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Violência contra Crianças e Adolescentes Conteudista Prof. Me. Fábio de Carvalho Mastroianni

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Violência contra Crianças e Adolescentes

Conteudista

Prof. Me. Fábio de Carvalho Mastroianni

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1. Violência contra crianças e adolescentes

O complexo fenômeno da violência

A violência é um fenômeno complexo e abrangente que exige a compreensão de

fatores socioculturais e históricos. O debate em torno do tema costuma ser polêmico e sua

intersecção com o Direito se estende pelos diversos ramos da ciência jurídica, daí a

importância de um debate interdisciplinar que inclua conhecimentos de outras áreas, entre

elas: Psicologia, Serviço Social e Ciências da Saúde. No campo transdisciplinar da Psicologia

Jurídica, as implicações da violência, através das suas mais variadas formas de manifestação,

não se restringem apenas às questões criminais, podendo observá-las no Direito de família e

nas varas da infância e juventude, uma vez que ela pode ser encontrada e ter suas origens na

própria dinâmica familiar (ABRANCHES e ASSIS, 2011; SILVA, 2009; FIORELLI e MANGINI, 2009;

SÁ, 1999).

Estudos de alguns historiadores apontam que ao longo do desenvolvimento da

humanidade os adultos estabeleceram padrões de relacionamento distintos com as crianças e

os jovens. Não são poucos os textos que citam as situações de exploração, abuso e violência

cometida contra essa população. No Brasil, mesmo após a criação do Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei 8.069/90) que baseado em outras diversas conferências e acordos mundiais

visa garantir os interesses e os direitos desses indivíduos, ainda é possível observar situações

em que crianças e adolescentes se tornam vítimas da violência praticada por instituições,

grupos e pessoas que deveriam zelar pelo seu desenvolvimento (ALBERTO et al., 2008; RICAS;

DONOSO; GRESTA, 2006; ROCHA, 2002; ARIÉS, 1981).

É devido à extensão dessas práticas que o Ministério da Saúde já considera o tema da

violência contra crianças e adolescentes como um dos mais relevantes problemas de saúde

pública, haja vista as instituições de saúde ser as mais intensamente requisitadas para atuar

frente à questão (WHO, 2002; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997). Ricas, Donoso e Gresta (2006)

acreditam que o aumento das denúncias e a maior intolerância contra essas práticas se devem

as mudanças culturais. Ressaltam que mulheres, crianças e negros historicamente sempre

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estiveram em condição de inferioridade, criando-se uma cultura de escravidão, de submissão

da mulher ao homem bem como a ideia de que os filhos são propriedades de seus pais. No

mundo ocidental, devido às diversas mudanças culturais ocorridas nas últimas décadas, essas

concepções vêm diminuindo, assim como a intransigência a essas práticas.

Abranches e Assis (2011) em um estudo de revisão sobre o tema apontam que a

atenção sobre a violência praticada contra crianças e adolescentes passou a ganhar maior

atenção a partir dos anos 70, quando surgiu o diagnóstico da síndrome da criança espancada1.

Para as autoras, a atenção dada sobre a intersecção entre violência e saúde se intensificou

apenas nos últimos trinta anos, quando grande parte dos estudos passou a identificar melhor

as diversas consequências destas práticas para o desenvolvimento emocional de crianças e

jovens vítimas da violência.

A violência contra crianças e adolescentes pode ocorrer dentro de instituições, na

comunidade ou até mesmo no âmbito familiar, por membros que possuem relação de

afinidade ou com quem a criança estabelece um vínculo afetivo e/ou de dependência,

tornando, o tema e o diagnóstico da situação ainda mais complexo. Mesmo sendo difícil

mensurá-las, a violência familiar ou doméstica já é considerada uma das principais causas de

violência contra jovens e crianças, tornando a interferência do poder judiciário cada vez mais

necessária e controversa, devido às questões socioculturais que ainda envolvem o tema

(ABRANCHES e ASSIS, 2011; SILVA, 2009; RICAS; DONOSO; GRETAS, 2006; WHO, 2002).

Neste sentido, dependendo da época e da cultura, episódios ou situações que

poderiam ser denominadas como violentas podem não receber a mesma consideração em

outros locais e culturas. A OMS (Organização Mundial de Saúde) a despeito desta

complexidade e a fim de favorecer uma reflexão sobre o tema utilizou em seu Relatório

Mundial sobre Violência e Saúde, a seguinte definição para o termo violência:

1 Na verdade, a primeira monografia descrevendo essa síndrome foi escrita em 1860 pelo

médico-legista francês Ambroise Tardieu. Nessa época, entretanto, seu estudo não chamou a atenção da

sociedade e dos demais cientistas para essas práticas. Somente um século depois (1962), com a

publicação de estudos que confirmassem essas práticas, desenvolvido por radiologistas americanos, é que

outros cientistas passaram a observá-lo de maneira mais atenta (ADED et. Al., 2006).

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O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça,

contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma

comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar

em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento

ou privação (WHO, 2002. p. 5).

Em relação às crianças e adolescentes, a maioria dos estudos nacionais costuma

utilizar a definição de Azevedo e Guerra (1995, p. 36):

[...] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis

contra crianças e ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano

físico, sexual, psicológico à vítima – implica em um lado numa

transgressão de poder/dever de proteção do adulto e, do outro,

numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que a

criança ou adolescente têm de ser tratado como sujeitos e pessoas

em condição peculiar de desenvolvimento.

A questão referente à intencionalidade da ação é certamente um dos pontos mais

complexos da primeira definição, uma vez que incidentes não intencionais estão excluídos da

exposição oferecida pela OMS. Já a definição de Azevedo e Guerra (1995) destaca a inversão

de papéis e funções, ressaltando que ao invés de oferecer cuidados e proteção, o agressor

transgride os direitos da criança ou do adolescente, tratando-os como objetos, deixando,

portanto de considerá-los como sujeitos que necessitam de atenção específica.

Outro aspecto que também merece atenção e muitas vezes se faz confusão é em

relação aos termos violência e agressividade, geralmente utilizados como sinônimos. A

agressividade traz em si algo de força combativa, comportamento adaptativo e instinto de

vida, contudo, sem transgredir regras legais ou sociais, mantendo o respeito à integridade

física e psíquica dos demais. Quando a agressividade não está relacionada à proteção de

interesses vitais, esta mais próxima do conceito de violência, que traz em si a ideia de

destruição, ultrapassando o aceitável legal ou social (FIORELLI e MANGINI, 2009; SÁ, 1999).

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[...] não existe um instinto de violência. O que existe é um instinto

agressivo que pode coexistir perfeitamente com a possibilidade do

homem desejar a paz e com a possibilidade do homem empregar a

violência (COSTA, 1992, p.27, apud SÁ, 1999).

Uma linha divisória que permita uma divisão ou distinção exata entre agressividade e

violência se torna impossível, haja vista a necessidade de sempre se ponderar os aspectos

sociais, culturais e pessoais (FIORELLI e MANGINI, 2009; RICAS; DONOSO; GRETAS, 2006; SÁ,

1999). Ainda em relação à dinâmica da violência, os autores acentuam que muitas das ações

voltadas a conter a violência também contemplam ações violentas, validando a expressão

“violência gera violência”.

A definição da OMS (2002) amplia a manifestação da violência para além das ações

físicas e embora esta última seja a mais perceptível, Fiorelli e Mangini (2009) destacam outro

tipo de violência, menos visível e que embora não ocasione fraturas em pessoas, provoca

rupturas nas crenças e valores que fundamentam a convivência social, podendo a violência

física, ser o resultado indesejado da violência que ocorre contra a ética e a moral:

O fato de a violência contra a ética e contra a moral ocupar um

espaço secundário nas preocupações dos gestores maiores da

sociedade tem reflexos sociais e psicológicos que merecem profunda

reflexão e, não apenas isso, ações objetivas (FIORELLI e MANGINI,

2009, p. 265).

Esse entendimento, portanto exige que a compreensão da violência contra crianças e

jovens não se restringe apenas as ações ou ausências ocorridas nos ambientes intra ou extra

familiares e demais instituições comunitárias, mas também a ações e omissões das políticas

públicas em relação a essa população (violência coletiva), uma vez que a falta de condições

básicas para o exercício da cidadania prejudica pais e responsáveis de exercerem as funções de

cuidado e continência de forma adequada (SILVA, 2009; FIORELLI e MANGINI, 2009; WHO,

2002).

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No que se refere à natureza da ação violenta, diversas definições costumam classificá-

las em quatro tipos (SILVA, 2009; FIORELLI e MANGINI, 2009; WHO, 2002; AZEVEDO e GUERRA,

1995):

Violência física: é o uso da força física de forma intencional, não acidental, com o

objetivo de ferir, danificar e até mesmo destruir, deixando marcas significativas;

Violência psicológica: é toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à

autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Incluem ameaças, humilhações,

chantagem, discriminação, isolamento e rejeição, entre outros. Embora ocorra com maior

frequência, é difícil de ser identificada;

Violência Sexual: é todo tipo de ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual,

cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossocial mais adiantado que a criança

ou adolescente. Geralmente tem por intenção estimulá-la sexualmente ou através de seu

corpo, obter satisfação sexual;

Negligência: se refere à falta de proteção e cuidado mínimo por parte de quem tem o

dever de fazê-lo, é quando os responsáveis pela educação das crianças e adolescentes não os

atendem ou deixam de satisfazer as suas necessidades básicas, sejam estas psicológicas,

cognitivas, sociais ou físicas. O abandono seria uma expressão extrema da negligência; alguns

autores, entretanto fazem apenas três distinções, incluindo a negligência e o abandono na

classificação de violência física.

Além dos encaminhamentos e compreensão acerca das consequências destas práticas

às vítimas de violência, no poder judiciário as equipes técnicas precisam observar e analisar

também os dados referentes à relação entre crianças, adolescentes e suas famílias. Deve-se

considerar: a relação dos responsáveis com o entorno familiar, com o fenômeno da violência, a

vulnerabilidade deste grupo e da resposta desta família às intervenções técnicas e

encaminhamentos. A relação com o(s) suposto(s) agressor(es) pode provocar sentimentos

contratransferênciais, devendo os profissionais envolvidos com a tarefa estarem atentos a

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essas questões para não confundirem a sua função de analisar e compreender com a de julgar,

punir, condenar ou absolver (SILVA, 2009; TJSP, 2007; BERNO, 1991).

A avaliação em casos de vitimização é um tema angustiante, pois promove defesas e

sentimentos desagradáveis daquele que avalia. Geralmente se observa falta de limites, senso

crítico e imaturidade emocional do agressor e companheiro(a), além de cumplicidade entre o

casal e da família como um todo. Destarte, não existe um perfil de agressores, podendo a sua

postura se apresentar de maneira diversa. Na maioria das vezes, eles negam a agressão

mesmo quando esta é evidente, alegando que foi outra pessoa, que a criança foi agredida por

outro infante, ou simplesmente caiu (acidente).

Podem ainda mostrar desinteresse pela situação ou revelar inapropriada

compreensão da seriedade da situação, sendo difícil, por vezes, localizá-los ou ainda

recusarem-se a dar informações e participar das avaliações. Nas situações envolvendo abuso

sexual, podem se mostrar sedutores ou mesmo muito frios, resistentes ou dissimulados,

alegando que foram seduzidos. Diversos autores destacam ser comum o agressor(a) perceber

a vítima como um “igual”, ou mesmo um rival, tornando-se esta um objeto, às vezes de desejo,

e não como um ser autônomo e desejante (SILVA, 2009; FIORELLI e MANGINI, 2009; BERNO,

1991).

Um trabalho interdisciplinar entre o poder judiciário, sistema de saúde, escolas,

assistência social, conselhos tutelares e delegacias, entre outros profissionais se faz necessário,

devendo-se criar em cada região um fluxograma do sistema de notificação e atendimento.

Uma rápida articulação entre poder judiciário e a rede de proteção se mostra indispensável

para lidar com as questões relativas à violência, devendo-se agilizar as informações de

referência e contrarreferência entre os setores (MENEZES, 2009; TJSP, 2007; BERNARDI, 2006;

GRASSESCHI, 1991).

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1.1 1.2 Vitimização de crianças e adolescentes

De modo geral define-se vitimização como qualquer tipo de violência praticada contra

criança e/ou adolescente, podendo causar sequelas irreversíveis ou até matar a vítima. A

violência nem sempre ocorre de uma só forma, podendo-se encontrá-la em qualquer de suas

variações (física, psicológica, sexual e negligência). Além disso, é importante considerar que

todo trauma físico e sexual acaba acarretando algum tipo de trauma psicológico, isto é, o

sentimento de identidade e integridade do indivíduo é significativamente alterado e rompido

(SILVA, 2009).

O art. 130 do ECA (Lei 8.069/90) estabelece a medida aplicável aos pais ou

responsáveis no caso de vitimização, em qualquer de suas formas:

Art. 130. Verificada a hipótese de maus tratos, opressão ou abuso

sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária

poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do

agressor da moradia comum.

A vitimização de crianças e adolescente geralmente é comunicada através de denúncia

formulada pelo hospital que atendeu a vítima ou pela escola, familiares, vizinhos e até mesmo

a própria vítima. Como foi apontado anteriormente, na grande maioria dos casos a violência

ocorre dentro do ambiente familiar (doméstico) ou é praticada por pessoas da própria família,

caracterizando a denominada violência doméstica (ABRANCHES e ASSIS, 2011; SILVA, 2009;

RICAS; DONOSO; GRETAS, 2006; WHO, 2002; AZEVEDO e GUERRA, 1995; BERNO, 1991).

Art. 13 - ECA. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos

contra criança e adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao

Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras

providências legais.

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Art. 245 - ECA. Deixar o médico, professor ou responsável por

estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-

escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de

que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de

maus-tratos contra criança ou adolescente.

Pena: multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se

o dobro em caso de reincidência.

Durante as entrevistas com os pais e observações com as crianças, o psicólogo poderá

detectar algum ou vários aspectos que contribuirão para supor a existência ou não de

vitimização. A partir destes procedimentos, extrair-se-á uma conclusão que poderá sugerir

medidas como acompanhamento psicológico, encaminhamento a outros profissionais ou até

mesmo instituições de acolhimento. Contudo, é válido enfatizar que como o profissional não

está presente na ocorrência do evento, não é possível afirmar se o fato em si aconteceu. O que

se pode/deve é verificar as características da situação observada, avaliar as condições

emocionais da criança/adolescente e sugerir medidas protetivas (SILVA, 2009; BERNO, 1991).

De imediato, deve-se verificar se a criança ou o adolescente tem condições de

permanecer onde está ou se é mais seguro o acolhimento ou a transferência para casa de

outro familiar. Na história dos pais, havendo relato de vitimização em sua infância, este

aspecto pode apontar um indício, o que não se significa que seja possível, apenas a partir

destes aspectos e características apresentadas por diversas pesquisas, fechar uma situação ou

mesmo prever as consequências destas práticas para o desenvolvimento da vítima (SILVA,

2009; FIORELLI e MANGINI, 2009; BERNO, 1991).

Assim como os responsáveis podem dissimular ou omitir informações, as crianças e

jovens também estão vulneráveis a esta dinâmica, haja vista a ligação afetiva e de

dependência que se estabelece entre eles. Algumas vítimas desenvolvem um sentimento de

culpa em relação ao agressor, esta referência é geralmente promovida pela manipulação do

adulto agressor, que afirma realizar aquela prática visando o bem-estar da criança ou

adolescente (SILVA, 2009; BERNO, 1991). Além disso, deve-se levar em consideração que

situações relacionadas à violência familiar envolvem questões delicadas, tais como o receio da

vítima em ser punida pelas figuras parentais, a angústia de ser afastada da residência ou então

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de ser acolhida, bem como o medo e a culpa diante da possibilidade de que sua fala possa

levar a detenção do agressor (SILVA, 2009; TJSP, 2007).

Se o fenômeno da violência se mostra complexo, não só em seu entendimento como

também em sua definição, as consequências oriundas dessas ações nem sempre se mostram

claras, podendo alguns dos sintomas relativos a estas situações manifestarem-se muito tempo

após a(s) ocorrência(s). Silva (2009) divide as consequências da vitimização em quatro tipos:

Consequências físicas: variam de pequenas cicatrizes até danos cerebrais

permanentes e morte;

Consequências psicológicas: podem se apresentar desde uma rebaixada autoestima

até o surgimento de desordens psíquicas severas;

Consequências cognitivas: variam desde déficits de atenção e transtornos de

aprendizagem até transtornos orgânicos cerebrais graves;

Consequências comportamentais: podem se apresentar como dificuldades de

relacionamento com colegas, variando até sintomas mais graves, como ideação e

atitudes suicidas ou comportamentos antissociais.

Embora um determinado tipo de violência dificilmente se apresente isolado dos

demais, uma compreensão mais específica acerca de suas consequências para as vítimas,

segundo a natureza da ação, se mostra importante. Questões relacionadas à esfera sexual,

envolvendo exploração, abuso e até mesmo falsas denúncias tem sido um dos temas mais

polêmicos e que exigem maior atenção dos profissionais tanto da área jurídica quanto da

saúde e, por isso, merecem atenção em capítulo ou unidade a parte. Neste sentido, a presente

unidade concentrar-se-á apenas nas questões relativas a outras formas de violência contra

criança e adolescentes.

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A negligência se caracteriza em uma prática que embora possa não deixar marcas

evidentes como a violência física (maus-tratos), impede que crianças ou adolescentes se

desenvolvam de maneira adequada ou possam usufruir de todo o seu potencial. Nos primeiros

anos de vida e até mesmo na vida intrauterina, déficits relacionados à alimentação ou à falta

de estimulação necessária podem comprometer o desenvolvimento infantil (SILVA, 2009;

REICHENHEIM; HASSELMANN; MORAES, 1999; BERNO, 1991). Neste sentido, pais ou

responsáveis que orientados a comparecer e participar de atendimentos e/ou

acompanhamentos na área de saúde direcionados aos filhos não o fizerem, estarão sendo

negligentes, podendo ser advertidos em juízo ou ainda, responder por crime de abandono de

incapaz:

Art. 133 – C. Penal. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado,

guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de

defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de seis meses a três anos.

§ 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a cinco anos.

§ 2º - Se resulta em morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

Em muitas situações as escolas informam os Conselhos Tutelares de que os alunos

regularmente matriculados não estão frequentando as aulas. Estas condições devem ser

primeiramente avaliadas pela direção da instituição de ensino, esgotados os recursos, os

conselheiros poderão averiguar a situação desta família, oferecendo orientação e

encaminhamento quando necessário. Quando estes casos chegam ao poder judiciário

geralmente não houve adesão ou há resistência dos responsáveis quanto às orientações,

podendo estes ser advertidos em juízo ou instaurar-se processo criminal de abandono

intelectual:

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Art. 246 – C. Penal. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução

primária de filho em idade escolar:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Art. 247 – C. Penal. Permitir alguém que menor de dezoito anos,

sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância:

I - frequente casa de jogo ou mal-afamada, ou conviva com

pessoa viciosa ou de má vida;

II - frequente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe

o pudor, ou participe de representação de igual natureza;

III - resida ou trabalhe em casa de prostituição;

IV - mendigue ou sirva a mendigo para excitar a comiseração

pública:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

Há de se mencionar ainda a negligência em relação aos cuidados de higiene, quando o

descuido ou rejeição dos pais pode provocar assaduras extensas e profundas, doenças graves,

entre outras. Mais uma vez se mostra importante enfatizar a necessidade de uma

comunicação efetiva entre o poder judiciário e a rede de proteção observando-se se o

município ou a região tem oferecido condições e políticas adequadas para que os responsáveis

possam modificar suas condutas, bem como informar sobre a inserção dos mesmos nos

encaminhamentos. O manual de procedimentos técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de

São Paulo orienta os profissionais da equipe interprofissional (psicólogos e assistentes sociais)

a solicitar relatórios trimestrais atualizados dos serviços de atendimento até que se verifiquem

mudanças significativas no sistema familiar (TJSP, 2007).

Já a violência física, também denominada de maus-tratos se caracteriza por

ferimentos como fraturas, hematomas, queimaduras ou traumatismos decorrentes de castigos

extremos e excessivamente violentos e impróprios. Problemas emocionais, condições de

vulnerabilidade social e questões relacionadas ao uso de álcool podem estar presentes na

dinâmica dessas famílias. Nas varas de infância e juventude é comum se deparar com

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populações que em sua maioria apresentam condições socioeconômicas insatisfatórias e

problemas relacionados ao uso de álcool e/ou drogas. Embora os estudos muitas vezes

apontem esse aspecto como um elemento a ser considerado na compreensão da violência

doméstica, é válido enfatizar que tais fenômenos não estão restritos apenas a estas classes

sociais, manifestando-se em todas as culturas e em diferentes classes econômicas (FONSECA

et al., 2009; WHO, 2002).

Esta forma de violência também está prevista no Código Penal (1940), podendo ser

aplicada quando todos os recursos da rede de apoio e proteção, bem como as ações do juízo

da infância e juventude se mostrar esgotados:

Art. 136 – C. Penal. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob

sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino,

tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados

indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou

inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado

contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (Incluído pela Lei nº

8.069, de 1990 - ECA)

A violência psicológica se caracteriza por comportamentos de pais ou responsáveis

que demonstram desinteresse ou agressão à criança ou adolescente, comprometendo sua

autoimagem, autoestima, provocando-lhe sofrimento emocional (ABRANCHES e ASSIS, 2011;

SILVA, 2009). Entre as várias manifestações possíveis, destacam-se as ameaças de abandono,

que podem acentuar ou gerar um sentimento de insegurança. Berno (1991) divide a

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vitimização psicológica em duas formas básicas: a negligência afetiva - quando há falta de

responsabilidade, de calor humano, de interesse com as manifestações e necessidades da

criança e a rejeição afetiva – quando há manifestações de depreciação e cerceamento contra a

criança.

Abranches e Assis (2011), em um estudo de revisão sobre o tema, destacam as

diversas consequências deste tipo de violência que apesar de não tão visível e denunciada,

acarreta: incapacidade de aprender, de construir e manter relações interpessoais satisfatórias,

assim como variações de humor e tendência a desenvolver sintomas psicossomáticos. Os

responsáveis muitas vezes justificam as atitudes como sendo funcionais ao aprendizado e à

educação, mas geralmente se destacam os seguintes comportamentos tóxicos em sua

dinâmica: rejeição, isolamento, hábito de aterrorizar a crianças em relação às situações extra-

familiares, ignorar seu desenvolvimento e corromper a sua conduta estimulando-a a práticas

antissociais.

Nas varas de família também tem sido comum os profissionais se depararem com o

fenômeno da alienação parental, que consiste em termos gerais, em programar uma criança

para que ela odeie um dos seus genitores sem justificativa, por influência do outro genitor com

quem a criança mantém um vínculo de dependência afetiva e estabelece um pacto de lealdade

inconsciente. Tais experiências privam a criança e o adolescente de se beneficiarem das trocas

afetivas por um dos pais, obrigando os profissionais que lidam com estas disputas a se

atentarem para evitar esse tipo de prejuízo (RAMOS, 2009; SILVA, 2009; FIORELLI e MANGINI,

2009; LAGO e BANDEIRA, 2009; TRINDADE, 2004).

Além destas formas de violência, Silva (2009) aponta ainda outras formas de

manifestação, como por exemplo, as tentativas de suicídio que obrigam uma atenção mais

intensa e imediata da rede de apoio e proteção, assim como os casos em que os pais, por

motivos e convicções religiosas, tentam impedir o tratamento médico dos filhos. Segundo a

autora, é possível ao juiz, nestas situações (a partir do laudo médico que atesta o risco de

vida), suspender o poder familiar dos pais até que o tratamento médico se complete. No

entanto, é necessário prosseguir os acompanhamentos, haja vista a possibilidade desses pais

ou responsáveis virem a rejeitar o filho, devido à rigidez de seus pensamentos e crenças.

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Como se pode observar, o tema relacionado à violência é demasiado complexo e

extenso, o profissional ou o pesquisador que pretende se aprofundar nessas questões deparar-

se-á com aspectos culturais e sociais que invariavelmente geram polêmica. Além disso, as

rápidas alterações que ocorrem no modo das pessoas se relacionarem entre si e com os

objetos na sociedade atual, traz à tona cada vez mais novos questionamentos, como por

exemplo, a violência extrema que vem ocorrendo entre as próprias crianças e adolescentes

denomina de bullying que se manifesta em diversos espaços, inclusive os virtuais.

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