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13 ... I ... Ainda estou meio adormecido quando sinto mãos for- tes me segurando. Tento espernear, mas parece que estou enroscado em roupas de cama, e, no minuto seguinte, sou suspenso e quem me carrega está andando depressa; bato bump-bump-bump em seu peito. Ele cheira a cerveja, cavalos e suor. E minha bochecha está so- cada contra um metal frio — um peitoral —, por isso, sei que é um soldado. Deve ser um dos rebeldes. Só que eu não achava que os rebeldes fossem soldados. Achava que eram uma horda de camponeses fe- dorentos da Cornualha, com facas de açougueiro e ferramentas de fazenda como armas. Me largue! Me... O homem muda o aperto, uma luva comprime minha boca. Ela cheira mal. Uoou! Não reaja, senhor. Está perfeitamente a salvo. As palavras são um truque, é claro: sei que estou prestes a mor- rer. Os rebeldes vieram me buscar porque sou filho do rei e querem matar a mim e a meu irmão e a meu pai. Isso para que mais alguém seja rei. Soffrr ednnf mefff! Ordens de sua mãe, senhor. Oitavo-VIII.indd 13 31-Jul-14 2:07:02 PM

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. . . I . . .

Ainda estou meio adormecido quando sinto mãos for-tes me segurando.

Tento espernear, mas parece que estou enroscado em roupas de cama, e, no minuto seguinte, sou suspenso e quem me carrega está andando depressa; bato bump-bump-bump em seu peito.

Ele cheira a cerveja, cavalos e suor. E minha bochecha está so-cada contra um metal frio — um peitoral —, por isso, sei que é um soldado.

Deve ser um dos rebeldes. Só que eu não achava que os rebeldes fossem soldados. Achava que eram uma horda de camponeses fe-dorentos da Cornualha, com facas de açougueiro e ferramentas de fazenda como armas.

— Me largue! Me...O homem muda o aperto, uma luva comprime minha boca.

Ela cheira mal.— Uoou! Não reaja, senhor. Está perfeitamente a salvo.As palavras são um truque, é claro: sei que estou prestes a mor-

rer. Os rebeldes vieram me buscar porque sou ( lho do rei e querem matar a mim e a meu irmão e a meu pai. Isso para que mais alguém seja rei.

— Soffrr ednnf mefff!— Ordens de sua mãe, senhor.

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— Mmmttrr.— Não, não sou mentiroso, senhor, e precisa parar de espernear.

Puta merda! Perdoe meu linguajar, senhor, mas seus dentes são meio a( ados.

Na luta, o cobertor no qual estou enrolado cai da minha cabeça. O soldado me segura transpassado em seu corpo, olhando agora para frente, um dos braços agarrado em volta das minhas coxas, e o outro debaixo dos ombros, a mão franzindo minha boca, aper-tando mais que antes. Meus pés estão livres para chutar, mas estão fazendo contato com nada além de tapeçarias ou — dolorosamente — paredes, portas e colunas.

Pelo menos, nos intervalos de esforço, posso ver aonde estamos indo. Estou na Coldharbour — a residência londrina de minha avó —, e o soldado me carrega pela grandiosa escadaria da frente abai-xo. Está escuro na casa, mas a espaçosa janela pela qual passamos irradia um azul suave: o amanhecer deve estar próximo. Quando chegamos ao pé da escada, vejo uma luz laranja saindo de tochas, passando pela porta, e entrando no grande salão, piscando, enquan-to ( guras escuras movem-se apressadamente por ali, bloqueando e desbloqueando a luz. Serão criados ou mais soldados? E onde estão minha avó e minha mãe? Será que também foram capturadas?

— Estamos quase chegando — diz o soldado, ao virar para o cor-redor em direção aos fundos da casa. — Em um instante, estaremos lá fora, senhor. É realmente importante que ( que quieto.

Portanto, inspiro pelo nariz, enchendo os pulmões o mais pro-fundamente que o pânico me permite, e em seguida — quando o soldado atravessa uma porta para o ar frio do pátio — grito o mais alto que consigo na mão silenciadora.

— Soffrro! Sofrro! Almmmm mm ammm!Até mesmo eu sei que o som é pateticamente baixo, perdido no

amplo espaço úmido. E — ah, misericórdia — ali fora, há soldados por toda a parte.

Eles não vão me levar; não vão; torço o corpo e me debato o quanto posso.

— Ei, não chute o cavalo, senhor. Não é justo com o pobre animal.

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Por um momento, penso que vou ser arremessado de barriga em uma sela, o modo pelo qual, segundo Compton, prisioneiros ou cadáveres devem ser carregados, mas o soldado empurra minha perna para cima e caio sobre meu traseiro — severamente, mas do modo certo.

Ouço o soldado dizer:— Sinto muito, senhora. Ele estava dormindo quando o apanhei.

Ficou muito agitado. — Expira um pouco. — Forte para um peque-nino, não?

E um braço me envolve ( rmemente pelo meio, puxando-me para trás contra um corpo, quente e ( rme, e uma voz me fala ao ouvido:

— Acalme-se, Hal. Sou eu. Estamos com pressa, apenas isso.Minha mãe.Quero me aconchegar a ela e chorar aliviado. Não entendo o que

está acontecendo, meu coração ainda bate forte, os pulmões e o es-tômago continuam inchados, mas, se posso me agarrar a ela, consi-go suportar.

Enquanto minha mãe puxa rapidamente meu cobertor, cobrindo minha cabeça como um capuz e envolvendo-o ( rmemente em meu corpo, eu me sento, aturdido por um momento, olhando para os cavalos que lotam o pátio. Eles pisoteiam, relincham e sacodem a cabeça, os arreios tinindo. Cada um com um soldado na sela.

Então pergunto, numa voz baixa e áspera que não soa como a minha:

— O que está acontecendo, mamãe? Estamos fugindo?— Não, meu bem. Apenas nos mudando para um lugar mais se-

guro. Segure-se. Aqui. — Ela dá uma palmadinha na parte da frente da sela. Eu a agarro e olho para trás, tentando vê-la com o canto do olho. Mas minha cabeça vira e o capuz permanece onde está, de modo que consigo enxergar com apenas um olho, e nada mais que o contorno de seu rosto.

Ela também está encapuzada, numa capa preta. Consigo ver a ponta de seu nariz e parte da face. Naquela luz estranha — ainda não amanheceu, mas não é propriamente noite —, a pele de minha mãe parece azul.

Ao me virar, ela envolve meu corpo, para ajustar as rédeas, e diz:

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— Vamos, capitão. Passo ( rme.Cascos tropeiam nas pedras do pavimento quando soldados

montados formam uma proteção à nossa volta. Então partimos, ocupando todo o portão do pátio ao sair e virando à direita, ala-meda acima, afastando-nos do rio. Embora seja verão, uma névoa abafadiça rasteja para a rua, vindo da água atrás de nós, e o ar tem gosto de umidade.

A alameda é estreita e escura, comprimida entre paredes pretas. Os soldados que cavalgam à frente carregam tochas 8 amejantes. Quando viramos novamente à direita, para uma rua mais larga, eles se espalham para nos cercar.

Há algo emocionante em estar na rua a esta hora, mas sei que ninguém se muda durante a noite por um motivo agradável. É a se-gunda vez que tivemos de nos mudar em apenas poucos dias.

Primeiro, viemos de Eltham, arredores de Londres, para a casa da minha avó, aqui, porque ( ca dentro da proteção das mu-ralhas da Cidade de Londres. Agora, estamos nos mudando nova-mente. Da última vez, viajamos à luz dia. Agora mal amanheceu. E nem mesmo houve tempo de me vestir.

Meus pés estão descalços e frios: empurro o esquerdo para trás, en( ando-o debaixo das saias de minha mãe, o direito se curva na direção do corpo quente do cavalo, tentando abraçá-la.

Acima de minha cabeça, ouço minha mãe dizer severamente:— Não vamos mais depressa que isto. Atrairemos muita atenção.

Não quero espalhar pânico.A voz de um homem — um dos guardas — responde, mas não

capto as palavras.Ela fala:— Disseram-me que o plano dos rebeldes era marchar ao ama-

nhecer. Não estarão perto da Cidade de Londres por umas duas horas, certo?

O homem torce as mãos nas rédeas, e seu cavalo vem para mais perto do nosso.

— Basta apenas um, senhora, que tenha cavalgado à frente. Qualquer vão de porta, qualquer entrada de beco pode esconder um homem com...

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— Já entendi.Ela o interrompeu de propósito. Vejo-o me olhar de relance, em

seguida deixa seu cavalo ( car novamente para trás.O homem deve ser o capitão da guarda; um instante depois,

ouço a mesma voz vociferar uma ordem, e cada um dos cavalos apressa o passo.

Embora batendo os dentes, consigo dizer:— N-Nós vamos ser mortos, mamãe?— Não, claro que não. — Ela parece ligeiramente impaciente. —

Aonde estamos indo, ( caremos a salvo.Mas, como disse o homem, basta apenas um.Puxando o cobertor do rosto, mantenho vigilância — através de

brechas entre os soldados de ambos os lados —, de olho em vãos de portas e entradas de becos. Em qualquer lugar onde a névoa se acu-mula e ( ca mais espessa: em qualquer lugar onde um homem con-segue se esconder. Aos passarmos por um monstruoso amontoa do em forma de prédio, a névoa engrossa numa forma que me parece humana, agachada num canto da parede. Meu coração sobe até a garganta. Devo gritar para minha mãe? Gritar para os guardas? Mas, então, a forma se movimenta e a( na, e desaparece no ar escuro. Ape-nas névoa, nada de assassino. Consigo respirar novamente.

Uma abertura entre os prédios se escancara subitamente à di-reita: a entrada para o cais. O rio parece preto-oleoso e vasto; então desaparece, quando prédios novamente bloqueiam a visão. Ratos debandam de um monte de lixo quando passamos. Lojas e casas, agora, exibem frestas de luzes entre as venezianas dos pavimentos superiores, que se projetam para a rua; criados acendem lareiras nos quartos dos patrões, como Compton faz para mim. Mas pessoas maltrapilhas já estão nas ruas. Olho-as de relance: sujas como os ratos, deslizando por sarjetas limosas para se apertarem contra as paredes das casas quando passamos. Elas me metem medo, com seus olhares vazios e rostos enrugados.

Um sino começa a tocar. Não para. Cachorros, acorrentados em pátios invisíveis, latem e ganem. Agora há outro sino, em algum lugar mais distante. E a voz de um homem, fraca no ar frio:

— Todos os homens às armas!

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Pés correndo, em algum lugar atrás de nós. Outra voz, mais perto:

— Às armas, às armas! Guarneçam as paredes.Minha mãe murmura alguma coisa que não capto. Ela usa o cabo

do chicote, e nosso cavalo dá uma guinada adiante. Os guardas à volta igualam seu passo.

A princípio, não o vejo: o homem que corre à nossa esquerda, direto por entre os cavaleiros, como se estivesse atravessando terre-no livre. Mas, quando viro a cabeça, um rosto assoma. Está perto o bastante para eu ver seus olhos injetados e a mão, que tenta agarrar, com unhas tisnadas, quebradas. Ele me alcança, dizendo algo ur-gente, aos berros.

O cavalo de minha mãe agita a cabeça, assustado, e tenta mudar de direção. Agarro-me à sela, curvado, desesperado para não escor-regar. No mesmo momento, o soldado mais próximo ataca violenta-mente com a base de sua lança.

O homem cai. Fica no chão, meio que pisoteado, e passamos por ele, já a meia dúzia de prédios adiante.

— Quem era aquele? — guincho.— Um mendigo bêbado, senhor — diz o capitão. — Só isso.Mas me sinto tão aterrorizado que quero vomitar.Depois disso, os guardas cavalgam em formação mais fechada

ao nosso redor. Finalmente, chegando ao ( m daquela longa rua, vi-ramos à esquerda e passamos por algumas velhas ruínas de pedra. O céu agora está listrado de rosa-alaranjado. Contra ele, à nossa direita, vejo muralhas cinzentas, camadas delas, erguendo-se uma atrás da outra, e, mais além, as torres de uma enorme fortaleza caiada. E sei onde estamos. Aquele é o mais antigo baluarte de Lon-dres: a Torre.

Adiante de nós, a rua segue colina acima e se alarga em imensos espaços verdejantes. Viramos à direita, atravessamos as áreas mais baixas da encosta, então minha mãe declara:

— Aqui. Graças a Deus.Chegamos a uma entrada feita de tijolos, as arestas ásperas e

novas. Paramos. O capitão da guarda fala com os porteiros. Em se-guida, os cavalos movem-se novamente, e passamos por um peque-

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no espaço, até o portão seguinte. É mais velho, esse: um arco feito de imensos pedaços de pedra gasta, fechado por uma velha porta de madeira.

— Está vendo como as paredes são grossas, Hal? — observa mi-nha mãe, quando a porta é arrastada para se abrir para nós. A voz dela soa mais leve, quase alegre.

Olho.— Conte as pontes levadiças. Conte os portões. Ninguém pode

nos fazer mal aqui.Conto-os. No terceiro portão, há uma ponte levadiça abaixada,

mas também estão abaixados os dois portais gradeados de ferro. Os guardas erguem apenas um de cada vez, e temos de esperar no espaço entre eles, enquanto, com fortes ruídos rangentes, as mani-velas são giradas — para fechar o portal gradeado atrás de nós e depois abrir o da frente.

Portão número quatro. Parece uma enorme boca negra quan-do nos aproximamos — e imagino ser devorado por um monstro. Novamente, há uma ponte levadiça, novamente um portal grade-ado de ferro abaixado, protegendo uma grande porta guarnecida de tachões. Esperamos diante dela, e vejo através de suas frestas a luz laranja das tochas dos guardas ( car mais brilhante à medida que se aproximam pelo outro lado. Correntes chocalham, e enormes ferrolhos guincham e arranham quando são puxados — e arranham novamente quando são empurrados de volta às nossas costas.

Ninguém pode nos fazer mal aqui, disse minha mãe. Acredito nela. Como é possível este lugar ser tomado? Minha mãe nada diz agora, mas, de algum modo, sei que ela ( ca mais feliz a cada portão que atravessamos.

No quinto, ao esperarmos novamente por um portal ser levanta-do, ouço um rouco grasnido de pássaros e olho para cima. Enormes formas negras volteiam no céu que se ilumina.

Então, de repente, a pele da minha nuca se arrepia. É como um instinto animal: sinto que estou sendo observado. Não por minha mãe, não pelos guardas — por alguém mais.

Acima do centro pontudo do arco da passagem há uma janela. Antes de ter de fato olhado para ela, quando meus olhos desceram

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dos pássaros para o prédio, creio que vislumbrei alguma coisa: o borrão de um rosto pálido se movimentando; um oval branco con-tra a treliça. No momento em que olho diretamente para a janela, ele some.

O portal sobe, e os cavalos começam a se mover, suas ruidosas passadas ecoando ao entrarmos sob o teto abobadado. Sinto-me rí-gido por ter agarrado a sela com tanta força e agora estou tremendo, o corpo todo arrepiado, o que torna difícil manter o equilíbrio.

Não é apenas o frio que me faz tremer. Um pensamento assus-tador surge em minha cabeça: e se, a( nal de contas, o perigo não estiver lá fora? E se houver algo ali dentro esperando por minha chegada? E se os ferrolhos que se fecham atrás de mim estiverem me trancando aqui dentro com ele?

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