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Vila da Paz: A Constituição Histórica do Bairro a Partir do Viés Urbanístico e Cultural KARINA VIANA DA SILVA A trajetória histórica do bairro Vila da Paz, começa a ser construída no ano de 1986 quando um considerável grupo de pessoas ocupou uma área de cunho particular nas margens de uma importante avenida, área está que é acidentada onde a mesma ao longo de sua extensão é cortada por um grotão. Mas a principio é importante localizar esse espaço enquanto elemento de análise histórica. Visto que esse bairro localiza-se na região sul de Teresina capital do Estado do Piauí. Essa região também é marcada por uma grande falta de infraestrutura, contudo essa é uma situação que vem sofrendo significativas mudanças com o processo de urbanização pelo o qual essa comunidade vem passando, ocasionando a visível transformação espacial do bairro. Assim é relevante pincelar sobre alguns elementos que estão intrínsecos nessa perspectiva da analise do bairro, além da sua própria constituição histórica. Haja vista que é necessário abordar a temática cidade, no intuito de perceber o contexto social, econômico, político e cultural no qual esse determinado espaço da cidade está inserido. Logo outra questão é encaminhada por está, a urbanização que traz consigo uma estreita relação com o componente da cidade, no sentido de que é esse fundamento que proporciona as mais variadas transformações na área da cidade. Logo outras relações surgem também nesse entremeio, são elas o elo entre memória e história oral e cultura e tradição, assim é pouco provável pensar o elemento memória sem que este esteja ancorado no arcabouço teórico metodológico da história oral, no entanto é relevante pontuar que ao se trabalhar com o signo da memória é importante levar em conta que está não reproduz o passado tal como aconteceu, e que a mesma é atualizada conforme o presente. Já no se refere a ligação entre cultura e tradição, essa procura evidenciar como esse determinado espaço se organizou através dos discursos culturais, tomando com exemplo os escritos de Thompson na tentativa de buscar os fatores sociais para experienciar o signo cultura dessa parte da cidade. UFPI, Mestranda em História.

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Page 1: Vila da Paz: A Constituição Histórica do Bairro a Partir ... · “Ânimos exaltados, duas pessoas pressas e vários casos de desmaio foi o resultado da ação das policias civil

Vila da Paz: A Constituição Histórica do Bairro a Partir do Viés Urbanístico e Cultural

KARINA VIANA DA SILVA

A trajetória histórica do bairro Vila da Paz, começa a ser construída no ano de 1986

quando um considerável grupo de pessoas ocupou uma área de cunho particular nas margens

de uma importante avenida, área está que é acidentada onde a mesma ao longo de sua

extensão é cortada por um grotão. Mas a principio é importante localizar esse espaço

enquanto elemento de análise histórica. Visto que esse bairro localiza-se na região sul de

Teresina capital do Estado do Piauí. Essa região também é marcada por uma grande falta de

infraestrutura, contudo essa é uma situação que vem sofrendo significativas mudanças com o

processo de urbanização pelo o qual essa comunidade vem passando, ocasionando a visível

transformação espacial do bairro.

Assim é relevante pincelar sobre alguns elementos que estão intrínsecos nessa

perspectiva da analise do bairro, além da sua própria constituição histórica. Haja vista que é

necessário abordar a temática cidade, no intuito de perceber o contexto social, econômico,

político e cultural no qual esse determinado espaço da cidade está inserido. Logo outra

questão é encaminhada por está, a urbanização que traz consigo uma estreita relação com o

componente da cidade, no sentido de que é esse fundamento que proporciona as mais variadas

transformações na área da cidade.

Logo outras relações surgem também nesse entremeio, são elas o elo entre memória

e história oral e cultura e tradição, assim é pouco provável pensar o elemento memória sem

que este esteja ancorado no arcabouço teórico metodológico da história oral, no entanto é

relevante pontuar que ao se trabalhar com o signo da memória é importante levar em conta

que está não reproduz o passado tal como aconteceu, e que a mesma é atualizada conforme o

presente. Já no se refere a ligação entre cultura e tradição, essa procura evidenciar como esse

determinado espaço se organizou através dos discursos culturais, tomando com exemplo os

escritos de Thompson na tentativa de buscar os fatores sociais para experienciar o signo

cultura dessa parte da cidade.

UFPI, Mestranda em História.

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Ademais são essas conexões que se procura lançar luz, com tal pesquisa visto que

essa procura destaca principalmente a temática da história oral, haja vista que este campo da

história vem ganhando cada vez mais espaço e solidez, como forma de auxilio para a

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produção da narrativa histórica. Logo o objetivo desse artigo é evidenciar o resultado das

relações de simbiose entre cidade e urbanização, memória e história oral e cultura e tradição,

no sentido de demonstrar a contribuição dessas relações para se melhor compreender as

transformações ocorridas na cidade.

Escrever sobre a constituição histórica do bairro Vila da Paz nos reporta ao ano de

1986, quando um número significativo de pessoas sem condições financeiras ocupam uma

área ociosa as margens de uma importante avenida e do terminal rodoviário de Teresina,

como fica evidente no relato de um dos primeiros moradores daquela área, onde a esse foi

questionado se ele chegou no mesmo ano que se iniciou a ocupação.

“Foi no mesmo ano, a ocupação se deu em toda área da Vila da Paz, que formam

43 hectares de chão, foi ocupada tudo no mesmo tempo, num espaço de três a

quatro dias foi toda ocupada, foi desbravada toda a mata, eu limpei o terreno aqui,

num espaço de dois dias, dois dias e meio, aqui era pequeno, eu limpei todinho, ai

encaminhei os trabalhos de cercado, levantar o barraco, que a tendência aqui era

pra ocupar a área pra não, porque o que justificaria morar é a questão da moradia

pra não deixar, digamos porque muitas vezes as pessoas marcava terreno limpava,

e por uma questão de tempo, ou questão socioeconômica, as vezes a pessoa tratava

um dia ou dois, quando chegava outro já tinha tomado de conta. E eu me passei pra

dentro do terreno praticamente dentro dos matos”1.

O outro relato é também de uma das primeiras moradoras, que experienciou esse

momento de constituição desse lugar.

Quando nós chegamos aqui só era mato, mato, não tinha mais nada só mato,

rocemos os matos, fizemos as casas, casinhas veias de palha, não tinha água não

tinha luz, não tinha quitanda, não tinha nada. Ai fiquemo, fiquemo aqui, acho que

não passou um mês que tava da invasão, que nos chegemos a policia chegou, acho

que foi um mês ou dois mês por ai, não mas foi mais. Porque quando chegaram aqui

as casas já estavam feitas. Quando a policia chegou aqui mermã, derrubou tudo,

derramou água, os meninozinhos véi da Kátia chorando, a Kátia chorando com

vontade de ir embora. Ai se juntaram todo mundo, foram pra frente da rodoviária,

ai o Wall Ferraz ia chegando de Brasília eu acho, se juntou uma comitiva de gente

pra ir lá, um bocado, um caminhazão ai, eu não fui não, eu fiquei, e lá ele disse que

não ia negociar com aquela baderna todinha, porque todo mundo tava gritando,

que todo mundo com medo de perder suas casas, ai tirou uns pessoais pra falar com

ele lá, ai ele mandou dizer pro povo que ficou aqui, que era pra todo mundo ficar

sossegado que ninguém ia sair não, que ele ia comprar, não sei se comprou, ainda

hoje o pessoal fala nisso.2

Logo também essas pessoas foram taxadas de aproveitadoras, como fica claro na

citação. “Não adianta a prefeitura dizer que a maioria das famílias é composta de

1 Passagem da entrevista concedida pelo Sr. Félix a Karina Viana, falando sobre o começo da ocupação. No dia

09.08.16. 2 Passagem da entrevista concedida pela Sra. Maria da Cruz a Karina Viana, falando sobre o inicio da ocupação e

da ação policial. 02.05.17.

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aproveitadores, pois pessoas com outros interesses não tentariam viver em um local, como

mostra a situação precária de existência dos moradores” diz ela (Jornal O Dia, 21 de Janeiro

de 1987)3.

No entanto a grande a maioria daqueles indivíduos que ocupavam aquela região de

fato não possuía recursos para adquirir a casa própria, essa ação de ocupar uma área sem as

mínimas condições de infraestrutura caracteriza bem o vertiginoso crescimento populacional

de Teresina na década de 90.

Crescimento esse que se deu de maneira desordenado salvo algumas poucas ações

do governo em construir conjuntos habitacionais, entretanto em contrapartida o numero de

ocupações e invasões era significativo, configurando o descompasso da cidade em

acompanhar esse crescimento e criar maneiras para acompanhar tal movimento. Em vista

disso no momento da ocupação existia uma deficiência de infraestrutura, saneamento básico,

e de mínimas condições para uma vida integra.

Esses elementos integrava parte da realidade dos primeiros moradores da Vila da

Paz. Contudo essa realidade não fazia parte apenas desse período, ela perdurou por pouco

mais de vinte anos, com a tardia e vagarosa chegada do processo de urbanização. Assim

muitas famílias que ali ocuparam construíram suas casas em locais de risco, por se tratar de

um terreno que não era plano e próximo de encostas de morros, além da existência de um

extenso grotão a céu aberto que percorre toda a extensão do bairro.

A aquisição do espaço do bairro Vila da Paz por seus ocupantes, foi marcado pelas

inúmeras ameaças de despejo que prosseguiu até fevereiro de 1987. Os moradores puderam

contar com o apoio de uma importante figura nesse momento, a do advogado Acilino Ribeiro,

que exercia a função de secretário municipal do interior e assuntos especiais, no mandato do

então prefeito Wall Ferraz. Além também do auxilio dispensado por parte dos sindicatos,

associações de moradores principalmente a do bairro Três Andares bem como pela Federação

de Associações de Moradores e Conselhos Comunitário do Piauí FAMCC.

As famílias unidas procuraram se organizar para rechaçar-se contra um pedido de

despejo do terreno no ano de 1987, impetrado pelo o proprietário do terreno o juiz do trabalho

Cícero Ferraz, residente em Fortaleza. Assim os ocupantes que ali residiam uniram-se para

continuar naquele local, “Há vários meses a comunidade vem se mobilizando para que o

3 Trecho da fala da presidente da associação dos moradores do bairro Três Andares.

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governo desaproprie a área. No ultimo dia 3 de dezembro houve uma passeata com mais de

500 pessoas para pressionar o juiz a rever a sua decisão” (O Dia, 13 de Fevereiro de 1987, p.

07)4.

Contudo os moradores não tiveram êxito com a mobilização, e o medo e receio de

serem expulsos daquela localidade tornou-se realidade quando a força policial chegou à Vila

da Paz, respaldos pela liminar de desapropriação da terra concedida pelo o então juiz Ozires

Neves. Os moradores decidiram rapidamente dividi-se no sentido de que uma parte ficou no

local resistindo, e a outra saiu em passeata quando tiveram conhecimento que o prefeito da

cidade, retornaria de uma viagem e desembarcaria no aeroporto de Teresina. Logo essa

mobilização tinha o objetivo de reivindicar a posse do terreno.

Nesse momento é válido destacar o relato de um desses moradores que resolveu

ficar e lutar pelo o direito a moradia.

“Houve um pedido de reintegração da posse, então quando a justiça autorizou a

reintegração da posse, ai houve uma luta muito forte do povo resistindo pra não

sair”. “Não, não foi violenta porque, como se diz a policia não veio com... A justiça,

os oficiais de justiça e um grande contingente de policial. Mas não houve assim

violência de espancarem ninguém não, por que nós... quando os oficiais de justiça,

eles vieram de maneira até educada, mandando que o pessoal saíssem das casas,

saíssem e tirassem os objetos das casas, ai eles tiravam as cadeiras, mesas e

botavam no meio da rua e desocupassem as casas. Mas nessas alturas um pessoal

se reuniram, teve algumas pessoas que orientou, que quando eles entrassem em uma

casa que tirassem os objetos cadeira mesa, botava na rua, ai eles iam pra outra

casa vizinha, o pessoal se reunia todinho e botava dentro das casas de novo. Ai o

pessoal começou a resistir. Ai começou a chegar aquelas entidades de base, como a

Famcc5 o Cepac, e tudo era entidade que organizava lutas, ai houve essa

resistência. Ai quando chegou um certo momento, que eles acharam o negócio

estava muito inflamado, eles pediram reforço, ai chegou muito reforço da policia

militar que chegou até a congestionar aquela área da rodoviária, que digamos

congestionar o trânsito. Mas o pessoal continuou resistindo”6.

A esse morador também foi perguntado se essa luta foi violenta, segundo o mesmo

essa não foi violenta, entretanto as noticias que foram propagadas no jornal O Dia (Jornal O

Dia de 13 de fevereiro de 1987, p.7), menciona que essa ação foi de cunho violento. Como é

explicitado na citação, e também em outro relato de uma outra morada.

“Ânimos exaltados, duas pessoas pressas e vários casos de desmaio foi o resultado

da ação das policias civil e militar na Vila da Paz, numa tentativa de executar a

4 Trecho da reportagem, que noticia o tumulto e a prisão na tentativa de despejo na Vila da Paz. 5 Federação de Associações de Moradores e Conselhos Comunitário, essa federação auxiliava na organização das

comissões que revindicavam melhorias para aquele lugar. Assim como também o Centro piauiense de ação

cultural 6 Passagem da entrevista concedida pelo Sr. Félix a Karina Viana, falando momento do despejo e sobre a ação

policial. No dia 09.08.16.

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ordem de despejo das famílias que construíram a favela. A confusão começou por

volta das 9 horas, policiais armados, alguns deles de escopetas, tentou expulsar do

terreno as 800 famílias que hoje ocupam a área”. “De acordo com a líder da

comunidade, Maria do Carmo Silva, a violência poderia ter sido contida caso os

policiais não tivessem invadido as casas obrigando a retirada dos moradores. A

população resistiu a ação da policia sob as palavras de ordem como “O povo

Unido Jamais será Vencido”. 7

Eu achei violenta, porque se a gente dissesse alguma coisa eles batiam na gente,

porque eles chegaram derramando tudo que achavam pela frente, querendo

derrubar as casas, ai só porque os pessoal, quando eles entraram, quando eles

começaram agir desse jeito, os pessoal da associação estavam logo aqui, ai veio

esse homem que era vereador, não sei, eu sei que ele alguma coisa ai da política, ai

foram chamado muito canal de televisão também, ai minha fia tava igual o Rio de

Janeiro, pegando fogo. Ai eles não bateram no povo, mas foram muito truculento.

Tô te dizendo, meninozinho chorando, panelazinha no fogo na lenha. A gente ia

buscar água longe e eles ainda derramava, eles derramava os tambor da casa da

Kátia tudinho cheio d’água, minha fia o bicho era ignorante pra danar, e não era

pouco não era muito, muito, era de cavalo, de carro porque carro não entrava

muito, porque não tinha muita rua, mas era mutado nos cavalos, passava e metia o

pé assim.8

Transcorrido poucas horas da luta pela permanência naquela localidade, o prefeito

sob o efeito da pressão exercida pelo o grande número de manifestantes que foram recebê-lo,

mesmo afirmando que não negociava com invasores de terra, ele decretou a desapropriação da

terra em favor dos moradores (Jornal O Dia de 14 de fevereiro de 1987, p.7).

“O prefeito Wall Ferraz assinou ontem à tarde decreto de desapropriando a área

em que se formou a “Vila da Paz”, nas imediações da rodoviária de Teresina, e na

próxima segunda feira entra com uma petição na justiça requerendo a sustação da

liminar que concede a ação de despejo na favela. “A prefeitura envidará todos os

esforços no sentido de que aqueles que não tenham teto não sejam expulsos do local

em que se encontram”, garantiu Wall Ferraz, assegurando, ainda, que lutará até o

último instante para que o ato da justiça seja suspenso e as famílias necessitadas de

moradias não sejam despejadas”.9

Logo depois dos moradores conseguirem a posse da terra, eles foram em busca das

mínimas condições de vivência naquele lugar, que era o retrato da falta de infraestrutura, uma

vez que essa localidade foi fruto de nenhum planejamento. Por outro lado essa questão abre

espaço para outras discussões, como é o caso do processo de urbanização que se deu de

maneira tardia, onde nos é permitido também perceber as transformações ocasionadas por

esse elemento no espaço da cidade, nesse sentido o elemento da urbanização pode ser vista

como expressão das relações sociais, Isto na tentativa de resignificar esses espaços, uma vez

7 Noticia sobre a ordem do despejo das famílias, ressaltando o caráter violento da ação policia. 8 Passagem da entrevista concedida pela Sra. Maria da Cruz a Karina Viana, falando sobre a ação policial no

momento da desocupação da terra. 02.05.17. 9 Noticia sobre o decreto de desapropriação assinada pelo o prefeito Wall Ferraz.

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que no caso do bairro Vila da Paz, o projeto de urbanização tem por objetivo melhorar a

região das grotas com o intuito de produzir um espaço adequado para o convivo social, pratica

de esportes configurando as relações sociais dentro de um determinado espaço da cidade.

Assim a questão da urbanização é bem discutida pelo filosofo e teórico Henri Lefebvre

(LIMONAD, 1999: 72).

Entre os pioneiros da articulação do tempo/espaço, em relação à urbanização,

temos Henri Lefebvre, para quem o espaço não se resumiria a um reflexo das

relações sociais de produção e a urbanização, por sua vez, enquanto processo de

disseminação do urbano, que ampliava-se e generalizava-se em escala mundial -

deveria ser entendida enquanto expressão das relações sociais ao mesmo tempo em

que incidiria sobre elas.

Dessa maneira para Lefebvre o significado dos termos urbano e urbanização

ultrapassa as barreiras das cidades. Visto que na sua interpretação a urbanização seria uma

reunião dos processos sociais e espaciais que possibilitaria ao capitalismo se firmar e

reproduzir suas relações principais de produção, com isso mantendo a sobrevivência do

capitalismo, uma vez que estaria solidificada no surgimento de um espaço social grande

configurado de maneira instrumental e mistificado (LEFEBVRE, 1991).

É valido lembrar que a partir do momento que se é valorizado determinado espaço

da cidade, seja por investimentos urbanísticos, o capitalismo aflora com a valorização dos

imóveis localizados naquela área, no caso do bairro Vila da Paz, por já se trata de uma região

caracterizada como o cartão postal de quem chega na cidade e desembarca na rodoviária de

Teresina, a de convir que além de procurar proporcionar um melhoramento na região, também

há interesses financeiros, pois uma parte desse projeto prevê a retirada de inúmeras famílias

que ali chegaram desde da fundação do bairro, para dar lugar a construção de prédios

habitacionais e comerciais, incentivando a especulação imobiliária.

Já no que concerne ao quesito cidade, é importante referenciar a autora que dará

suporte para tal discussão. Sendo está Célia Rocha Calvo, onde a mesma entende a cidade

como exemplo de um campo conflituoso, no qual as diversas memórias e histórias são

exemplificadas como atos de apropriação, de pertencimento social de muitos e variados

sujeitos históricos.

A autora acrescenta que a cidade pode ser compreendida nas diferentes memórias

que indica a sua materialidade de acordo com a ordenação espacial nos viveres urbanos,

caracterizando os processos que delimita sua paisagem social, assim como nos atos de

intervenção técnica e política dos projetos dominantes, bem como naqueles que se entrelaçam

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e se conflitam nas relações vividas. Complementa que as cidades transformaram-se lugares

predominantes da vida social, bem como das contradições próprias a esse processo de

transformação. Ainda segundo a autora essa diz que a arquitetura das cidades passou a ter um

ligação direta com o capitalismo industrial.

Dessa forma é imprescindível atentar para as transformações pelas quais a cidade

passar, levando em conta os processos de mudança e ordenação dos espaços além da

revitalização dos já existentes, visto que esse processo influencia diretamente o modo de viver

dos agentes sociais (Fenelon, 1999).

(...) Se compreendemos a cidade como o lugar onde as transformações instituem-se

ao longo do tempo histórico com características marcantes, queremos lidar com

estas problemáticas como a história de constantes diálogos entre os vários

segmentos sociais, para fazer surgir das múltiplas contradições estabelecidas no

urbano, tanto o cotidiano, a experiência social, como a luta cultural para

configurar valores, hábitos, atitudes, comportamentos e crenças. Com isto,

reafirmamos a ideia de que a cidade, nunca deve surgir apenas como um conceito

urbanístico ou político, mas sempre encarada como lugar da pluralidade e da

diferença, e por isto representa e constitui muito mais que o simples espaço de

manipulação do poder. E ainda mais importante é valorizar a memória, que não

esta apenas nas lembranças das pessoas, mas tanto quanto no resultado e nas

marcas que a história deixou ao longo do tempo em seus monumentos, ruas e

avenidas ou nos seus espaços de convivência ou no que resta dos planos e políticas

oficiais sempre justificadas como o necessário caminho do progresso e da

modernidade.10

É nesse sentido que procurou representar as vivencias desses “sujeitos urbanos” na

tentativa de experienciar suas memórias e lembranças sobre a constituição do bairro. Logo

essa pratica de evidenciar as memórias e lembranças são viabilizadas pelo signo da história

oral.

Partindo desse pressuposto trabalhar com história oral ainda persiste uma

resistência, pois segundo Alessandro Portelli, com o grande espaço ganho pela oralidade e

pela escrita juntamente com a racionalidade, essas seriam varridas como uma massa

espontânea. Assim Portelli em seus escritos sobre Uma História Oral Diferente, menciona que

o ritmo dos discursos populares são cheios de significados sociais irreproduzíveis na escrita,

sendo por isso que a pesquisa lança mão da história oral para apresentar as memórias dos

moradores sobre a constituição do bairro, tendo como referencia a urbanização o modo de

viver a cultura e a tradição. Assim Portelli reforça essa ideia na citação a seguir. (PORTELLI,

1997: 29).

10 Apud: SOBRE CIDADES, CULTURAS, MEMÓRIAS E HISTÓRIAS Célia Rocha Calvo. Anais Eletrônicos

– VI encontro estadual de história – ANPUH/BA 2013, ISSN 2175-4772.

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Isto é mais verdadeiro quando informantes do povo estão envolvidos: eles podem

ser pobres em vocabulário, mas sempre mais ricos em variações de matizes, volume

e entonação que os oradores da classe média os quais aprendem a imitar no

discurso a monotonia da escrita.

Certamente um entrevistado tem a possibilidade de relatar em poucas palavras

momentos e situações que durou um longo período de tempo bem como falar minuciosamente

sobre breves episódios. Com efeito, Alessandro ressalta a primeira coisa que faz a história

oral diferente, sendo esta a que conta menos sobre o evento que sobre o significado, uma vez

que isso não impeça que a história oral tenha sua validade factual, assim ele fala que;

(PORTELLI, 1997: 29).

(...) entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos

de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da

vida diária das classes não hegemônicas. Deste ponto de vista, o único problema

colocado pelas fontes orais é aquela da verificação.

Além disso, Alessandro assinala que esse tipo de fonte possui um elemento único e

preciso sem igual medida sobre o historiador, sendo este a subjetividade de quem a expõe,

haja vista que é o historiador que resolve lançar luz para o que de fato diz respeito ao seu

objeto de estudo. Paralelamente ele menciona que as fontes orais são aceitas com uma

credibilidade diferente, isto porque o valor do testemunho oral pode fixar não ao fato, mas sim

ao afastamento dele, ancorados na imaginação no simbolismo e com o desejo de emergir.

Inclusive o autor chama atenção para o fato de um sub-porduto do preconceito é a

insistência de que as fontes orais se manterem distantes dos eventos e por isso sujeita-se a

distorção da memória imperfeita. Dessa maneira Portelli nos diz que apesar do controle do

discurso histórico continuar nas mãos do historiador, é ele quem seleciona as pessoas que

serão entrevistadas para contribuir com a moldagem do testemunho colocando as questões e

reagindo as respostas, formando o contexto final do testemunho.

É quase impossível pensar a história oral sem o elemento da memória, uma vez que

na prática de experienciar os testemunhos dos indivíduos, o historiador tentar de toda maneira

instigar a memória do seu entrevistado, na tentativa de satisfazer seus questionamentos e

indagações. Assim é dentro dessa perspectiva que se perceber o quanto história oral e

memória andam juntas e se completa uma a outra.

Assim segundo os estudos de Alistair Thomson o elemento memória sofreu duras

criticas pelos os historiadores tradicionais, onde esses afirmavam que a memória não é de toda

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confiável como fonte histórica pelo o fato dessa ser deturpada pela deterioração física e pela

nostalgia que é comum da idade avançada, bem como pelas direções pessoais tanto por parte

do entrevistador como do entrevistado, além da influencia das versões coletivas e

retrospectiva do passado.

Logo os primeiros autores dos manuais de história oral citado por Thomson

desenvolveram maneiras para avaliar a confiabilidade da memória oral, assim esse método

objetivava como determinar as tendências e as fantasias da memória, além da importância da

retrospecção e a influencia do entrevistador no processo de instigar as lembranças, com isso

surgiu um novo critério para analisar as reminiscências e como mesclá-la a outras fontes para

de fato saber o que ocorreu no passado.

Entretanto nessa tentativa de eliminar as tendências e fantasias alguns profissionais

esqueceram as razões pelas quais as pessoas produzem suas memórias, além de não visualizar

como o processo de aparecimento das lembranças possibilitaria a exploração da subjetividade

das experiências vividas e da essência da memória individual e coletiva. Além disso,

Thomson nos diz que ao compormos nossas reminiscências damos sentido a nossa vida

passada e presente.

Ademais ele salienta também que ao lançamos mão dos relatos coletivos para narrar

e relembrar as experiências, não apagam as mesmas que não fazem sentido para a

coletividade, entretanto essas experiências podem permanecer na memória e se manifestarem

em outros momentos ou lugares, amparados por relatos alternativos. Dessa forma Alistair

Thomson menciona que a memória se dar em torno da relação do passado-presente

(THOMSON, 1997: 57).

A memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo

continuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas”, em

função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado. Que memórias

escolhemos para recordar e refazer( e portanto relembrar), é como damos sentido a

elas são elas são coisas que mudam com o passar do tempo.

Dito isso é considerável frisar a relação entre cultura e tradição, logo a ideia de

cultura nos remete a ideia abordada por E. P. Thompson em seu livro Costumes em Comum,

onde ele nos diz que cultura é parte de um conjunto de diferentes recursos, tendo este sempre

uma troca entre o escrito e oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole, além de

ser uma arena de elementos conflituosos.

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Ainda segundo Thompson, o costume e a cultura só poderão ser assimilados se

forem contextualizados tendo como pressuposto as transformações históricas e sendo

analisado empiricamente num determinado recorte temporal e espacial. Logo essas relações

eram conflitantes como já foi mencionado, mas para tanto ele as demonstrar ao longo do livro

evidenciando as apropriações que os britânicos tinham sobre direito, costume e lei.

Além disso, Thompson compreende e apresenta o elemento cultura para além das

análises marxistas ortodoxas que apenas a toma como uma simples fragmentação das relações

base/estrutura. Ele a entende como item dinâmico, produzido e em construção pela inter-

relação dos fatores sociais, políticos e econômico, logo isso fica evidente com a proposta de

pesquisa, uma vez que este busca os fatores sociais para experienciar o signo cultura dessa

parte da cidade.

Sobretudo porque segundo Dea Fenelon o termo cultura para o desenvolvimento de

pesquisas históricas não é recomendado abordá-la no sentido singular, mas no sentido plural,

ainda mais porque está não é de um campo exclusivo de uma só disciplina, mas sim de varias

áreas do conhecimento. Ademais porque esta também menciona que essa foi uma temática

que circulou no debate das propostas de identificar os elementos da cultura popular apenas

durante a década de 60 e 70, almejando forjar a cultura brasileira.

Dessa maneira ainda segundo Dea o meio acadêmico tentou definir a história da

cultura popular, com a prática de descrever e analisar os gostos e costumes da população de

maneira geral, configurando assim a cultura da maioria em detrimento a cultura organizada,

imaginada e transmitida pela elite.

Logo não tem como abordar o elemento da tradição e não atentar para os escritos

do historiador Eric Hobsbawm11 que afirma que as tradições foram inventadas por elites

nacionais para justificar a existência e importância de suas respectivas nações, assim como

segundo Pierre Nora, onde esse trabalha com a ideia de que existem muitos “lugares de

memória” que foram produzidos com sentido de serem preservados e transmitidos como parte

complementar das identidades históricas. Entretanto por vezes as identidades históricas

produzidas pelo signo da tradição é desfeita quando a concepção de novo é adotada para

legitimar o discurso da modernidade e principalmente da urbanização.

11 Ver Eric Hobsbawm e Ranger, Terence. A Invenção das Tradições. – Tradução de Celina Cavalcante – Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1997.

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Portanto é desse modo, buscando suporte nos referenciais elencados até aqui, que se

buscou evidenciar a constituição histórica dessa parte da cidade ancorada nos relatos orais

para apresentar como os sujeitos urbanos visualizam e interpretam a constituição do lugar que

os cerca e compõe as transformações por qual a cidade passar constantemente.

Referências

CALVO, Célia Rocha. Sobre Cidades, Culturas, Memórias e Histórias. Anais Eletrônicos –

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Jornal

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