ainda mais caótica do que nos parece hoje. Mesmo que haja um grande esforço dos chefes de polícia, estas práticas informais não deixarão de existir. Portanto não se trata de acabar com as práticas informais, mas sim reconhecê-las para que possam ser abertamente submetidas à apreciação crítica da sociedade.

O desafi o atual das instituições policiais que já implantaram normas administrativas para regular algumas das atividades dos seus membros é evitar que estas normas tornem-se meras formalidades. Ou seja, evitar que a discricionariedade migre da aplicação da lei para o cumprimento das normas administrativas. Em muitos casos é exatamente isso que acontece, uma vez que a simples existência de uma norma não garante o seu cumprimento.

Uma norma é uma diretriz formal destinada a orientar condutas individuais. Para tal, ela precisa ser coercitiva e específi ca. Coercitiva porque necessita obrigar os membros da instituição a adequarem-se às condutas prescritas. Específi ca, uma vez que as normas genéricas possibilitam diferentes interpretações sobre o seu conteúdo, deixando de uniformizar as condutas individuais.

Uma vez que são internas à instituição, somente a adesão dos membros da polícia, principalmente dos mais graduados, à idéia de que as normas administrativas são importantes instrumentos de gestão das instituições policiais, poderá fazer com que elas não se tornem meras formalidades. Do contrário, o peso das práticas informais e a relutância dos policiais mais graduados poderá torná-las sem efeito.

Para que as normas administrativas limitem e estruturem de fato a discricionariedade policial, é necessário adequar o sistema de treinamento e de avaliação das condutas individuais. É preciso estabelecer um sistema de avaliação que faça os policiais mais responsáveis pelos seus atos. A estruturação do poder discricionário aumenta também a capacidade de controle dos administradores de polícia sobre o pessoal operacional. Ou seja, facilita a supervisão da atividade policial. Além disso, a estruturação também permite a melhoria do treinamento policial. Este passa a ser mais específi co, no qual os policiais recebem orientações claras e objetivas sobre como proceder nas situações que encontrarão na prática da sua profi ssão.

COMPARANDO OS CÓDIGOS DE DEONTOLOGIA

Para entender melhor a natureza e o signifi cado dos códigos de deontologia, decidimos comparar os códigos utilizados em duas diferentes instituições policiais: a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e o Ottawa Police Service (OPS) as quais

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foram escolhidas por se tratarem de duas instituições bastante diferentes, no que diz respeito a suas formas de organização institucional. Optou-se por comparar instituições policiais já que é a partir delas que as atividades de policiamento são desenvolvidas. Buscou-se explorar o contraste para, através dele, avançar no entendimento de novas categorias de análise.

Foram considerados apenas aqueles estatutos que tem força de lei, uma vez que o caráter coercitivo é característica essencial dos códigos de deontologia. O eixo condutor do estudo foi a análise das relações polícia/ sociedade e dos mecanismos de controle social que regulam a atividade do policial, em sua dupla vertente, da função e da profi ssão. Privilegiou-se o controle interno buscando-se saber em que medida este interfere na prática diária do policial e nas formas através das qual esta práticaé avaliada.

A pesquisa procedeu por meio de duas estratégias: a análise dos documentos acima mencionados e entrevistas com informantes-chaves nas instâncias de: a) direção de ensino, b) formação/ treinamento e c) avaliação das polícias pesquisadas. A documentação disponível foi trabalhada através da análise de conteúdo, a partir da seguinte categorização (que abarca o conteúdo dos documentos, seu grau de especifi cidade/generalidade e seu caráter restritivo ou não face à discricionariedade: a) defi nição de termos, considerações iniciais e considerações fi nais; b) organização interna; c) deveres, direitos e proibições; d) procedimentos profi ssionais e e) outros.

Como “defi nição de termos, considerações iniciais ou fi nais” foram classifi cados aqueles artigos que traziam conceitos gerais e defi nições que serviriam de base para a interpretação dos demais artigos. Por exemplo, artigos defi nindo ou diferenciando policiais e funcionários civis. Também foram classifi cados nesta categoria os conteúdos que tratam da competência e da abrangência de cada documento.

Muitos conteúdos foram classifi cados como “organização interna”. De forma geral, os que tratam da organização e da distribuição de competências dos diferentes órgãos e seções de cada organização policial; os que descrevem a estrutura (composição e competência) de determinada unidade policial; os que tratam das relações entre estas diferentes unidades.

Na categoria “deveres, direitos e obrigações” foram incluídos os itens que descrevem os direitos e prerrogativas dos policiais em geral. Também os conteúdos que descrevem as especifi cidades de determinadas funções policiais. Nos documentos brasileiros e canadenses foram encontrados artigos tratando dos direitos trabalhistas dos policiais (férias, remunerações e licenças) e conteúdos sobre direitos e prerrogativas judiciais. Os itens referentes às obrigações funcionais dos policiais foram classifi cados desta forma.

Os “procedimentos profi ssionais” dizem respeito a conteúdos relativos à descrição dos procedimentos para o exercício da profi ssão de polícia. Nesta categoria estão desde a previsão para o estabelecimento de procedimentos profi ssionais até a descrição de procedimentos específi cos. Finalmente, foram classifi cados como “outros” os conteúdos que não puderam ser classifi cados em nenhuma das categorias anteriores.

Os artigos ou seções foram a unidade de análise considerada. Embora, freqüen-temente os artigos ou seções possuam inúmeros incisos ou alíneas, os mesmos foram considerados no seu conjunto e não separadamente. Cada unidade de análise foi analisada separadamente por pelo menos dois pesquisadores. Ao fi nal do processo, compararam-se todas as análises realizadas. Os itens que apresentaram divergências

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foram revistos a fi m de dirimir os confl itos de interpretação e construir coletivamente uma interpretação sobre os documentos analisados.

Distrito Federal: códigos de deontologia sem normas de conduta

No Brasil, tradicionalmente as polícias militares estiveram ligadas ao Exército. Em alguns períodos históricos elas estiveram sobre o controle direto do Ministério do Exército. Esta identidade entre policiais e militares teve profundas conseqüências no desenvolvimento da deontologia policial. Muitas polícias militares adotaram (ou adotam) o Estatuto dos Militares, elaborado pelas Forças Armadas. Bem com, utilizam o Regulamento Disciplinar do Exército e inúmeros manuais empregados no treinamento dos militares do Exército.

A partir da última década, está situação começou a mudar em alguns estados brasileiros. Seguindo a tendência mundial, algumas polícias militares brasileiras criaram seus próprios códigos de deontologia e outras iniciaram estudos para a elaboração de manuais de conduta, como por exemplo, iniciativas verifi cadas em São Paulo, Minas Gerais e Goiás, visando à criação de Códigos de Deontologia e o estabelecimento de Procedimentos Operacionais Padrão (POP’s).

Este foi, igualmente, o caso da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) que estabe-leceu o Estatuto da Polícia Militar do Distrito Federal, prescrevendo as responsabilidades, os direitos e os deveres de todos os membros desta instituição policial. Em 1997, foi criado também o Código de Ética Policial. Neste código estão descritos os princípios e valores que deverão orientar a atividade de policiamento e as condutas dos policiais. Os conteúdos do Estatuto e do Código de Ética evidenciam seu caráter formal, geral e pouco restritivo quanto às orientações que disponibilizam para a conduta policial.

Dos 145 artigos do Estatuto, os conteúdos relativos a procedimentos profi ssionais que regulamentam a relação da polícia com a sociedade, não estão simplesmente contemplados. As prescrições, de caráter normativo, concentram-se, fundamentalmente sobre organização interna da polícia, defi nições gerais e direitos e obrigações dos policiais militares.

Os artigos que tratam dos aspetos organizacionais da instituição são os mais nume-rosos. Estão, sobretudo, ligados à hierarquia e à disciplina e podem conter instruções sobre a relação do policial com seus pares e superiores. A seguir vêm os artigos com conteúdos administrativos e de considerações iniciais ou fi nais. Os deveres, os direitos e as proibições, mais diretamente ligado à postura, que em tese poderiam trazer prescrições de natureza moral ou profi ssional, ocupam o terceiro lugar na freqüência de artigos do estatuto. Pela sua análise, percebeu-se que os princípios norteadores da atividade profi ssional ocupam aí posição secundária, quando comparados a deveres e obrigações em formulações de natureza mais geral.

A análise dos assuntos tratados no Estatuto apenas nos dá uma pista sobre seu caráter geral e sua fi nalidade. O Estatuto é um documento centrado nos deveres ligados à disciplina e à hierarquia, estando fortemente impregnado da cultura hierárquica do exército. Aliás, hierarquia e disciplina formam o pano de fundo que organiza o conjunto do documento. O grau de generalidade de sua formulação torna bastante difícil, senão impossível traduzi-los em subsídios para a formulação de normas de conduta, de procedimentos específi cos, profi ssionais. Seus deveres são, na sua maioria, os deveres

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do cidadão. Observe-se a título de exemplo, o artigo 29 da sessão que trata da ética policial militar:

Art 29, Inc. I – amar a verdade e a responsabilidade, como fundamentos da dignidade pessoal;Art 29, Inc. II – exercer, com autoridade, efi ciência e probidade, asfunções que lhe couberem em decorrência do cargo;Art 29, Inc. III – respeitar a dignidade da pessoa humana.

Tal conteúdo nada teria de muito grave se, no domínio dos procedimentos profi s-sionais, o legislador detalhasse melhor as especifi cidades para a atividade policial que daí poderia decorrer, mas não é o que acontece. Da mesma forma, a tradução destes princípios norteadores em normas ou manuais práticos orientadores de conduta seria uma maneira de compensar o caráter geral dos deveres policiais, mas aí também a lacuna é enorme.

Gráfi co 1Estatuto da PMDF: conteúdo dos artigos

Gráfi co 2Código de Conduta Ética da PMDF

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Definição deTermos

Organização Deveres eDireitos

ProcedimentosProfissionais

Outros

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Definição deTermos

Organização Deveres e Direitos ProcedimentosProfissionais

Outros

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O Estatuto é um documento centrado nos deveres ligados à disciplina e à hierarquia, estando fortemente impregnado da cultura hierárquica. O grau de generalidade de sua formulação torna bastante difícil, senão impossível traduzi-los em subsídios para a formulação de normas de conduta profi ssionais. Seus deveres são, em sua esmagadora maioria, os deveres do cidadão.

Situação semelhante pode ser constatada pela leitura dos 09 artigos que compõem o Código de Ética, como mostrado no gráfi co número 02. O conteúdo contempla deveres do cidadão mais do que do profi ssional.

Chama também a atenção o fato de o código se defi nir como um código de ética Profi ssional e não se referir à profi ssão policial.3 Nenhum parágrafo deste artigo trata de modo específi co da relação do policial com a sociedade. Fato que chama a atenção, posto que se trata de um código de deontologia policial. O artigo 03, que trata do desempenho das funções, diz ao policial que ele deve:

Art 3º, Inc. I – se esforçar para atuar oportunamente, sem permitir que seus sentimentos (prejudiciais), animosidade ou amizades infl uam em suas decisões;

Art 3º, Inc. II – não ceder ante o delito e perseguir incansavelmente os delinqüente, fazendo cumprir a lei com cortesia e de forma apropriada, sem temor nem favoritismo, malícia ou má vontade; sem empregar força ou violência desnecessária, nem aceitar gratifi cações ou suborno;

Art 3º, Inc. III – lutará constantemente para lograr estes objetivos e ideais: de dedicar a Deus, à Pátria e a profi ssão que houvera escolhido e fazer cumprir a lei com o sacrifício da vida se for necessário, como um dia jurou ante nossa Bandeira Nacional.

Aqui, onde o específi co da função policial poderia remeter de modo direto à questão de prescrições mais claras e objetivas quanto ao uso da força, permanece o caráter vago. Expressões como “atuar oportunamente”, “cumprir a lei com cortesia”, “sem empregar força ou violência desnecessária”, “se dedicar à profi ssão escolhida” precisam ser defi nidas de forma clara e objetiva. Entretanto, isso não é feito nem no Código e tampouco nos manuais em uso na PMDF. As possibilidades de avançar subsídios para, num manual específi co, estruturar o espaço da discricionariedade e seu uso, são assim desperdiçadas.

Dentre os termos selecionados para fi gurarem em letras maiúsculas não está contemplado o que se refere à profi ssão. Os princípios doutrinários, onde se inscrevem os valores e a fi losofi a da atuação profi ssional, são apresentados no capítulo III em um artigo construído por 23 parágrafos, que mantém o nível de generalidade mencionado anteriormente, indo desde a observância da boa educação, da camaradagem, do espírito de cooperação, até às exortações que incidem sobre a vida privada do cidadão policial militar, tratando de itens como ‘segurança da comunidade’, ‘prevenção da ordem pública’, ‘zelo pela sua competência exclusiva, na prevenção e manutenção da ordem pública’sem, no entanto defi nir o que isto signifi ca. No capítulo IV, sobre o valor policial, mistura-se de modo abrangente e vago prescrições de conteúdos e

3 Grifos nossos

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de conseqüências bastante diferenciadas, tais como ‘o patriotismo’, ‘o civismo,’ e ‘o aprimoramento técnico profi ssional,’ e ‘a dedicação na defesa da sociedade’.

O capítulo 05 intitula-se “Princípios Consagrados de Ética profi ssional para o Policial Militar”. Na forma de defi nir a responsabilidade no trabalho, explicita-se a proteção e o socorro à comunidade, que se concretiza, no entanto, pela defesa de suas leis e, mais especifi camente, da Constituição Federal. Ou seja, mais uma vez, a relação com a comunidade é apresentada através da proteção às leis.

No Estatuto, tanto quanto no Código, há uma enorme lacuna no tocante a procedimentos profi ssionais. O Manual Básico de Policiamento, utilizado no treinamento básico dos policiais, não contém normas de condutas específi cas para os policiais e sim uma descrição dos principais tipos de policiamento utilizados no Distrito Federal: policiamento ostensivo, policiamento de trânsito e rodoviário, policiamento de guardas, policiamento escolar e policiamento feminino. No que diz respeito ao uso da força, não diz como os policiais deveriam proceder, não contém nenhuma prescrição sobre quando e como usar o armamento. O mesmo pode ser dito quanto à forma de abordagem policial, da conduta com presos, da perseguição motorizada e do tratamento da violência doméstica.

Os manuais existem, mas não fazem parte do dia-a-dia da prática policial como orientadores de condutas, não se incorporando como valores e padrões de comportamento, defi nidores de posturas profi ssionais. Enquanto não se estruturar a profi ssão e o conceito de profi ssionalismo a partir de valores, saberes e práticas que orientem a conduta policial, sobretudo no momento em que a ação rápida exige os condicionamentos necessários, tenderão a prevalecer o senso comum e o bom senso, situação que remete ao arbítrio do ator a decisão sobre a melhor forma de agir, no momento do exercício da profi ssão.

Ontário: Códigos de Deontologia com Normas de Conduta

No Canadá, diversas forças policiais passaram a contar com códigos de deontologia, a partir da década 1940. Naquele país, os códigos não necessariamente se restringiram a uma instituição policial específi ca. O caráter federativo do seu sistema político e o fato de algumas das principais organizações policiais estarem sob controle dos municípios são aspectos importantes do sistema policial canadense. Em função disso, algumas províncias estabeleceram autoridades responsáveis pela coordenação e controle dos serviços de polícia: o Solicitor General.4 Para tal, estas autoridades se valem dos códigos de deontologia e de regulamentações administrativas sobre as condutas policiais.

É o caso da província de Ontário, onde todos os serviços policiais ali existentes (municipais e provinciais) devem seguir o que estabelece o Police Services Act (PAS), criado em 1990. Nele, além dos princípios norteadores das atividades policiais também estão previstas as responsabilidades das polícias e dos seus membros. Além disso, o código de deontologia canadense regula as relações de trabalho dentro das organizações policiais, bem como as formas e procedimentos apresentar queixas e reclamações sobre a conduta profi ssional dos policiais.

4 No Brasil, cabe aos secretários de segurança pública exercerem boa parte das funções políticas e administrativas do Solicitor General.

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O Police Services Act foi criado para substituir o Police Act de 1946, a fi m de tratar mais adequadamente as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas nas últimas quatro décadas. O PSA buscou fortalecer as relações entre a polícia e a comunidade, sendo bastante enfático sobre a necessidade de parceria com a comunidade. Dentre as várias mudanças introduzidas no novo código de deontologia destaca-se a ênfase na natureza dos serviços prestados à comunidade e na necessidade de aumentar o controle da atividade policial.

O novo código estabelece que os chefes das polícias municipais implementem a fi losofi a de policiamento comunitário, voltada para a solução de problemas (community-oriented policing). De forma geral, o PSA confi rma a tendência, verifi cada desde a década de 80, de enfatizar a necessidade de aproximar polícia e comunidade. Não por acaso, a expressão serviço foi incorporada ao título do novo código canadense.

Para melhorar o controle sobre as atividades policiais, dois novos mecanismos são criados pelo PSA. O artigo 113 estabelece que todos os serviços de polícia na província de Ontário deverão implantar uma unidade especial de investigações Special Investigations Unit (SIU). Cabe a esta nova unidade conduzir investigações sobre os desvios de condutas que por ventura forem cometidos por policiais. Esta unidade especial deverá reportar-se diretamente ao Ministério Público de Ontário.

Além disso, o Police Services Act passou a uniformizar e detalhar mais os proce-dimentos a serem seguidos para lidar com as queixas e reclamações dos cidadãos arespeitos dos serviços prestados pela polícia. A parte IV do PSA estabelece os procedi-mentos a serem seguidos por todos os serviços de polícia. Também trata das funções e deveres dos chefes de polícia, bem como dos direitos e deveres dos policiais acusados.

Outra novidade do código canadense foi a criação de um órgão de controle externo para supervisionar as atividades de todos os membros dos serviços de polícia de Ontário. A seção 21 criou a Ontario Civilian Commission on Police Services (OCCPS). A comissão serve como instância quase judicial destinada a servir como corte de apelação dos processos disciplinares conduzidos por cada serviço de polícia. Ela pode conduzir suas próprias investigações, requerer investigações especiais dos serviços de polícia, bem como rever as decisões dos chefes de cada departamento de polícia.

Da mesma forma que o código de conduta ética do DF, o Police Services Act é carente de conteúdos voltados a procedimentos, como indicado gráfi co de número 03, e o gráfi co comparativo entre eles. Os conteúdos relacionados a questões organiza-cionais são os mais freqüentes seguidos daqueles que tratam dos direitos, deveres e obrigações dos policiais.

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Gráfi co 3Police Services Act

Gráfi co 4Comparação entre os Códigos

Gráfi co 5Conteúdo dos artigos – composição dos códigos (%)

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De modo semelhante ao Estatuto do Distrito Federal, o código de Ottawa não estabelece de forma clara como os policiais deveriam exercer suas funções. Apenas fornece os princípios que deveriam nortear o trabalho dos policiais. O artigo 42 do Police Services Act estabelece os deveres dos policiais:

Art 42 (a) – preservar a Paz; Art 42 (b) – prevenir crimes e outras ofensas e prover assistência e encorajamento para que outras pessoas o façam; Art 42(c) – assistir as vítimas de crimes;Art 42 (d) – prender criminosos e outras pessoas que possam legalmente ser postas em custódia; Art 42 (f) – executar mandatos que possam ser executados por policiais e desempenhar suas obrigações relativas; Art 42 (g) – desempenhar as obrigações legais que o chefe de polícia lhes destinar.

Estas obrigações são por demais vagas para orientar as condutas policiais. Nadadizem sobre como “prevenir crimes”, “assistir vítimas”, “prender criminosos”, “executar mandatos” ou “desempenhar obrigações legais”. Entretanto, e esta é uma distinção importante, face a estas lacunas, em 1999, o Solicitor General de Ontário estabeleceu o Adequacy and Effectiveness of Police Services. A análise dos seus conteúdos evidencia uma preocupação maior com o estabelecimento de procedimentos profi ssionais e normas de condutas policiais, como mostra o gráfi co 6.

Gráfi co 6Adequacy and Effectiveness of Police Services – conteúdo dos artigos

Uma vez que compete às autoridades municipais organizar e controlar seus próprios serviços de polícia, o Adequacy and Effectiveness estabelece de forma clara e obrigatória (mandatory) que os chefes de polícia elaborem normas e procedimentos profi ssionais sobre determinados assuntos. Ou seja, a autoridade de segurança pública da província de Ontário exige que as policiais municipais implantem normas de condutas sobre uma serie de assuntos.

Entretanto, caberá aos municípios determinar o conteúdo destes procedimentos. Para se ter uma idéia, o Ottawa Police Service conta com mais de uma centena de normas de condutas e procedimentos policiais (policies e guidelines). Tais normas e

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procedimentos tratam dos mais variados assuntos como uso da força policial, violência doméstica, controle de tráfi co, perseguições motorizadas e proteção à testemunha. Tradicionalmente os serviços de polícia de Ontário adotam as mesmas normas de condutas e procedimentos profi ssionais. Esta medida facilita o treinamento básico dos policiais cuja primeira parte é unifi cada, como indicado, mais abaixo.

COMPARANDO REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Com relação às entrevistas, no Distrito Federal foram ouvidos dirigentes, instrutores e alunos da Academia de Polícia e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, ofi ciais da Divisão de Ensino e da Corregedoria de Polícia Militar. Em Ottawa, foram entrevistados policiais da Professional Standards Unit, da Policy Development Unit e do Professional Development Centre.

Os conteúdos das respostas apontam para situações de convergência acentuada em relação a alguns dos tópicos tratados pela análise documental, assim como indicam se não divergências, pelo menos concepções diferenciadas entre as duas cidades, no tratamento de questões centrais face à atuação do policial em sua relação com a sociedade.

Dentre as principais distinções estão as que dizem respeito às concepções acerca da diferença entre violência policial e uso da força. Também diferem quanto às representações relacionadas à discricionariedade, embora neste segundo aspecto as convergências ainda sejam maiores do que as divergências, conforme se percebeu a partir das representações sociais dos policiais ouvidos.

Distinguindo Violência Policial de Uso da Força

No contexto brasileiro, mais do que a clara distinção entre as duas situações, boa parte dos depoimentos, insiste, por um lado, na necessidade de incrementar a educação e o treinamento como forma de evitar a violência policial; por outro, ressalta a enorme difi culdade em traduzir para a atividade prática os princípios de cunho mais teórico, disponíveis, seja em manuais de procedimentos operacionais, seja através da cultura oral, como atestam alguns depoimentos. Em Ottawa a ênfase repousa, sobretudo, na possibilidade de o policial justifi car seus atos, apoiado em leis ou códigos aos quais a ação empreendida é referida. A ação que pode ser assim justifi cada não é percebida como violência policial.

No Distrito Federal, percebe-se um misto de afi rmações calcadas no bom senso, na busca de defi nições extraídas de situações concretas – através de exemplos e de raciocínio circulares do tipo ‘até onde a lei assegura é uso da força’ confi gurando a tautologia que, por vezes, preside a argumentação. Ao lado disso, é possível também perceber que, na maioria das situações do dia-a-dia, cabe ao policial decidir o quanto de força física ele vai investir, antes ou depois da imobilização, com ou sem testemunhas, em situação de risco, ou não.

Se a autonomia presente neste contexto empírico fosse sistematizada em normas, a regulamentação e a padronização talvez encontrassem espaço para se impor. Idéias como as de proporcionalidade e adequação surgem com freqüência nas entrevistas, assinalando que daí se poderia extrair padronizações de conduta. O ordenamento

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sistematizado através de situações problemas pode ser um caminho frutífero já que incorpora a experiência, um saber prático do qual se poderia, certamente, retirar procedimentos concretos de atuação. Além de evitar a proliferação de formas múltiplas de ação, as quais, ainda que centradas na experiência não chegam a se traduzir em processos estruturantes de uma prática profi ssional.

Mesmo quando se insiste na questão da legalidade como um divisor de águas entre violência policial e uso da força legítima, a afi rmação não se faz acompanhar da referência a um ordenamento específi co direcionado ao tema, produzido pela corporação. Ao contrário, o mais longe que vão os informantes nesta direção é a referência à legislação federal, a qual necessariamente tem que ser referência para qualquer cidadão, militar ou civil. Valeria a pena insistir em um aspecto: não se está afi rmando que não exista nenhuma norma ou manual prático de conduta mas sim que eles, quando existem, não têm, na maioria das vezes estatuto de lei (são, no mais das vezes, obras de referência) nem são orientadores na/da prática policial. Nas entrevistas realizadas, não se conseguiu, de imediato, acesso a estes manuais, o que se coloca como um sinalizador a apontar que eles não acompanham o policial em seu trabalho diário.

A difi culdade na articulação entre a teoria e a empiria não passa despercebida aos que estão atuando na área de formação do policial. Fica claro, sobretudo, a difi culdade em mudar a cultura institucional que, até bem pouco tempo, defendia precisamente como valor o que hoje tende a ser percebido como violência. Este ‘gap’ou defasagem geracional é, sem, dúvida uma variável que vale a pena explorar, pois ela está na raiz de algumas difi culdades em mudar a cultura institucional – de um policiamento centrado na repressão para os modelos mais atuais de policiamento, centrados na prevenção.

Na questão da formação e do treinamento, que é central para a idéia de uma polícia profi ssional, os conteúdos relativos à utilização da arma de fogo revelam a ausência de padronização: predominam técnicas diferenciadas, a critério do instrutor e, o que é mais crucial, fi losofi as – ou doutrinas, como se diz no âmbito da instituição – também distintas.

Os conteúdos ligados ao uso da força e, com menor intensidade, à discricionariedade são os que maiores diferenças parecem trazer quando se compara as representações sociais dos policiais do Distrito Federal e de Ottawa. Chama, particularmente, a atenção, em Ottawa, a referência explícita aos códigos: o Código Penal em primeiro lugar – até aí nada de distinto do que ocorre no DF – mas também a referência ao PSA e aos procedimentos de rotina, que incluem a justifi cação, através de relatório escrito, detalhando o porque de tal ou qual intervenção realizada na atuação prática. Aliado a estes documentos observa-se que a afi rmação sobre a utilização do ‘Modelo de uso da força de Ontário’, é recorrente nos relatos e se constitui em prescrição que tem força de lei, à qual o policial terá, portanto, que se ater e com base na qual terá que defender, em caso de julgamento por eventuais desvios de comportamento. A idéia de responsabilização (accountability), com fundamento no PSA e no Código Criminal está presente em vários dos depoimentos analisados.

Discricionariedade: sinal positivo ou negativo?

Convidados a se situarem face à discricionariedade, os policiais de Ottawa, assim como os entrevistados do Distrito Federal têm alguma difi culdade em se posicionar

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claramente a respeito do caráter positivo ou negativo desta que é uma característica não apenas da sua profi ssão, mas de várias outras.

Inquirido sobre como lidar com a discricionariedade o policial apresenta, quase invariavelmente uma resposta defensiva, como se estivesse subtendido que falar em discricionariedade é mencionar um defeito, uma lacuna, uma arbitrariedade em sua forma de atuar que merece recriminação. Em outras palavras, é como se os entrevistados se defendessem por se sentirem (ou antes mesmo de se sentirem) acusados de algum deslize. Afora estas coincidências, as representações sociais dos policiais acerca da discricionariedade e de como lidar com ela mostram algumas distinções nas formas como são elaboradas em ambas as instituições analisadas.

A fragmentação e a diversidade de respostas apontam, no caso do Distrito Federal, para uma ausência de procedimentos padronizados capazes de estruturar a discricionariedade. Sabe-se da difi culdade e da impossibilidade de tipifi car o imprevisível, de normatizar o acaso. O que não signifi ca que não se possa reconstituir e organizar a própria experiência de modo a constituir um conjunto de ‘situações-problema’ ou ‘típicas’ a partir das quais se estruturar práticas. A insistência nas normas e nos procedimentos contrasta com a não disponibilidade destes no dia-a-dia do trabalho policial. Quando solicitados a indicar as normas que orientam a prática policial, as respostas apontaram para os ordenamentos legais que regem a vida dos civis, sem fazer referência a algo de mais específi co; não se está supondo que seja desejável uma receita pronta para cada situação, mas que possa ser buscada uma padronização que aponte ao policial, em cada contexto, o espectro possível de variações na conduta e, mais do que isto, a que parâmetros legais tal ou qual ação e/ou intervenção está submetida. O ator social, sobretudo quando se trata de um agente de segurança pública, precisa estar consciente em relação ao ordenamento legal no qual se enquadram suas ações e /ou desvios de conduta.

No caso de Ottawa, além do procedimento rotineiro de relatórios escritos, detalhando e justifi cando ações da atividade policial, parece ressaltar dos depoimentos o fato de que discricionariedade é coisa para assuntos menores, transgressões no trânsito, ou coisas do gênero. Nas demais situações, o policial não deve (ou, uma nuance interessante, não precisa) usar de discricionariedade; ele aplica a lei. O que, em última instância, não deixa de ser uma forma velada de negar a discricionariedade, de não responsabilizá-la pela prática policial em momentos cruciais de sua atuação. Na prática, no entanto, o policial tem, de fato, uma margem de liberdade para tomar decisões. Assumir sua existência poderia ser mais produtivo do que a simples negação da discricionariedade.

Profi ssionalização

Embora, em termos gerais, admitam que a profi ssionalização dependa do treinamento e da formação, os entrevistados, na polícia militar do DF, não apontam seus conteúdos. Por exemplo, em uma corporação de cerca de 15 mil policiais, como é a do Distrito Federal, é impossível poder se afi rmar que 3.000, 4.000 ou 5.000 deles tenham tido a mesma formação quanto ao uso de arma de fogo.

A idéia de profi ssão supõe que se tenha consenso, por exemplo, sobre o que é ser policial. Questionados a este respeito, alguns respondentes defi nem o policial pelo aspecto moral: pela metáfora do sacerdócio e da missão. Outros encaram-na como um

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trabalho, como qualquer outro. Para outros ainda, a metáfora é a do mágico, signifi cando ser o policial aquele que faz o possível e o impossível, o esperado e o inesperado, numa alusão, indireta e implícita é verdade, à ausência de rotinas profi ssionais.

Alguns admitem que a natureza dessa função faz do policial alguém diferente do cidadão comum – pois cumprir sua função nesse caso pode ser sinônimo de matar ou morrer – ele afi rma que, em certo sentido, o poder sobre a vida e a morte é o diferencial entre ser policial ou civil: mata e morre em nome da lei mas também acima da lei e contra a lei. A consciência das lacunas, das necessidades em matéria de formação existe. Falta, entretanto, traduzir essas necessidades ressentidas, em critérios organizadores de padrões de conduta e em políticas de segurança pública.

No contexto canadense, há, em Ottawa, a preocupação com um levantamento continuado dos problemas existentes, os quais são submetidos a um processo de discussão na corporação, com o objetivo de superá-los. Em seguida, maior efetividade do Código de Ética, que padroniza princípios. Um aspecto importante, segundo alguns depoimentos, é a profundidade do processo de recrutamento, incluindo uma boa investigação do candidato, de sua família e de sua vida anterior ao processo de seleção. Este recrutamento é seguido de um curso no Ontario Police College (equivalente à Academia de Policia), praticando uma metodologia de ‘resolução de problemas’, que é o ‘Performances Manegement Cases’, e atuando a partir de um constante processo de supervisão, requisito que se articula, em termos de efi cácia, à responsabilização (accountability, feita por escrito e atingindo não só o policial autor de um dado ato mas seu superior hierárquico. Os ‘performance management cases’ estão referidos a situações concretas – problemas reais acontecidos na corporação- mas mantidos no anonimato, em termos de seus autores, metodologia que parece facilitar a melhor visualização do problema.

A função policial

A diferença entre profi ssionalização e função não é de fácil percepção, para a maioria dos entrevistados, sem grandes distinções entre os depoimentos colhidos no Distrito Federal e em Ottawa. No primeiro caso, há os que enfatizam a função de proteger o cidadão, voltando um pouco à questão da missão ou à questão do policial como relações públicas; há ainda aqueles que representam o ‘ser policial’ como algo próximo a ser pai, médico, e até mesmo, psicólogo, sociólogo, características todas elas longínquas de um perfi l profi ssional.

No segundo caso, nada de radicalmente diferente: os depoimentos admitem que a função policial compreende de tudo um pouco: proteger a comunidade, servir e proteger o público, proteger e fazer cumprir as leis, educar, manter a paz, preservar a vida e a propriedade o que, à semelhança do contexto brasileiro, distancia mais do que aproxima as representações sociais que o policial canadense faz de si mesmo do que se poderia defi nir como um perfi l profi ssional.

As entrevistas sinalizam múltiplas indagações e apontam para a necessidade de se aperfeiçoar cada vez mais o conhecimento das representações como uma das formas possíveis de se avançar o conhecimento dos sentidos e conteúdos das práticas que fazem do policial alguém, que de uma forma ou de outra, convive diariamente com a violência e precisa se instrumentalizar para enfrentá-la dentro da observância

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dos direitos humanos em todos os momentos de sua prática, a qual comporta, na maioria das vezes, uma relação direta com a sociedade.

Refl etindo sobre os temas da profi ssionalização e da função policial, e sobre como são abordados pelos entrevistados, um outro tema vem à tona: a multiplicidade de concepções, as defi nições que insistem no aspecto emocional, na responsabilidade da missão, dentre outras coisas, apontam para uma lacuna identitária, articulada à falta de reconhecimento social que produz, por sua vez, um défi cit de auto- reconhecimento, como já apontado neste último capítulo. No contexto brasileiro, tal lacuna está, certamente, articulada a esta representação que alguns policiais fazem de si mesmos como alguém que trata, trabalha, lida como o “lixo” da sociedade. Poder-se-ia, talvez, falar de um bloqueio face ao processo de construção de uma identidade coletiva, que pode, no limite, impossibilitar que estes indivíduos se auto-reconheçam como sujeitos de uma profi ssão.

No contexto canadense embora também não se tenha estruturado de modo conclusivo a idéia de profi ssão já se poderia, talvez, falar da existência desta dimensão ‘serviço’ a qual, traduzido em serviço para a sociedade, não deixa de ser um passo importante para que se possa falar da construção da profi ssão policial.

RECOMENDAÇÕES GERAIS

A forma de utilização da força tem conseqüência direta sobre a legitimidade de que goza a polícia junto à população. Para lidar com esta questão é necessário criar e aperfeiçoar mecanismos de controle do uso da força. Existem vários mecanismos para este controle. Eles não são mutuamente excludentes, ao contrário, se complementam (capítulo 2). Entretanto, qualquer destes mecanismos só terá efi cácia se contar com uma forte adesão dos policiais ou, pelo menos, dos seus dirigentes. Portanto, recomendamos que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de controlar o uso da força policial.

De acordo com as pesquisas realizadas sobre o assunto, a criação e adoção de códigos de deontologia e normas administrativas têm se revelado um dos mecanismos mais efi cazes para controlar do uso da força. À exemplo da PMDF, algumas polícias brasileiras já contam com códigos de deontologia, entretanto, carecem de normas de condutas que estruturem melhor a discricionariedade policial. Recomendamos a elaboração de normas de conduta policial.

O treinamento é uma das formas utilizadas pelas polícias para capacitar seus membros ao emprego adequado da força. Entretanto, sem a adoção de normas claras que orientem as condutas policiais, os esforços despendidos no treinamento serão inócuos. Além disso, é importante considerar a necessidade de uniformização e de continuação do treinamento. Sugerimos que é necessário adequar o treinamento às necessidades do policiamento.

Os esforços de controlar o uso da força policial não se restringem ao treinamento. Também é necessário aperfeiçoar o sistema de controle interno das condutas policiais. Nos casos de acusação de desvio de conduta, é importante adequar os procedimentos de apuração e julgamento aos conteúdos dos códigos de deontologia e das normas de condutas. Recomendamos a necessidade de adequar o sistema de avaliação das condutas policiais.

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RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS PARA A SENASP:

A criação de um modelo nacional de uso da força policial permitirá a uniformização das condutas policiais. Apesar das diferenças regionais, a criação de um modelo nacional poderia fomentar a constituição da identidade profi ssional dos policiais. Além disso, proporcionaria uma economia de esforços, bem como permitiria intercambio e ações conjuntas. Na criação deste modelo, é preciso incorporar as necessidades, os saberes e as experiências das polícias. Para tal, sugere-se a constituição de uma equipe de policiais especialistas em treinamento do uso da força para pensar e elaborar o modelo nacional. Recomendamos que a SENASP coordene os esforços para a criação de um modelo nacional de uso da força policial.

Tomando o cuidado de não ferir as autonomias federativas, a SENASP pode incentivar a adoção do modelo nacional pelas diferentes polícias existentes no Brasil. Para isso, o condicionamento dos repasses dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) seria ferramenta valiosa para a implementação desse modelo. Recomendamos, portanto, que a SENASP incentive a adoção do modelo nacional de uso da força.

A implementação de um modelo nacional de uso da força passa necessariamente pela sua adoção nos sistemas de treinamento e de controle interno. É importante adequá-lo aos sistemas existentes nos estados. Para tanto, sugere-se um amplo levantamento dos modelos de ensino profi ssional existentes, a fi m de incorporar suas variações na elaboração do modelo nacional de uso da força. Bem como submeter o modelo nacional a um amplo debate com representantes das polícias, da sociedade civil e especialistas na área de segurança pública. Sugerimos à SENASP também que incentive a adequação dos sistemas de treinamento e avaliação policial ao modelo nacional de uso da força.

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O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA SEGURANÇA PÚBLICA

Tulio Kahn1

André Zanetic

O ALARGAMENTO CONCEITUAL E INSTITUCIONAL DA QUESTÃO DA SEGURANÇA

Até recentemente o problema da segurança pública era compreendido comoalgo que diz respeito apenas ao governo estadual e, dentro dele, especifi camente aos órgãos do sistema de justiça criminal: polícia, ministério público, judiciário e administração prisional.

O maior argumento para o não envolvimento na questão da segurança era o de que o artigo 144 da Constituição atribui ao governo Estadual a responsabilidade pelas polícias civis e militares. Assim, nesta concepção limitada de segurança, não haveria muito mais o que fazer nas esferas federal e municipal. O envolvimento federal nas questões de segurança resumia-se às ações da Polícia Federal, ao controle de algumas atividades – armas, empresas de segurança privada, etc – bem como a elaboração de Projetos de Lei no âmbito criminal e penal. No âmbito municipal, algumas poucas prefeituras mantinham Guardas Civis para a vigilância dos prédios municipais enquanto outras ajudavam de forma espasmódica as policiais estaduais, contribuindo com combustível, equipamentos ou empréstimo de imóveis.

Na última década, todavia, parece ter havido um alargamento da questão de segurança pública, tanto do ponto de vista conceitual quanto administrativo: de problema estritamente policial passou a questão multidisciplinar, envolvendo diversos níveis e instâncias administrativas. E este processo de alargamento ocorreu depois da Constituição de 1988, que em nada alterou o papel da Federação e dos Municípios na esfera da segurança, apesar da tendência municipalista em diversas outras esferas.

Em nível federal, são marcos desse processo de alargamento a criação da SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública em 1995, a criação do INFOSEG, do CONASP – Conselho Nacional de Segurança Pública e a elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública em 2000 – que trouxe consigo o estabelecimento do Fundo Nacional de Segurança Publica – com recursos anuais em torno de 300 milhões de reais para investimento em recursos humanos e materiais das polícias. Com relação ao Fundo Nacional de Segurança Pública, assinale-se que ele abriu a possibilidade para que não apenas as polícias estaduais, mas também os municípios – apenas aqueles com Guarda Municipal – requisitassem recursos do governo federal para projetos de segurança. Isto signifi ca que o governo federal viu como legítima e procurou incentivar deste então a atuação dos governos locais; é possível até que o FNSP tenha estimulado a criação de Guardas pelo país depois de 2000.

1 A elaboração desta pesquisa só foi possível graças à colaboração e apoio de diversas pessoas e entidades. Agradeço em especial ao Ministério da Justiça pela bolsa concedida, à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo por me liberar durante a realização do projeto e ao Centre for Brazilian Studies de Oxford por me receber entre abril e junho de 2005. Inúmeras pessoas fi zeram comentários e contribuições ao projeto, em especial Albert Fischlow e Nauro Campos, que se prontifi caram a ler e comentar o texto.

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Tabela 1Gastos do FNSP 2001-2004

Ano Municípios R$

2001 74 18.732.539,92002 10 5.904.0002003 6 10.309.2642004 69 25.385.880,96Total 60.331.684,86

Entre 2001 e 2004 o Governo Federal investiu cerca de 60 milhões de reais nos municípios (14 milhões apenas para a cidade de São Paulo) através dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído com o objetivo de apoiar projetos na área de segurança pública e de prevenção à violência. O acesso aos recursos pelos municípios foi vinculado a apresentação de projetos consoantes com a política de segurança pública do Governo Federal, e para tanto devia atender a algumas solicitações específi cas, como possuir Guarda Municipal, realizar ações de policiamento comunitário ou terem Conselho de Segurança Pública.

A SENASP também tem orientado aos Municípios que elaborem um Plano Municipal de Segurança Urbana, composto de diagnósticos (área geográfi ca, problemas da região, principais crimes e ocorrências policiais, características sociais, econômicas, etc) dos problemas existentes e de ações relevantes para seu enfrentamento, abrindo a possibilidade de realização de convênio com a SENASP, tanto para os diagnósticos quanto para a realização de ações efetivas. O valor total dos projetos tem sido distribuído entre concedente e proponente, com 80% do valor total do projeto para o primeiro e 20% para o segundo, obrigando o município interessado a investir em segurança.

Paralelamente, os anos 90 também marcaram o envolvimento maior dos municípiosna esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis, de Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de Leis e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança, como o controle de bebidas alcoólicas, e a divulgação de serviços como o Disque Denúncia. Particularmente relevantes foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter preventivo, focados especifi camente na questão da criminalidade e da violência. Ou então o redirecionamento dos investimentos dos projetos sociais tradicionais para as áreas e grupos de risco, ou seja, levando explicitamente em conta o potencial preventivo das políticas públicas municipais. Esta tendência de crescimento da participação dos municípios na segurança coincide internacionalmente com o aparecimento no campo da segurança de teorias como broken windows e policiamento comunitário e orientado a problema – teorias que apontam também para a necessidade de incluir outros recursos – além dos tipicamente policiais – para a solução de problemas criminais.

O fato é que, tanto o governo federal como os municipais passaram na última década a atuar de forma mais intensa na esfera da segurança, reconhecendo a relevânciada problemática para a população e que para equacioná-la são necessários mais do que novas armas e viaturas para as polícias estaduais ou o endurecimento penal. O quadro abaixo dá uma idéia deste processo, analisando particularmente a Região

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Metropolitana de São Paulo. Dos 39 municípios que fazem parte da RMSP, oito adotaram leis de incentivo à divulgação do Disque Denúncia e todos eles depois de 2001 – uma vez que o serviço entrou em funcionamento apenas em 2000. Igualmente, todos os 16 municípios com lei seca adotaram-na neste mesmo período. As guardas municipais são mais antigas, mas dos 27 municípios com guardas na RMSP, 17 criaram-nas a partir de 1991.

Tabela 2Crescimento da participação dos municípios da RMSP na segurança

Antes dos anos 80

De 1981 a 1991

De 1991 a 2000

Depois de 2001

Total

Lei do Disque-Denúncia RMSP 9 9Lei Seca RMSP 16 16Guardas Municipais RMSP 2 8 13 4 27Secretarias Municipais RMSP 3 9 12Guardas Municipais no Estado de São Paulo (apenas as que sabemos a data) 7 18 20 6 51

Fonte: Fórum Metropolitano de Segurança Pública/Secretaria de Segurança Pública.

A criação do Fórum Metropolitano de Segurança em 2001, congregando os 39 prefeitos da região para trocar experiências comuns sobre o tema, sem dúvida colaborou para aprofundar este processo, que é anterior ao Fórum como sugere a tabela acima; a criação mesma do Fórum de prefeitos é conseqüência deste processo de intensifi cação da participação das prefeituras na segurança.

Merece menção também o fato de que neste período houve igualmente um crescimento vertiginoso do setor privado de segurança, principalmente empresas de segurança eletrônica e de vigilância patrimonial. Como veremos adiante, foi o crescimento da criminalidade e da sensação de insegurança nos grandes centros urbanos o elemento impulsionador de todas estas tendências.

RAZÕES DO SÚBITO INTERESSE SIMULTÂNEO NA QUESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA

Não foi por iluminação do espírito santo que todos resolveram dar as mãos para atacar o problema: políticos são em geral bastante sensíveis às preocupações de seus eleitores e tratava-se simplesmente de fazer alguma coisa ou voltar para casa nas próximas eleições.

Não é difícil compreender porque simultaneamente empresas privadas, governo federal e municipais começaram a intervir de forma mais intensa na segurança pública: 1) a criminalidade cresceu rapidamente em todo pais nos anos 80, em especial os homicídios cuja taxa passou de 11 para 27 ocorrências por 100 mil hab. entre 1980 e 2000; 2) em paralelo, houve um crescimento da sensação de insegurança, que colocou o crime entre as principais preocupações da população, ao lado do desemprego;3) junte-se a isso o fato de que a população culpa a todos os níveis de governo pelo problema e não apenas ao governo estadual, detentor das polícias civil e militar.

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Gráfi co 1Taxa de Homicídios por 100 mil, de 1985 a 2000

11,412,2 12,2

13,4

14,9 14,6 14,9

16,5 16,4

19,8

21,7

20,4

18,7

19,820,8

23,424,2

26,026,5

25,2

27,8

0

5

10

15

20

25

30

1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: Datasus

As pesquisas de opinião pública sempre mostraram – como estas conduzidas pela Ipsos Opinion em 2003 e pela CNT/Sensus em 2004 – que para a população, embora o principal responsável pela solução dos problemas de segurança seja o governo estadual, que controla as policiais civil e militar – os outros níveis de governo também são co-responsáveis, principalmente a prefeitura. Parece haver a compreensão por parte da população de que a criminalidade tem inúmeras causas – desemprego, carências sociais – e que todos os escalões governamentais tem sua parcela de responsabilidade.

Tabela 3Principal responsável pela solução dos problemas de segurança na cidade

Vimos acima alguns motivos que contribuíram para a entrada e participação mais intensas dos governos federal e municipal na questão da segurança. A questão agora é saber como esta participação vem ocorrendo e com que resultados.

1º lugar ago/03

Prefeitura 27%Governo do Estado 49%

Governo Federal 19%

Não sabe/ Não respondeu 5%

1º + 2º lugares ago/03

Prefeitura 55%Governo do Estado 83%

Governo Federal 41%

Não sabe/ Não respondeu 5%

Jun-04Na sua opinião, a solução dos seguintes problemas (policiamento) deveria ser responsabilidade do:governo federal 25.40governo estadual 29.20prefeitura 17.10todos 24.20nenhum 0.20ns/nr 4.10

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87O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

A ATUAÇÃO MUNICIPAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Neste trabalho estaremos examinando especifi camente o impacto de alguns programas municipais sobre a criminalidade, tomando como referência principalmente os 39 municípios da Região Metropolitana de São Paulo, onde o problema da segurança pública foi e – apesar da melhora – continua sendo especialmente grave. Com 47% da população do Estado de São Paulo, a RMSP concentra 80% dos roubos de veículos, 67% dos roubos e 63% dos homicídios, mais do que justifi cando a escolha da área.

Tabela 4Ocorrências policiais registradas – jan e fev de 2005

Ocorrências Estado RMSP %

Roubo de Veículos 12.241 9.777 79,87Furto e Roubo de Veículos 30.699 21.728 70,78Roubo 34.895 23.579 67,57Furto de Veículos 18.458 11.951 64,75Homicídio Doloso 1.463 933 63,77Estupro 670 364 54,33Tentativa de Homicídio 1.449 682 47,07Latrocínio 65 30 46,15Furto 87.829 34.072 38,79Homicídio Culposo 675 231 34,22Tráfi co de Entorpecentes 2.503 846 33,80Lesão Corporal (culp. e dol.). 55.022 18.550 33,71

Fonte: SSP/SP

Como argumentou Marx ao justifi car a escolha da Inglaterra para estudar o capitalismo, é preciso ir até onde o fenômeno está mais desenvolvido, pois a “anatomia do homem explica a anatomia do macaco”. Portanto, se quisermos entender o efeito das práticas municipais sobre a criminalidade é preciso olhar para onde o problema é mais grave e as experiências municipais de prevenção ao crime mais desenvolvidas. Do ponto de vista amostral é preciso ter em mente que se trata de uma escolha possivelmente enviesada justamente por se tratar de uma área especialmente violenta, cujos resultados talvez não se apliquem a outras áreas.

A INTERVENÇÃO MUNICIPAL NA ESFERA DA SEGURANÇA

1) A queda dos homicídios em São PauloAntes de analisarmos o impacto da Lei Seca sobre os homicídios, é conveniente

fazermos uma digressão sobre a queda dos homicídios em geral, de modo a poder contextualizar o impacto desta relevante medida.

Depois de um crescimento contínuo desde meados dos anos 90, os homicídios dolosos no Estado de São Paulo começaram a declinar a partir de 1999. Nos últimos cinco anos a taxa de homicídios no Estado de São Paulo caiu 37%, diminuindo de 35,7 em 1999 para 22,5:100 mil habitantes no ano passado. Embora muitos não tenham se dado conta, a magnitude e a rapidez da queda colocam São Paulo no mesmo patamar

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de conhecidos casos de sucesso da literatura criminal internacional, como Nova Iorque, Cali ou Bogotá. Em Nova Iorque os homicídios tiveram uma impressionante redução de 66% num período de sete anos. Na cidade da Cali – para tomar um exemplo mais próximo – as taxas de homicídios caíram um quarto em nove anos e em Bogotá caíram de 80 para 23:100 mil no mesmo período.

Existem muitas dúvidas com relação ao fenômeno: por exemplo, 1) não se sabe ao certo, por falta de estatísticas em âmbito nacional, se trata se de algo generalizado ou específi co de São Paulo 2) se a queda é produto da atuação policial, de mudanças macro-sociais ou de ambas. Existem diversas hipóteses não testadas a respeito do que está ocorrendo e freqüentemente os atores envolvidos procuram tirar proveito do fato, trazendo para si a responsabilidade pela queda, mas sem apresentar dados ou uma lógica consistente para corroborar tais afi rmações.

Tabela 5Estado de São Paulo – 1996-2004

1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 1999-2004

Homicídio doloso 10.447 10.567 11.861 12.818 12.638 12.475 11.847 10.953 8.934 -30,30

População 34.074.126 34.932.345 35.367.254 35.891.661 37.546.640 38.052.554 38.500.000 39.067.518 39.677.130

Taxa 30,66 30,25 33,54 35,71 33,66 32,78 30,77 28,04 22,52 -36,95

Fonte: Fundação SEADE / SSP/SP

Como em quase todo país, os homicídios dolosos vinham aumentando de forma linear no Estado, desde a metade dos anos 90: em 1996, cerca de 10.500 pessoas tinham sido vitimadas em São Paulo. Em 1999 o número de vítimas tinha aumentado para 12.818 e nada levava a crer que estávamos no preciso ponto de infl exão da curva de homicídios. A partir daquele ano, contudo, a curva muda de direção e cai de forma também linear, até voltarmos ao patamar de 8.934 vítimas em 2004, ou seja, uma drástica redução da taxa de homicídios da ordem de 37% num período de apenas cinco anos.

É interessante também analisarmos o movimento de queda desagregando os dados por tamanho de cidade: tomando a média de homicídios entre 1995 e 2003, verifi ca-se que a maior responsabilidade pela queda está nos municípios de 100 a 500 mil habitantes e nos municípios com mais de 500 mil habitantes. Nos municípios com população entre 25 e 100 mil habitantes a média de homicídios continua crescendo e nos pequenos municípios a média de homicídios é estável. Em outras palavras, a queda no Estado se deve principalmente às reduções observadas nos grandes municípios, que também concentram a maior quantidade absoluta de homicídios. Vejamos rapidamente algumas prováveis causas.

Desarmamento

Existem alguns fortes indícios de que boa parte dos homicídios em São Paulo deve-se a confl itos interpessoais – sem qualquer relação com o tráfi co de drogas, crime organizado ou outras dinâmicas ligadas ao mundo do crime propriamente dito. Dados do IML com relação às vítimas de homicídio mostram que, das vítimas para as quais exames foram solicitados – cerca de metade dos casos – 42% apresentavam resíduos de álcool

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no sangue na ocasião da morte. Em 25% dos casos a vítima morreu com apenas um tiro e em 64% dos casos o tiro não atingiu a cabeça, sugerindo uma fraca intencionalidade por parte do autor. Em 10% dos casos a autoria dos homicídios é conhecida no momento em que a ocorrência é registrada na polícia. 9% dos homicídios ocorrem dentro de residências e 1,3% de frente à residência da vítima. Boa parte dos homicídios ocorre nas noites e madrugadas dos fi nais de semana, como veremos adiante. Em resumo, parcela considerável dos homicídios envolve pessoas que se conhecem e resultam de processos de altercações sob efeito de álcool, quando muitas vítimas são mortas com apenas um tiro. Muitos dos que cometem homicídios não têm a clara intenção de matar, mas como a arma de fogo exige menos esforço físico e psicológico por parte do agressor e é mais letal do que outros tipos de armas, o desfecho morte é potenciado.

Todas estas evidências sugerem que a retirada de armas de fogo em circulação pode evitar o desfecho letal de parte destes confl itos interpessoais. Diferentemente das mortes premeditadas, nestes casos o resultado morte não ocorreria caso não houvesse a disponibilidade de uma arma de fogo no momento da “escalada”, isto é, um processo de altercação entre vítima e agressor que culmina numa agressão com arma de fogo (Wells, 2002).

EFEITOS DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO

Uma analise de intervenção (intervention analysis) procura avaliar o impacto sobre a performance de um sistema depois de uma ação, comparada com a situação anterior à ação. A metodologia é bastante utilizada para avaliar questões de controle de qualidade e consiste em verifi car a existência de alteração nos níveis da série histórica de homicídio em cada cidade e se esta mudança foi transitória ou permanente.

Especifi camente depois do Estatuto do Desarmamento em dezembro de 2003, é possível identifi car uma quebra clara no nível mensal de quatro séries históricas relevantes: 1) armas apreendidas pela polícia; 2) armas perdidas; 3) número de internações por agressão por arma de fogo, coletado pelo Datasus (quebra em 11/2003; -37,6 internações por agressões intencionais por arma de fogo / mês); 4) série de homicídios dolosos na Capital (quebra em 11/2003; -45,4 homicídios / mês).

Armas apreendidas pela políciaO “número de armas apreendidas” pela polícia é um daqueles indicadores

que pode ser tanto interpretado como evidência da disponibilidade de armas em circulação (apreende-se menos armas porque há menos armas nas ruas) quanto como um indicador de atividade policial (apreendem-se menos armas porque a polícia está realizando menos operações para tirar armas de circulação). Pelo menos no caso de São Paulo, o número de armas apreendidos parece refl etir mais a primeira dimensão (disponibilidade de armas) do que a segunda (esforço policial). Primeiro porque a quantidade de armas apreendidas vem caindo no Estado, não obstante o aumento da atividade policial e o foco no controle de armas. A quantidade de armas apreendidas cai claramente após o Estatuto do Desarmamento, que não afetou as operações policiais, mas a decisão dos indivíduos de sair ou não armado nas ruas.

Finalmente, qualquer análise espacial que se faça das apreensões de armas em São Paulo revela que há uma relação estreita entre o número de armas apreendidas num setor policial e o número de homicídios naquele setor.

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Tomando, portanto, o indicador “apreensão de armas pela polícia” como uma mensuração do número de armas em circulação num determinado local e período, vemos que o efeito do Estatuto do Desarmamento sobre a redução das armas em circulação é claramente capturado na série histórica de apreensões de armas pela polícia, que cai subitamente a partir de dezembro de 2003, apesar de não ter havido diminuição na atividade policial. O Estatuto fez com que a média mensal de armas apreendidas diminuísse em 425 armas, provavelmente porque as pessoas deixaram de circular com as armas em função do aumento das penalidades previstas.

Armas Perdidas

Gráfi co 2Quebra na série de armas perdidas pela população, em dezembro de 2003

Diferentemente das armas apreendidas pela polícia, que pode refl etir em alguma medida o esforço policial, o número de armas perdidas pela população é claramente uma medida da disponibilidade de armas legais num determinado local e tempo. A Secretaria de segurança pública mantém um registro de armas perdidas, declaradas em Boletim de Ocorrência pelos proprietários que temem ser culpabilizados caso as armas sejam utilizadas em algum crime. Por motivos óbvios, a série refl ete apenas a perda de armas legalmente registradas. O número de armas perdidas no Estado vem caindo progressivamente nos últimos anos – indicador da menor disponibilidade de armas em circulação – e a série apresenta duas quebras nítidas, a última delas em dezembro de 2003, que reduziu em 4,2 a quantidade de armas perdidas por mês.

Homicídios Dolosos na CapitalA série histórica de homicídios dolosos na Capital, coletada pelo Infocrim, releva

também uma quebra no mês de novembro de 2003, que acentua a tendência de queda anterior: esta quebra pode ser atribuída especifi camente ao Estatuto e representou

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uma diminuição de 45 homicídios por mês na cidade de São Paulo. Por algum motivo, as séries de homicídios dolosos para a grande São Paulo e Estado não mostram uma mudança de nível neste período, embora a série histórica de internações por agressões intencionais com arma de fogo do Datasus sugira também uma quebra em novembro de 2003.

Gráfi co 3Quebra na série de homicídios dolosos na Capital, em Novembro de 2003

Gráfi co 4Quebra na série de agressões intencionais por arma de fogo (datasus)

em Novembro de 2003

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As mudanças de nível observadas nas séries histórias de crimes e indicadores relacionados a armas evidenciam que o Estatuto contribuiu para acentuar a diminuição do número de armas em circulação a partir do fi nal de 2003, sendo parcialmente responsável pela queda dos homicídios no Estado – principalmente se levarmos em conta, como veremos adiante, que não houve uma redução generalizada da violência na sociedade, mas apenas uma redução no grau de letalidade associada a esta violência.

Tabela 6A tabela abaixo sumariza os resultados encontrados

Sériedata da

alteração de nível na série

queda absoluta no número de

casos

queda percentual

Armas apreendidas Estado 12/2003 -425 -12,9Homicídio Capital 11/2003 -45,4 -14,8Porte de arma GSP 02/2004 -29,9 -14,8Agressões intencionais com armas de fogo Estado 11/2003 -41,7 -17Latrocínio Estado 09/2003 -7,8 -17,8Porte de armas Capital 09/2003 -60,2 -19,4Porte de arma Estado 11/2003 -283,2 -21,7Armas perdidas Capital 12/2003 -4,22 -25,5Latrocínio Capital 02/2004 -4,83 -25,9

Todavia, o esforço para reduzir a quantidade de armas em circulação no Estado de São Paulo é anterior a 2003, como veremos mais adiante.

Muito antes da aprovação do Estatuto de Desarmamento de dezembro de 2003, São Paulo já vinha adotando uma política de restrição de portes de armas e de retirada de armas de fogo das ruas. Anualmente cerca de 40 mil armas são retiradas de circulação pelas polícias do Estado. Entre 95 e 97 a média era de 7 mil armas por trimestre, média que se elevou ao longo dos últimos anos para cerca de 9 mil por trimestre. Paralelamente ao esforço de retirada das armas ilegais em circulação, a Polícia Civil restringiu fortemente a entrada de novas armas em circulação através da redução drástica do número de registros de novas armas. Em 1994 foram concedidas 42 mil registros de armas na Capital, em 1995 foram concedidos 31 mil registros e no ano seguinte 22 mil. Depois de 1997 observa-se uma queda abrupta até chegar am torno de 2.800 mil registros em 2003. Os portes de armas despencam de 68, 69 mil por ano entre 1993 e 1994 para 2 mil em 2003.

Existem evidências de que estas medidas efetivamente reduziram o número de armas em circulação em São Paulo ou pelo menos a circulação de armas nas ruas. Em primeiro lugar, dados do Datasus indicam que houve uma queda no Estado no número de lesões auto-provocadas intencionais por arma de fogo (suicídio): a literatura criminológica sugere que, quando não existem medidas diretas da quantidade de armas em circulação, a quantidade de suicídios cometidos com armas de fogo pode ser tomada como uma “proxi”, uma vez que é forte a correlação observada entre armas de fogo em circulação e suicídios com armas de fogo. Por outro lado, o Infocrim indica uma diminuição no número de armas perdidas, o que também sugere a redução da quantidade de armas em circulação. Finalmente, uma vez que as armas de fogo são especialmente letais, é possível especular que os crimes tentados – homicídios e

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suicídios, por exemplo – devem aumentar em relação aos consumados, se as armas de fogo estiverem saindo de circulação. O infocrim aponta que de fato tanto os homicídios quanto os suicídios tentados em São Paulo estão crescendo. O ato deixa de ser consumado porque o meio utilizado é menos letal do que a arma de fogo.

ANALISANDO A RELAÇÃO ENTRE HOMICÍDIOS E ARMAS ATRAVÉS DE UM MODELODE TRANSFERÊNCIA DE FUNÇÃO (TRANSFER FUNCTION MODEL) E DE ANÁLISE DE REGRESSÃO

No modelo abaixo utilizamos o número de suicídios com arma de fogo – uma “próxi” para disponibilidade de armas – como variável explicativa para as internações por agressão intencional por armas de fogo, ambas provenientes do Datasus. O resultado indica que a quantidade de armas realmente afeta positivamente o nível dos homicídios (t = 4.4, com prob. >.000), que há um componente autoregressivo de ordem 1 e 3 na série de agressões e, além disso, que há outros “outliers” na série, como pulsos pontuais (setembro de 1998 e novembro de 2000) e sazonais (maio de 2003).

Tabela 7

THE ESTIMATED MODEL PARAMETERS

MODEL COMPONENT LAG COEFFSTANDARD

# (BOP

P

ERROR

T

VALUE VALUE

1 CONSTANT 28.7 12.7 .0269 2.26

2 Autoregressive-Factor # 1 3 .500 .943E-01 .0000 5.30

3 Autoregressive-Factor # 2 1 .380 .106 .0006 3.57

INPUT SERIES X1 M_PROXIARMAS

4 Delta (output)-Factor # 3 1 .525 .137 .0003 3.82

5 Omega (input)-Factor # 4 0 1.34 .305 .0000 4.40

INPUT SERIES X2 I~S00063 2003/ 5 SEASP

6 Omega (input)-Factor # 5 0 60.6 13.9 .0000 4.35

INPUT SERIES X3 I~P00007 1998/ 9 PULSE

7 Omega (input)-Factor # 6 0 69.1 19.9 .0008 3.48

INPUT SERIES X4 I~P00033 2000/ 11 PULSE

8 Omega (input)-Factor # 7 0 51.8 20.1 .0118 2.58

Y(T) = 194.92

+[X1(T)][(1- .525B** 1)]**-1 [(+ 1.3405 )]

+[X2(T)][(+ 60.6161 )]

+[X3(T)][(+ 69.1371 )]

+[X4(T)][(+ 51.7989 )]

+ [(1- .500B** 3)(1- .380B** 1)]**-1 [A(T)]

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Gráfi co 5

Gráfi co 6

O modelo utilizando o suicídio com arma de fogo como preditor explica cerca de 61% da variação encontrada na série de agressões intencionais com arma de fogo e ilustra a relação entre a disponibilidade de armas e os homicídios. O modelo confi rma a hipótese segundo a qual a queda dos homicídios no Estado de São Paulo se deve em boa parte à gradativa redução das armas de fogo em circulação, como apontado por diversas evidências.

Alternativamente, usamos também a série de armas perdidas como uma variável substituta “proxi” para a quantidade de armas em circulação, baseado na hipótese que quanto mais armas em circulação, maior também o número de armas extraviadas.

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95O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

Seguindo o mesmo procedimento, introduzimos o número de armas perdidas num modelo causal como variável preditora da quantidade de homicídios. O modelo confi rma que a quantidade de armas em circulação é um preditor relevante da quantidade de homicídios (t = 3,82; sig. >.0003).

É importante ter este processo em mente como pano de fundo para interpretar a atuação dos municípios na esfera da segurança pública, que coincide temporalmente com o período de queda dos homicídios e outros indicadores criminais, mas que não explica sozinho estes fenômenos. Embora o Estatuto do Desarmamento e ações municipais como a adoção da Lei Seca tenham contribuído para a drástica diminuição dos homicídios em São Paulo, vimos que a queda começa por volta de 1999 e atinge praticamente todas as grandes cidades do Estado. As ações da polícia estadual e as mudanças na política estadual com relação aos homicídios, neste sentido, são importantes para a compreensão do fenômeno.

Plano de Combate aos homicídios

O DHPP – Departamento de Homicídios e Proteção à pessoa foi criado em 1996, tendo por objetivo a investigação de homicídios e latrocínios, pessoas desaparecidas e a proteção a vítimas e testemunhas. Na Capital, área de atuação do DHPP, os homicídios caíram 36% entre 2000 e 2004. Parte desta queda pode ser atribuída ao Plano de Combate aos homicídios posto em prática pelo Departamento a partir de abril de 2001, que resultou num aumento de 770% no número de homicidas presos entre 2000 e 2004 e num aumento da taxa de esclarecimento de 20 para 48%. As principais estratégias utilizadas foram a integração com a polícia militar, a identifi cação e aprisionamento de homicidas contumazes e investimentos em inteligência e tecnologia da informação. O recebimento de denúncias anônimas através do Disque Denúncia e a criação dentro do DHPP do Serviço de Inteligência e Análise (SIA) foram passos importantes para a obtenção destes resultados.

Tabela 8

Ano Prisões VariaçãoHomicídios Múltiplos ocorridos

Homicídios múltiplos

esclarecidos

HD na Capital

TxCapital

Tx Estado

% escl.

2000 165 - 53 39 5327 51,2 34,2

2001 368 123% 43 40 5174 49,3 33,2 20,4

2002 583 253% 40 39 4631 43,7 30,9 23,1

2003 1234 647% 23 22 4268 40,2 28,2 30,4

2004 1437 770% 22 20 3404 31,8 21,7 48,2

Fonte: DHPP – SSP/SP

O banco de dados da SAI contém atualmente 37 mil suspeitos cadastrados, dos quais 28 mil com fotografi as. Há também um banco de armas e outro de imagens de cadáveres, que auxiliam no esclarecimento de casos. Como resultado, o Departamento passou de 165 mandados cumpridos por ano em 2000, para 1437 em 2004. O papel específi co das ações policiais para a redução dos homicídios pode ser visto também quando nos detemos sobre o fenômeno das chacinas ou homicídios múltiplos. Como os homicídios, as chacinas também estão diminuindo desde 2000. Para os 159 casos

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública96

de homicídios múltiplos ocorridos desde 2000, a média de esclarecimentos pelo DHPP foi de 82%.

A população carcerária no Estado cresceu de forma linear e rapidamente na última década: de 56 mil em 1994 para cerca de 127 mil dez anos depois (junho de 2004). Qual o efeito do aumento das taxas de encarceramento sobre a redução dos crimes em geral e dos homicídios em particular? O debate também ocorre nos EUA onde se presenciou igualmente um crescimento acelerado das taxas de encarceramento, paralelamente às quedas nas taxas de criminalidade, sugerindo um vínculo causal entre os dois fenômenos.

Desde os anos 80, a participação dos homicidas na população prisional está estabilizada ao redor dos 10%, como pode ser observado na tabela abaixo. Aplicando este percentual, podemos estimar a quantidade de homicidas incapacitados no período: em torno de 2000, quando os homicídios ainda cresciam no Estado, tínhamos algo em torno de 9 mil homicidas presos em São Paulo e que atualmente teríamos algo em torno de 13 mil homicidas presos, um crescimento considerável em menos de 4 anos. Através do efeito “incapacitação”, cerca de quatro mil homicidas teriam sido retirados de circulação nos últimos anos e outros tantos homicídios evitados através do efeito “intimidação”, gerado pela prisão de criminosos conhecidos.

Analisando a queda da criminalidade em Nova Iorque, Mocan relata um efeito positivo do aprisionamento de criminosos violentos sobre a criminalidade: um aumento de 10% na taxa de aprisionamento de homicidas reduz os homicídios em cerca de 4%. Entre 1990 e 1999 as prisões de homicidas cresceram 72% em Nova Iorque e os homicídios caíram 73% no mesmo período (Mocan, 2002). Em São Paulo, por sua vez, a população prisional total cresceu 57% entre 1999 e 2004, passando de 83 mil a 131 mil presos, 139% se comparado com 1995.

Assim, mesmo que o crescimento da população prisional do Estado tenha ocorrido de forma linear desde o começo dos anos 90 e mesmo que a porcentagem de homicidas na população prisional tenha se mantido estável, segundo a hipótese do “limiar”, a partir de um certo ponto entre 2000 e 2001, a grande quantidade de prisões pode ter implicado em alguma mudança de qualidade, contribuindo para a diminuição dos crimes de morte a partir de então.

Questão complexa e multidimensional, a criminalidade e seus movimentos difi cilmente podem sem explicados por um grupo único de fatores. O mais provável é que diversos fatores e a interação simultânea entre eles tenham contribuído para a queda dos homicídios no Estado. Nesta breve análise, diversos fatores importantes fi caram de fora, tais como os efeitos dos primeiros investimentos do Fundo Nacional de Segurança Pública (2000), da criação do Disque Denúncia (2000), da utilização do Infocrim (2000), da criação do Fórum Metropolitano de Segurança Pública (2001) e diversas outras mudanças positivas que ocorreram no âmbito da segurança pública no período e que podem ter contribuído para a queda dos homicídios.

Políticas públicas preventivas, focadas em áreas e grupos de risco, são extremamente relevantes para a prevenção de longo prazo, mas difi cilmente podem ser invocados neste momento como causa efi ciente para o fenômeno da queda dos homicídios no Estado: queda iniciada em 1999, rápida e que abrangeu homogeneamente todo o Estado e não apenas a Capital, posto que das 19 cidades com 100 ou mais homicídios, 16 apresentaram queda entre 2000 e 2003, bem como metade das cidades com mais de 100 mil habitantes.

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97O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

O mais provável é que políticas especifi camente de segurança, atuando homoge-neamente em âmbito estadual, tenham sido as principais responsáveis pela drástica queda dos homicídios em São Paulo em apenas cinco anos, enquanto os homicídios estão crescendo em Minas Gerais e caindo ligeiramente no Rio de Janeiro no mesmo período.

Trata-se de um processo relativamente recente e pouco documentado, de modo que é arriscado chegar a conclusões defi nitivas a esta altura; nos EUA ainda hoje se discutem as causas da redução generalizada da criminalidade no país na década passada: crescimento econômico, tolerância zero, legalização do aborto, crescimento da população prisional, mudanças demográfi cas, estabilização do mercado de drogas, inúmeras hipóteses foram aventadas para tentar explicar o fenômeno.

Em linhas gerais, o que se pode avançar sobre o tema é que não se trata nem de fenômeno nacional nem de processo exclusivo de São Paulo. As maiores reduções ocorreram nas cidades maiores e, dentro da Capital, a queda foi generalizada em diversos tipos de bairros e tipos de local.

Não houve necessariamente uma diminuição no grau de violência da sociedade, mas antes uma diminuição no grau de letalidade desta violência, provavelmente derivada da redução do estoque de armas de fogo em circulação. Mudanças macro-sociais como a elevação da qualidade de vida no Estado, a diminuição dos fl uxos migratórios e a diminuição dos jovens de 10 a 19 anos na composição demográfi ca da população podem ter desempenhado algum papel no processo.

No campo das políticas públicas, para fi car apenas no âmbito da repressão, além da restrição às armas e do aumento rápido das taxas de encarceramento, a implementação da Lei Seca em diversos municípios da Região Metropolitana, a ênfase policial na captura e aprisionamento de homicidas perigosos e no combate ao tráfi co de entorpecentes, desempenharam certamente algum papel para a obtenção deste resultado.

1.1) A relação dos homicídios com o álcool

Sabe-se que, ao lado das armas de fogo, as bebidas alcoólicas são um dos mais importantes fatores criminógenos, ou seja, fatores na presença dos quais, num contexto já violento, a violência é potencializada (Parker et all, 1988; Norstrom, 1998; Markowitz, 2000; Exum, 2002; Duque e outros, 2003; Longshore et all, 2004; Wagenaar, 2004). Entre outros efeitos, o álcool diminui a capacidade cognitiva e aumenta a probabilidade de respostas agressivas do indivíduo na presença de uma provocação (Exum, 2002). O indivíduo alcoolizado apresenta défi cits tanto na atenção como na capacidade de julgamento e fi ca mais vulnerável não apenas à vitimização por homicídio mas também em outras situações envolvendo acidentes e violências. Álcool e violência estão associados seja pelos efeitos farmacológicos da bebida, seja porque indivíduos violentos ou com intenção de cometer violência bebem ou ainda porque o consumo de álcool e o comportamento violento são ambos indicadores de uma dimensão que pode ser denominada “comportamento de risco” (Markowitz, 2000).

Trata-se de analisar, porém, principalmente, a infl uência do álcool dentro de um determinado contexto, como claramente mostram os mapas de concentração de homicídios em São Paulo e outras cidades. Estamos falando da existência de processos sociais que envolvem aspectos coletivos na vida da comunidade local – coesão social,

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infra-estrutura local, controles sociais informais, subculturas de violência, pobreza, etc – que explicam porque álcool e outras substâncias crimogênicas trazem efeitos danosos em algumas áreas, mas não em outras. Num estudo relacionando capital social e criminalidade em diferentes bairros de Chicago, Sampson mostra como o grau de “efi cácia coletiva” da vizinhança está associado com a redução das taxas de homicídio (Sampson, 2003).

Dados brasileiros confi rmam a presença elevada de álcool tanto entre as vítimas como entre autores de crimes. Vejamos mais detalhadamente o perfi l epidemiológico brasileiro, tanto do uso do álcool como dos homicídios.

Uso do álcool no Brasil e ViolênciaSão poucos os dados sobre o uso do álcool no Brasil, de modo que é possível fazer

apenas um panorama superfi cial com as informações existentes. Estima-se que a cerveja represente 85% das bebidas alcoólicas consumidas no país, que é o quarto maior produtor mundial de cerveja, tendo produzido 10,4 bilhões de litros em 2003. A média de litros de cerveja por pessoa era de 41,2 em 1990, chegou a 50,9 em 1997 e atualmente está em torno de 47,6 litros. Depois da cerveja, a cachaça (12 litros per capta/ano) e o vinho (1,8 litros per capta/ano) são as bebidas mais consumidas e os jovens do sexo masculino são os maiores consumidores. De uma maneira geral, o consumo de cerveja subiu na década entre 3 a 5% ao ano, refl etindo o aumento do poder aquisitivo da população após o Plano Real. As padarias escoaram 85% das vendas (Sindcerv e Cipola, 2005).

Os melhores dados sobre consumo de álcool no Brasil podem ser encontrados nas pesquisas realizadas pela Organização Mundial de Saúde, que há décadas monitora o consumo de bebidas no mundo e seus efeitos sobre a saúde. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil está em 63º lugar entre 153 países no ranking de consumo per capta de álcool. Ainda segundo o estudo da OSM feito em 1999, entre 1970 e 1990, o Brasil teve um crescimento de 74,5% no consumo de bebidas alcoólicas.

A tabela abaixo foi extraída do Global Status Report on Alcohol 2004 e mostra um crescimento sistemático no consumo de bebidas alcoólicas per capta no país desde 1961 até 1997, quando o pico da série é atingido – exceto de vinho, que se mantém praticamente estável. A partir de 1997, a tendência se inverte ligeiramente.

Gráfi co 7Brazil – Recorded aldult per capita consumption (age 15+)

Sources: FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), Word Drink Trends 2003

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99O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

O aumento no consumo de bebidas no Brasil entre 1961 e 1997 pode estar relacionado a diversos fatores, como por exemplo, por hipótese: a) a intensa e irrestrita propaganda do produto nos meios de comunicação, voltada principalmente para os jovens, associando bebida a status e outros símbolos positivos. Cerca de 5% dos comerciais e nada menos que 27% das vinhetas exibidas na TV são propagandas de bebidas (Pinski, I USP, 1994, tese de mestrado: Análise da Propaganda de Bebidas Alcoólicas na Televisão Brasileira, citado em Alcohol and Public Health in 8 developing Countries, WHO, 1999); b) redução dos custos de produção, principalmente depois do programa pró-álcool – que barateou os custos dos destilados de cana de açúcar; c) mudanças nos padrões culturais e religiosos com relação ao consumo de bebidas, principalmente entre mulheres e jovens; d) tolerância policial com relação a crimes de menor gravidade, como embriaguez; e) tolerância administrativa com relação à licença para a venda de bebida e aumento na densidade de bares nas periferias dos grandes centros urbanos; e f) mudança nos invólucros, que tornaram mais fácil o transporte, manuseio e consumo de bebidas (bebidas em lata, garrafas menores, abertura sem abridor de garrafas).

Este crescimento vertiginoso no consumo de bebidas nas últimas décadas – de 1,88 litro per capta em 1961 para 5,32 litros por capta por ano em 2001, 182% de crescimento – transformou o Brasil num país de consumo “médio” para os padrões mundiais, uma vez que a média per capta de consumo de álcool é de 5,1 litros.

O caso brasileiro chama a atenção não tanto pela taxa de consumo per capta, mas antes por apresentar uma elevada taxa de dependência de álcool entre os adultos: 11,2% dos consumidores podem ser considerados dependentes de álcool, o que deixa o Brasil apenas atrás da Polônia entre os países analisados. Entre os homens adultos com idade de 18 a 24 anos, a taxa de dependentes chega a 26.3%, colocando o Brasil entre os cinco da lista com mais jovens dependentes.

Levantamentos realizados nos anos 90 pelo CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – estimam que entre 6,6 e 11,2% da população brasileira pode ser considerada dependente de álcool. Entre os jovens do sexo masculino, a prevalência de dependentes de álcool sobe para 23,7%, de acordo com a pesquisa realizada em 2001 nas 107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Cerca de 69% dos pesquisados revelaram ter usado álcool alguma vez na vida, sendo a prevalência elevada mesmo entre adolescentes entre 12 a 17 anos (48,3%).

Digno de nota é o dado segundo o qual 7,9% dos homens declararam já ter discutido com outras pessoas após a ingestão de bebidas alcoólicas. (Galduroz e Caetano, 2004) A relação entre uso de álcool e violência é evidenciada também num artigo citado de Duarte e Carlini-Cotrim, que analisaram 130 processos de homicídios ocorridos entre 1990 e 1995 em Curitiba: segundo o estudo, 53,6% das vítimas e 58,9% dos autores estavam sob efeito de bebidas alcoólicas no momento do crime.

Não existem dados disponíveis sobre o consumo de álcool no Estado, mas algumas evidências indiretas apontam para uma eventual diminuição do consumo mais pesado de álcool em São Paulo. Na ausência de dados fi dedignos sobre o consumo de álcool, é possível utilizar como variável substituta (proxi) diversos indicadores da área da saúde relacionados a doenças e mortalidade causadas pelo álcool, uma vez que diversos estudos mostraram através de análises de séries temporais que existe uma relação forte e positiva entre o consumo de álcool e morbidade por doenças

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relacionadas ao álcool, como intoxicação, psicose, cirrose, pancreatismo e alcoolismo. (Norstrom, 1998). Além disso, através do uso dos indicadores do sistema de saúde é possível estimar também o consumo não registrado de álcool (importação, fabricação caseira, etc), que é bastante elevado no Brasil, onde é grande a produção artesanal de cachaça e outras bebidas, cujo volume de consumo se desconhece.

O fato é que, por algum motivo – cuja explicação será tentada mais adiante – a morbidade na rede pública de saúde por “auto intoxicação voluntária por álcool” cai de 34 por mês em 1998 / 1999 para 19 por mês em 2004 / 05, uma queda de 44% no período. Por sua vez, os atendimentos por intoxicação por álcool na rede pública caem de seis mil por ano em 1992 para cerca de dois mil por ano em 2004.

Além dos dados da rede pública de saúde, é possível, como vimos, estimar o consumo através de pesquisas de consumo com amostras da população. A última pesquisa do Cebrid realizada em 2004 – 5º Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes – apontou uma redução no consumo de álcool entre os jovens com relação aos dados levantados em 1997. O problema é saber se estas quedas se devem a redução real no consumo ou a mudanças operacionais no atendimento médico do sistema de saúde pública ou ainda a fl utuações amostrais, no caso das pesquisas de consumo.

Mas se esta tendência de queda no consumo de álcool for correta, ela pode explicar parcialmente a queda dos homicídios no Estado. Existem algumas possíveis hipóteses para isso: a) mudança na propaganda alertando que bebidas alcoólicas podem fazer mal a saúde se consumidas em excesso: em 1996 uma Lei Federal proibiu a propaganda no rádio e na TV de bebidas que contenham mais de 13% de etanol entre as 6:00 e 21:00 horas; b) aumento relativo do preço do álcool em função da perda do poder aquisitivo da população, c) introdução do novo Código Nacional de Trânsito; d) campanhas contra o uso do álcool realizadas pelas Igrejas, principalmente evangélicas, que crescem rapidamente no país e tem meios próprios de comunicação – e) controle mais rigoroso do consumo: a série histórica de ocorrências por “embriaguez” registradas pela polícia no município de São Paulo mostra um crescimento entre 2000 e 2004, apontando talvez para o fato de que a polícia está mais rigorosa com relação ao consumo excessivo de álcool, aumentando os “custos” do consumo excessivo.

O crescimento das religiões Evangélicas foi um dos fenômenos mais notáveis no país, segundo o IBGE, que diagnosticou no último censo em 2000 que os Evangélicos já são cerca de 15 % da população do país, com 26 milhões de seguidores. A taxa de crescimento anual dos evangélicos no Brasil entre 1991 e 2000 foi de 7,43% e no Sudeste está entre 7 e 10%. No Sudeste os evangélicos representam quase 22% da população (projeção para 2004) e apenas na região metropolitana de São Paulo os evangélicos são 3.134.940 pessoas ou 17,53% da população da RM, segundo o censo de 2000. As Igrejas Evangélicas estão espacialmente concentradas nos bairros periféricos de São Paulo, onde também ocorre a maioria dos homicídios. É comum nessas Igrejas a pregação contra o consumo do álcool, drogas e a violência. Por outro lado, diversos estudos mostram que a religião é uma dimensão importante quando se trata de analisar o envolvimento da população – principalmente adolescente – com álcool e drogas (Dalgalarrondo e outros, 2004). No Brasil, um estudo de 1998 investigou 2.287 estudantes de uma amostra de sete escolas públicas e privadas de Campinas, através de um questionário de crimes auto-reportados. Entre os resultados encontrou-

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se que o uso pesado de pelo menos uma droga no último mês foi mais freqüente entre os estudantes que não tiveram uma educação religiosa durante a infância. O uso no último mês de cocaína, ecstasy e o abuso de remédios foram mais freqüentes entre os estudantes que não tinham religião e que não tiveram uma educação religiosa na infância. A conclusão é que religião tem uma forte infl uência sobre uso de drogas e álcool entre adolescentes. (Dalgalarrondo e outros, 2004).

Tabela 9

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Relação entre consumo de álcool, religião e vitimização

Uma pesquisa de vitimização realizada pelo Instituto Futuro Brasil – IFB em 2003, em que foram entrevistadas 5000 pessoas nos 96 distritos da cidade de São Paulo, traz importantes informações sobre a relação entre álcool, religiosidade e vitimização. Os dados mostram que o hábito de consumir bebida alcoólica é maior entre os homens (59,2%) do que entre as mulheres (39,8%) P <,000. As diferenças de idade também são signifi cativas, sendo a população de 20 a 39 anos a que mais consome álcool (54,3%), seguida da faixa de 40 a 59 anos (49,6%) e dos adolescentes de 16 a 19 anos (45,6%). Na população de 60 ou mais anos essa proporção cai para 29,2%.O consumo também tende a ser maior entre os mais ricos do que entre os mais pobres, em relação linear:

O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida alcoólica, mesmo que muito raramente ou em ocasiões muito especiais? sim

Tabela 10

Classe %

A 64,2B 53,2C 46,7D 41,9E 34,1

Como vemos na tabela abaixo, há uma estreita relação entre consumo de álcool e ser vítima de algum crime ou se envolver em algum tipo de ocorrência delituosa (quanto maior o consumo, maior a vitimização). As diferenças são expressivas, e mesmo nos casos em que não há uma associação signifi cativa os dados apontam sempre no sentido de maior propensão ao envolvimento com ocorrências entre os que costumam consumir álcool.

As diferenças observadas na relação entre álcool e vitimização ocorrem de forma homogênea entre as classes sociais, apesar dos mais ricos tenderem a ser mais vitimizados do que os mais pobres. No entanto, a força das associações difere em alguns tipos de crime. Nos crimes contra o patrimônio, por exemplo (sobretudo roubo e furto de carro / moto), a associação tende a ser maior entre os mais ricos. As questões que envolvem a presença de armas de fogo (já foi ameaçado por arma de fogo, alguém disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a), já foi ferido com arma de fogo alguma vez na vida) são as que tem as associações mais signifi cativas, apontando o álcool como elemento potencializador do ato agressivo, tal como observado na literatura, o que evidencia novamente a hipótese da combinação entre álcool e violência. Essas associações tendem a ser mais fortes entre os mais pobres.

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Tabela 11Consumo de álcool X vitimização

O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida alcoólica, mesmo que muito raramente ou em ocasiões muito especiais?

Sim Não Total P

Nos últimos 12 meses foi vítima de algum furto ou roubo? sim 14,1% 9,8% 11,9% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...teve carro ou moto roubado furtado? sim

20,7% 12,1% 16,3% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...teve algum outro bem roubado ou furtado? sim

39,9% 29,4% 34,5% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...sofreu alguma forma de agressão física? sim

14,3% 8,5% 11,4% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...foi ameaçado com uma arma de fogo? sim

28,9% 17,0% 22,8% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...alguém disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a)? sim

5,4% 2,4% 3,9% ,000

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...foi ameaçado por algum outro tipo de arma? sim

10,0% 6,1% 8,0% ,000

Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma outra formade violência ou crime? sim

2,6% 1,4% 2,0% ,009

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...foi ferido por uma arma de fogo? sim

1,6% ,7% 1,2% ,021

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...teve sua casa invadida por assaltantes? sim

19,5% 17,2% 18,3% ,060

Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma agressão física? sim 2,6% 1,8% 2,2% ,150

Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...foi ferido por algum outro tipo de arma? sim

2,0% 1,5% 1,7% ,334

Fonte: IFB

Para observar efeitos do álcool no comportamento agressivo, comparamos o consumo de álcool com o uso de arma de fogo e com atitudes anti-sociais em duas situações diferentes, como mostra a tabela abaixo. Novamente constata-se a associação signifi cativa entre o consumo de álcool e a atitude agressiva.

Quadro 1Consumo de álcool X agressão

O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida

alcoólica, mesmo que muito raramente ou

em ocasiões muito especiais?

Sim Não Total P

Alguma vez na sua vida o(a) Sr(a)... usou ou mostrou uma arma

para se defender? sim4,0% 2,0% 3,0% ,000

Nos últimos 12 meses, quantas vezes o(a) Sr(a) gritou contra alguém

que estivesse dirigindo um carro para demonstrar que não gostava de

seu modo de dirigir? Às vezes, três a cinco vezes / Freqüentemente,

seis ou mais vezes

23,3% 13,6% 18,3% ,000

Nos últimos 12 meses, quantas vezes, no meio de algum problema,

o(a) Sr(a) gritou contra alguém que não era seu familiar? Às vezes,

três a cinco vezes / Freqüentemente, seis ou mais vezes

16,8% 8,4% 12,5% ,000

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A relação entre álcool e comportamento agressivo também aparece de forma homogênea entre as diferentes classes sociais, embora a associação pareça ganhar força nas classes mais baixas em relação aos mais ricos nos três itens pesquisados. Esses dados mostram que embora não haja dúvida na potencialização da violência e de seus efeitos pelo álcool, essa relação deve ser observada com cuidado, pois em diferentes contextos – como as características socioeconômicas das diferentes regiões da cidade – esse efeito muda de qualidade, o que muda também o efeito das políticas públicas específi cas de prevenção ao uso do álcool sobre os grupos sociais.

A análise entre álcool e religiosidade também aponta aspectos interessantes. A pesquisa mostra que quanto maior a participação em atividades religiosas, menor o consumo de álcool. A relação é linear e aparece com relação a todas as classes sociais. Vemos que quanto mais baixa é a classe social mais forte a associação entre aumento da freqüência aos cultos e diminuição do consumo de álcool, observação que vai ao encontro do fato que a maior parte dos evangélicos são provenientes das classes mais baixas – como veremos mais adiante – e da pregação contra o uso do álcool que eles fazem em seus cultos.

Tabela 13Com que freqüência o(a) Sr(a) participa de atividades ou cultos dessa religião?

Nunca participa

Menos de uma vez ao mês

De 1 a 3 vezes ao

mês

Ao menos uma vez

por semana

Mais de uma vez

por semanaTotal P

classe Acostuma tomar bebida alcoólica

64,6% 70,4% 71,8% 58,2% 43,5% 62,4% ,004

classe Bcostuma tomar bebida alcoólica

59,5% 57,7% 57,2% 46,9% 40,2% 52,4% ,000

classe Ccostuma tomar bebida alcoólica

58,5% 53,4% 50,9% 40,8% 27,4% 44,8% ,000

classe Dcostuma tomar bebida alcoólica

59,0% 46,2% 47,5% 31,7% 18,4% 40,2% ,000

classe Ecostuma tomar bebida alcoólica

57,9% 71,4% 38,5% 26,1% 8,1% 35,7% ,000

Fonte: IFB

Ao compararmos o hábito de beber com o tipo de religião, vemos que a pregação dos evangélicos contra a bebida realmente surte efeito. Do total de evangélicos entrevistados, apenas 26,8% costumam tomar bebida alcoólica, contra 53,5% dos católicos e 53,6% entre os adeptos de outra religião.

Tabela 14

Tipo de Religião

evangélico católico outro Total P

Costuma tomar bebida alcoólica 26,8% 53,5% 53,6% 49,1% ,000

Fonte: IFB

É importante considerarmos também que os evangélicos em sua maioria fazem parte do grupo mais carente da população. De acordo com a pesquisa, os evangélicos tem baixa escolaridade e 68,8% estão nas classes C, D e E. Religião que tem tido uma

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105O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

adesão impressionante nos últimos anos, sobretudo em suas vertentes mais modernas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, os evangélicos compõem hoje cerca de 20% da população paulistana, sendo que 69,1% tem entre 16 e 39 anos, confi rmando um perfi l mais jovem em relação às outras religiões. A tendência a beber menos quanto menor o nível de renda é muito mais clara entre os evangélicos: na classe E, 7,5% dos evangélicos costumam consumir álcool, enquanto entre os católicos, na mesma classe, a proporção é de 50,7% e entre os freqüentadores de outras religiões 57,1%. Os evangélicos mais pobres, além de consumirem menos álcool, são os mais assíduos aos cultos de sua religião, respondendo ao apelo focado na população mais carente que é característico dos pastores evangélicos, hoje cada vez mais infl uentes nos meios de comunicação, possuindo canais próprios de televisão e diversas estações de rádio.

Apesar do enfoque da pesquisa não permitir tirar maiores conclusões sobre essas relações, podemos inferir que o crescimento das igrejas evangélicas e a participação da população mais pobre pode ter relações com a vitimização desse público, principalmente com relação aos homicídios, cuja população de risco é a mais jovem e mais pobre. A relação entre tipo de igreja freqüentada e as diferentes categorias de vitimização não sugere diferenças importantes, no entanto é possível supor que o envolvimento com atos ilícitos poderia ser maior nessa população não fosse a infl uência da igreja evangélica, que arregimenta justamente a parcela da população mais vulnerável à violência. Exemplo disso é a relação com o uso de armas entre os que consomem álcool, e sua presença nitidamente menor entre os mais assíduos aos cultos.

Curiosamente, apesar dos mais ricos terem maior prevalência de consumo de álcool, as classes mais baixas são as que vão aos bares e botecos da cidade com maior freqüência. Na classe E, aqueles que disseram freqüentar bar ou botequim quase todos os dias somam 15,5%, enquanto os que disseram freqüentar uma ou duas vezes por semana são 27,9%, totalizando 43,4%. Na classe D, essa parcela totaliza 36,6%, enquanto nas classes A e B os números são de 19,4% e 24,3%. Quando perguntados especifi camente sobre o tipo de estabelecimento em que costumam beber, 47% dos consumidores da classe E freqüentam bares, lanchonetes ou padarias. Nas outras classes, essa freqüência cai progressivamente: 31% na classe D, 26,8% na C, 18,5% na B e 14,7% na classe A.

Essa alta freqüência dos mais pobres pode estar refl etindo a ausência de outros recursos sociais, concentrando a população nos bares existentes nos bairros da periferia, sobretudo os mais jovens, que consomem em maior quantidade e vão aos bares com freqüência muito maior que os mais velhos (43% entre 16 e 19 anos e 33,4% entre 20 e 39 anos costumam ir a um bar ao menos uma vez por semana). Dessa forma, em ambientes marcados pela carência de atenção dos recursos públicos e vitalidade comunitária, o efeito do álcool e o contexto dos botecos podem estar funcionando como mais um elemento intensifi cador da violência.

Álcool nas vítimas de homicídio em São PauloAs vítimas são freqüentemente co-responsáveis no processo de “precipitação” da

violência que resulta no homicídio. (Marvin Wolfgang, “Victim-precipitated criminal homicide”, in: Classics of Criminology, Waveland Press, 2004). Num estudo clássico citado por Wolfgang sobre a natureza dos homicídios na Filadélfi a entre 1948 e 1952, conclui-se que 26% dos casos poderiam ser classifi cados como VP, ou homicídios

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precipitados pela vítima, que difere dos demais casos de homicídio em algumas características: proporção elevada do uso de faca como meio, envolvimento entre vítima e autor, presença de álcool, presença de antecedentes criminais por agressão, entre outras diferenças relevantes. O uso do álcool parece estar fortemente relacionado a este processo de precipitação, pois ele aumenta a agressividade num contexto de provocação e diminui a capacidade de julgamento do indivíduo. A CAP da SSP de São Paulo, em conjunto com a Secretaria Estadual de Saúde, fez dois levantamentos com relação ao uso de álcool entre as vítimas de homicídio, utilizando amostras em 2001 e 2004, cujos resultados exploramos a seguir: de um total de 2.714 laudos examinados em 2001, o exame toxicológico não foi solicitado para 1.492 vítimas (55,0%). Entre aquelas que tiveram o exame solicitado, para um pouco mais que a metade (55,8%) o resultado foi negativo. O álcool foi a substância mais utilizada entre estas vítimas (42,5%). O uso de cocaína sozinha, ou associada ao álcool apresentou percentuais muito baixos (0,7%).

Visto não ser conhecido o critério para solicitação de exame, esses percentuais não devem ser generalizados para o conjunto das vítimas. Feita essa ressalva, os resultados mostrados a seguir dizem respeito somente às vítimas que tiveram o exame solicitado. O exame toxicológico é provavelmente solicitado quando a autoridade policial suspeita do uso de substância pela vítima, o que pode elevar os percentuais encontrados.(Gawryszewsky, Kahn e Mello Jorge, 2004).

Foi encontrada maior proporção de consumo de álcool no sexo masculino (44,0%), enquanto nas mulheres foi de 24,0%. Os cálculos realizados mostraram que essa diferença é estatisticamente signifi cativa (X2=10,4; =5%). Em relação à faixa etária das vítimas de homicídios que tiveram o exame toxicológico realizado pelo IML, observa-se que nas idades mais jovens e mais velhas, o percentual de resultados positivos para o álcool é menor que a proporção da média. Porém, nas faixas mais velhas tanto o número absoluto de vítimas quanto o percentual de exames solicitados são menores. A faixa de 30 a 44 anos apresenta 51,2% de positividade para o álcool entre as vítimas. Seguem-se os de 45 a 59 anos com 47,2%.

A análise do consumo de álcool (excluídos aqueles cujo exame não foi solicitado) segundo o meio utilizado para a perpetração dos homicídios também mostrou diferenças. Entre aqueles cometidos por arma de fogo, 41,0% das vítimas tinham feito uso de álcool, enquanto para os outros meios (arma branca, objeto contundente etc), esse percentual é maior, chegando a 58,9%. Essa diferença mostrou-se estatisticamente signifi cativa (X2=16,5;=5%).

Dia e horário da semana:A análise dos dados do Boletim de Ocorrência, onde consta o dia e horário da

ocorrência, confi rma que os dias da semana que apresentaram maior proporção dessas ocorrências correspondem aos fi nais de semana, concentrando 50,0% do total de casos: sábado (500 vítimas), domingo (462) e sexta feira (348). A quarta feira é o dia com menor número de vítimas (233). É durante a noite e madrugada que a maior parte desses crimes ocorreram (entre 19:00 horas e 1:00 foram registrados 41,1% dos eventos). Essa fonte também possibilitou o conhecimento do local de ocorrência do evento, tendo sido verifi cada a coincidência entre local de residência da vítima e local de ocorrência do crime para 50,6% das vítimas. Para 24,0% dos óbitos essas localidades eram próximas e para 17,3% deles, os locais de residência e ocorrência eram diferentes.

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Chama atenção a alta prevalência de utilização do álcool entre as vítimas de homicídio que tiveram o exame toxicológico realizado (42,5%) apontando que mais estudos devam ser realizados para elucidar o papel do álcool na potencialização dos confl itos sociais que resultam em morte, em nosso meio. Esse resultado é próximo ao encontrado em pesquisa realizada com vítimas não fatais de agressões atendidas em um importante serviço de emergência do Município de São Paulo, onde percentual de alcoolemia encontrado foi 46,2%. O perfi l desses pacientes, maior prevalência no sexo masculino e na faixa etária de 25 a 44 anos, também coincide com o encontrado no presente. Os resultados encontrados em Cali, Colômbia, entre as vítimas de homicídios, são menores, variando entre 13,0 e 23,4%, no período de 1993 a 1998.

Este perfi l epidemiológico – vítimas e autores alcoolizados, concentração das mortes nas noites e nos fi nais de semana – fez com se pensasse numa legislação para o fechamento dos bares neste período, como forma de diminuir as mortes2. Os efeitos desta medida serão explorados no próximo tópico.

1.2) Efeitos da Lei Seca

A limitação de horários e dias para o consumo de bebidas é uma das 31 estratégias identifi cadas pela Organização Mundial de Saúde para reduzir o consumo de álcool. (Hawks, David. Prevention of Psychoactive Substance Use – a selected review of what works in the area of prevention, WHO, 2002). Vários estudos revistos pela OMS apontaram a relação entre o aumento do horário e dias de venda de álcool e crescimento no número de acidentes de trânsito, agressões e violências (Chikritzhs, 1997) embora poucos estudos tenham abordado a relação entre a diminuição dos horários e dias de venda e a diminuição da criminalidade.

Limitar o funcionamento de bares aparentemente não é uma medida popular: ela interfere na liberdade individual, nas atividades de lazer da população, já bastante escassas, e também afeta o comércio local. É preciso, portanto, ter fortes razões para implementar medidas drásticas como a Lei Seca. Para a população, todavia – de acordo com pesquisas de opinião realizada pela CNT/Census em abril de 2002 com dois mil entrevistados em 195 municípios do país – é o vínculo da bebida com a violência que faz com que medidas como a Lei Seca recebam aprovação. Dos entrevistados, 82,8% afi rmaram que “o consumo de bebidas alcoólicas é responsável pelo aumento da violência na sua cidade”. Esta crença é que explica porque 73% da amostra aprovou a “limitação de venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora da noite como medida de combate à violência”.

Tabela 15

bebidas alcoólicas – limitação da venda abril de 2002 %aprova 73,0

desaprova 24,6ns/nr 2,5

total 100

2 Curiosamente, apenas 2% dos homicídios ocorrem dentro de “bares”, “boates” ou “lanchonetes”, segundo a classifi cação de tipo de local adotada pelo Infocrim; é possível contudo que outros casos tenham sido classifi cados na categoria “estabelecimentos comerciais”, no interior dos quais ocorrem 3,9% dos assassinatos em São Paulo.

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Qual é a sua opinião sobre a limitação da venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora da noite como medida de combate à violência? 1- aprovo, a violência está fortemente ligada ao consumo de álcool; 2- desaprovo, a medida contraria a liberdade individual.

As justifi cativas aqui são as mesmas das utilizadas para forçar os motociclistas a usarem capacete ou os motoristas a usarem o cinto de segurança: são equipamentos desagradáveis, mas o impacto econômico e social dos acidentes automobilísticos por falta de capacete ou cinto na população é tão elevado que o problema se tornou uma questão de saúde pública; nestes casos, considera-se legítima a intervenção estatal, forçando os indivíduos a tomarem precauções com relação à sua própria segurança, mesmo a contragosto. Tais medidas drásticas e impopulares se justifi cam na medida em que existem evidências empíricas que demonstram que o uso de capacete ou cinto de segurança de fato contribuem para poupar vidas e custos à sociedade, cujo interesse nestes casos se sobrepõem aos individuais. O mesmo pode ser dito, por exemplo, com relação à proibição do uso de armas de fogo pela população, uma vez que os homicídios por arma de fogo no país assumiram dimensões epidemiológicas: é preciso investigar se estas limitações – diminuir os horários de funcionamento de bares e proibição do uso de armas – são efetivas e se justifi cam em nome do interesse público maior, mesmo às custas de cerceamentos individuais.

No Brasil, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira da Unifesp e o pesquisador norte-americano Robert Reynolds, da organização internacional PIRE – voltada à avaliação de políticas públicas – apresentaram em outubro de 2004 os resultados de um estudo sobre a relação entre o consumo de álcool e violência na cidade de Diadema, que a partir de julho de 2002 proibiu a venda de bebidas alcoólicas após 23h. De acordo com a pesquisa, dados comparativos do número de homicídios em Diadema desde a data da implantação da “lei seca” revelam que houve diminuição da violência contra a mulher (36,54%); homicídios (23,6%) e casos de atendimento em pronto-socorros (67,68%).

Nos últimos cinco anos, 16 cidades na Grande São Paulo editaram alguma espécie de “Lei Seca”. Em levantamento anterior realizado pela Coordenadoria de Análise e Planejamento para avaliar o impacto destas iniciativas, constatou-se que das 11 cidades com Lei Seca para as quais a taxa de variação de homicídios entre 2001 e 2003 foi calculada, os homicídios caíram em 8. Em contrapartida, das nove cidades sem Lei seca para as quais a taxa de variação de homicídios entre 2001 e 2003 foi calculada, os homicídios caíram em 5. O mapa abaixo mostra em verde as cidades que adotaram a Lei Seca na Região Metropolitana de São Paulo.

Verifi camos na ocasião que a queda dos homicídios no primeiro semestre de 2003 com relação ao mesmo período de 2001 tinha sido bem maior (-9,8%) onde a Lei Seca está em vigor, do que nas demais cidades da RM (-0,6%). Ainda que parciais, os dados sugeriam que a Lei Seca tinha contribuído efetivamente para aprofundar queda dos homicídios verifi cada na GSP a partir de 2001. Mas não é condição necessária, pois a queda também ocorreu em alguns municípios sem Lei Seca; também não é condição sufi ciente, pois alguns Municípios com Lei Seca tiveram aumento dos homicídios.

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109O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

TESTANDO OS EFEITOS DA LEI SECA

Utilizamos dois diferentes procedimentos para testar o efeito da Lei Seca sobre os homicídios, usando em ambos os procedimentos a série mensal de homicídios para cada um dos 16 municípios, entre janeiro de 2001 e dezembro de 2004.

No primeiro procedimento testamos um modelo causal, onde um modelo geral para as séries históricas é assumido a priori e uma variável dummy é utilizada para testar a diferença de média e variância antes e depois da adoção da Lei Seca. Assim, os meses anteriores à medida recebem um valor zero e os posteriores o valor um, formando uma série determinística. Utilizando a série histórica de homicídios na Região Metropolitana de São Paulo no período, detectamos a existência de um componente auto-regressivo de ordem 1 na série, de curta memória (r2= 63 AIC= 287; t fator auto-regressivo de ordem 1= 8.7 com prob >.000). Assumimos portanto o mesmo modelo (AR1) como válido para todas as cidades. A hipótese a ser testada em cada caso é a de que a média de homicídios nos meses anteriores à introdução da Lei Seca é signifi cativamente superior à média dos homicídios nos meses posteriores e o t de student é utilizado para verifi car a signifi cância da variável “Lei Seca”.

A tabela abaixo resume os resultados encontrados quando o modelo causal é utilizado. Tanto o R2 quanto o AIC são medidas da qualidade de precisão e adequação do modelo (goodness of fi t), mas não são relevantes no contexto de teste de hipóteses causais uma vez que nosso interesse não está em construir um modelo que explique a série histórica em todas as suas nuanças para fazer previsões acuradas (forecasting).

Nosso interesse principal está nas diferenças antes e depois da intervenção e por isso a tabela está hierarquizada de acordo com a magnitude do t encontrado para a variável Lei Seca. Das 16 cidades pesquisas, podemos dizer que a Lei Seca contribui para reduzir a média mensal de homicídios em 6, especifi camente Embu, Mauá, Barueri, Embu-Guaçú, Diadema e Osasco. Talvez Itapevi, se quisermos ser menos rigorosos. Note-se que em geral estas são as cidades que apresentavam médias elevadas de homicídios mensais, de modo que é possível que os efeitos da Lei Seca não tenham sido observados nas demais cidades simplesmente porque a quantidade de casos é insufi ciente para

Mapa 1

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avaliação. Observe-se também que no caso de Poá, Juquitiba, Ferraz de Vasconcelos e S. Lourenço da Serra o sinal é positivo, embora nestas cidades os parâmetros sejam não signifi cativos e o número de casos muito pequeno para análise.

Embora bastante utilizado para testar a existência ou não de efeitos causais entre duas variáveis, este tipo de procedimento não é de todo ideal, pois pode facilmente induzir a identifi cação de falsos positivos. Estamos falando de uma Lei e, portanto é difícil afi rmar com certeza que os efeitos se manifestam exatamente a partir da data em que a medida entrou em vigor legalmente: normalmente é preciso regulamentar a Lei através de um decreto, operacionalizar as ações de fi scalização, etc., de modo que é bastante provável que os efeitos se manifestem alguns meses depois da lei ter entrado em vigor.

Por outro lado, é possível que alguns municípios tenham “testado” a medida antes – através de operações para a fi scalização de bares e somente depois tenham adotado a Lei Seca ou ao menos alardeado na mídia a intenção de fi scalizar a venda de bebida.

Tabela 16forçando “dummys” para avaliar a intervenção e assumindo

a priori um modelo AR1 para descrever as séries

Município R2 AIC T Prob Data Lei Seca Média antes Redução

Embu .39 142 -6.15 .000 12/2002 15.4 -6.8

Mauá .18 147 -3.09 .003 7/2002 15.5 -4.5

Barueri .29 96 -2.55 .014 3/2001 15 -8.0

Embu-Guaçú .17 38 -2.37 .022 4/2003 3.1 -.72

Diadema .21 155 -2.17 .035 3/2002 18.4 -4.5

Osasco .51 159 -2.04 .047 12/2002 27.1 -6.4

Poá .06 5 1.90 .063 8/2004 1.4 +.85

Juquitiba .07 9 1.85 .072 5/2002 .25 +.74

Itapevi .11 119 -1.68 .100 1/2002 9.8 -2.3

Jandira .50 66 -1.55 .127 8/2001 4.8 -1.3

S. Caetano .12 6 -1.50 .140 7/2004 1.2 -.82

Ferraz Vasc. .11 89 .25 .805 9/2002 5 +.19

S. Lourenço Serra .00 -88 .22 .829 6/2002 .13 +.02

Vg. Gd. Paulista .14 13 -.15 .880 12/2003 1 -.06

Itapecerica .00 84 -.11 .909 7/2002 6.2 -.08

Suzano .01 102 -.01 .992 6/2002 6.5 -.00

Detecção de IntervençõesEm razão destas difi culdades, utilizamos um procedimento alternativo proposto

por Box-Jenkins chamado “intervention detection”, mencionado anteriormente quando analisamos os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre várias dimensões ligadas a armas de fogo. Trata-se como vimos de um procedimento empírico do tipo “data driven”, que deixa os dados falarem por si só, sem assumir nenhum modelo apriorístico nem forçar datas específi cas para as quebras de nível. Se um

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111O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

“outlier” existe na série – como uma queda signifi cativa nos homicídios –, então ele é simplesmente detectado.

A identifi cação do momento exato da quebra nem sempre é perfeita quando o número de casos é pequeno e sujeito a fl utuações aleatórias e, como vimos, além disso, a publicação da Lei (situação de jure) não coincide necessariamente com o momento em que ela começa a afetar a realidade (situação de fato), assumimos aqui que se a data da quebra identifi cada na série é “próxima” da data da publicação da Lei, podemos assumir que a responsável pela queda foi efetivamente à introdução da medida.

A tabela abaixo resume os resultados encontrados. Para Osasco e Diadema utilizamos também a série histórica de “agressões intencionais cometidas por arma de fogo” do Datasus, como um teste de validade para as séries policiais. Das 16 cidades, encontramos quebras de nível signifi cativas e negativas, conforme o esperado, em 6 delas, nomeadamente Osasco, Embu, Diadema, Mauá, Itapevi e Barueri. Embu-Guaçú portanto sai da lista de cidades onde o impacto foi signifi cativo. Novamente, são as cidades com maiores quantidades mensais de casos de homicídio.

Observe-se que quando não forçamos uma dummy para a data da intervenção, mas deixamos para as características intrínsecas aos dados a seleção do momento da quebra, vemos que as quebras de nível em Itapevi e Barueri ocorreram muito tempo depois da entrada em vigor da medida, de modo que é arriscado dizer que as reduções dos homicídios nestas duas cidades se devem a medida. Muito provavelmente trata-se de falsos positivos que o primeiro procedimento não permitia separar dos demais casos.

Tabela 17

Os casos de Osasco, Embu, Diadema e Mauá, portanto, são os únicos que oferecem evidências consistentes com uma redução dos homicídios num período relativamente próximo ao da adoção da Lei Seca. Reduções, aliás, bastante signifi cativas: considerando que estas 4 cidades adotaram a medida de controle de venda de álcool ao redor de 2002, cerca de 750 vidas foram poupadas nestes dois anos. Isto representa nada menos do que cerca de 21% da queda total de homicídios verifi cada no Estado entre 2002 e 2004.

Observe-se que as quatro cidades onde o efeito foi mais pronunciado têm também guardas municipais, que auxiliam na tarefa de fi scalização e implementação da Lei Seca. Talvez sejam necessárias a combinação e o efeito interativo da existência da Lei Seca e da Guarda para que os efeitos sejam observados – embora a condição

CIDADE RESULTADO

DATA DA

INTERVENÇÃO

LEI

SECA HIATO R AIC T P ANTES EFEITO DEPOIS

OSASCO LEVEL ago/03 23/12/2002 8 MESES DEPOIS 0,72 135,60 -10,46 0 27,7 -12,8 14,9OSASCO SUS LEVEL dez/02 23/12/2002 MESMO MÊS 0,56 266,60 -9,54 0 17,2 -10,1 7,1EMBU LEVEL set/02 18/12/2002 3 MESES ANTES 0,61 122,70 -6,43 0 15,1 -6,4 8,7DIADEMA LEVEL jul/02 13/03/2002 4 MESES DEPOIS 0,42 142,20 -6,01 0 19,8 -7,5 12,3DIADEMA SUS LEVEL abr/01 13/03/2002 11 MESES ANTES 0,62 256,86 3.81 0,003 23,2 -11,9 11,3MAUA LEVEL ago/02 3/7/02 1 MÊS DEPOIS 0,30 138,40 -4,83 0 15,5 -4,83 10,67ITAPEVI LEVEL abr/03 21/9/2001 20 MESES DEPOIS 0,41 101,50 -4,2 1E-04 9,3 -3,3 6BARUERI LEVEL set/03 29/3/2001 30 MESES DEPOIS 0,28 97,60 -2,72 0,009 8,2 -3,8 4,4SUZANO PULSE 21/06/2002 0,14 95,00 6,4SAO LOURENÇO DA SERRA PULSE

25/06/20020,36 -93,20 0,15

FERRAZ DE VASCONCELOS PULSE / SEASP

3/9/020,43 66,80 4,71

ITAPECERICA DA SERRA NO OUTLIER

4/7/020,00 82,00 6,2

JANDIRA NO OUTLIER 30/8/2001 0,00 66,80 3,6JUQUITIBA PULSE / SEASP 29/5/2002 0,62 -23,30 0,61POA SEASP 4/8/04 0,31 -8,16 1,3SAO CAETANO DO SUL PULSE 1/7/04 0,52 -22,00 0,91EMBU GUAÇU NO OUTLIER 4/1/03 0,08 41,80 2,8VARGEM GRANDE PAULISTA PULSE 12/12/03 0,66 -32,70 0,59

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não seja sufi ciente. São Lourenço da Serra, Juquitiba e Poá adotaram a Lei Seca, mas não tem Guarda Civil para implementá-la; ou seja, não há entre os citados nenhum município com Lei Seca mas sem Guarda Municipal que tenha apresentado queda signifi cativa dos homicídios, reforçando a hipótese de que talvez as duas condições sejam necessárias simultaneamente.

Não se pode assumir, apenas com base na existência “de jure” da Lei Seca que a medida foi efetivamente implementada; infelizmente não temos como mensurar com qual intensidade a Lei Seca foi implementada em cada cidade mas é possível especular que a explicação para não encontrarmos efeitos sobre homicídios em cidades que adotaram a medida resida na insufi ciente implementação. De modo que não é possível afi rmar a priori que a Lei não funcionou em muitos municípios onde foi adotada: investigações adicionais devem levantar em que medida houve de fato um esforço na implementação da medida.

Além da existência ou não da guarda municipal e da intensidade da implementação, outros fatores podem estar intervindo nos resultados, como, por exemplo, a proporção de bares ilegais na cidade. Supõe-se que o efeito da Lei seja maior quando a maioria dos estabelecimentos que vendem bebida alcoólica é legal; pois os ilegais não deveriam a priori estar em funcionamento e não se importam de infringir uma lei a mais.

Além das 16 cidades com Lei Seca, tomamos o cuidado de analisar a evolução dos homicídios no período em outras 3 grandes cidades da Região Metropolitana de São Paulo, que não adotaram a Lei Seca, como um “grupo de controle”. A intenção é verifi car se estas cidades apresentam também alguma alteração forte de nível de homicídios e quando esta alteração ocorre. A tabela abaixo resume os resultados do grupo de controle.

Tabela 18Evolução dos Homicídios em cidades sem Lei Seca, como Grupo de Controle

Cidade Resultado Data T P EfeitoGuarulhos pulso 05/2004 -5,02 .000 -11,7Santo André Level shift 01/2004 -3,89 .003 -4,3São Bernardo pulso 02/2001 2,81 .007 14,4

Das três cidades do grupo de controle apenas Santo André teve uma alteração signifi cativa do nível de homicídios: uma quebra clara em janeiro de 2004, que reduziu em 4,3 a média de homicídios mensal da cidade e que pode ser considerada como um efeito do Estatuto do Desarmamento adotado em dezembro de 2003. Portanto, estes resultados reforçam a hipótese de que as quedas observadas nos homicídios das cidades do grupo experimental se deveram efetivamente à adoção da Lei Seca.

2) A criação das guardas e secretarias Municipais de Segurançae seus efeitos sobre os crimes patrimoniais

A maior parte das Guardas Municipais do país concentra-se no Sudeste, principalmente no Estado de São Paulo, onde estão 180 das 368 Guardas do país (48,9%). Com efeito, dos 645 Municípios do Estado de São Paulo, 180 (27,9%) tinham Guardas Municipais em 2001 (IBGE).

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113O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

A criação de Guardas parece ocorrer na forma de contágio: a proximidade geográfi ca com um município que tem guarda aumenta a probabilidade de criação num município contíguo. Com efeito, os coefi cientes de auto-correlação espacial sugerem que a distribuição dos municípios com Guarda Municipal não é aleatória, mas concentrada em alguns clusters.

Das 180 Guardas, 104 são forças pequenas, com um efetivo de até 50 guardas. Mas o efetivo somado das Guardas no Estado é de 19.687 pessoas, das quais 11.162 estão na Região Metropolitana de São Paulo e 6.350 apenas na Guarda de São Paulo. Em média as guardas possuem um efetivo de 30 funcionários: média jogada para cima por conta de São Paulo, que isoladamente responde por um quarto do efetivo total de guardas do Estado de São Paulo.

Parece existir uma relação clara e linear entre tamanho do município e existência de Guarda Municipal: quanto maior a população do município, maior a probabilidade de existência de Guarda. Assim, por exemplo, 10% dos municípios com até 5.000 hab. têm Guardas, em contraste com 100% dos municípios com mais de 500.000 habitantes.

Há também uma associação signifi cativa com criminalidade: os municípios com índices mais altos de criminalidade têm maior probabilidade de criar Guardas Municipais. Apenas 9% dos municípios com baixa criminalidade têm guardas, em contraste com 52% dos municípios de alta criminalidade. Finalmente, merece destaque o fato de que das 180 Guardas existentes no Estado, 128 estão localizadas em municípios com elevadas taxas de urbanização e renda.

As Guardas Municipais, embora limitadas constitucionalmente em suas funções, na prática realizam um elevado número de atividades, freqüentemente extrapolando seus limites legais. Entre outras atividades executadas pelas Guardas vale a pena mencionar: Proteção dos Bens, Serviços e Instalações do Município, Patrulhamento Ostensivo a Pé e Motorizado dos Próprios Municipais, Atendimento de Ocorrências Policiais, Fiscalização do Trânsito, Ronda Escolar, Auxílio à Polícia Militar, Auxílio ao Público, Posto de Guarda em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Barreira Física ou Cancelas em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Patrulhamento Ostensivo Montado, Serviços Administrativos, Vigilância e Segurança Patrimonial, Defesa Civil e Proteção Ambiental.

Apenas na Grande São Paulo o efetivo somado das guardas atinge mais de 11 mil pessoas, o que é mais do que todo o efetivo da Polícia Federal no país e equivale a 9% de todo efetivo policial do Estado de São Paulo, que em 2005 estava em torno de 122 mil policiais. Portanto, é de se esperar que se há um efeito signifi cativo das Guardas em alguns municípios do Estado este deve aparecer mais claramente nos municípios desta região.

Quatro municípios da Grande São Paulo criaram suas guardas entre os anos de 2001 e 2004, período para o qual temos séries mensais de crimes para testar os efeitos da Guarda Municipal sobre certos crimes: Suzano, Embu, Mogi das Cruzes e Vargem Grande Paulista. Ainda que nem sempre ande armada nem tenha poder de polícia, as guardas fazem um trabalho de fi scalização ostensiva sobre certas áreas – especialmente onde existe concentração de equipamentos municipais. É possível afi rmar que elas exercem algum efeito intimidatório sobre aqueles criminosos dispostos a cometer crimes contra o patrimônio, pois na pior das hipóteses a guarda pode acionar pelo rádio as polícias civil e militar.

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Mapa 2

Para testar o efeito da criação e presença das Guardas, procuramos verifi car o que ocorreu nas séries de furto de veículos, roubo de veículos e roubos, antes e depois da criação da Guarda, nos quatro municípios. Os crimes relacionados a veículos foram selecionados porque em geral a notifi cação destes crimes é elevada, em função do valor do bem e necessidade de comprovação do crime, seja para recuperação posterior, indenização pela seguradora ou para evitar que a culpa por crimes cometidos com o veículo recaiam sobre o proprietário. Os roubos em geral sofrem mais com o problema da sub-notifi cação, mas ainda assim são mais notifi cados do que os furtos – dada a gravidade da situação – de modo que também optamos por incluí-los na análise.

Os dados de roubo de veículos sugerem que a criação da guarda municipal teve impactos signifi cativos em Vargem Grande Paulista e Embu. A guarda de Vargem Grande foi criada em setembro de 2003 e no mês seguinte observamos uma mudança de patamar na série histórica, com uma diminuição mensal de 3,5 roubos de veículo na cidade. Como a média mensal era de 7,9 roubos de veículos em Vargem Grande, isto signifi cou um corte pela metade. A guarda municipal de Embu foi criada em junho de 2003 e dois meses após presenciamos igualmente uma forte queda no número mensal de roubos de veículos, que cai de 43,6 para 24,8 por mês. Por outro lado, nem Mogi das Cruzes nem Suzano tiveram quedas signifi cativas nos roubos de veículo após a criação das guardas municipais.

Tabela 19Roubo de Veículo

CIDADE RESULTADOLEVEL

INTERVENTION DATE

GUARD CREATION

DELAY R AICT

VALUEP BEFORE EFFECT AFTER

VARGEM GRANDE PAULISTA

LEVEL OUTUBRO 2003 23/09/031 MONTH

AFTER.48 93 -4,67 .000 6,9 -3,5 3,4

EMBU LEVEL AGOSTO 2003 19/06/032 MONTHS

AFTER.65 205 -7,8 .000 43,6 -18,8 24,8

A criação da guarda em Vargem Grande Paulista parece ter contribuído também para a queda dos furtos de veículos – embora a quebra da série seja visível dois meses antes da criação da Guarda – e para a diminuição dos roubos na cidade, que caem

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115O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

de 10,1 para 5,9 por mês dois meses após. A análise da série de “roubos outros” em Suzano revela uma mudança de patamar neste tipo de crime em abril de 2003, só que para cima: de 71,3 para 91,4 por mês, crescimento que deve ter contribuído para a decisão da criação de uma guarda na cidade 8 meses depois, em dezembro de 2003, mas cujos efeitos são ainda imperceptíveis.

Tabela 20Furto de Veículo

CIDADE RESULTADOLEVEL

INTERVENTION DATE

GUARD CREATION

DELAY R AICT

VALUEP BEFORE EFFECT AFTER

VARGEM GRANDE PAULISTA

LEVEL JULHO DE 2003 23/09/032 MONTHS

BEFORE.53 63 -3,82 .0004 3,9 -2,1 1,8

Tabela 21Roubo outros

CIDADERESULTADO

LEVEL INTERVENTION

DATE

GUARD CREATION

DELAY R AICT

VALUEP BEFORE EFFECT AFTER

VARGEM GRANDE PAULISTA

LEVEL NOVEMBRO 2003 23/09/032

MONTHS LATER

.64 87,8 -6 .000 10,12 -4,2 5,9

SUZANO LEVEL ABRIL 2003 18/12/03 .40 231,8 5,61 .000 73,6 17,8 91,4

Em resumo, nos quatro casos para os quais existiam dados mensais disponíveis para os últimos anos, a criação da Guarda parece ter tido um efeito mais consistente apenas em Vargem Grande Paulista. Com efeito, o Município de Vargem Grande Paulista vem adotando nos últimos anos uma série de medidas para lidar com a criminalidade local: a guarda foi criada em setembro de 2003, assim como um Departamento de Segurança Pública e Patrimônio e a Lei Seca adotada em dezembro de 2003. Entre os projetos preventivos municipais merecem menção o Centro de Atendimento Profi ssional – CAP, o Beisebol Solidário, o Centro Acadêmico de Orientação Cívica ao Adolescente de Vargem Grande Paulista, CAPAZ e a Renda Cidadã.

Com apenas 38 Km quadrados de área e 32 mil habitantes, os 37 guardas municipais representaram um aumento expressivo na fi scalização ostensiva da cidade, que contava com cerca de 39 policiais militares e 20 policiais civis em 2002. O caso de Vargem Grande sugere que no contexto de uma cidade pequena do ponto de vista do território e da população, totalmente urbana, um aumento expressivo do efetivo ostensivo somado a outras medidas de combate a criminalidade podem ter um efeito signifi cativo sobre certos crimes.

A criação de guardas municipais pode ter efeitos positivos também sobre uma série de outros indicadores que não foram mensurados aqui, tais como na sensação de segurança dos munícipes, no trânsito local, na defesa civil ou no socorro a acidentes e nos atendimentos sociais; ela pode liberar policiais civis e militares de algumas funções menos importantes e permitir seu uso no combate direto à criminalidade.

Em todo caso, a criação de uma Guarda Municipal é uma medida cara e não por acaso apenas os municípios mais ricos decidiram arcar com estes custos, que envolvem

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salários, treinamento, equipamentos e diversas outras despesas permanentes. Como uma alternativa à criação de guardas, diversos municípios optaram por colaborar com a polícia estadual contribuindo com o pagamento do aluguel e outros custos para a manutenção da policial estadual na cidade. Há casos de municípios que oferecem um salário adicional para que policiais atuem também na defesa do patrimônio municipal. Infelizmente não é possível saber ainda qual a alternativa que resulta na melhor relação custo/benefício: criar a própria guarda ou investir recursos adicionais na polícia estadual alocada no município.

De qualquer forma, vale lembrar que o mais importante não é apenas a quantidade do efetivo policial – municipal ou estadual nas ruas – mas a qualidade do serviço realizado: se o efetivo está alocado nos locais e horários em que devem estar para inibir a ocorrência de certos crimes ou se está disperso aleatoriamente pelo território; se está atuando proativamente ou apenas reagindo aos chamados por serviço; se está efetivamente nas ruas ou realizando funções burocráticas; se trabalha em conjunto com a comunidade e mobilizando as forças da comunidade ou isoladamente.

2.1) Criação das Secretarias Municipais de Segurança

Inúmeros municípios perceberam o potencial amplo de atuação das prefeituras através de instrumentos que vão além da guarda: benfeitorias urbanas – iluminação, limpeza, poluição sonora, visual e ambiental; medidas para ampliar a educação, cultura, esportes e lazer para os jovens, especialmente na periferia; atuação em parceria com o governo Estadual; criação de conselhos de segurança com a participação da comunidade e descentralização das ações; campanhas de mobilização, conscientização e informação cidadã contra armas, discriminação e violência; fi scalização e concessão de alvarás para estabelecimentos que têm envolvimento freqüente com crimes e contravenções, como bares, desmanches e bordéis; reorientação da GCM no sentido de uma polícia comunitária, frisando aspectos como policiamento preventivo, a pé, recrutamento na comunidade e integração com a comunidade.

A enumeração destas propostas revela que a prefeitura tem em seu poder instrumentos efi cazes para lidar com a criminalidade. A teoria criminológica moderna vem insistindo na relação estreita entre as ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida e a redução da criminalidade mais grave. E é justamente nas mãos do poder municipal que estão concentradas muitas das atribuições e recursos para melhorar a qualidade de vida da população. Uma janela quebrada e não consertada de imediato atrai outras pedras, mas se ela é logo arrumada, os desordeiros são avisados de que as pessoas daquele local se importam com o que acontece ao redor e que não vão admitir a deterioração física e moral do bairro.

O poder municipal, se é limitado em sua capacidade de atuação repressiva por força do art. 144 da Constituição – que restringe a atuação das Guardas Municipais à proteção dos bens, serviços e instalações do município – por outro lado, tem em seu poder o Plano Diretor e controla os serviços de limpeza urbana e fi scalização sanitária, administra escolas e postos de saúde bem como diversos locais para prática de esporte e lazer. O fato de muitos municípios não terem Guardas e da Guarda não ter poder de polícia, obrigou os prefeitos a apostarem em outros caminhos ao trabalharem com a questão da segurança pública.

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Em contraposição ao modelo tradicional de “segurança pública”, centrada no controle repressivo-penal do crime, surgiram novas propostas de intervenção em âmbito municipal que apresentam uma abordagem alternativa da questão da segurança, enfatizando o caráter interdisciplinar, pluriagencial e comunitário na problemática. Este modelo alternativo partilha da visão de que “segurança” deve deixar de ser competência exclusiva das policias para converter-se em tema transversal do conjunto das políticas públicas municipais, uma vez que a ação policial é somente uma das formas de se abordar uma conduta anti-social.

Pluriagencialidade quer dizer que a segurança pública diz respeito a múltiplas agências dentro do município, para além da Guarda Municipal. Ao enfatizar a participação comunitária, por fi m, ressaltam que segurança pública é função do poder público, mas exercida em conjunto com a comunidade, tanto no planejamento como na execução de programas preventivos.

Tabela 22

Em contraste com as Secretarias Estaduais de Segurança Pública, focadas na gestão das polícias, as Secretarias, Consultorias ou Departamentos Municipais de Segurança Pública foram criados para gerir estas diversas ações – de cunho preventivo e repressivo – espalhadas por diferentes agências dentro da prefeitura. Simbolicamente a criação aponta para uma elevação do status da questão da segurança dentro do município e indica que mais recursos serão alocados para a área ou pelo menos que os recursos atuais deverão levar em conta as questões relativas à segurança no momento de decidir onde e como serão investidos.

De 1999 para cá, 12 municípios da Grande São Paulo criaram órgãos específi cos para centralizar e gerenciar as ações de segurança, embora na capital a Secretaria tenha sido transformada em “Coordenadoria” em 2005, perdendo status frente a outras áreas.

De acordo com o levantamento realizado pelo Fórum Metropolitano de Segurança, dos 12 municípios que criaram órgãos centrais de coordenação, 10 tem guardas municipais, 8 declararam ter programas sociais específi cos para prevenir a criminalidade, 7 editaram leis incentivando a divulgação do Disque Denúncia e 5 adotaram a Lei Seca. Isto revela que, embora a maioria dos municípios tenha adotado um “pacote” de medidas de

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segurança – incentivados em boa parte pelo Fórum Metropolitano – uma medida não leva necessariamente à outra.

Mas mais importante do que coordenar e implementar ações específi cas de segurança como as mencionadas, um órgão central pode realmente afetar a situação da segurança pública da cidade se ele conseguir imprimir a lógica da segurança na atuação dos demais órgãos e secretarias: opinar no Plano Diretor da cidade, indicar locais onde equipamentos públicos com potencial preventivo devem ser instalados, direcionar programas sociais para a população em risco – tanto de se tornar vítima quanto perpetradora de crimes –, conseguir mostrar aos demais órgãos municipais as conseqüências criminais de alguns projetos, como a construção de grandes projetos habitacionais concentrando populações desfavorecidas em áreas sem infra-estrutura, escolas ou centros de atendimentos a jovens, gigantescos e pouco administráveis, etc. Ainda é cedo para mensurar o efeito da criação destes órgãos na criminalidade e é difícil separar o efeito do órgão em si e dos inúmeros projetos que ele gere. Não existe tampouco qualquer material descrevendo exaustivamente as atividades que estas secretarias vem desenvolvendo na prática.

Diferentemente das Secretarias Estaduais de Segurança, as Secretarias Municipais surgiram num momento histórico em que já se compreendia a diferença entre “políticas de segurança pública” e “políticas públicas de segurança”, estas últimas muito mais amplas que as primeiras, mescladas com questões de cidadania e direitos humanos. Se for certo que o problema da criminalidade não se esgotará e não se resolverá em longo prazo apenas com o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal – então as Secretarias Municipais de Segurança, tal como concebidas aqui – serão fortes aliadas no esforço de prevenir a criminalidade.

Mapa 3

3) Os investimentos sociais e sua relação com a evolução dos homicídios

“As políticas municipais e regionais de segurança devem evoluir no sentido de uma abordagem integral e multisetorial, abarcando todos os aspectos e situações que conferem maior segurança aos cidadãos, incluindo, além da ação das forças de segurança, as políticas de inclusão social em geral e, em particular, as relações de

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confl ito no seio da família, o combate à violência de gênero ou contra crianças ou ações em que a juventude é vítima ou autora de violência, as manifestações locais de insegurança geradas por situações que não são da competência dos municípios (como o narcotráfi co, por exemplo), os riscos ambientais e as diversas formas de convivência cidadã.” Item n. 5 da Declaração Final do Seminário “Ciudades mas Seguras”

O texto que abre este tópico consta da Declaração Final elaborado pelos prefeitos da Grande São Paulo que se reuniram em Guarulhos em 2003 num seminário para avaliar a participação dos municípios na esfera da segurança. O tema dos painéis propostos – como “prevenção da delinqüência através de ações integradas de inclusão e participação social e de melhorias urbanas” – bem como o teor da Declaração, deixam claro que para as Prefeituras o combate à criminalidade e insegurança passa pela questão dos investimentos sociais, muitos dos quais são da alçada municipal.

De fato, a literatura criminológica confi rma o vínculo entre criminalidade e diversas modalidades de privação social e econômica. Assim por exemplo, sabe-se que em quase todos os países, o homicídio é um fenômeno altamente concentrado no espaço: algumas poucas áreas são responsáveis por uma enorme quantidade de casos enquanto na maioria das áreas a ocorrência de homicídios é relativamente baixa. Por traz desta concentração espacial existem diversos fatores como carências sociais e econômicas, estrutura da população e estrutura familiar (Baller et all, 2001; Ceccato, Haining and Kahn, 2004).

A literatura criminológica já há muito tempo estabeleceu co-variáveis importantes para a explicação da distribuição epidemiológica dos homicídios: densidade popula-cional, taxa de urbanização, desigualdade econômica, proporção de famílias dirigidas por mulheres, renda, proporção de homens jovens na população, concentração de favelas, etc. (Cruz, 2004) A geografi a dos homicídios em São Paulo é largamente explicada, por exemplo, por fatores ligados à pobreza, além de padrões de uso do solo e atividades criminais relacionadas ao tráfi co de drogas. (Ceccato, Haining and Kahn, 2004) Em outras palavras, sabe-se que as condições sócio-econômicas e demográfi cas afetam os níveis de criminalidade, sendo possível estimar as taxas de homicídios de determinada área com certa precisão apenas pelo conhecimento destas covariáveis.

A concentração espacial dos homicídios pode ser vantajosa do ponto de vista da implementação de políticas sociais preventivas: alocando recursos para áreas e populações mais afetadas, obtemos mais resultados com menos recursos. Uma hipótese para a queda dos homicídios no Estado de São Paulo desde 2000 é de que diversos Municípios estariam investindo em programas sociais de natureza preventiva “secundária” – nos últimos anos: bolsas para estudantes pobres, programas de emprego para jovens, centros de esporte, lazer e cultura na periferia, etc. Além deste trabalho de prevenção “secundária” (atuando sobre fatores e grupos de risco), poder-se-iam somar os efeitos da prevenção primária, que consiste em melhorar universalmente a qualidade de vida da população, através de ações do Município e do Estado em saneamento básico, coleta de lixo, melhorias na saúde, moradia e educação, entre outros.

Embora vários analistas mencionem os efeitos preventivos destas ações, poucos conseguiram demonstrar o vínculo entre elas e a queda dos homicídios, pois não existe um levantamento exaustivo dos programas de prevenção secundária executados pelos municípios nestes anos, e muito menos sobre a cobertura, escala e intensidade em que foram realizados ou se realmente atingiram os locais e grupos mais vulneráveis.

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Avaliações desta espécie são raramente encontradas na literatura mesmo nos demais países, dada a complexidade da questão, que exige que se leve em consideração um grande número de fatores simultaneamente.

Com relação à universalização da infra-estrutura e serviços básicos (prevenção primária) o problema é de outra ordem: existem diversos indicadores da evolução destas ações, inclusive indicadores agregados como o IDH ou o IPRS – para medir os avanços obtidos na última década. Todavia, eles não permitem comparar o esforço feito por cada município neste setor, pois cada cidade partiu desde o início de patamares bastante diferentes: uma cidade como São Caetano, por exemplo, evoluiu pouco na década, pois já tinha indicadores sociais bem avançados. Por outro lado, municípios mais pobres foram os que mais evoluíram proporcionalmente, pois partiram de patamares muito baixos. Pois é muito mais fácil aumentar, por exemplo, a alfabetização de um município pobre de 40% para 70% do que aumentar estes níveis num município que já contava com índices elevados de alfabetização. O resultado desta desigualdade de ponto de partida na situação social dos Municípios é que, quando relacionamos a evolução do IDH, IPRS ou outros indicadores de melhoria de qualidade de vida na década com os homicídios, encontramos muitas vez uma relação inversa à esperada: os homicídios caíram menos onde os avanços foram maiores e reduziram-se mais justamente onde houve poucos avanços de posição.

Quadro 2

Portanto, é preciso encontrar outras maneiras de estimar o impacto das ações sociais sobre os homicídios e crimes em geral. Embora se saiba que o vínculo exista e seja possível encontrar diversas razões teóricas pelas quais a melhoria da qualidade de vida deve impactar positivamente na criminalidade interpessoal – trata-se de algo difícil metodologicamente de comprovar.

Retornemos por um momento à questão da queda dos homicídios em São Paulo. É possível especular que, se a queda dos homicídios se deveu à melhoria da qualidade de vida da população nos últimos anos, então não apenas os homicídios mas outros crimes contra a pessoa também deveriam estar em queda. Em outras palavras, se a hipótese da prevenção e inclusão social é válida como explicação da queda, esperaríamos encontrar uma queda generalizada dos níveis de violência interpessoal na sociedade. Os dados todavia parecem não corroborar esta hipótese. Com efeito, a série histórica de agressões coletada pelo DATASUS sugere que, enquanto as agressões

categoria de crescimento* grupo de queda do hd entre 2000 e 2004 Crosstabulation

1 3 4

7,7% 37,5% 10,3%

2 4 6

15,4% 22,2% 15,4%

10 14 5 29

76,9% 77,8% 62,5% 74,4%

13 18 8 39

100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Count% within grupo de quedado hd entre 2000 e 2004Count% within grupo de quedado hd entre 2000 e 2004Count% within grupo de quedado hd entre 2000 e 2004Count% within grupo de quedado hd entre 2000 e 2004

incremento grande

incremento gradual

incremento pequeno

Total

quedacategoria de crescimento

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121O Papel dos Municípios na Segurança Pública |

com armas de fogo vêm caindo nos últimos anos – validando os dados policiais – as agressões com outros tipos de arma estão crescendo. Embora o resultado seja menos letal, os dados sugerem que não é a “violência” como um todo que está em queda.

No âmbito policial, é possível verifi car que outros indicadores de violência interpessoal no Estado estão estáveis – como as lesões corporais dolosas – ou aumentando como as vias de fato, injúrias, exercício arbitrário das próprias razões, difamações, calúnias, ameaças e outros indicadores de confl itos interpessoais. A única exceção é a série de “desentendimento” que claramente cai em São Paulo desde 1999, mas é possível especular que a categoria simplesmente vem sendo menos utilizada no infocrim e que não se trata necessariamente de uma queda real. Assim, pode-se mesmo dizer que os homicídios estão caindo apesar da continuidade da violência na sociedade. A não ser que se consiga explicar como os projetos de prevenção e inclusão afetam apenas os homicídios e não os outros tipos de crimes contra a pessoa, fi ca difícil argumentar que eles são os responsáveis pela queda recente da criminalidade no Estado, que além do mais foi abrupta.

Como vimos anteriormente, o mais provável é que a violência tenha se tornado simplesmente menos letal, em função da redução do número de armas de fogo em circulação.

Isto não quer dizer que a ação social preventiva das prefeituras e do Estado seja inefi caz para a contenção da criminalidade. É interessante observar que, não por acaso, a queda dos homicídios ocorre de forma mais intensa precisamente nos municípios com melhores indicadores sociais.

Quadro 3

Quadro 4

Nas tabelas acima dividimos os 645 municípios do Estado de São Paulo em 3 grupos de acordo com nível de desenvolvimento humano mensurado pelo IDH e em 5 grupos segundo a classifi cação do IPRS– sem levar em conta a evolução temporal do IDH ou do IPRS mas comparando os municípios num determinado ponto do tempo

Case Summaries

1,93 2,33 2,30 2,60 2,79 2,67 2,67 2,68 2,56164 164 164 164 164 164 163 164 1646,46 7,70 8,00 9,62 10,24 9,94 9,89 9,65 9,00327 327 327 327 327 327 327 327 327

48,38 49,31 49,57 54,14 59,01 58,61 57,74 54,04 49,93152 152 152 152 152 152 152 152 152

15,21 16,17 16,37 18,36 19,87 19,59 19,38 18,36 17,03643 643 643 643 643 643 642 643 643

MeanNMeanNMeanNMeanN

baixo IDH

medio IDH

alto IDH

Total

homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio

Case Summaries

88,30 89,56 90,35 97,96 107,06 107,19 105,12 97,22 90,5881 81 81 81 81 81 81 81 81

33,96 41,60 41,79 51,08 56,85 51,48 53,25 51,85 46,10

48 48 48 48 48 48 48 48 48

1,10 1,12 1,23 1,30 1,41 1,44 1,39 1,63 1,54211 211 211 211 211 211 211 211 211

2,52 2,91 3,33 3,81 3,84 4,25 3,97 3,94 3,73191 191 191 191 191 191 190 191 191

2,51 3,09 2,73 3,64 3,04 2,89 2,89 3,09 3,22114 114 114 114 114 114 114 114 114

15,17 16,12 16,33 18,30 19,81 19,53 19,33 18,31 16,98645 645 645 645 645 645 644 645 645

MeanNMeanN

MeanNMeanNMeanNMeanN

Grupo 2000 Revisto -polo

dinâmicos e baixodesenvolvimento social

saudáveis e baixodesenvolvimentoeconômico transicção social ebaixo desenvolvimentoeconômico baixo desenvolvimentoeconômico e social

Total

homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio

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(cross-sectional). A tabela mostra que entre 1999 e 2003 houve queda nos 3 grupos, mas especialmente no grupo de 152 municípios com alto IDH, onde a média de homicídios caiu de 59 para 49 por ano, voltando aos níveis de 1995. O mesmo pode ser observado quando classifi camos os municípios pelo Grupo no IPRS: a queda é maior nos municípios Pólo e chega a aumentar ligeiramente nos 114 municípios com “baixo desenvolvimento econômico e social”.

Algo semelhante ocorre quando analisamos apenas a RMSP, área foco deste estudo. A fi m de sugerir o vínculo entre a qualidade de vida de um município e os homicídios, dividimos os municípios da Grande São Paulo e a Capital em 3 grupos: 1) 13 municípios onde foi grande a queda observada dos homicídios entre 2000 e 2004 2) 18 municípios onde foi menor esta queda; fi nalmente 3) 8 municípios onde não houve queda ou houve aumento nos homicídios no período analisado; Exploramos a partir daí as semelhanças e diferenças de perfi l sócio econômico, demográfi co e criminal entre os 3 grupos de municípios: como os gráfi cos deixam claro, o grupo de 8 municípios onde não houve queda ou houve aumento dos homicídios é precisamente aquele com os piores indicadores sociais. Com efeito, alguns gráfi cos sugerem a existência de uma relação linear entre indicadores sociais e magnitude da queda dos homicídios.

Embora não possamos mensurar se os esforços preventivos recentes contribuíram efetivamente para a queda dos homicídios, podemos concluir com base nestas semelhanças de perfi l que a existência prévia de uma comunidade saudável e com bons indicadores sociais infl uencia positivamente a evolução local da criminalidade: nestes locais a queda foi acelerada enquanto nas cidades com baixa qualidade de vida não houve diminuição dos homicídios.

Mapa 4

CONCLUSÕES

Segurança Pública vem deixando progressivamente de ser um tipo de atividade predominantemente estadual. Neste setor está ocorrendo uma erosão da atuação do governo, provocada pelas iniciativas comunitárias de autodefesa, pela expansão

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das atividades da indústria da segurança e pela crescente participação do governo Federal e dos municípios no tema da segurança pública. Entre as causas desta erosão da atuação do governo estadual sobre a segurança estão o aumento do crime, do sentimento de insegurança e o reconhecimento de que o poder público estadual não pode sozinho atender a todas às necessidades específi cas de segurança demandadas pela sociedade.

No Brasil, a questão da segurança pública vinha sendo entendida restritivamente, até os anos 90, como questão de justiça criminal – polícia, tribunais e sistema carcerário. Pelo arranjo federativo brasileiro, a maior parte destas tarefas sempre coube ao poder público estadual. Com efeito, a constituição coloca os estados como os principais responsáveis pela gestão da segurança, cabendo ao governo municipal diminuta parcela desta responsabilidade. Mas os municípios deram-se conta de que têm em suas mãos instrumentos extremamente importantes para colaborar com a questão da segurança.

Vimos como diversos municípios criaram novas guardas municipais, agora com funções que extrapolam na prática a proteção do patrimônio da cidade. Elaboram-se Planos Municipais de Direitos Humanos e Segurança Pública, com diversos itens diretamente voltados ao problema da segurança e começaram a surgir Secretarias Municipais de Segurança. Diversos municípios criaram formas de incentivar a divulgação do Disque Denúncia e adotaram leis para restringir o uso de bebidas alcoólicas. Este esforço multi-agencial é louvável e promissor, na medida em que a população não quer saber se o problema é de alçada federal, estadual ou municipal.

Este movimento, como vimos, não foi casual: diversas pesquisas de opinião pública revelaram que a criminalidade, ao lado do desemprego, são as maiores preocupações do eleitorado e os prefeitos não poderiam fi car alheios ao problema.

Uma aposta consistente de prevenção ao crime é aquela baseada em projetos que têm as seguintes características: um diagnóstico preciso que determine os desafi os, fatores de risco e recursos da comunidade; um plano de ação que estabeleça prioridades, identifi que programas que podem ser modelos úteis e defi na objetivos de curto e longo prazo; um processo de implementação rigoroso que inclua o treinamento e coordenação dos parceiros envolvidos; avaliações que forneçam retornos tanto sobre os processos quanto sobre os resultados obtidos; uma coalizão de atores chave com lideranças fortes e staff de apoio administrativo; uma estratégia de comunicações que pode mobilizar profi ssionais e cidadãos e é sensível à idade, gênero e diferenças culturais. Estes são, em linhas gerais, os ingredientes para políticas bem sucedidas de prevenção ao crime, identifi cados na literatura3. E estes projetos, freqüentemente, podem prescindir perfeitamente da existência de efetivos policiais.

Embora de maneira limitada, procuramos mostrar aqui que a ação das prefeituras na esfera da segurança tem tido algum impacto: as denúncias criminais – matéria prima do trabalho policial – crescem consideravelmente quando as prefeituras se envolvem na divulgação do Disque Denúncia; a Lei Seca, quando adequadamente implementada, contribui para diminuir signifi cativamente a quantidade de homicídios. Se corretamente alocada, por outro lado, a guarda municipal pode contribuir para a

3 Confi ra “100 Crime Prevention Programs to Inspire Action Across the World”. International Centre for the Prevention of Crime, Canadá, 2001. No governo federal, o PIAPS é atualmente o programa que mais se aproxima destas premissas, embora esteja ainda em fase de gestação.

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redução dos índices de criminalidade contra o patrimônio. Quanto aos projetos de inclusão social e de prevenção primária e secundária – se não foi possível estabelecer uma prova direta e inequívoca de sua efi cácia – a literatura especializada já mostrou como os indicadores sociais infl uenciam os níveis gerais de criminalidade de uma determinada área. Vimos aqui como de certa forma eles foram importantes na explicação do porque a queda dos homicídios em São Paulo ocorreu em determinado tipo de municípios e não em outro.

A pesquisa mostra em resumo que a participação dos municípios na esfera da segurança pública é crescente e promissora e que o problema só pode ser debelado com a colaboração de todas as forças vivas da comunidade. Portanto, é preciso readequar o arcabouço legal e institucional do país – a começar pelo artigo 144 da Constituição que defi ne os órgãos policiais do país e suas funções – para incorporar ao sistema as ações deste novo e relevante parceiro.

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127Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

AVALIAÇÃO DA FORMAÇÃO E DA CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL DOS PERITOS CRIMINAIS NO BRASIL

Equipe da Pesquisa

Coordenação Geral e Responsável TécnicoProf. Dr. Michel Misse

PesquisadoresAlexandre Giovanelli (coordenação técnica)

Décio Nepomuceno da SilvaCarlos Eduardo Medawar

EstagiáriosDaniel de Pádua Fernandes Ribeirinha

Wilson Santos de Vasconcelos

Auxiliares de pesquisaHeloísa de Oliveira Duarte

Marina Fernandes

Realização Fundação Universitária José Bonifácio

UFRJ – NECVU

INTRODUÇÃO

A Perícia Criminal tem papel preponderante, principalmente no que concerne ao desenvolvimento e uso de tecnologias, já bastante desenvolvidas em outros países, as quais permitem uma investigação efi ciente, bem como a produção de provas, necessárias ao andamento e conclusão do inquérito judicial. Tal amplitude encerra uma complexidade e uma diversidade de técnicas que pressupõem uma sólida formação desses profi ssionais para o bom desempenho de suas funções. A questão da formação torna-se ainda mais crítica quando se considera que o perito criminal transita entre as esferas tecno-científi ca, jurídica e policial, o que exige desse profi ssional uma ampla gama de conhecimentos e treinamento que possibilitem a qualifi cação adequada para o exercício de uma função altamente complexa e singular.

Todavia essa formação e capacitação devem vir acompanhadas da adequação do ambiente de trabalho, quer seja através de instalações adequadas para tipos de atividades específi cas, quer seja pelo provimento e manutenção das tecnologias necessárias ao “fazer” científi co atual.

Assim, a avaliação da formação e capacitação da perícia criminal é imprescindível como instrumento para aperfeiçoamento da gestão do Estado, devendo ser entendida como um processo sistemático de compreensão contextualizada de uma atividade, com o objetivo de contribuir para o seu aperfeiçoamento e facilitar o processo decisório. No presente trabalho buscou-se fazer uma avaliação diagnóstica geral, com

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base em dois importantes estados da Federação, visando começar a suprir os dados necessários numa situação defi nida como de reconhecida ausência de informações básicas nesta área.

Objetivos

O presente projeto propôs-se a realizar um diagnóstico da formação e da capacitação profi ssional dos peritos criminais no Brasil, no intuito de propor, uma melhor formação profi ssional. Na impossibilidade de uma avaliação estado por estado, foram defi nidos dois importantes estados da Federação para a realização da pesquisa de campo: Rio de Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos específi cos:

• Realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na carreira de perito criminal, bem como dos demais requisitos exigidos pelos cursos de formação, capacitação e atualização de peritos criminais dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro;

• Verifi car a adequação do ambiente de trabalho para a aplicação e uso dos conhecimentos adquiridos pelo profi ssional;

• Analisar comparativamente a percepção dos peritos criminais quanto às defi ciências e necessidades dos cursos de formação e atualização oferecidos atualmente;

• Identifi car os atores envolvidos no processo de perícia, o que poderia contribuir para a melhoria da efi ciência da Perícia Criminal.

• Avaliar comparativamente o grau de satisfação ou insatisfação dos peritos em atividade, relacionando entre si suas representações a respeito da carreira, do ambiente de trabalho, das atividades específi cas desenvolvidas, etc com suas expectativas forjadas durante a qualifi cação;

• Propor sugestões que contemplem a resolução de alguns dos problemas identifi cados bem como o aperfeiçoamento dos pontos positivos reconhecidos durante a pesquisa.

Metodologia

A pesquisa foi realizada com base no método comparativo, sendo escolhidos para estudo dois Institutos de Criminalística; um do Estado do Rio de Janeiro e outro do Estado de Minas Gerais. Foram utilizadas as seguintes técnicas de coleta e análise de dados:

a) entrevistas: Foram realizadas em cada um dos estados, entrevistas com os respectivos diretores dos Institutos de Criminalística, assim como os seus superiores imediatos: o Diretor Geral de Polícia Técnica do Rio de Janeiro (DGPTC-RJ) e o Superintendente de Polícia Técnica de Minas Gerais. Foram realizadas, ainda, entrevistas com os representantes de classe dos respectivos estados, a fi m de confrontar as expectativas na formação e capacitação com a representação que é feita da realidade vigente. Finalmente foram entrevistados dois professores-organizadores de cursos de formação ou especialização, além dos gestores da Academia de Polícia responsáveis pela elaboração das ementas de cursos de cada Estado. As entrevistas abordaram as seguintes linhas temáticas: Formação e Capacitação, Estrutura, Gestão Pessoal e

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Identidade.Todas as entrevistas foram gravadas mediante concordância explícita do entrevistado e garantia de seu uso somente na pesquisa.

b) Realização de uma enquête (survey). Foi elaborado um questionário contendo itens que visavam avaliar a percepção dos peritos criminais quanto ao processo de formação, capacitação, valorização do trabalho e condições de trabalho e o grau atual de satisfação com as atividades desempenhadas. Os questionários, a serem auto-administrados, foram testados e distribuídos para uma amostra signifi cativa de postos ou seções de perícia nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A representatividade dos questionários preenchidos fi cou assegurada por uma alta taxa de resposta, que pode ser considerada de “adequada” a “muito boa” (Babbie, 1999, p. 253).

c) Realização de grupos focais. Foram realizados dois grupos focais com peritos criminais dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A técnica de grupo focal seguiu a metodologia proposta por Krueger (1996) e adaptada por Neto et al. (2001), em que a entrevista é direcionada a um grupo com características identitárias selecionadas, tendo um moderador e um relator como partícipes. O grupo focal consistiu de seis a oito peritos criminais participantes e de dois pesquisadores na função de moderador e relator, além de um operador de gravação. A técnica de grupo focal objetivou realizar um delineamento das relações da Perícia Criminal com outras instituições da Justiça. Os participantes do grupo focal foram informados, antes da dinâmica, das seguintes garantias: 1) solicitar, a qualquer tempo, maiores esclarecimentos sobre a pesquisa; 2) sigilo absoluto de nomes, lotação ou quaisquer características de identifi cação;3) possibilidade de não responder a quaisquer questões; 4) desistir, a qualquer tempo, de participar da pesquisa.

d) Análise documental. O material documental referente às ementas das disciplinasoferecidas nos cursos de formação para Peritos Criminais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais foram obtidos junto às respectivas Academias de Polícia. Da mesma forma a existência de cursos de capacitação e sua periodicidade foram avaliadas através da análise documental. Estes dados possibilitaram verifi car a adequação e sufi ciência dos cursos oferecidos, de acordo com a percepção dos peritos captada por meio das outras técnicas utilizadas.

e) Uso das estatísticas ofi ciais. Foram obtidas e utilizadas estatísticas ofi ciais de homicídios nos dois estados, de modo a permitir uma comparação entre efetivos de peritos de local e volume da demanda de perícia externa nesses casos, mas a insufi ciência ou má qualidade dos dados não permitiu maior aprofundamento de análise, incluindo outras ações periciais.

f) Etnografi a da recepção dos pesquisadores nos dois estados. Anotamos em diário, observações sobre as diferenças de recepção dos pesquisadores nos dois estados, sob a suposição de que poderiam indicar diferentes valores quanto às expectativas de mudanças.

ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS

Uma comparação das estruturas institucionais dos dois Institutos de Criminalística foi realizada, visando verifi car semelhanças ou diferenças que poderiam incidir sobre a avaliação preconizada na pesquisa. Não foram encontradas diferenças fundamentais que pudessem produzir uma interveniência signifi cativa em nossa análise:1) Contingente e distribuição de peritos. O Instituto de Criminalística de Minas Gerais

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apresenta um total de 308 peritos criminais em postos do interior e região metropolitana e 192 na sede, em Belo Horizonte, perfazendo um total de 500 peritos criminais em 2005. No Rio de Janeiro há 193 peritos criminais em postos do interior e 110 lotados na capital (sede), perfazendo um total de 303 peritos criminais em 2005.

OCORRÊNCIAS E VOLUME DE DEMANDA DE PERÍCIAS

Com o objetivo de verifi car diferenças muito grandes na relação efetivo/volume de demanda, que pudessem interferir sobre os resultados nos dois estados, realizamos inicialmente uma comparação do número de homicídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte com a Região Metropolitana do Rio de Janeiro durante os anos de 2002, 2003 e 2004.

Gráfi co 1Homicídios Dolosos nas Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.

Mensais: 2002 - 2004 - Frequências Absolutas.

Fontes: Asplan-RJ e FJP-MG.

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RM Rio de Janeiro

RM Belo Horizonte

Finalmente, este dado foi cruzado com o quantitativo de peritos para ambos os estados. No Rio, o número de peritos para atendimento de locais de homicídios é de cerca de 40 profi ssionais, enquanto em Minas é de cerca de 45 peritos. Ou seja, embora o número de ocorrências de homicídios seja muito superior no Rio de Janeiro, o número de profi ssionais é praticamente o mesmo nos dois estados:

Desse resultado pode-se esperar que as condições de demanda de perícia de local no Rio de Janeiro em relação ao número de peritos em condições de atende-la possam infl uir, de algum modo, sobre os resultados de avaliação no Estado em comparação com Minas Gerais. Não foi possível, no entanto, controlar a interveniência dessa variável em nossa análise devido à baixa qualidade dos dados disponíveis, especialmente quanto aos demais delitos e ações periciais.

ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS

Etnografi a da recepção da pesquisa nos dois Estados

Nossa recepção em Belo Horizonte, confi rmando o mito da hospitalidade mineira, foi excepcional. A preocupação com o nosso bem estar e com todo aparato necessário ao desenvolvimento de nossa pesquisa evidenciou-se de imediato. Quando chegamos

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à sede da perícia criminal de Belo Horizonte, para iniciarmos nossos trabalhos, cerca de 15 peritos criminais já se encontravam numa sala de reuniões nos aguardando, prontos para nos atender em quaisquer necessidades. Isso nos possibilitou que, com efi cácia, apesar do curto espaço de tempo que dispúnhamos para fi car naquela cidade, pudéssemos realizar, em apenas dois dias, o grupo focal; três entrevistas de suma importância; a distribuição de todos os questionários para as várias divisões da polícia técnica mineira, inclusive para as seções do interior, além de uma visita bastante proveitosa aos laboratórios e diversos setores da sede da perícia criminal.

Conforme observações ao longo do período que permanecemos em contato com os peritos de Minas Gerais, percebemos um elevado grau de entrosamento entre os mesmos. Segundo depoimentos diversos, como pudemos observar tanto no grupo focal, como nas entrevistas, este nível de entrosamento, longe de ser exclusivamente interno, abrangia os outros seguimentos da Polícia Civil e marcava, com cordialidade e respeito, o relacionamento com a Polícia Militar. Essa relação pode ser percebida, inclusive no processo de formação dos policiais nas academias de polícia. Os peritos criminais de Belo Horizonte mantêm um intercâmbio vivo com os outros segmentos da polícia civil e com a polícia militar dentro de atividades na academia, posto que compõem o quadro de docentes dessa instituição.

Anterior e posteriormente à visita feita a Belo Horizonte, procedemos a algumas entrevistas, distribuição de questionários e a realização do grupo focal de peritos no Rio de Janeiro. A primeira entrevista realizada, com um dos gestores da Polícia Técnica, já foi um indício importante das difi culdades que teríamos que enfrentar. Ela foi precedida pela seguinte frase do entrevistado, após as apresentações formais: “isso não vai demorar muito não, não é?”. Como decorrência, a entrevista decorreu de maneira fria, entrecortada por respostas breves, de uma objetividade claramente cerceadora de prolongações.

A segunda entrevista, realizada com outro gestor da Polícia Técnico Científi ca do Rio de Janeiro, foi mais cordial e extensiva, da qual tiramos bons subsídios para nossa pesquisa, entretanto, também reafi rmando o mito do “descomprometimento” carioca (categoria usada em vários depoimentos), aconteceu com duas horas e meia de atraso, depois de esperarmos exaustivamente pelo término de uma reunião marcada para a mesma hora.

O grupo focal que reunia os peritos do Rio de Janeiro também se iniciou com bastante atraso, seguido de alguns contratempos. O grupo focal foi iniciado com cinco pessoas, entre as quais o presidente da Associação de Peritos. No transcorrer da dinâmica houve, ainda, algumas intervenções de peritos que não estavam participando do grupo. Os telefones celulares e as atividades normais do escritório, ao lado, interromperam o processo por algumas vezes, sem que as pessoas se dessem conta da importância do momento. Embora houvesse motivação dos participantes nas questões propostas para a discussão, a falta de um maior compromisso com a atividade, indicada pela postura da maioria dos participantes, era patente.

O grupo focal no Rio prosseguiu em meio a questionamentos e demonstração de uma completa insatisfação com o poder público (Polícia Civil) e com os diversos órgãos de chefi a. Esse grau de insatisfação era agravado com a repetida reclamação de falta de verbas e de condições salariais e da precariedade das instalações e das condições de trabalho. O relacionamento com as outras esferas da Polícia Civil nos

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foi apresentado como extremamente negativo, tanto quanto com os demais órgãos da segurança pública, sobretudo a Polícia Militar. Esse isolacionismo foi tão marcadamente demonstrado que percebemos uma completa desconexão entre peritos e polícia, onde sequer os primeiros se enxergam como policiais, apesar de assim serem enquadrados no serviço público.

O Processo de Seleção

O concurso para ingresso na carreira de Perito Criminal de Minas Gerais exige como pré-requisito básico o nível superior em qualquer área de formação, enquanto no Rio de Janeiro as vagas são oferecidas para áreas específi cas do conhecimento. No último concurso, realizado em 2000, estas áreas foram: Biologia, Engenharia, Farmácia, Física e Química.

Após o concurso, o candidato aprovado passa por um curso de formação de Peritos, ministrado pelas respectivas academias de Polícia. Este curso tem duração de seis a oito meses em Minas Gerais e 45 dias no caso do último concurso realizado em 2000 no Rio de Janeiro. Outra diferença foi a periodicidade dos concursos públicos para ingresso na carreira de Perito criminal dos dois estados. No Rio de Janeiro foram abertos apenas dois concursos públicos no período de 1990 a 2000, enquanto em Minas Gerais foram abertos sete concursos públicos nesse mesmo período. Embora o concurso público do Rio de Janeiro seja separado por áreas de formação superior, esta forma inicial de seleção aparentemente tem pouca infl uência no desenvolvimento posterior das atividades realizadas pelos Peritos. No grupo focal, um dos participantes relacionou a questão de se possuir nível superior mais como uma questão de reconhecimento social do que uma necessidade técnica. Assim o diploma seria “para dar respaldo para o que o Perito fala ou escreve”. Além disso, muitas das atividades periciais não têm correspondência com os cursos acadêmicos regularmente oferecidos, como perícias de acidentes de trânsito e documentoscopia. Essa visão se contrapõe àquela obtida nas entrevistas com os gestores da Polícia Técnica, os quais consideram como relevante à formação superior no desempenho das atividades cotidianas do Perito.

No caso de Minas Gerais o fato de o concurso possibilitar o ingresso de profi ssionais de diferentes áreas do conhecimento (qualquer curso superior) não foi visto como problema, em nenhum momento da realização do grupo focal. Ao contrário, foi ressaltado que o rigor dos últimos concursos tenderia a selecionar profi ssionais altamente qualifi cados. Da mesma forma que no Rio de Janeiro, há um reconhecimento de que o as habilidades adquiridas em cursos acadêmicos, nem sempre são sufi cientes para o desempenho das atividades cotidianas, pois “não existe uma disciplina, na faculdade, que ensine a gente a fazer os exames que a gente faz.”

O Curso de Formação

O espaço mais adequado para a aquisição dos conhecimentos necessários para o desempenho das atividades periciais seria no curso de formação oferecido pelas Academias de Polícia de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Neste ponto há uma nítida diferença na percepção dos peritos dos dois estados, em relação à qualidade dos cursos oferecidos. Em Minas Gerais, o curso de formação foi considerado pelos

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participantes do grupo focal, como sufi ciente e adequado para capacitar os Peritos no desenvolvimento de suas atividades cotidianas, pois ele propicia uma “formação generalista de todas as áreas, independente da formação universitária”. Por outro lado, no Rio de Janeiro os conteúdos foram considerados insufi cientes, pois “a teoria não se coaduna com a realidade prática”. Segundo o presidente da Associação do Rio de Janeiro: “o curso ele não é o que se possa ter como de boa qualidade. Talvez não alcance até uma qualidade mediana”. Para ele os professores e instrutores levam muitas questões acadêmicas para o perito o que não interessa ao perito. Tal diferença provavelmente estaria relacionada ao tempo de duração dos cursos de formação. Enquanto em Minas o período é de 6 a 8 meses, no Rio de Janeiro este mesmo curso foi oferecido em 45 dias, no último concurso.

Capacitação continuada

Durante as entrevistas percebeu-se que institucionalmente inexiste por parte dos institutos uma diretriz, que gere um programa de capacitação continuada. Existem somente palestras ou cursos esporádicos. Entretanto, em Minas Gerais há dois cursos regulares oferecidos pela instituição e ministrados pela Academia de Polícia: Curso de Aperfeiçoamento Policial e o Curso de Aperfeiçoamento em Chefi a. O primeiro caso seria um curso de atualização direcionado à atividade policial. Teoricamente, o Aperfeiçoamento Policial também seria um dos pré-requisitos para ascensão na carreira. Entretanto, alguns questionamentos foram levantados. Este curso seria direcionado para toda a categoria policial, não sendo específi co para a polícia técnica. Segundo um dos participantes do grupo focal, “os cursos lá (na Academia de Polícia) não são assim muito específi cos para a área de criminalística, eles são para os policiais todos.” Além disso, não há nenhum estímulo para realização dos cursos oferecidos, pois não existe retorno fi nanceiro; faltam vagas para a promoção na carreira (ascensão profi ssional) e o perito não é liberado de sua funções para freqüentar o curso. No caso do Curso de Aperfeiçoamento em chefi a, ele estaria relacionado à aprendizagem de conteúdos relativos a administração pública, sem nenhuma conotação técnica ou científi ca.

No Rio de Janeiro não há cursos regulares de capacitação e atualização profi ssionais. Em certas ocasiões são oferecidos alguns cursos, mas a maioria voltada para a atividade policial investigativa ou ostensiva. Os poucos cursos oferecidos são considerados insufi cientes e meramente informativos, ou um “bate-papo sobre um assunto”. A necessidade de cursos técnicos de atualização e capacitação específi cos para a perícia criminal foi ressaltada pelos peritos. A fi m de sanar tal defi ciência, muitos peritos buscam a capacitação fora de suas instituições e por conta própria. Isso ocorre tanto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro.

Convênios e Pesquisa

As entrevistas demonstraram que, apesar do nome “Polícia Técnico-Científi ca”, os institutos praticamente não possuem junto a universidades ou institutos de pesquisa convênios formalizados; contudo, informalmente, alguns peritos de ambos os estados realizam algum tipo de pesquisa em parceria junto a universidades ou centros de pesquisa.

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Aprofundamento profi ssional e alocação de pessoal

Em muitos casos a capacitação profi ssional requer um aprofundamento de conhe-cimentos. No caso dos Institutos de Criminalística, não existem mecanismos ofi ciais que permitam ou estimulem este aprofundamento. Embora muitos dos profi ssionais tenham uma sólida formação acadêmica, alguns inclusive com cursos de pós-graduação,isso não é aproveitado pela instituição. No caso de Minas Gerais, existe um critério mínimo no momento da lotação inicial, logo após o ingresso na carreira. Os profi ssionais oriundos de áreas cientifi co-tecnológicas são preferencialmente lotados no setor de Laboratórios. No Rio de Janeiro não se fez referência a um critério inicial de lotação.

Em ambos os estados, os critérios de transferência de funcionários entre setores e/ou postos, tenderiam a prejudicar o aprofundamento do conhecimento em áreas específi cas, pelo fato destas alocações de pessoal serem pautados em questões políticas e de punição do funcionário. Isso foi visto como um empecilho para uma maior efi ciência dos serviços, pois o “laudo de um perito especialista é muito mais bem elaborado”, segundo um dos peritos de Minas Gerais.

Houve uma concordância geral que devido à atual escassez de recursos humanos, principalmente no interior, existe a necessidade de haver grande número de peritos “generalistas”, os quais são capazes de realizar atividades as mais variadas. Assim, embora a especialização seja uma tendência desejável, segundo a concepção predominante, atualmente todos os Peritos devem ter uma formação básica generalista, quando do ingresso na carreira. Isso facilitaria a fl exibilidade para realização das atividades, principalmente no interior.

A sede seria um espaço privilegiado, onde se concentram os melhores recursos e equipamentos e, portanto, onde se torna possível uma maior especialização das atividades. Isso gera um confl ito claro entre peritos lotados no interior e peritos lotados na sede e entre peritos de locais, cujas atividades demandam um conhecimento mais generalista, e peritos lotados em laboratórios (peritos internos). Este confl ito transparece na seguinte assertiva de um perito de locais de Minas Gerais: “A visão de laboratório também é uma visão mais elitizada”.

Capacitação versus condições de trabalho

A principal questão relacionada às condições de trabalho foi referente à defi ciência tecnológica. Este fato torna inviável a realização de cursos de especialização ou capacitação que possibilitem ao profi ssional o manuseio de técnicas ou tecnologias, pois não há a possibilidade desse funcionário aplicar os conhecimentos adquiridos, ante a falta de recursos básicos, como aparelhos, equipamentos ou reagentes. Nesse sentido, os investimentos em cursos de capacitação, sem o concomitante investimento tecnológico, muitas vezes se transformam em perda de dinheiro. Segundo um perito do grupo focal de Minas Gerais “Ele (o Perito) faz o curso, mas um bom equipamento que ele precisa para esta tecnologia que ele foi buscar lá fora, não tem nem sequer projeção para colocar aqui dentro”.

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Valorização do trabalho

A efi ciência da Perícia Criminal está muito relacionada, na opinião de todos, com a interação existente com outros setores da polícia e do Judiciário. Possíveis confl itos entre estas esferas são afetados e afetam a formação profi ssional dos peritos. A qualidade desta inter-relação parece ter implicações profundas na polícia técnica de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.

Em Minas Gerais, de uma maneira geral, a interação dos peritos criminais com outros segmentos da polícia civil, polícia militar e judiciário parece ser amistosa, embora alguns confl itos sejam percebidos. A principal questão geradora de confl ito parece ter sido a tentativa de autonomia por parte do Instituto de Criminalística de Minas Gerais, o que gerou um evento traumático dentro da Policia Civil. Segundo os peritos, houve um movimento de autonomia não consensual por parte dos peritos que acabou não dando certo. Após este momento “Criou-se uma imagem negativa dos Peritos junto a comunidade de Policia Civil”. “Então quando nós chegávamos nas Delegacias, a gente era marginalizado...”. No Rio de Janeiro, parte signifi cativa da categoria reivindica junto à Assembléia Legislativa a autonomia da Perícia Criminal em relação à Polícia Civil, o que levou recentemente à aprovação, em primeira votação, de projeto de lei que concede autonomia administrativa à Polícia Técnica. Uma segunda votação e a sanção da Governadora decidirão em breve sobre essa iniciativa.

Outro ponto gerador de confl ito é o fato de a administração da Polícia Técnica estar subordinada a um delegado. Ambos os representantes de classe consideraram que os coordenadores de polícia técnicas deveriam ser peritos. Segundo o representante do Rio de Janeiro, os peritos sofrem com a colocação de delegados na direção devido ao fato de que eles não têm conhecimento técnico para exercer essa função.

Já sobre a relação entre a Perícia Criminal e a Polícia Militar de Minas Gerais, só foram ressaltados os pontos positivos, no grupo focal, o que se refl etiria inclusive em uma preservação do local mais efi ciente, condição considerada fundamental para o bom desempenho dos exames dos peritos de local. O relacionamento com o Judiciário foi considerado amigável, ou nas palavras de um perito: “eu acho que a Justiça mineira valoriza muito nosso trabalho”.

Boa parte deste entrosamento da Perícia Criminal com outros setores poderia ser explicada pelo fato de haver um contato freqüente durante os respectivos cursos de formação, dos diferentes segmentos da polícia e do Judiciário. Assim, muitos dos profi ssionais de um setor da polícia participam como professores nos cursos de formação de outros setores da polícia. Em relação ao judiciário a presença de recém ingressos dos concursos de juiz e promotor em visita ao Instituto de Criminalística foi vista com grande admiração pelos Peritos “...a turma (juizes e promotores) está sempre vindo à Criminalística e passam em todas as seções, eles procuram saber o serviço da gente, a gente pára, explica, mostra, eles se interessam em olhar os casos”.

No Rio de Janeiro, a situação, tal como evidenciada nas entrevistas e no grupo focal, é completamente diferente. Existe uma total cisão nas relações entre os diferentes setores da polícia e a perícia criminal. A desvalorização do trabalho parece ser total em alguns setores. Como exemplo destaca-se a impressão de um perito de local referente ao seu contato com policial do setor especializado de homicídios. Segundo o perito, esse policial afi rmou que “nunca usou um laudo para ajudar na investigação”. Entretanto,

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segundo um perito veterano, as relações eram mais amigáveis em épocas mais antigas. Ou seja, aparentemente houve uma degeneração das relações profi ssionais ao longo do tempo.

Dessa rejeição mútua entre a Perícia Criminal do Rio de Janeiro e outros setores da Polícia Civil e Militar decorre um sentimento de não pertencimento dos peritos criminais ao quadro da polícia civil e vice-versa. Como solução desenvolveu-se a idéia de que a Perícia deve sair dos quadros da Polícia, ou seja, tornar-se autônoma. Dessa relação conturbada também surgem confl itos com a Polícia Militar, o que se traduz, em grande parte, na reclamação de falta de preservação dos locais de crime. No Rio de Janeiro, a única relação mais amistosa seria entre a Perícia Criminal e o Judiciário. Neste ponto todos os peritos que participaram do grupo focal concordaram que o Judiciário valoriza o trabalho do perito.

ANÁLISE ESTATÍSTICA DA ENQUETE (SURVEY)

Foram distribuídos questionários para todos os peritos do Rio de Janeiro (303 questionários) e de Minas Gerais (500 questionários). Desse total, 323 peritos criminais de Minas Gerais (65%) e 135 peritos do Rio de Janeiro (45%) responderam ao questionário. No caso de Minas, a representatividade pode ser considerada “muito boa”, enquanto no Rio apenas pode ser considerada muito próxima de ser “adequada” (Babbie, 1999).

Analisamos, portanto, 458 questionários ao todo, mas mantivemos a classifi cação por estado, de modo a permitir a comparação entre o Rio e Minas. A seguir, apresentamos a análise estatística da enquête realizada segundo as principais dimensões exploradas no projeto.

Perfi l Social dos Peritos Criminais nos dois Estados

Sexo – A população de peritos do Estado do Rio de Janeiro é composta em sua maioria por homens (66,4%). Em Minas Gerais, a participação masculina é superior à do Rio de Janeiro, sendo observado um contingente de apenas 20,2% de mulheres.

Faixa Etária – O quadro de peritos criminais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais apresenta um contingente razoavelmente bem distribuído na ampla faixa de 26 a 50 anos (Tabela 4.1). Entretanto, uma elevada porcentagem encontra-se com mais de 65 anos de idade em ambos os estados. No Rio de Janeiro isso é mais preocupante pelo fato de os concursos públicos serem pouco freqüentes.

Áreas de Formação Superior – No Rio de Janeiro a área de formação dos peritos é predominantemente tecnológica (62%), seguido pela área biomédica (23,3%) e de Ciências Humanas e Sociais (14,7%). Em Minas Gerais, a freqüências foram muito semelhantes às do Rio de Janeiro, sendo 62,7% dos peritos formados na área de Ciências Tecnológicas, 21,1% na área das Ciências Biomédicas e 16,2% na área de Ciências Sociais.

Estes resultados mostram que embora os critérios para seleção e concurso nos dois estados sejam bastante diferentes, a proporção do contingente de peritos nas grandes áreas de conhecimento permanece a mesma. Em Minas Gerais o requisito atual para o ingresso na carreira é possuir qualquer nível superior. Teoricamente este critério deveria levar a uma distribuição mais eqüitativa nas grandes áreas de formação. Isso

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137Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

não ocorre pelo fato de a prova ser direcionada para as áreas tecnológicas, exigindo maiores conhecimentos nestas áreas.

Tabela 1Distribuição Percentual de peritos criminais por faixa etária

nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais

Faixa etáriaEstado

Rio de Janeiro Minas Gerais

Até 25 anos 0,8 0De 26 a 30 anos 14,2 13,7De 31 a 35 anos 20,1 16,8De 36 a 40 anos 12,7 14,0De 41 a 45 anos 19,4 21,4De 46 a 50 anos 13,4 10,6De 51 a 55 anos 7,5 10,6De 56 a 60 anos 3,7 3,1Mais de 60 8,2 9,9

Cor – O gráfi co 4.1 mostra que a maior parte dos peritos criminais se auto-declararam como brancos, tanto em Minas Gerais (76,9%) quanto no Rio de Janeiro (75,8%). Menos de 1% se declararam de cor preta em ambos os estados. A freqüência de pretos foi bem menor do que a de amarelos. A predominância dos que se auto-declararam brancos também é bem superior ao observado por Minayo & Souza (2003) para o quadro de policiais civis do Rio de Janeiro (65%).

Gráfi co 1Freqüência de cor de pele auto-declarada pelos peritos criminais

de Minas Gerais (MG) e Rio de Janeiro (RJ)

75,8 76,9

3,0 2,2

20,5 20,3

0,8 0,6

0102030405060708090

100

freq

uênc

ia (

%)

Branca Amarela Parda Preta

RJ MG

Estado Civil – O perfi l dos peritos criminais nos dois estados, em relação ao estado civil também foi semelhante. A maior parte da população é composta por casados ou em união livre (70,1% no Rio de Janeiro e 67,1% em Minas Gerais). Os solteiros foram a segunda categoria mais freqüente, perfazendo um total de 18,7%

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública138

do contingente de peritos no Rio de Janeiro e 23,6% em Minas Gerais. Os que se declararam separados corresponderam a 10,4% no Rio de Janeiro e 8,7% em Minas Gerais, enquanto que os viúvos fi caram com menos de 1% em ambos os estados. Não houve diferença signifi cativa nas proporções encontradas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.

Dinâmica das relações de trabalho

Gráfi co 2Tempo de ingresso na perícia criminal (freqüência) dos profi ssionais

de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)

0,03,8

50,8

44,1

13,6 12,5

25,0 23,8

10,6

15,9

0

10

20

30

40

50

60

freqü

ênci

a

< 1 ano 1 a 4 5 a 12 13 a 20 > 20 anostempo na perícia (anos)

RJ MG

Os resultados mostram que cerca de metade (50,8%) do contingente de peritos que respondeu ao questionário no Rio de Janeiro tem entre um e quatro anos de serviço (Gráfi co 4.2). Este fato aponta para o concurso público anterior, momento em que houve um expressivo ingresso de peritos, praticamente dobrando o quadro de funcionários; portanto não houve viés na devolução dos questionários do survey quanto ao fato de os peritos serem recém ingressos ou “veteranos”, já que a amostra captou a realidade observada. No caso de Minas Gerais, também foi observada uma freqüência elevada de peritos no período de um a quatro anos (44,1%), devido a ocorrência de sucessivos concursos públicos nos últimos quatro anos.

Quando se considera o total de mudanças de atividades e/ou setores que o profi ssional está desempenhando suas atividades, o percentual de transferências é proporcional ao tempo de exercício da profi ssão (Tabela 4.2 e 4.3). Quanto mais antigo o funcionário mais a probabilidade dele ter sido transferido várias vezes.A porcentagem de peritos antigos (mais de 20 anos) que foram transferidos três ou mais vezes é de 58,8% em Minas Gerais e de 57,2% no Rio de Janeiro.

Assim, a porcentagem de transferências de setores ou atividades foi elevada, mas a rotatividade é maior para a transferência de postos, o que provavelmente estaria relacionado ao mecanismo conhecido como “punição geográfi ca”, em que um funcionário muitas vezes é punido por um superior com a transferência, em decorrência de confl itos pessoais ou desempenho insatisfatório da função.

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139Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

Tabela 2Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício

na profi ssão (tempo na perícia). Estado de Minas Gerais

Tempo na perícia (em anos)

Transferências (número de vezes) Menos de 1 1 a 4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20

0 - 58,2 33,3 30,39 0

1 - 20,9 33,3 36,4 21,4

2 - 4,5 11,1 9,1 21,4

3 - 7,5 16,7 6,1 28,6

4 - 4,5 0 12,1 14,3

5 - 3,0 5,6 3,0 0

> 5 - 1,5 0 3,0 14,3

Tabela 3Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício

na profi ssão (tempo na perícia). Estado do Rio de Janeiro

Tempo na perícia (em anos)

Transferências (número de vezes) <1 1 a 4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20

0 100 66 45 28,9 0

1 0 11,3 30 32,9 21,6

2 0 6,4 15 10,5 19,6

3 0 9,9 7,5 6,6 29,4

4 0 4,3 0 9,2 5,9

5 0 2,1 2,5 3,9 0

> 5 0 0 0 7,9 23,5

Esta alta rotatividade de setores e atividades poderia comprometer a atuação dos peritos criminais, uma vez que as atividades demandam um aprofundamento do conhecimento e da prática e isso requer tempo desempenhando uma mesma função. Afora isso, o estresse causado pela instabilidade das atividades deve causar um sofrimento psíquico, o qual deve ser analisado em estudo mais aprofundado.

Tipo de Atividade Atual

As atividades predominantes desenvolvidas pelos peritos foram de dois tipos: atividades externas sem especialização e atividades internas especializadas. Os dadosrefl etem uma tendência da administração de ambos os estados em investir na especiali-zação das atividades ligadas ao exame de materiais e entorpecentes por um lado e na generalização das atividades ligadas aos exames de locais (homicídios, acidentes de trânsito, arrombamentos e outros). Este investimento também se refl ete na visão do perito em relação ao papel dos profi ssionais lotados em cada setor, conforme foi explicitado na análise qualitativa (entrevistas e grupos focais). No caso dos peritos internos, a especialização é vista com mais naturalidade, havendo inclusive discursos que procuram justifi car tal tendência.

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública140

22,00,0

44,915,4

5,158,5

13,026,2

11,10,0

3,7

0,0

0 10 20 30 40 50 60

frequência (%)

externa espec

externa nãoespec

interna espec

interna não espec

interna e externa

burocráticafeminino

masculino

14,90,0

48,615,9

13,561,4

9,520,5

8,10,0

5,4

2,3

0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 50,0 60,0 70,0

frequência (%)

externa espEc

externa nãoespec

interna espec

interna não espec

interna e externa

burocráticafeminino

masculino

O gráfi co 4.3 mostra, ainda, uma clara tendência em haver uma divisão de tarefas em função do sexo. Enquanto o trabalho interno especializado é destinado a mulheres (61,4% das mulheres no Rio de Janeiro e 58,5% das mulheres em Minas Gerais), as atividades externas sem especialização são destinadas aos homens (48,6% dos homens do Rio de Janeiro e 44,9% dos homens em Minas Gerais). Um ponto relevante é que as atividades externas especializadas são realizadas apenas por homens em ambos os estados, ou seja, são atividades exclusivas do sexo masculino. Esta diferença de atividades por sexo foi signifi cativa para os estados de Minas Gerais (χ2 = 41,5;p= 0,001) e Rio de Janeiro (χ2 = 122,5; p= 0,001).

Gráfi co 3Freqüência do tipo de atividade desenvolvida

pelos peritos criminais do Rio de Janeiro

A) Rio de Janeiro B) Minas Gerais

Quando indagados se as atividades periciais desenvolvidas coincidem com a área de formação, 42,1% dos Peritos do Rio de Janeiro formados na área de Ciências Humanas e Sociais disseram que as atividades periciais coincidem com sua área de formação. Em Minas Gerais este percentual foi de 49,0%. Somente uma pequena parte dos peritos das áreas Biomédica (17,2%) e Tecnológica (16,5%) disseram que as atividades coincidem com a área de atuação no Rio de Janeiro. Em Minas esta proporção foi de 15,3% (Biomédica) e 15,6% (Tecnológica). Este resultado é inesperado, uma vez que são esperados conhecimentos oriundos das áreas tecnológicas e da biologia para o desempenho satisfatório de atividades tecno-científi cas.

Formação básica e qualifi cação profi ssional

A distribuição de peritos segundo o grau de escolaridade, revela um padrão esperado para a função técnica exigida. Mais de 90% do quadro possui nível superior, sendo que no Rio de Janeiro 58,2% dos peritos apresentam algum grau de especialização (curso de especialização, mestrado ou doutorado), enquanto em Minas Gerais esta proporção é de 47,2% (Tabela 4.4).

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141Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

Tabela 4Escolaridade dos peritos criminais nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais

EscolaridadeEstado

Rio de Janeiro Minas Gerais

Secundário incompleto

Secundário completo

Superior incompleto

Superior completo

Especialização

Mestrado

Doutorado

0,0

1,5

1,5

38,8

35,8

16,4

6,0

2,5

3,1

2,2

45,0

27,3

14,0

5,9

O grau de especialização acadêmica, no entanto, não está associado com um investimento do perito para uma maior qualifi cação profi ssional em ambos os estados. A maior qualifi cação é encontrada entre os recém-ingressos (1 a 4 anos) na Perícia Criminal e há uma clara tendência a diminuição em relação ao tempo em que se está na Perícia. Neste caso, os profi ssionais com menor grau de especialização são os mais antigos na profi ssão. Na realidade isto poderia ser explicado pelo fato de os últimos concursos estarem admitindo profi ssionais já altamente qualifi cados em decorrência da competição no mercado de trabalho. Esta hipótese é corroborada pela freqüência de respostas à questão: “Caso tenha feito um curso de especialização, mestrado ou doutorado após o ingresso na perícia criminal, responda qual foi sua principal motivação?”. Somente 52,9% e 57% dos peritos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente, responderam esta questão; o que pode signifi car que praticamente metade dos peritos já tinha cursos de pós-graduação antes de seu ingresso na perícia criminal. Deste total foi feita uma análise das respostas com base no tempo de ingresso na perícia criminal. Para os recém-ingressos a principal motivação para ingressar em um curso de pós-graduação foi a de preparar-se melhor para as atividades de perícia (50,7% em Minas Gerais e 56,8% no Rio de Janeiro), enquanto para os peritos mais antigos esta porcentagem foi de 94,6% em Minas Gerais e 75% no Rio de Janeiro.

Embora haja uma tendência de os funcionários mais antigos (mais de 20 anos) realizarem cursos de pós-graduação a fi m de implementarem suas atividades periciais, há proporcionalmente menos profi ssionais com especialização acadêmica nesta categoria. Isso pode estar indicando que há uma saída de profi ssionais capacitados para outras instituições e que não há estímulo sufi ciente para que os profi ssionais que permanecem realizem cursos de pós-graduação.

Esta falta de estímulo pode estar relacionada a pouca aplicabilidade dos cursos oferecidos. Quando indagados sobre se as técnicas aprendidas nos cursos de especialização ou palestras oferecidos pela instituição, 47,7% dos peritos do Rio de Janeiro e 39,3% dos peritos de Minas Gerais se utilizaram pouco ou nunca dos conhecimentos adquiridos. De uma maneira geral, os mineiros acharam que os cursos oferecidos pela instituição eram mais úteis.

A maioria dos peritos de ambos os estados considerou que há uma baixa oferta de cursos oferecidos pelas instituições. Mais de 50% dos peritos consideram que seus

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública142

institutos oferecem raramente ou nunca oferecem cursos técnicos. 9,9% dos peritos de Minas Gerais e 12,1% dos peritos do Rio de Janeiro nem mesmo têm conhecimento destes cursos.

A divulgação dos poucos cursos oferecidos também foi um ponto crítico. A maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro (62,6%) e de Minas Gerais (63,3%) consideram que a instituição onde trabalham não divulga adequadamente os poucos cursos técnicos oferecidos.

Embora os cursos sejam escassos, 80,2% dos peritos do Rio de Janeiro e 75,9% dos peritos de Minas Gerais realizaram um ou mais cursos técnico, de extensão ou especialização oferecidos pela Academia de Polícia ou Instituto. Este interesse na melhoria da qualifi cação profi ssional pode ser claramente vista quando se observa que 97% dos profi ssionais do Rio de Janeiro teriam interesse em realizar cursos técnicos relacionados à perícia criminal, enquanto 96% dos peritos de Minas Gerais revelaram o mesmo interesse.

Assim, a escassez e inadequabilidade dos cursos oferecidos pelos Institutos de Criminalística, aliado a divulgação precária dos mesmos parece ter resultado em uma percepção negativa dos peritos em relação ao estímulo ofi cial para o aprimoramento técnico (Gráfi co 4.4).

Gráfi co 4Percepção dos peritos de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)

quanto ao estímulo ofi cial tendo em vista o aprimoramento técnico(crescimento na carreira, apoio institucional)

A observação dos cursos oferecidos pelas Academias de Polícia nos últimos cinco anos, confi rma a visão dos peritos de que os cursos técnicos a eles destinados são escassos. A maioria dos cursos oferecidos são destinados aos policiais do corpo operacional, sendo extremamente reduzidos os cursos técnico-científi cos requeridos para atividades específi cas da polícia técnica.

Curso de Formação

A maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro realizou os cursos de formação na academia de Polícia (99,2%). Em Minas Gerais, todos os peritos realizaram o curso de formação.

0,00,0

2,36,6

54,954,5

42,938,9

0 10 20 30 40 50 60

frequência (%)

sempre

Freqüentemente

Raramente

Nunca

RJ MG

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143Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

50

frequênci

a (

%)

Excelente Bom Regular Ruim Péssimo

avaliação do curso de formação

técnica policial jurídica

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

50

frequênci

a (

%)

Excelente Bom Regular Ruim Péssimo

avaliação do curso de formação

técnicas policiais jurídicas

As perguntas referentes ao curso de formação da Academia de Polícia basearam-se na percepção dos peritos quanto a utilização das técnicas aprendidas nas atividades práticas cotidianas, treinamento policial e aspectos jurídicos relevantes para o exercício das funções. De uma maneira geral, os peritos criminais do Rio de Janeiro consideraram sua formação técnica regular (36,8%) ou boa (32,3%) (Gráfi cos 4.5A e 4.5B). Em Minas Gerais os resultados são parecidos. 41,7% dos peritos criminais deste estado consideram as técnicas aprendidas no curso de formação regulares e 29% consideraram boas.

Gráfi co 5Percepção dos peritos em relação à qualidade do curso de formação

para ingresso na carreira, considerando-se os seguintes aspectos:técnico-científi co, jurídico e treinamento policial

A) Rio de Janeiro B) Minas Gerais

É importante ressaltar que as polícias técnicas dos dois estados estão inseridas dentro da instituição policial e, portanto, tem as mesmas funções e deveres básicos daqueles atribuídos aos demais policiais civis lotados nas unidades policiais. Dessa forma as técnicas de abordagem policial, além de uso e manejo de arma de fogo, são imprescindíveis à formação do perito. Entretanto, a grande maioria destes profi ssionais se referiu ao curso de formação como sendo ruim ou péssimo no Rio de Janeiro (53%) e em Minas Gerais (46,8%) (Gráfi cos 4.5A e 4.5B).

Além da função policial e técnica, as atividades periciais também possuem uma forte interface com o mundo jurídico. Novamente o curso de formação foi considerado de má qualidade pelos peritos, sendo que os aspectos jurídicos tiveram a pior conceituação. Cerca de 59,7% de todos os peritos do Rio de Janeiro consideraram o curso de formação ruim ou péssimo, enquanto 53% dos peritos de Minas Gerais atribuíram estes conceitos ao curso de formação.

Embora o grau de insatisfação dos peritos criminais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais tenha sido parecido, os peritos criminais deste último estado tenderam a apresentar proporções ligeiramente menores de rejeição (atributos ruim ou péssimo) em relação ao curso de formação.

Além disso, houve uma diferenciação das respostas de acordo com a área de formação. Os peritos formados na área de Ciências Sociais, tanto do Rio de Janeiro quanto de Minas Gerais tiveram uma percepção mais positiva do curso do que aqueles

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública144

0

10

20

30

40

50

60

De 1 a 4anos

De 5 a 12anos

De 13 a 20anos

Mais de 20anos

tempo na perícia

freq

uênc

ia (

%)

Não criminalística (RJ) criminalística (RJ)

0

5

10

15

20

25

30

35

40

De 1 a 4anos

De 5 a 12anos

De 13 a 20anos

Mais de 20anos

tempo na perícia

freq

uênc

ia (

%)

Não criminalística (MG) criminalística (MG)

formados nas demais áreas. Isso poderia indicar que o curso de formação estaria mais direcionado para um tipo de público ou que os conteúdos apresentam pouca informação técnica.

Atualização e pesquisa

A participação de peritos em Congressos de Criminalística e em congressos de outras áreas do conhecimento foi examinada. O Gráfi co 4.6 ilustra a participação de peritos em cinco ou mais congressos, após o ingresso na carreira.

Os peritos recém ingressos tendem a participar mais de congressos não ligados à área de Criminalística, enquanto os peritos antigos (com mais de 20 anos) tendem a participar de mais congressos na área de Criminalística, embora tenham participação elevada em outros tipos de congressos. Esse padrão foi observado para ambos os estados.

Gráfi co 6Participação dos peritos em Congressos de Criminalística e em congressos não ligados à

Criminalística, considerando-se participações superiores a cinco congressos. MG – Minas Gerais e RJ – Rio de Janeiro

O aumento da participação em congressos de criminalística por parte de funcionários mais antigos poderia ser vista como um aumento do interesse do perito em sua atualização, tendo em vista a melhor adequação de suas atividades. Por outro lado a menor participação dos peritos recém-ingressos poderia ser decorrente da escassez de congressos específi cos para a criminalística, ao contrário de outras áreas do conhecimento.

Essa escassez talvez esteja relacionada ao grande interesse que os peritos de ambos os estados demonstraram em participar de mais congressos relacionados à Criminalística. No Rio de Janeiro 95,5% declarou ter interesse em participar de mais congressos, enquanto em Minas Gerais esse percentual foi de 97,5%.

Outra forma de se medir a atualização dos peritos criminais seria verifi car a participação deste grupo em atividades de pesquisa, uma vez que a investigação científi ca necessita pressupõem uma constante busca por conhecimentos. Neste ponto, a maioria dos peritos do Rio de Janeiro (67,4%) e de Minas Gerais (70,8%) nunca exerceram pesquisa na área de criminalística/ciência forense. Este fato se contrapõe ao grande contingente de peritos que realiza ou realizou pesquisa em outras áreas, tanto no estado de Minas Gerais (59,6%), quanto no estado do Rio de Janeiro (63,2%). Isso demonstra que há um grande potencial não utilizado pelas instituições periciais no que

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145Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

tange ao estímulo a atividades de pesquisa. A falta de estímulo ofi cial está relacionada com questões estruturais: falta de equipamentos e instalações físicas adequadas e ausência de verbas para pesquisa, os quais foram abordados na análise qualitativa.

O interesse dos peritos em desenvolver atividades de pesquisa fi ca patente quando se observa o elevado percentual de profi ssionais que declararam que seus respectivos institutos deveriam desenvolver atividades de pesquisa em ciência forense (94,7% no Rio de Janeiro e 95,8% em Minas Gerais).

Da mesma forma, a maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro (78,4%) e de Minas Gerais (81,7%) consideram que as instituições ou centros de pesquisa deveriam dar suporte forma às atividades desenvolvidas pelos peritos. Somente 1,5% dos profi ssionais do Rio de Janeiro e 0,6% dos profi ssionais de Minas Gerais acharam que não era necessário ter qualquer vínculo com instituições de pesquisa.

Valorização do trabalho e identidade social

Os peritos criminais podem ser divididos em dois grupos principais de acordo com as atividades desempenhadas: peritos de local e peritos internos. Os Peritos de local trabalham basicamente com a dinâmica de eventos criminosos, e para isso necessitam concatenar diferentes vestígios de uma cena de crime e a partir daí tirar suas conclusões. Por outro lado, os peritos internos realizam exames em objetos específi cos, extraindo vestígios que permitam relacionar aquele objeto a um fato delituoso real ou potencial. Essa delimitação do trabalho estaria relacionada a uma prática cotidiana específi ca para cada uma das duas atividades. A percepção dos peritos quanto às necessidades e especifi cidades das atividades foi analisada (Tabela 4.5).

Tabela 5Percepção dos peritos quanto as características que um perito de local (local)

e um perito interno (interno) devem possuir para cada um dos estados.Foram consideradas as freqüências acumuladas dos escores muito importante

e importante atribuídos pelos peritos.

Característica Local Interno Local Interno

Experiência prática 91,2 89,6 96 93,1Treinamento 95,6 94,8 96 93,8Equipamento 97 93,3 97,8 90,1Apoio de peritos internos 79,3 86,7 79 87Motivação pessoal 93,4 93,4 94,8 92,6Vocação 88,1 86,7 86,1 86,4Curso de aperfeiçoamento 95,5 94 96,6 92,6Curso de pós-graduação 39,3 51,1 40,9 47,7Curso de especialização 45,2 65,2 44,5 63,4PG em criminalística 71,1 65,9 77,8 68,4

Não houve diferença signifi cativa na percepção dos peritos quanto às principais características relacionadas aos dois tipos de atividade (perícia interna e de local) ou entre os estados, segundo o teste de Kruska-Wallis (H = 0,778; p = 0,85). No entanto,

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública146

0 10 20 30 40 50

frequência (%)

conhecer e atuar emuma atividade

atuar em umaatividade e conhecer

várias

atuar em todas asatividades mas ser

especialista

atuar e saber todasas atividades

internolocal

0 10 20 30 40 50 60

frequência (%)

conhecer e atuar emuma atividade

atuar em umaatividade e conhecer

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atuar em todas asatividades mas ser

especialista

atuar e saber todasas atividades

internolocal

0 10 20 30 40 50 60

frequência (%)

conhecer e atuar emuma atividade

atuar em umaatividade e conhecer

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atuar em todas asatividades mas ser

especialista

atuar e saber todasas atividades

internolocal

0 10 20 30 40 50 60

frequência (%)

conhecer e atuar emuma atividade

atuar em umaatividade e conhecer

várias

atuar em todas asatividades mas ser

especialista

atuar e saber todasas atividades

internolocal

quando perguntados sobre o grau de especialização e conhecimento que cada umdos peritos (local e interno) deveriam possuir, houve uma pequena diferenciação (Gráfi co 4.7 e 4.8).

Gráfi co 7Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos,

segundo a percepção dos peritos de Minas Gerais

(A) Considerando as condições atuais (B) Considerando as condições ideais

Gráfi co 8Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos, segundo a percepção

dos peritos do Rio de Janeiro

(A) Considerando as condições atuais (B) Considerando as condições ideais

Grande parte dos peritos considerou que tanto nas condições atuais quanto em condições ideais os peritos de local e o perito interno deveriam ter um conhecimento abrangente, mas atuarem em uma área específi ca. Entretanto, os peritos de local, em ambos os estados escolheram mais freqüentemente as opções relacionadas com uma atuação mais abrangente, enquanto os peritos internos escolheram com mais freqüência as opções de atuação mais especializadas.

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147Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

3,010,2

12,711,8

35,132,6

38,834,2

10,411,2

0 10 20 30 40

frequência (%)

Sempre

Frequentemente

Parcialmente

Raramente

Nunca

RJ MG

12,721,1

27,625,8

33,629,5

21,620,8

4,52,8

0 10 20 30 40

frequência (%)

Sempre

Frequentemente

Parcialmente

Raramente

Nunca

RJ MG

Gráfi co 9Percepção dos peritos quanto à valorização pelo setor de investigação,

nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro

Gráfi co 10Percepção dos peritos quanto à valorização pela Justiça (Juízes e Promotores), nos estados

de Minas Gerais e Rio de Janeiro

Em relação à valorização profi ssional, a maioria dos peritos do Rio de Janeiro (49,2%) e de Minas Gerais (45,4%) consideraram que seu trabalho nunca ou raramente é reconhecido pelo setor de investigação da Polícia Civil. Poucos peritos do Rio de Janeiro (3%) e de Minas Gerais (10,2%) consideraram que seu trabalho sempre é reconhecido (Gráfi co 4.9).

Em relação à valorização pela Justiça, houve um maior reconhecimento da valorização do trabalho por parte dos peritos de ambos os estados. Somente 4,5% dos peritos do Rio de Janeiro e 2,8% dos peritos de Minas Gerais consideraram que seus trabalhos nunca são reconhecidos pela Justiça. (Gráfi co 4.10).

A percepção dos peritos quanto à preservação das provas que são utilizadas no trabalho de análise dos peritos foi um ponto crítico. A maioria absoluta dos peritos do Rio de Janeiro (66,2%) e de Minas Gerais (70%) consideram que raramente as provas são preservadas. Esse resultado também pode ser visto como uma desvalorização do

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública148

0,00%

5,00%

10,00%

15,00%

20,00%

25,00%

30,00%

35,00%

40,00%

1 a 4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20Tempo na Polícia Técnica (em anos)

Per

cent

ual d

e In

satis

façã

o

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ

trabalho do perito, uma vez que a qualidade da atividade pericial é prejudicada pelo manuseio ou procedimento inadequado de outros atores responsável pela preservação do local ou objeto de investigação.

Quanto à ascensão na carreira, uma grande parte dos profi ssionais encontra-se desestimulada. Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, 32,6% dos peritos criminais não tem expectativa de crescimento, pois ainda que não pretenda sair da carreira, se encontra muito decepcionado com a estrutura de trabalho. Entretanto, a maior parte dos peritos de Minas Gerais (46,8%) e do Rio de Janeiro (48,8%) ainda pretende crescer na carreira, pois embora não fosse o seu senso profi ssional, se identifi cou com a carreira. Não houve diferença signifi cativa (χ2 = 9,39; p = 0,671) das opções acima descritas em relação ao tempo de ingresso na perícia criminal.

Em relação ao grau de satisfação geral, uma porcentagem elevada dos peritos do Rio de Janeiro se disse satisfeita (34,8%) ou pouco satisfeita (35,6%). Em Minas Gerais essa freqüência foi de 36,6% (satisfeito) e 32,4% (pouco satisfeito).

O grau de insatisfação (categorias “muito insatisfeito” e “insatisfeito”) esteve relacionado com diferentes fatores, dentre eles o tempo de ingresso na perícia criminal. Os funcionários mais antigos geralmente apresentaram menor insatisfação do que os recém ingressos (Gráfi co 4.11).

Gráfi co 11Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Tempo na Polícia Técnica (em anos)

A insatisfação também foi maior entre os funcionários com grau elevado de especialização acadêmica (doutorado) em ambos os estados. A porcentagem de insatisfeitos, neste último caso, foi de mais de 70%. (Gráfi co 4.12).

Os peritos de ambos os estados foram sensíveis à valorização de seu trabalho pelo setor de investigação da polícia, sendo observado que os maiores valores de insatisfação estiveram relacionados com pouca ou nenhuma valorização pelo setor de investigação (Gráfi co 4.13)

Finalmente, houve uma tendência de maior insatisfação nos serviços menos especializados ou de cargos burocráticos. Os peritos lotados em serviços internos também apresentaram menor insatisfação que os peritos de local (Gráfi co 4.14).

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149Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

Graduação Especialização Mestrado Doutorado

Escolaridade

Per

cent

uala

de

Insa

tisfa

ção

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ

0,00%

10,00%

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70,00%

Parcial Raro Nunca

Percepção de Valorização Externa do Trabalho dos Peritos

Per

cent

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e In

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o

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ

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70,00%

Períciaexterna

específica

Períciaexterna não-específica

Períciainterna

específica

Períciainterna não-específica

Períciainterna e

externa não-específica

Cargos

Tipo de Atividade Atual

Per

cent

ual d

e In

satis

façã

o

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ

Gráfi co 12Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Escolaridade

Gráfi co 13Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Percepção dos Peritos sobre o grau

de valorização de seu trabalho pelos investigadores da Polícia Civil

Gráfi co 14Insatisfação dos Peritos, por Estado vs. Tipo de Atividade Atual

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CURSOS, CURRÍCULOS E DISCIPLINAS

Seleção dos Peritos Criminais

O processo seletivo para a formação dos futuros peritos criminais nos estados do RJ e MG é realizado por meio de concurso público uma vez que a constituição de 1988 determina que o ingresso no serviço público somente deve ocorrer mediante concurso. Nos dois estados a profi ssão de perito criminal é destinada a profi ssionais de nível superior, entretanto o estado de MG apresenta historicamente um número de concursos superior ao do estado do RJ. O RJ realizou apenas dois concursos um no fi nal da década de 80 e outro no fi nal da década de 90. Apesar dos dois estados selecionarem os seus futuros profi ssionais, para o curso de formação em suas respectivas Academias de Polícia (ACADEPOL) da mesma forma: a) prova de conhecimentos, b) exame físico, c) exame psicotécnico; eles se diferenciam no fato que no RJ a prova de conhecimentos é por carreira enquanto em MG qualquer profi ssional de nível superior pode concorrer, ou seja no RJ os biólogos irão concorrer apenas entre si diante de uma prova que versa sobre conhecimentos de biologia e em MG eles terão que concorrer com os mais variados profi ssionais (engenheiros, químicos, antropólogos e etc) em uma prova de conhecimentos gerais. Esta forma de seleção vem excluindo alguns profi ssionais de interesse para a perícia mineira, como peritos contábeis.

Formação dos Peritos Criminais

Os cursos de formação dos peritos criminais ocorrem exclusivamente dentro das academias de polícia civil, uma vez que o perito criminal é um policial civil com formação técnico-científi ca. As academias de polícia, seja em Minas ou no Rio de Janeiro não dispõem de um corpo permanente de professores; eles geralmente são indicados pelos Diretores ou Chefes de Departamento. Uma diferença observada entre a Academia de MG e a do RJ é que mesmo sem ter um corpo permanente de professores a academia mineira tem como critério de seleção não excludente o fato do professor indicado ter realizado curso de didática na academia.

Comparando-se os currículos dos cursos de formação dos peritos criminais nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro a partir dos dados disponibilizados pelas respectivas academias, relativos aos anos de 2002 e 2005 em Minas Gerais e ao 2000 no Rio de Janeiro, observa-se uma diferença signifi cativa nas cargas horárias: o curso de formação mineira em 2002 teve uma carga horária de 890 horas-aula, aumentada em 2005 para 1.546 horas-aula enquanto no Rio de Janeiro em 2000 a carga horária foi de 226 horas-aula, ou seja, uma carga horária cerca de quatro vezes menor que a mineira de 2002 e sete vezes menor que a de 2005.

Uma outra diferença observada na formação dos peritos é praticamente a ausência de disciplinas específi cas da ciência policial no curso de formação do Rio de Janeiro. Neste estado, a única disciplina apresentada como específi ca do campo policial foi a de “Armamento e Tiro”, com 08h de duração. Em Minas Gerais, as ciências policiais preencheram as seguintes cargas horárias: em 2002 (202 horas) e em 2005 (756 horas).

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151Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

A diferença observada na formação dos peritos mineiros nos anos considerados está na presença de uma formação em um eixo alicerçado nas ciências sociais, a fi m de compreender a evolução histórico-social da sociedade, da segurança pública e da polícia, que no ano de 2005 contemplou uma carga horária de 310 horas, contrapondo-se à absoluta ausência deste eixo temático em 2002. O número de horas destinadas às disciplinas teóricas específi cas de formação dos peritos mineiros em 2002 foi de 406 horas, enquanto em 2005 foi reduzida para 240 horas. No Rio de Janeiro em 2000 destinou-se 226 horas para as disciplinas específi cas.

Disciplinas Curriculares

As disciplinas curriculares oferecidas nos cursos de formação nos dois Estados encontram-se na tabela abaixo:

Tabela 6Curso de Formação de Peritos Criminais em 2000

do Estado do Rio de Janeiro

Disciplinas Carga Horária

Introdução a Informática 16Exames Periciais em Locais de Acidente de Trânsito 16Exames Periciais em Engenharia 24Exames Periciais de Merceologia e Jogos 08Exames Periciais em Documentoscopia e Grafotecnia 20Exames Periciais Químicos 20Exames Periciais de Características de Veículos 08Exames de Explosivos e Infl amáveis 04Papiloscopia 10Balística 20Armamento e Tiro 08Exames em Locais de Morte Violenta 72

Total 226

Tabela 7Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2002 do Estado de Minas Gerais.

Ciclo Comum ou Básico

Disciplinas Carga Horária

Fundamentos de Criminalística 08Legislação Disciplinar 16Noções Gerenciais de Administração Pública 06Noções de Direito 40Organização Policial 16Relações Humanas 20

Subtotal 66

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública152

Tabela 8Ciclo Profi ssionalizante

Disciplinas Carga Horária

Balística Forense 22Biologia Legal 14Biossegurança 10Direitos Humanos 16Desenho Aplicado à Perícia 12Documentoscopia 22Engenharia Legal I e II 24Física Aplicada 18Fotografi a Pericial 14Identifi cação Civil e Criminal 24Legislação Aplicada 06Legislação Especial 30Metalográfi co 06Noções de Medicina Legal 16Novas Modalidades de Perícias 08Perícias de Crimes Contra a Vida 50Perícias de Crimes contra o patrimônio 36Perícias de Trânsito 50Química Legal I e II 16Toxicologia 20Trânsito e Cidadania 16

Subtotal 418

Tabela 9Ciclo de Atividades Complementares

Disciplinas Carga Horária

Comunicação Social 08Defesa Pessoal e Educação Física 30Informática 34Manejo e emprego de Armas de Fogo 30Primeiros Socorros e Medicina Preventiva 08Sistema de Informações Policiais 12Redação Instrumental 20Telecomunicações 08Treinamento de Ação Policial 24

Subtotal 174

Tabela 10Ciclo de Estágio

Disciplinas Carga Horária

Estágio Profi ssionalizante 210Visitas a Unidades Policiais 24Palestras 08

Subtotal 242

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153Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2005 do Estado de Minas Gerais.

Tabela 11Eixo I – Formação Humana, Histórica e Social

Área Temática Carga Horária

Sociedade, Estado e Políticas Públicas 36Segurança Pública e diversidade sócio-cultural do Povo Brasileiro 36Direitos Humanos e Segurança Pública no contexto contemporâneo – Convenções Internacionais

36

Segurança Pública no contexto das sociedades informacionais 36Polícia e Sociedade Civil 36Crime e Violência em uma abordagem interdisciplinar – Segurança Pública e Psicodinâmica do Crime

36

História Social das Instituições Policiais na Sociedade Brasileira 36Horário para estudo 58

Tabela 12Eixo II – Formação Técnico-Procedimental

Área Temática Carga Horária

Técnicas e Abordagens de Investigação Policial / Defesa Pessoal / TAIP / MEAF

150

Perícia Profi ssional 240Metodologia de Pesquisa Científi ca 36Produção e Alimentação de Banco de Dados / REDS / SIP / Telecomunicações

76

Elaboração de Relatórios- Escritura Policial 30Investigação nos Romances Policiais Contemporâneos 16Desenvolvimento de Competências para a Ação Policial / Trânsito / Interrogatório Aplicado / Teoria e Prática do Inquérito Policial / Identifi cação Civil e Criminal / Prática de Investigação

278

Organização da Instituição e do Processo de Trabalho / Informações Jurídicas Básicas / Comunicação com a Sociedade / Gestão de Pessoas e Qualidade de Vida / Gestão Documental

170

Eixo III – Formação IntegradaNeste eixo o policial aprendiz se envolve em estudos de casos com acompanhamento

dos agentes efetivos, com vistas a: Construção do conceito e prática do trabalho em equipe, integração dos saberes e práticas interdisciplinares, celeridade e efi cácia dos trabalhos, perfazendo uma carga horária total de 240 horas/aula. Uma outra diferença apresentada nos cursos de formação dos peritos de Minas Gerais nos anos de 2002 e 2005 encontra-se na política de integração entre as carreiras da polícia civil. Observa-se a entrada na grade de formação de disciplinas como: “Investigação nos Romances Policiais Contemporâneos”, “Interrogatório Aplicado”, “Teoria e Prática do Inquérito Policial”, “Prática de Investigação”, dentre outras tradicionalmente específi cas dos cursos de delegados, detetives e escrivães.

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública154

Formação Continuada e Capacitação

Os Institutos, assim como as Academias de Polícia em ambos estados, não dispõem de um sistema regular de formação continuada voltada especifi camente para os peritos. Os cursos, quando ocorrem, se dão a partir de uma demanda identifi cada por órgãos superiores ou pelos próprios peritos como no relato: “A gente apresentava o que agente queria e a academia ajudava a desenvolver o curso, depois veio a entrada de verba da SENASP, específi ca para capacitação de policiais, a gente tem as parcerias, então, o Instituto de Criminalística, Academia, SENASP, a grande vantagem foi que com isso a gente conseguiu trazer o pessoal do interior para permanecer mais tempo aqui......” (Chefe dos Postos da Perícia do Interior-MG).

O principal mecanismo utilizado para divulgação desses cursos seja em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro é o chamado “B.I.” (Boletim Informativo) que demonstra ser inadequado, uma vez que na prática ele não chega aos postos de perícia e, quando a informação chega, vem geralmente com atraso.

A Academia de Minas Gerais, apesar de não oferecer regularmente cursos específi cos para os peritos criminais, oferece com regularidade a todos os policiais civis os cursos de: Formação de Chefi a e o de Aperfeiçoamento Policial. Esses cursos por possuírem um caráter irrestrito as diferentes carreiras da polícia civil permitem compor turmas mistas com a presença de delegados, peritos criminais, peritos legistas que compõe a polícia civil mineira permitindo um aprendizado conjunto a partir de diferentes visões. Interessante ressaltar que a ACADEPOL MG também tem esses cursos na forma de um programa de capacitação à distância permitindo que os servidores lotados no interior possam realizá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E PROPOSTAS

Concluindo este Relatório, apresentamos a seguir considerações que visam propor aperfeiçoamentos e mudanças nos processos de formação e treinamento da Perícia Criminal no Brasil, à luz do que foi verifi cado nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ressaltamos, no entanto, que outras pesquisas são necessárias para se verifi car até que ponto os resultados aqui obtidos podem ser generalizados para todo o país. Pesquisas como esta nas demais regiões do Brasil são imprescindíveis para tomadas de decisão nos processos de reforma e modernização dos cursos de formação, capacitação e treinamento regular de peritos criminais em nosso país. Os pontos, que elencamos como os mais importantes, são os seguintes:

1) Consideramos que a seleção dos peritos criminais para ingresso na carreira deve ser por áreas específi cas e não deve ser aberto a qualquer curso de graduação. Os editais devem exigir qualifi cação específi ca na inscrição para o concurso, possibilitando à instituição um maior controle no preenchimento de vagas específi cas de acordo com suas demandas de qualifi cações.

Em ambos os estados observou-se que os cursos de formação visam a uma capacitação generalista dos peritos em termos técnicos e científi cos, o que é algo desejável, segundo percepção dos próprios profi ssionais. Isso porque os peritos lidam com atividades que necessitam de uma capacidade interdisciplinar para enxergar

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155Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

vestígios, concatenar fatos e compreender a dinâmica de eventos criminosos. Entretanto, a própria palavra “perito” pressupõe ao menos a especialização em uma determinada área ou assunto, o que implica em um aprofundamento disciplinar do profi ssional, diferenciando-o do leigo. Não possuir esta especialização do conhecimento põe em risco a própria legitimidade do processo investigativo da perícia.

Assim, após o curso de formação, observamos que não houve uma política de fomento à especialização do conhecimento técnico, através de cursos de capacitação, estímulo à participação em atividades de pesquisa ou cursos de atualização. A escassez de aprofundamento científi co e tecnológico foi mais claramente evidenciada em dois resultados obtidos no survey: a) os peritos criminais formados nas áreas de ciências humanas e sociais consideraram que os conhecimentos adquiridos em sua formação básica eram mais aplicáveis no cotidiano das atividades periciais do que seus colegas formados em outras áreas. b) O mesmo grupo de peritos formado na área de Ciências Humanas e Sociais considerou os cursos de formação qualitativamente melhores do que os profi ssionais formados nas áreas Biomédicas e Exatas.

Em relação aos conhecimentos de abordagem e operacionalidade policial, o curso de formação do Rio de Janeiro foi, comparativamente ao de Minas, totalmente inadequado. Nesse sentido, o curso de Minas Gerais foi bastante amplo e completo. Um fator positivo no currículo do curso de formação de Minas Gerais foi a presença de uma área temática voltada para a compreensão da evolução histórica da sociedade, do Estado e das políticas de segurança pública. A falta de um currículo policial na formação básica do perito do Rio de Janeiro tem uma implicação óbvia para o adequado desempenho do perito criminal, uma vez que, para o Estado, este profi ssional tem os mesmos direitos e deveres de um policial civil. Não investir na formação policial do perito tem como conseqüência a produção de um funcionário inefi ciente (pelo menos em um primeiro momento) e expõem ao risco a vida do próprio profi ssional e a sociedade.

Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal tende a afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial, gerando uma tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus pares. Certamente tal confl ito tem conseqüências para a qualidade das atividades de perícia, uma vez que o trabalho deste último profi ssional depende da ação anterior de outros policiais a fi m de garantir a fi delidade dos materiais e eventos remetidos ou solicitados à perícia. Além disso, a satisfação geral do perito em relação às suas atividades parece estar relacionada com a valorização que seus pares policiais fazem do serviço pericial.

Em relação à abordagem jurídica do curso de formação, novamente Minas Gerais contempla maior carga horária para este tipo de conhecimento. Entretanto, dada a atividade pericial apresentar-se intrinsecamente relacionada ao mundo jurídico, faz-se necessário uma maior implementação nesta área, conforme os próprios peritos se ressentiram.

Portanto, o curso de formação de Minas Gerais foi qualitativamente superior ao do Rio de Janeiro e apresenta um leque de disciplinas adequadas para a formação geral do perito criminal, as quais podem servir de modelo para um currículo básico do perito criminal no Brasil. Essas disciplinas compõem os alicerces para os principais exames realizados pelos peritos criminais, estejam eles nos Institutos Sedes de Criminalística ou no interior.

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O tempo de estágio também deve ser ampliado em ambos os estados de forma a permitir que o aspirante a perito tenha contato com as mais diversas situações e, assim, estar mais confi ante quando tomar posse do cargo. É imprescindível que no decorrer do estágio todos os peritos devam atuar nas mais variadas área, com obrigatoriedade das seguintes disciplinas: a) Perícia de Crimes Contra a Vida; b) Perícia de Crimes Contra o Patrimônio; c) Perícias de Acidente de Trânsito; d) Perícia de Engenharia Legal: furto de: energia, água, sinal eletrônico; e) Perícia de Incêndios; f) Perícia Química – caracterização de substâncias entorpecentes; g) Perícia de Balística Forense – caracterização das armas de fogo, munições e seus componentes; h) Perícia de Documentos- caracterização da adulteração ou falsifi cação

2) A inadequabilidade do ambiente de trabalho tende a ter como conseqüência o aumento da inefi ciência de cursos específi cos de especialização e aprofundamento, os quais demandam uma estrutura adequada tanto para a aplicação do curso, quanto para a aplicação dos conhecimentos adquiridos pelo profi ssional. Aprofundar uma técnica sem ter como aplicá-la é um ônus para o estado sem nenhum retorno potencial para o profi ssional, para a sociedade e para o próprio estado. Assim, dadas as condições atuais, a especialização e viabilidade de cursos de especialização é limitada à um corpo muito restrito de peritos e alguns setores localizados na sede dos Institutos, onde a estrutura física e material é muito superior à todos os demais postos. Portanto, uma melhoria signifi cativa da qualidade técnica da perícia só ocorrerá se acompanhada de forte investimento estrutural e tecnológico, além de reformulação administrativa, principalmente no que concerne à descentralização do aparato tecnológico. No Rio de Janeiro este fato é ainda mais grave, uma vez que mesmo a estrutura física da sede apresenta-se pouco equipada em comparação a Minas Gerais.

3) Embora o conteúdo do curso de formação de Minas Gerais tenha sido qualitativamente superior ao do Rio de Janeiro, a satisfação dos peritos em ambos os estados foi semelhante, embora com pequena tendência à classifi cação positiva dos mineiros. Isso indica novamente que alguns conteúdos essenciais para os peritos devem estar sendo negligenciados, notadamente a parte técnica e científi ca. Essa defi ciência institucional é acompanhada por uma busca incessante do profi ssional por uma melhor capacitação profi ssional, o que pode ser constatado pelo: a) alto número de peritos especializados e que realizaram cursos de especialização após o ingresso na carreira; b) o tempo de ingresso na perícia está positivamente associado ao aumento da motivação para realização de cursos de especialização tendo em vista a preparação para as atividades cotidianas; c) a freqüência de participação em congressos (Criminalística e outros) foi proporcional ao tempo de ingresso no serviço.

4) Um dos principais atores que tem infl uência na qualidade do exame pericial é a polícia militar, uma vez que geralmente esta instituição é o primeiro setor da segurança pública que entra em contato com os corpos de delito. No caso de Minas Gerais foi observado no grupo focal e entrevistas que existe uma relação harmônica da polícia militar com a perícia criminal. Ao contrário, no Rio de Janeiro esta relação é totalmente confl ituosa. Uma das conseqüências do bom relacionamento interinstitucional em Minas Gerais é a preocupação da polícia militar na preservação do local, conforme

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157Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil |

análise qualitativa. No entanto, a análise quantitativa demonstrou que o grau de insatisfação dos peritos em relação à preservação do local foi semelhante ao do Rio de Janeiro. Este fato pode estar associado à falta de capacitação dos policiais militares em relação à preservação das provas periciais, não obstante sua “boa vontade”. A falta de conhecimentos sobre a preservação da(s) prova(s) periciais não se restringem a polícia militar mas também aos Policiais Civis que são os responsáveis pelo encaminhamento de provas periciais aos institutos. A falta de uma cultura que respeite o local de crime faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando o trabalho do perito.

O caminho seguido por MG pode ser uma solução para a questão da preservação do local e das provas uma vez que há uma política ofi cial de integração entre as polícias e entre as carreiras da polícia civil. Isto pode ser constato na participação de professores de diferentes carreiras (peritos, delegados, policiais civis) e instituições (Polícia Militar) em cursos oferecidos pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais destinados aos diferentes órgãos que compõe a Secretaria de Defesa Social.

5) A ausência de indicadores estatísticos confi áveis referentes às demandas periciais e à produção de exames, laudos e produtividade é um fator limitante ao planejamento, gerenciamento e avaliação sistemática dos Institutos. A não utilização de informações, capazes de serem produzidas por estes dados, pode acarretar em uma má distribuição do contingente de pessoal (peritos), assim como uma alocação inadequada de recursos materiais. Além disso, a falta de dados pode prejudicar eventuais processos de avaliação institucionais relacionados a intervenções ou implantação de políticas que tragam melhorias operacionais, inclusive a avaliação da qualidade dos serviços prestados pela perícia.

Referências Bibliográfi cas

Babbie, Earl. Métodos de Pesquisas de Survey. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.Carlson. LC & Thorns. Betty. Applied Statistical Methods. Ed.Pretince –Hall. Inc.Krueger, R. 1994. Focus groups: a pratical guide for applied research. London: Sage PublicationsMinayo, Maria Cecília & Souza, Edinilsa Ramos. Missão Investigar. Entre o Ideal e a Realidade de Ser Policial. Ed Garamond Ltda.Morgan, DL & Krueger, RA. The focus group kit. Californis: Sage PublicationsNeto, Otávio Cruz et all. Grupos Focais e Pesquisa Social. O Debate Orientado como Técnica de Investigação.Soares, LE. 2000. Meu Casaco de General. 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. Ed. Companhia das Letras.

Fontes PrimáriasPrograma do Curso de Formação para o cargo de Perito Criminal – Rio de Janeiro, 2000.Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2002Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2005.

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GUARDAS MUNICIPAIS: RESISTÊNCIA E INOVAÇÃO

Marcos Luiz BretasPPGHIS/UFRJ

David Pereira MoraisUCAM*

INTRODUÇÃO

O tema do policiamento em esfera municipal não é propriamente novo no Brasil. Desde a formação do Estado Nacional brasileiro, no século XIX, inúmeras formas de policiamento foram tentadas, fazendo experiências melhor ou pior sucedidas, até que foi se tornando hegemônico o modelo atualmente conhecido de duas polícias estaduais, uma civil e outra militar. Mas a defi nição de um modelo, que só vem a se completar com a extinção pelo governo militar das Guardas Civis, não signifi ca que ele seja bem sucedido e produza os resultados esperados, procedendo de forma satisfatória. Muito pelo contrário, a década de 1980 produziu, ao mesmo tempo, o processo de afastamento dos militares do poder com a implantação de um regime democrático, e uma aceleração da violência urbana que colocou em questão os serviços policiais, produzindo críticas às polícias, além de inúmeras propostas de modelos alternativos para ampliar a segurança pública.

É nesse quadro que devemos pensar a corrente voga de Guardas Municipais. Não cabe aqui fazer uma análise aprofundada do quadro político no período, mas importa ressaltar que uma parte importante do movimento social em direção à democracia trazia embutida uma grande desconfi ança em relação às instituições do Estado, especialmente àquelas que traziam em si a caracterização de militares ou policiais. Nesse quadro, foram privilegiadas as ações de descentralização, expressas no incentivo a atuação das instituições não governamentais ou na ampliação das atribuições de poder mais próximas às chamadas “comunidades”, isto é, ao poder local/municipal. A questão da segurança não escapou deste movimento. Falava-se muito em “polícia comunitária” e se discutia o papel do município na segurança pública.

O movimento descentralizador teve presença marcante na elaboração da nova constituição, consagrando uma curiosa contradição de registrar de forma centralizada uma expectativa descentralizadora. Mas parece importante observar que, no quadro desta reformatação institucional promovida pela Assembléia Nacional Constituinte, combinava-se uma experimentação de novas formas de poder com uma manutenção dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo em que a nova Constituição manteve os velhos modelos das polícias e suas atribuições, mencionou pela primeira vez neste nível jurídico a presença, ou antes a possibilidade, das Guardas Municipais. A redação

* O trabalho de coleta de dados contou com a colaboração de Susana Cesco. Gostaríamos também de agradecer ao comando das Guardas Municipais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que nos garantiram total apoio e cooperação.

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do artigo 144, § 8º “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.”, ao mencionar as Guardas, ao mesmo tempo em que formaliza sua possibilidade/existência, deixa muito em aberto o seu formato de execução. Pressionados com a crescente questão da segurança pública, os gestores políticos municipais se atiraram de formas as mais diversas na criação de suas Guardas. Estudo do IBAM, a partir de dados do IBGE, menciona 969 guardas, em 1999, com uma enorme concentração nos municípios de maior porte.1 Nesse sentido, é importante observar que, ainda que exista uma expressão formal de sua existência, ainda não é possível afi rmar com clareza o que são as Guardas Municipais no Brasil. Criadas de formas diversas, em contextos municipais os mais diversifi cados, podemos mesmo ter dúvidas sobre a viabilidade de uma defi nição única para as inúmeras Guardas.2 Essa questão se refl ete mesmo sobre algumas discussões que se pretendem objetivas: quantas são as Guardas hoje? Seria possível aceitar sem discussão os dados do IBAM/IBGE? A resposta pode variar de acordo com os critérios que se adote para defi nir uma guarda; efetivos, atribuições ou, pura e simplesmente, o nome.3

Criadas num quadro de busca de alternativas e soluções para problemas sociais crescentes, quase sempre ligados à expansão da violência e do crime, em seus diferentes formatos as Guardas representaram uma tentativa de inovação no quadro das políticas de segurança. Mas a base que promovia a criação dessa nova força, além das limitações estabelecidas pela manutenção das atribuições das forças tradicionais, padecia também da indefi nição, que permitia que se fi zessem Guardas Municipais com os propósitos e métodos os mais diversos. As Guardas terminavam por seguir as vacilações das percepções coletivas sobre o problema da segurança pública: alguns setores da sociedade buscavam – e buscam – formas alternativas de promoção da segurança, através de novas práticas, comunitárias ou assistencialistas, enquanto outros exigiam – e ainda exigem – um endurecimento das ações, uma presença maior de forças de segurança de perfi l igual ao das já existentes. Agravando esse problema, a criação de Guardas parecia uma boa idéia aos mandatários do poder público, mas não havia pessoal qualifi cado para formular um projeto de criação de Guarda, o que levou muitos municípios a colocar suas guardas sob a direção dos especialistas em segurança pública disponíveis, entregando estas novas organizações a policiais militares ou civis, muitos deles impregnados com as visões mais tradicionalistas de segurança pública.

Essa presença de policiais afetou o que nos parece uma das grandes qualidades do processo de implantação de Guardas Municipais: a possibilidade de agir sem a preexistência de uma cultura organizacional, de saberes e práticas consolidadas e compartilhadas pelos agentes policiais, que tanto obstáculo têm posto à reforma das polícias. Num processo muito rápido, as Guardas Municipais também começaram a estabelecer parâmetros de uma cultura organizacional, com refl exos tanto em sua

1 Bremaeker, François, Guardas Municipais existentes nos Municípios. Junho de 2001.2 Um exemplo do que apontamos é a existência de uma Guarda Municipal Rural em Araucária, PR, ou as 252 guardas em municípios com menos de dez mil habitantes indicadas pelo IBAM. Parece óbvio que suas tarefas e mesmo seus métodos podem ser muito distintos de outras Guardas, de perfi l urbano.3 Essa parece a solução mais simples: considerar os municípios que têm uma instituição com esse nome. Mas o problema de comparar o diferente ainda permanece sem solução.

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estrutura interna como no projeto de difusão nacional de um modelo de Guarda.4 Uma parte signifi cativa deste projeto obedece a um modelo característico de instituição militar, que procura basear sua estrutura e métodos em tradições constituídas no tempo,5 o que faz com que as Guardas busquem histórias e continuidades em outras instituições municipais, que apresentam pouca ou nenhuma semelhança com as Guardas atuais. Algumas, de fato, representam administrativamente a continuação de velhas instituições, mas sempre alteradas signifi cativamente no quadro das reformas do Estado, já mencionadas, a partir dos anos 1980. Mesmo as Guardas mais recentes, já vão estabelecendo sua história, e é freqüente a produção de relatórios ou folhetos marcando a passagem dos dez anos de uma Guarda Municipal.6 Ao mesmo tempo, uma pesquisa no site dedicado a brasões policiais localizados no Geocities já conta com 29 brasões de Guardas Municipais de regiões as mais diversas do Brasil, desde Aracaju até Vinhedo.7

A literatura de conteúdo mais acadêmico sobre as Guardas é muito escassa e recente. Mas toda ela parece partir de um suposto semelhante, e que é compartilhado pelo presente trabalho, ao apresentar o interesse nas Guardas Municipais justifi cado pela possibilidade de constituir algo novo no campo da segurança pública, produzindo um ator distinto dos atualmente presentes e defi nindo métodos e atribuições que se distinguem do que fazem as forças policiais estaduais ou federais. Num sentido mais radical, o trabalho de Benedito Mariano avança ao ponto de pensar as novas Guardas como alternativas a um modelo de policiamento baseado nas polícias civil e militar, resquício histórico que deveria ser superado.8 Outros trabalhos não pensam numa substituição do atual modelo, mas numa complementaridade.9 Existem sempre nestes trabalhos menções a resistências, à permanência da força de uma tradição, mesmo nestas instituições tão recentes, mas o foco destes trabalhos tem sido sempre as inovações, deixando o problema da resistência apenas como o registro de um temor.

Esta questão está na origem da proposta deste trabalho. Como lidar com estas instituições, com a sua construção de memória, e direcioná-las positivamente no trato da segurança pública. Como lidar com a extensão e o volume de um pensamento já consolidado que pode signifi car um forte obstáculo à utilização das Guardas como agentes da inovação no campo da segurança pública. Nossa intenção de partida era trabalhar sobre duas Guardas, a do Rio de Janeiro e a de Belo Horizonte, buscando

4 Foge do âmbito deste trabalho mas permanece como questão o estudo das associações de Guardas, dos diversos sites na Internet e mesmo das comunidades no Orkut que permitem observar projetos de “nacionalizar” lógicas e valores de guardas municipais.5 Talvez o melhor exemplo venha de 1993-2000. Panorâmica da GMRio: “A Guarda Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, cuja criação foi autorizada há cerca de oito anos atrás pelo Legislativo Municipal, na verdade é a continuação de uma fi losofi a de trabalho dentro da área de segurança pública que remonta à época da fundação da cidade do Rio de Janeiro, com a chegada de Estáciode Sá” p. 6.6 Ver, por exemplo, A Guarda Municipal de Barueri está comemorando: 10 anos, 1995-2005, caderno de 28 páginas distribuído no XVI Congresso Nacional de Guardas Municipais, realizado de 9 a 11 de novembro de 2005, em Foz do Iguaçu.7 http://geocities.yahoo.com.br/brasoespoliciais/links.html8 Benedito Mariano, Por um novo modelo de polícia no Brasil. A inclusão dos municípios no sistema de segurança pública. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2004.9 Consultar os artigos publicados em João Trajano Sento-Sé (org.), Prevenção da Violência. O papel das cidades. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

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ouvir os envolvidos e avaliar sua percepção sobre a própria atividade. Em que medida já está constituída uma cultura nessas Guardas, orientando o trabalho dos Guardas antigos e absorvendo os novos grupos.10 O uso das duas guardas apresenta algumas questões bastante interessantes, ainda que deixe também de lado muitos problemas que se acham ausentes nessas duas cidades. Fizemos uma tentativa de sanar essa difi culdade visitando outras guardas mas deve fi car claro que o nível de observação é muito inferior. Quando necessário recorreremos a exemplos e comentários tirados de observações feitas em Fortaleza, Osasco e em Foz do Iguaçu.

A GUARDA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

A Guarda Municipal do Rio de Janeiro, como diversas outras, tem sua origem na alteração de funções de outras agências municipais. No caso específi co, a Guarda foi criada em 1993, aproveitando o pessoal contratado e treinado para fazer a vigilância para a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB). Importa ressaltar que ainda hoje, a turma de guardas mais antigos é composta destes oriundos da COMLURB, com treinamento diferente das turmas posteriores. O modelo adotado foi a criação de uma Empresa Municipal de Vigilância, responsável pela gestão da Guarda e emprego do pessoal, que não pertence aos quadros do Município, regidos pela CLT e demissíveis pela legislação trabalhista comum.11 Incorporando inicialmente 2.189 homens da COMLURB, a Guarda foi se expandindo e diversifi cando seu contingente. Os dados obtidos em entrevista com o Diretor de Recursos Humanos em abril de 2005 mencionavam 5584 guardas, distribuídos da seguinte forma:

• 19 inspetores• 108 subinspetores• 291 Guardas Municipais 3• 2.698 Guardas Municipais 2• 2.468 Guardas Municipais 1

O nível mais alto da tabela ainda não foi preenchido. Estes homens e mulheres dividem-se por 15 inspetorias e uma série de grupamentos especiais, de acordo com a tabela a seguir:

10 Vale registrar que os trabalhos que citamos optaram por investigar as guardas através de seus gestores. Preocupados com políticas inovadoras, ouviram os formuladores mas não dedicaram atenção aos executores, personagens fundamentais na compreensão de atividades de segurança pública.11 Essa é uma das principais queixas dos Guardas, que aspiram a um Estatuto próprio que lhes garanta a posição e os direitos de servidores do Município. Isso é percebido no Plano Estratégico da Guarda para o período 2001/2005: “O clima organizacional encontrado na empresa é de ansiedade pela implantação do Plano de Carreira, Cargos e Salários e de ceticismo quanto à possibilidade de mudanças estruturais que possam benefi ciá-los. O clima é muito infl uenciado pelos valores desenvolvidos pela cultura da organização, onde a ascensão interna é conseguida através da infl uência pessoal a despeito do mérito e talento individuais.” Por outro lado, como trabalhadores da iniciativa privada, o controle das licenças médicas escapa da administração da Guarda, o que também tem efeitos negativos. A questão é complexa e divide os gestores. Até onde pude perceber os Guardas são francamente favoráveis à criação de um estatuto. Isso pode ser percebido no informativo sindical Fala Rio.

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Áreas circunscricionais das Guardas Municipais na Cidade do Rio de Janeiro

1ª Praça XV: Centro da cidade, Santo Cristo, Saúde, Cajú, Gamboa, Aeroporto, Castelo, Fátima, Lapa, Praça Mauá, Rio Comprido, Estácio, Catumbi, Cidade Nova e Santa Tereza.

2ª Lagoa: Copacabana, Leme, Lagoa, Gávea, Ipanema, Jardim Botânico, Leblon, São Conrado, Vidigal e Rocinha.

3ª Higienópolis: Complexo do Alemão, Bonsucesso, Manguinhos, Olaria, Ramos, Baixa do Sapateiro, Complexo da Maré, Conjunto Pinheiros, Marcílio Dias, Nova Holanda, Parque União, Brás de Pina, Penha, Penha Circular, Inhaúma, Del Castilho, Engenho da Rainha, Higienópolis, Maria da Graça, Tomás Coelho, Praia de Ramos, Roquete Pinto, Rubens Vaz, Timbaú, Vila do João, Vila Esperança, Vila Pinheiro, Vigário Geral, Cordovil, Jardim América e Parada de Lucas.

4ª Barra da Tijuca: Barra da Tijuca, Camorim, Grumari, Itanhangá, Joá, Piabas, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena.

5ª Bangu: Bangu, Senador Camará, Padre Miguel, Deodoro, Campo dos Afonsos, Sulacap, Magalhães bastos, Malett, Realengo e Vila Militar.

6ª Madureira: Irajá, Colégio, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vila Cosmos, Vista Alegre, Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Engenheiro Leal, Madureira, Cavalcante, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz, Quintino Bocaiúva, Honório Gurgel, Vaz Lobo, Rocha Miranda, Turiaçu, Anchieta, Guadalupe, Parque Anchieta, Guadalupe, Ricardo de Albuquerque, Pavuna, Acari, Barros Filhos, Coelho Neto, Costa Barros e Parque Columbia.

7ª Praça Seca: Anil, Curicica, Freguesia, Gardênia Azul, Jacarepaguá, Pechincha, Praça Seca, Tanque, Taquara, Vila Valqueire e Cidade de Deus.

8ª Tijuca: São Cristovão, Benfi ca, Mangueira, Vasco da Gama, Triagem, Tijuca, Praça da Bandeira, Alto da Boa Vista, Vila Isabel, Andaraí, Grajaú e Maracanã.

9ª Laranjeiras: Catete, Cosme Velho, Flamengo, Glória, Humaitá, Laranjeiras e Urca.

10ª Cidade Nova: Centro Administrativo São Sebastião, Palácio da Cidade e Gávea Pequena.

11ª Flamengo: Parque do Flamengo.

12ª Jardim Carioca: Bancários, Cacuia, Cidade Universitária, Cocotá, Freguesia (Ilha), Galeão, Jardim Guanabara, Tauá, Moneró, Pitangueiras, Portuguesa, Praia da Bandeira, Ribeira, Zumbi, Jardim carioca e Ilha de Paquetá.

13ª Campo Grande: Campo Grande, Santíssimo, Senador Augusto Vasconcelos, Cosmos e Inhoaíba.

14ª Santa Cruz: Santa Cruz, Sepetiba, Paciência, Guaratiba e Pedra de Guaratiba.

15ª Engenho de Dentro: Jacarezinho, Vieira, Fazenda Abolição, Água Santa, Cachambi, Consolação, Encantado, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Lins de Vasconcelos, Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, São Francisco Xavier, Sampaio Correa, Todo os Santos e Jacaré.

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Grupamentos especiais:• 2 Grupamentos Especiais de Trânsito (GET), criados em 1994 e 1998• Grupamento de Apoio ao Turista (GAT), criado em 31/05/2004• Grupamento de Defesa Ambiental (GDA), criado em 13/04/1994• Grupamento de Ronda Escolar (GRE), criado em 01/04/1996• Grupamento Especial de Praia (GEP), criado em 12/1999• Grupamento de Ações Especiais (GAE), criado em 15/09/1994• Grupamento de Tático Móvel (GTM), criado em 05/03/1994• Grupamento de Cães de Guarda (GCG), criado em 24/03/1994

Essa diversidade permite que os Guardas se distribuam de acordo com aptidões, ainda que seja duvidoso que as designações para as inspetorias e grupamentos sejam sempre por processos de escolha. É comum em instituições militares – ainda que a Guarda não se encaixe estritamente nesta defi nição, como discutiremos mais a frente – a designação de pessoas sem considerar suas aptidões, destinando-as a tarefas que têm muito pouco interesse em cumprir.12

A divisão entre os gestores, cargos de confi ança da Empresa, e os guardas, contratados através de concursos, também é muito evidente. Parte deste problema tem sua origem no curto tempo de existência das guardas, que ainda não permitiram a qualifi cação e a ascensão profi ssional de seus empregados. Pode-se imaginar que, num prazo médio, mais e mais atribuições venham a ser transferidas para guardas formados internamente. Isso já pode ser observado no treinamento: as primeiras turmas eram treinadas em locais fora da guarda, por pessoal convidado, principalmente nas polícias. As últimas turmas já receberam treinamento em locais da própria guarda, utilizando instrutores internos.13

Boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre instituições policiais confere uma ênfase signifi cativa à instituição e à identidade entre seus membros, sugerindo o que seria uma cultura policial. Essa leitura tem atrativos de método, permite compreender certas lógicas de ação policial, mas, ao mesmo tempo, deixa de lado as possibilidades de explorar as diferenças entre os policiais, expressa em capacidades e aptidões maiores para realizar certas tarefas e não outras.14 Nesse ponto, uma distinção clássica é entre pessoal administrativo e pessoal de rua, sugerida por Elizabeth Reuss Ianni, que, no caso da Guarda Municipal, parece se expressar de forma dramática entre os gestores, cargos de confi ança da Empresa, e os Guardas. Mas mesmo entre esses é importante

12 Num sistema fortemente hierarquizado como são as polícias militares e, em grau menor, a polícia civil e a Guarda Municipal, os gestores têm uma visão própria do perfi l adequado de agente. Aqueles que correspondem á visão do gestor podem ser bem aproveitados e colocados em posições que correspondem a seus perfi s, mas aqueles que não correspondem ao perfi l desejado pela gestão podem ser “castigados” com designações onde não aproveitam suas melhores habilidades. Não cabe aqui discutir, ainda que mereça registro, que outra forma de colocação – que aparece com freqüência em reclamações – é a indicação política, onde méritos ou habilidades específi cas não são levadas em consideração.13 Convém ressaltar que a Guarda Municipal do Rio tem seu comando num prédio que pertenceu ao antigo Batalhão de Guardas do Exército, com espaço e capacidade para instalações de excelente qualidade. Parte do prédio já está renovado, especialmente a parte destinada a cursos e treinamento. A parte destinada às unidades ainda deixa muito a desejar. Diversos guardas notaram esta disparidade entre o lado nobre do prédio e o lado plebeu.14 Uma revisão da extensa literatura sobre diferentes perfi s policias pode ser encontrada em Robert Reiner, The Politics of the Police. Harvester Wheatsheaf, 1992, cap. 3. Existe edição em português.

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explorar as diferenças de perfi l que pode variar de acordo com experiências anteriores de ocupação15, com a turma em que entraram na Guarda, e mesmo com os setores nos quais estão lotados.

A supervisão da Guarda, ao longo de sua existência, tem estado na mão de ofi ciais da Polícia Militar. Os dois comandantes foram coronéis da reserva. A pesquisa feita pela SENASP sobre o perfi l das Guardas tem mostrado que isso é bastante comum, como já foi mencionado, mas os efeitos ainda precisam ser melhor avaliados. A vinculação policial militar parece sugerir um “controle externo”, de uma instituição com atuação marcante na segurança pública, que buscaria parceiros subordinados.16 Nesse sentido, a Guarda do Rio se caracteriza por um discurso de não ser polícia, pela negação do emprego de armas pelos Guardas, o que a coloca quase que isolada no cenário nacional, e parece ir contra o desejo de boa parte dos seus próprios Guardas.17 Ao mesmo tempo, o relacionamento entre o estado e o município no Rio de Janeiro não é bom, o que parece estimular disputas e mesmo confl itos abertos entre os Guardas e os policiais civis e militares e mesmo com o Corpo de Bombeiros. Estas disputas podem ganhar aspectos quase anedóticos – ainda que não se deva perder de vista sua gravidade – quando acompanhamos os confl itos entre Guardas e Bombeiros, que disputam o monopólio do salvamento de afogados, ou mesmo quem se responsabiliza por pingüins extraviados. A batalha pelo pingüim perdido faz parte do anedotário dos Guardas cariocas e ilustra as racionalidades em confl ito. Num dia de inverno, os guardas municipais do grupamento de praia recolheram um pingüim que chegou a praia. Os bombeiros “exigiram” que eles entregassem o animal. Como os próprios guardas admitem, a atribuição de destinar estes animais é de fato do Corpo de Bombeiros, mas as disputas já vinham ocorrendo e o tom empregado pelos bombeiros não agradou. Os guardas diagnosticam – não sem razão – um comando nos bombeiros de praia com uma especial predileção por ser fotografado resgatando animais e sem muito interesse por normas de polidez. Nesse ponto instaurou-se a confusão, travando-se uma pequena batalha pelo pingüim. Não era propriamente uma disputa sobre quem tinha razão, mas um embate simbólico sobre disputas organizacionais, num ambiente onde a racionalidade da gestão deveria esperar cooperação e não confl ito.18

Uma forma importante de análise que precisa ser feita é como as Polícias Militares pensam a presença das Guardas, que projeto desenvolvem de relacionamento e que atribuições pensam que as Guardas devem ter. Não parece haver uma doutrina

15 Não é possível defi nir aqui se as experiências anteriores expressam uma determinada “vocação” ou se são elas que formam uma determinada atitude diante do trabalho. O que podemos perceber é a diferença de certos grupos.16 A relação entre a Polícia Militar dos Estados e as prefeituras é tema ainda não abordado. Como a maior parte dos estudos privilegia os grandes centros, essa relação é menos visível. Mas as indicações recebidas de diversas partes do país parecem indicar que as restrições orçamentárias das polícias são parcialmente resolvidas com a colaboração municipal, que se responsabiliza pela manutenção de instalações, viaturas e fornecimento de combustível. O tema merece atenção.17 Leitura semelhante é apresentada no município próximo de São Gonçalo, onde o comandanteda Guarda também é policial militar, citado no trabalho de João Trajano Sento-Sé e Otair Fernandes, “A Criação do Conselho Comunitário de Segurança em São Gonçalo”. In João Trajano Sento-Sé, op. cit., pp. 255-282.18 Esse é um bom exemplo da distinção entre pesquisas com gestores e na base. Entre gestores, fala-se em cooperação ou no máximo queixa-se do desinteresse; na base operacional os confl itos são reais e abertos. Em outras situações ocorre o inverso; os gestores brigam mas as bases cooperam.

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defi nida para essa questão, que varia de acordo com comandos e de estado para estado. E mesmo que se considere a presença de ofi ciais PM como indicativo de uma afi nidade com esta instituição, parece haver também alguns casos onde ofi ciais dissidentes investem num projeto alternativo – seja de polícia, seja projeto político – através do comando de Guardas.19

A GUARDA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE

Belo Horizonte oferece uma excelente oportunidade para estudar a implantação de uma Guarda Municipal. O novo prefeito decidiu criar a Guarda e, para estabelecê-la, convidou um coronel da Polícia Militar. O ato de criação é a lei n. 8486 de 20 de janeiro de 2003. O planejamento ainda se encontra em fase inicial, e no momento está sendo feito o primeiro concurso para Guardas estatutários. Até agora a Guarda vem funcionando com um grupo pequeno de 448 guardas contratados. O comando policial militar vem desenvolvendo um cuidadoso planejamento das tarefas que a Guarda pode exercer – mais no sentido do contingente restrito do que como uma defi nição da missão da guarda – e cuidando para que seu pessoal se adeqüe às expectativas. A opção feita foi buscar egressos das Forças Armadas para executar o primeiro recrutamento. Com isso o pessoal tem uma experiência militar e já se encontra adaptado aos padrões de comportamento militares. Com isso, embora seja uma guarda civil em sua concepção, a Guarda de Belo Horizonte apresenta todas as características de uma corporação militar.20

Embora exista um embrião de grupamentos especiais, esse tipo de ação ainda não é enfatizado, dando-se preferência à divisão da Guarda por nove áreas da cidade [Centro-Sul, Barreiro, Venda Nova, Pampulha, Norte, Oeste, Nordeste e Noroeste], e especialmente sua localização fi xa em pontos escolhidos. O destaque na ação da Guarda Municipal de Belo Horizonte é o policiamento de centros de saúde, escolas e parques, além de outros próprios municipais. Nesse sentido, as iniciativas parecem ser muito bem sucedidas, mas ainda muito modestas. Alguns espaços são controlados de forma considerada muito satisfatória – Rodoviária, Parque Municipal, Centros de Saúde – mas a visibilidade da Guarda ainda é pequena e, mesmo para esse tipo de policiamento, a demanda excede em muito a capacidade de atendimento da Guarda. A criação de uma Guarda pequena, que vá aos poucos adquirindo visibilidade, ocupando mais e mais espaços, preparando seu efetivo de forma a atender demandas possíveis e com qualifi cação, parece ser uma boa forma de proceder. Mas ainda deixa em aberto como atender a demandas políticas e pressões sociais, sem falar que mesmo nesses casos, o projeto sobre o que a Guarda Municipal deve fazer, e o como, fi cam pendentes, dependendo do sucesso de processos concretos. Por tudo isso, a Guarda Municipal

19 Em Minas Gerais é possível perceber grupos distintos de policiais militares disputando o controle das diferentes Guardas, o que produz um difícil diálogo entre municípios.20 Infelizmente o prazo do trabalho não permitiu avaliar o processo de entrada dos novos Guardas. Havia uma expectativa de que os atuais guardas contratados fossem bem sucedidos no concurso, o que parece não ter ocorrido; com apenas um terço dos atuais guardas sendo aprovados. Isso tem sido fonte de tensão e aumenta o debate sobre a maior adequação de candidatos selecionados numa prova, mas de origem civil, em contraposição a guardas com experiência e, principalmente, tidos como “vocacionados”. O mesmo tema é discutido, na polícia civil do Rio Grande do Sul, por Acácia Maria Maduro Hagen, O Trabalho Policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado, UFRGS, 2005.

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de Belo Horizonte se revela um excelente campo de estudo. Mais detalhes serão apresentados à frente, na discussão de temáticas presentes no trabalho das Guardas.

AS GUARDAS PELOS GUARDAS

Em primeiro lugar, devemos explicitar como foi procedido o trabalho de pesquisa. No caso do Rio de Janeiro foram selecionados aleatoriamente grupos de cinco guardas em cada grupamento ou inspetoria, reunidos, com autorização do comando, para uma conversa gravada, com o compromisso explícito de sigilo e não identifi cação. Mesmo assim ocorreu um caso de recusa de entrevista, por guardas que consideraram a convocação para a entrevista como uma forma de punição por atitudes de oposição ao comando. Por mais que lamentássemos essa atitude, preferimos dispensar estes guardas, abrindo mão das entrevistas. Optamos por trabalhar com grupos devido ao volume de entrevistas que teria de ser feito, sendo mesmo possível que em conjunto os guardas criassem um ambiente mais aberto com maior facilidade, permitindo uma maior troca e expressão de pensamento. Na reunião dos grupos foram buscados dois tipos de seleção: uma que nos trouxesse guardas que ingressaram na força em períodos diferentes, das diversas turmas, além de buscar, quando possível a presença de guardas mulheres, que poderiam ter características e percepções específi cas.21

No caso de Belo Horizonte o trabalho foi desenvolvido de forma distinta. Devido ao pequeno contingente, o comando nos solicitou que fi zéssemos o trabalho enquanto o guarda estivesse de serviço. Por isso o trabalho feito foi correr diversos locais que possuem guardas municipais e observá-los no serviço, para em seguida conversarmos um pouco sobre a atuação e a percepção que têm do trabalho realizado. Foi uma investigação mais precária, mas que se adequou às necessidades da Guarda. Realizamos também uma reunião com o grupo de motociclistas que estava reunido para sair da base de comando para assumir seus postos.22 Se perdemos na qualidade e atenção dada à entrevista, tivemos oportunidade de fazer a observação dos Guardas em ação, o que pode ilustrar certas questões de forma distinta do discurso. Não nos parece que tenha sido a condição da entrevista o que motivou certas diferenças de fala. O ponto mais importante é a origem militar dos Guardas de Belo Horizonte, que reforça em muito sua tendência a adotar o discurso institucional. Mesmo assim o material é muito signifi cativo, especialmente quando confrontado com outras fontes.23

21 Esse tema pode ser melhor explorado. Algumas guardas fazem seleções com vagas separadas para homens e mulheres, designando mesmo funções diferentes. Outras fazem o concurso indistintamente, como é o caso do Rio de Janeiro. O caso de Belo Horizonte é peculiar. Nesse momento não há mulheres. O projeto do comando ao estabelecer as normas do concurso que se realiza era de designar um número limitado de vagas para mulheres, o que foi alterado. Diante disso foi realizada uma seleção única, obedecendo a critérios iguais, onde as mulheres terminaram por ser eliminadas.22 Talvez seja o lugar para mencionar que, ao contrário do Rio, as instalações da Guarda de Belo Horizonte são ainda muito precárias. Vários projetos existem, e nos foram mostrados, para obter um melhor local mas nada ainda é defi nitivo.23 Nunca é demais insistir nessa ambigüidade de ser militares e guardas que teoricamente não deveriam sê-lo. Um depoimento na comunidade Guarda Municipal BH é ilustrativo: ”Com relação a Guarda Municipal, vale a pena lembrar que todos os seus atuais integrantes são oriundos das Forças Armadas, o que comprova suas qualidades como militares. Porém a Guarda não é uma instituição Militar, embora esteja moldada como tal”. Em www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=2256873&tid=12997453, consultado em 5/12/2005.

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Nossa proposta é buscar compreender como os Guardas organizam seu pensa-mento a respeito das defi nições de suas atribuições e dos instrumentos que devem ter para o exercício destas tarefas. É importante levar em conta que estes aspectos nem sempre estão de acordo com a visão que os gestores têm dessas atribuições e instrumentos, o que leva a um confl ito pouco visível mas muito marcante em instituições deste tipo entre determinações da hierarquia e sua apropriação/execução por aqueles que estão na ponta do sistema. Projetos de reforma precisam conquistar seus executores, sob pena de fi carem condenados ao papel.

Afi nal o que é a Guarda?

Essa é a questão que pode ter a resposta mais simples, e ao mesmo tempo é a mais complexa. O treinamento dos Guardas os predispõe a responder utilizando o código aprendido, fazendo referência aos termos constitucionais e legais: o guarda aprende a responder esta pergunta e afi rmar como a Guarda se defi ne. Mas na medida que se discute a atividade, a imagem inicial vai sendo relativizada, se adaptando às exigências do exercício profi ssional. A defi nição da Guarda passa então pelo dilema de relacionar o código legal com as expectativas dos guardas e com as exigências do público, que é percebido pelos guardas como esperando deles atitudes policiais, de mais um agente uniformizado de controle do espaço urbano. O próprio guarda passa a esperar que a população se comporte desta maneira.24 Esse talvez seja o principal suporte para um confl ito dos Guardas com sua norma legal; o que a lei diz que eles devem fazer deveria ser o que a sociedade espera deles, e isso não se refl ete na percepção cotidiana dos encontros. Mas a relação entre a lei e os desejos percebidos na população deve ser mediada pelos desejos do próprio guarda; eles também têm sua concepção sobre como a Guarda deveria atuar. A visão dos guardas a respeito não é consensual; alguns parecem mais adaptados ao projeto de Guarda como instituição policial de corte clássico, enquanto outros parecem se inclinar para um serviço municipal de caráter mais assistencial. Vamos tentar sugerir que estas diferenças, ao menos em parte, podem ser pensadas em relação à experiência anterior dos guardas, assim como ao lugar onde eles fi cam melhor adaptados dentro das guardas, compostas de grupamentos com perfi s distintos. Os guardas pouco falam sobre aqueles que têm perfi l e concepção diferentes dos seus, não é comum a crítica dos colegas, ainda que ela possa aparecer em uns poucos casos. Mas existe sempre uma diferenciação marcante no discurso entre aqueles que querem fazer alguma coisa e aqueles que têm uma visão burocrática de sua atuação – claro que quem fala sempre quer fazer alguma coisa.

Os guardas que se destacam são aqueles que têm experiência anterior em instituições militares ou policiais, que vêem o trabalho em segurança como exercício de uma vocação e um estilo de vida. Para esse grupo, a posição da Guarda fora da esfera das instituições reconhecidamente policiais é um problema, e eles estão sempre

24 “Hoje passei por uma situação muito constrangedora,..., num fechamento de rua, vi duas mulheres serem assaltadas e não pude fazer nada, pois não tinha rádio, o lugar era um pouco deserto, e não tinha nenhuma arma. Me pergunto: o que aquelas mulheres pensaram de mim? Me senti um inútil” www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=345990&tid=21998523

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buscando agir como polícia e fazer-se reconhecer como tal.25 Como já foi mencionado, esse tema tem tido um aspecto dramático no processo de seleção dos guardas em Belo Horizonte. Os guardas de origem militar e que estão trabalhando, sentem que a “vocação” que possuem está sendo derrotada pela lógica impiedosa do concurso público, que seleciona pessoas com um conhecimento superior, mas que não possuem o desejo e a vocação para fazer o trabalho da Guarda. Seriam oportunistas que procuram o conforto de um emprego público, mas que não serão necessariamente nas guardas, e deixarão esse emprego por outro que pague melhor a qualquer momento.26 Desse grupo saem aqueles que são vocacionados para trabalhos de Operações Especiais ou Tático Móvel. Esses guardas demonstram preferência por atividades onde haja esforço físico e a possibilidade permanente de confl ito: “nós trabalhávamos o plantão inteiro equipados, entendeu? Na eminência de um confl ito. Então se ocorreu um ataque de fogos, geralmente é fogos ou pedras, mas já ouve de armas de fogo. Então ocorreu um ataque, você vai fazer um cerco, vai patrulhar, vai tentar encontrar a pessoa que atacou vai correr atrás. Você encontrou um suspeito, impossível você passar direto, você tem que revistá-lo, quem revista é policia”.27 São aqueles que se sentem confortáveis com o risco. É um grupo eminentemente masculino. A presença feminina não parece ser propriamente incômoda, mas estabelece-se uma relação de “proteção”, onde as mulheres são colocadas fora da linha de frente.

Esse grupo tem sempre como referência as guardas de São Paulo, que, segundo eles, têm uma ação muito mais policial, funções e equipamento de polícia. Cidades como Jundiaí, Indaiatuba, Cotia são citadas como exemplos, justifi cados pela quase substituição da Polícia Militar pelos guardas, que fariam segurança em presídios, prisões, e – um dos grandes objetos de desejo – teriam até helicópteros!28

25 Este estilo de guarda é o mais visível, senhor de uma agenda bastante clara, que transparece em grupos de discussão, associações e encontros de Guardas Municipais. O tema central nesses grupos e eventos é a discussão da proposta de emenda constitucional 534/2002 que, caso aprovada, reconhecerá o papel das guardas na segurança pública. O acompanhamento e a tentativa de lobby no processo político é evidente.26 Esse é um dos problemas mais visíveis na Guarda do Rio de Janeiro, bem mais do que na de Belo Horizonte. Como a Guarda experimentou uma depreciação salarial marcante ao longo dos anos, quase todos os guardas têm expectativas de conseguir um emprego melhor, além de já terem outras ocupações nas horas de folga. Parece possível que os Guardas de Belo Horizonte, que estão vendo seus empregos ameaçados pelo concurso, se mostrem mais reticentes sobre a procura de outros empregos ou ocupações paralelas. A exceção visível era a denúncia de que um grande número de guardas preferiu deixar Belo Horizonte, optando por prestar concurso para Guardas Municipais da Grande elo Horizonte. Os dados da administração não confi rmam essa evasão signifi cativa, mas, entre os guardas, os que saíram tiveram grande visibilidade.27 Depoimento de guarda do Grupo de Ações Especiais – RJ. A referência mais intensa desse grupo são os confl itos travados com camelôs nas ruas do centro do Rio, que tiveram um momento de grande intensidade mas hoje estão controlados.28 As informações passadas pelos guardas não são necessariamente acuradas; muitas informações se misturam mas deixam evidente a construção de um modelo. O uso de helicópteros é registrado na página da Guarda Municipal de Novo Hamburgo, RS, ali, segundo o prefeito: “O crime está profi ssionalizado, não podemos enfrentar a violência de uma maneira antiga. Outras ações iriam apenas amenizar o problema e acreditamos que o helicóptero vá realmente fazer a diferença e diminuir a criminalidade.” Citação tomada do jornal NH, de 16 de abril de 2003, disponível em http://www.novohamburgo.rs.gov.br/sec/semtras/gm/index.htm.

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Mas é importante perceber que existem outros grupos e tendências dentro da Guarda, onde a concepção de “vocação” é muito distinta. Um grupo que foge claramente ao padrão militar é a Ronda escolar. Aqui são guardas com projetos de prevenção, dedicados a criar condições para que os problemas da violência e do crime não penetrem nas escolas ou que possam ser contidos no nascedouro. Mesmo assim, estes grupos podem ser observados em duas linhas distintas: parte faz um trabalho de prevenção e palestras, parte faz a ronda no seu sentido mais imediato, lidando com acidentes e confl itos dentro das escolas. Esse grupo ainda mostra um certo aspecto punitivo, que muitas vezes os coloca em choque com as diretoras e professoras das escolas, que vêem como protetoras dos alunos. Ajustar as concepções daqueles que se relacionam com as guardas em seu cotidiano – e deveriam cooperar nas atividades – e as dos guardas parece ser um tema importante para consolidar o trabalho cooperativo e preventivo de grupos que atuam em situações onde pode aparecer risco, especialmente envolvendo menores. São momentos em que se deve perceber como não é desejável um perfi l único de guarda – ou de policial – mas sim um aproveitamento de habilidades que deve incluir a capacidade de integrar e cooperar com outros grupos que têm um papel menos visível mas não menor na prevenção ao crime.

O segundo grupo, que se destaca como perfi l alternativo, é o Grupamento de Trânsito. Em muitas guardas que buscam se afi rmar como polícias, a imagem que incomoda é exatamente do Guarda Municipal como encarregado de controlar o trânsito e multar as pessoas. Esse trabalho é apresentado exatamente como o que não deveria ser feito.29 Mas o grupo de entrevistados do trânsito era exatamente o que tinha menos contatos prévios com atividades de segurança, e continuavam a expressar um conjunto de preocupações que os afasta deste tipo de percepção e atividade. A seguir discutiremos a questão do armamento mas vale notar aqui que esse grupo considera perigoso fi car armado onde eles estão, que a convivência que estabelecem é condicionada pela ausência da arma, e que, ao contrário do Guarda citado acima, preferem se afastar quando percebem algum tipo de crime ocorrendo.

Ao contrário da Ronda escolar, esse grupo não parece desenvolver algum tipo de habilidade específi ca direcionada a seu trabalho, a não ser a de sobreviver num ambiente hostil. O trânsito nas grandes cidades produz uma tipo de situação onde se perde sempre, incapaz de satisfazer aqueles que pedem ordem e desagradando aqueles que agem em desacordo com a norma. Num certo sentido, é possível dizer que para esta função vão aqueles que não têm interesse em outras atividades exercidas pelos guardas. Mas isso não signifi ca dizer que há desinteresse no trabalho, ou descompromisso com a atuação, os grupamentos de trânsito trabalham em condições duras e muitos querem fi car ali, apesar de certa sensação de inutilidade do trabalho, repetidas todos os dias as mesmas infrações. Nas entrevistas não apareceu o tema da corrupção, mas conversas informais apontam para o problema, o controle do trânsito permitindo ganhos irregulares sem muito risco.

Assim como o grupo vocacionado para a segurança manipula o desejo social de mais segurança, esse grupo manipula os impedimentos legais e os argumentos a favor de uma guarda não policial. O impasse permanece.

29 Isso não deixa de ser verdade também nas polícias. Muitas delas se sentiriam mais confortáveis sem o controle do trânsito.

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As atribuições da Guarda

Este ponto pode ser abordado de forma menos problemática, pois os pontos mais complexos estão ligados à questão anterior. As tarefas concedidas as guardas podem ser interpretadas como restritivas ou absolutamente abertas. A forma de intervenção vai se defi nindo no que se pode considerar como um expansionismo que vai caracterizando as Guardas. Fruto de demandas e lutas sociais, em alguma medida ainda sem a imagem negativa dos outros agentes de segurança pública, as Guardas parecem aspirar por mais. O que deve ser esse mais, pode não estar expresso de forma muito clara, mas certamente passa por um contingente maior, melhores instalações e equipamentos. O raciocínio é institucionalmente simples: se existem demandas, atendê-las seria fonte de poder e prestígio. Pode ser que o resultado não seja esse mas essa é a concepção que parece informar boa parte dos guardas. Aqui a grande divisão está relacionada com os administradores. Por agendas políticas ou policiais, eles têm interesse no desenvolvimento das guardas, mas direcionadas para agendas próprias ou restritas. No caso do Rio, o tema da ordem urbana, nos termos defi nidos pelo prefeito, se impõe, levando ao polêmico embate com camelôs pelas ruas do centro da cidade, dando uma visibilidade freqüentemente negativa para a Guarda. No caso de Belo Horizonte, existe a preocupação de conter o espaço da guarda, avançar lentamente, defi nindo termos de bom relacionamento com a Polícia Militar.

A questão central parece ser o tornar-se ou não polícia. O acompanhamento da PEC 534/2002 no Congresso Nacional demonstra o interesse dos Guardas em que isso seja realidade, reunindo desde grupos mais duros até propostas como a de Benedito Mariano, que vê as guardas como a nova alternativa policial. Mas para o tratamento desse tema, as Guardas de Belo Horizonte e do Rio não são os melhores exemplos.

Num outro nível, essa mesma discussão pode ser travada sobre um conjunto de atribuições. Escolas, próprios municipais, trânsito, parecem ser destinações muito visíveis para as Guardas. Mas é preciso observar a capacidade destas guardas de formular temas e formatos novos, adequando sua estrutura a demandas contemporâneas. Nesse sentido, a criação de guardas ambientais, o patrulhamento de praias e locais turísticos, vai abrindo novos horizontes para o trabalho das Guardas, ampliando a possibilidade de construí-las como instituições novas e positivas.30 Ao mesmo tempo, essas atividades, se mal sucedidas, podem produzir um desgaste para as guardas, e ampliar os argumentos para a expansão dos poderes. Isso fi ca particularmente visível numa cidade turística como o Rio de Janeiro, onde a violência contra visitantes tem um caráter extremamente desagradável e negativo para os gestores urbanos. Deixar isso como responsabilidade de outros pode não parecer uma má idéia.

O equipamento

O principal tema de discussão a respeito de equipamento é, sem dúvida, o uso de armas. Tem sido visível a tendência das guardas de se armar, o que vem ao encontro

30 Isso não signifi ca que as polícias não estejam trabalhando nestes campos. Mas neste caso a atividade é subordinada a outras mais visíveis e consagradas, deixando muito a desejar como construtora de imagem. A Guarda, por não ter ainda função bem defi nida, pode se benefi ciar disso.

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das aspirações da maior parte dos guardas. Nos casos estudados, a Guarda de Belo Horizonte está comprando armas enquanto a do Rio ainda resiste, sendo o caso mais visível de um comando comprometido com uma idéia de guarda desarmada. O primeiro ponto fundamental parece ser a defi nição das condições de emprego do armamento. Nesse ponto, parece não haver um planejamento muito bem defi nido e o comando da guarda de Belo Horizonte mostrou-se reticente. É preciso estudar defi nições precisas para onde e quando usar armas, e como avaliar as situações em que elas forem utilizadas. Guardas com mais tempo de uso de armas parecem ter desenvolvido formas de avaliação, acompanhando casos envolvendo o saque das armas ou o disparo.31 Esse processo precisa ser bem acompanhado. Por outro lado, existe uma forte tendência a afi rmar que o porte de armas deve se dar apenas em situações específi cas, que envolvam um risco maior para o Guarda. Esse é o argumento empregado, por exemplo, em Fortaleza. Mas aqui existe o risco, bastante claro, de que os Guardas demandarão a extensão do “privilégio”, e de que a médio prazo todos os guardas comecem a andar armados.32 A proposta de uma guarda parcialmente armada, por mais atraente e mesmo racional que seja, não parece encaixar-se bem nas lutas políticas que se travam em torno da função das Guardas.

Uma segunda questão é o emprego de outro tipos de equipamento, como armamento não letal. O Encontro de Guardas em Foz do Iguaçu, como outros eventos semelhantes, tornou-se também uma feira de equipamento. Guardas recentes e pequenas, como a de Florianópolis, estão investindo na compra de tasers. Esse tipo de equipamento ainda não tem sido utilizado no Brasil, e deve ser objeto de estudo cuidadoso para avaliar as circunstâncias de seu emprego.

O treinamento e as condições de trabalho

Aqui parece haver cada dia mais um consenso na área de segurança pública sobre a necessidade de estabelecer parâmetros de treinamento, mais do que de avaliação posterior de desempenho. Essa preocupação tem sido expressa nas matrizes curriculares produzidas pela SENASP. Um tipo de estudo muito freqüente é o da evolução dos currículos dos cursos, ainda que, surpreendentemente, em muitos casos essa memória não exista.33 O treinamento parecia ser apenas um momento lógico, onde veteranos das forças policiais, recrutados por infl uência e contatos, transmitiam algumas noções básicas, enquanto se faziam ritos de passagem para que os novos recrutas começassem a tornar-se parte da instituição. Hoje novas disciplinas têm sido oferecidas, o ensino torna-se, aos poucos, mais profi ssional, mas, na prática, ainda enfrenta resistência dos veteranos, dotados de um saber distinto, produzido praticamente. As novas formas de produzir segurança que vão se constituindo nas Guardas Municipais pedem novos treinamentos, novas especializações. Mesmo temas complexos como o emprego de armas de fogo, demanda uma reestruturação do

31 Esse tipo de controle, que leva ao quase não uso do armamento disponível, tem sido utilizado em municípios de São Paulo, como nos foi apontado em Osasco pelo secretário Benedito Mariano.32 Recentemente o governo estendeu – pelo decreto 5871/2006 – o porte de arma dos guardas para além de seu município. Isso demonstra bem como é difícil pensar no uso de armas só nas situações de risco mais visível.33 É o caso dos primeiros cursos da Guarda Municipal do Rio de Janeiro.

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treinamento, capacitando os guardas para usá-las. A melhoria material das Guardas vai tornando o treinamento mais confortável, melhor estruturado. Entrar na Guarda, em uma fase anterior, parecia um desafi o. Hoje, tornou-se mais simples e tem atraído pessoal cada vez mais qualifi cado.34

Os guardas, depois de formados, enfrentam condições de trabalho percebidas de forma diversa. Como já mencionamos, alguns se sentem vocacionados para o trabalho, e encontram gratifi cação na atividade. Outros buscam apenas um emprego, uma forma de sobrevivência. Mas para todos, as condições de emprego são um tema caro e importante. No caso da Guarda do Rio, a situação de contratados pela CLT é uma reclamação permanente. A queda dos padrões salariais também foi fortemente sentida. Tudo isso tem produzido um guarda sem expectativas de se sentir recompensado plenamente enquanto guarda, buscando alternativas fora da Guarda. Deve ser feito um estudo mais aprofundado sobre a rotatividade de pessoal das Guardas, mas as indicações de percepção são de que o problema é grave.

CONCLUSÃO: O FUTURO DAS GUARDAS

Não é possível, nesse momento, oferecer conclusões satisfatórias. As Guardas Municipais encontram-se ainda em processo de formação, ao esmo tempo em que certas diretrizes já estão fortemente consolidadas. Se a imagem pública da Guarda ainda está em jogo, se suas funções ainda são imprecisas, podemos ao mesmo tempo afi rmar que um grupo expressivo de Guardas já se organiza em torno de uma proposta clara de ação, que encontra respaldo em setores do poder público tanto municipal como federal. São aqueles que pretendem fazer da Guarda uma polícia local, enfrentando criminosos e, para isso, necessariamente armados. Para muitos, isso pode parecer uma perspectiva pessimista de futuro. Mas reconhecer o fortalecimento de tendências é o caminho necessário para uma atuação que permita defi nir como o processo será conduzido, e que diretrizes conformarão o emprego das Guardas.

34 Mais uma vez, sente-se o impacto da crise econômica com ampliação do acesso ao ensino superior. Os candidatos à Guarda vão se tornando cada vez mais qualifi cados formalmente. As tensões geradas por essa competição já foram mencionadas anteriormente.

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175Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público |

POLÍGONO DA MACONHA: CONTEXTO SOCIOECONÔMICO, HOMICÍDIOS E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Adriano Oliveira*

Jorge ZaveruchaErnani Rodrigues

INTRODUÇÃO

O Polígono da Maconha, em Pernambuco, é composto, tradicionalmente, pelas cidades pernambucanas que formam as regiões do Sertão e do São Francisco1. No Sertão, destacam-se como áreas de intensa produção e tráfi co de maconha os municípios de Salgueiro, Mirandiba, Serra Talhada e Imbimirim. Na região do São Francisco, pontifi cam os municípios de Belém do São Francisco, Cabrobó, Carnaubeira da Penha, Floresta, Lagoa Grande, Orocó e Santa Maria da Boa Vista.

O município de Petrolina, localizado na região do São Francisco não é reconhecido como área de produção de maconha. Contudo, o tráfi co e o consumo em Petrolina são considerados intensos, tanto por conta de sua localização geográfi ca2 como por ser uma cidade mais desenvolvida economicamente em relação às outras que compõe o Polígono.3

Ressalte-se não haver consenso sobre a defi nição das cidades que fazem parte do Polígono da Maconha. Relatório, assinado pela Corregedora-Geral do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Maristela de Oliveira Simonin, e por Gustavo Augusto R. de Lima, presidente da Associação do Ministério Público de Pernambuco4, informa que o Polígono é formado pelos seguintes municípios: Floresta, Belém do São Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba e Carnaubeira da Penha.

Divergências geográfi cas à parte, este artigo tem três grandes objetivos: 1) contex-tualizar as condições socioeconômicas do Polígono; 2) analisar se estão presentes relações de causalidade entre tráfi co de drogas e o elevado número de homicídios em alguns municípios da região; 3) avaliar a efi ciência do Ministério Público no enfrentamento ao cultivo e tráfi co de maconha no Polígono.

Julgamos importante lançar luzes sobre o contexto socioeconômico em que ocorre a produção e o tráfi co de droga no Polígono da Maconha. Assim sendo, será possível ao leitor examinar minuciosamente as variáveis que proporcionam o cultivo e o tráfi co intenso de maconha.

1 Esta área é também reconhecida como Sertão do São Francisco. 2 O município de Petrolina está próximo dos estados da Bahia, do Piauí e do Ceará. Possui aeroporto com capacidade para operar aviões à jato tanto para transporte de passageiro como de carga. 3 Petrolina cultiva frutas tropicais de excelência. E é grande produtora de vinho. Que são exportados (inter)nacionalmente. 4 Relatório assinado em 24/04/1997.

* Os autores são membros do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas (NIC) da UFPE. Agradecemos a contribuição de Dalson Brito, Nara Pavão e Aécio Júnior.

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Em seguida, mostraremos o quantitativo de homicídios na região do Polígono da Maconha. Os dados sobre homicídios permitirão verifi car se esta área, comparada tanto à cidade do Recife como a outros municípios, tem, proporcionalmente, um maior número de assassinatos. Em caso positivo, testar-se-á a hipótese de que a produção e o tráfi co de drogas geram agudos confl itos de interesse. Resultando na presença de um grande número de homicídios no Polígono.

Finalmente, analisaremos a ação do Ministério Público de Pernambuco no enfren-tamento à produção e ao tráfi co de drogas em quatro municípios do Polígono da Maconha – Belém do São Francisco, Floresta, Santa Maria da Boa Vista, Salgueiro e Cabrobó. A análise em torno das ações do MPPE, possibilitará respostas para os seguintes questionamentos: 1) a produção e o tráfi co de drogas, nos municípios referidos, são realizados por grupos criminosos ou feito de modo solitário? 2) a ação tanto das Polícias como do MPPE concentram-se no combate ao trafi cante ou ao cultivador de maconha? 3) qual é a instituição policial que têm uma ação mais efi caz no combate a produção e ao tráfi co no Polígono?

CONTEXTO SOCIOECONÔMICO

Foram selecionados três indicadores com o objetivo de entender o contexto sócio-econômico dos municípios inseridos no Polígono da Maconha5. E de que modo este contexto infl ui no tráfi co de drogas. São eles:

1) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M);2) Renda per capita; 3) Índice Gini.

O IDH-M engloba as seguintes informações: Produto Interno Bruto (PIB), a lon-gevidade da população e seu nível educacional. Quando este índice está acima de 0,8 o município é considerado como de alto desenvolvimento humano. Quando o IDH-M está entre 0,5 e entre 0,8, as cidades inseridas neste intervalo são consideradas como de médio desenvolvimento humano. Verifi cando-se o gráfi co 1 constata-se que qualquer município integrante do Polígono da Maconha pode ser considerado de médio desenvolvimento humano. Deste modo, nenhum se enquadra na defi nição de baixo desenvolvimento humano6. Tal como é o IDH-M do Estado de Pernambuco. (Gráfi co 1, a seguir).

Portanto, pode-se afi rmar que municípios considerados de médio desenvolvimento humano são reconhecidos como produtores de maconha e, também, áreas de tráfi co. Assim sendo, mesmo que um município seja de baixo desenvolvimento econômico não, necessariamente, a produção e tráfi co de drogas devem fl orescer.

Por exemplo, a cidade de Manari, localizada no sertão pernambucano, possui o IDH-M mais baixo do Brasil (0,467). Mesmo assim, não existem indícios de que ocorram produção e tráfi co de maconha. Embora, Manari esteja próxima à cidade de Imbimirim – município reconhecido por possuir grupos organizados atuando no plantio e no tráfi co de maconha7.

5 Todos os dados correspondem ao ano de 2000. Foram coletados no Atlas Brasil e no IBGE.6 O IDH médio do Polígono da Maconha é de 0,654. Já o de Pernambuco é de 0,705. 7 O IDH de Ibimirim é de 0,566.

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Gráfi co 1IDH dos municípios e de Pernambuco

Outras variáveis, condicionais e causais devem ser levadas em consideração com o objetivo de explicar o porquê dos municípios com médio desenvolvimento humano serem reconhecidos como áreas de produção e tráfi co de maconha. A variável IDH, como se viu, é per se insufi ciente8.

Neste sentido, analisamos o segundo indicador/variável: renda per capita da população dos municípios do Polígono9. As cidades de Petrolina e Salgueiro apresentam as maiores rendas per capita (vide gráfi co 2). Estes dois municípios tiveram, também, os maiores índices de IDH da região.

Gráfi co 2Renda per capita versus IDH

8 O estado de Pernambuco tem o IDH de 0,705. Neste caso, ele é considerado um território de médio desenvolvimento humano. De 1991 para 2000, o IDH de Pernambuco avançou 13,71%. Educação (48,4%) e longevidade (34,4%) foram os fatores que mais contribuíram para este crescimento. A variável renda contribuiu com 17,2%. Inferências semelhantes são encontradas na evolução do IDH dos municípios do Polígono da Maconha. 9 Razão entre o somatório da renda per capita de todos os indivíduos e o número total desses indivíduos. A renda per capita de cada indivíduo é defi nida como a razão entre a soma da renda de todos os membros da família e o número de membros dessa família. Valores expressos em reais de1º de agosto de 2000.

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública178

Deseja-se verifi car se é possível justifi car a produção e o comércio de drogas pela baixa renda per capita presente nos municípios do Polígono. Dos 14 municípios pertencentes à esta região, 4 estão entre as 100 cidades que possuem a menor renda per capita do estado de Pernambuco. São eles: Carnaubeira da Penha, Ibimirim, Tacaratu e Mirandiba. Estes municípios ocupam respectivamente a 2ª, a 33ª, a 37ª e a 27ª posição no ranking das menores rendas per capita.

Por outro lado, as outras cidades do Polígono da Maconha – em sua maioria – estão inseridas no ranking das 100 maiores rendas per capita do estado de Pernambuco. Destaque para Petrolina, Salgueiro e Itacuruba. Estas ocupam as seguintes posições no ranking: 8ª, 18ª e 38ª, respectivamente. O município que mais se aproxima da escala das 100 menores rendas per capita é Orocó, ocupando a 68ª posição no ranking das menores rendas per capita.

Portanto, é possível afi rmar que o nível da renda per capita, assim como o IDH não explicam per se a produção e o comércio de drogas nos municípios que fazem parte do Polígono da Maconha.

Buscou-se um outro indicador/variável. O índice Gini mede o grau de concentração de renda em um determinado grupo. Seu valor varia de 0 (zero), quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula).

Gráfi co 3Índice Gini

A maioria dos municípios do Polígono possui o índice de Gini igual ou acima de 0,60. Orocó (0,59), Itacuruba (0,59), Petrolândia (0,58), Tacaratu (0,58) e Mirandiba (0,55) possuem o índice Gini abaixo 0,60. Neste sentido, não é possível justifi car a produção e o tráfi co de maconha por conta do grau de concentração de renda. Outros municípios, com elevado índice de concentração de renda, localizados em outras regiões do estadode Pernambuco, não são reconhecidos como produtores e áreas de intenso tráfi co.

Portanto, conclui-se que as variáveis socioeconômicas per se não ajudam a decifrar as causas que proporcionam a produção e o tráfi co de maconha no Polígono.

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179Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público |

Evidentemente, essas variáveis não podem ser desprezadas. Outras causas devem ser buscadas, como, por exemplo, a ausência do poder coercitivo estatal no Polígono.

TRÁFICO DE DROGAS E HOMICÍDIOS

O comércio de drogas requer, geralmente, domínio de territórios. A busca por este domínio bem como sua manutenção gera confl itos. Como é o caso do Rio de Janeiro. O mesmo pode ocorrer no Polígono da Maconha. Diante disto, aos índices de homicídios na região serão analisados.

Utilizou-se do estudo comparativo para avaliar os índices de homicídios no Polígono da Maconha. vis-a-vis os índices de Recife e Olinda. Estas cidades possuem as maiores taxas de homicídios do Brasil. Além disto, Recife e Olinda são aglomerados urbanos, com alta densidade populacional.

O gráfi co 4 mostra o quantitativo de homicídios ocorrido no ano 200210. Todas as cidades integrantes do Polígono estão presentes. Além dos municípios de Recife e Olinda. Estes municípios – proporcionalmente por 100.000 habitantes – aparecem com o maior número de homicídios. Destaque para o Recife com a maior proporção: 90,54. Carnaubeira da Penha e Salgueirosão as cidades que têm os menores índices: 29,30 e 22, 86, respectivamente.

Gráfi co 4

Taxa de homicídios por 100.000 habitantes – Ano 200211

10 Fonte: Datasus – http://www.datasus.gov.br/, IBGE e IPEA.11 Não existem informações quanto ao município de Itacuruba.

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública180

Por conta das diferenças presentes nos âmbitos populacional e urbano são compre-ensíveis os resultados revelados no gráfi co abaixo. Contudo, chamam-nos atenção os índices da cidade de Belém do São Francisco (107,03): são superiores aos de Recife.

Tentou-se exaurir a análise com o objetivo de encontrar alguma similaridade entre as taxas de homicídios do Polígono e das outras regiões. O gráfi co 4 comparam os municípios do Polígono com as quatro capitais brasileiras detentoras das maiores taxas de homicídios por 100.000 habitantes nos anos 2000 e 2002.

Gráfi co 5Análise comparativa dos índices de Homicídios (2000)

Gráfi co 6Análise comparativa dos índices de Homicídios (2002)

Os gráfi cos mostram que nos anos abordados, alguns municípios do Polígono da Maconha possuem índices de homicídios maiores do que determinadas capitais do Brasil. Em 2000, as cidades de Floresta (68,75) e Petrolina (65,43) tiveram taxas de homicídios maiores dos que as cidades de Porto Velho (60,96) e Rio de Janeiro (56,41). No ano de 2002, o município de Belém do São Francisco (107,03) aparece com taxa maior do que a cidade do Recife (90,54). Por sinal, neste ano, outra três cidades do Polígono (Petrolândia, Petrolina e Ibimirim) também suplantaram Vitória, Porto Velho, e Rio de Janeiro.

Os índices de homicídios nos municípios do Polígono variam de ano para ano de modo crescente e decrescente – ver gráfi co 7 abaixo. No ano de 1998, o município de Carnaubeira da Penha teve uma taxa de homicídios por 100.000 habitantes de 145,06. No ano de 1999, decresceu para 87,47. Em 2001, cresceu para 101,66.

A cidade de Floresta no ano de 1998 apresentou taxa de homicídios por 100.000 habitantes de 127,49. No ano seguinte, decresceu para 60,75. A cidade de Floresta, no período analisado (1998 a 2002), apresentou variações negativas. A única exceção

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1° Ranking 2° Ranking 3° Ranking 4° Ranking

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181Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público |

é o período de 1999 a 2000. Neste período, ocorre uma variação positiva de 37,41%. Em Belém do São Francisco, no período de 2001 a 2002, ocorre a mais alta variação positiva envolvendo todos os municípios do Polígono, 431,95%.

Os municípios Belém do São Francisco (24,58%), Ibimirim (88,98%), Petrolina (22,22%), Santa Maria da Boa Vista (31,06%), Petrolândia (91,17%) e Itacuruba (3,14%) apresentaram no período de 1998 a 2002 variação acumulada positiva. Destaque para a cidade de Petrolândia que apresentou a maior variação acumulada. Os outros municípios apresentaram variações negativas. Carnaubeira da Penha, apesar de no ano de 1998 ter apresentada a maior taxa de homicídios por 100.000 habitantes entre os municípios do Polígono no período analisado, obteve a mais alta variação acumulada negativa, ou seja, 79,8%.

É interessante observar com mais atenção as taxas de homicídios em alguns municípios do Polígono. Carnaubeira da Penha, em 1998, apresentou uma taxa de homicídios de 145,06. Nos anos seguintes, as taxas foram de: 18,17 (1999), 19,22 (2000), 38,76 (2001) e 29,30 (2002). Após o ano de 1998, não ocorreu uma grande incidência de homicídios quando comparado a 1998. Além disto, nos outros anos, nenhum índice chegou a se aproximar ao obtido no ano de 1998.

O município de Belém do São Francisco apresentou duas altas taxas de homicídios. Em 1998, com 85,91; e em 2002, com 107, 03. Nos anos de 1999, 2000 e 2001, os índices foram de 53,20, 34,64 e 20,12 respectivamente. Em Floresta no ano de 1998, o índice de homicídios foi de 127,49. Nos outros anos, as taxas foram de 50,03 (1999), 68,75 (2000), 51,66 (2001) e 43,17 (2002).

Nestes municípios não há um padrão de regularidade na prática de homicídios. Em determinado instante (To) há alta incidência de homicídios, e logo após, nos instantes (T1,....., Tn) ocorrem variações negativas. Seguido de variações positivas.O mais importante a constatar neste fenômeno é a presença, num determinado instante, de um alto índice de homicídios. Neste caso, verifi ca-se no gráfi co 7 a presença de picos de homicídios. Os picos mais visíveis são os de Carnaubeira da Penha, em 1998; e Belém do São Francisco, no ano de 2002.

Existe alguma causa ou conjunto de causas que possibilitam a presença de picos de homicídios em determinados instantes? Será testada a possibilidade deste pico ser explicado por causas temporais. Ou seja, fatores que atuaram ocasionalmente e, mesmo assim, contribuíram para elevação das taxas de homicídios.

Além dos picos de homicídios, chamam atenção no gráfi co 7 a seguir, os índices de homicídios do Recife e Rio de Janeiro quando comparados com alguns municípios do Polígono da Maconha. No ano de 1998, as cidades de Carnaubeira da Penha e Floresta tiveram taxas de homicídios por 100.000 habitantes maiores do que a capital de Pernambuco, o Recife. Em 2002, Belém do São Francisco apresentou, também, índices maiores do que o do Recife.

A cidade do Rio de Janeiro, área de intensos confl itos provocados por disputas por pontos de drogas, apresenta taxas de homicídios menores do que alguns municípios do Polígono. Desde 1998, Petrolina vem apresentando índices de homicídios maiores do que o Rio de Janeiro. Petrolândia apresenta estes resultados desde 1999. Em determinados anos, algumas cidades do Polígono tiveram níveis de homicídios mais altos do que o Rio de Janeiro em anos específi cos.

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Gráfi co 7Evolução dos homicídios (1998 a 2002)

Ao calcular-se a taxa média de homicídios dos 14 municípios do Polígono da Maconha, constatou-se que os seus índices são inferiores aos da capital pernambucana e fl uminense. Exceto para o ano de 1998 em relação ao Rio de Janeiro. Além disto, os municípios do Polígono apresentam considerável instabilidade em seus índices. Em determinado período ocorre aumento da taxa de homicídios, em outro uma redução. A única cidade que apresenta constância/regularidade em seus consideráveis índices no período analisado é Petrolina.

O gráfi co 8 revela que no ano de 1998, o Polígono da Maconha apresentou taxa de homicídio médio superior ao do Rio de Janeiro: 66,60 versus 62,64, respectivamente. Neste mesmo ano, os municípios de Carnaubeira da Penha (145,06) e Floresta (127,49) tiveram as suas maiores taxas de homicídios no período pesquisado – 1988 a 2002. Além disto, neste mesmo período, nenhum município do Polígono chegou a ter o índice de 145,06 referente à cidade de Carnaubeira da Penha. Friso, que entre 1998 a 2002, o Polígono da Maconha acumulou uma variação negativa de -21,5%.

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183Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público |

Gráfi co 8Média da taxa de homicídios (1998-2002)

Importante destacar é a proporção de homicídios como causa de mortalidade. Em 2002, Belém do São Francisco obteve o índice de 0,26 para o total de mortalidade acontecida. Neste ano, este município apresentou também o maior índice de homicídios por 100.000 habitantes – 107,03. Esta correlação entre estes índices também ocorre com os municípios de Carnaubeira da Penha e Floresta no ano de 1998.

O gráfi co 7 revela, que Lagoa Grande, tal como Petrolina, apresenta relativa estabilidade em relação à taxa de homicídios por 100.000 habitantes. Em Lagoa Grande, no ano de 2000, foi encontrada uma taxa de homicídios de 78,38. Os outros índices foram: 1998 (66,61); 1999 (59,89) ; 2001 (50,86); 2002 (44,87).

Observe-se que além de poucas variações nos dados, Lagoa Grande em nenhum momento apresentou taxa de homicídios superior a 80,00. Por outro lado, esse município, como mostra o gráfi co 9, possui uma alta de proporção de homicídio como causa de mortalidade.

Gráfi co 9Proporção de homicídios como causa de mortalidade

Será que Lagoa Grande, apesar de não possuir no período analisado picos de homicídio, possui uma maior proporção de homicídios como causa de mortalidade? Os municípios que possuem picos de homicídios apresentam uma taxa média de homicídios superior aos que não possuem estes picos? O gráfi co 10 responde a estas indagações.

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Gráfi co 10Proporção de homicídios versus 100.000 habitantes

Surpresas ocorrem ao analisar-se a média da taxa de homicídios e da proporção como causa de mortalidade. Municípios que possuem picos de homicídios, acima de 100,00 por 1000.000 habitantes, não estão entre os que possuem a maior média de ocorrência de homicídios entre 1998 a 2002. Do mesmo modo, ocorre com a proporção de homicídios como causa de mortalidade.

Petrolândia (68,63), Floresta (68,22), Petrolina (66,86) e Orocó (63,22) aparecem como os municípios que possuem a maior taxa média de homicídios no período analisado – 1988 a 2002. No que condiz a proporção média de homicídios como causa de mortalidade, as cidades de Lagoa Grande (0,25), Belém do São Francisco (0,17), Santa Maria da Boa Vista (0,17) e Carnaubeira da Penha são as que lideram o ranking – vide gráfi co 10.

Não existe coincidência entre as cidades com maior média de homicídios e as que têm maior proporção média de homicídios como causa de mortalidade. Este é um ponto importante. Os dados da proporção de homicídios como causa de mortalidade colocam o município de Lagoa Grande no topo. Como já foi dito, esta cidade possui regularidade em suas taxas de homicídios por 100.000 habitantes. Isto poderia explicar a alta proporção de homicídios. Contudo, Petrolina, também, apresenta essa mesma regularidade. Mas nem por isto, está entre as quatro cidades com a maior proporção média de homicídios. Portanto, municípios que possuem regularidade nos índices de homicídios, não apresentam, necessariamente, uma maior proporção de homicídios como causa de mortalidade.

Identifi car as causas que levam à prática dos homicídios é uma tarefa árdua e complexa. Por conta dos órgãos públicos, em geral, não possuírem dados. E quando os têm, difi cilmente os tornam públicos. Mesmo diante destas limitações, tentou-se especular sobres as causas dos homicídios no Polígono da Maconha. Bem como decifrar o motivo da alta proporção de homicídios como causa de mortalidade em Lagoa Grande.

No dia 18 de outubro de 2002, quatro homens armados com pistolas e espingardas calibre 12 promoveram uma chacina na fazenda Curral do Meio, localizada no município de Belém do São Francisco. Cinco irmãos foram torturados e executados diante da mãe, esposas e fi lhos. De acordo com a Polícia Federal, a chacina foi motivada por conta dos irmãos terem abrigado um fazendeiro conhecido como Antônio Bagaceira. Ele seria responsável pelo assassinato de outro fazendeiro: Zeílton Gomes Tavares12.

12 Fonte: http://jc.uol.com.br/jornal/2002/10/18/not_28193.php em 12/08/2005.

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Em números absolutos, foi no ano de 2002 que Belém de São Francisco conheceu o maior número de homicídios: 21. As vítimas da chacina ocorrida na fazenda Curral do Meio representam 23,8% do total de homicídios perpetrados em 2002. Este dado nos permite afi rmar que fatos pontuais, como chacinas, ocasionam aumento da taxa de homicídios na região do Polígono.

Há uma outra hipótese tanto para a presença de picos como para as altas taxas de homicídios: os confl itos entre famílias. Em Belém de São Francisco, as famílias Benvindo e Araquan sempre se digladiaram. O representante mais conhecido das duas famílias eram, respectivamente, Chico Benvido e Cleiton Araquan. Ambos foram mortos pelas Polícias13.

Relatório reservado da Polícia Federal, de janeiro de 2004, afi rma que as mortes de Cleiton Araquan e Chico Benvindo possibilitaram a redução dos índices de violência no Polígono da Maconha.

Segundo fontes policiais e do Ministério Público, os dois representantes das famílias utilizavam o tráfi co de drogas, os assaltos nas estradas e a bancos, para angariar recursos com o objetivo de sobreviver e de se armar. Neste sentido, atividades ilícitas fi nanciavam os confl itos familiares14.

De acordo com fontes da Polícia Civil de Belém de São Francisco, em 12 de outubro de 2002, três agricultores foram assinados com vários tiros de fuzil na ilha dos Brandões em Belém do São Francisco. Este assassinato foi cometido pelo grupo chefi ado por Cleiton Araquan. O motivo da chacina deveu-se, supostamente, ao fato de um dos agricultores, em depoimento à Polícia Civil, ter acusado o grupo de Araquan de assassinarem o seu fi lho.Neste mesmo depoimento, o referido agricultor denunciou um plantio de maconha dos Araquan que foi, posteriormente, erradicado pela Polícia15.

No ano de 2002, duas chacinas ocorreram. Totalizando oito mortos. Este número signifi ca que das 21 mortes ocorridas em Belém de São Francisco no ano de 2002, 38% foram provocados por chacinas. Ambas as matanças foram por motivo de vingança16.

Os confl itos de famílias não se restringem à Belém do São Francisco. Em Floresta, grupos familiares, especialmente os Ferraz e os Novaes, por várias vezes, radicalizaram seus confl itos, resultando em mortes. Segundo Gomes (1999), na cidade de Floresta, uma das principais ruas da cidade demarca a fronteira entre as famílias rivais. Segundo ao autor, em cidades onde existem tais tipos de confl itos é impossível ser neutro, é preciso tomar partido “de alguma das facções, ser protegido por esta, e fi car alerta às possíveis ações da outra” (1999:8).

Em outubro de 2002, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) promoveu a transferência de 82 chefes de família, ligados tanto aos Araquan como aos Torres17, para cidades do Piauí. O objetivo era amenizar o clima de tensão que estava

13 Em 04 de abril de 2003, após perseguição policial, Chico Benvindo foi morto pela Polícia Militar em Belém do São Francisco. Cleiton Araquan foi morto por policiais federais em um confronto ocorrido na cidade de Pilão Arcado, interior da Bahia, em 25 de setembro de 2003. 14 Em novembro de 2000, os Araquan e Benvindo fi rmaram um acordo de paz o qual foi intermediado pela Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. Em mais de 14 anos de confl itos, de acordo com um comerciante da cidade, mais de 100 pessoas foram mortas. Entrevista em 12/01/2003. 15 Entrevista em 12/01/2003. 16 Entrevista com policiais civis em 12/01/2003. 17 Torres é família tradicional na cidade de Mirandiba.

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instalado nas cidades de Mirandiba e Belém do São Francisco. Cada família, por conta do acordo, recebeu 40 hectares em terras produtivas18.

De acordo com uma delegada da Polícia Civil de Pernambuco19., a garantia da honra está na origem dos confl itos familiares. Motivos para os indivíduos clamarem pelo respeito a honra são os mais diversos, desde a uma relação amorosa mal sucedida, a qual pode estar resultar na perda da virgindade feminina, e logo após o abandono da mulher por parte do homem; como uma disputa política ou por terra. Para a policial, muitos indivíduos usam o tráfi co de drogas como fonte de renda e para o aumento do seu poder bélico. E melhor defender sua honra.

Constata-se que chacinas motivadas por questões pontuais são uma das causas possíveis para os consideráveis índices de criminalidade no Polígono da Maconha. A outra causa é o confl ito entre famílias. Mas, será que possíveis disputas provenientes do tráfi co de drogas podem ser consideradas como causas de homicídios?

Passou-se a analisar as denúncias do MPPE. Ressalve-se que considerável parcela de crimes de homicídios não são, corretamente, apurados pela Polícia Civil de Pernambuco. Em 2002, por exemplo, ocorreram 21 homicídios em Belém do São Francisco. Neste mesmo ano, o MPPE ofereceu 7 denúncias. Portanto, 14 (66,6%) homicídios não foram denunciados.

Entre 2000 a 2003, foram oferecidas 16 denúncias de homicídios em Belém do São Francisco. Deste total, apenas uma denúncia (6,3%) teve como causa de homicídio o tráfi co de drogas. Neste mesmo período, em Floresta, foram oferecidas 28 denúncias relacionadas a homicídios.

Em nenhuma destas houve ligação entre tráfi co de drogas e a consumação do homicídio.

Em Santa Maria da Boa Vista, nos anos de 2003 e 2004, houve 45 denúncias. Quatro delas (8,9%) tiveram como causa o tráfi co de drogas. Em Salgueiro, entre 1999 e 2003, uma única denúncia foi oferecida e a causa do homicídio estava relacionada ao tráfi co de drogas. Este resultado repetiu-se em Cabrobó, entre 2000 e 200320.

Diante dos dados obtidos, conclui-se que o tráfi co de drogas não é a causa principal dos homicídios no Polígono da Maconha.

Um delegado da Polícia Civil21, que atuou muito tempo nesta região, confi rma esta conclusão. Segundo ele, no Polígono da Maconha são incipientes e diminutos os confl itos ocasionados pelo tráfi co de drogas pois existe uma grande quantidade de terras. Conseqüentemente, confl itos não ocorrem com intensidade, pois os produtores de maconha possuem inúmeras áreas alternativas para o cultivo.

No caso específi co de Lagoa Grande, esta pode ser um ponto de desova de cadáveres. Vitimados em Petrolina ou em Santa Maria da Boa Vista, cidades próximas a Lagoa Grande, seriam levados para esta cidade com o objetivo de prejudicar as investigações da Polícia Civil. Por conta disto, o registro do homicídio fi ca circunscrito ao município onde o corpo da vítima foi encontrado. Esta é uma hipótese levantada pelo delegado. Isto, todavia, esclarece, de modo limitado, a alta proporção de homicídios como causa de mortalidade encontrada em Lagoa Grande22.

18 Fonte: http://jc.uol.com.br/jornal/2002/10/16/not_27943.php em 12/08/2005. 19 Entrevista em 25/09/2002. A policial não autorizou à sua identifi cação. 20 Esses foram os únicos dados obtidos junto aos órgãos estatais, mais especifi camente o MPPE. 21 Entrevista em 17/08/2005. Optamos por não identifi car o policial. 22 Idem.

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187Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público |

Uma outra hipótese levantada pelo mesmo delegado é a presença dos chamados crimes de proximidade ocorridos nas agrovilas, localizadas na redondeza de Lagoa Grande. Crimes de proximidade caracterizam-se pela vítima e o acusado se conhecerem e/ou estarem próximos. Este delegado ressalva que os crimes de proximidade ocasionados pelo alto consumo de álcool são peculiares a todos os municípios do Polígono da Maconha23.

Portanto, conclui-se que os homicídios no Polígono da Maconha ocorrem devido a múltiplos fatores: 1) por conta de confl itos familiares que redunda em chacinas; 2) alto consumo de álcool que acarretam crimes de proximidade, e 3) tráfi co de drogas. Portanto, são diminutos os homicídios associados ao tráfi co de drogas.

O MINISTÉRIO PÚBLICO E O TRÁFICO DE DROGAS

O Ministério Público (MP) é o titular da ação penal. Um acusado por crime só poderá ser julgado caso o MP denuncie. As denúncias crimes do MP são construídas com base no inquérito policial. Neste sentido, o MP possui posição estratégica no arcabouço institucional coercitivo brasileiro, pois sem a ação dele o julgamento de um crime por parte do Poder Judiciário não ocorre.

Três grandes questionamentos estão a merecer respostas: 1) O tráfi co de drogas no Polígono da Maconha é desenvolvido de modo solitário ou coletivo (grupos)? 2) Qual instituição policial detém mais trafi cante ou produtores no Polígono? 3) Ocorrem mais prisões de trafi cantes ou de produtores de maconha?

A atuação do MPPE foi analisada com base nas denúncias oferecidas em quatro cidades – Belém do São Francisco, Floresta, Salgueiro e Cabrobó. O ideal teria sido que todas as cidades inseridas no Polígono fossem objeto desse tipo de análise. Contudo, nem sempre as promotorias tinham as denúncias arquivadas! Uma outra difi culdade foi o deslocamento por todos os municípios do Polígono. Aconselhada pelos promotores e policiais, a equipe de pesquisa optou em não ir a todos os municípios do Polígono por conta de que são freqüentes os assaltos na região. Além disto, pelo tipo de trabalho a ser pesquisado, ameaças à integridade física poderiam ocorrer.

O período analisado foi de 2000 a 2004. Porém, nem todas as promotorias ofereceram as denúncias relativas ao período como um todo. Por conta disto, a análise foi desenvolvida, restritamente, por municípios. Não foi possível, deste modo, uma compreensão totalizante envolvendo todos os municípios.

Em Belém de São Francisco, entre 2000 a 2003, foram denunciadas 303 pessoas. Num total de 132 denúncias. Isto signifi ca que em cada denúncia mais de uma pessoa é denunciada. No período analisado existiram 79 denúncias (59,8%) por tráfi co; 16 (12,1%) por homicídios; 16 (12,1%) por tentativa de homicídio; 10 (7,57%) por plantação/cultivo de maconha; e 11 (8,3%) por outros crimes. A média de idade dos denunciados é de 36 anos.

Foram efetuadas pela Polícia Militar (PM) 87% das prisões, incluindo todos os crimes; 12,2% pela Polícia Federal (PF) e 0,8% por ações conjuntas das duas Polícias24. Estes dados revelam a inação da Polícia Civil.

23 Ibidem. 24 Os dados foram obtidos ao serem analisadas as denúncias do MPPE.

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Os dados referentes à Belém de São Francisco possibilitam as seguintes conclusões: 1) Lá tráfi co de drogas é realizado majoritariamente em grupo25. No caso do cultivo da maconha, há uma maior freqüência de ação solitária por parte dos cultivadores26; 2) a PM é a força policial que mais detém indivíduos27; 3) ocorrem mais prisões de trafi cantes do que produtores/cultivadores de maconha. Isto signifi ca que a Polícia concentra suas ações muito mais na comercialização/transporte de drogas em vez do cultivo da mesma.

No período de 2000 a 2003, em Floresta 139 pessoas cometeram crimes. No entanto,apenas 76 denúncias foram oferecidas pelo MP. Tais dados revelam a existência de mais de uma pessoa por denúncia. Das denúncias, 40,7% dizem respeito ao tráfi co de drogas; 36,8% a homicídios; 14,47 a tentativa de homicídio; 6,57 a plantação/cultivo de maconha; e 1,3% a outros. A média de idade dos denunciados é de 33 anos.

Petrolândia (68,63), Floresta (68,22), Petrolina (66,86) e Orocó (63,22) aparecem como os municípios que possuem as maiores taxas médias de homicídios entre 1998 a 2002. Neste sentido, os dados do MPPE corroboram com as taxas de homicídios apresentados, anteriormente, referentes a Floresta.

Em Floresta, 65% das prisões foram realizadas pela PM; 8% pela Polícia Federal; e 1% pela Polícia Civil. Este resultado mostra, mais uma vez, a ação inefi ciente desta instituição no Polígono.

O número máximo de pessoas denunciadas em uma mesma denúncia, na cidade de Floresta, foi de oito28. Esses dados evidenciam a presença de muitas denúncias envolvendo mais de uma pessoa, ou seja, indivíduos atuando em grupo. Os dados relativos à Floresta possibilitam conclusões similares às de Belém de São Francisco: 1) o tráfi co de drogas em Floresta é realizado, majoritariamente, de modo coletivo29. No caso do cultivo da maconha, ao contrário de Belém de S. Francisco, há uma maior freqüência de ação em grupo30; 2) a PM é a força policial que mais detém indivíduos; 3) ocorrem mais prisões de trafi cantes do que produtores/cultivadores de maconha. Isto pode ser devido a maior difi culdade em local em prender em fl agrante o plantador do pé de maconha. Ou falta de aparelhamento policial para fi scalizar o cultivo. Como a área é imensa é necessário o uso de helicóptero para sobrevoar a área. E este tipo de aeronave nem sempre está disponível para a polícia.

Em Santa Maria da Boa Vista, no período de 2003 a 2004, foram denunciadas 96 pessoas, de um total de 60 denúncias. Mais uma vez, constatou-se a presença de algumas denúncias com mais de um denunciado. A idade média dos denunciados é de 33 anos. Setenta e cinco por cento das denúncias têm como tipo de crime o

25 A média de pessoas denunciadas por tráfi co em cada peça denunciativa é de 2,20. Já ocorreu de 6 pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia. 26 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 1,20. Ao analisar as denúncias, constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é dois. 27 Deve ser levado em consideração o fato da PM efetuar o policiamento ostensivo além de possuir um maior efetivo região. Inclusive, com ações desenvolvidas por policiais deslocados do Recife para operações como Paz nas Estradas. 28 A média de denunciados é de 1,79; a mediana de um e o desvio padrão de 1,188. 29 A média de pessoas denunciadas por tráfi co em cada peça denunciativa é de 2,13. A mediana é de 2,00. Já ocorreu de 5 pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia. 30 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 2,20. A mediana é de 2,00. Ao analisar as denúncias, constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é quatro.

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homicídio; 11,6% tráfi co de drogas; 10% tentativa de homicídio; 1,66% plantação/cultivo de maconha. Ao contrário dos municípios analisados anteriormente, o crime que predomina nas denúncias é o homicídio. Convém relembra que Santa Maria da Boa Vista não apresenta picos de homicídios, e nem está inserida no ranking das cidades com maiores taxas de homicídios..

Note-se que 47% das prisões foram realizadas pela PM; 32% pela Polícia Civil; 16% pela Polícia Federal; e 5,2% em ação conjunta das Polícias. Neste caso, a Polícia Civil aparece em segundo lugar como instituição que mais efetuou prisões. Ao contrário dos outros municípios analisados.

Os dados revelam que em Santa Maria da Boa Vista existe uma menor incidência de grupos organizados atuando no tráfi co e no cultivo da maconha31. A Polícia Civil apresenta resultados signifi cantes na sua atuação coercitiva. O crime de homicídios é que tem uma maior quantidade na região

No período de 1999 a 2003, na cidade de Salgueiro, foram denunciadas 142 pessoas – em um total de 80 peças denunciativas. A média de idade dos acusados é de 37 anos e 87,5% das denúncias versam sobre tráfi co de drogas; 11,25 % sobe plantação/cultivo de maconha; e 1,25% sobre homicídios. Constata-se que as taxas deste tipo de crime estão entre as mais baixas dos municípios do Polígono (ver gráfi co 7). Portanto, deve existir relação entre diminutas denúncias sobre homicídios e a sua freqüência. Claro, a inefi cácia por parte da Polícia Civil na identifi cação dos atores criminais é um ponto a ser considerado.

Em Salgueiro, 49% das prisões foram realizadas pela PM; 36% pela PF32; 10% pela PC; e 3,9% em ação conjunta das Polícias. Informo que desde o ano 2000, foi instalada na cidade de Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Neste sentido, a instalação da delegacia poderá ter acarretado uma maior presença policial e conseqüentemente mais prisões, com regularidade, foram feitas. Novamente, a Polícia Civil aparece com uma atuação pífi a.

Em Salgueiro predomina a atuação de grupos organizados no tráfi co de drogas33 e no cultivo da maconha34. A PM, novamente, mostra-se mais presente na região.O tráfi co de drogas é a atividade criminal predominante.

Em Cabrobó, 111 pessoas foram denunciadas. Este quantitativo refere-se aos anos de 2000, 2002 e 200335. Nestes anos foram apresentadas 59 denúncias. Mais uma vez, houve a presença de mais de uma pessoa denunciada por denúncia. Das denúncias, 66,1% versam sobre o tráfi co de drogas; 28,8% referem-se à plantação/cultivo de maconha; 3,3% faz menção a outros crimes; e 1,7% tem como crime o homicídio.A média de idade dos acusados é de 34 anos.

A PM realizou 68% das prisões; 28% pela Polícia Federal e 3,5% em ação conjunta das Polícias. Com base nas denúncias analisadas, a presença da Polícia

31 O número máximo de pessoas denunciadas por tráfi co de drogas foi de 5. Este mesmo valor para as pessoas denunciadas por plantação/cultivo de maconha. 32 Em 2000, foi instalada em Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Isto levou a um aumento do número de prisões na região. Entrevista sigilosa com policiais federais em 12/01/2003.33 A média de pessoas denunciadas por denúncias é de 1,73. A mediana é 1. O máximo de pessoas encontradas numa mesma denúncia é de 6.34 Dois é a média de pessoas denunciadas por denúncias. A mediana também é este valor. O máximo de pessoas encontradas numa mesma denúncia é de 4.35 Não conseguimos dados para o ano de 2001.

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Civil é, praticamente, inexistente. Mais uma vez, o quadro repete-se em Cabrobó: 1) tanto no âmbito do tráfi co de drogas36 como no cultivo de maconha37, ações em grupo predominam; 2) a PM está mais presente na região; 3) e o tráfi co de drogas é a principal atividade criminal.

Partindo dos dados fornecidos pelo MPPE, o seguinte perfi l da criminalidade na região pode ser estabelecido: grupos de criminosos atuando no tráfi co de drogas e no cultivo da maconha; a Polícia Militar e a Polícia Federal são as polícias mais presentes; e o tráfi co de drogas é a atividade criminal com maior incidência na região.

CONCLUSÃO

A análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha, não detectou uma razão principal para o cultivo e tráfi co de drogas. Ou seja, nem o Índice de Desenvolvimento Humano, nem a renda per capita nem o grau de concentração de renda explicam, per se, os ilícitos cometidos nesta região. Outras cidades, com piores níveis de IDH, com menor renda per capita e maior concentração de renda não enveredaram para o tráfi co e consumo de drogas.

Dados do Ministério Público de Pernambuco mostraram que há, majoritariamente, grupos organizados plantando e comercializando maconha. Mesmo diante deste quadro de ilicitude, percebeu-se a inefi ciência e inefi cácia do aparelho coercitivo do Estado. O próprio Ministério Público apresenta sérias defi ciências na sua atuação. O Judiciário não disse a que veio. Até porque testemunhas de crimes, negam-se a prestar depoimento público com receio de perderem a vida.

A atuação da Polícia Civil na investigação de crimes ocorridos, é, praticamente, inexistente. A Polícia prende mais trafi cantes do que plantadores de maconha. Quando o lógico seria o inverso. Contudo, para uma área imensa de plantação é necessário helicóptero para visualizar, com mais rapidez, os pés de maconha. No entanto, as polícias estaduais não possuem este tipo de aeronave estacionada na região. Às vezes, a Polícia Federal desloca uma de suas aeronaves para fazer este serviço.

É razoável admitir que a ousadia dos bandidos cresce com o aumento da probabilidade de êxito do crime. Tanto é que a instalação de uma delegacia da Polícia Federal em Salgueiro, em 2000, trouxe efeitos benéfi cos no combate ao cultivo e tráfi co de drogas. Bem como inibiu os assaltos nas estradas que cortam o Polígono que já estiveram intransitáveis por conta do aumento da bandidagem.

Segundo fontes policiais, o tráfi co de drogas no Polígono abastece secundariamente os municípios da região. A maioria da produção é escoada para Regiões Metropolitanas do Nordeste. A localização geográfi ca do Polígono é estratégica nesta distribuição. Quando a droga chega nestas metrópoles é que se dá a disputa, geralmente bélica, por território. O objetivo é monopolizar a venda da droga para os cativos mercados consumidores.

No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir grande disponibilidade de terras para a produção. E o mercado local, como dito acima, é fonte secundária de renda para o atravessador da droga. Portanto, o grande número de

36 A média de indivíduos de pessoas denunciadas por denúncia é de 1,87. A mediana é 1. 37 Em média, são denunciadas por denúncia, 1,65 quando o crime é cultivo de maconha. A mediana é 2.

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homicídios existente na região, ao contrário do que diz o senso comum, não deve ser imputado ao cultivo e tráfi co de droga

Não se deve olvidar que o problema da droga não é apenas uma questão de polícia. Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfi co de droga resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região. Gerando, inclusive, impostos para as prefeituras locais.

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195(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública |

(IN)SEGURANÇA PROFISSIONAL E (IN)SEGURANÇA PÚBLICA

Maria Cecília de Souza Minayo1

Edinilsa Ramos de SouzaPatrícia Constantino

Simone Gonçalves de AssisRaquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira

INTRODUÇÃO

Neste trabalho apresentamos a síntese de um estudo comparativo entre a Polícia Civil e a Polícia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual e coletiva dos riscos profi ssionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no exercício da Segurança Pública. Ele é fruto de uma pesquisa empírica de cunho quantitativo e qualitativo realizada no ano de 2005 (Minayo et al, 2005), fi nanciada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública

Os principais objetivos da investigação foram (a) produzir informações estratégicas; (b) capazes de subsidiar ações dos profi ssionais, da Corporação e de seus gestores, (c) visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da segurança pública.

As informações aqui apresentadas fazem parte de um conjunto de resultados muito mais amplos e completos sobre: (1) organização funcional da Polícia Militar e da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde sua origem, suas transformações, sua inserção no cenário internacional e sua confi guração atual; (2) ampla descrição metodológica do trabalho, o que permite a sua replicação para qualquer um dos estados brasileiros; (3) perfi l sócio-demográfi co dos policiais; (4) suas condições de trabalho, de saúde e de qualidade vida e (5) conclusões ressaltando pontos estratégicos para a ação política e programática (Minayo et al, 2005).

O estudo de 2005 teve origem em indagações levantadas em pesquisa anterior (Minayo; Souza, 2003), por isso, constituiu uma continuidade de refl exão sobre condições de trabalho, saúde e vida das Corporações voltadas à Segurança Pública.

A hipótese que orientou a análise comparativa é de que encontraríamos uma situação mais exacerbada de riscos pessoais e coletivos no exercício profi ssional entre os policiais operacionais, sobretudo entre os Policiais Militares, tendo em vista a sua exposição ostensiva no processo de trabalho de segurança pública.

Os conceitos centrais do trabalho são risco, segurança, trabalho, saúde e qualidade de vida. Os dois primeiros dizem respeito à condição intrínseca à profi ssão de policial. A instituição policial se destaca na sociedade brasileira, pelo seu papel estabelecido no art. 144 do Capítulo III da Constituição Federal que trata da Segurança Pública. A polícia civil tem uma função judiciária (§ 4o. art.144) e à polícia militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (§ 5o, art.144), ambas

1 Agradecemos a colaboração do técnico de informática Marcelo Cunha Pereira, e o apoio administrativo de Marcelo da Silva Motta e de Jerônimo Rufi no dos Santos Junior.

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em nível estadual. Historicamente, as corporações policiais fazem parte do Estado Moderno que toma para si o monopólio da violência como referem Foucault (1989), Santos (1997), (Holloway, 1997), dentre outros. Podemos dizer que em todas as duas corporações subsiste um “mito de origem” comum que se caracteriza pela missão de preservação da ordem pública, como um dos pilares da defesa da sociedade.

Autores como Santos (1997), Bretas (1997) e Kahn (1997) analisam as similitudes dos vários tipos de polícia no mundo e especifi cam seu papel nos países periféricos. Mostram que nos últimos, os policiais tendem a exceder a seu poder, a agir com truculência, a privilegiar as classes dominantes, acrescentando, à sua missão constitucional, uma terceira dimensão de ordem axial e atitudinal que as tornam autoras de várias formas de violência ilegítima, sobretudo contra os pobres e o povo em geral. Lima & Lima em A História da Polícia do Rio de Janeiro (1942) e Thomas Holloway (1997) em Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, aprofundam o tipo de caracterização citada, analisando a conformação estrutural da Polícia no Estado.

Pretendemos mostrar que, a combinação de vários ingredientes das respectivas culturas corporativas com as especifi cidades da sociedade “pós-moderna”2, inclusive dentro de uma visão de “sociedade de risco” (Giddens, 2002) tornou a visão de segurança pessoal no mundo atual, muito mais problemática para todos, preferencialmente para os policiais. Resumimos a seguir, os conceitos referenciais deste estudo e a abordagem metodológica adotada.

(1) Trabalho, condições de trabalho e processo de trabalho – Trabalho é uma categoria estruturante, tanto das condições de saúde como das condições de existência e de risco. Refere-se à mediação da atividade humana na construção das tecnologias, da vida social e da identidade pessoal. Enquanto constrói e reconstrói o mundo, o ser humano constrói e reconstrói a si mesmo.

Condições de trabalho é um conceito que se refere, ao mesmo tempo, à situação que precede à atividade dos sujeitos e a limita e como uma resultante dos processos sobre os quais os trabalhadores interferem, em sua dinâmica de intersubjetivação. Os elementos que compõem esse último conceito, central para a análise referenciada no trabalho, são: (a) a atividade prescrita e adequada; (b) o objeto e a matéria sobre os quais o trabalhador opera; (c) os meios e os instrumentos que lhe servem de mediação; (d) as relações que ocorrem no coletivo de trabalhadores e com as hierarquias e (e) o mundo simbólico que aí é gerado, envolvendo as relações e a atividade técnica e se introduzindo na produção. (Brighton Labour Group, 1991; Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997; Minayo & Souza, 2003; Minayo & Lacaz, 2005).

Do ponto de vista dos riscos e da segurança, entendemos que, se processo de trabalho constitui um locus privilegiado da realização humana, ele também produz (em escala específi ca referida às condições em que é exercido) desgaste físico e mental.

(2) Condições de Saúde – O segundo macro-conceito estruturante do estudo é condições de saúde. No caso concreto, entende-se que existe estreita relação entre as atividades

2 Não entrarei aqui, no mérito da terminologia “pós-moderna” que aqui uso no sentido de mencionar as mudanças que vêem ocorrendo com as formas de violência social no mundo atual (Wieviorka, 1997; 2006).

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exercidas pelos policiais e o nível de bem estar e de problemas sanitários que apresentam no campo físico e mental. Na vinculação entre processo de trabalho e saúde, várias e imbricadas dimensões devem ser contempladas a partir de conceitos-mediadores (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Alguns dos mais importantes são: (a) aspectos sócio-históricos que se atualizam na cultura organizacional; exigências requeridas (requerimentos) pela natureza da atividade; (b) riscos presentes nas atividades em questão; (c) maior ou menor vulnerabilidade de determinados grupos que exercem tarefas específi cas; (d) penosidade do trabalho; (e) desgaste psicossocial; (e) perda de capacidade corporal e psíquica (Déjours; Abdoucheli, 1994).

(3) Risco e Percepção de Risco – Etimologicamente, a palavra risco deriva do vocábulo “riscare”, e tem seu sentido associado à idéia de ousar. Do ponto de vista sociológico, risco signifi ca uma opção e não um destino (Bernstein, 1997). No caso, as duas Corporações Policiais podem ser confi guradas como organizações em que o risco faz parte da escolha profi ssional e desempenha um papel inerente às condições de trabalho, ambientais e relacionais. Os profi ssionais que as compõem têm consciência disso. Seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam. Eles vivem o que Giddens (2002, p.37) denomina “risco de alta conseqüência”.

No campo da saúde o conceito de risco é central. A epidemiologia o defi ne como a probabilidade, frente a condições específi cas de uma pessoa sofrer agravos ou adquirir determinada enfermidade. Do ponto de vista dos Policiais Militares e Civis, seu “risco epidemiológico” se caracteriza principalmente nos confrontos armados, nos quais se expõem e podem perder a vida. A probabilidade que têm de sofrerem graves lesões, traumas e mortes encontra respaldo nas altas taxas de óbito por violência de que são vítimas, dentro e fora de seu ambiente de trabalho, taxas essas cerca de 10 vezes mais elevadas no Rio de Janeiro, do que as da população em geral, como mostram o estudo de Muniz e colaboradores (1998) e Minayo & Souza (2003; 2005).

O sentido de risco, adequado para descrever a situação intrínseca à profi ssão de policial, combina a visão epidemiológica e a visão sociológica e antropológica.A primeira lhe dá parâmetros quanto à magnitude dos perigos, os tempos e os locais de maior ocorrência das fatalidades. A segunda, responde pela capacidade e até pela escolha profi ssional do afrontamento e da ousadia.

Nesta pesquisa analisamos o risco real e a percepção de risco, ou seja, perguntamos como se confi gura este fenômeno, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo vivido no exercício da profi ssão, dentro e fora do ambiente de trabalho. A ampliação do foco para o âmbito exterior, no caso da noção de risco, se deve ao fato de que, por ser elemento intrínseco da profi ssão, tanto as situações envolvidas, como as representações que cria, impregnam, não apenas o ambiente de trabalho, mas a pessoa que assume a identidade e incorpora a instituição.

Por fi m, problematizamos o conceito de segurança em dois sentidos: pública e pessoal. Segurança Pública, segundo Silva (1998) constitui a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade dos cidadãos: é a essência da missão dos policiais e deriva do campo jurídico. Segurança pessoal deriva do mundo do trabalho e tem um sentido normativo e fi losófi co. No primeiro caso, representa a sistematização de normas destinadas a

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prevenir acidentes, quer eliminando condições inseguras do trabalho, quer prevenindo desastres ocupacionais. Cuidando da segurança pública, os policiais são, também, servidores públicos protegidos pela Constituição que lhes assegura o direito à integridade física e mental, no exercício do trabalho.

Do ponto de vista fi losófi co, o conceito de segurança se vincula às expectativas do cidadão moderno e faz um contraponto dialético com a noção de risco: evidencia o avanço da consciência de cidadania e de bem-estar atingido pela humanidade em seu estágio atual. Exigência cada vez maior de segurança pessoal traz também, simultaneamente, um sentimento também cada vez maior de insegurança.

MATERIAL E MÉTODO

Aplicamos a estratégia de triangulação de métodos (Minayo et al, 2005), lançando mão de técnicas quantitativas e qualitativas. Entendemos triangulação de métodos como a dinâmica de pesquisa que integra a análise da magnitude e do signifi cado dos fenômenos e processos e a inclusão da participação dos atores que vivenciam esses processos. Tendo em vista a natureza e a complexidade do objeto de investigação – as condições de vida, de trabalho e saúde de policiais civis do município do Rio de Janeiro – consideramos que esta seria a abordagem mais apropriada, uma vez que ela conjuga a utilização de recursos diferenciados de coleta de dados e os métodos conservam sua especifi cidade no diálogo inter ou transdisciplinar.

Abordagem Quantitativa

→ O plano de amostragemAdotamos uma amostra aleatória simples de conglomerados. Entendemos como

conglomerado a unidade física (uma delegacia, academia de polícia, batalhão etc), com o seu respectivo grupo de profi ssionais. Na amostra observaram-se diferenciações características do processo de trabalho das duas Corporações. Em ambas foram estudadas unidades administrativas e unidades operacionais (delegacias, batalhões).

As amostras foram calculadas a partir de listagens fornecidas pela Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar, contendo todas as unidades policiais da capital do estado e o efetivo de cada uma delas especifi cado segundo os cargos.

Um dos critérios para o sorteio das unidades foi a natureza do processo de trabalho. Assim, por exemplo, ao selecionar uma unidade operacional, incluíram-se os policiais que participaram da pesquisa. A seleção dessas pessoas teve como critério as diferenciações dos cargos: na Polícia Civil (delegado, inspetor, etc) e na Militar (ofi cial, sub-ofi cial, cabo e soldado).

Conforme mostra a tabela 1 na Polícia Civil foram selecionadas 38 unidades e 2.746 policiais, tendo sido pesquisadas 39 unidades e 1.458 policiais.

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Tabela 1Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Civil segundo amostra calculada,

contingente real e amostra pesquisada

Estratos das unidadesAmostra calculada Contingente real

nas unidades

Amostra pesquisada

Pessoas Unidades Pessoas Unidades

1–Administrativas 787 13 577 438 15(*)

2-Delegacias 811 22 732 533 21(*)

3-Técnicas(**) 1148 3 780 487 3Total 2.746 38 2.089 1.458 39

(*) Três Delegacias de Acervo Cartorário/DEACS foram analisadas como unidades administrativas devido a especifi cidade e semelhança de suas atividades. Desse modo, para efeito de análise, fi caram agrupadas 18 unidades administrativas, 3 técnicas e 18 operacionais.(**) Na análise atual foram excluídas todas as unidades técnicas.

Na tabela 2 encontra-se a amostra selecionada e pesquisada na Polícia Militar. Nela, sorteamos 15 unidades e 1.700 policiais, mas foram concretamente pesquisadas 18 unidades contemplando 1.120 policiais. Vale ressaltar que, devido ao grande número de questionários devolvidos em branco, três novas unidades tiveram de ser incorporadas à amostra e mesmo assim não conseguimos cobrir o número previsto de indivíduos.

Tabela 2Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Militar

segundo amostra calculada, contingente real e amostra pesquisada

EstratosPopulação Amostra calculada Amostra pesquisada

Unidades Pessoas Unidades Pessoas Unidades Pessoas

Administrativo

1- Ofi cial 15 870 2 70 2 552- Não ofi cial 15 1788 2 144 3 593- Sub-ofi cial 15 1617 4 130 4 73Operacional

4- Ofi cial32 598 3 48

4 235- Não ofi cial 32 10.743 3 867 10 6346- Sub-ofi cial 32 5.459 4 440 7 264Total 141 21.075 18 1.700 17(*) 1.108(**)

(*) O total de 17 unidades pesquisadas não se refere à soma dos itens da coluna porque em uma mesma unidade puderam ser pesquisados policiais de diferentes funções e estratos.(**) Foram pesquisados 1120 policiais, porém 12 não informaram o cargo.

Os motivos para divergências entre as amostras calculadas e as pesquisadas foram vários. Um deles é a própria natureza do trabalho e as constantes transferências dos policiais de uma unidade para outra. Desta forma, os dados sobre o contingente de pessoal, fornecidos pelos gestores das corporações continham muitas imprecisões quando comparados com os efetivos reais e por isso, não coincidiam com o existente nos locais de trabalho. Os horários de trabalho das equipes eram completamente diferentes de uma unidade para outra, difi cultando uma rotina de pesquisa. O fato dos policiais terem muitas atividades externas e imprevistas foi também fator relevante, difi cultando

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o acesso da equipe de pesquisa a esses profi ssionais. Houve também motivações de ordem subjetiva que tornaram difícil a coleta de dados. Por exemplo, houve policiais que decidiram não devolver o questionário ou devolvê-lo em branco. Acreditamos que também o estresse permanente no desempenho das atividades, sobretudo por parte dos “operacionais”, e a descrença em qualquer mudança institucional contribuíram para a não-adesão de muitos deles.

→ Elaboração e aplicação do questionárioAplicamos aos servidores da Polícia Militar um questionário adaptado que havia

sido pré-testado e usado na pesquisa com a Polícia Civil, contendo questões sobre: (1) características socioeconômicas; (2) qualidade de vida; (3) condições de trabalho e (4) condições de saúde. Inserimos uma pergunta aberta, para que o respondente pudesse se expressar sobre a pesquisa, sobre sua vida e sobre seu processo de trabalho. O instrumento também foi adequado à especifi cidade das duas polícias, sendo que seu formato foi submetido a técnicos e especialistas nos diversos temas tratados e a ofi ciais das duas corporações.

O questionário foi autopreenchido anonimamente. Sua aplicação se deu de diferentes formas. Na Polícia Civil ele foi entregue e recebido diretamente das mãos do policial, em um envelope lacrado. Já na Polícia Militar, a aplicação foi realizada em comum acordo com o Comandante de cada unidade. Em sua grande maioria ele era entregue ao comando da unidade para que chegasse às mãos dos policiais. Outra estratégia também utilizada foi a aplicação coletiva do questionário, pela equipe de pesquisa, aos policiais que se encontravam em determinada unidade naquele período. A primeira forma foi-nos indicada pelos comandantes das unidades e, concretamente, mostrou-se como a mais efi caz. Em alguns casos, tendo em vista o caráter hierárquico da Polícia Militar e tendo havido uma autorização ofi cial do Comandante Geral, publicada na ordem do dia da Corporação, os comandantes das unidades impuseram o preenchimento do questionário aos policiais. Se por um lado, essa foi uma fórmula que garantiu a adesão, por outro, ela pode ter prejudicado a veracidade das informações prestadas, o que não temos condições de avaliar.

Os questionários foram entregues dentro de envelopes lacrados, acompanhados do termo de consentimento livre e esclarecido, conforme prevê a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Em vários casos esses instrumentos nos foram devolvidos sem a assinatura do termo de consentimento. Foi-nos relatado por alguns policiais, que o não-assinar era um procedimento de precaução para não serem identifi cados por suas chefi as.

No questionário, incorporamos algumas escalas previamente estruturadas e validadas: Escala de Apoio Social e a SRQ20 (Self Report Questionnaire).

A Escala de Apoio Social desenvolvida por Sherbourne & Stewart apud Chor et al (2001) possui 19 itens relativos ao apoio social e 5 de rede social. Neste trabalho, apenas os itens referentes ao apoio social foram utilizados sendo analisados em cinco dimensões: emocional (apoio recebido através da confi ança, da disponibilidade em ouvir, compartilhamento de preocupações e medos e compreensão dos seus problemas por outrem); de informação (através do recebimento de sugestões, bons conselhos, informação e sugestões desejadas); material (possibilidade de receber ajuda se fi car de cama, para levar a pessoa ao médico, para preparar refeições e para ajudar nas

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tarefas diárias caso fi que doente); afetiva (demonstração de afeto e amor, capacidade de abraçar e de amar); e de interação positiva (diversão em conjunto com outros, capacidade de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de distrair a cabeça). Cinco escores são obtidos, um para cada dimensão.

As perguntas são introduzidas pela frase “se você precisar...” seguida pelo tipo de apoio. As opções de resposta são apresentadas da mesma forma para todos os itens: nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre. A validade de face e a de conteúdo dos itens foram consideradas adequadas pelos investigadores do Estudo do Pró-Saúde (Chor et al, 2001) e de Sherbourne & Stewart apud Chor et al (2001). Quanto à validade de construto, esses pesquisadores identifi caram alta correlação entre as dimensões de apoio social e outros conceitos que, teoricamente estão relacionados, como solidão (correlação negativa), dinâmica familiar, conjugal e saúde mental (correlação positiva). Os autores originais também observaram bons resultados em relação à consistência interna (alfa de Cronbach superior a 0,91) e à estabilidade das medidas após um ano (acima de 0,72), para as dimensões de apoio social. A média dos escores foi de 83,3 para a dimensão de interação social positiva/apoio afetivo; 78,6 para a dimensão emocional/informação e 80,8 para a dimensão apoio material. A média global foi de 80,8. O coefi ciente alpha de Cronbach foi igual ou maior do que 0,83 para todas as dimensões.

A avaliação da saúde mental dos policiais foi executada por meio da aplicação de uma escala chamada Self-Reported Questionnaire – SQR20 desenvolvida por Harding et al. (1980). A escala utilizada no trabalho possui 20 itens medindo sofrimento psíquico (distúrbios não psicóticos). São elas: sentir dor de cabeça freqüente; ter falta de apetite; dormir mal; assustar-se com facilidade; apresentar tremor na mão; estar nervoso, tenso ou agitado; apresentar má digestão; sentir difi culdade de pensar com clareza; sentir-se triste; chorar facilmente; ter difi culdade em realizar tarefas diárias com satisfação; sentir difi culdade em tomar decisões (indeciso); apresentar difi culdade no serviço; sentir-se incapaz de realizar algo útil; perder o interesse pelas coisas; sentir-se inútil; pensar em suicídio; sentir desconforto estomacal; mostrar cansaço constante; cansar-se com facilidade. O alpha de Cronbach encontrado no presente estudo é de 0,8346 confi rmando que os 20 itens indicam uma única característica.

Além das duas escalas citadas foram pesquisados indicadores de Qualidade de Vida (Minayo e Souza, 2003), subdividindo-se em objetivos e subjetivos. Os indicadores subjetivos corresponderam ao que o policial percebe, sente e valoriza em relação a vários aspectos de sua vida. Para este trabalho foi utilizado um sub-item dos indicadores subjetivos (o grau de satisfação composto por 16 variáveis sobre relacionamento e grau de satisfação existencial). As cinco opções de resposta variaram em três gradientes: satisfeito, nem satisfeito/nem insatisfeito e insatisfeito.

→ Trabalho de campo quantitativoInvestimos num árduo trabalho de exposição do sentido, dos objetivos e da

dinâmica do estudo para ambas as Corporações, buscando convencer a cada delegado e a cada comandante das unidades sorteadas sobre a importância do estudo para suas instituições e para os próprios policiais. Na Polícia Civil o trabalho de campo foi muito árduo, exigindo esforço elevado da equipe de pesquisa para conseguir a adesão dos gestores e dos policiais. Na Polícia Militar, talvez por causa de sua organização

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hierárquica, uma vez convencido o Comandante Geral, a adesão dos outros escalões foi mais facilitada. No entanto, mesmo nesse último caso, podemos falar de um trabalho difícil, com idas repetidas ao campo para realizar as mesmas tarefas, evidenciando uma cultura fechada e avessa ao olhar externo.

A cobertura de aplicação do questionário na Polícia Civil foi de cerca de 85% do pessoal, mas o retorno de devolução e o preenchimento atingiram apenas 50% a 60% dos entrevistados. Isso se deve ao fato de que muitos policiais tenham devolvido o questionário em branco e lacrado. Houve uma unidade em que a chefi a não aceitou participar da pesquisa.

Na Polícia Militar foram distribuídos 1.700 questionários, dos quais 199 (11,7%) foram devolvidos sem preenchimento e 381 (22,4%) não foram sequer devolvidos, correspondendo a uma taxa de não resposta da ordem de 34,1%. Uma unidade teve que ser substituída porque houve grande recusa dos policiais em participar. As novas unidades amostrais incluídas substituíram as recusas em algumas delas e supriram as lacunas nas demais.

Nas tabelas 3 e 4 encontram-se distribuídos, respectivamente, os números de policiais civis e militares que compõem a amostra, segundo os cargos.

→ Expansão da amostraExpandir as informações signifi ca utilizar procedimentos estatísticos que

permitem cobrir a totalidade da população da pesquisa, fazendo que dados obtidos a partir de um certo número de policiais passem a representar o coletivo deles no município do Rio de Janeiro e não apenas aqueles que responderam ao questionário (Carlini-Cotrim et al, 1993).

A partir das informações geradas no levantamento de campo, os pesos para cada indivíduo participante da pesquisa foram calculados segundo seu estrato de alocação. A variável peso foi criada no banco. E a partir do comando weight do pacote estatístico SPSS todas as estimativas foram calculadas e ponderadas por este fator de expansão.

Tabela 3Distribuição dos policiais civis que compõem a amostra, segundo os cargos

CARGOS POLICIAIS N %

1 – AUTORIDADES DE POLÍCIA 50 3,4

Delegado 50 3,4

2 – AGENTES DE POLÍCIA ESTADUAL DE APOIO TÉCNICO-CIENTÍFICO 378 26,1

Perito Legista 34 2,3Perito Criminal 84 5,8Perito Criminal Auxiliar 1 0,1Papiloscopista Policial 190 13,1Técnico Policial de Necropsia 32 2,2Auxiliar Policial de Necropsia 33 2,3Médico Policial 1 0,1Enfermeiro 1 0,1Auxiliar de enfermeiro policial 2 0,1

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3 – AGENTE DE POLÍCIA ESTADUAL DE INVESTIGAÇÃO E PREVENÇÃO 1.023 70,5

Inspetor de PolíciaDetetive inspetorDetetiveTécnico Policial de LaboratórioTécnico Policial de Telecomunicações

681134531124

46,99,2

36,60,80,3

Ofi cial de Cartório PolicialEscrivãoEscrevente

22273

149

15,35,0

10,3Investigador PolicialOperador Policial de TelecomunicaçõesMotorista PolicialFotógrafo PolicialCarcereiro Policial

12022551231

8,31,53,80,82,1

Total 1.451 100,0

Tabela 4Distribuição dos policiais militares que compõem a amostra, segundo os cargos

CARGOS POLICIAIS N %

Coronel 5 0,4Tenente-Coronel 9 0,8Major 19 1,7Capitão 13 1,2Primeiro-Tenente 11 1,0Segundo-Tenente 21 1,9Sub-Tenente 20 1,8Primeiro-Sargento 36 3,3Segundo-Sargento 161 14,5Terceiro-Sargento 120 10,8Cabo 180 16,3Soldado 513 46,3

Total 1108 100,0

As estimativas correspondentes ao universo de policiais militares foram realizadas de forma indireta, mediante o uso de fatores de expansão calculados como quocientes entre os universos, Nh, de unidades e os correspondentes tamanhos de amostra pesqui-sada, nh. (Cochran, 1965). Aqui h representa a unidade de polícia militar pesquisada.

Para os dados analisados, após expansão da amostra, obtivemos para a Polícia Civil um percentual de 4,8% de pessoas em cargos de Delegado; na Polícia Militar foram 25,8% pessoas em cargos de ofi ciais. O grupo administrativo constitui 24% e o operacional 76% dos pesquisados. Entre os civis esses percentuais foram de 42,9% e 57,1%, respectivamente.

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→ Processamento e análise dos dadosO processamento dos dados dos policiais civis foi feito no programa Epi-info versão

6.0 e o dos policiais militares, no programa EPIDATA versão 3.1. A fi m de minimizar os erros na fase de digitação e agilizar o processamento dos dados, foram cumpridas quatro etapas: codifi cação, digitação, correção e análise. Foi criado um programa para estabelecer os valores válidos para cada questão (máscara de entrada). Com esse programa, nenhum valor fora do previsto seria aceito no momento da digitação.

Na etapa seguinte estabelecemos regras para agilizar a digitação. Tal processo é conhecido como codifi cação. O detalhamento destas regras está contido num manual para o codifi cador, elaborado pela equipe de pesquisa. Esse estágio fez-se imprescindível, visto que evitou, além de erros de digitação, a perda de tempo provocada comumente por incompreensão das respostas.

No que diz respeito à crítica dos dados, fase em que objetivamos a eliminação dos possíveis erros capazes de provocar enganos de apresentação e análise dos resultados, optamos por dois processos distintos. O primeiro procedimento de crítica destinou-se a procurar erros de codifi cação ou digitação dos questionários. Nesta abordagem, optamos por realizar uma amostragem aleatória simples de 10% dos questionários. Neste procedimento, qualquer subconjunto de n (1 ≤ n ≤ N) (elementos diferentes de uma população de N) possui a mesma probabilidade de ser sorteado (SILVA, 1998). Para a Polícia Civil, 8,9% dos questionários apresentaram ao menos uma falha de digitação, mas apenas 0,93% das questões apresentaram erros. Esses resultados evidenciaram a boa qualidade do processo.

Da amostra dos policiais militares tivemos 25,7% de questionários apresentando ao menos uma falha de digitação. De todas as questões 9% tiveram erros. Em seguida, rastreamos incoerências, isto é, investigamos se havia problemas com respostas a determinadas questões que, teoricamente, deveriam se relacionar de maneira lógica. Constatamos que 375 (33,5%) questionários apresentaram alguma inconsistência, das quais 3,2% eram erros de digitação logo retifi cados e anuladas as questões incoerentes.

Na fase de análise, os bancos foram convertidos para o software SPSS versão 10.0, onde realizamos a descrição de freqüências simples e o cruzamento de variáveis. Todas as questões foram cruzadas segundo a variável Risco Sofrido. No texto, essas diferenças apenas são mencionadas quando estatisticamente signifi cativas (p<0,05). Para verifi carmos diferenças estatisticamente signifi cativas foi utilizado o teste de Qui-quadrado de Pearson. De acordo com Siegel (1956), o teste Qui-quadrado é usado para avaliar associação entre variáveis em tabelas de contingência, o teste permite também avaliar o grau e a signifi cância da associação encontrada.

Abordagem qualitativa

Construímos os dados qualitativos exercitando a triangulação (intrínseca), a partir de múltiplos informantes, observadores e técnicas de aproximação e compreensão da realidade. Elaboramos todos os instrumentos coletivamente e buscamos que fossem criticados por especialistas ad hoc nas áreas de saúde do trabalhador e de segurança pública.

Tomamos como ponto de partida para a elaboração dos roteiros, as discussões da equipe em torno da leitura de várias pesquisas sobre os indicadores de qualidade de

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vida, sobre o perfi l de saúde de distintas categorias profi ssionais e sobre a descrição das condições do trabalho policial. Realizamos alguns seminários internos voltados para a discussão dos marcos teóricos da investigação. E retomamos as entrevistas realizadas na fase exploratória do trabalho, com informantes-chave tanto da polícia civil como da militar, para examinar a adequação de nossos instrumentos à realidade da Polícia Civil.

Também pudemos nos benefi ciar dos debates realizados pela equipe sobre os resultados da pré-análise das respostas aferidas pelo instrumento quantitativo. Os resultados signifi cativos estatisticamente e a análise inicial das freqüências deram pistas para a abordagem de certas questões que deveriam ser aprofundadas nos grupos focais e nas entrevistas. Permitiram-nos também, perceber a necessidade de esclarecer determinados temas que queríamos investigar.

No exercício de triangulação metodológica com os pesquisadores da área quantitativa, pudemos defi nir algumas categorias para guiar a “conversa com fi nalidade” sobre cada um dos três grandes eixos do trabalho (qualidade de vida, condições de saúde e condições de trabalho). Dada a sinergia entre esses três componentes, muitas vezes uma questão acabava por complementar o enfoque dos dois outros campos. Assim, por exemplo, ao perguntarmos sobre o que afetaria a saúde do policial, as suas condições de trabalho acabariam, inevitavelmente, por surgir no relato.

Incluímos nos roteiros as seguintes temáticas: qualidade de vida nos âmbitos de trabalho, da família e da comunidade; condições de trabalho do setor; sugestões para melhoria dessas condições; riscos e estratégias para lidar com estes; relações de trabalho; reconhecimento do trabalho policial atribuído pela sociedade e pela própria instituição policial. A fi m de facilitar a análise comparada, o roteiro dos gestores teve a mesma base de conteúdo que o dos policiais.

Trabalhamos basicamente com três técnicas: grupo focal, entrevista individual e observações de campo.

Organizamos as entrevistas de forma semi-estruturadas, ou seja, pautamo-nos por um roteiro, tendo-o como guia, porém, levando em conta a interação entre entrevistado e pesquisador, permitindo assim o aprofundamento de assuntos e pontos de vista.

A observação de campo, no caso deste estudo, constituiu-se apenas em aporte complementar. Realizamos observações durante as diversas visitas para a aplicação dos questionários da amostra quantitativa. O período de aplicação dos questionários, levando em conta a apresentação dos instrumentos, distribuição, monitoramento e recolhimento dos mesmos, levava uma média de sete a doze dias. Assim, a equipe destinada a cobrir cada unidade fi cou responsável pela elaboração de um diário de campo. Seguindo um roteiro construído pelo grupo de pesquisa, buscamos mapear observações sobre as condições e relações de trabalho e as impressões e expectativas geradas pela pesquisa.

→ Pessoas e categorias envolvidas

Na Polícia Civil, as entrevistas envolveram macro-gestores e gestores dos três setores (operacional, técnico e administrativo). Assim, foram ouvidos responsáveis pela Chefi a de Gabinete, da Coordenadoria de Polícia Técnica e Científi ca, da Coordenadoria de Polícia Especializada, da Coordenadoria de Polícia da Área da

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Capital, da Superintendência Administrativa; delegados responsáveis por Delegacias Legais (2), Tradicionais (1), Especializadas (1) e diretores de cada uma das unidades da policia técnica (IML, ICCE e IFP). Pela natureza do trabalho e dos horários dos profi ssionais, no IML foram realizadas entrevistas em substituição à técnica de grupo focal. Foram entrevistados profi ssionais dos setores de toxicologia (1), patologia (1), clínica médica (1), necropsia (2). Na Polícia Militar foram feitas 8 entrevistas, sendo sete com gestores (dois de unidade operacional, dois de operacional especial, um de unidade administrativa e dois de unidade de saúde), uma com uma psicóloga de unidade operacional especial.

Os grupos focais realizados na Polícia Civil envolveram 51 profi ssionais (40 homens e 11 mulheres). Foram feitos, ao todo, sete encontros: três com membros de delegacias; dois com unidades ligadas ao trabalho administrativo e dois grupos com unidades técnica, envolvendo no Instituto Félix Pacheco, papiloscopistas de diversos setores e no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, peritos de diversos setores.

Na Polícia Militar foram entrevistados 92 policiais (84 homens e 8 mulheres) em 11 grupos focais constituídos da seguinte forma: três com graduados, três com sargentos e cinco com cabos e soldados, distribuídos de acordo com a natureza da unidade (operacional, operacional especial e administrativa).

Os critérios para a escolha da amostra qualitativa na Polícia Militar foram: incluir unidades da zona sul e da zona norte da cidade; de áreas pobres, de favela e de classe média; unidades com bom relacionamento com a comunidade e com difi culdades neste relacionamento

→ Processamento de dados e técnicas de análise

A pesquisa cumpriu as seguintes etapas:• Transcrição e digitação das gravações das entrevistas individuais e grupais.• Atribuição de códigos aos entrevistados e às pessoas por eles mencionadas,

para assegurar o sigilo das informações.• Leitura compreensiva dos textos transcritos, buscando identifi car

especifi cidades e uma visão global dos depoimentos.• Elaboração de estruturas de análise, agrupando trechos de depoimentos mais

ilustrativos em quatro eixos temáticos: Imagem/Reconhecimento do Policial; Processo de Trabalho, Risco; Saúde.

• Identifi cação das idéias centrais presentes em cada uma dos eixos.• Identifi cação dos sentidos atribuídos às idéias.• Elaboração de sínteses interpretativas de cada eixo temático.

→ Comparação

Durante todo o processo de preparação da pesquisa, de aplicação dos questionários e do trabalho de campo qualitativo houve intensa comunicação entre os pesquisadores. No momento da análise, essa relação se intensifi cou no momento de articular a comparação e a interpretação dos dados. Foi feita um exercício bastante complexo pois tivemos que comparar os vários estratos dentro de uma mesma Corporação e as duas Corporações entre si. Desse processo foram obtidas novas sínteses interpretativas em

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torno de cada eixo temático e apreendendo as especifi cidades e as intersecções entre as duas corporações policiais.

RISCO PERCEBIDO E RISCO VIVIDO NA (IN)SEGURANÇA PÚBLICA

“O nosso trabalho é o risco”(soldado operacional (PM-gf3.3)

Canção do BOPE

Lealdade, destemor, integridade serão os primeiros lemas,Desta equipe sempre pronta a combater toda a criminalidadeA qualquer hora a qualquer preçoIdealismo como marca de vitóriaCom extrema energia combatemos todos os nossos inimigosCriminosos declarados em igualdadederrotamos os omissos, Guerra sem tréguas!HERÓIS ANÔNIMOSOperações especiaisE o batalhão coeso e unidoNão recua ante a adversidadeCom ousadia enfrentamos a realidadeVitória sobre a morte é nossa glória prometidaE o batalhão coeso e unidoNão recua ante a adversidadeCom ousadia enfrentamos a realidadeVitória sobre a morte, a nossa glória prometida!

→ Contextualização

Por ser um grupo cuja missão precípua é o enfrentamento da criminalidade, o BOPE (Batalhão Operação Especiais) pode ser visto como o exemplo mais cabal da visão de riscos e dos riscos reais percebidos e vividos pelos policiais em atividades operacionais no Rio de Janeiro. Diz a letra de seu hino, “equipe pronta a combater a criminalidade a qualquer preço e a qualquer hora”; “vitória sobre a morte”; “heróis anônimos que enfrentam a realidade através da ousadia”. No entanto, essa ousadia que apela ao heroísmo tem seu contraponto nas fraquezas das subjetividades que se expressam nos problemas de saúde e ou nas cifras de morte que assustam a qualquer mortal e que contextualizamos a seguir.

Os dados de mortalidade e de morbidade aqui apresentados podem ser considerados inéditos na lista de temas tratados até então pelos pesquisadores de saúde do trabalhador. Em primeiro lugar porque, tradicionalmente, os estudos se referem a condições de saúde e trabalho dos operários industriais, o que tem a ver com uma tendência de toda a produção acadêmica do século 20, fortemente infl uenciada pelas

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análises marxistas do mundo social. Como evidencia a ampla revisão bibliográfi ca sobre os serviços no Brasil coordenada por Melo et al. (1998), aqui e internacionalmente, a literatura sobre esse setor é muito escassa: até hoje, os serviços continuam a ser a parte menos entendida da economia. Esse hiato conceitual, no entanto, destoa do que ocorre na realidade histórica: nas últimas décadas, os serviços têm representado quase dois terços do emprego urbano metropolitano no Brasil e responde por mais da metade do PIB, numa trajetória semelhante à dos países desenvolvidos (Melo et al., 1998).

No caso dos policiais, a falta de atenção específi ca a sua saúde enquanto trabalhador pode ser explicada, de um lado, pelo hiato do conhecimento do setor serviço em geral, como assinalamos acima, mas também tem raízes históricas mais profundas. Bretas (1997) observa, por exemplo, que o tema polícia tem sido sistematicamente inserido apenas como “apêndice da história das classes populares e do movimento operário, sobre o qual a polícia estendia sua implacável repressão” (1997, 32) como numa espécie de negação de positividade sociológica da categoria, lembrada na formalidade da aplicação da lei. No Brasil, além de outros motivos, a aversão ao tema remonta a um ranço de origem que opôs a população e intelectuais aos ofi ciais da segurança pública, o que se acirrou nos períodos de ditadura militar no Brasil. Desta forma, a consideração da segurança pública como assunto relevante para a construção da democracia e objeto da ciência social vem se consolidando apenas a partir dos anos 1990.

A urgência de tratar do tema do risco e da vitimização dos policiais também se tornou relevante por causa do aumento acelerado da criminalidade urbana, no país. Assim, lentamente vamos superando, de um lado, o vazio da ciência social em relação ao setor serviços e, de outro, os problemas ideológicos que excluíram da pauta dos temas sociológicos e de saúde pública, a cidadania dos agentes de segurança e suas condições de vida, saúde e trabalho. A literatura atual, portanto, já apresenta conhecimentos estratégicos, frutos de investigação, dentre os quais citamos os de Muniz & Soares (1998); Soares (1996; 2000); Santos (1997), Bretas (1997a; 1997b), Holloway (1997), Cerqueira (1994;1996), Donnici (1990), Adorno e Peralva (1997), Kahn (1997); Lima (1995); Amador (1999).

Do ponto de vista social, até hoje, o serviço de segurança pública no Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população em geral e por motivos diversos: os cidadãos das classes médias e abastadas reclamam da insegurança e da inefi ciência policial, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos pobres “criminógenos”, em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros periféricos sente-se discriminada e maltratada pelos agentes da lei; e os delinqüentes os tratam como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo controlá-los e confrontá-los, escudados exatamente na “má fama” que os acompanha.

A opinião pública negativa faz parte do ônus da atividade policial e, nossos estudos mostraram, acrescentando-se a outros como os de Amador (1999), um elevado grau de sofrimento no trabalho pela falta de reconhecimento social. O conceito negativo emitido sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e naturaliza a violência que os vitimiza, muito mais do que a qualquer outro trabalhador ou cidadão, durante a jornada de trabalho ou nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as ocorrências de lesões e traumas de que são vítimas.

Todos os policiais do Rio de Janeiro são aqui tratados como categorias que atuam sob elevado risco. O uso desse conceito corresponde ao que foi apresentado na introdução

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deste trabalho, dentro das abordagens epidemiológica e social. Ou seja, o conceito de risco diz respeito, ao mesmo tempo, à probabilidade das ocorrências de lesões, traumas e mortes e ao signifi cado da escolha profi ssional que traz, intrinsecamente, o gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção e não como destino (Berstein, 1997; Castiel, 1999; Giddens, 2002). Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam (Gomes et al, 2003). Eles vivem o que Giddens (2002, 42) denomina de “risco de alta conseqüência”. A vivência dos riscos pode ser constatada na taxas de mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora das corporações, taxas essas, muito mais elevadas que as da população em geral.

→ Percepção de Risco

Constatamos, tanto na Polícia Civil como na Polícia Militar que a freqüência do risco e a percepção de risco, apesar de estarem presentes em todos os setores, são muito mais elevadas nos que trabalhavam em atividades operacionais. No entanto, embora o sentimento de ousadia, de destemor, de extrema energia esteja mais aguçado nos operacionais e, sobretudo nos operacionais especiais, todos esses trabalhadores dizem que ser policial já é em si um risco. Neste sentido, poucas são as diferenças entre as duas policias (Civil e Militar), entre a natureza da unidade (operacional, operacional especial e administrativa) e entre os cargos (ofi cial, sargentos ou cabos e soldados). Todos se sentem igualmente em posição de alerta e de perigo.

A percepção de que o risco profi ssional abrange a todos e penetra todos os momentos e recônditos da vida, permite ao observador concluir que, apesar de hoje alguém estar exercendo atividade-meio, ou seja, administrativa, não lhe retira o sentimento de risco. Esse sentimento tem várias causas: primeiramente, dentro das Corporações, sua posição pode mudar; em segundo lugar, muitos policiais hoje lotados em unidades administrativas tanto na Polícia Civil como na Militar, dão suporte aos operacionais, o que, em algum sentido, aproxima suas experiências. Observamos também que os policiais se referem mais à atividade-fi m da Unidade que a seu lugar específi co no processo de trabalho, ensejando a compreensão do trabalhador coletivo como experiência. Por sua vez, nas relações com a população, a distinção entre policial operacional ou administrativo não é percebida, dando a todos a mesma visibilidade. Por isso, aos cidadãos, é o fato de ter um policial por perto que lhe dá segurança, os ameaça ou provoca neles reações violentas.

Quando consultados sobre o exercício de sua profi ssão, os policiais operacionais reportaram-se imediatamente a episódios de confronto e violência, sendo que, no caso da Polícia Militar, soldados e cabos se apresentam como o grupo que intensamente vivencia o risco cotidiano, justamente por estarem no front das operações. Como reforça a fala de um gestor operacional: “para o soldado o risco é a rotina” (gestor operacional). Esse sentimento identitário conformado pelo risco é estruturante. Recente pesquisa comparativa realizada por Constantino (2006) entre policiais civis da Capital e do interior do Rio de Janeiro mostrou que estes últimos se sentem menos policiais que os primeiros, exatamente porque seu trabalho nas delegacias de uma cidade do norte do Estado praticamente não os expõe a confrontos armados.

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No estudo quantitativo, levantamos algumas questões sobre percepção de risco dos policiais sobre si e sobre suas famílias. Estes dados são apresentados nas tabelas 5 e 6. Como pode ser visualizada nos dois quadros abaixo, a percepção de risco nos membros das duas Corporações é quase totalizante para ambas as categorias. No entanto, ela é absoluta para os policiais militares, onde nenhum respondeu estar isento de risco profi ssional.

Como seria de esperar, os policiais das duas Corporações percebem que a extensão do risco que vivenciam é menor para suas famílias que para eles próprios. No entanto, é forte o sentimento de que ao combaterem o crime e manterem a ordem pública, também seus entes queridos fi cam ameaçados por criminosos em elevadas proporções: 44,2% dos militares e 36,9% civis afi rmaram isso. Principalmente os policiais militares consideram que suas famílias estão em situação de insegurança.

Tabela 5Distribuição dos policiais civis e militares segundo

percepção de risco em sua atividade policial

RiscoPolícia Militar Polícia Civil

% %

Constante 81,1 69,2Eventual 18,9 26,0Não há risco - 4,8Total 100,0 100,0

(p < 0,000)

Tabela 6Distribuição dos policiais civis e militares segundo

percepção de risco para a família

RiscoPolícia Militar Polícia Civil

% %

Constante 44,2 36,9Eventual 50,5 54,5Não há risco 5,3 8,5Total 100,0 100,0

(p < 0,000)

Na instituição militar onde os riscos e a percepção de risco são mais elevados, os policiais graduados, mesmo os das unidades operacionais, exercem quase que exclusivamente atividades de gestão e de comando. Há uma diferença bastante nítida entre aqueles que planejam (ofi ciais) e aqueles que executam as operações (cabos e soldados, sargentos e sub-tenentes). Os dados de vitimização colocados abaixo confi rmam o quanto tal diferença atinge negativamente os que estão no ciclo das praças. No entanto, entre os gestores e ofi ciais, também há a percepção da existência do risco. Primeiramente porque, “ocasionalmente” e em momentos especiais são chamados

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para o “combate”. Em segundo lugar, ao tomarem decisões hierarquicamente e, por isso, serem obedecidos sem direito a questionamentos como determinam as normas disciplinares, suas ordens deverão ser cumpridas, muitas vezes pondo em risco seus subordinados e a população.

Um dos gestores entrevistados falou, emocionado, da quantidade de vidas que “ele já perdeu” em confronto. Encara essa situação como um fracasso e como perda enquanto autoridade pública. Mostrando um certo incômodo com a posição de ter sempre que decidir hierarquicamente, esse mesmo gestor comentou sobre a posição maniqueísta que ele e outros de sua mesma patente precisam assumir na execução de seu trabalho, sem titubeios: “é o bem (policial) contra o mal (bandidos)”. Segundo ele, é pela via dessa “ideologia” que o confronto é possível. Na sua ótica, o enfrentamento só se justifi ca por um ideal. Mas diz: “se você pensar bem, isso é um ato de loucura” (Gestor Operacional).

Se o risco na jornada de trabalho está mais presente no discurso dos policiais operacionais (mais ainda na Policia Militar do que na civil), o risco que correm no espaço externo é sentido e vivenciado por todos os policiais das duas categorias. Embora, também nesse caso, os policiais militares afi rmaram mais que os civis, viverem em perigo nos dias de folga e em outras atividades profi ssionais. O trajeto para casa, as folgas e o lazer são momentos “inseguros” na concepção de todos. Os civis consideram correr muito risco de vida nos transportes coletivos (tabela 7). Todas estas diferenças são estatisticamente signifi cativas.

Ao considerarmos a soma dos riscos percebidos, observamos que do total de policiais militares 94,1% se dizem em risco fora do trabalho, contra 86,3% dos civis, sendo essa diferença signifi cativa estatisticamente.

Tabela 7Distribuição dos policiais civis e militares segundo

percepção de risco fora das Corporações

RiscoPolícia Militar Polícia Civil

% %

No transporte coletivo (trajeto de ida e volta do trabalho)* 86,8 91,3Nas folgas* 53,6 44,6No exercício de outras atividades profi ssionais* 63,5 56,0

(*) Diferença estatisticamente signifi cativa – p < 0,000.

Como estratégia para lidar com o sentimento de insegurança, a condição policial acaba por exigir um estilo de vida diferenciado. O exercício da atividade profi ssional invade a vida social e pessoal desses trabalhadores. A simbiose da natureza do trabalho com o modo e o estilo a vida pode ser constatada no “slogan” de um dos batalhões da PM: “O espelho refl ete você e você refl ete o Batalhão da Polícia Militar”. É dessa forma que os servidores se sentem em todos os momentos de seu cotidiano, “vigiados, tanto no Batalhão quanto fora dele”. Por isso também pautam sua vida tendo como parâmetro, a condição policial.

A imersão total na identidade profi ssional é estimulada e vivida também pelos Policiais Civis. Os membros de ambas as categorias falam da permanente necessidade

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de se retirarem dela para respirar, para interagir com outros e para fugir aos riscos, sobretudo nos momentos de folga. Ocultá-la é uma medida de proteção principalmente porque, ao contrário da situação dos policiais em outras sociedades como nos Estados Unidos, no Canadá, na Inglaterra, por exemplo, no Brasil e especifi camente no Rio de Janeiro, não há o cultivo de uma imagem positiva desses servidores públicos, por razões sobejamente discutidas neste estudo. “A gente tenta como se isso fosse possível”, é o que comenta um dos policiais operacionais. Muitos mencionam que carregam em si a “marca da polícia”, “está no jeito”, “no olhar”, “todo mundo reconhece logo quem é policial”.

A imersão totalizante na identidade profi ssional contribui ainda mais para o sentimento de insegurança e a percepção de que estão constantemente em risco. Foi muito comentado nos grupos focais por membros das duas corporações, que as experiências de estresse intenso e de perigo propicia uma união das equipes no processo de trabalho: “um precisa proteger o outro”, “é o medo de morrer que aproxima” pois a situação de perigo nivela os cargos e a natureza das atividades, no sentimento de que “estão todos no mesmo barco”.

Os grupos focais permitiram que os policiais falassem de seus confl itos frente aos perigos cotidianamente enfrentados. Nas unidades operacionais da Polícia Militar, dos ofi ciais ao círculo das praças, todos revelaram o sentimento de medo. A experiência concreta de situações perigosas não permite a simples negação do enfrentamento da morte: “vemos colegas serem executados!”. Por viverem em situação-limite, os policiais operacionais de ambas as Corporações têm uma experiência muito particular da urgência da vida e da proximidade da morte, cuja perenidade se re-atualiza a cada dia. Os soldados e cabos da polícia militar chegam a apontar (de certa forma contradizendo os arroubos de heroísmo) que hoje a principal missão do policial é “manter-se vivo, é a lógica da auto-proteção”. Todos os policiais operacionais do Rio de Janeiro hoje se sentem “em guerra” e percebem que alguns postos de trabalho signifi cam sua “sentença de morte” antecipada.

Vale ressaltar que alguns batalhões em que os profi ssionais foram entrevistados por nós estão localizados em área de elevado acirramento de confl itos entre trafi cantes de drogas rivais que portam armas pesadas muito mais potentes do que as que os policiais possuem. Um desses batalhões, sozinho, atende a 94 favelas onde as chamadas “guerras do tráfi co” são cotidianas. Existe a circunstância agravante de que os grupos de trafi cantes são formados por jovens também ousados, aventureiros e prontos para o combate de vida ou morte. Ressaltando o sentimento de risco e as expressões de medo, os policiais ressaltam que a precariedade das viaturas, dos armamentos e das estratégias de ação faz aumentar os perigos que vivenciam nos confrontos diários com criminosos portando armamentos muito mais potentes, conhecendo em detalhes os locais de mira e esconderijos e chantageando moradores para lhes dar guarida e proteção.

→ O risco vivido no desempenho das atividades

O risco real é vivido pelos policiais civis e militares do Rio de Janeiro, através da vitimização por traumas, lesões ou mortes, provocados pelas situações de enfrentamento para prevenir crimes, atuar contra a criminalidade e manter a ordem. O objeto geral de sua atividade é o controle da violência social. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Senasp (Senasp, 2005) do Ministério da Justiça ajudam

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a estimar numericamente esse objeto de trabalho: para o ano de 2003 houve registro de 6.707.955 ocorrências criminais nos Estados e de 2.264.829 nas capitais do Brasil. No Estado do Rio de Janeiro foram registradas 433.988 ocorrências, sendo 228.243 delas na Capital.

A violência social é um fenômeno complexo e difícil de ser defi nido. Esse tipo de fenômeno discrepa entre a sua ocorrência real e as sensações que gera. No imaginário social, os sentimentos de medo e de insegurança levam a confundir crimes reais e percepções subjetivas sobre os riscos de ser vítima da criminalidade, em proporções inversas. Uma dessas discrepâncias diz respeito à crença de um permanente aumento da delinqüência, o que às vezes é real e outras, não. Outra idéia muito corrente é de que o Rio de Janeiro é local mais violento e de maior criminalidade do país. Estatísticas da Secretaria Nacional de Segurança Pública de 2002, por exemplo, evidenciam que isto não é verdade. Foi feita uma lista classifi catória dos 27 estados do país que se reproduz abaixo, em que o Rio de Janeiro se classifi ca nas unidades da federação de médio índice de criminalidade:

• Baixo índice: Ceará, Alagoas, Tocantins, Paraíba e Piauí.

• Médio índice: Maranhão, Minas Gerais, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Pará, Roraima, Paraná, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso, Goiás e Santa Catarina.

• Alto índice: Rondônia, São Paulo, Rio grande do Sul, Amapá e Distrito Federal.

Fonte: Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2002.

A sensação de insegurança crescente no Rio de Janeiro ocorre, certamente, por vários motivos. Primeiramente, está relacionada à própria dinâmica da criminalidade na capital, onde existe elevada concentração tanto da população do Estado (40,2%) como dos registros de delitos (52,6%), o que difere totalmente de outras capitais e do país. Por exemplo, em São Paulo, apenas 27,6% da população do Estado e 33% das ocorrências criminais se concentram na capital. No país como um todo esses valores se assemelham mais aos de São Paulo: 22,7% da população e 33,8% dos crimes se localizam nas capitais.

A concentração de população e de crimes no espaço da capital promove um sentimento geral de insegurança e impotência, mesmo quando se observam quedas no número de alguns delitos. Devemos ter em conta, também, que a sociedade do Rio de Janeiro é das mais politizadas do país e, do ponto de vista antropológico, os sentimentos de segurança e de insegurança se vinculam às expectativas individuais do cidadão moderno, fazendo contraponto com a noção de risco. Ela evidencia o avanço da consciência de cidadania e de bem-estar atingido pela humanidade em seu estágio atual. Ou seja, a exigência cada vez mais elevada de segurança pessoal traz, simultaneamente, sentimento de maior insegurança (Chesnais, 1981; Burke, 1995). Vários estudos feitos no Rio de Janeiro, entre eles os de Soares (1996), evidenciam que as classes abastadas que vivem e trabalham nos espaços onde os índices de criminalidade são relativamente baixos são as que mais se queixam de insegurança.

As informações aqui apresentadas vêm de duas fontes: dados primários da própria pesquisa; e dados secundários fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública

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(portanto das Corporações) e do SUS. As categorias usadas para classifi car os acidentes e violências são as constantes da Classifi cação Internacional de Doenças (CID) em sua 10ª revisão, neste documento sendo denominadas causas externas e incluindo todos os tipos de acidentes (trânsito e transporte, quedas, afogamentos, queimaduras etc) e as agressões (homicídio, suicídio, lesões e ferimentos gerados em confronto etc).

É importante frisar que, na organização de suas estatísticas, cada Corporação denomina os eventos violentos conforme sua conveniência e nem sempre os termos empregados para designá-las são os mesmos utilizados pelo setor saúde. A Polícia Militar os categoriza como ação violenta. A Polícia Militar usa o termo ferido para denominar os que sofrem lesões não letais, provocadas por acidentes e ações violentas.

No caso da pesquisa com dados primários, o período é 2005, correspondendo à realização da própria pesquisa. Para a análise de dados secundários, o período estudado foi diferente para cada uma das instituições, mas recobrindo uma série histórica de 1994 a 2004. Também nesse caso, analisamos as informações segundo variáveis básicas como a causa externa que provocou o óbito ou o ferimento e o fato de o agente estar em serviço ou em folga. Calculamos proporções e taxas de mortalidade e de morbidade segundo as variáveis estudadas. Os denominadores que usamos na construção das taxas relativas à Polícia Civil referem-se aos efetivos de policiais, respectivamente, informados por essa instituição. Já o denominador usado no cálculo das taxas dos policiais militares é o efetivo médio anual, calculado a partir do número informado para os meses de janeiro e de dezembro de cada ano. Alguns dados secundários foram assimilados da forma como haviam sido apresentados nos estudos originais. Outros foram recalculados e isto está indicado no texto, sempre que ocorreu.

Apresentamos a seguir uma tentativa de síntese dos fatores associados à vivencia de risco. Tentamos consolidar as inúmeras variáveis relacionadas ao perfi l dos profi ssionais, com as dimensões de lazer, saúde e trabalho, para ver quais teriam mais efeito sobre os riscos enfrentados pelos policiais. Como se pode verifi car na tabela 8, policiais civis e militares mostraram caracterização distinta.

Tomamos os seguintes itens que dizem respeito a agressões sofridas que afetaram a vida e a saúde dos policiais no último ano: ferimentos causados por projétil de arma de fogo e branca, agressão física, violência sexual, tentativas de suicídio e homicídios. Constatamos, em primeiro lugar, os elevados percentuais para ambas as categorias e, em segundo lugar, que os militares (27,3%) estão em desvantagem em relação aos civis (17,8%, p.000).

Na tabela 8, ordenada de forma decrescente segundo o perigo vivenciado, constatamos que em todos os tipos de risco investigados, os militares têm maiores proporções de vítimas, com exceção de “assédio ou agressão sexual”, relatado igualmente por pouco menos de 3% dos policiais das duas Corporações.

A agressão verbal é a principal queixa relatada pelo conjunto dos policiais, seguida pelas quedas que ocorrem em mais elevadas proporções com os militares. As tentativas de homicídio, as agressões físicas e as perfurações por arma de fogo são os riscos vivenciados com maior freqüência.

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Tabela 8Distribuição proporcional dos policiais civis e militaressegundo os riscos sofridos durante o trabalho policial

Riscos sofridos Civis Militares

Agressão verbal*** 30,0% 38,6%Queda*** 11,1% 24,6%Tentativa de homicídio*** 10,3% 18,8%Agressão física* 8,2% 10,3%Perfuração por arma de fogo** 4,2% 6,7%Lesões por atropelamento ou acidente com veículo motorizado*** 1,7% 6,6%Acidentes com animais usados no trabalho policial*** 0,5% 6,4%Explosão com lesões (combustíveis, bujão de gás, explosivos, fogos, bomba, granada, etc.)***

0,7% 5,3%

Contaminação por bactérias ou outros microorganismos*** 2,7% 5,1%Queimaduras por fogo ou químicas*** 0,3% 3,3%Perfuração por arma branca*** 1,2% 3,3%Tentativa de suicídio*** 0,3% 2,9%Assédio ou agressão sexual 2,8% 2,6%Envenenamento, intoxicação por gases ou fumaça*** 0,4% 1,9%Acidente por desmoronamento*** 0,3% 1,6%

*p<.05; **p<.005; ***p.000

Estão entre os riscos de menor incidência, queimaduras, envenenamentos e vitimização por desmoronamento. As tentativas de suicídio, perfurações por arma branca e assédio ou agressão sexual não são estatisticamente relevantes. No Rio de Janeiro, os confrontos dos policiais com os delinqüentes ocorrem em sua quase totalidade, com o uso de armas de fogo.

Policiais militares – No caso das pesquisas com dados secundários, as

informações sobre os policiais militares – resumidas a seguir, no quadro 1 – referem-se a Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) e Incapacidade Física Parcial (IFP), dos Policiais Militares que requereram afastamento das atividades. Correspondem a afastamentos temporários por agravos que os retiraram de ações operacionais ostensivas e os mantiveram em tarefas internas. Embora as duas categorias de afastamento se refi ram a todos os tipos de agravo e não só a acidentes e violências, o quadro tem o objetivo de mostrar como se distribuem tais ocorrências por hierarquia dos servidores.

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Quadro 1Distribuição das licenças para tratamento de saúde (LTS) e das incapacidades físicas

parciais (IFP) dos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, 2000 a 2004.

Afastamento temporário2000 2001 2002 2003 2004

LTS

Número médioOfi cial 22,3 27,9 30,3 41,1 43,6Praça 539,8 685,0 801,8 919,3 1124,2Proporção médiaOfi cial 4,0 3,9 3,6 4,3 3,7Praça 96,0 96,1 96,4 95,7 96,3Razão de número médio – Praça/Ofi cial 24.2 24.6 26.5 22.4 25.8

IFP

Número médioOfi cial 79,2 105,0 136,6 162,7 211,1Praça 1081,1 1307,0 1796,8 2123,2 3540,3Proporção médiaOfi cial 6,8 7,4 7,1 7,1 6,0Praça 93,2 92,6 92,9 92,9 94,0Razão de número médio – Praça/Ofi cial 13.6 12.4 13.2 13.0 16.8

Ressaltamos que o número médio de ofi ciais com LTS cresceu 95,5% no período, enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças, vítimas de agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de ofi ciais, representando cerca de 96% das LTS no período. São as praças, como já dissemos, que estão na linha de frente nos confrontos.

Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias no que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de ofi ciais com lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de ofi ciais, passando a ser 16.8 vezes em 2004. Os praças corresponderam a 93% dos incapacitados físicos retirados dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de 1997, 50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS e 16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em ambos os casos, ressaltamos a incidência dos riscos no estresse vivido no trabalho.

O gráfi co 1 apresenta as taxas de vitimização dos policiais militares, nelas incluídas mortes e casos de ferimentos por ação violenta em serviço, em folga e todos os dados em conjunto.

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217(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública |

Gráfi co 1

Dos 4.518 policiais mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1% foram vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação violenta representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em 2003 e 2004, respectivamente.

Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando mortos em serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os dados evidenciam um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em serviço por ação violenta, passando de 75% para 88%, o que merece atenção das autoridades governamentais. O número de policiais que perderam a vida em serviço foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.

Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais – de todas as três categorias – também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em 2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de 5.054 para 5.286. A ocorrência de assaltos a transeuntes se elevou em 24,4%; os assaltos a ônibus subiram 11,7%; e os latrocínios cresceram 3,4%. Em contraposição, diminuíram as seguintes ocorrências: assaltos a bancos, 33,9%; seqüestros, (33,3%); roubos de carga (21,8%); assaltos a estabelecimentos comerciais (18,4); assaltos a residências (6,7%); homicídios dolosos (2,8%); e roubos e furtos de veículos (2,6%) (Vasconcelos & Goulart, 2005). Coincidindo com a vitimização dos policiais, a maioria dos crimes notifi cados na cidade aconteceu na Zona Norte da cidade.

Os dados de óbitos por ação violenta indicam que morreram 2.8 vezes mais policiais militares em folga em 2004, do que os que se encontravam em serviço. No entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses últimos (ela representa 83,2% das causas de morte dos policiais que morreram em serviço, comparados aos 68,5% dos que morreram em folga).

Taxas(*) de vitimização de policiais militares do Estado do Rio de

Janeiro

Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para os anos de 1994 a 1997 e da Assessoria de Imprensa da

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para os demais anos

(*) Taxas por 1000 policiais

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1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

0,00

5,00

10,00

15,00

20,00

25,00

Serviço 7,20 7,90 9,50 7,30 5,40 5,90 5,10 5,50 6,90 8,10 7,30

Folga 8,30 6,90 10,50 8,30 6,40 6,00 7,70 6,60 6,30 8,90 8,80

Total 15,50 14,80 20,00 15,50 11,80 11,90 12,90 12,10 13,20 17,00 16,10

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública218

Dos 3.760 policiais militares feridos (em serviço e em folga) 48,1% (ou 1.809 policiais) estavam em serviço. Dos que se encontravam em serviço, 1.054 (58,3%) foram atingidos em ação violenta, o que representa uma proporção maior do que a de 50,5% de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto, a ação violenta tem crescido proporcionalmente, vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004 ela foi responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento desses profi ssionais. Em 2002, esse percentual era de cerca de 39%.

No período de 1994 a 1996 os soldados representaram 55,3% dos policiais militares vitimados no Rio de Janeiro: aos cabos corresponderam 31,1% do total; aos sargentos, 8%; e os ofi ciais, os 5,6% restantes. As circunstâncias da vitimização em serviço foram: dinâmica criminal (cerca de 54%); trânsito (em torno de 19%); e dinâmica confl ituosa (mais ou menos 21%).

Em folga, essas proporções foram de mais ou menos 35%, 29% e 17%, respectiva-mente. A arma de fogo foi o principal meio usado pelos agressores para matar policiais em serviço (média de 51%) e em folga (média 55%). Os acidentes de trânsito responderam por 20,4% das mortes em serviço e 28,1%, em folga. O local das ocorrências corresponde às vias públicas (72,7%); ao bairro (6,3%); à vizinhança (4,6%); à residência (3,5%); ao espaço das próprias instituições policiais e de segurança (2,8%); aos bares e similares (2,1%); e às instituições comerciais e fi nanceiras (3,3%).

Dos policiais militares que morreram em serviço no Rio de Janeiro, 55,3% estavam trabalhando em policiamento geral, dos quais 41,4% faziam patrulhamento motorizado e de rotina; 29,2% exerciam policiamento dirigido (13,1% faziam radiopatrulhamento e atendimento aos cidadãos e 12% cumpriam operações especiais); 2,9% efetuavam investigação e diligência; 12,7% atuavam em outros tipos de serviços; e 10,4% estavam de sentinela ou plantão. No período de 1994 a 1996 as maiores taxas de vitimização ocorreram entre policiais dos Batalhões servindo aos bairros de Olaria, Méier, Benfi ca, Rocha Miranda e Estácio. Todos são bairros contíguos (cerca de 78) situados na Zona Norte (Muniz & Soares, 1998).

Uma década depois dos estudos de Muniz & Soares (1998), os maiores índices de vitimização continuam ocorrendo com policiais dos mesmos Batalhões: 9º, de Rocha Miranda; 20º, de Mesquita; 22º, da Penha; 3º, do Méier e 16º, de Olaria. Neles ocorreram 436 confrontos (44,4% de todos os 983 acontecidos em 2004 na cidade). Nessas jurisdições houve 21 óbitos, quase metade dos 44 ocorridos por ação violenta em serviço em 2004. Os policiais são caçados, atacados e executados por criminosos (trafi cantes), em ações voltadas ao roubo de armas. Os próprios comandantes das corporações, respondendo à imprensa, admitem que em alguns casos há o envolvimento de policiais com o crime, mas afi rmam que, na maioria das vezes, eles são emboscados (Bottari, 2005a, 2005b). Além do risco intrínseco ao trabalho, outros motivos são evocados para a vitimização. Dentre eles, citam-se alguns conhecidos como o fato de os atuais coletes por eles usados não os protegerem contra tiros de fuzil. E também a obsolescência dos equipamentos ofensivos, diante das armas possantes e das táticas de ataque dos delinqüentes. Os analistas dessas questões consideram que, no Rio de Janeiro, o crescimento das mortes, tanto de policiais como de civis, coincide com o também crescente envolvimento de policiais com as redes de tráfi co de armas e drogas. Assim, parte das agressões seria causada por “acertos de conta” entre criminosos e policiais corruptos.

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Sobre o risco real que leva à vitimização, Lemgruber (2004) numa pesquisa realizada para a Ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro apresenta o seguinte quadro: no Município, a taxa de assassinatos por dez mil policiais militares vem apresentando fortes oscilações, percebendo-se uma tendência de queda entre 1995 e 2001. Já em São Paulo, com exceção do último ano da série, os índices aumentam nesse mesmo período, em função sobretudo, do aumento das mortes durante as folgas. A Polícia Militar do Rio Grande do Sul apresenta taxas consideravelmente menores que as do Rio e São Paulo, exibindo, ademais, uma tendência descendente nos últimos anos. Mas, sempre, nos dois primeiros estados, os períodos de folga apresentam maior risco do que o trabalho de policiamento. Esses dados sugerem que, muito provavelmente, maiores taxas de vitimização no tempo fora do trabalho ofi cial se devam a dois fatores: à prestação de serviços de segurança privada e ao fato de boa parte dos policiais serem emboscados nas suas áreas de residência onde haja confrontos violentos. Não podemos, em muitos casos, descartar a hipótese de vinganças e execuções associadas ao envolvimento de agentes da lei em redes e práticas criminosas.

Gráfi co 2Taxas de homicídio por 10 mil Policiais Militares nos Estados do

Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul – 1995/2001

Fonte: Lemgruber, J. 2005.

Policiais civis – As informações sobre a polícia civil também dizem respeito às mortes e aos eventos não fatais causados por todas as condições e agravos, incluindo-se as doenças, os acidentes e as violências, a partir dos dados fornecidos pela Corporação. Essas informações diferem das apresentadas sobre a Polícia Militar, porque houve difi culdades objetivas para obtermos dados desagregados sobre causas externas para esse grupo.

No período de 1994 a 2004 foram aposentados por laudo médico 594 policiais civis, envolvendo todas as causas geradoras de invalidez temporária e permanente, incluindo-se doenças e lesões provocadas por acidentes e violência. Ao longo desses anos, a maior taxa de aposentadorias com aval médico ocorreu em 2004 (8,9 por mil policiais civis), enquanto a menor das taxas ocorreu em 2001, correspondendo a 3,4/1.000.

43,0

34,0 35,1

27,3

5,6

9,6 8,211,5

16,8

23,1

15,6

3,4 2,4 1,6

41,7

31,0

25,5

7,4

0

10

20

30

40

50

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

RJ SP RS

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| Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública220

No gráfi co 3 apresentamos as taxas de mortalidade dos membros da Corporação Civil. Para os anos de 1994 e 1995 os dados abrangem os policiais mortos da cidade. No restante do período, eles se referem ao Estado. Pelos motivos aludidos, as informações aqui analisadas não permitem comparação entre as categorias. Morreram, por todas as causas, 147 policiais civis no período de 1998 a 2004, dos quais a grande maioria (120 policiais) se encontrava em folga.

O ponto mais relevante das informações trazidas por esse gráfi co é a elevação das taxas de morte de policiais nos dois últimos anos, principalmente quando em folga. Dados de Muniz & Soares (1998) para a cidade do Rio de Janeiro indicaram para os anos de 1994 e 1995 taxas de vitimização de 20,8 e 17,5 por mil policiais, respectivamente. Grande parte das informações estava classifi cada numa categoria denominada “ofensas”. Em 1994 a taxa total de vitimização (mortos+feridos) foi de 20,8 por mil policiais civis, enquanto apenas a de ofensas não letais foi de 16,6/1.000. Em 1995 o valor encontrado para a taxa total de vitimização foi de 17,5/1.000 e de 14/1.000 para as lesões não letais. Nesses mesmos anos, a maior parcela dos óbitos correspondeu à de policiais em folga.

Gráfi co 3

Dentre os policiais civis que morreram em conseqüência do desempenho de suas atividades, 53,1% eram detetives; 10,9% carcereiros; 18% não foram especifi cados quanto à função; 5% eram escrivães, 3,8% delegados e 8,4% exerciam outras funções. As circunstâncias da vitimização em serviço corresponderam à dinâmica criminal em 52% dos casos, sendo 13,3 por ação armada de suspeitos. Os acidentes de trânsito responderam por 22,7%, e a dinâmica confl ituosa, a 18,7% dos traumas e lesões. As circunstâncias da vitimização dos que estavam em folga foram: dinâmica criminal (33,3% dos casos, sendo 28,8% a assaltos); acidentes de trânsito (28,8%) e dinâmica confl ituosa (25,5%).

Arma de fogo foi o instrumento responsável por 48,8 dos casos de vitimização dos policiais civis, seguida por ocorrências envolvendo veículos (25%) e luta corporal (13,5%). A via pública constituiu o local de 63,2% das ocorrências. Contudo, parcela considerável de casos aconteceu em residências (6,8%), nas próprias instituições policiais (6,4%), no bairro (5,6%) e em bares e similares (5,3%).

Taxas(*) de mortalidade de policiais civis do Rio de Janeiro

Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para a cidade nos anos de 1994 e 1995 e dados da Polícia

Civil do Estado para os demais anos

(*) Taxas por 1000 policiais

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1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

0,00

1,00

2,00

3,00

4,00

5,00

Serviço 0,70 0,40 0,73 0,44 0,34 0,32 0,28 0,58 0,00

Folga 4,00 3,00 1,04 0,76 1,72 0,65 1,49 2,75 3,04

Total 4,70 3,40 1,78 1,20 2,07 0,97 1,77 3,34 3,04

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Comparação entre as duas corporações – Durante a série estudada houve crescimento da vitimização nas duas categorias estudadas, sobretudo considerando-se as lesões não fatais nos primeiros anos deste século, com relevância para 2003 e 2004. As principais causas de morte, lesões e traumas se devem a agressões e a acidentes de trânsito, o que coincide hoje com informações sobre a vitimização das populações trabalhadoras no Brasil na conjuntura atual (Minayo-Gomez, 2005). Porém, isso ocorre de forma muito mais insidiosa entre policiais civis e militares na situação do Rio de Janeiro.

Embora os servidores das duas corporações conformem uma categoria específi ca de trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes, existem diferenciações internas entre os dois grupos, o que corresponde, dentre outros motivos, ao processo de trabalho de cada um.

Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências podem ser ressaltadas. Uma delas se deve ao trabalho extra, também chamado “bico”. Elevado percentual de policiais (Minayo & Souza, 2003) tem um segundo emprego na área de segurança privada (de banco, patrimonial, de grupos, de pessoas), continuando assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado risco. Outro motivo se deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de confl itos em bairros, em bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam se envolvendo. Muitos, também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse último motivo leva a que seja comum o fato dos policiais esconderem seus distintivos e profi ssão, visando a diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve ser descartado também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses agentes desfrutem de maior proteção grupal e desenvolvam técnicas de cuidados muito mais estruturadas e precisas.

Fica patente que, comparativamente, a Polícia Militar é a que sofre mais agressões e morte, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas. Esse privilégio negativo pode ser constatado quando tomamos, por exemplo, dados para o ano de 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral foi de 26,7 por 100 mil habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na capital do Rio de Janeiro, as taxas são mais elevadas que a média do país tanto para a população geral (49,5/100.000) como para a população masculina (97,6/100.0000).

As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito para os agentes da segurança pública (das duas categorias) são ainda mais elevadas que as da população da cidade do Rio de Janeiro. Na Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por agressões chegou a 356,23/100.000! Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas as causas, no mesmo ano foi de 206,80/100.000. Portanto, comparativamente, a Polícia Militar apresenta uma mortalidade por violência 3.65 vezes maiores do que a da população masculina da cidade do Rio de Janeiro e 7.2 vezes a da população geral da cidade. Quando comparamos com o Brasil, as taxas são 7,17 vezes as da população masculina e 13.34 vezes as da população geral. O risco de morte entre Policiais Militares é também maior l.72 do que em relação à Polícia Civil.

Quando observamos as informações sobre internações hospitalares motivadas por agressão, em 2000 elas corresponderam à taxa de 0,10 por 1.000 habitantes na população geral e a 0,34 por mil 1.000 na população masculina do país. As taxas de

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lesões e traumas por agressões não-fatais foram de 9,29 para a Polícia Militar, nesse mesmo ano. Comparativamente, a taxa de morbidade hospitalar da Polícia Militar em 2000 foi 92,90 vezes maior que a da população geral da cidade do Rio de Janeiro e 27.32 vezes a da população masculina do Brasil.

Como já mencionamos, em paralelo ao crescimento da vitimização dos policiais, observamos também, a evolução das taxas de ocorrências criminais registradas no período de 2001 a 2003 no país e no Rio de Janeiro. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Senasp, no Brasil houve um crescimento de 30,7% nas taxas de ocorrência criminal, sendo de 4.952,1 em 2003. Na cidade do Rio de Janeiro o crescimento foi de 34,1%, correspondendo à 23ª taxa média do período (3.267,9). Em São Paulo o incremento foi de 20% e a taxa de 4.775,5, situando essa cidade na 20ª posição entre as capitais.

Dados da Senasp também evidenciaram leve redução de 4,3% nas taxas de homicídios dolosos entre os anos de 2001 e 2003, no país. Em São Paulo, a queda foi de 18,9% sendo a taxa de 40,0/100.000. No Rio de Janeiro, ao contrário, houve crescimento de 3,5%, embora a taxa para 2003 seja ainda um pouco menor que a de São Paulo (38,5/100 mil). No período, a taxa média do Brasil foi de 35,0/100.000, a de São Paulo foi de 44,3/100.000 (sexto colocado entre as capitais) e a do Rio de Janeiro foi de 38,8/100.000 (9ª maior taxa).

ALGUMAS CONCLUSÕES

Todas as informações quantitativas e qualitativas do estudo aqui apresentado evidenciam que os policiais militares e civis do Rio de Janeiro, além de viverem o risco com profi ssão são as maiores vítimas do desempenho de suas atividades. Policiais que sofreram elevado risco decorrente do trabalho são aqueles que mais vivenciaram violências do tipo: ferimento por projétil de arma de fogo ou por arma branca, agressão física, violência sexual, tentativa de suicídio e tentativa de homicídio.

Entre policiais civis constatamos que profi ssionais de nível médio enfrentaram duas vezes maior risco de violência que os que possuem nível superior. Os que optam por aproveitar o tempo de lazer fora de casa também vivenciam 2,2 mais risco de sofrer violência do que os que passam mais tempo em casa lendo, descansando ou dormindo. O que vem mostrar a urgência de se criarem meios de proteção dos policiais fora do tempo que passam na Corporação, como resume o quadro a seguir.

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Tabela 9Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais civis

Variáveis (N = 475)Perfi l

Razões Brutas

Intervalo de Confi ança

Razão Ajustada

Intervalo de Confi ança

ESCOLARIDADE Até 2°Grau Incompleto 1,75 (0,59 5,18) 2,80 (0,98 8,03)2°Grau Comp./ Sup. Incomp 2,62 (1,64 4,18) 2,04 (1,21 3,44)Sup. Comp./ Pós Graduação 1,00 - 1,000 -

Lazer/ Comunidade

LAZER DOMICILIAR Baixa 1,26 (0,47 3,33) 1,33 (0,45 3,91)Média 2,30 (1,41 3,75) 2,23 (1,31 3,80)Alta 1,00 - 1,000 -

Condições de Trabalho

EXERCE O TRABALHO PARAO QUAL FOI TREINADO

Não 2,65 (1,59 4,40) 2,29 (1,29 4,04)Sim 1,00 - 1,000 -

EXERCE OUTRA ATIVIDADE SEM DESCANSO

Sempre/muitas vezes 6,19 (2,98 12,9) 4,96 (2,24 11,0)Ás vezes/poucas vezes 2,54 (1,14 5,66) 2,45 (1,05 5,73)Nunca 1,00 - 1,000

TRABALHO CAUSA ESTRESSE INTENSO

Freqüentemente 4,23 (2,16 8,28) 3,45 (1,60 7,43)As vezes 2,16 (1,09 4,29) 2,09 (0,96 4,53)Raramente/Nunca 1,00 - 1,000 -

Três variáveis referentes às condições de trabalho se mostraram importantes para o risco vivido pelos policiais civis: (a) treinamento insufi ciente: os que não exercem o trabalho para o qual foram treinados passaram 2,3 vezes mais por situações de violência que os pares exercendo ações para as quais estão habilitados; (b) dupla jornada: entre os que sempre ou muitas vezes exercem outras atividades fora da corporação sem descanso, o risco sofrido é cinco vezes maior do que os que não trabalham no “bico”; os que exercem atividades extras de vez em quando, o risco é 2,5 vezes maior; (c) estresse intenso: os que sentem estresse intenso no trabalho sofrem mais riscos que os que não se estressam. Esse risco é 3,4 vezes maior para os freqüentemente estressados.

Entre os policiais militares, ressaltamos os principais fatores de risco de sofrer violências: (a) tempo de serviço: policiais com menos tempo de serviço, (até 10) anos sofreram 2,4 mais riscos no trabalho policial do que os mais antigos; (b) defi ciências auditivas e nevralgias: policiais com defi ciências auditivas (3 vezes mais) e nevralgias (4,1 vezes mais) relataram ter vivenciado mais riscos que os que não apresentam estes problemas de saúde, indicando sofrimento físico associado a sofrimento mental, tendo como causa principal, a vivência de situações de violência. (c) condições de trabalho: exercer outra atividade laboral além do desempenho profi ssional na polícia militar sem intervalo de descanso também se mostrou associado a vivenciar mais riscos decorrentes do trabalho policial. Tanto os civis como os militares que têm outra atividade permanente, vivenciam 5 vezes mais riscos de sofrer violência; e para os que têm outra atividade esporadicamente esse risco é duas vezes maior do que para os eu apenas cumprem sua profi ssão como policial.

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Tabela 10Variáveis associadas ao Risco sofrido por policiais militares

Variáveis (N=853)Razõesbrutas

Intervalode

confi ança

Razõesajustadas

Intervalode

confi ança

PERFIL

Tempo de serviço Até 10 anos 2,22 1,17 4,25 2,44 1,18 5,01De 11 a 20 anos 1,54 0,72 3,31 1,73 0,78 3,8621 anos ou mais 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

SAÚDE

Defi ciência auditiva Sim 3,29 1,85 5,87 2,98 1,61 5,52Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Nevralgias/Neurites Sim 5,13 2,56 10,27 4,11 1,97 8,60Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

CONDIÇÕES DE TRABALHO

Exerce outra atividade sem descanso Sempre/muitas vezes 5,24 2,84 9,66 4,98 2,61 9,51Ás vezes/poucas vezes 2,51 1,34 4,71 2,30 1,20 4,42Nunca 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Como podemos constatar, diferentes variáveis se encontram associadas à vivência de risco nas duas corporações, destacando-se as condições de trabalho, em especial, o exercício de outras atividades sem descanso, indicando sua importância para se pensar em formas de atuar na prevenção aos riscos sofridos pelas corporações policiais do Rio de Janeiro.

Do ponto de vista do processo e da organização do trabalho observamos alguns fatores que predispõem à vitimização: a excessiva rotatividade dos policiais nos seus postos de ocupação difi culta o conhecimento dos problemas e a responsabilização pelos atos. A falta de instâncias coletivas de refl exão e avaliação do trabalho difi culta a superação das falhas e dos problemas que acabam sendo tratados apenas nos escalões hierárquicos superiores. O imediatismo, as condições materiais muito precárias de trabalho, as cargas horárias excessivas, o número insufi ciente de profi ssionais, os salários inadequados ao risco e à importância da missão, são elementos que contribuem para a baixa produtividade. O fato de que mais metade da corporação tenha dupla vinculação de ocupação constitui um sério problema para a saúde, para o desempenho profi ssional e para a produtividade das Corporações.

Do ponto de vista gerencial a pesquisa permite constatar que a falta de perspectiva global do processo de trabalho das duas Corporações conduz a uma atitude imediatista, reativa, e excessivamente focada nos aspectos operativos, provocando grande sofrimento mental aos policiais.

É pela via da capacitação e do treinamento (formação denominada pelos operacionais como “adestramento”), que os policiais se preparam para as missões arriscadas. Essa idéia é ressaltada no slogan escrito no site de uma das unidades: “ver os olhos do inimigo é importante, porém devemos estar preparados para fazê-los se fecharem”. Frases como esta são colocadas na preparação tática desses servidores, mas não recebem uma contrapartida de acompanhamento psicológico. Talvez por isso, tenha sido um dos pontos relevantes das falas dos policiais operacionais das

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duas Corporações o clamor por instâncias de apoio ao enfrentamento dos eventos traumáticos. Observamos a insistência dessa demanda, ainda que, no caso da polícia militar existam nos batalhões ofi ciais psicólogos. No entanto, seus serviços são muito pouco procurados, possivelmente porque os policiais enxerguem neles mais uma instância hierárquica do que um serviço de apoio. Isso se pode depreender dos depoimentos de alguns em que fi ca clara a discriminação negativa em relação aos colegas que procuram os psicólogos, como se eles estivessem baixando a guarda e admitindo que estariam fi cando loucos. Um dos gestores administrativos afi rma em sua entrevista, de forma crítica, que a formação voltada para valores humanos e que leve em conta questões emocionais dos policiais não é “prioridade da instituição”.

Os efeitos psicológicos reativos que resultam do temor do risco potencial e vivido são múltiplos: negação: “não podemos pensar que ele existe”; naturalização: “faz parte do nosso dia a dia”, “a gente se acostuma com essa realidade”; escárneo: “eles riem do risco, é como se fosse uma brincadeira, brincam com a realidade como se estivessem em uma fi cção” (gestor operacional) e enfrentamento: “é no próprio combate que a gente resolve o medo”. Um dos profi ssionais, nas discussões de um grupo focal para operacionais apontou ainda duas estratégias que utilizam para amenizar os efeitos do risco: “ou a cachaça ou a religião”. Em momento anterior já nos referimos às elevadas proporções de policiais militares e civis que fumam e bebem, certamente dentre outros motivos, por razões associadas ao estresse no trabalho. O apego à religião, como uma maneira de se sentirem mais protegidos, também foi mencionado por vários policiais de ambas as categorias.

Estudando trabalhadores em geral Dejours (1999) também encontrou, dentre as estratégias utilizadas pelos que exercem atividades de elevado risco, a negação do perigo, o escárnio do medo, a supervalorização da virilidade e o consumo de substâncias.

Em relação ao enfrentamento, Le Breton (1995) aponta a atitude “contrafóbica”, que leva o ser humano em situações de risco a encará-lo ao invés de fugir ou evitar. Desta maneira, o indivíduo luta contra a angústia, atirando-se em sua direção e colocando-se corpo a corpo com o desafi o. Uma vez enfrentado, o medo se dissipa e cria a sensação de domínio sobre ele.

É preciso ressaltar também que o risco vivenciado pelos policiais não tem apenas uma conotação negativa. Ao contrário, a escolha profi ssional que corresponde ao sentido relacionado à aventura e ousadia, como já discutido por vários autores (Spink, 2002; Le Breton,1991; Muniz,1999, dentre outros) surgiu no discurso dos profi ssionais da Polícia Civil e da Polícia Militar, na fala dos cabos e soldados, nas unidades operacionais e no grupo operacional especial. A adrenalina produzida pelo inusitado, segundo eles, “vicia” e os motiva para ação. Muniz (1999) em seu estudo “Ser Policial é, sobretudo, uma razão de ser”, já havia apontado para a exaltação da jovialidade na polícia e dos atributos típicos da juventude que escolhe essa profi ssão, dando vazão ao sentido de aventura dessa fase da vida: “o espírito aventureiro, o dinamismo, a canalização das energias pelas ações, o encantamento da superioridade e a disponibilidade para enfrentar os perigos e riscos”, fazem parte do “ethos” do trabalho operacional. Esses atributos são usados também na construção de estratégias para minimizar os perigos reais e próximos, no momento das operações.

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Bittner (2003) quando discute a virilidade e o potencial de aventura que o risco proporciona, conclui:

O que se requeria dos recrutas eram as virtudes másculas da honestidade, lealdade, agressividade, e a coragem visceral. Como compensação, os policiais recebiam a nobreza do serviço, a oportunidade de contribuir para o melhoramento da vida, e por fi m, mas não menos importante, a promessa de aventura (2003,16)

Por sua vez as Instituições Policiais buscam exaltar o heroísmo da missão. Os profi ssionais, por viverem e afrontarem o risco, vêem-se e são vistos pelas Corporações como pessoas que possuem “algo mais” do que seres comuns da sociedade: “Tem algo neles que os faz ir de encontro ao perigo” é a opinião de um gestor. “No fundo no fundo, a gente quer ir para a rua combater” diz um soldado que faz parte de um grupo operacional. “Enfrentar o risco é uma questão de instinto”, diz outro soldado, naturalizando seus atributos e acrescentando, estimulado pela energia que o grupo lhe transmite: “O comandante fala que nós, deste Batalhão, temos um “gen” a mais”,

Num estudo sobre a Polícia Militar de Porto Alegre, Amador (2002) também fala dos “superpoderes” que a instituição policial acaba incutindo em seus homens, criando assim uma espécie de estratégia defensiva. Essa autora utiliza, em contraposição, o termo “Ironia do Medo” para falar da exclusão do policial que, por ventura, manifeste temor do enfrentamento. Nesse caso, a vítima do medo precisa se calar para não contaminar todo o grupo, guardando para si o sofrimento psíquico que do silencio e do sentimento reprimido lhe advém: “a palavra e o sentimento são interditados” (Amador, 2002, 98).

A impossibilidade de expressão do medo no exercício do trabalho policial parece, por um lado, relacionar-se à prescrição para a coragem no âmbito da organização prescrita do trabalho policial. E, por outro lado, à possível existência de um código de regras, criado pelo grupo de trabalho, pressupondo o banimento do medo, código ao qual todos devem subordinar-se (Amador, 2002: 98)

No sentido tratado acima, poderíamos inferir que os policiais, sobretudo os operacionais civis e militares, vivenciam um confl ito entre o enfrentamento desejado pela instituição que ressalta os atributos e as marcas da masculinidade e os sentimentos de medo da morte, justifi cados pelas situações de risco reais e imaginárias a que estão submetidos.

Por fi m, é urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de morte dos policiais, ressaltando que não existe fatalidade nessa imensa perda de vidas que tanto afeta as famílias e a sociedade como um tudo. Sobre isso, primeiramente devemos sublinhar que há uma oscilação na série histórica de vitimização, indicando que determinados tipos de políticas e estratégicas são mais ou menos letais.

Em segundo lugar, temos exemplos de países em que a taxa de morte de policiais foi se reduzindo historicamente. Por exemplo, comparamos a situação brasileira com informações sobre a polícia americana, geralmente lembrada por sua truculência e arrojo. Dados dos Estados Unidos mostram que, de 1993 a 1995, apenas 4,9% dos policiais que sofreram acidentes ou traumas foram atingidos por arma de fogo. Na maioria dos casos de vitimização (81,5%), houve apenas confronto corporal. A taxa norte-americana de mortalidade de policiais em serviço passou de 4,70/10 mil para 2,9/10 mil, entre os anos de 1980 a 1994 (Muniz & Soares, 1998).

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Enfi m, um dos grandes desafi os do Brasil e do Rio de Janeiro em particular é criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã, o que certamente tem a ver com a questão social e com o processo de democratização e “cidadanização” da maioria dos brasileiros. Isso inclui também formas, instrumentos e tecnologias menos agressivos de controle da violência, da criminalidade e do clima de acirramento social. Desta maneira, o exercício da segurança pública se encontrará com os princípios da segurança humana. Deixará de transformar-se numa profecia de morte dos policiais, servidores que têm a obrigação constitucional de manter a ordem e coibir o crime e não o destino ou a fatalidade de viver e morrer vítimas da insegurança social.

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Página de Créditos

Este trabalho constitui parte de uma pesquisa maior denominada Estudo comparativo sobre riscos profi ssionais, segurança e saúde ocupacional dos policiais civis e militares do Estado do Rio de Janeiro, realizada pelo Claves/Fiocruz e fi nanciada pelo SENASP e concluída em dezembro de 2005, da qual participaram os seguintes coordenadores e pesquisadores:

CoordenaçãoMaria Cecília de Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza (coordenadoras)Patrícia Constantino (coordenadora do trabalho de campo)

Equipe de pesquisaSimone Gonçalves de Assis, Raimunda Matilde do Nascimento Mangas, Miriam Schenker, Maria de Lourdes Tavares Cavalcante, Francisco Adolpho da Cunha Barros, Flávio Augusto Pinto Correa, Júlio César Vasconcelos da Silva, Cleber Nascimento do Carmo, Thiago de Oliveira Pires, Bruna Soares Chaves, Vanessa dos Reis de Souza, Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira e Nilton C. dos Santos

Técnico de Informática:Marcelo da Cunha Pereira

Apoio Administrativo:Marcelo da Silva Motta e Jerônimo Rufi no dos Santos Junior

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231Mudanças em organizações – o caso do policiamento |

MUDANÇAS EM ORGANIZAÇÕES – O CASODO POLICIAMENTO

3Karina Rabelo L. Marinho1

4Almir de Oliveira Junior2

Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública/UFMG,

Resumo: O presente artigo trata das características especifi camente organizacionais, associadas a diferentes modelos de organizações policiais. Diz respeito, portanto, não apenas a estratégias de policiamento rotineiro, mas, sobretudo a arranjos organizacionais estruturais, onde as estratégias diversas se manifestam. Essas discussões procuram permitir o conhecimento das implicações do processo de mudança do modelo convencional, profi ssional-burocrático de policiamento, para o modelo de policiamento comunitário. Procuraremos mostrar como os principais elementos de mudança estão associados à distribuição do poder organizacional, bem como das defi nições de atividades e missões das organizações. Para tanto, faremos uso da pesquisa Estudo da Estratégia Organizacional de Policiamento Comunitário nas Cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória, do Concurso Nacional de Pesquisa Aplicada em Justiça Criminal e Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública, Ministério da Justiça. No modelo comunitário, o estreitamento da relação entre organização e ambiente externo pode gerar importantes alterações nos fatores determinantes de distribuição de poder, defi nição de missão e atividades. Entre eles, menciona-se o nível de limitação de tomada de decisão, o controle das fontes de incerteza – ambiente externo e distribuição de informações – além de alterações na natureza da tarefa desempenhada pelo ator organizacional.

Palavras Chave: Organizações, polícia, sociedades democráticas, tecnologia organizacional.

INTRODUÇÃO

No contexto atual das sociedades democráticas têm sido freqüentes as pressões sobre as organizações policiais para que alterem sua estrutura convencional, fortemente burocratizada. As razões para esse tipo de demanda costumam apoiar-se em uma dupla justifi cativa. Por um lado, na desconfi ança sobre sua efi cácia no combate à criminalidade; de acordo com esta crítica, as estratégias tradicionais de policiamento não têm sido capazes de alcançar a complexidade dos problemas diante dos quais se encontra. Ou seja, a descrença na efi cácia organizacional, no caso das instituições de polícia está associada principalmente à evolução dos números de ocorrências criminais, fenômeno amplamente divulgado pelos meios de comunicação e percebidos pelas populações brasileiras.

Outro motivador para alterações no arranjo organizacional da polícia está na crescente perda de legitimidade do formato autoritário destas organizações frente às demandas de expansão do sistema democrático representativo para todas as esferas institucionais, nas sociedades liberais contemporâneas. O que se exige na arena social é

1 Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública/UFMG2 Professor Adjunto da PUC/MG

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uma maior aproximação entre as instituições públicas de segurança – particularmente a polícia – e os mais diferentes estratos sociais, capazes de deliberar sobre seus próprios interesses. Esse tipo de demanda sobre as organizações policiais acaba por gerar descrenças quanto a sua capacidade de satisfazer expectativas sociais.

O nível de confi ança das populações nas organizações policiais costuma ser aferido, entre outros indicadores, a partir da proporção de delitos não reportados a estas organizações. Trata-se da chamada cifra negra, fenômeno amplamente conhecido por estudiosos das questões de segurança. O número de eventos violentos não denunciados é normalmente explicado pela inefi ciência da polícia em solucionar casos ou recuperar objetos, pela violência policial ou pela ocorrência de crimes sexuais ou violência doméstica. Explicações desta natureza baseiam-se na hipótese da relação custo-benefício, em que o valor da perda bem como a percepção de risco em se acionar a polícia aparecem como fatores determinantes. No entanto, sabe-se que a decisão de se acionar ou não a polícia é permeada por questões que podem dizer respeito a diferentes níveis de tomada de decisão. Aqui, o tipo de confi guração social, como maiores ou menores níveis de coesão, pode constituir importante fator explicativo. Assim, a decisão sobre o acionamento da polícia relaciona-se não apenas às relações custo-benefício, mas também aos atributos contextuais que fornecem determinada relação custo-benefício, bem como as normas sociais e os níveis de coesão social. Trata-se dos atributos sociais que afetam a tomada de decisão. Ainda assim, o signifi cativo número de eventos criminosos não reportados é tradicionalmente utilizado como argumento para perda de legitimidade das instituições policiais.

Diante desse panorama, o modelo de policiamento comunitário tem aparecido como aquele capaz de reverter o quadro de desprestígio social e político das organizações policiais. A publicisação desse modelo tem levado as autoridades policiais a tentarem de forma simplista e, muitas vezes, acrítica, a implementá-lo sem qualquer estratégia de mudança estrutural das velhas organizações policiais.

O presente artigo procura discutir as implicações, de natureza organizacional, do processo de mudança do modelo convencional, profi ssional-burocrático de policiamento, para o modelo, hoje tão difundido, de policiamento comunitário. Em outras palavras, trata-se de demonstrar que a transição de uma estratégia organizacional para outra implica mudanças signifi cativas na estrutura e caráter da organização, com altos custos para sua estabilidade. Para tanto, fará uso de estudos de caso realizados junto às organizações policiais militares de Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro. Seu objetivo é, portanto, criar condições para que sejam discutidas orientações para a implementação de tais mudanças no contexto policial, ao delinear, com o auxílio da teoria das organizações, quais as alterações relacionadas ao processo, do ponto de vista organizacional.

A POLÍCIA COMO ORGANIZAÇÃO

Em primeiro lugar, é indispensável defi nir a organização policial como um sistema formal e burocrático, sujeito à análise organizacional. Por organização entende-se “um instrumento técnico para a mobilização das energias humanas, visando uma fi nalidade já estabelecida.” (SELZNICK, 1972, P. 05)

Ou seja, trata-se de um instrumento racional para a execução de um serviço. Perrow (1976) entende organização de modo similar, introduzindo, ainda em

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233Mudanças em organizações – o caso do policiamento |

seu processo de defi nição, os elementos relativos à tarefa, ambiente, etc. Para ele “(...) as organizações são criadas para produzir alguma coisa (...) Neste processo, as organizações utilizam energia humana e não humana para transformar “matéria prima” em um produto desejável. (...) (PERROW, 1976, p. 74)

Segundo ele, uma organização formal implica também a especialização e a divisão do trabalho para a execução do produto, além de formas de resolução para a neutralização ou relação com o ambiente no qual se situa, já que “O ideal, do ponto de vista da produção efi ciente é que as organizações contem com um ambiente estável e que seu pessoal não seja infl uenciado por fatores alheios à organização.” (PERROW, 1976, p. 75)

Entretanto, como as infl uências ambientais não podem ser neutralizadas de maneira defi nitiva, as organizações desenvolvem normas e regulamentos que não se relacionam diretamente com o processo produtivo em si. Em suma, as organizações formais ou burocráticas implicam, em alguma medida, a especialização, controle das infl uências exercidas por um ambiente, nem sempre estável e previsível. A atuação policial é afetada por aspectos cognitivos e comportamentais que se desenvolvem devido às especifi cidades do ofício, relacionado a fortes pressões externas. Os policiais estão envolvidos com um trabalho em relação ao qual existem muitas expectativas e cobranças por parte da sociedade, ao mesmo tempo em que devem lidar com um processo de estigmatização que lhes é imposto por essa mesma sociedade. Por esse ponto de vista relacional, fi ca claro que ser policial não é uma experiência que possa deixar de marcar profundamente a história de vida de um indivíduo. Trata-se de um profi ssional que tem que se expor às mais diversas situações de confl ito. Seja com criminosos, ou mesmo com não-criminosos que, por exemplo, se sentem ofendidos em seus direitos por ocasião de uma “batida” ou “blitz” policial, entre outras situações.

A obra de Max Weber representa contribuição fundamental para a teoria das organizações, uma vez que trata a questão da burocracia como um problema tipicamente sociológico, possibilitando que as organizações sejam vistas como um fenômeno cuja natureza é eminentemente social. Para Weber, o desenvolvimento burocrático no contexto dos estados modernos deveu-se ao crescente processo de racionalização que aí se deu. Em outras palavras, a racionalidade da vida moderna acabou por engendrar um signifi cativo impulso em direção à burocratização nas mais diversas esferas da vida social. O desenvolvimento da burocracia, assim, apóia-se em sua superioridade técnica, maior capacidade de continuidade, unidade, redução de atrito e diminuição de custos, no contexto de uma estrutura especializada, profi ssional e, portanto, impessoal. Por isso identifi ca-se internamente nas organizações policiais uma hierarquia rígida, com ampla ritualização de comportamentos no nível das relações interpessoais entre seus agentes, além de um treinamento padronizado voltado para um grande número de regras formais, relacionadas de forma legal e doutrinária às suas atividades-fi m.

A busca de legitimação por parte da organização leva a ostentação de certas práticas rituais, não necessariamente ligadas a uma lógica instrumental, que reforçam mitos compartilhados por sua clientela, indivíduos ostentam performances que, do ponto de vista dos espectadores (superiores, colegas), dão supostamente a impressão de efi ciência profi ssional. Isso é diferente de afi rmar que a cultura organizacional5 seja

5 A dimensão da cultura refere-se aos valores, crenças e atitudes dentro do contexto ocupacional e organizacional de polícia. O conceito de cultura policial vem sendo citado constantemente na literatura

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totalmente manipulável. Ou seja, a cultura organizacional é fator estruturante da vida social dentro da organização, ao servir, por um lado, como artifício facilitador das ações dos atores, mas por outro também como fator limitador dessas mesmas ações.

Cabe também citar o modelo neo-weberiano (MARCH & OLSEN, 1989 e 1995, PERROW, 1979) para análise das organizações complexas. De acordo com esse modelo, os fenômenos micro-sociológicos que ocorrem dentro das organizações tornam-se objetos de interesse em si próprios. A própria cultura organizacional não é uma característica estrutural ou sistêmica que age sobre os indivíduos. Os mesmos acabam por reproduzi-la ou modifi cá-la em contextos que buscam a realização de seus interesses, reconhecimento, imagens de competência para manutenção de seus papéis formais, etc.

Segundo Prates, essa vertente neo-weberiana busca justamente certo resgate do sujeito dentro da organização:

“A ênfase recai sobre dimensões cognitivas dos atores e, conseqüentemente, nos cursos de ação desses atores. A estrutura organizacional é vista como um complexo de programas de ação relacionados que se realizam, indistintamente, no âmbito formal e informal da organização. Esta teoria destrói, portanto, a dicotomia, tão reverenciada na teoria sociológica convencional, da estrutura formal/informal no interior das organizações. A relação organização-ambiente é vista à luz do conceito de absorção de incertezas, de acordo com o qual, pessoas e organizações utilizam mapas cognitivos, apreendidos e elaborados, para interpretar o ambiente no qual atuam.” (PRATES, 2000 b: 134)

Ainda, as organizações se institucionalizam. Apesar de se constituírem a partir do modelo administrativo racional (com vistas à articulação de meios e fi ns da maneira mais econômica) têm, num segundo momento, suas normas, regras e sentimentos de solidariedade consolidados sob a forma de uma instituição social. Esses elementos informais passam a ter vida própria, o que consubstancia o processo de institucionalização (SELZNICK, 1972, PAIXÃO, 1997). Desse modo, os efeitos não racionais da ação social são incorporados à organização, o que sugere que a interação informal, no âmbito organizacional, possibilita o surgimento de focos próprios de identidade.

“O conceito de instituição sustentado por essa perspectiva teórica põe em evidência as realidades de natureza simbólica que legitimam e viabilizam os arranjos e regras de comportamento organizacional, que dão sentido de ordem às atividades cotidianas dos seus membros.” (PRATES, 2000 b: 139)

Portanto, a polícia pode ser compreendida como uma forma de ação coletiva organizada em torno da missão de produzir segurança por meio de uma dupla função: por um lado, a aplicação da lei, e por outro, a manutenção da ordem. Para a consecução de sua fi nalidade, ela apresenta determinada divisão de tarefas, estrutura hierárquica, caráter de profi ssionalização, estabelecimento de normas, enfi m, aspectos a partir dos quais se pode defi nir polícia como uma organização formal. Mas, ao mesmo tempo,

recente sobre organizações policiais, uma vez que a adoção do modelo de policiamento comunitário em várias partes do mundo tem levantado certa discussão sobre a “necessidade” de mudanças na cultura tradicional das polícias (BAYLEY & SKOLNICK, 2002, COSTA & MEDEIROS, 2003, GOLDSTEIN, 2000, MOORE, 2000, SAPORI & SOUZA, 2001).

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ela tem uma cultura organizacional, que afeta e dá sentido ao modo como a polícia pensa e trabalha, e uma identidade que a defi nem como instituição social. O presente artigo baseia sua interpretação na defi nição de polícia vista como organização formal e como instituição social, sujeita aos conceitos tipicamente organizacionais.

AS MUDANÇAS ORGANIZACIONAIS

De acordo com a teoria das organizações, mudanças organizacionais são advindas tanto de fatores internos à organização, quanto daqueles externos a ela. No que diz respeito aos fatores internos, o efeito estrutural da ação social pode produzir consequências não desejáveis pela organização (MERTON, 1965). Estes efeitos constituem, potencialmente, importante fonte de energia para a mudança organizacional, uma vez que, as organizações burocráticas, como mostrou Merton, tendem à priorização dos métodos de operação que geram previsibilidade e controle, em detrimento de suas fi nalidade. Esta transformação de meios em fi ns, denominada por Merton ritualismo, constitui fonte de demandas por mudanças.

Um estudo de Reiss enfatiza que no decorrer do século passado as organizações policiais foram pressionadas a se adaptarem às mudanças de tecnologia, às mudanças no crescimento e composição da população das cidades e na organização social e política de governos (REISS, 2003). Dessa forma, o patrulheiro foi substituído por policiais em unidades especializadas. Reformadores tentaram neutralizar o apadrinhamento político sobre a polícia e controlar a proteção policial aos criminosos e atividades criminosas organizadas, com isso tomou-se duas linhas principais: primeiro, transformou-se a burocracia quase militar das organizações policiais em uma burocracia legalista e tecnocrática, cujos membros estão comprometidos com uma comunidade profi ssional cujas formas de subordinação e trabalho os colocam à parte da comunidade que policiam. O segundo passo, resultante de intervenções tecnológicas, realizada algum tempo depois, foi centralizar territorialmente o policiamento. Como parte desse processo, o patrulhamento a pé foi substituído pelo motorizado.

Essas mudanças caracterizaram claramente um policiamento profi ssionalizado que contrasta com o policiamento exercido no início do século XX em bairros e comunidades locais das grandes cidades. Nesse modelo mais antigo de polícia, o ofi cial da ronda servia para prevenir ocorrências, buscar e dar respostas a crimes e disputas civis ocorridos em seu turno. O carro de patrulha, o telefone e o rádio para intercomunicação mudaram tudo isso, criando uma estratégia reativa de patrulhamento policial, do tipo “prestações de serviço”. Talvez o maior impacto da tecnologia tenha sido solidifi car a centralização burocrática do comando e do controle. A separação entre o trabalho dos policiais e as comunidades por eles policiadas foi completa em termos organizacionais. Segundo Bretas a polícia é um excelente exemplo de um órgão público moderno:

“As concepções de engenharia social, formuladas pelo pensamento científi co que dominou o séc. XIX, obtiveram pleno êxito ao dividir o estado em duas partes: uma, política, sujeita à controvérsia partidária, representando ‘o Estado’; e outra, administrativa, independente da política partidária, concebida tanto quanto possível como ‘natural’ – vale dizer, administrada da única maneira

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racional possível – e invisível. Daí emergiu a percepção de que as relações entre a polícia e o público eram, ou deveriam ser, um não-assunto, uma parte imutável do mecanismo racional da administração” (BRETAS, 1997: 10).

Porém, é muito importante destacar que os implementadores desse novo modelo de policiamento não calcularam que os custos poderiam vir a superar os ganhos oriundos das mudanças. Ficou claro que o volume dos chamados crescia mais do que os recursos dos departamentos para lidar com eles, especialmente em momentos de grande demanda. Uma das tentativas de solução do problema foi construir modelos de decisão, que estabeleciam prioridades de atendimento pelo tipo de chamada. Mas, já nos anos 90, o modelo mostrou claramente inadequado às demandas da sociedade civil (BEATO, 2001 e 2002).

Goldstein (1977) afi rma que o tipo de policiamento profi ssional-burocrático volta-se mais enfaticamente para procedimentos destinados a diminuir o tempo de respostas às chamadas – meios – do que para a detecção dos problemas com os quais a polícia se defronta – fi ns. Quanto às demandas exógenas, o modelo de policiamento comunitário pode ser visto como forma de adaptação da organização policial, no sentido de mantê-la compatível com o ambiente das sociedades liberal-democráticas contemporâneas.

No Brasil, a polícia responsável pelas atividades ostensivas é dotada de uma hierarquia verticalizada, centralizada, com forte coordenação das atividades individuais.No entanto, desde a constituição de 1988, que confere suporte jurídico para o envolvimento das comunidades na produção de segurança, ao estabelecer o princípio segundo o qual a segurança é responsabilidade de todos (artigo 144), iniciativas em torno da participação da sociedade no trabalho preventivo foram surgindo. Tais iniciativas, contudo, deram-se de modo incipiente, com pouca ênfase sobre a doutrina do policiamento comunitário e sem implicar alterações mais profundas, do ponto de vista organizacional, ou seja, tidas como uma abstração, sem a articulação de órgãos específi cos.

As difi culdades em torno da implementação dessa estratégia de policiamento partem tanto da estrutura da comunidade, quanto da própria organização policial. Trata-se da inexistência de indicadores de desempenho compatíveis com atividades proativas, da falta de cultura participativa nas comunidades e preventiva nas polícias, do desconhecimento acerca dos elementos dessa estratégia de policiamento, dependência do policiamento comunitário às associações de bairro, rodízio de policiais, entre outros aspectos. (SOUZA, 1999)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DO POLICIAMENTO TRADICIONAL

Do ponto de vista organizacional mais geral, o modelo tradicional de policiamento caracteriza-se por uma forte centralização burocrática, pelo estabelecimento de regras para a coordenação das ações dos membros organizacionais, pela aplicação de técnicas pré-estabelecidas de modo a obter a diminuição das incertezas no desenvolvimento das atividades cotidianas e por um circuito de informações hierárquico – vertical – e centralizado.

Segundo Perrow (1976), uma organização pode inicialmente ser entendida a partir de dois fatores específi cos: o grau de variabilidade da matéria a ser transformada ou o grau de variabilidade implicada em sua missão e o grau de incerteza em procedimentos

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que articulam causa e efeito no processo de trabalho. O conceito de tecnologia constitui, portanto, a articulação desses dois fatores em diferentes combinações.

O modelo burocrático, tal qual preconizado pelo tipo ideal de Weber, pode ser entendido como uma forma de conjugação de um baixo grau de variabilidade e de incerteza na medida em que, idealmente, procura estabelecer a rotina como base de sua consecução de tarefas. Em consonância com esse modelo, o policiamento profi ssional irá caracterizar-se pela exclusividade da operação em torno do cumprimento das leis penais, segundo procedimentos padronizados (CERQUEIRA, 1999).

A função policial, no contexto desse arranjo tecnológico, é fortemente limitada pela exclusividade sobre o controle da criminalidade e prisão de delinquentes e criminosos. A missão organizacional no contexto profi ssional de policiamento, assim, não é analiticamente problematizável, uma vez que fortemente vinculada a fatores estritamente relativos ao controle do crime. De acordo com este modelo de polícia:

Todas as atividades que eram solicitadas à polícia pela comunidade que não fossem restritas ao cumprimento das leis penais eram consideradas pelos policiais como trabalho de assistência social e inadequadas para a polícia. (CERQUEIRA, 1999, p. 06)

Isso não signifi ca afi rmar que as atividades desenvolvidas pela polícia, do ponto de vista empírico, restrinjam-se à execução da lei penal – law enforcement –, desprezando qualquer atividade relativa à manutenção da ordem – keeping the peace -6 Sabe-se que grande parte do trabalho policial é dedicado a atividades que não se relacionam diretamente com crimes, sobretudo crimes violentos. No entanto, do ponto de vista analítico, a ênfase formal desse modelo de policiamento mantém as conceitualizações acerca de sua missão organizacional sob as limitações implicadas na burocracia. Assim, a missão do modelo tradicional é preconizada a partir fundamentalmente da aplicação da lei. No contexto dessa missão policial, a efi cácia técnica adquire centralidade, daí sua exclusividade para a consecução da missão, devendo a comunidade, leiga, manter-se afastada dos assuntos relativos à polícia.

Deste modo, a missão da polícia, no contexto tradicional, é delineada de modo a diminuir a variabilidade da natureza da atividade policial: a organização diminui as incertezas com as quais se depara por meio da limitação conceitual de sua missão em torno da aplicação da lei. Se a aplicação da lei e o controle da criminalidade constituem o objeto central da missão da polícia tradicional, a padronização dos fatores relativos à atividade policial também adquire centralidade. Ora, o segundo elemento, de acordo com Perrow (1976), relativo à tecnologia de uma organização, refere-se ao grau de incerteza nos procedimentos que articulam causa e efeito. Nessa medida, o modelo tradicional de policiamento representa esforços relativos não apenas à missão ou ao objeto da organização, mas também no que diz respeito à consecução das atividades dos policiais.

Com a missão organizacional sendo defi nida com base na aplicação da lei, a polícia tradicional burocrática enfatizará os aspectos mais rotineiros da atividade

6 Apesar do fato de grande parte das operações policiais rotineiras destinarem-se à manutenção da ordem e à assistência à população, a polícia constantemente reivindica o deslocamento destas ações para outros serviços púbicos, enfatizando o uso exclusivo de seus recursos no controle da criminalidade.

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policial. Assim, os resultados do policiamento são medidos pelo número de prisões efetuadas e ocorrências registradas. Ou seja, esse modelo de policiamento tem como medida de efi ciência os resultados relativos a atividades reativas e não proativas, cerne do modelo comunitário. O problema aqui, segundo os defensores das estratégias comunitárias, é que esse tipo de medição da atividade tende a destacar o que for mais visível em sua consecução, quando o trabalho policial de manutenção da ordem e de prevenção de ocorrências refere-se a atividades não mensuráveis desta maneira.

De todo modo, o trabalho policial no contexto do modelo tradicional pode ser visto como uma alternativa de diminuição das incertezas, dado seu recorte. A atividade é defi nida, assim, com base, por um lado, na delimitação do seu objeto e, por outro lado, no grau de atuação dos agentes de linha. No que diz respeito à delimitação do objeto, a redução das incertezas é alcançada através da padronização. Ao policial cabe o emprego de determinadas táticas de combate ao crime, táticas estas que se destinam não apenas a atender às demandas externas, mas também a estabelecer o controle interno dos policiais, dada sua predeterminação e seu alto grau de padronização. Essas táticas referem-se à atuação do policial sobre as oportunidades para o cometimento de delitos, ou os riscos, numa perspectiva preventiva que não encontra respaldo nas práticas cotidianas. Se a consideração dos riscos como elemento direcionador da atividade policial implicaria maior padronização dessa atividade, a ênfase sobre os aspectos repressivos – e reativos – signifi ca uma acentuação maior ainda desta padronização.

Outro aspecto característico da atuação policial do modelo tradicional refere-se às atividades engendradas pelo agente de linha. De acordo com o modelo tecnológico, a limitação da tomada de decisão por parte desses atores organizacionais também constitui importante mecanismo de redução de incerteza, dado que os vários papéis desempenhados pelas pessoas, fora da organização, afetam de muitas formas a consecução das tarefas dentro dela. O estabelecimento de bases previsíveis e de rotina pode se dar, assim, por meio da já destacada padronização das atividades policiais e das limitações ao uso do discernimento pessoal. A existência de um sistema burocrático centralizador, desta forma, cumpre o papel de coordenar as tarefas policiais. Nesse contexto, a impessoalidade na consecução das atividades é caracteristicamente importante, distanciando o policial dos membros das comunidades.

Como conclusão inicial, pode-se agora localizar, analiticamente, o modelo tradicional de policiamento dentro de um continuum que parte de um alto grau de burocratização em direção à modelos menos burocráticos. Toda organização é burocrática em algum grau. O que caracteriza o modelo tradicional do ponto de vista tecnológico – principalmente se colocado em oposição às estratégias comunitárias – é sua proximidade a níveis mais elevados de burocratização, níveis estes advindos da padronização da missão e das atividades.

Uma organização pode ser entendida, também, a partir das maneiras com que a autoridade e o poder são distribuídos em seu contexto. Um dos focos de poder em uma organização encontra-se no controle de suas fontes de incerteza, fontes que se situam, principalmente, nas relações que a organização mantém com seu ambiente externo (CROZIER, 1969). Dessa maneira, o ambiente é tido como um limitador da racionalidade burocrática, devendo por isso, ser neutralizado, em contextos mais burocráticos.

O movimento de reforma, ao dar início ao modelo tradicional de policiamento, limita, como visto, a relação entre a polícia e a comunidade, no sentido de fortalecer os

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controles internos que asseguram a imparcialidade profi ssional e a padronização das tarefas policiais. Com isso, o modelo tradicional pode limitar suas fontes de incerteza, advindas do ambiente, isolando-o da organização. Ou seja, se os focos de tensão organizacional encontram-se nas fontes de incerteza ambiental, o distanciamento entre polícia e comunidade tornará viável uma maior centralização da autoridade e do poder organizacional.

Entretanto, o controle das fontes de incerteza refere-se não apenas às características do ambiente externo, mas também às maneiras através das quais as informações acerca do ambiente e das tarefas são distribuídas no contexto da organização. Todo ator organizacional dispõe, em alguma medida, de informações acerca das atividades e do ambiente da organização, e tais informações são interpretadas pelos indivíduos de modo diferenciado. Organizações dotadas de características mais próximas à burocracia ideal irão minimizar o acesso dos profi ssionais de linha às informações mais estratégicas, no sentido de coordenar as ações individuais, o que signifi ca maior centralização burocrática.

O policiamento tradicional, nesse sentido, incorpora a divisão de trabalho e a unidade de comando, premissas da teoria burocrática da administração, à sua estrutura organizacional. A distribuição das informações organizacionais se dá, nesse modelo, de maneira verticalizada, em que o líder, ao situar-se na fronteira entre ambiente e organização, mantém o controle das fontes de incerteza.

A importância atribuída pelo policiamento tradicional à racionalidade de sua missão e consecução de tarefas faz com que a unidade de procedimentos deva ser mantida. Assim, se os indivíduos mantêm interpretações diferenciadas acerca das informações recebidas, a discricionariedade deverá ser evitada.

Finalmente, o tipo de tarefa desempenhada pelo ator organizacional também implica maior ou menor acesso à tomada de decisão e, portanto, às fontes de poder. Se, no modelo tradicional de policiamento, a coordenação, padronização e rotinização das atividades de patrulha adquirem caráter central, o poder atribuído a estes agentes será menor, bem como haverá maior controle sobre suas atividades, devido à baixa complexidade de suas tarefas cotidianas. Em outras palavras, o agente de linha, nesse tipo de organização, acaba por deter uma parcela diminuta de informações acerca da maneira como sua tarefa deverá ser realizada, o que implicará menores liberdades na tomada de decisão.

O ambiente externo à organização é, então, um elemento de fundamental importância para a compreensão das maneiras como a polícia se estrutura, tanto do ponto de vista de sua constituição tecnológica, interna, quanto no que diz respeito à distribuição de poder e às possibilidades de tomada de decisão. De acordo com Selznick (1972), entretanto, os efeitos não racionais da ação social permanecem presentes no contexto organizacional, fazendo parte da formação de sua identidade. Ou seja, a organização assenta-se em valores que se constituem no âmbito da comunidade que a cerca. Esta identidade transcende a lógica instrumental da organização. Em dissonância com essa perspectiva, o policiamento tradicional permanece apoiando-se nas premissas da efi ciência técnica. Nesse sentido, prioriza as táticas de respostas rápidas às chamadas dos cidadãos, o patrulhamento em automóveis em detrimento do policiamento a pé, maneiras limitadas de contato com a comunidade que a legitima.

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Fazendo uso dos conceitos trabalhados por Scott e Meyer, esta relação com a comunidade pode ser explicada por meio da maneira como a organização policial profi ssional entende e classifi ca seu ambiente. Assim, a polícia acaba por ver o ambiente no qual se situa como essencialmente técnico, isto é, dotado de baixo grau de incerteza tecnológica, com predominância da lógica da efi ciência, e não como ambiente institucional, composto por organizações dependentes das atribuições das comunidades para a conquista de legitimidade.

Ainda segundo a perspectiva apresentada por estes autores, a polícia tradicional harmoniza-se mais com as fi nalidades estabelecidas internamente para suas atividades do que com as normas institucionais do ambiente no qual se situam. A estrutura interna da organização, que privilegia os elementos institucionais ambientais, é refl exo de mitos que são construídos fora da organização. Esta, muitas vezes, incorpora elementos legitimados externamente, elementos estes que não necessariamente são os mais efi cientes, mas que representam ganhos de legitimidade. No caso do modelo tradicional de policiamento, a organização acaba por se constituir menos em conformidade com os valores democráticos da sociedade do que com seus critérios internos de efi cácia no combate à criminalidade. Ao assentarem suas atividades na coordenação efi ciente e no controle das atividades produtivas, o modelo tradicional minimiza a relevância do ambiente institucional no qual se insere.

O policiamento tradicional, ainda, supõe que seu ambiente seja menos problematizável do que perspectivas organizacionais que operam sob a lógica da conformidade aos valores comunitários que a engendraram. Isso pode ser visto a partir da conceitualização que este modelo estabelece para suas atividades de rotina. De acordo com Q. Wilson, principal teórico do modelo tradicional, os policiais devem procurar conhecer detalhadamente seus setores de patrulhamento, de modo a poder incidir sua atuação sobre os riscos aí existentes. Supõe, assim, um alto nível de controle da organização sobre seu ambiente externo, por meio da sistematização das situações diante das quais se encontre. Esta delimitação do ambiente organizacional implica uma ênfase maior da organização policial sobre o controle da criminalidade em detrimento dos problemas relativos à manutenção da ordem e das questões que dizem respeito ao medo que os membros da comunidade sentem do crime. A própria cultura organizacional “militarizada” reforça a distância entre o policial e a comunidade na qual atua como fator fundamental da garantia de sucesso profi ssional.

Ao supor que a organização policial deva apoiar-se predominantemente nos critérios racionais de efi ciência técnica, o modelo tradicional minimiza a atuação da população nas questões relativas à segurança, delimita sua missão privilegiando não as questões relacionadas à constituição da ordem nas comunidades, mas o combate à criminalidade e desconsidera a importância da sensação subjetiva de medo da população.7 Seu ambiente é entendido, portanto, como técnico, menos complexo ou problematizável e mais passível, por isso, de ter suas infl uências neutralizadas pela organização.

7 Isso em suas atuações verifi cadas empiricamente (CERQUEIRA, 1999). No modelo analiticamente proposto por O. Wilson o medo da população é considerado, em uma suposição de que as patrulhas motorizadas, por conferirem a impressão de que a polícia se encontra em todas as partes da cidade em qualquer tempo, são capazes de diminuir a sensação de medo dos cidadãos.

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CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

De modo signifi cativamente diverso, o modelo organizacional do policiamento comunitário supõe a fl exibilização da estrutura burocrática, uma vez que suas estratégias incorporam novos elementos à missão organizacional. Supondo que o ambiente no qual se insere seja mais complexo, fonte de sua legitimação, a perspectiva comunitária de policiamento demanda relações mais intensas com as comunidades, o que por sua vez, exige uma menor padronização das tarefas, já que os policiais passam a lidar com mais situações excepcionais na consecução de seu trabalho.

Tarefas que se dão desse modo exigem ações inovadoras por parte do pessoal de linha da organização, em uma situação em que há a transferência da tomada de decisão para os atores organizacionais mais próximos do processo produtivo. A idéia fundamental por trás do policiamento comunitário é que o trabalho conjunto e efetivo entre polícia e a comunidade pode ter um papel importante na redução do crime e na promoção da segurança. Enfatiza que os próprios cidadãos são a primeira linha de defesa na luta contra o crime. Assim, defi ne-se como uma estratégia organizacional para que os esforços policiais sejam mais bem mobilizados, por fazer necessário que a polícia se torne aberta aos problemas que as comunidades identifi cam.

Esse modelo, portanto, exige uma estrutura organizacional descentralizada, onde as regras de conduta profi ssional surgem mais como parâmetro de ação do que como molde para os comportamentos, e as informações seguem um percurso horizontal e não verticalizado.

A dimensão tecnológica do policiamento comunitário irá supor, no que diz respeito ao grau de variabilidade da missão organizacional, a incorporação de uma gama de elementos não formalmente contidos no modelo tradicional. À aplicação da lei, assim, acrescentam-se os problemas relativos à ordem nos espaços públicos, tidos pelo modelo comunitário de policiamento não como função residual, mas, sim, como aspecto central da atividade policial.

A incorporação desses elementos signifi ca maior variabilidade e complexifi cação da missão organizacional da polícia, na medida em que a efi cácia técnica no combate à criminalidade deixa de ser entendida como a única missão policial e a conquista da legitimidade para a consecução das atividades desloca-se para uma área fundamental dos objetivos organizacionais. No contexto relativo às estratégias comunitárias, portanto, a missão deixa de ser um limitador da variabilidade da natureza das atividades policiais. As incertezas com as quais a organização se depara surgem com maior freqüência, o que faz com que sua missão e seus objetivos específi cos sejam problematizáveis do ponto de vista analítico.

Tal conformação tecnológica implicará, também, alterações relativas ao nível de incerteza, contidas nos procedimentos que articulam causa e efeito, elemento constituinte do design tecnológico de uma organização, segundo Perrow (1976). Assim, a complexifi cação da missão policial acarretará atividades menos rotineiras no contexto do trabalho policial e sua padronização será mais difícil de ser alcançada, uma vez que se refere a contatos mais próximos com os membros das comunidades.

As estratégias de atuação, portanto, serão alteradas em conformidade com a ampliação da missão organizacional. Ao incorporar a importância relativa à redução do medo da população às funções da polícia, por exemplo, o policiamento a pé mostrou-

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se mais efi ciente do que o patrulhamento motorizado, por permitir maior proximidade entre policiais e cidadãos.8

A ampliação da missão organizacional, além disso, fará com que surja a concepção segundo a qual as atividades policiais são complexas demais para que sejam conduzidas estritamente no âmbito policial. Tal concepção acarretará duas conseqüências, de um ponto de vista mais geral. Em primeiro lugar, no que diz respeito à conceitualização do objeto sobre o qual a atividade policial incide. Às concepções de risco, implicadas no modelo tradicional, contrapõe-se o conceito de problema preconizado pelo policiamento comunitário. De maneira resumida, os riscos referem-se às situações passíveis de gerar incidentes delituosos. A concepção de problema amplia tal perspectiva na medida em que implica a obtenção de conhecimentos mais vastos acerca de comportamentos e problemas sociais que surgem em uma comunidade. As estratégias serão implementadas a partir de defi nições especifi cas acerca da natureza dos problemas. Em outras palavras, se o conceito de risco, na prática das organizações policiais, signifi cou a consideração de incidentes isolados, o conceito de problema procura identifi car suas causas e conseqüências, de modo a neutralizar sua atuação, numa perspectiva preventiva. Também aqui, as comunidades, antes afastadas das estratégias de policiamento, são tidas como elemento de fundamental importância para a delineação das formas de intervenção nos problemas.

Uma segunda conseqüência da ampliação da missão policial diz respeito à prática da atividade da policia pelos agentes de linha. A aproximação com a comunidade e a metodologia de solução de problemas9 implicam a necessidade de consideração do discernimento do agente de linha, em uma menor padronização de seu trabalho e em maiores possibilidades para a tomada de decisão. A descentralização organizacional constitui, portanto, exigência desse modelo de policiamento. A rigidez das regras é substituída pela motivação dos policiais, o que diminui a intensidade do controle para o desempenho de suas tarefas.

Em resumo, o policiamento comunitário associa-se a uma conformação tecnológica em que, por um lado, o grau de variabilidade da missão é maior e, por outro lado, as incertezas contidas no processo de trabalho ocorrem com maior intensidade. De um ponto de vista analítico, portanto, o modelo comunitário de policiamento caracteriza-se por uma menor aproximação a padrões burocráticos de organização. Nesse sentido, suas características relativas à distribuição de autoridade e poder também merecem ser pormenorizadas. Como já mencionado, as relações

8 Ainda que esse tipo de patrulha não tenha afetado a ocorrência de crimes.9 Herman Goldstein (em Improving Policing: A Problem Oriented Approach – 1979) introduz questões relativas à aplicação do método de solução de problemas, considerando-o mais efi caz do que a confrontação direta ou a ênfase conferida aos métodos reativos e repressivos do trabalho policial. A metodologia de solução de problemas consiste em quatro etapas distintas. A primeira delas, “identifi cação”, tem como objetivo descobrir quais os problemas associados aos incidentes, a seleção de prioridades e a defi nição de responsabilidades. A segunda fase, de “análise”, consiste na compreensão mais profunda do problema, através do seu estudo de forma mais detalhada. Conhecimento minucioso das ocorrências dos delitos, sua distribuição espacial, temporal suas possíveis causas é de grande importância para a etapa de intervenção. O objetivo da fase de “resposta” ou a intervenção propriamente dita, é selecionar uma solução, um plano de ação estratégico e implementá-lo. Por fi m, a fase de “avaliação”, procura criar critérios objetivos para avaliação do funcionamento e efetividade das intervenções implementadas.

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de poder no contexto organizacional podem ser compreendidas em termos de três fatores gerais: a confi guração do ambiente externo no qual a organização se situa, o tipo de distribuição das informações organizacionais na cadeia hierárquica e o grau de incerteza contido na consecução das tarefas. O ambiente organizacional, assim, possui valor estratégico na medida em que suas fontes de incerteza são material para a detenção de poder. Ao aproximar polícia e comunidade, as estratégias comunitárias de policiamento incorporam, portanto, novas formas de engendrar autoridade que não coincidem vis à vis com a estrutura formal, diferenciando-a de maneira mais enfática das bases reais de poder organizacional.

Além disso, a ampliação das relações entre polícia e comunidade enfraquece os controles internos sobre os policiais e as possibilidades de padronização das tarefas que eles desempenham, na medida em que há um maior acesso destes atores organizacionais às fontes de incerteza provenientes do ambiente externo, como já mencionado. A motivação, também por essa via, torna-se instrumento mais favorável do que o controle rígido sobre as atividades.

Tal confi guração exige descentralização do poder, em consonância com modelos menos burocráticos de organização. Em suma, mesmo que a aplicação da lei seja a principal fonte de legitimidade da atuação policial, a comunidade passa também a desempenhar o papel de fonte de autoridade para muitas das atividades desenvolvidas pela polícia. A aceitação da discricionariedade é oriunda também da importância atribuída pelo policiamento comunitário à legitimidade conferida pelo ambiente, o que faz com que as interpretações dos indivíduos acerca das informações recebidas das comunidades sejam incorporadas.

Finalmente, é importante mencionar que tarefas dotadas de um maior grau de incerteza em seu processo de consecução implicam maior autonomia para quem a desempenha. Por tudo o que foi dito até aqui, pode-se concluir que o policial comunitário, por lidar com uma missão e com um ambiente organizacionais mais heterogêneos e, portanto, mais complexos, estará desempenhando funções em que o nível de incerteza e conseqüentemente de autonomia e possibilidades de tomada de decisão serão maiores do que no modelo profi ssional de policiamento, onde as tarefas são rigidamente padronizadas.

Entretanto, no contexto do policiamento comunitário, a diminuição do controle exercido pela organização sobre seus profi ssionais corresponde a um maior grau de controle da comunidade sobre a organização. Assim, às questões relativas à efi ciência no cumprimento de sua missão, cerne do policiamento profi ssional, soma-se a necessidade de busca de legitimidade e credibilidade no contexto social democrático. Ao deslocar sua missão de uma ênfase legalista para atividades de implementação da lei e manutenção da ordem pública, o policiamento comunitário inviabiliza medições de resultados que se dêem estritamente pelo número de prisões efetuadas, por exemplo.

As estratégias para avaliação do policiamento, nesse contexto, tendem a ser mais genéricas e mais difíceis de serem implementadas, dada a amplitude das parcerias entre polícia e comunidade. Elas devem, portanto, acrescentar ao seu escopo medidas não apenas relativas ao processo de implementação do policiamento e às taxas de criminalidade, mas também relativas às percepções que a população tem acerca da ocorrência de crimes, ao medo da criminalidade e à idéia que mantém acerca das organizações policiais.

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Medir a atuação policial implica considerações acerca de qual atividade a polícia desempenha e como ela a desempenha, elementos já descritos das mudanças da estratégia tradicional para a estratégia comunitária. Assim, a avaliação do desempenho organizacional no contexto do policiamento comunitário deverá enfatizar elementos que vão além dos chamados indicadores tradicionais, objetivos, para a incorporação de indicadores mais amplos e complexos de desempenho.

O maior grau de controle da atividade policial pelos setores da comunidade é decorrente também da maneira como a organização policial comunitária defi ne seu ambiente externo. Dado o alto grau de incerteza implicado nas relações mantidas entre a polícia e as comunidades, o ambiente organizacional do modelo comunitário de policiamento deixa de ser defi nido estritamente como técnico, em que predomina a lógica da efi ciência, e passa a ser defi nido como institucional, fonte de recursos relativos à legitimidade para a organização.

O policiamento comunitário, desse modo, e em oposição ao modelo preconizado pela reforma, procura sintonizar-se com as normas institucionais e com os valores democráticos de seu ambiente, maximizando sua relevância e complexifi cando suas defi nições. A metodologia de solução de problemas descrita por Goldstein (1977) – identifi cação do problema, análise, resposta e avaliação – supõe, assim, que a organização policial não detém um alto nível de controle sobre os fatores ambientais que, por isso, devem ser compreendidos de maneira mais pormenorizada. Em suma, trata-se de um ambiente externo, defi nido pela própria organização como institucional, problematizável e menos passível de neutralização racional.

O quadro seguinte procura sintetizar as principais características dos modelostradicional e comunitário de policiamento, no que diz respeito à análise organizacional.

Tabela 1Comparação dos modelos de policiamento

Policiamento profi ssional

Matéria Prima Objeto Modelo Ambiente Tarefa Missão

AnalisávelNão Problematizável

Burocrático1 Homogêneo e Técnico

Poucas Situações Excepcionais

Efi cácia Técnica2

Policiamento Comunitário

Não Analisável

Incorporação de Novos Elementos

Não Burocrático3

Heterogêneo e Institucional

Muitas Situações Excepcionais

Legitimidade4

Fonte: Marinho, 2002

AS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS MILITARES NO RIO DE JANEIRO,BELO HORIZONTE E VITÓRIA

O campo das políticas públicas é muito complexo, pois, além de bens públicos strictu sensu, o estado fornece aos cidadãos também um grande conjunto de bens simbólicos. O que se produz na área de segurança pública, em larga medida, diz respeito à segunda categoria citada. A polícia ostensiva é uma das faces mais visíveis do estado e sua atuação é fundamental na determinação do grau de segurança subjetiva da população, além de empregar uma imagem de ordem às relações cotidianas das pessoas. A polícia comunitária implica a tentativa de certa reorganização operacional

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da polícia brasileira, uma vez que institucionaliza uma maior preocupação com a qualidade da interação entre agentes policiais e a população. Dados da pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, para Secretaria Nacional de Segurança Pública10 lançam luzes sobre novas defi nições situacionais que emergem no cotidiano da atuação policial.

A análise dos discursos proferidos por atores organizacionais das instituições militares em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória, muito pode revelar acerca dos atuais padrões de policiamento, no que concerne aos elementos abordados anteriormente. Os policiais entendem suas atividades como idealmente relacionadas estrita e preferencialmente aos objetivos de combate ao crime. Idealmente, mas não de fato. Ser policial signifi ca atuar nas mais diversas áreas, cumprindo tarefas que seriam, segundo a perspectiva dos policiais, de outros órgãos. A polícia, assim, acaba por se constituir em ponto de referência para a sociedade, atuando em tarefas mais heterogêneas do que aquelas defi nidas idealmente pela organização. O policial compreende que a realidade é complexa demais para ser esgotada no contexto organizacional.

Apesar da identifi cação desta heterogeneidade, há uma maior associação da atividade policial com o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro, do que em Vitória e Belo Horizonte. Mais do que isso, a atividade policial é tida como autêntica apenas quando diretamente relacionada ao combate à criminalidade. Assim, a descrição do cotidiano do policial carioca enfatiza a violência de modo marcadamente mais acentuado:

“Da difi culdade que é, você lidar com vários tipos de crime, com todo tipo de situações, desde uma briga de casal quanto a um assalto a banco, um tráfi co... Traz tudo que é pior para a gente entrar, trabalhar em morro, que é um tráfi co muito pesado, com armamento muito pesado e que a televisão não mostra. O que mostra na televisão talvez não seja nem um décimo do que realmente a gente vê, de tudo que a gente sabe que acontece”. (Soldado, Rio de Janeiro)

A ênfase atribuída sobre a violência no cotidiano do policial carioca se refl ete no rigor em que cabos e soldados reivindicam a aplicação e dureza nas penalidades:

“Se você não punir quem comete crime, de forma que a pessoa se assuste... Tipo... Vamos dizer que seja aprovado uma... uma... Não vou dizer pena de morte, mas prisão perpétua, eu tenho certeza que muito bandido vai fi car com medo de ser preso. – Imagina, “pô”, nunca mais eu vou sair... Eles vão ter medo. Mas não tem, eles sabem que vão entrar e vão sair. ” (Soldado, Rio de Janeiro)

No contexto dessa missão policial, a efi cácia técnica adquire centralidade, daí sua exclusividade para a consecução da missão, devendo a comunidade, leiga, manter-se afastada dos assuntos relativos à polícia, limitando sua atuação à denúncia de situações específi cas. Ora, tal limitação mostra-se compatível com o modelo reativo tradicional, e não com diagnóstico de situações capazes de gerar a ocorrência de

10 “Estudo da estratégia organizacional de policiamento comunitário nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória”.

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crimes, condição para atuações preventivas. Por outro lado, a formação policial surge associada à prática, ao cotidiano, ao aprendizado que ocorre durante o processo de inclusão do individuo na organização policial, o que mais uma vez encontra-se associado à ausência de padronização.

Apesar da heterogeneidade das situações engendradas no contexto da prática policial, a tomada de decisão cotidiana é localizada em situação periférica pela organização policial, mas em situação central pela prática diária. No entanto, se o agente de linha destaca a tomada de decisão como ponto importante de seu trabalho, o ofi cial entende a tomada de decisão como atribuição do comando da organização policial.

Parecem existir, no imaginário policial mineiro, duas polícias, no que diz respeito aos níveis de rigidez hierárquica organizacional. Fala-se, em Belo Horizonte, de uma “velha polícia”, caracterizada pela rigidez de comando, pela hierarquia fortemente centralizada, pelo distanciamento com as comunidades e pela disciplina autoritária da organização policial.

Segundo os discursos, tanto de praças quanto de ofi ciais, a “velha polícia” foi substituída – a partir do movimento implementado por policias mineiros em 1997, a greve amplamente mostrada pela mídia, com fortes repercussões – por uma organização mais fl exível, dotada de uma disciplina menos centralizada, a “nova polícia”. No Rio de Janeiro e em Vitória, no entanto, o que se argumenta é que a norma policial se confunde com a punição a desvios de regras administrativas de baixa importância na consecução das atividades cotidianas, ou no desempenho do “verdadeiro” trabalho policial de combate ao crime. Policiais, mais especifi camente praças, acreditam não encontrar apoio de seus superiores que forneça respaldo a suas decisões na linha do processo produtivo organizacional. A dramaticidade das situações violentas protagonizadas por policiais é colocada em segundo plano diante do cumprimento de normas meramente administrativas

Apesar da manifesta fl exibilização da estrutura hierárquica e disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais, praças e ofi ciais discordam no que diz respeito aos modos de relacionamento estabelecido entre eles. Assim, enquanto praças afi rmam haver forte separação entre pessoal de linha organizacional e pessoal responsável pela tomada de decisão, numa permanência da rigidez de estruturas hierárquicas e de cargos antigos, ofi ciais afi rmam ter havido fl exibilização dessa estrutura.

Para cabos e soldados, enquanto o ofi cialato toma decisões de natureza organizacional, cabe a eles a tomada de decisão no exercício cotidiano, ainda que de maneira não manifesta dentro da estrutura formal da organização. Assim, a fl exibilização da tomada de decisão organizacional, atribuída à “nova polícia”, após a greve de 1997, não encontra respaldo, em Belo Horizonte, nos modos de relações estabelecidos entre praças e ofi cias, ou na natureza dos processos de tomada de decisão.

Por outro lado, as maneiras pelas quais os policiais acreditam serem vistos pela sociedade civil de um modo geral e pela comunidade em que atuam, em especial, são marcadamente negativas, parte em função de uma herança do período ditatorial brasileiro, em que as organizações policiais eram tidas exclusivamente como instrumento de vigilância e repressão, parte em função de sua estrutura militar centralizada, como destacado nas considerações anteriores.

No entanto, iniciativas em torno da implementação do policiamento comunitário parecem obter sucesso no incremento desta relação, por possibilitar o estabelecimento

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de contatos inter pessoais e, portanto, de confi ança, através da fi xação de policiais em determinados locais de atuação. A confi ança, portanto, deve ser conquistada, e, segundo os próprios policiais – praças e ofi ciais – a aproximação tem sido realizada a partir de iniciativas das organizações policiais e não de associações ou membros das comunidades. Ainda assim, o relacionamento entre polícia e comunidade parece ser positivo onde existem organizações comunitárias em forma de conselhos de segurança.

Outros dos elementos levantados como obstáculo ao estabelecimento de boas relações com as comunidades, dizem respeito ao medo que os indivíduos sentem de serem identifi cados como delatores de práticas ilegais, e pelas diferenças de mobilização encontradas em diferentes comunidades. Assim, parece haver associação entre relacionamento polícia-comunidade e denúncias, realizadas pelos membros das populações, às polícias.

Os modos de relacionamento com a sociedade civil, ainda, podem variar de acordo com o estrato social com o qual os policiais se relacionam. Assim, o contato com membros das classes populares é, de acordo com os policias, mais satisfatório, enquanto as classes abastadas entendem o policial como um indivíduo que não obteve sucesso na estrutura social. Portanto, a independência entre a abordagem policial e os diferentes estratos que compõem a sociedade é impossibilitada pelos modos como policiais são recebidos por diferentes populações.

Entretanto, enquanto em Belo Horizonte e Vitória os obstáculos ao estabelecimento de relacionamento entre polícia e comunidade encontram-se na imagem policial, associada ao autoritarismo e à punição, ou à desarticulação comunitária que a torna incapaz de ações conjuntas, no Rio de Janeiro, outras questões foram destacadas. A principal delas diz respeito à presença do crime organizado. Segundo essa perspectiva, trafi cantes de drogas assumem a autoridade no contexto de aglomerados urbanos e favelas, impedindo qualquer possibilidade de articulação comunitária com as organizações policiais. Mas a autoridade exercida pelo crime organizado nos aglomerados do Rio de Janeiro se refl ete, sobretudo, no medo que a população parece ter de ser penalizada por se relacionar com policiais.

A presença policial passa a ser repudiada pelos membros das comunidades, pois representa o desencadeamento de situações de grande violência. Em outras palavras, os policiais entrevistados acreditam no estabelecimento de uma rotina entre crime organizado e população, cuja ruptura, pela polícia, pode representar riscos maiores do que aqueles oferecidos pela presença dos criminosos. A ação policial – preventiva ou repressiva – também é difi cultada pela confi guração física dos aglomerados urbanos.

Enfi m, nas três organizações estudadas os praças não percebem, do ponto de vista da sociedade, a confi ança necessária para um verdadeiro trabalho de parceria com os grupos externos à polícia militar. Esse sentimento de distância em relação aos outros grupos e cidadãos é reforçado principalmente pela imagem negativa passada pela imprensa e pelos militantes ligados aos movimentos de direitos humanos, muitas vezes acusados de “politicagem”:

“A imprensa só sabe dar moral pra vagabundo, só fala a duas semanas só fala de Bem-te-vi, quer falar da vida do Bem-te-vi, das mulheres que o cara teve, ta fazendo o que? ta exaltando, ta incentivando a criança a ser bandido (soldado – Rio de Janeiro)

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“Principalmente enquanto a segurança pública estiver veiculada com a política nada vai pra frente. Porque os políticos têm que estar bem com a população, então não podem deixar a polícia fazer o papel dela” (cabo – Rio de Janeiro)

Mas, em praticamente nenhum momento da pesquisa se pôde associar a falta de consciência dos praças sobre a importância da estratégia de interação com a população como obstáculo para sua implementação. Muito pelo contrário, mesmo com muitas reclamações sobre a falta de treinamento e recursos, humanos e logísticos, os policiais militares de todas as três instituições estudadas mostram-se interessados no policiamento comunitário, ou pelo menos não se opõem a ele.

“E a polícia mais antiga não tinha esse contato com a comunidade hoje é o contrário, e a polícia de comando antigamente não achava certo que o policial fazia o contato com a comunidade, hoje em dia, é essencial esse contato” (soldado – Belo Horizonte)“Polícia interativa é o que deveria ser feito. Mas uma coisa é o que deveria ser feito, o que o pessoal lá de cima quer que a gente faça e outra bem diferente é que eles dão recursos para gente fazer, tá entendendo? Polícia interativa é o ideal? É. Então... mas, e os recursos, os treinamentos, o pessoal necessário, as condições... não tem” (soldado – Vitória)

O que, no início da pesquisa, parecia uma oposição ideológica, no sentido dos militares preferirem fortemente a estratégia repressora ao invés da preventiva, no decorrer da pesquisa passou a se mostrar algo bem mais elaborado. Os praças têm a capacidade de realizar uma crítica das contradições das polícias militares das quais fazem parte. De um lado, o policiamento comunitário é a doutrina ofi cial, por outro, as instituições não fornecem os treinamentos, os recursos humanos e logísticos para efetiva operacionalização de uma polícia moderna.

As questões organizacionais de nível estrutural, como o distanciamento e difi culdade de troca de informações com a polícia civil, o descompasso entre praças e ofi ciais, o défi cit do sistema prisional (refl etido na decepção do militar que prende o criminoso e não o vê ser punido), acabam tendo mais peso negativo para uma verdadeira evolução atual do policiamento comunitário que a cultura do policial. Em termos da preparação da mentalidade do militar, o que deve ser trabalhado é a sua auto-estima, tanto com intervenção psicológica como midiática, com campanhas no sentido de melhorar a imagem do policial militar.

Os resultados da pesquisa também são contundentes em mostrar que, em nenhuma das três instituições estudadas, os praças recebem uma formação continuada. Os policiais de Vitória, por exemplo, citaram que já foram à Universidade Federal do Espírito Santo aprender a respeito de geoprocessamento de dados, mas que isso não teve nenhuma continuidade. Com relação às próprias técnicas de interação com a comunidade e à metodologia de resolução de problemas, grande parte dos entrevistados podem citar pouco a respeito de seus conhecimentos, pois apenas realizaram um curso rápido a vários anos atrás.

Ainda que a violência policial nos aglomerados urbanos seja um problema a ser considerado seriamente, essa não deve ser vista simplesmente como um obstáculo para

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implementação do policiamento comunitário. Ao contrário, a busca de interatividade policial com as comunidades pobres, como demonstraram algumas experiências que de fato ocorreram no Espírito Santo, é possível e é um dos caminhos mais efi cazes para superar a imagem estigmatizada da polícia militar e diminuir a violência policial. É claro que no Rio de Janeiro, onde o controle de determinados territórios pelos trafi cantes coloca os militares em real estado de guerra, a repressão e a inteligência policial terão que ser reforçadas. O policiamento comunitário também não é uma panacéia capaz de resolver todos os problemas de segurança pública em todos os lugares.

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS

De um modo geral, as sociedades contemporâneas têm vivenciado mudanças estruturais no âmbito social, econômico e político, que são refl etidas em suas instituições; estas passam a ser vistas como prestadoras de serviços na medida em que sua sobrevivência vincula-se à crença de seus clientes na pertinência do que nelas é produzido (PRATES, 2000a). Assim, da ênfase estritamente sobre a racionalidade econômica, passa-se a agregar fatores que também do ponto de vista do ambiente organizacional constituem motivadores relevantes para a mudança, como as dimensões sociais de sua consecução de tarefas.

Por se desenvolver em um ambiente institucional altamente elaborado, as organizações policiais na sociedade contemporânea têm sua sobrevivência e sucesso fortemente vinculados à outros fatores além da coordenação e do controle de suas atividades. A resposta às pressões legítimas das comunidades, em um contexto em que a liberdade política e os direitos civis adquirem centralidade, passa a ser fator determinante para a vida da organização policial brasileira e é nesse âmbito que o ambiente irá exercer pressões por mudanças em direção a estratégias comunitárias de policiamento.

Diante deste panorama, um dos problemas mais importantes com os quais a polícia irá se deparar está na conciliação de diferentes demandas diante da necessidade de resguardar sua identidade, e ainda, na conciliação de sua tradição com as demandas comunitárias por novas estratégias de atuação. Seu grande desafi o será, portanto, desenvolver a capacidade de conjugar efi ciência e sintonia com as comunidades, diante da necessidade de se levar em conta a existência de uma ampla rede de relações externas à polícia e que exerce sobre ela grande infl uência.

Mudanças tão signifi cativas podem levar ao esvaziamento da identidade das organizações policiais. Nesse sentido, a liderança da organização desempenha papel fundamental, na medida em que pode mediar a interação entre identidade organizacional e os valores que emergem da comunidade na qual se insere. O líder de organizações com as características do policiamento comunitário, assim, não apenas deverá coordenar as atividades dos membros da organização, mas também ser um anteparo às aspirações da comunidade. Como resolução dos problemas implicados no processo de mudança, a organização policial poderá enfatizar sua sobrevivência, privilegiando o ambiente como fornecedor de recursos, o que pode acarretar prejuízos para sua identidade e baixa competência para absorver as pressões ambientais – trata-se do modelo oportunístico de resolução do confl ito entre categorias de norma e de efi ciência (PRATES, 2000a). Mas ela pode, também, enfatizar sua identidade, procurando

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manter um equilíbrio entre critérios institucionais e ambientais, de modo a minimizar os problemas de articulação – modelo de barganha institucional (PRATES, 2000a).

Apesar da heterogeneidade da atuação policial descrita por membros das três organizações pesquisadas, observou-se uma reivindicação do trabalho de polícia em torno da missão estrita de combate à criminalidade. De acordo com a crítica a esse modelo, a criminalidade não pode ser prevenida exclusivamente por meio da aplicação da lei. A polícia deve buscar outras formas de prevenção de crimes, o que acarreta na ampliação da missão policial.

Propostas em torno da implementação do policiamento comunitário, assim, implicam em importantes alterações relativas ao nível de incerteza contido nos procedimentos que articulam causa e efeito, elemento constituinte do design tecnológico de uma organização, segundo Perrow (1976). Essa perspectiva contraria reivindicações em direção a uma maior normatização da tarefa policial, destacada por importante número de entrevistados e participantes de grupos focais.

A complexifi cação da missão policial deve acarretar atividades menos rotineiras no contexto do trabalho policial e sua padronização será mais difícil de ser alcançada, uma vez que se refere a contatos mais próximos com os membros das comunidades. Trata-se da institucionalização organizacional de práticas já implementadas pelos agentes de linha, como a tomada de decisão em atividades cotidianas, e da incorporação de atividades que tradicionalmente não são vistas como atividades de polícia.

Por tudo o que foi mencionado até aqui, os modelos policiais apresentados pelos resultados tendem a enfatizar mais suas formas de implementação de atividades do que suas fi nalidades propriamente ditas. Ou seja, transformam os meios em fi nalidades em si mesmas, investindo grande quantidade de recursos nas respostas rápidas às chamadas, dando pouca ênfase à detecção dos problemas capazes de gerar demandas, em uma perspectiva mais reativa do que proativa.

De uma perspectiva administrativa, as decisões são tradicionalmente tomadas no topo da hierarquia, raramente ocorrendo de modo participativo ou colegiado. Tal sistema de controle e comando é paradoxal, uma vez que ignora comportamentos individuais, relativos ao pessoal da linha organizacional, em um contexto de atividades que requerem decisões complexas no instante em que ocorrem. Assim, se o trabalho policial inclui altos níveis de discricionariedade, a administração das polícias militares em Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro mantêm um sistema de controle centralizado, o que faz com que sua estrutura formal e informal de autoridade sejam incongruentes.

Essa é, provavelmente, a mudança mais signifi cativa decorrente da fi losofi a do policiamento comunitário. Ao policial comunitário cabe a função de analisar incidentes e problemas com liberdade para escolher entre alternativas de ação. A diversifi cação das opções de ação é também responsável por uma maior complexifi cação das agências policiais, uma vez que conferir maiores responsabilidades ao agente de linha pode signifi car mudanças profundas nos padrões de recrutamento e treinamento, bem como nas formas de controle e avaliação do trabalho policial.

Diferente do que é reivindicado por policiais, a implementação do policiamento comunitário deve gerar, também, um menor volume de normas, menor rigidez no exercício da autoridade militar e no controle hierárquico centralizado, de modo a motivar a tomada de decisões e atos independentes no contexto da atividade policial. Do ponto de vista da efi ciência, o envolvimento com a comunidade é fundamental para

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a consecução de tarefas relativas à manutenção da ordem. Nesse sentido, a comunidade deve passar a ser compreendida como elemento importante na identifi cação e soluça de problemas. A ela cabe sugerir medidas necessárias para o combate à criminalidade e desordem. Do policiamento orientado para o evento, o que se sugere é o policiamento orientado para o problema, de modo que o policial possa distinguir diferentes formas de situações passíveis de motivar delitos ou eventos relacionados à desordem o que, segundo os princípios do policiamento comunitário, demanda envolvimento das comunidades.

Outra questão a ser destacada diz respeito à defi nição feita pelos membros das organizações acerca do policiamento comunitário. Gerais ou abstratas, não encontram correspondência, nos discursos analisados, com metodologias ou formas de operacionalização. A difi culdade de transpor uma fi losofi a comunitária para o plano do trabalho cotidiano ainda parece ser um dos principais obstáculos à implementação do policiamento comunitário.

O que se tem, portanto, é que, nas três organizações policiais pesquisadas, não parece haver compatibilidade entre as estruturas organizacionais formais – constituídas de modo fortemente centralizador – e os elementos que compõem o modelo comunitário de policiamento. Ora, diante do fato de tratar-se de organizações apontadas como pioneiras ou bem sucedidas nos processos de implementação do policiamento comunitário, acreditamos ter havido forte confusão entre estratégias focalizadas de metodologias comunitárias e os processos de implementação do modelo.

A expressão “policiamento comunitário”, deste modo, tem sido usada para designar uma série de iniciativas que refl etem muito mais o estilo profi ssional de determinados comandantes ou lideranças organizacionais do que um modelo organizacional propriamente dito. No entanto, a expressão deveria dizer respeito a mudanças no contexto organizacional como um todo, bem como nas lideranças das unidades policiais, entre o “staff”, supervisão, no processo de recrutamento, treinamento, avaliação, ambiente de trabalho e na relação que a polícia mantém com o ambiente institucional no qual se situa. Portanto, alterações nessa direção requerem, se forem efetivadas, mudanças simultâneas nas mais diversas áreas afetadas pelo empreendimento.

Em suma, a manutenção da atual estrutura organizacional das organizações policiais impossibilita o processo de implementação do policiamento comunitário. Diante disto, um equívoco comum tem sido atribuir a inefi cácia das organizações policiais exclusivamente à precariedade dos equipamentos utilizados por policiais, quando investimentos em educação – especialmente do pessoal de linha – fl exibilização da estrutura policial, como já destacado e sistematização e maior circulação da informação organizacional ao longo da estrutura hierárquica parecem ser mais urgentes. Tal processo exige participação das instâncias decisórias da polícia, além do esclarecimento, especialmente daqueles que atuam de maneira mais direta com a população.

Existem problemas que só um treinamento mais intensivo e sólido poderia sanar. Deve-se enfatizar a importância de lidar de forma sistemática com a informação, no nível de dados estatísticos pormenorizados de crimes nas áreas dos batalhões, que sejam disponibilizados aos praças e que eles saibam trabalhar. Isso seria fundamental para o desenvolvimento de um policiamento voltado para solução de problemas, de forma que os agentes partissem de uma avaliação das situações e da formulação de estratégias pró-ativas ao invés de meramente reativas.

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A distância entre o agente que atua nas ruas e o ofi cial que toma as decisões também deve ser encurtada, de forma que a identidade institucional do praça seja reforçada positivamente. Ele tem consciência de ser uma das faces mais visíveis do estado, e acredita ser sufi cientemente competente para cumprir esse papel, portanto percebe como descrédito a falta de participação na elaboração das estratégias de ação da organização. Compartilha de forma generalizada da fi losofi a de policiamento comunitário, mas perde um pouco do compromisso com a mesmo devido às brechas deixadas para que se torne um crítico da própria estrutura da organização policial militar, altamente burocrática e que não tem investido de forma satisfatória na estratégia interativa de policiamento.

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255Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás |

TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS E CARREIRA DOS AGENTES PENITENCIÁRIOS: DISTRITO FEDERAL E GOIÁS

Lourdes Bandeira1

Analía Soria Batista

INTRODUÇÃO

Esse artigo analisa os resultados da pesquisa realizada no contexto dos projetos aprovados pelo Edital de pesquisa aberto pela SENASP/ANPOCS em janeiro de 2005, na linha: Construção das Carreiras e das Trajetórias Profi ssionais dos Operadores da Justiça Criminal e Segurança Pública, com o projeto: Perfi s Profi ssionais dos Agentes Penitenciários do Distrito Federal e do Estado de Goiás, cujo Relatório completo encontra-se disponível no site da SENASP2.

O interesse que nos orientou na escolha da temática foi o de contribuir para uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes agentes públicos.

Há décadas existe uma sólida tradição de pesquisa empírica sobre as prisões em numerosos países, notadamente nos Estados Unidos, Inglaterra e França (Chauvenet, 1994; Badinter, 1992; Casadamont, 1985; Faugeron, 1992) e esse tema veio a se constituir uma das áreas de estudos também no Brasil, a partir das últimas décadas do século XX. Contudo, quando os pesquisadores se interessaram pelas questões de segurança, de modo geral, o fi zeram em relação aos presos e a situação das prisões, centrando suas referencias nas reformas penais e prisionais assim como sobre os/as detentos/as tratando de explorar a cultura prisional de res-socialização/reabilitação do/a detento/a, o fenômeno da prisionerização, o tempo prisional, assim como da cultura dos/as detentos/as ou presos/as, as formas de controle, entre outros aspectos.

Mas recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as agentes penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em relação ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais, predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as, repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores-carrascos e desumanos.

Os/as agentes estão encarregados/as de “manusear”, como enfatizaram, com pessoas socialmente desclassifi cadas sujeitando-se desse modo, cotidianamente, aos perigos da “contaminação”, pela proximidade com os detentos. Em função dos contatos exigidos pela natureza do trabalho que realizam, não raro, são representados como um grupo de risco pela sociedade. As denúncias veiculadas pela mídia sobre o comportamento observado como desumano e/ou ilícito destes/as, pode reforçar ainda mais as representações sociais estigmatizadoras. Em função disso, pode considerar-se

1 Professoras do Depto. de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB.2 Site: < http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/concurso.htm>.

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que as relações e interações sociais nos presídios e penitenciárias acontecem entre dois grupos socialmente estigmatizados: Agentes e internas/os; embora permaneçam diferenciados do ponto de vista das hierarquias e dos poderes presentes nas organizações Prisionais.

Goffman (1982:13)3 indica que o termo estigma é usado com referencia a um atributo profundamente depreciativo, sendo necessário situá-lo no marco de relações sociais específi cas, pois um atributo que estigmatiza alguém pode confi rmar a normalidade de outrem. De fato, do ponto de vista dos/as internos/as, a identidade de “guarda de presídio” é depreciativa, visão que pode também estar presente em uma parte da sociedade, e vice-versa. Para os/as Agentes, e em geral para a sociedade, a identidade de detento/a é desvalorizada, sendo alvo de preconceito.

O conhecimento empírico sistematizado sobre o desempenho funcional dos/as agentes penitenciários/as, pode ser avaliado como sendo ainda insufi ciente e, portanto, a nosso ver, merece que se questione o universo das carreiras e trajetórias profi ssionais desses agentes, assim como a natureza de seu trabalho considerado como uma atividade bastante peculiar.

Observa-se que no Brasil vem ocorrendo um aumento signifi cativo da população carcerária4, a partir das duas últimas décadas, apresentando signifi cativas mudanças em suas características seja do ponto de vista da origem sócio-econômica, seja da diversidade dos tipos de crimes, criminalidades e delitos. As condições de vida dos/as detentos/as não evoluíram, na mesma intensidade, e as estatísticas, embora nem sempre refl itam a plena realidade, apresentam aspectos análogos para a situação dos diversos estados da federação, sobretudo em relação à precariedade das condições materiais que caracterizam as instituições prisionais brasileiras.

A reconstrução das trajetórias profi ssionais dos/as agentes penitenciários exigiu apelar, para sua adequada compreensão, a diversos procedimentos metodológicos que compreenderam: a realização de entrevistas, escutas e conversas com os diversos atores que participam (direita ou indiretamente) da produção, reprodução e transformação, material e simbólica de importantes aspectos da instituição prisional. Em razão dessa exigência, durante a pesquisa foi realizado um conjunto de oitenta e cinco entrevistas com Agentes Penitenciários/as e Prisionais no Distrito Federal e de Goiás; nove entrevistas com diretores e autoridades da área de segurança pública; nove entrevistas com Agentes que organizaram visitas guiadas às instalações das unidades Prisionais pesquisadas, vinte e quatro entrevistas com setenta e dois familiares de detentos e dezenove grupos focais com oitenta e cinco internas/os de distintos complexos Prisionais5, somando um total aproximado de 168 horas de gravação.

3 Goffman (1982) aborda o problema do preconceito e da discriminação indicando a dinâmica do estigma, defi nido como uma marca, um rótulo que se coloca em pessoas com certos atributos que se incluem em determinadas classes ou categorias diversas, porém comuns na perspectiva de desqualifi cação social. 4 Fonte: Em 2005 o total da população prisional do Brasil era: 336.358, aumentando para 361.402, em 2006.Depto. Penitenciário Nacional. Sistema Penitenciário no Brasil. Dados Consolidados. Ministério da Justiça, 2006. Site: www.mj.gov.br/depem. 5 Devem-se registrar a boa vontade das autoridades da área de segurança pública, especialmente, os/as Agentes Penitenciárias/os / Prisionais, familiares e detentos/as em cooperar com a pesquisa. Em especial gostaríamos de destacar e agradecer a cooperação das/os principais atores dessa pesquisa, ou seja, as/os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal e as/os Agentes Prisionais de Goiás. Os/

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O trabalho iniciou-se com as demandas institucionais de liberação legal do acesso às dependências das instituições. Essas transcorreram sem problemas na prisão masculina e com maior demora no presídio feminino – Colméia, no DF. Ao contrário de Goiás que o acesso foi de imediato. Talvez essa diferença se deva a natureza institucional diversa da gestão estadual sobre os presídios. A pesquisa foi iniciada com um longo processo de observação etnográfi ca realizado no interior das dependências prisionais, observando-se as instalações, a movimentação interna de agentes e presos/as, nas prisões masculinas e femininas, tais como: os tipos de celas individuais e coletivas, a circulação dos/as detentos/as pelos pátios internos, o recolhimento às celas, a distribuição do jantar, a chegada de novos detentos, o funcionamento da escola, da biblioteca e do templo, instalados no interior da prisão, destacando-se as diferentes tipifi cações dos/as presos/as existentes aqueles que possuem curso superior e ex-policiais estão localizados em celas mais amplas, higiênicas e com mais condição de circulação, pois há um pequeno pátio interno exclusivo, e as celas estão localizadas no mesmo corredor da igreja. Há aqueles que estão em regime de solitária, em celas fechadas minúsculas, escuras com higiene precária, parecem estar amontoados, além de serem muitos em uma mesma cela.

Além desses percursos percorridos foram observadas as atividades e as rotinas de trabalho dos/as agentes prisionais, tais como: a distribuição de refeições, a descida dos presos ao pátio, o retorno às celas e o registro dos/as internos/as uma vez nas celas ou “confere” ou “recolhimento”, a movimentação no pátio, a chegada e a saída de presos/as, os desempenhos nas ofi cinas de trabalho, a circulação dos agentes entre os presos, os postos de guarda, as formas de controle que exercem sobre os presos, o atendimento no posto médico, as revistas, o estresse, por vezes manifesto no trabalho, entre outros.

Na parte externa do complexo prisional masculino, sobretudo no DF, se utilizou a observação in lócus para observar o funcionamento das diversas ofi cinas de trabalho, consideradas como locais de aprendizagem e onde os detentos podem exercer sua sociabilidade com vistas à expectativa do processo de ressocialização, conforme nos foi descrito pelos agentes que conduziam a visita aos presídios masculinos. Assim, após essa passagem pelas dependências internas e externas da prisão, tendo como objetivo, observar as ações e os desempenhos dos/as agentes prisionais, descrita, detalhadamente, no relatório fi nal da pesquisa, o que nos possibilitou ter uma compreensão sobre a prática profi ssional dos/as agentes prisionais.

Esse artigo compreende as seguintes partes: a) Caracterização das unidades prisionais estudadas; b) Caracterização do perfi l sócio-demográfi co dos/as agentes;c) Carreiras e trajetórias profi ssionais dos/as agentes penitenciários/as no DF e Goiás; d) O lócus do trabalho: divisão técnica do trabalho e divisão sexual do trabalho; e,e) A dupla missão dos/as agentes penitenciários: segurança e re-inserção.

as Agentes que concordaram em participar dessa pesquisa, responderam cuidadosamente às nossas questões e suportaram a nossa presença durante os longos períodos de observações em relação às rotinas cotidianas de seu trabalho. O anonimato prometido nos impede de agradecer nominalmente àqueles e àquelas que participaram como parte integrante deste trabalho, assim como aos membros das administrações penitenciárias do Distrito Federal e do estado de Goiás, que permitiram nosso acesso às dependências internas dos presídios.

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CARACTERIZAÇÃO DESCRITIVA DAS UNIDADES PRISIONAIS VISITADAS

As unidades prisionais estudadas no Distrito Federal, onde atuam os/as agentes penitenciários/as são apresentadas, resumidamente, a seguir:

1) Centro de Internação e Reeducação-CIR, conhecido como – Papuda

Tinha à época da pesquisa aproximadamente, 1500 detentos e eram 60 os agentes penitenciários, sendo que em torno de 20% do sexo feminino. É o presídio masculino composto por quatro blocos de três andares, cada um com um pátio no térreo para o banho de sol. São ao todo 24 alas, onde fi cam as celas, distribuídas nos dois andares dos quatro blocos. O tamanho das celas e o dos pátios é diferente. Para se chegar às alas é preciso subir rampas cercadas por grades. Há celas que abrigam dois presos e outras que abrigam teoricamente sete, mas na realidade o dobro. Estas se diferenciam nas alas que são tidas como as “melhores” ou as “piores” o que é entendido em termos de disciplina: as mais disciplinadas e as menos disciplinadas e também menos limpas. Nota-se que as primeiras são mais limpas, iluminadas e arejadas, ao contrário das outras. A Administração distribui os detentos nas alas de acordo com o comportamento. Assim, formam-se alas tidas como mais “tranqüilas” e outras, “problemáticas”. As mais disciplinadas têm prioridade no recebimento de benefícios, como trabalhar, ser pastinha (representante da ala que se comunica com o Chefe de Pátio), etc.

É importante ressaltar que às/aos Agentes que atuam nos pátios e nas celas é proibido portarem armas de fogo, estas/es utilizam somente porrete. Quando necessitam de apoio armado solicitam pelo rádio. Em cada bloco há um Chefe de Pátio responsável pela segurança e organização da área, possui um rádio para se comunicar com outros setores, são eles que recebem os pedidos dos detentos. O chefe de pátio é o elo de comunicação do interno com a Instituição Prisional.

2) Núcleo de Custódia Feminino de Brasília (Comeia/ NCFB)

O Núcleo de Custódia Feminino de Brasília se localiza a cerca de 40 quilômetros da rodoviária do Plano Piloto, próximo à cidade satélite do Gama, isolado de Brasília. Abriga aproximadamente 360 detentas e tem 42 agentes penitenciárias, sendo que 20% são do sexo masculino. Toda a sua estrutura localiza-se em uma área retangular. Há partes cercadas por muros de concreto com arame farpado e outras apenas por cercas de arame farpado. Os prédios são distantes entre si, bem espalhados por todo o espaço existente.

Obsevou-se que logo na entrada, há uma pequena guarita, onde trabalham, em geral, dois Agentes Penitenciários homens que identifi cam e controlam quem entra e quem sai do presídio. Todos os visitantes devem deixar seus documentos, têm seus nomes anotados em ordem de chegada em uma lista sempre disponível em cima de uma mesa.

São quatro blocos, um para a Administração, contíguo ao prédio do regime semi-aberto. Um localizado na entrada principal, onde funciona a ala de tratamento psiquiátrico com aproximadamente 70 internos, todos os homens. Esta unidade de

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tratamento psiquiátrico está isolada dos blocos do presídio feminino, funciona à parte das outras unidades da Comeia. Este prédio destinado à ala psiquiátrica abriga os reclusos todos os homens do DF que estão sujeitos à medida de segurança, porque são portadores de Transtorno Mental. Neste prédio atuam três Agentes homens. É importante ressaltar que as mulheres em tratamento psiquiátrico convivem com as demais internas, não há alas especiais para estas. Além do prédio que abriga os presos psiquiátricos, os demais blocos abrigam as presas, sendo que na parte térrea localiza-se a administração e as ofi cinas de trabalho para as presas, uma minúscula biblioteca.

No presídio feminino encontramos o Núcleo de Apoio Materno Infantil- NUAM, que recebe as mulheres que entraram grávidas ou que engravidaram por meio das visitas íntimas. No último prédio há três andares, onde se localiza a sala de revista das visitas de visitas, com detector de metais e espelho.

Há o pátio, com uma quadra de vôlei seguida de uma área livre, espaços para os momentos de lazer. Visitamos também a capela onde as atividades religiosas católicas realizadas e as demais são realizadas no pátio ao ar livre.

Nos andares superiores h localizam-se as celas onde cabem cerca de 14 internas. Há também uma cela especial onde fi cam as internas que têm bebês com menos de seis meses de idade. Há também uma cela especial para as internas mais idosas e doentes.

Foram-se observados, além das dependências internas do presídio feminino, os locais-ofi cinas de atividades: salão de beleza, salas de aula, sala de confecção de artesanatos (bijuterias, arranjos, bordados, crochês, etc).

A função básica das agentes é de exercer o controle sobre as detentas que circulam sistematicamente pelo interior das alas da prisão, observando a movimentação, com o intuito de evitar brigas, discussões, solicitações desnecessárias, pedidos excessivos, por exemplo, para irem ao serviço médico. “A prática de uma espécie de “chantagem” de controle institucionalizada, que se caracteriza pelo considerado “mau comportamento” equivale a perda da visita. O medo de perder a visita é a maior preocupação das internas, porque esta representa o elo com o mundo externo. Este contato contribui para a ordem e segurança no Presídio feminino na medida em que, acende nelas a vontade de saírem da cadeia e as deixam mais calmas embora deprimidas em razão da saudade dos fi lhos, companheiros, parentes etc. mas é ao mesmo tempo, uma estratégia de atuação das agentes femininas. As detentas internalizam esse controle externo, transformando-o em autocontrole em suas práticas que vão se modifi cando com a limitação e a repetição de atos e comportamentos.

No que tange às relações homossexuais, presentes em todas as prisões, nem na Comeia nem na PAPUDAS, estas são aceitas com a possibilidade de uso do parlatório, isto é o local onde os/as detentos/as realizam a visita íntima. Mesmo sabendo que as relações homossexuais ocorrem até mesmo entre as internas e os internos de ambas as Penitenciárias, sobre isso há, por parte do/as agente, um “desconhecimento”.

Em Goiás, foram analisadas as instituições que compreendem o complexo penitenciário da Agência Prisional-Goiana, localizado na BR 153 km 611, na Área Industrial em Aparecida de Goiânia que compreende: a Casa de Prisão Provisória (CPP-subdivida em quatro blocos), a Penitenciária Odenir Guimarães (POG, presídio masculino), o Centro de Inserção Consuelo Nasser (presídio feminino), o Núcleo de Custódia (presídio de segurança máxima), e a Colônia Agro-Industrial é a unidade

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de regime semi-aberto em Goiás. No conjunto há, aproximadamente, 7.414 presos recolhidos, e são 596 agentes prisionais, destes 68 são mulheres. Vale destacar dois aspectos: primeiro, há uma queixa generalizada em relação ao número reduzido de agentes penitenciários em todas as instituições penitenciárias estudadas; segundo, há presença dos/as agentes em relação ao número de presos é completamente desproporcional de um lugar para outro. Enquanto que na PAPUDA, tem-se a relação de um agente para 25 presos, na Comeia a relação é de um para oito; em Goiás, no conjunto tem-se um agente por 12 detentos.

3) Unidades Prisionais visitadas em Goiânia-GO

O complexo penitenciário da Agência Prisional Goiana, localizado na Área Industrial em Aparecida de Goiânia compreende: a Casa de Prisão Provisória (CPP – subdividida em quatro blocos), fi ca a Penitenciária Odenir Guimarães (POG, presídio masculino), o Centro de Inserção Consuelo Nasser (presídio feminino), o Núcleo de Custódia (presídio de segurança máxima) e a Colônia Agro-Industrial, sendo apenas este de regime semi-aberto, os demais, em regime fechado. Há outras unidades da Agência em Goiânia, Luziânia e outras cidades menores em Goiás.

3.1. A Penitenciária Odenir Guimarães (POG) é a unidade masculina de regime fechado. Na entrada do complexo fi cam os Policiais Militares, responsáveis pela revista de quem entra e saí do presídio, assim como efetuam a revista dos internos que entram ou saem do presídio. Dois Agentes Prisionais controlam a entrada e a identifi cação de veículos e de visitantes. A infra-estrutura do prédio está muito deteriorada, é da década de 60. Um dos Agentes entrevistados afi rmou que o que mais despertou sua atenção no primeiro dia de trabalho foram as condições precárias da estrutura física em que se encontra o complexo prisional. Tal situação reforça a sensação de impotência dos Agentes, de instabilidade e de imprevisibilidade, “onde tudo pode vir a acontecer”. Eles afi rmaram inúmeras vezes acreditar que basta “os presos quererem pra cadeia virar”. Sentem-se fragilizados diante da defi ciência da estrutura física do presídio e expostos porque esse fator reforça no imaginário o poder do preso em detrimento do poder da/o Agente.. Essa representação pode resultar em uma assimetria de poder real entre interno e Agente a partir do momento que ambos orientam sua conduta por essa percepção. Há um clima de insegurança e tensão que a qualquer momento ameaça à estabilidade na POG.

3.2. Núcleo de Custódia é a unidade de Segurança Máxima em Goiás, adjunto ao prédio da Administração Central da Agência Prisional. O acesso à unidade de Segurança Máxima apenas é possível através da sala do Diretor desta unidade. Nesta sala, há uma porta de ferro ou chumbo, na qual se tem acesso a um corredor, onde há outra porta de ferro ou chumbo maior e mais pesada que a primeira. Nesta porta, permanece um Agente Prisional que identifi ca aqueles que são autorizados a adentrar ao presídio.A porta abre e fecha automaticamente por um sistema acionado por esse Agente.

Esta unidade localiza-se em um prédio novo, construído para ser um hospital de custódia no complexo prisional. Por ser o prédio em melhores condições de infra-estrutura é onde funciona o Núcleo de Custódia. Está rodeado por muros com cerca

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de nove metros de altura e três de profundidade. Há cerca de dois Agentes Prisionais que atuam como plantonistas. Estes recebem um treinamento e curso de formação diferenciado dos que atuam em outras unidades.

Abriga internos transferidos de várias unidades da Agência, identifi cados com perfi l de liderança negativa, com a fi nalidade de desfazer o elo e a infl uência diante da população carcerária. Há também os “mega-trafi cantes”, os internos acusados de tentarem ou lograrem êxito em fugas e também aqueles que cumprem punição disciplinar. São classifi cados como ameaça à normalidade de segurança do sistema, identifi cados tanto quanto ofensivos ao sistema prisional quanto ao restante da população carcerária. O reeducando é constantemente analisado ao cessar sua punição disciplinar ou seu perfi l de liderança, ele é reintegrado à unidade de origem.

3.3. A Colônia Agro-Industrial é a unidade de regime semi-aberto. Os presos diferenciam-se em: 1) aqueles que executam trabalho externo; b) aqueles que trabalham dentro da própria unidade da Colônia Agro-Industrial; c) aqueles que não trabalham e que vivem sob condições de regime fechado, apenas têm o direito de cinco saídas ao ano para visitar a família por sete dias; d) há também internos que estão sob a condição do “seguro”, são isolados dos demais por problemas de convívio; por fi m, e) os reeducandos que cumprem castigo, com direito a apenas duas horas de banho de sol.

3.4. Centro de Inserção Social Consuelo Nasser (CIS). Presídio feminino de regime fechado localiza-se em frente ao presídio masculino POG. O CIS abriga 65 reeducandas em regime fechado. Há muros de 5 metros de altura e duas guaritas inoperantes em razão do reduzido número de Agentes. Existe apenas um bloco no centro, térreo, mal conservado e relativamente pequeno, onde fi ca a secretaria, as celas e a cozinha. Atrás do bloco há uma pequena plantação de hortaliças, dois conjuntos de mesas e bancos de concreto. As detentas circulam pelos pátios e são inexpressivas as atividades de re-educação realizadas no presídio feminino.

3.5. A Casa de Prisão Provisória (CPP). O acesso dá-se via uma guarita da Polícia Militar. Esta é ampla, há diversas salas para realizar as revistas no dia de visitas e um detector de metais. Ao passar pela guarita, tem-se acesso ao prédio administrativo da CPP, onde além das salas do serviço burocrático, localiza-se também o setor de atendimento ao interno: salas de atendimento médico, odontológico, jurídico, psicológico e de assistência social.

Foi com base nesse conjunto de instituições prisionais que se estabeleceu a base empírica de nosso trabalho, tanto em relação à coleta das informações etnográfi cas, assim como a realização das entrevistas com os/as agentes, e com alguns membros responsáveis pela administração das instituições prisonais, além dos grupos focais realizados com os/as detentos/as.

CARACTERIZAÇÃO DO PERFIL SÓCIO-DEMOGRÁFICO DOS/AS AGENTES ENTREVISTADOS/AS

De modo geral pode-se traçar um “perfi l” sócio demográfi co dos/as agentes penitenciários, sem esquecer todos os riscos que isto implica. O Distrito Federal

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continua sendo um espaço da “fantasia corporifi cada” por um número expressivo de migrantes em busca de mobilidades social (Nunes, 2004). Grande parte das famílias das/os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal vieram de outros Estados da Federação, sobretudo da região Nordeste. Há também um grupo signifi cativo de Agentes entrevistadas/os que vieram à Brasília para realizar o concurso público com vistas a ingressar na carreira policial, como agente penitenciário. Muitos foram incentivados pelos seus familiares. No conjunto foram unânimes em afi rmar que a profi ssão os atraia pelo salário oferecido, pela estabilidade que ainda representa um emprego público. No DF, a maioria concentra-se na faixa etária de 30 a 45 anos; 59% dos agentes entrevistados têm escolaridade de nível superior e 68% são casados. Vale esclarecer que, atualmente, o nível de formação exigido para a carreira de Agente Penitenciário no DF é o curso superior completo. Mais de um terço declarou-se católico.

Entre a formação dos Agentes Penitenciários, o curso de Direito aparece em primeiro lugar. Os motivos para a escolha desse curso mereceriam um estudo à parte, mas com base nos relatos, realizar o curso de direito é relativamente fácil, depois, ingressar na carreira é difícil, principalmente para aqueles que não têm origem familiar, tradicionalmente, envolvida com a profi ssão. Consideram como a maior difi culdade é de ser aprovado pela Ordem dos Advogados do Brasil-OAB. Em contraponto, o curso de direito oferece maiores possibilidades para a realização de concursos públicos6. Outra característica a destacar diz respeito à experiência anterior ao ingresso na carreira. Os Agentes mais antigos e ingressados antes da exigência de nível superior completo, no momento da realização do concurso, trazem em sua experiência profi ssional anterior, passagem(ns) pelo exército e/ou pela polícia militar. A área militar e de segurança foram praticamente o único campo de atuação desses Agentes ao longo de suas vidas, constituindo-se como um continuum, como uma trajetória linear iniciada com o serviço no exército.

Já a experiência profi ssional daqueles agentes mais jovens que ingressaram nos últimos anos, trazem experiências profi ssionais efêmeras e com pouca perspectiva de futuro. O concurso público e ingresso na carreira de Agente Penitenciário representaram a tentativa de sair de uma trajetória labiríntica e incerta em busca de estabilidade no emprego e de garantia de um salário condizente com os altos custos de vida na capital federal.

Tais situações refl etem-se no quadro relativo ao tempo na carreira e a experiência como Agente Penitenciário e demonstra a diversidade geracional existente entre os Agentes no Distrito Federal: há duas divisões explícitas: um terço está na carreira no intervalo de 1 a 5 anos, enquanto um terço está na carreira há mais de 15 anos, o que caracteriza a presença de duas gerações bem distintas.

Em relação as agentes femininas entrevistadas nas unidades Prisionais da Papuda e Comeia, no DF, já haviam trabalhado em outras profi ssões e a opção pela carreira está também relacionada à perspectiva concreta de estabilidade no emprego e de melhores salários (“é um concurso que paga bem”). Ganhar um bom salário para elas, está associado aos projetos familiares como o de garantir uma boa formação para os fi lhos, ter condições de “pagar uma escola particular”. Quanto às características

6 Vale registrar, que no DF, existem mais de dez cursos de direitos em instituições privadas, sendo apenas um na universidade pública. Estima-se que a cada ano sejam formados mais de 1500 bacharéis em direito, e o exame de ingresso na OAB/DF não aprovados um percentual superior a 20%.

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sócias demográfi cas: 70% encontram-se na faixa etária entre 30 e 39 anos. Em 60% são mulheres casadas e com fi lhos. Entre as entrevistadas, a maioria das Agentes tem nível superior completo. Com escolaridade secundária encontram-se aquelas que trabalham a mais tempo na instituição, entre as quais, uma Agente que ingressou em 1977 na carreira e que à época da entrevista estava com 48 anos de idade e prestes a aposentar-se.

Vale destacar que a exigência do nível superior para o exercício da profi ssão é considerada um aspecto que ainda causa surpresa para muitas pessoas, inclusive para os familiares das Agentes, que se perguntam pela real necessidade do título acadêmico para exercer uma função defi nida como “cuidar de presa/o” (leia-se cuidar de alguém que não preta, do abjeto).

A religião é vista como um aspecto importante na vida pessoal e profi ssional, independentemente de ser católica, pertencente ou outra confi ssão religiosa, pois 70% declararam-se católicas ou evangélicas.

Poucas declararam ter experiência anterior, ao ingresso na carreira de agente, em alguma outra instituição militar; ao contrário dos agentes masculinos. Muitas realizaram o curso de direito e/ou de administração, um terço tem formação na área de humanidades. As equipes de trabalho são formadas por Agentes com formações diversas e diversidade profi ssional parece representar um enriquecimento da equipe como um todo, mas também certo descontentamento e frustração pessoal por ver que os estudos realizados, servem apenas para a “função de abrir cadeado, fechar cadeado e fazer escolta de interno”.

Para a uma parte das agentes, sonhavam com outra profi ssão, de ser professora, por exemplo; no entanto, a experiência no campo da Educação acabou sendo frustrada, foi então que optaram por uma carreira no setor público, onde ainda há os melhores salários, “sem olhar muito para o que iriam fazer”, como relatou uma Agente graduada em Educação Física, ex-funcionária do Departamento da polícia federal e há seis anos na carreira de Agente Penitenciária. Ao contrário dos agentes masculinos, não sofreram forte infl uencia familiar na escolha para se tornarem agentes.

No caso de Goiás existem duas modalidades de Agentes Prisionais: os que ingressam mediante concurso público para o qual se exige o segundo grau completo, e, os denominados “comissionados”, que ingressam mediante indicação de autoridades e gozam de uma experiência mais longa no trabalho como Agentes Prisionais. Possuem nível de escolaridade, no geral, inferior ao segundo grau completo, são mais velhos, estão na faixa de 40 e mais anos e são casados. Ao contrário dos/as concursados/as que são mais jovens (40%), na faixa de 25 a 29 anos. Estes, em torno de 60% são solteiros e 70% tem 2º. Grau completo. O fato de serem jovens indica que para muitas/os esta atividade representa seu primeiro emprego com carteira assinada. Em relação aos agentes masculinos, aproximadamente 50% apresenta alguma experiência profi ssional anterior. A maioria explicitou ter alguma prática religiosa.

Entre os Agentes Prisionais jovens ingressados, via concurso público, observa-se uma trajetória semelhante à dos Agentes Penitenciários do DF, em relação a uma trajetória de instabilidade do vínculo empregatício, com sucessivas tentativas anteriores de ingresso no mercado de trabalho, e com difi culdades de ordem fi nanceira. Muito/as foram infl uenciados/as por parentes e familiares a ingressar na carreira, uma vez que 35% dos/as agentes entrevistados em Goiás têm parentes na área de segurança

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pública ou militar. Além da infl uencia familiar houve também a atração pelo salário que, embora inferior ao valor dos/as agentes do DF é considerado razoável para a região.

Paradoxalmente, os Agentes que ingressaram através do concurso público, são unânimes quanto à relação estabelecida com a profi ssão e com tempo que pretendem dedicar à mesma. Ou seja, pelos múltiplos riscos que a profi ssão oferece, insegurança devido às condições precárias de trabalho, a superlotação das unidades Prisionais, os salários que são baixos, todos estes elementos fazem com que a profi ssão seja vista como um trabalho “temporário” ou como mais um dos tantos “bicos” realizados até então, ainda que com carteira assinada e com estabilidade profi ssional.

Portanto, além de trampolim, a profi ssão é vista como uma garantia de “estabilidade” econômica (não para sempre) que possibilita organizar o tempo livre para estudar e preparar-se para um novo concurso, sobretudo para aqueles/as que já concluíram o ensino superior.

Em relação as agentes femininas que ingressaram por concurso, 45% das entrevistadas situam-se na faixa etária de 25 a 29 anos, 57% são casadas e 29% tem curso superior completo, e 86% declarou ter uma religião; 43% das agentes femininas pertencem a algum tipo de associação profi ssional, recreativa ou comunitária. Entre as agentes mulheres, 45% informaram que tem algum tipo de experiência profi ssional anterior, embora não relacionada com a área de segurança pública. Também, um terço foi infl uenciada por familiares para ingressar na profi ssão. Em relação ao tempo de carreira as agentes femininas de Goiás apresentam dois grupos distintos: um terço está na faixa de 1 a 5 anos enquanto que o outro está na faixa de 10 a 15 anos, o que indica a existência de duas gerações bem explícitas. Além das difi culdades já citadas, as Agentes Prisionais percebem uma ruptura em seus estilos de vida e que alteraram profundamente suas relações sociais.

A maioria dos/as agentes, aparenta ter uma descendência afro-brasileira, embora essa questão não fosse diretamente mencionada pelos/as mesmas. Percebeu-se certo constrangimento em relação à auto-nominação da cor/etnia. Em relação aos detentos, a maioria daqueles e daquelas que lotam os presídios são descendentes de afro-brasileiros.

CARREIRAS E TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DOS/AS AGENTES PENITENCIÁRIOS/AS NO DF E GOIÁS

O estudo das carreiras e trajetórias profi ssionais dos agentes penitenciários diz respeito a uma tripla dimensão, formal, real e simbólica da construção de uma carreira profi ssional. A carreira é o percurso prescrito para cada profi ssão, que se manifesta na regulação do ingresso, estabelecendo os critérios de seleção; de formação, estabelecendo a duração do curso de formação específi co e os conhecimentos técnicos relativos à profi ssão, e aí por diante. Destacamos, não entanto, que no marco destas prescrições não há lugar para os signifi cados simbólicos que podem afetar o status social da carreira, assim como a própria condição identitária dos/as agentes.

A trajetória profi ssional é o percurso realmente realizado na construção de uma identidade profi ssional, abarcando experiências “antes” e “durante” a profi ssão, especialmente do mundo do trabalho que aparecem entremeadas com diversas circunstancias da vida da pessoa. De modo que a carreira pode ser considerada

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uma “trilha” e a trajetória uma “construção quotidiana”, constituída pelas inúmeras experiências dos/as trabalhadores/as, tais como os motivos que levaram à escolha profi ssional, a experiência do preconceito com relação à profi ssão, a infl uência da adesão a uma determinada moral religiosa nas interações sociais dentro do presídio, as vivencias relativas ao primeiro dia de trabalho, as demandas do trabalho real sobre o pano de fundo dos conhecimentos técnicos e saberes em geral, adquiridos durante o curso de formação, as relações e interações com as pessoas detidas, as características do estilo de gestão prisional, entre outros. Isto é, o universo material e simbólico da instituição prisional.

A seguir, analisamos aspectos e signifi cados considerados centrais das duas dimensões mencionadas da profi ssão de agente penitenciário, a carreira e sua trajetória profi ssional.

Carreiras dos Agentes Penitenciários/ Prisionais do Distrito Federal e de Goiás

As/Os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal são admitidos na profi ssão mediante a realização de concurso público, com grau universitário, para ingressar na policia civil, passando a pertencer a esta corporação na sua condição de agentes penitenciários. Em Goiás existem dois tipos de Agentes Prisionais, aqueles que ingressam por concurso público cuja exigência educacional é de possuir segundo grau completo, embora um número signifi cativo possua formação universitária; o segundo grupo é constituído pelos que ingressam mediante indicação de autoridades, que são denominados “comissionados”, para os quais não há exigência de algum nível específi co de escolaridade, embora, informalmente se lhes exige “experiência” de trabalho no sistema prisional.

Estes últimos são mais antigos e numerosos (60%) e possuem mais experiência, um fator de suma importância na legitimação da carreira de um Agente. No entanto, possuem baixo nível de escolaridade se comparados as/aos Agentes concursadas/os. As/Os Agentes comissionadas/os também não possuem estabilidade profi ssional, pois são passíveis de serem demitidos tão logo acabe seu contrato. Em geral, esse contrato tem um período de dois anos, renovável por mais dois.

Existem diferenças signifi cativas entre as exigências de escolaridade entre os agentes no DF e Goiás, que se manifestam em níveis salariais diferenciados. A remuneração do Agente brasiliense está em torno de R$ 4.223,73; enquanto a remuneração do Agente goiano é em média de R$ 950,00.

A diferença salarial entre os agentes penitenciários do DF e Goiás, soma-se à jornada de trabalho. Nos Presídios de Goiás as visitas dos familiares se realizam nos fi nais de semana e nos feriados nacionais, nesse sentido os/as Agentes também trabalham nos feriados, no entanto não recebem nenhuma gratifi cação por isso. No Distrito Federal as visitas ocorrem em dias de semana determinados (quarta e quinta), logo muitas/os Agentes não trabalham nos fi nais de semana.

As/Os Agentes comissionadas/os também não se encontram em uma situação estável, podendo ser demitidas/os tão logo acabe seu contrato, que no geral é para o período de dois anos. Até o momento das entrevistas só havia sido realizado um concurso público para Agentes Prisionais no Estado de Goiás. Nesse sentido, percebem-se entre as/os Agentes entrevistados no Distrito Federal e Goiás três diferenças

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básicas: a primeira está relacionada à diferença salarial, seguida da diferença de grau de escolaridade como um todo. Observamos, ainda, uma diferença no que diz respeito à idade das/os entrevistadas/os, principalmente entre os Agentes do sexo masculino.

As/Os Agentes Penitenciárias/os do DF possuem dois regimes de trabalho, o regime de plantão e o regime de expediente. Os que estão no plantão trabalham 24 (vinte e quatro) horas, seguidos de 3 (três) dias de folga. As/Os que estão no expediente trabalham 8 (oito) horas diárias. Além disso, os plantonistas possuem muito mais contato com as/os presas/os, se comparados as/aos Agentes do expediente. Estes geralmente executam trabalhos burocráticos.

Após a aprovação em concurso público no DF, a/o candidata/o realiza um curso de formação na Academia de Polícia, como policial com especialização em segurança penitenciária. De acordo com as informações da Academia de Polícia, o Agente Penitenciário tem as seguintes atribuições: “Vigiar os detentos e reclusos, observando e fi scalizando o seu comportamento para prevenir quaisquer alterações da ordem interna e impedir eventuais fugas. Efetuar rondas periódicas de acordo com as escalas preestabelecidas. Conduzir e escoltar detentos e reclusos quando encaminhados à Justiça, ao Instituto Médico Legal, aos Hospitais, às Delegacias e a outros estabelecimentos. Proceder à contagem dos Internos em suas celas, realizar revistas aos visitantes e internos. Executar outras tarefas correlatas”.

O processo de formação do/a agente penitenciário responde a informações e aspectos técnicos, estes, relativos aos procedimentos específi cos do desempenho das tarefas e atividades. Nesse sentido as disciplinas ministradas no curso de formação de Agente Policial no Distrito Federal são: de defesa pessoal, aulas sobre drogas, tiro com arma de fogo, direção defensiva, entre outros. O processo educativo, isto é, aquele destinado ao qualifi car os agentes, é mais escasso e está concentrado em oferecer a disciplina dos direitos humanos. Resta indagar em que medida o ensino dos direitos humanos responde também a uma necessidade internamente percebida pela categoria ou trata-se de uma exigência formal dos novos currículos de formação destes agentes?

As/Os Agentes Penitenciárias/os são instruídos a tratar os presos com urbanidade e respeito, evitando ao máximo qualquer tipo de envolvimento emocional, ou de estabelecer qualquer tipo de vínculo. Existe uma grande diferença entre o aprendizado teórico na academia e a atividade prática na Penitenciária, de forma que as/os Agentes aprendem os detalhes do trabalho no dia a dia, observando as ações dos mais experientes.

O curso de formação para Agente Penitenciário de acordo com as/os entrevistadas/os do DF e Goiás foi avaliado como sendo muito curto. Em especial no caso de Goiás, há relatos que informam que o curso foi de apenas um mês, contribuindo muito pouco para as atividades práticas. Com o agravante de que os agentes de Goiás ingressam na carreira com escolaridade média. Além disso, poucos professores mantinham contato atualizado com o Sistema Prisional, de maneira que não acompanhavam as mudanças inerentes a esse tipo de instituição, especialmente em Goiás. Um elemento mencionado pelo conjunto dos/as agentes, diz respeito a distancia entre o ensino teórico e o trabalho cotidiano no presídio, uma vez que o trabalho prático é aprendido mediante a observação das/os colegas de profi ssão mais antigas/os e de seus conselhos e orientações.

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O curso de formação, na visão de alguns/as Agentes, poderia melhorar no sentido de atualizar-se para poder acompanhar as transformações que ocorrem no Sistema Penitenciário, assim como com a mudança e complexidade relativa aos delitos e a criminalidade. A penitenciária está sempre em mutação, na medida em que há uma condição de imprevisibilidade relativa ao comportamento humano e, portanto sempre há novas situações a serem enfrentadas, por um lado, e por outro, mesmo que houvesse a possibilidade de um processo de formação continuada, ainda assim não seria sufi ciente.

O fato de a/o aprovada/o no concurso de Agente Penitenciária/o no DF entrar para a Academia de Polícia como policial civil, para depois especializar-se em segurança penitenciária acaba defi nindo características mais militares, como a disciplina, a ordem, a hierarquia e a segurança, no trabalho do Agente brasiliense, ou seja, enquanto os/as brasilienses possuem treinamento policial, os Agentes Prisionais goianos possuem pouco treinamento policial e se reconhecem como funcionários públicos e educadores. Essa diferença de procedimento é observada na duração dos cursos de formação de cada sistema: enquanto os Agentes brasilienses passam de 3 a 6 meses na Academia de Polícia, os Agentes goianos tiveram de 10 a 15 dias de aulas no curso formação.

Portanto, pode observar-se que existem duas modalidades de carreira de agente penitenciário: o policial civil na condição de agente penitenciário no DF e o civil na condição de agente prisional em Goiás. Em relação aos primeiros, destaca-se o reconhecimento do status profi ssional, o que lhe garante um salário maior; segundo, como estes agentes possuem nível de escolaridade superior, isso lhes garante um exercício legítimo da autoridade. Isto signifi ca que são considerados com status profi ssional mais reconhecido. Em quanto que os agentes de Goiás sofrem de certa ambigüidade profi ssional uma vez que sem ser policiais, isto é, sem pertencer a uma corporação policial cujo ethos está centrado em valores tais como: hierarquia, disciplina e respeito, aqueles agentes no exercício de suas funções, devem, por conta das exigências do trabalho, agir como se fossem policias, embora, na prática eles/as careçam dessa socialização, o que os leva a agir segundo suas próprias convicções e valores, cujas conseqüências podem desencadear maior espaço de discricionariedade.

Trajetórias Profi ssionais dos Agentes Penitenciários/ Prisionais doDistrito Federal e de Goiás

As trajetórias profi ssionais dos agentes penitenciários podem ser organizadas em função de algumas zonas de sentido produzidas durante as entrevistas em profundidade com esses/as profi ssionais, e que mencionamos da seguinte maneira: a) Contradições simbólicas do emprego público: cidadania e preconceito; b) Discricionariedade: a insidiosa insufi ciência da teoria em face das exigências práticas; c) Duas gerações de agentes: desprezo e dignidade no tratamento da pessoa presa. a) Contradições simbólicas do emprego público: cidadania e preconceito

O emprego formal é o modo característico de acesso à cidadania social nas modernas sociedades capitalistas. Esse status de cidadão signifi ca contar com a proteção de sistemas de seguridade social em face, por exemplo, dos riscos comuns da vida (doenças, acidentes, velhice, etc.). O trabalho é atividade dirigida a transformar

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o mundo e a si mesmo. Essa atividade tem conteúdo (tarefas, atividades, processos) objeto, instrumentos, tempo, sendo realizada a partir da divisão técnica, sexual e social, tendo diferentes signifi cados para quem a realiza. Assim, o trabalho humano se expressão nas dimensões objetiva e subjetiva (Soria Batista, 2002).

O motivo a orientar a escolha profi ssional no caso dos agentes penitenciários, (originários pelo comum de famílias de classe média e classe média baixa: funcionários públicos, pequenos comerciantes, trabalhadores rurais ou da iniciativa privada, entre outros), é o emprego, suas condições de segurança (estabilidade, aposentadoria, etc.). Nesse sentido, os/as agentes não podem ser considerados fora da lógica que guia a escolha profi ssional do restante dos servidores públicos brasileiros. Contudo, no caso dos/as agentes, identifi camos a experiência de uma tensão entre essa motivação e a estigmatização de que é alvo o trabalho propriamente dito. Nesse caso, o status de cidadão e o sentimento de dignidade que esse confere vêem-se “ameaçados” pelas exigências reais do trabalho, relativas ao contexto prisional, que são socialmente desvalorizadas. No raro, a sua escolha profi ssional lhes exigirá lidar também com a preocupação e o medo por parte dos familiares e amigos.

A falta de reconhecimento social do trabalho nos presídios infl uencia na produção de discursos justifi cadores com relação à escolha realizada, tais como aqueles que afi rmam ser a profi ssão de agente penitenciário uma etapa transitória na vida profi ssional, uma passagem de estabilidade (emprego) e desconforto (trabalho) para um emprego público caracterizado também pelo status positivo do trabalho que lhes será exigido, isto é, pelo reconhecimento social.

Em verdade, a paz no presídio que poderia ser considerada como resultado de um trabalho bem feito, não raro desperta suspeita com relação aos métodos utilizados para conseguir esse objetivo; já a “guerra interna” e seus desdobramentos para fora do mundo carcerário, são, do ponto de vista da sociedade, indicativo da incompetência dos agentes. De modo que no interior da categoria como defesa na luta contra a estigmatização e a vergonha atribuída de maneira impiedosa pela coletividade.

Em sínteses, a condição de cidadão relativa ao vínculo de emprego formal é afetada pela falta de reconhecimento social do ponto de vista da sua condição profi ssional. É seguramente, o primeiro dia de trabalho que irá revelar para este/a profi ssional, de maneira mais evidente, essa tensão que o perseguira durante toda sua trajetória profi ssional: os aspectos positivos do emprego, manifestos na proteção e no status de cidadão do ponto de vista sócio – econômico, e os aspectos negativos do trabalho, que socialmente não é valorizado. Este temor inicial é relativo às representações sociais negativas sobre a prisão, mas o trabalho na instituição parece mudar essa experiência inicial negativa.

No entanto, na luta pela construção de uma identidade positiva a pesar da atribuição identitária negativa da sociedade7, os/as agentes, enquanto categoria produz seus próprios motivos para se orgulharem enquanto trabalhadores/as, por exemplo, uma trajetória sem máculas do ponto de vista individual, caracterizada pela ausência de suspeições ou acusações vindas da sociedade a qual servem. Para muitos/as, o dia exato da aposentadoria é aguardado com ansiedade, pois uma trajetória socialmente

7 A crise de identidade profi ssional, produto da estigmatização social se manifesta em diversas modalidades de sofrimento psicológico e moral. (Soria Batista, 1999).

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inquestionável pode vir a ser destruída, em um segundo, por motivo de alguma crise no presídio, comprometendo-os /as em alguma ação que possa ser posteriormente questionada pela sociedade.

b) Discricionariedade: a insidiosa insufi ciência da teoria em facedas exigências práticas do trabalho

Em geral, as narrativas sobre o primeiro dia de trabalho das/os Agentes na prisão revelam as representações sociais negativas sobre a situação de encarceramento. Ter que trabalhar em um espaço social como a prisão gera expectativas e temores. Mas medo de quê? Quem está por trás das grades? A sociedade bane as/os transgressoras/es do convívio social e os encarcera, quase sempre, em algum lugar distante, escondido. O coletivo social precisa acreditar que as/os prisioneiras/os se diferenciam de maneira substancial das/os “cidadãs/ãos normais”, que o estigma (simbólico) de presidiária/o se desdobra em algum sinal que torna visível a suposta “anormalidade”. Isso gera expectativas e temores tanto nas/os Agentes que estão ingressando quanto naqueles que visitam, por diversos motivos, as unidades penitenciárias. Talvez a impressão mais marcante seja a perturbadora “normalidade” dos/as que foram colocadas/os por trás das grades. Esta normalidade exige que a/o Agente se diferencie do/a detento/a, em função do linguajar utilizado, da vestimenta, do asseio pessoal, entre outros.

O ingresso no local de trabalho, a sucessão dos dias e as exigências concretas da realidade do trabalho no presídio acabarão revelando para estes/as trabalhadores/as em que medida as habilidades e competências adquiridas durante o curso de formação profi ssional resultam adequadas para a gestão quotidiana do trabalho. Os/as agentes do DF e Goiás são praticamente unânimes com relação à queixa da distancia existente entre a teoria discutida nas disciplinas que estruturam o curso de formação profi ssional e as exigências práticas do trabalho, apontando uma avaliação extremamente negativa em relação ao curso de formação apontando a quantidade insufi ciente de horas dedicadas à formação, a superfi cialidade dos conteúdos ministrados e a distância entre a teoria e a realidade do trabalho na prisão, a insufi ciência de equipamentos e de instrumentos de trabalho, e a ausência de apoio institucional do ponto de vista psicológico e do reconhecimento da complexidade da profi ssão.

A burocratização do trabalho de segurança, por exemplo, limita o espaço de autonomia do/a agente para tomar decisões sobre como proceder em face de determinadas circunstâncias, como em situações de fuga. Mas, o trabalho no presídio é caracterizado tanto pelas exigências da repetição mecânica quanto pelo novo. O “novo” é a dimensão comportamental dos/as detentos/as, os subterfúgios, armadilhas, ações, estratégias, o inesperado. Evidente que o trabalho de segurança no presídio se alimenta do saber e das experiências das gerações de agentes mais velhos, sobretudo no DF, mas, essa acumulação que permite o registro e a padronização de respostas em face de determinados fatos, será sempre insufi ciente na medida da existência da imprevisibilidade relativa do comportamento dos homens. De modo que a percepção sobre que o curso de formação não consegue encurtar a distancia entre a teoria e a prática, se alimenta desse espaço de imprevisibilidade. É a imprevisibilidade do comportamento humano que cria o espaço de discricionariedade para o/a agente. Não seria correto dizer simplesmente que estes/as funcionários/as públicos/as gozam de ampla discricionariedade, como se isso fosse uma espécie de privilegio. Ao contrário, é

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a imprevisibilidade do comportamento dos detentos que cria esse espaço que se traduz numa exigência de autonomia para o agente. Essa autonomia precisa da contenção de um parâmetro ético claro, para regular o uso da força que a situação pode demandar utilizar, sem que as ações dos agentes para colocar sob controle as pessoas presas, sob determinadas situações críticas, se desdobrem em violências desnecessárias.

A dimensão da autonomia no trabalho tem sido analisada de maneira muito positiva na literatura sobre os aspectos psico-sociais do trabalho nas organizações, na medida em que o/a trabalhador/a teria uma margem de liberdade para decidir e controlar seu próprio trabalho, diferente da situação clássica caracterizada pelo predomínio da dimensão prescritiva do trabalho que cerceia a liberdade do trabalhador. Contudo, no caso dos agentes, a discricionariedade se transforma numa exigência que cria confl itos na medida em que pode exigir tomar decisões mais ou menos pessoais e imediatas sobre como agir sob condições inesperadas. Os reclamos sobre a distancia que existe entre os conhecimentos e saberes ministrados no curso de formação e as necessidades reais do trabalho no presídio é, efetivamente o espaço criado pelo inesperado, chamado de discricionariedade, que lhe exige a escolha de procedimentos adequados. Isso indica a necessidade de contar com algum tipo de parâmetro tanto técnico quanto ético para agir.

Caso ele não manifeste capacidade de agir no enfrentamento do inesperado será cobrado duplamente: pela hierarquia da corporação e pela sociedade. A primeira o acusará de incompetência e de omissão no cumprimento de seu desempenho profi ssional; a sociedade o acusará de falta de iniciativa ou até alguns não hesitaram de chamá-lo de “covarde”.

Observa-se que há uma adesão à religiosidade signifi cativa entre os agentes. A adesão à religiosidade pode infl uenciar o trabalho realizado pelas/os Agentes na prisão? O espaço de autonomia/discricionariedade do agente precisa ser “auto-alimentado” por valores morais que possam servir de parâmetros em face das demandas inesperadas do trabalho com os internos.

A pesquisa indicou que, da perspectiva dos/as Agentes, as crenças religiosas têm infl uência na visão que se tem das/os internas/os e por essa via, nas interações sociais ao interior do presídio. Quando essa religiosidade está ausente ou não é experimentada de maneira mais profunda, prevalecem outras visões institucionais sobre as/os internas/os, em geral, infl uenciadas pelas exigências do tipo de trabalho que o Agente realiza junto ao interno e pelas experiências vividas nesse ambiente.

É evidente que os/as Agentes comungam com uma série de discursos sobre os/as internos/as. Esses discursos “produzem” as/os internas/os, sujeitando-as/os à determinadas defi nições. Existem os discursos institucionais sobre as/os detentos, que são compartilhados por um número signifi cativo de Agentes e outros discursos mais atrelados à moral oriunda da religiosidade de cada Agente.

Desse modo, do ponto de vista doa/as Agentes, o/a interna/o pode ser um/uma pecadora/r que precisa de arrependimento e compaixão ou alguém que “tem o destino dele”, precisando passar por essa situação. Para outras/os Agentes, a/o interna/o é alguém que tem uma “infl uência maligna” em sua vida. Entre outros, esses modos de compreender a situação de encarceramento acabam tendo impacto nas interações entre Agentes e internas/os no dia-a-dia, “conspirando” a favor ou contra a política institucional de reintegração da/o interna/o à sociedade.

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Evidentemente, as representações sobre os internos orientadas pela prática moral religiosa podem oferecer o cenário sobre o qual os agentes decidem sobre como agir em situações críticas ou inesperadas com relação os detentos. Em situações de enfrentamento ou de confl itos onde as ordens e os procedimentos conhecidos e as hierarquias estão difusas só resta o agente agir, e este o fará, seguramente, com base nos seus próprios parâmetros morais, sobretudo se a ética profi ssional (deontologia) está pulverizada.

Portanto a discricionariedade não diz respeito, exclusivamente, a condição de autonomia do agente como um elemento de sua mais plena liberdade e racionalidade. Na verdade, essa discricionariedade é um espaço vivenciado de maneira confl itiva pelo agente, não uma escolha individual mais uma imposição da própria lógica do trabalho que lhe exige ser e comportar-se como uma pessoa autônoma: sem omissões e sem excessos.

Até que ponto a adesão a práticas religiosas – mais ou menos fundamentalistas-, permitem o/a agente penitenciário/a agir efetivamente “sem omissões e sem excessos” isto é, profi ssionalmente e com humanidade? A partir das entrevistas realizadas observou-se que nem sempre as práticas religiosas garantem essa forma de agir. Ao contrário, encontramos relatos de uso da força, da violência e a tortura, justifi cados pela própria convicção moral internalizada. Um exemplo contundente é que um número signifi cativo dos agentes entrevistados mostra-se favorável à pena de morte.

c) Duas gerações de agentes: desprezo e dignidade no tratamentoda pessoa presa

O compromisso do Brasil ao assinar a convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes estabelecerá um antes e um depois na formação profi ssional dos agentes penitenciários, criando certa confl itualidade entre distintas gerações de agentes. Isso não signifi ca que o conjunto dos agentes mais antigos observe as pessoas presas com desprezo ou que a totalidade dos agentes mais novos preservem a dignidade das pessoas pressas. Contudo, permanece certa clivagem entre as gerações, o que aponta para a heterogeneidade da categoria nesse importante quesito que é o tratamento da pessoa que cumpre pena privativa da liberdade. Os/as agentes mais novos/as são unânimes ao destacar a importância outorgada ao tratamento da pessoa presa no curso de formação. A ênfase no conceito viril da valentia no dia a dia do tratamento com a pessoa presa deu lugar a ênfase no conceito civilizatório de urbanidade, como modo predominante de se relacionar com quem cometeu desvio comportamental.

A mudança comum no sistema penitenciário do DF e de Goiás é relativa ao tratamento que deve ser dispensado ao interno, no sentido do respeito aos direitos humanos. Esse elemento indica certa ruptura com relação ao passado, embora persistam certas continuidades que se manifestam em comportamentos tradicionais, nem sempre diretamente atribuíveis aos trabalhadores mais antigos.

Em Goiás os esforços pela humanização do presídio aparecem também no modo como são denominados as/os detentas/os do regime semi-aberto ou aberto, que recebem o nome de “reeducandos”.

Importa destacar, não entanto, que esse diferencial de formação, não necessariamente, será acompanhado pela mesma orientação no que diz respeito à

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gestão prisional. Até porque a administração do presídio pode vir a se caracterizar pela presença de diferentes estilos, característicos ao próprio administrador. Na situação de Goiás a orientação mais geral sobre a importância do respeito aos direitos humanos no presídio foi acompanhada pelo estabelecimento de uma perspectiva de gestão prisional baseada no objetivo da pacifi cação das relações e interações sociais entre os diferentes atores. Isso não signifi ca que essa perspectiva pacifi cadora seja um desdobramento apenas, da orientação humanizadora do presídio. Até porque se observou que são diversos os fatores que permitem compreender a adoção dessa estratégia de gestão. As diferencias se evidenciam para DF e para Goiás. No primeiro a orientação mais geral sobre o respeito ao detento foi acompanhada por um endurecimento das estratégias de controle dentro do presídio, em função de uma racionalidade material e de poder assegurada pelo pertencimento a uma corporação. Enquanto que em Goiás manteve-se a diretriz com relação a utilizar estratégias diversas e não apenas disciplinadoras, para garantir a paz dentro do presídio.

Essa gestão prisional diversifi cada acaba sendo observada de maneira diferente pelas pessoas presas. No caso do DF, a relação entre internos e agentes é baseada na desconfi ança, no disciplinamento e no distanciamento, mais do que isso, trata-se de um relacionamento entre “inimigos”, detentos e agentes. Isso signifi ca que o objetivo do disciplinamento se obtém sobre a base da iniciativa dos agentes do estado, pelo controle sistemático, o cumprimento rigoroso das rotinas, por um espaço físico mais ordenado e por uma vigilância constante e uma inteligência prisional a serviço da segurança.

No caso de Goiás, embora exista desconfi ança o distanciamento entre os agentes e os detentos, isso é menos evidente e o disciplinamento é trocado por acordos que se materializam em compensações materiais e simbólicas para ambos, agentes e detentos. Ou seja, a paz dentro do presídio resulta de uma serie de acordos entre os atores centrais destinados a evitar os episódios comuns, tais como fugas, mortes, brigas, etc, que se vem a tona e desacreditam a instituição prisional.

Um elemento reiteradamente apontado para o caso do DF é o “endurecimento” da política de segurança na unidade estudada. A pesquisa apontou uma ruptura na gestão prisional nos últimos anos da década de 90, que indica um antes e um depois nessa gestão.

Segundo depoimentos dos/as Agentes mais antigos, antes a unidade tinha praticamente os mesmos problemas que outros presídios do DF: demasiadas regalias para os internos, indisciplinas, organizações internas na forma de comandos. Quando uma nova gestão teve início, uma série de regalias teria sido eliminada, como as visitas os fi nais de semana, que agora acontecem durante a semana, a possibilidade de armar barracas nos pátios da unidade durante o período de visitas, onde seguramente aconteciam os encontros íntimos, a organização coletiva dos presos. Em Goiás a organização de comandos de alas é observada como um elemento que pode, embora de maneira contraditória, contribuir para a pacifi cação dentro do presídio. Em Brasília, essas organizações são apontadas como o germe da violência dentro do presídio, sendo sistematicamente combatidas.

Assim, o estudo apontou para a presença de dois tipos de políticas de segurança nas penitenciárias analisadas. O primeiro corresponde ao adotado na penitenciária masculina do DF e que decidimos denominar como: tipo de segurança baseada na

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iniciativa do Estado sem participação dos internos. O segundo, está presente na Agência Prisional de Goiás, denominado tipo de segurança baseada na iniciativa do Estado com participação dos internos.

d) O Locus do Trabalho: Divisão Tecnica de Trabalhoe Divisão Sexual do Trabalho

Um número não desprezível de Agentes experimenta mudanças nas suas vidas familiares depois que ingressam na profi ssão. A rotina de trabalho considerada estressante infl uencia o comportamento das/os Agentes. Há relatos de Agentes que afi rmam terem se tornado mais “brutos” ou “violentos” com a família, chegando por conta desses comportamentos à separação. Outros manifestam traços de paranóia, isto é, sentem-se constantemente ameaçados ou perseguidos, e por essa razão mudam as rotinas quotidianas, os lugares que freqüentam os amigos que cultuam. Sentimentos de ansiedade, insônia e depressão também foram apontados como características emocionais destas/es trabalhadoras/es.

Os aspectos indicados nos levaram a indagar sobre a natureza do trabalho dos/as agentes nos presídios, apontando dimensões tais como: a) a situação de trabalho instrumentalizada e a divisão técnica do trabalho; b) a natureza do trabalho de segurança e representações sociais sobre os internos e, c) a divisão sexual do trabalho nas unidades estudadas.

a) A Situação de trabalho instrumentalizada e a divisão técnica do trabalhoO/a agente é um/a executor. Ele/a não dispõem nem dos direitos nem dos

meios de decisão em relação as atividades que desenvolve e sobre os recursos que utiliza.Desta perspectiva ele/a está na posição idêntica de um/a policial ou de um/a trabalhador/a. A posição instrumental da profi ssão dos/as agentes penitenciários/as participa da razão instrumental que defi ne todo o aparelho do Estado: seus objetivos, funções, as orientações profi ssionais lhe são prescritas pelas dimensões do político. Um dos corolários desta instrumentalização é a ausência de vocação própria, por parte dos/as agentes penitenciários/as. Neste sentido pode-se destacar que em boa parte, os/as agentes, escolheram ingressar nesta profi ssão por razões negativas: condição de desemprego, instabilidade ou falta de emprego; as motivações positivas são inerentes à profi ssão: estabilidade profi ssional e condições salariais razoáveis, comparativamente a outras profi ssões, são as mais recorrentes. O que não implica que em boa parte dos/as entrevistados/as sente vergonha de desempenhar esta função, sobretudo quando afi rmam que não querem que seus fi lhos/as sigam a mesma função. Alguns escondem de seus fi lhos o que fazem, assim como sentem vergonha de se identifi carem como agentes penitenciários/as, pois consideram a profi ssão abjeta. Aqueles/as que se declaram ter vocação para esta profi ssão, sobre eles/as pesa uma suspeição. Outro traço da instrumentalização da profi ssão de agente se caracteriza pela indeterminação das funções (como é o caso dos policiais). As funções são estabelecidas a partir da indefi nição – da necessidade ou da disponibilidade, uma vez que sempre há défi cit do número de agentes necessários.

Indeterminadas as atividades estão sujeitas as modifi cações das regras que as governam: leis, códigos, regulamentos, etc. dependendo da hierarquia que dá as ordens e que defi ne os meios de sua execução. Isso signifi ca que dependem da política

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interna da direção da instituição. Ainda a indeterminação das funções se manifesta pela variedade das atividades que são desempenhadas pelos/as agentes. Um/a agente pode, em um mesmo mês desempenhar muitas funções, no interior da prisão desde exercer a guarda dos presos, supervisionar as celas, como até ser deslocado para os trabalhos administrativos ou mesmo ser transferido para supervisionar as ofi cinas ou para algum outro posto fi xo. Vale dizer que muitos acabam não passando bem de trabalhar diretamente ligado aos presos, sobretudo os/as agentes mais jovens.

As agentes femininas não trabalham no interior da prisão masculina, pois a condição de ser mulher as remete ao trabalho externo, seja de natureza administrativa, seja de guarda na entrada da prisão e de revista das visitas femininas e dos postos de controle (mirador). Esta variedade de funções atesta a necessidade de que o/a agente acaba desenvolvendo qualifi cações variadas e universais. Também não há, necessariamente, a consideração de um vínculo entre a formação do/a agente e seu desempenho profi ssional, pois aquele/a que é formado/a em educação física ou em pedagogia, por exemplo, não necessariamente, estará desenvolvendo atividades relacionadas a sua formação com os detentos/as. Evidencia-se assim a necessidade de uma densa capacidade de adaptação por parte dos/as agentes, a cada nova função, a cada novo diretor, a cada nova mudança de horários, etc. Não existe uma deontologia profi ssional comum estabelecida, do ponto de vista de que suas prescrições defi nem atribuições específi cas contidas em uma lei.

O regulamento rege que os/as agentes devem ser extremamente rigorosos/as com os/as detentos/as não possibilitando qualquer tipo de aproximação. Na realidade, nem sempre funciona assim. Devem conhecer de cor todas as suas responsabilidades relativas as condições de segurança ( consignes de securité).

Do ponto de vista da gestão do tempo carcerário, há uma dupla situação: individual e coletiva, pois, a gestão do tempo carcerário se constitui no princípio dominante da organização do trabalho na prisão, areticulando-se a gestão dos “movimentos” ou das “mobilidades” dos/as presos no interior dos espaços carcerários. Em outras palavras, a regulamentação do tempo e do espaço, em efeito, é ordenada em função do conceito fundamental de movimento.

O movimento dos/as detentos/as organiza a divisão de trabalho entre os/as agentes penitenciários e os demais funcionários das prisões. Em outras palavras, a movimentação dos/as detentos/as mobiliza o conjunto de todos/as os/as funcionários/as da prisão, desde a sucessão de tarefas de controle e de atendimento a serem realizadas durante o dia, os/as detentos é quem delimitam o tempo gasto nas diversas tarefas dos/as agentes (da saída das células, do banho de sol, das refeições, da ida ao médico/enfermaria ou psicólogo, a escola, as ofi cinas, do esporte, no grupo religioso, etc). Assim, o movimento, princípio central da organização das atividades dos/as detentos/as e das tarefas dos/as agentes, está na centralidade da lógica da organização burocrática da prisão. Pois, organiza o ritmo de trabalho de cada um, sincronizando, o de todos na mesma seqüência temporal.

b) A natureza do trabalho de segurança e representações sociaissobre os internos

A função instrumental do desempenho do/a agente se organiza também em torno da noção e da prática de segurança. “A função principal dos/as agentes é de

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assegurar a guarda dos/as detentos/as e de preservar sua segurança no interior da organização prisional”, afi rmaram alguns. A idéia de Segurança Pública – prescrição conhecida que está em lugar privilegiado nos manuais, assim como na cabeça dos/as agentes, constitui-se na espinha dorsal da instrumentalização das atividades. O fracasso manifesto nesta função é a rebelião dos/as prisioneiros/as. Assim, os postos de trabalho são hierarquizados pela ordem de responsabilidades que cabem a cada um dos/as agentes, em função do controle da segurança.

Um outro indicador de garantia da função de segurança é a estrutura hierárquica paramilitar que predomina nas prisões estudadas, sobretudo no DF, cuja característica principal é de controle de possíveis crises ou de rebeliões. Ou seja, como nos afi rmou um agente, em caso de crise há uma hierarquia organizacional que é capaz de mobilizar em pouco tempo o maior contingente de membros da organização. A instituição prisional, a semelhança de outras organizações como a polícia, o exército e o corpo de bombeiros, compartilha algumas características do tipo: uma disciplina individual e coletiva acentuada e rígida, a disponibilidade e a mobilidade dos/as agentes, em tempo real. Tais características possibilitam que os/as agentes possam ser interpelados/as a qualquer momento, independentemente de estarem fora de seu horário de trabalho formal. Por sua vez, tal disponibilidade torna possível a troca e a substituição de funções, o que acarreta mais uma difi culdade em relação à condição de especialização da função de agente. Em relação à disciplina, exige um controle tanto dos/as agentes quanto dos/as detentos, isto é de parte a parte (Chauvenet et al.1994).

É a segurança que defi ne o conteúdo da função delegada ao agente. É fundada sobre o olhar. Visualizar de uma só vez o conjunto das celas de um andar, ou dos/as prisioneiros/as no pátio. Abrir e fechar celas, acompanhar a chegada e a saída de presos/as. Outra tarefa é o controle do efetivo, isto é, de saber onde se encontram os/as presos sob sua responsabilidade de guarda direta, não importando o que ele/a esteja fazendo, no momento. A segurança do olhar se relaciona a segurança da escuta, isto é, das rondas, da escuta de ruídos, barulhos estranhos tudo passa a ser motivo de vigilância e de segurança. Esta necessidade de olhar acaba desenvolvendo no/a agente uma capacidade/habilidade própria de observação muito aguçada que é completamente diferenciada das pessoas externas à prisão. A agilidade, a mobilidade, a rapidez do olhar, um “dom da obliqüidade’, assim como de uma sensibilidade auditiva aguçada fazem do/a agente um/a pessoa com “qualifi cações típicas” e exclusivas de sua profi ssão, pois lhe permitem prever e, consequentemente, prevenir incidentes futuros.Tais qualifi cações não os abandonam quando estão vivendo fora de seu trabalho.

Outro aspecto de perturbação para o/a agente pode ser o excessivo silêncio que pode predominar entre os presos/as, é considerado anormal, pois, segundo os/As agentes é indicativo de que algo negativo poderá vir a acontecer, uma tensão inabitual, uma excitação anormal, uma tentativa de fuga que se anuncia. Nestas situações, mais explicitamente, a segurança proporcionada pelos/as agentes penitenciários deve garantir, tanto a ordem no interior da prisão (brigas, disputas, acerto de contas entre membros de gangues entre os/as próprios/as internos/as, e também a prevenção de suicídio do/a detento/a), como, a missão mais global de proteção da sociedade.

Há centralização da autoridade e circulação rápida e efi caz das informações, pois tudo se relaciona com a direção do presídio. Os/as agentes dispõem menos de autonomia em relação as suas atividades, pois tudo depende das ordens e das

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consignes dadas a cada novo. A pesquisa apontou existir uma relação entre a atividade de trabalho realizada pelas/os Agentes junto às/aos internas/os e as representações que estas/es têm sobre estas/es detentas/os. As/Os Agentes que lidam com atividades de segurança tendem a representar a/o interna/o como inimiga/o. E os que assistem as/os internas/os no dia-a -dia, no caso de Brasília os Chefes de Pátio, como crianças que reclamam muito.

No DF, o trabalho de segurança junto às/aos internas/os é organizado com base em regras e procedimentos que conduzem a uma rotinização do trabalho. Essa pode constituir-se em uma armadilha para as/os Agentes, na medida em que a mecanização dos gestos pode atrapalhar a atenção, considerada sempre necessária no ambiente prisional. As principais atividades diárias realizadas junto às/aos detentos são: tirar as/os detentos das celas para o banho de sol, promover o recolhimento e realizar o confere. Outra atividade, não necessariamente quotidiana, é a revista às/aos detentas/os. A precaução que “deve” acompanhar estas atividades permite entender o fato das/os internos serem representados como inimigas/os e sociopatas.

Se por um lado, discursivamente, exige-se da/o Agente a imparcialidade com relação ao tratamento dado à/ao interna/o, aconselhando evitar conhecer os crimes por eles cometidos, de um outro, essa “massa carcerária” é representada como “perigosa”, independentemente do crime cometido. A periculosidade seria a característica de todos e qualquer interno.

Na visão das/os Agentes que cuidam da segurança, o importante é evitar ser surpreendido pelos acontecimentos, indicando a presença de uma visão sobre a/o interna/o como alguém que está constantemente pensando em construir armadilhas.

A pesquisa apontou que a segurança, considerada nas Unidades estudadas como uma atividade tipicamente masculina aparece construída sobre uma tripla exigência para a/o Agente, com relação às/aos internas/os: vigiar, desconfi ar e controlar (Chauvenet et al.1994). Como indicado, essa tripla exigência desenha relações e interações sociais extremamente complexas do ponto de vista da gestão quotidiana do trabalho, nos seus aspectos materiais e simbólicos, perpassando o conjunto das atividades de trabalho que se desempenham em contanto direto com as/os internas/os. De fato, esse tripé aparece associado, principalmente, a duas representações sociais que as/os Agentes têm sobre as/os internas/os: a/o interna/o como inimigo e a/o interna/o como psicopata ou sociopata. As práticas relativas à vigilância, desconfi ança e controle seriam orientadas por essas representações sociais das/os Agentes sobre as/os internas/os. Esse “saber” institucional sobre as/os internas/os, opera justifi cando essas práticas e tornando absoluto o interesse pela segurança dentro do presídio, estabelecendo uma contradição entre as ações relativas à política de segurança e as ações relativas à política de reintegração social da/o interna/o controlar (Chauvenet et al.1994).

Há a prisão da/o interna/o é há a prisão da/o Agente. A prisão da/o Agente que cuida da segurança, na Unidade penitenciária masculina analisada em Brasília parece estar aderida à lógica do trabalho que realiza. A organização do trabalho é rotineira, exigindo gestos e procedimentos repetitivos que acabarão construindo para a/o Agente a prisão do automatismo. A automatização que permitiria liberar a mente para “outros vôos”, no caso da realização de outros trabalhos igualmente repetitivos, é geradora de uma armadilha no contexto do trabalho da/o Agente. Percebem as/os Agentes que a perda da atenção relativa à cadência do automatismo poderá ser

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advertida “pela lente” das/os internas/os, que tentarão se aproveitar desse momento para desafi ar a autoridade.

As/Os Agentes consideram o próprio trabalho como rotineiro. É o trabalho defi nido como “manusear com a/o detenta/o”, ter contato físico e visual com o preso, isto é, tocar com as mãos e percorrer com os olhos o corpo da/o interna/o, trabalho considerado perigoso. Nos labirintos simbólicos do presídio as experiências são vividas de maneira contraditória. De fato, a/o interna/o é construído pela/o Agente como alguém que está permanentemente “maquinando” para conseguir fugir do presídio, isto é, pensando em como construir ciladas para distrair a atenção dos guardas. Essa representação sobre a/o interna/o estabelece o parâmetro da desconfi ança como uma alavanca do trabalho de segurança: vigiar, desconfi ar e controlar. Para fugir da rotinização do trabalho e de seus perigos iminentes, as/os Agentes implementam uma diversidade de estratégias.

Foucault (2000) analisa a lógica arquitetônica do Panopticom8 (defi nido inicialmente por Jeremy Bentaham) destinada ao controle visual e permanente dos internos. Na análise do poder indica que o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, não está localizado aqui ou ali, nem está nas mãos de alguns. O poder não é um bem, mas é algo que se exerce em rede, e nessa rede todos os indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido ao poder, mas também de exercê-lo.

A experiência das/os Agentes estudados indica a presença de a dimensão especular do controle. A pesquisa apontou que as/os Agentes percebem que estão sendo vigiadas/os pelas/os próprias/os internas/os, experimentando que seus comportamentos são permanentemente submetidos à uma meticulosa avaliação. Nas percepções destas/es Agentes a “lente” dos considerados “inimigos” parece transcender o plano objetivo do próprio comportamento, perscrutando a gestualidade sustentada pelos sentimentos e as emoções, complexidades lidas e interpretadas pelas/os internas/os à luz do que realmente interessa: as potenciais fragilidades das/os Agentes Penitenciárias/os. Na visão destes últimos, são essas fragilidades que poderão indicar para as/os internas/os o caminho da fuga e da liberdade.

Observou-se que a relação com o “outro”, denominado pelas/os Agentes de “interno”, é dinamizada pelo signifi cado de “inimigo”. Por isso, as relações e interações sociais podem aparecer dominadas por uma espécie de “lógica de guerra” permanente, indicativa de uma cultura do confl ito. Essa “guerra” se processa bem menos em ações espetaculares e muito mais na forma de uma luta silenciosa caracterizada por constantes e insidiosas escaramuças. O território onde essa “guerra” torna-se possível

8 Foucault, (2000), aponta que o Panopticon era um edifício em forma de anel, com um pátio no meio do qual havia uma torre central, com um vigi-lante. Esse anel dividia-se em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior, permitindo que o olhar do vigilante as atravessasse. Essa forma arquitetônica das instituições valia para as escolas, hospitais, prisões, fábricas, hospícios. Tratava-se de um espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seus pontos. Nele os indivíduos estavam inseridos num lugar fi xo, com os menores movimentos e acontecimentos controlados. O poder era exercido segundo uma fi gura hierárquica contínua, no qual cada um podia ser constantemente localizado, examinado e distribuído. Nessa perspectiva, a forma de poder exercida no panoptismo repousou, sobretudo no exame. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante,uma vigilância que permite qualifi car, classifi car e punir.

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é literalmente ocupado pelas/os detentas/os; trata-se do pátio e da cela. Segundo as/os Agentes, sob determinadas circunstâncias, esses territórios podem transformar-se em verdadeiras armadilhas, sendo observados como recintos perigosos.

A iminência desse perigo pode ser destruída sistematicamente por revistas surpresas que pretendem restaurar a ordem supostamente sob ameaça. As vezes estas revistas acontecem por simples rotina, outras, devido a algum tipo de denúncia. Estas se originam das/os próprias/os internas/os ou pela via dos familiares, e podem estar mascarando vinganças interpessoais ou desafi os entre quadrilhas ou grupos rivais dentro da prisão. Essas irrupções restabelecem o princípio da ordem através da desorganização do dia-a-dia das/os internas/os, destruição que acabará revelando o que teima em permanecer oculto, pondo o cotidiano das/os internas/os de maneira impiedosa nas “lentes do poder”. È por isso que a entrada no território do “inimigo” é bastante escandalosa, acompanhada de gritaria, de comandos verbais e de cachorros latindo. As/Os internas/os fi cam confusos e aturdidos, prontos para “revelar” os indícios das práticas e comportamentos transgressores. A nudez que será exigida poderá constituir-se na ante-sala de todas as revelações possíveis, voluntárias e/ou forçadas.

Eis aqui um elemento que permite compreender a contradição que pode se estabelecer nas prisões entre a lógica da segurança e a lógica da reintegração da/o interna/o, ambos os presentes no plano formal da LEP9 e no conjunto das práticas sociais que caracterizam estas instituições. Parece evidente que os projetos dirigidos à reintegração das/os detentas/os precisam ser gestionados por funcionários que efetivamente comunguem com “fantasias de resgate” das/os internas/os. Mas, na Unidade estudada, percebe-se um discurso quase psiquiátrico sobre as/os internos, que lhes atribui poderes ancorados numa espécie de hiper-racionalidade que agiria como uma arma mortal sobre aqueles Agentes mais humanos, crédulos e, quem sabe, frágeis emocionalmente, isto é, capazes de se comover.

A armadilha do trabalho rotineiro reside em sua própria natureza. “A rotina engole”, expressão utilizada pelas/os Agentes entrevistadas/os, pode signifi car “A rotina devora, consome“. A rotina pode subverter a ordem das coisas, na medida em que o próprio trabalho pode constituir-se em armadilha. Os procedimentos, os gestos, os movimentos realizados quotidianamente na função que desempenham levam a cadência e repetição mecânica. É a mecanização do gesto que pode denunciar para um observador atento um défi cit de atenção. Isso signifi ca que o trabalho traduz uma contradição: de um lado, a busca de segurança, calcada em procedimentos reiterados da maneira o mais perfeita possível; e de um outro a rotinização/mecanização que pode causar um défi cit de atenção e conduzir à fragilização. Para as/os Agentes, as/os internas/os seriam as/os primeiras/os benefi ciárias/os da fragilização das/os Agentes, e as/os primeiras/os a perceber, nos bastidores de um trabalho de rotina, o esmorecimento de quem o realiza.

A rotinização do trabalho que poderia levar a um maior controle sobre o mesmo aparece como uma ameaça surgida do mandato técnico. É a organização do trabalho da/o Agente que invoca a rotinização dos gestos e dos movimentos, sendo essa mesma organização técnica que lhe consome a atenção que lhe permitiria fi car alerta para enfrentar qualquer imprevisto.

9 Lei de Execuções Penais – LEP.

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c) A divisão sexual do trabalho nas unidades estudadasA repartição ou a distribuição das mulheres e dos homens por atividades, com

papéis sexuais específi cos e com prerrogativas pré-defi nidas é, provavelmente, uma das mais antigas clivagens construídas entre os sexos no mundo do trabalho. Nas instituições Prisionais da sociedade contemporânea permanece, ainda que de forma mais atenuada, essa divisão tradicional do trabalho entre os Agentes Penitenciários homens e as Agentes Penitenciárias mulheres. Levando em consideração que o conceito de divisão sexual do trabalho utilizado é o de Kergoat, tomamos por esta divisão a idéia de que “é pré-existente como noção, mas posterior como problemática” (Kergoat, 1992: 16).

As sociedades modernas instauraram uma separação entre duas esferas de atividades: a da mercadoria, do trabalho e das atividades ditas “sociais” e a do privado, e mais particularmente, da família e das atividades ditas “naturais”. Nessa divisão tem presença uma ordem social que inscreve as mulheres no espaço doméstico/privado e os homens no espaço dos negócios, público. Essa divisão, instalada desde o período colonial-escravocrata no Brasil, atribuiu um conteúdo, e mais ainda, um estatuto diferenciado ao trabalho dos homens e das mulheres. Como se observará mais adiante isto também acontece nas prisões.

À noção moderna de trabalho está associada à idéia de valor, que se tornou central. O trabalho sendo um produtor de valor deve ser medido e avaliado. Torna-se assim uma mercadoria como qualquer outra. A noção de trabalho doravante defi ne aquilo que se vende e que se compra no mercado: o mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, as atividades de produção de bens e de serviços que não transitam pelo mercado de trabalho, pois estão excluídas em termos da defi nição de trabalho, são consideradas desprovidas de valor. Em outras palavras, elas não têm valor. Isto caracteriza em parte a desvalorização do trabalho da Agente Penitenciária.

Portanto, o trabalho como fator de produção tornou-se o referente da concepção e da organização da sociedade. Assim o trabalho-mercadoria passa a ser o “fundamento” da relação social e conseqüentemente da cidadania. As transformações institucionais que se instalaram com o processo de divisão social do trabalho revelam uma ordem social que comporta uma “ordem de sexo” de classifi car e hierarquizar os componentes sociais deste processo – daí a divisão sexual do trabalho estabelecida.

Não é o produto ou o serviço que distingue o trabalho doméstico e sua defi nição mercantil de trabalho, mas a natureza da relação ou do estatuto sob o qual é realizado10. Segundo Hirata (2002), a conceitualização da divisão sexual do trabalho, em termos da relação social, baseia-se na idéia de uma relação antagônica, oposta, entre homens e mulheres. A divisão sexual do trabalho é considerada um aspecto da divisão social do trabalho e nela a dimensão opressão/exploração está fortemente contida. Essa divisão sexual e técnica é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista das relações sexuadas de poder, o que se expressa nas relações de trabalho entre as Agentes e os Agentes.

Em entrevista com o então Chefe das/os Agentes Penitenciárias/os do CIR-DF,

10 Por exemplo: fritar um bife em um restaurante ou para a família. No primeiro caso, a pessoa desenvolve suas competências no contexto de um contrato de trabalho. No segundo, sob o estatuto de esposa(o) ou de parente. Não se trata mais de um trabalho, mas de uma tarefa.

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foi-nos dito que as mulheres, preferencialmente, trabalham nos cargos burocráticos do presídio. Assim, a maioria das mulheres sequer chega a sair do prédio onde fi ca a administração e adentrar o mundo dos internos.

Como podemos observar, efetivamente os trabalhos em pátio e de escolta são feitos majoritariamente pelos Agentes homens enquanto que as mulheres se mantêm nas funções de escriturária, relatora, serviço social e outras funções administrativas. Algo interessante a ser destacado é que alguns Agentes Penitenciários homens chegaram a citar que algumas mulheres sabem desta “facilidade” do trabalho que é destinado à elas na penitenciária. E, por isso, algumas entrariam na profi ssão já sabendo que sua função teria menos perigo e/ou mais segurança que a da maior parte dos homens que trabalham no presídio.

Outro fato importante é que as próprias mulheres, segundo descrição de um entrevistado do CIR-DF pedem para assumir estes cargos administrativos e não entrar em contato com os internos.

Embora com expressões e modalidades diferenciadas – no tempo e nos lugares –, a divisão sexual do trabalho encontra-se nas Instituições Prisionais e é, no geral, estruturada em função de um princípio hierárquico: o trabalho masculino tem sempre valor superior ao trabalho feminino (Kergoat, 1992). Portanto, vale dizer que a divisão sexual do trabalho é sempre indissociável das relações sociais entre homens e mulheres, que são relações desiguais, hierarquizadas, assimétricas e antagônicas. Relações de opressão e de exploração entre duas categorias de sexo socialmente construídas. Tão forte é tal opressão que hoje se encontra quase que inquestionavelmente, enraizada nos valores sociais, tanto de homens quanto de mulheres, que reproduzem essa lógica diariamente, como vimos acima nos relatos que apontam as Agentes Penitenciárias como prisioneiras dessa mesma lógica. Essa teoria da divisão sexual do trabalho constitui-se como alternativa aos paradigmas sociológicos que não levam em consideração a “sexualização” do social.

Alguns teóricos chegaram a acreditar que, como por encantamento, com o fi m do taylorismo, por suposto, se colocaria fi m aos sofrimentos físicos que acompanham a/o trabalhadora/o. Erro duplo: não só porque o taylorismo não desapareceu, mas porque nessa fase/momento desloca a responsabilidade da organização da produção sobre ombros das/os próprias/os trabalhadoras/es, onde as novas formas de trabalho se revelam, particularmente, estressantes (Hirata, 2002).

As/Os trabalhadoras/es, em geral, se queixam da quantidade de tarefas, do escasso tempo disponível para ser realizada uma atividade, de receber ordens contraditórias, do peso da responsabilidade de não poder errar na execução da tarefa. Conclusão: fadiga generalizada, estresse, dores dorsais, dor de cabeça, desânimo... Em síntese, sofrimentos físicos variados. Tais sintomas também são extensivos ao universo prisional atingindo as/os Agentes Penitenciárias/os na sua capacidade de trabalho. Ficar muito tempo realizando a mesma tarefa com uma postura inadequada, o risco e a tensão cotidianos, carregar pesos desproporcionais, risco de cair, risco de trabalhar com barulho ou ruído agudo, etc. Estes, entre outros “sintomas” do mundo do trabalho, evidenciam que praticamente todas as profi ssões são simultaneamente tocadas por um rápido aumento das pressões físicas ou morais. Em outras palavras, o aumento das dores e dos sofrimentos físicos e mentais que são, no geral, passados despercebidos, fazendo

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parte das minúsculas mortes cotidianas. Do estresse ao assédio moral não existe mais do que um passo11. As chefi as pressionam persistentemente suas/seus subordinadas/os e para se livrar dos “inconvenientes”, o assédio passa a ser cada vez mais utilizado. Observou-se entre os Agentes práticas de assédio moral horizontalizadas.

No caso das Agentes, o trabalho se torna ainda mais estressante porque, por serem vistas como profi ssionais que produzem menos e/ou pior, elas precisam se esforçar mais para provar o mesmo que os homens, para demonstrar que também são capazes e efi cientes. Essa cobrança exagerada acaba por tornar ainda mais o trabalho das mulheres possível de ocasionar males à sua saúde mental e física. Deste modo, estas mulheres acabam por optar em sair de cargos que exigem muito delas.

Para concluir, constatou-se que os confl itos presentes no trabalho vão ser deslocados para as relações familiares, ocasionando práticas de violência das futuras gerações.

– As desigualdades da presença feminina no mundo do trabalho O acesso e a participação das mulheres a partir das três últimas décadas passadas

no mercado de trabalho aumentou consideravelmente. Porém, o ingresso das mulheres e dos homens não segue a mesma dinâmica e percurso e nem lhes garante o mesmo lugar/posto/função. Além disso, a própria motivação para a busca de trabalho, em certos casos, se diferencia.

Mesmo com o processo de desnaturalização da categoria de mulher e de homem, a partir de sua heterogeneidade interna – pois são perpassados por vários tipos de pertença e de estatutos (jovens-idosas; brancas-não brancas; com fi lhos-sem fi lhos; ricas-pobres, entre outras) – romper com estas categorias monolíticas, encerradas em si mesmas não está sendo fácil. Todas, de maneiras próprias, interferem na dinâmica e na cultura de como é pensada e de como funciona a relação homem-mulher nos espaços de trabalho. Certamente o peso histórico das representações sociais não deve ser menosprezado quando se trata de discutir essa relação ainda vista como de dependência. O lugar do homem e da mulher na sociedade em geral e na esfera do trabalho em particular foi defi nido pela diferença e separação dos espaços de ação. O que ainda persiste dessa construção histórica? Como se manifesta essa herança na divisão sexual do trabalho?

Em outras palavras, passaram a surgir modos para diferenciar ou distinguir – material e simbolicamente – não somente os homens e as mulheres, mas também diferenciar a maneira como as mulheres e homens se inserem nas relações de trabalho, de como constroem seus itinerários sócio-profi ssionais, seus destinos ocupacionais almejados e alcançados, assim como os padrões salariais que lhes são destinados e as expectativas profi ssionais construídas entre os assim designados homens e mulheres.

As mulheres, mesmo com mais anos de escolaridade, não vivenciam a igualdade de oportunidades e a segurança de eliminar as marcas da segregação – ocupacional salarial e simbólica – garantindo a almejada condição de equidade na esfera pública. As desigualdades são extensivas aos rendimentos, aos padrões de inclusão. No caso das Agentes Penitenciárias estas também apresentam elevados níveis de escolaridade.

11 O conhecido livro de Marie-France Hirigoyen: O assédio moral. Paris, Syros, 2000), assim como o livro da Viviane Forrester: O Horror Econômico. Fayard, 2000).

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– A distribuição sexuada do trabalhoNo geral, as mulheres ainda continuam a ocupar empregos cujas características

lembram, freqüentemente, aquelas realizadas no contexto familiar-doméstico, seja pelo tipo de atividade concernida, seja pela natureza dos postos/funções de trabalho exercidos, o que se repete nas prisões. Mais o trabalho se assemelha aos atributos do trabalho doméstico, mais o trabalho será feminizado. No caso da prisão, trata-se da assistência social e dos cargos de administração, etc. A primeira característica da divisão do trabalho doméstico é de se caracterizar/inscrever em um contexto de “disponibilidade” próxima aos serviços familiares. Constatam-se que os trabalhos relativos – ao cuidado de crianças, adultos e idosos doentes, como dos empregos domésticos, são praticamente exercidos pelas mulheres. Fenômeno extensivo aos países desenvolvidos como a França, no qual 80% (1990) do setor de serviços é exercido por mulheres. Jornais nacionais anunciaram recentemente o aumento da presença das mulheres no mercado de trabalho. Onde? Em que atividades? No setor de serviços domésticos com os salários inferiores ou mesmo em outros serviços também com salários inferiores. A inserção das mulheres nos trabalhos ditos mais “feminizados” parte da própria vontade de algumas delas, inclusive das Agentes Penitenciárias. Outro elemento de clivagem ainda persistente entre homens e mulheres é tanto em relação à formação como em relação às profi ssões tecnológicas. A divisão sexuada do acesso às tecnologias é fundada sobre a relação remetida à natureza, defi nida, diferentemente para o masculino e o feminino. A submissão para as mulheres não ocorreria apenas pela dominação dos homens, mas pela condição do feminino ligado à natureza que fundamentaria a condição de exclusão das mulheres da legitimidade tecnológica. Por exemplo, nas instituições Penitenciárias é mais comum se observar o porte de armas pelos Agentes masculinos enquanto que as mulheres Agentes, em geral, se recusam a portar armas. Ora, uma das clivagens mais discriminatórias entre as profi ssões masculinas e femininas repousa sobre a tecnologia reconhecida da profi ssão. Portanto, trabalho mais qualifi cado = ao masculino, cuja associação ancestral remete ao homem como portador da lógica e da cultura, enquanto que a mulher da natureza.

Outra difi culdade reside no reconhecimento das qualifi cações para os serviços das mulheres e dos homens.

À diferença dos empregos industriais, os empregos na área de serviços mobilizam, ao lado das competências técnicas/tecnológicas, competências pessoais que são difíceis de serem mensuradas, uma vez que estas competências não passam apenas pela objetivação e formação do diploma, mas passam pelo processo de socialização e pela experiência individual e coletiva da/o trabalhadora/r. Daí as competências consideradas femininas adquiridas na esfera privada-familiar na prática das funções domésticas são percebidas pela “cultura organizacional” e pelos próprios trabalhadores como sendo “qualidades naturais”, vinculadas à identidade pessoal e feminina e que acabam por não ser consideradas para uma relação salarial. No caso das Agentes, embora ingressem na profi ssão sob o mesmo processo dos Agentes masculinos (concurso público) e receberem as mesmas condições salariais, isso não lhes garante uma condição mais eqüitativa no universo prisional.

Portanto, encontra-se aqui uma oposição entre o pólo das representações sociais que associa a subordinação da tecnologia e da natureza ao masculino e aquele que conjuga o natural e a submissão à natureza ao feminino. Se a tecnologia, enquanto

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tal, simboliza um poder sobre a natureza, é associada ao masculino e ao trabalho qualifi cado; portanto, os serviços, defi nidos pelo relacional, são excluídos de uma representação em termos da tecnologia e são vistos como pertencentes a um universo de trabalho onde são solicitadas qualidades inerentes à natureza feminina.

– Reapropriação do espaço-tempo como elemento de um processo de subjetivaçãoAs relações masculino e feminino em relação ao uso do tempo e com o espaço

prisional revelam lógicas diferentes, senão opostas, pois são o produto de uma socialização marcada pela divisão sexual dos “papéis”, desde a socialização primeira. Por causa dessa socialização específi ca, pressupõe-se que a mulher detém/mantém uma relação “privilegiada” ou “própria” com o espaço privado. Mas ela está associada a esse espaço a partir de um quadro bem preciso da vida familiar. É responsável, ainda, por uma função social, a de mãe de família conectada à reprodução, aos cuidados com o corpo e com a criação do bem-estar, ao qual é vinculada/associada ou está ligada necessariamente; não como sendo um indivíduo isolado. Fora desse contexto a mulher perde essa função pela existência do modelo de apropriação do espaço e do tempo no qual ela foi socializada. Ela aprendeu menos a habitar o lugar do que mais a torná-lo funcional e confortável para permitir aos seus melhor habitá-lo. Ela é responsável pelo espaço doméstico em sua totalidade, mas é geralmente privada do prazer de possuir um tempo só para si e seu tempo é largamente sujeitado a ser consumido em função dos interesses do grupo familiar-doméstico.

Portanto, mesmo quando a Agente mulher assume as funções em condições mais próximas em relação ao Agente masculino há, no geral, a persistência em mantê-la como subordinada, simbólica e materialmente, ao domínio masculino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: REORIENTAÇÃO DA PROFISSÃO DE AGENTE PENITENCIÁRIO

A pesquisa realizada procurou compreender as carreiras e trajetórias profi ssionais dos Agentes Penitenciários com vistas a realizar recomendações para ajustamento dos perfi s profi ssionais desses agentes às necessidades de segurança e respeito pelos direitos humanos. Essa adequação precisa de uma articulação entre o nível das políticas públicas e o nível das políticas locais.

A seguir apontamos aspectos que poderiam orientar esses dois níveis da política:

a) Do ponto de vista macro-social (políticas públicas) • Uma constatação que se faz com base na pesquisa e na literatura pertinente

é o número insufi ciente de Agentes em relação ao número de internos correspondentes, sendo que em certas instituições a defasagem é muito signifi cativa;

• Necessidade de construir uma carreira profi ssional específi ca para a profi ssão de Agente Penitenciário a nível nacional que considere uma redução das defasagens, do ponto de vista do tempo de formação, do conteúdo programático dos cursos, dos níveis salariais, entre outros;

• Necessidade de eliminar a distância entre a teoria dos cursos de formação e a realidade do trabalho nas Penitenciárias, a partir da organização de processos sistemáticos de aproximação com o cotidiano e as rotinas da

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instituição e com os detentos, evitando desse modo a situação traumática do “primeiro dia na prisão”;

• Criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda persistente na instituição penitenciária que se caracteriza por uma ambigüidade com relação ao tratamento que deve ser dispensado aos internos, isto é, ora tratados com respeito, ora tratados com desprezo e humilhação;

• Necessidade de formular claramente o conceito de reintegração social do interno;

• Rever a natureza das atividades de trabalho (ocupações) exercidas pelos detentos e suas relações com o mercado de trabalho;

• Expandir quantitativamente e qualitativamente essas atividades em duas direções: 1. de maior inclusão dos próprios detentos e 2. atividades mais criativas do ponto de vista manual e intelectual;

• Há uma dimensão formal que estabelece o imperativo da reintegração do interno à sociedade, porém isso não tem efi cácia do ponto de vista material nem social, o que se traduz nos persistentes índices de reincidência criminal. Em razão disso há necessidade de discutir quais são as possibilidades reais de ressocializar os internos do ponto de vista do papel do Estado, dos Agentes e da sociedade;

• Necessidade de realizar campanhas de valorização e reconhecimento do trabalho realizado pelos Agentes permitindo que a experiência deles seja socialmente compartilhada com uma diversidade de profi ssionais que, de maneira direta ou indireta, atua na área;

• No contexto da valorização profi ssional dos Agentes Penitenciários possibilitar que suas experiências sejam conhecidas e discutidas com os gestores de políticas públicas na área de segurança publica;

• Pensar estratégias para administrar de maneira adequada as diversas lógicas contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da segurança e a lógica da reintegração, por exemplo.

• Criação de uma política sistemática de acompanhamento da saúde mental dos Agentes Penitenciários, facilitando as intervenções de profi ssionais externos qualifi cados no atendimento coletivo e individual dos Agentes, dentro de uma concepção de clínica do trabalho;

• Criar mecanismos para dar suporte aos Agentes no contexto das relações familiares, quando estas se tornam confl itivas por conta do trabalho;

• Programar estratégias para tornar fl uída a relação entre a sociedade e aPenitenciária incentivando relações mais intensas e deste modo minimi-zando o isolamento em que caracteristicamente se encontram as instituições Prisionais; e

• Necessidade de “homogeneizar” a administração penitenciária, promovendo cursos de formação em gerenciamento Prisional e eventos que possibilitem a socialização das experiências e a discussão das estratégias mais adequadas.

b) Do ponto de vista micro-social (das políticas localizadas) • Considera-se fundamental que se atente para as peculiaridades dos sistemas

Penitenciários e das unidades Prisionais nos diferentes Estados da Federação

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considerando suas particularidades culturais, políticas e sócio-demográfi cas, isso é o que podemos inferir a partir da pesquisa comparativa realizada.

• Recomenda-se a organização de um programa de educação continuada dirigido aos Agentes que contemple as seguintes possibilidades de cursos e de conteúdos:

• Comunicação interpessoal, considerando a perspectiva de gênero, étnico-racial, geracional, entre outros;

• Acesso às práticas religiosas no interior da instituição Prisional deveria estar articulado à gestão interna do presídio no sentido de permitir o desenvolvimento de um programa sobre temas mais humanitários evitando o sectarismo e o radicalismo;

• Promoção de um seminário semestral com os diretores dos presídios e os Agentes Penitenciários, centrado na discussão das políticas de pacifi cação dentro das penitenciarias, procurando identifi car quais são as melhores práticas promotoras dessa paz nas instituições;

• Oferecer, aos Agentes, treinamento em temas médicos (toxicologia, enfermi-dades infecto contagiosas, doenças sexualmente transmissíveis, etc.);

• Oferecer aos Agentes atualização razoável em temas jurídicos; • Oferecer aos Agentes treinamento no uso legal da força e na defesa pessoal; • Oferecer aos Agentes treinamento em liderança organizacional;

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287Instruções aos Autores |

INSTRUÇÕES AOS AUTORES

I. Colaboração aceita pela Coleção Segurança com Cidadania

Os textos destinados à publicação na Coleção Segurança com Cidadania deverão ser inéditos, não submetidos a outro veículo e concernentes aos seguintes temas:

Segurança pública e cidadania•

Análise de homicídios na sociedade brasileira•

Sistemas de informação, estatísticas criminais e cartografi as sociais•

Estudos sobre crime e violência no século XXI•

Organizações policiais e modelos de policiamento•

Refl exões sobre educação policial•

Meios de comunicação, violência e cidadania•

Mediação de confl itos agrários e cidadania•

Violência de gênero e cidadania•

Sociologia da violência•

Socialização, juventude e segurança•

Políticas públicas de segurança pública•

Confl itos sociais e processos de pacifi cação•

Direitos e segurança pública•

Perspectivas para o sistema prisional brasileiro•

Segurança pública e criminologia•

Direito penal comparado e segurança pública•

II. Da Ocasião da Publicação

Os números da Coleção Segurança com Cidadania são temáticos. Por isso, as chamadas para artigos serão destinadas a captar textos relacionados especifi camente ao tema do número do periódico em ocasião. As chamadas serão publicadas no portal:http://www.segurancacidada.org.br

III. Apreciação pelo Comitê e Conselho Editoriais

1. Os trabalhos serão apreciados pelo Comitê e pelo Conselho Editoriais, que poderão recorrer a consultores ad hoc, caso não disponham de especialista na área abordada no artigo. Os autores serão notifi cados da aceitação ou da recusa de seus textos.

2. Eventuais sugestões de modifi cações de estrutura e/ou conteúdo serão notifi cadas ao autor, que se encarregará de fazê-las no prazo máximo de 30 dias corridos.

3. Não serão permitidas modifi cações depois que os textos receberem o aceite.

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IV. Forma de apresentação dos originais

4. Os artigos deverão ser escritos em português, gravados em formato .doc do Microsoft Word ou outro formato de editores de texto compatíveis com softwares de código aberto, obedecendo o seguinte:

Papel: A4

Margens: 2,5cm;

Espaço entre linhas: 1,5;

Fonte: Times New Roman, tamanho 12

Número de páginas: entre 15 (mínimo) e 20 (máximo, incluindo bibliografi a e notas)

5. Os artigos deverão ser acompanhados de resumo em português, com tradução para o inglês e o espanhol, que sintetize os propósitos, métodos e principais conclusões. A identifi cação dos autores deve apresentar o título acadêmico recebido e a instituição ao qual está vinculado.

6. Referências a obras e autores deverão ser apresentadas no corpo do texto, na forma (Sobrenome: ano, página).

7. As notas de rodapé deverão ser de natureza substantiva, nunca referência.

8. Figuras e desenhos deverão ser produzidos em formato eletrônico, vetorizados e enviados no mesmo arquivo do texto.

9. Tabelas, quadros e gráfi cos deverão ser numerados e produzidos em formato .xls ou .doc, ou qualquer outro formato de editores de texto compatíveis com softwares de código aberto.

10. Os artigos deverão ser enviados através do sistema eletrônico disponibilizado no website do periódico (http://www.segurancacidada.org.br) , que disponibilizará a tela de submissão de artigos durante o período de chamadas.

11. As referências bibliográfi cas deverão ser apresentadas ao fi m do texto, ordenadas alfabeticamente pelo último sobrenome do autor, de acordo com o seguinte:

- Em caso de livro:

MINGARDI, Guaracy. Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e reforma na polícia civil. São Paulo: Editora Página Aberta, 1992.

- Em caso de artigo:

SANDES, Wilkerson Felizardo. “Uso não letal da força na ação policial: formação, tecnologia e intervenção governamental”, in Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 1. Edição 2., 2007.

- Em caso de coletânea:

CARUSO, Haydée Glória Cruz; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; BLANCO, Antonio Carlos Carballo (orgs). Policía, Estado y Sociedad: prácticas y saberes latinoamericanos. Rio de Janeiro: PUBLIT Soluções Editoriais, v. 01., 2007.

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289Instruções aos Autores |

- Em caso de dissertação de mestrado ou de tese de doutorado:

RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. Administração da Justiça Criminal na cidade do Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio doloso. Tese de Doutorado. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.

V. Outros

12. Não serão devidos nem direitos autorais, nem qualquer outra remuneração, de nenhuma natureza, pela publicação de artigos na Coleção Segurança com Cidadania.

13. O envio do artigo para candidatura à publicação implica autorização tácita para ser publicado no periódico, caso obtenha parecer favorável.

14. Os autores receberão gratuitamente três exemplares do número da revista no qual seu artigo está publicado.

15. O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor.

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