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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR CONFISSÕES DE UM LOBISOMEM E OUTRAS LENDAS URBANAS MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR E OUTRAS HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS MEMÓRIASMM 1

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

CONFISSÕES DE UM LOBISOMEM E OUTRAS LENDAS URBANAS

MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR E OUTRAS HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

MEMÓRIASMM

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JOÃO ANATALINO

SUMÁRIO

Confissões de um lobisomemAssassino atrapalhadoAs Virgens de AláCorpo secoA filha do pipoqueiroO Último SonhoSombras no fim da EscadaO outro lugarA viúva negraO senhor das trevsO Mistério da Rua CincoTrês CruzesO neto do professorA capela do Pai JustinoDever de médicoEnterrado vivoQuarta-feira de cinzasHitler reencarnadoO braço da morteA múmia do general

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Confissões de um lobisomem

Desde pequeno sempre senti essa presença sutil impressionando os circuitos da minha mente. Em meio aos pensamentos normais ─ aqueles que eram construídos com os elementos da educação diária que eu recebia ─ de vez em quando se intrometia um pensamento intruso que me mandava executar comportamentos completamente diferentes daqueles em que eu estava sendo educado.

As ações que as crianças da minha idade praticavam, nessas ocasiões, me pareciam tão ridículas e idiotas, que eu me recusava a participar delas. Alguma coisa me dizia que eu era diferente.

Não acredito em espíritos, mas a única forma de explicar uma sensação dessas para alguém que jamais teve semelhantes sinestesias é que eu me sentia possuído por alguma entidade diferente do meu próprio ego, quando isso acontecia. Era algo assim como se outra pessoa estivesse dentro da minha cabeça, me falando de coisas que nada tinham a ver com aquele mundo em que eu estava sendo educado.

Tudo começava com um zumbido estranho que ressoava dentro da minha mente, como se alguém tivesse ligado um rádio em ondas curtas dentro dos meus ouvidos e aquele som intermitente e metálico me injetasse no cérebro uma nova personalidade. Então me vinha aquele frêmito, aquela vontade de extinguir, de quebrar, de destruir alguma coisa. E principalmente de morder.

Lembro-me que a primeira coisa que destruí foi um boneco que ganhei de um de meus tios. Era um bonequinho

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JOÃO ANATALINO

todo risonho, um palhaço que soltava sonoras gargalhadas quando a gente coçava a barriga dele. Eu tinha, acho, uns cinco anos naquele tempo. Lembro-me bem daquele sentimento, pois foi a primeira vez que o prazer de matar alguma coisa foi registrado em meu sistema neurológico e desde então ele se tornou uma âncora poderosa para os meus centros de prazer.

Eu aprendi que destruir, ferir, matar, era gostoso. Lembro-me bem disso. Veio primeiro o chiado da onda curta, e então eu olhei para aquele boneco risonho ali na minha frente, soltando aquela gostosa gargalhada, com aquela boca enorme, pintada de felicidade e regozijo, e de repente me vi odiando a alegria dele, e me senti sofrendo com a felicidade que ele parecia estar sentindo; e no momento seguinte lá estava eu, mordendo  e rasgando com os dentes e as unhas, com uma fúria canina, aquele boneco de pano. Sentia, ao praticar esse ato, uma volúpia, uma febre, um prazer imenso ao retalhar aquele boneco, como jamais sentira em nenhuma outra atividade até então.

Depois, para completar o prazer que me trouxera a vista do boneco ali, retalhado, dilacerado, destruído, ateei fogo os seus restos e fiquei a vê-lo queimar até o último pedacinho de pano, imaginando como seria delicioso se ele fosse vivo e pudesse sentir a dor da sua carne queimando, o cheiro nauseabundo da gordura se derretendo, como aqueles padres da Inquisição devem ter sentido quando mandavam para a fogueira os seus concorrentes mais temíveis, as bruxas, os magos e os feiticeiros.

Como já disse, as atividades dos meninos da minha idade me aborreciam. Lembro-me de quão ridículo eu achava aquelas brincadeiras com massinha, aqueles desenhos idiotas que meus coleguinhas de escola faziam. E também odiava ficar jogando bola no pátio ou praticando qualquer outro tipo de esporte. Só havia uma brincadeira que eu gostava de participar. Era o

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

garrafão. Coitado do moleque que tinha o azar de ficar na boca do garrafão. Eu dava tanta porrada nele que aquilo que devia ser uma mera atividade lúdica acabava se tornando um verdadeiro massacre. Nessa brincadeira o menino que fica na boca do garrafão tem que atravessar um espaço em forma de garrafa desenhado no chão, pulando numa perna só, como um saci. Se ele falhar, os “inimigos” que estão nas bordas do garrafão, podem correr atrás dele e dar pancadas, com o punho fechado, nas suas costas. É claro que essas pancadas deviam ser leves, mas eu dava porrada mesmo. E batia com toda a minha força. Depois de um tempo não me deixaram mais brincar porque eu machucava os colegas.

Quando eu me tornei adolescente comecei a praticar boxe. Não pelo esporte, mas pelo puro prazer de bater mesmo. Minhas lutas geralmente acabavam em briga. Eu queria sempre bater, arrebentar, ver o sangue correr. E nem importava que o sangue escorrido fosse o meu. Aliás, era quando eu sentia o gosto do sangue na boca, nas vezes em que era ferido, ou o calor dele na minha pele, que eu me sentia mais motivado para brigar. Ai então me vinha aquele ímpeto de matar, de extinguir, de arrebentar quem estivesse na minha frente, que me dominava por completo e eu não via mais nada além das manchas vermelhas que se formavam nas minhas retinas, nem ouvia mais nada além da voz que dizia mate, mate, mate...

Fiquei jovem e essa disposição não mudou. Brigar, bater, ferir continuaram a ser a minha diversão preferida. A outra era caçar. Mas essa, infelizmente eu não podia praticar porque há muito a caça se tornou proibida neste país. Eu então costumava comprar pequenos animais domesticados, como coelhos, galinhas, patos e praticar com eles a arte da caça, caçando-os como um cão faria, e matando-os da mesma forma.

Não tinha amigos, apenas companheiros de rixas, que provocávamos amiúde, quase toda noite, só pelo prazer de machucar alguém.

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JOÃO ANATALINO

Mas claro que eu sabia que essas coisas que a minha voz interior me inspiravam não se podiam fazer impunemente. Era pecado, era errado, era contra a lei de Deus e dos homens verter o sangue dos outros somente por puro prazer. Desde pequeno sempre me ensinaram essa ladainha. E eu sempre soube fazer essa distinção. Fui á Igreja, aprendi os mandamentos, os ensinamentos da religião e sei muito bem a distinção entre o bem e o mal. Não sou um psicopata. Aliás, conheço a diferença entre um louco e uma pessoa sã. Sei que a pessoa sã consegue distinguir entre o que é realidade e fantasia e o louco não. Entre o que a sociedade escolheu como certo e o que ela definiu como errado.

Eu apenas sinto gosto pela destruição. Lembro-me bem da primeira vez que eu destruí uma vida. Foi uma formiga. Lembro-me disso, não pelo ato em si, que é banal, mas pelo sentimento que eu experimentei na ocasião. Foi o requinte com que eu pratiquei o ato, o ritual, a intenção e o prazer que tudo isso me deu que me faz lembrar disso até hoje. Aliás, quando garoto, especializei-me em torturar e matar insetos. Pegava-os com uma pinça de tirar cílios que a minha mãe tinha jogado fora, e ia dissecando-os, com um canivete, pedacinho por pedacinho, tirando primeiro os ferrões, depois as patas, a cabeça e por fim o corpo, imaginando, em cada seccionamento, a dor que eles poderia estar sentindo. Era uma delícia.

Fiz isso com formigas, caracóis, minhocas, grilos, lagartixas, ratos, coelhos, galinhas, até que, com dezoito anos de idade, resolvi experimentar essa minha habilidade com um gato. Matar um gato é coisa muito fácil. O difícil é pegá-los. São bichos muito ariscos e desconfiados. É bobagem o que dizem deles, que tem sete vidas e mais. Na verdade, eles são animais de vida extremamente frágil.

Observei isso um dia, quando uma cadela que eu tinha em casa pegou um gato de jeito. Ela era uma enorme cadela da

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

raça pastor alemão, e o idiota do gato foi cair do telhado justamente na boca da danada. Ela o abocanhou de um golpe só e com uma técnica espantosa cravou os dentes pontiagudos no corpo dele, como se fosse um médico fazendo incisões no corpo do felino com seus afiados bisturis.

Cada mordida parecia ter sido estudada meticulosamente. Mordeu primeiro no peito, depois nos flancos e por último na garganta. E o infeliz bichano entregou a sua maldita alma sem um gemido, sem um gesto de defesa, como se aquilo tivesse sido tudo combinado.

Vocês não podem imaginar o prazer que senti ao observar aquela cirúrgica operação praticada pela minha cadela, e ver a vida do gato se extinguindo como um pavio de lampião que alguém apaga aos poucos.

Foi então que decidi imitar minha cadela e ver se eu conseguia obter idêntico resultado fazendo eu mesmo uma operação semelhante. Meu vizinho tinha um gato rajado que às vezes costumava passar para o meu quintal. Eu o havia visto várias vezes tentando roubar comida na nossa cozinha. Sempre que minha mãe fritava sardinhas o danado aparecia e ficava miando do lado de fora da cozinha.

Costumávamos expulsá-lo jogando alguma coisa nele. Mas naquele dia, peguei algumas sardinhas e fui para o fundo da casa. Dei-lhes pequenos pedaços, aos poucos, até conquistar a confiança dele. Então, depois de algum tempo, ele deixou que eu o acariciasse, que passasse as mãos no seu pescoço. O danado se arrepiava todo com esse toque. Então, quando percebi que ele já não tinha mais medo de mim, peguei uma velha cinta do meu pai e fiz com ela uma coleira, que coloquei no pescoço dele. Depois amarrei a ponta da improvisada coleira numa grade de ferro de uma das janelas dos fundos da casa. E lá deixei o gato, pendurado pelo pescoço, como se fosse um condenado à forca.

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JOÃO ANATALINO

Meu pai e minha mãe trabalhavam fora e não estavam em casa, de maneira que ninguém poderia ver a minha arte. Fiquei praticamente a tarde inteira me deliciando com o gato se estrebuchando na improvisada forca. E enquanto observava o bicho ir perdendo pouco a pouco a consciência, imaginava o quão prazeroso devia ser aqueles tempos antigos em que as execuções na forca eram feitas em praças públicas. Como deveria ser divertido ver os indivíduos balançando na corda, procurando desesperadamente o ar que não lhes passava pela garganta obstruída, e pouco a pouco aquelas línguas que iam ficando pretas, os olhos injetados de sangue, os intestinos soltando os seus pestilentos conteúdos...

E como eu me divertia ao ver o sangue que ia tingindo os olhos daquele gato de um vermelho vivo, á medida que ele se debatia e miava, cada vez mais lento em seus movimentos, cada vez mais fracos em seus miados.

Mas o que fiz depois foi mais prazeroso ainda. Quando ele estava em seus últimos estertores de vida enfiei meus dentes na garganta do já moribundo animal, uma, duas, três vezes, com a precisão de um cirurgião, como minha cadela havia feito, e fiquei ali, olhando para o líquido que escorria da garganta dilacerada dele, formando uma poça vermelha e viscosa no chão. Nessa altura o infeliz animal já não conseguia nem mais miar. E o último som que ele emitiu foi um chiado rouco, gutural, de vida que dava sua última informação sonora.

Ah! Esse foi um momento realmente delicioso. Depois peguei o pequeno cadáver e o enterrei no quintal, plantando em cima da minúscula cova um ramo de arruda. Não sei dizer a razão, mas essa planta sempre esteve conectada em minha mente com alguma coisa sinistra, macabra. A verdade é que cheiro dela me embriaga.

Durante um bom par de meses eu ia todos os dias olhar a pequena sepultura, com aquele pé de arruda a dar-lhe uma estranha conformação. Aquele era o símbolo do meu pequeno

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

delito, a primeira e real experiência de tirar uma vida significativa, e eu agora sabia como era isso. Essa sabedoria me fazia sentir superior a todos os outros jovens do meu rol de relacionamentos, que só sabiam conversar sobre garotas, futebol, baladas, drogas e outras bobagens do gênero. Idiotas. Não sabiam que a droga mais embriagante era a experiência de dar a morte.

Três anos haviam se passado após essa minha experiência fantástica e eu quase já me esquecera dela. Mas meu instinto de destruição, no entanto, havia se aguçado ainda mais desde então. Passara a andar armado com meu canivete de molas, e até para dormir eu não me desgrudava dele. Sentia um prazer imenso ao ver o medo que os outros rapazes tinham de mim, principalmente quando eu fazia saltar do cabo, com um tique metálico, aquele estilete afiado e ficava a fazer firulas com ele. Ninguém tinha dúvidas que eu seria capaz de enfiar aquela lâmina no peito de qualquer pessoa que me aborrecesse, por isso todos ficavam longe de mim e me tratavam com muito cuidado.

Tenho consciência de que ninguém gostava de mim e eu não tinha a menor preocupação quanto a isso. Eu também não gostava de ninguém. As pessoas me aborreciam. Minha única amiga era a minha cadela pastor. Talvez porque ela também tivesse os mesmos instintos que eu. Ela sabia matar como ninguém. E parecia sentir um enorme prazer com isso.

Na verdade eu até a invejava. Ela podia matar os seus inimigos sem constrangimentos de espécie alguma. Eu não. Se os fizesse iria parar na cadeia. Malditos valores de civilização que nos fazem mitigar até os nossos instintos mais naturais! Ela liquidava gatos, galinhas e outros animais que cruzavam seu caminho com uma técnica invejável. Nosso quintal era grande e tinha muitas árvores. Morávamos um pouco afastado do núcleo urbano e de vez em quando apareciam lá alguns

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JOÃO ANATALINO

bichos do mato, como esquilos, gambás e ouriços. Ela matava todos. Uma vez tive que levá-la a um veterinário para tirar as centenas de espinhos que ficaram espetados na sua boca depois de matar um ouriço que inadvertidamente tivera a infelicidade de entrar no nosso quintal.

Em principio não percebi a mudança que se operara no comportamento dela. Tornara-se mais arredia, mais irritadiça, e quando eu me aproximava dela ela fugia. Isso levou alguns dias e eu pensei que ela tivesse com alguma doença. Foi então resolvi levá-la ao veterinário. Afinal, ela estava ficando velha. Mas quando fui colocar a coleira nela ela me arranhou. Tentei novamente e ela me mordeu. Daí quem teve que ir ao médico fui eu. Tomei vacina contra raiva e remédios antitetânicos. Falei com meu pai e resolvemos prendê-la no canil. Depois chamamos o veterinário para vir vê-la. A consulta não revelou nada de diferente com ela. Ela se comportou docilmente como sempre fizera quando eu a levava ao veterinário. Ai eu notei que a má disposição dela era apenas comigo. Com meus pais e outras pessoas ela era a mesma cadela brincalhona e carinhosa de sempre. Apenas quando eu me aproximava era que ela mudava de comportamento.

Não havia notado então que o chão, no pé do capão de arruda que havia no fundo do quintal estava bastante remexido. Não notara porque o pé de arruda que eu plantara lá havia crescido tanto que se tornara um arbusto de sólidas proporções. Mas justamente no lugar onde eu enterrara o gato, três anos atrás, havia um buraco de cerca de uns cinquenta centímetros de profundidade, feito na terra revolvida, como se ali alguém tivesse escavado com as próprias mãos. E não havia ali nem sinal dos ossos do gato.

Naquela noite fui dormir bastante preocupado. Fiquei pensando no que acontecera e não tive dúvidas que a cadela havia escavado a sepultura do gato e removera os seus ossos.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Mas o que será que ela fizera com eles? Certamente não os comera, pois os mesmos já deviam estar completamente secos. E se assim fosse, algum fragmento deles restaria pelo quintal. Eu estava na cama pensando nessas coisas e o cheiro de arruda invadia o meu quarto. Nem me dei conta disso a princípio, por que era normal sentir esse cheiro, dado que havia bastante pés dessa planta em meu quintal. Mas nessa noite estava demais. O cheiro estava insuportável. Meu pai costumava podá-los sempre que eles encorpavam muito. Talvez ele tivesse deixado os galhos que havia cortado em baixo da minha janela. Abri então a janela para olhar e só tive tempo de gritar quando a enorme sombra pulou pela janela e cravou os dentes no meu pescoço. Na luta que se seguiu eu levei, evidentemente, a pior. Só não morri por que não tinha que morrer. Também tenho certeza que não foram os médicos que me salvaram. Foi alguma outra providência que me reservou e me escolheu para ser o que sou hoje. Minha cadela tinha feito comigo a mesma coisa que ela fazia com os animais que ela matava. Enfiou na minha carne os seus dentes pontiagudos, com cirúrgica precisão, pelo menos umas cinco vezes. Meu pai ouviu os meus gritos, o barulho da luta que se travava no meu quarto e chegou a tempo de me socorrer. Com dois tiros ele matou a cadela e depois me levou para o hospital, quase já sem vida.

Mas eu não morri, como é óbvio. Por alguma razão eu sobrevivi e daqui a algumas horas, quando a noite estiver avançada, um gato miar no telhado e um cão uivar para a lua cheia, que então estará brilhando no céu como uma enorme lâmpada pendurada no teto de um imenso salão, então uma estranha transformação se operará no meu organismo e eu terei finalmente adquirido a conformação física apropriada para esse instinto que eu tenho desde que nasci.

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JOÃO ANATALINO

E quando as trevas ficarem mais densas, eu estarei numa dessas esquinas qualquer esperando por você. Você me reconhecerá pelo cheiro de arruda que eu exalo. Mas não terá tempo para pensar, porque no momento seguinte uma sombra negra pulará sobre a sua garganta e o único sentimento que ainda terá tempo de experimentar será o calor dos meus dentes rasgando a sua carne com cirúrgica precisão. Sinto muito por você, mas esse sou eu, esse é o meu instinto. Agora, finalmente, posso exercê-lo sem culpa.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Assassino atrapalhado

Alguma vez em sua vida você já experimentou uma paixão tão intensa, tão avassaladora, capaz de dominar por completo a sua mente, a ponto de não o deixar pensar em mais nada? Uma força que comanda a atividade do seu cérebro e por mais que você tente assumir o controle da sua vontade, para mudar o curso das representações mentais internas que você faz, não adianta, pois o pensamento sempre volta, instantaneamente, naquela imagem que você quer suprimir?

Se um dia você já se sentiu assim, poderá me entender; se não, sugiro que fique quieto e não emita nenhuma opinião. Você está mesma posição das pessoas que fizeram parte daquele júri que me condenou. O que sabia aquela gente do que eu estava realmente sentindo? Nada. Para eles, eu era um estranho, um assassino, um demônio que precisava ser exorcizado do corpo da sociedade, para que seus membros pudessem dormir em paz o sono da mentira e da hipocrisia, crentes de que o bem havia sido preservado e o mal devidamente punido.

Sim, de certo eles fizeram bem o seu trabalho. Todos eles. Até o maldito promotor que me denunciou foi muito eficiente. Em sua demagógica arenga ele colocou toda sua habilidade dialética para mostrar ao júri que eu era culpado, que eu era um monstro asqueroso, uma criatura cruel e repugnante, cuja maldade excedia qualquer entendimento. Mostrou, com todas as imagens e letras que conseguiu eliciar

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JOÃO ANATALINO

no seu vasto repertório lingüístico, que eu não merecia nenhuma clemência e devia ser condenado à pena máxima sem qualquer apelação.

Ouvi a réplica da defesa e intimamente saudei meu advogado pela força que ele estava fazendo, para provar o impossível. Pobre homem! Como é difícil lutar por uma causa perdida. Como é inglória a tarefa de tentar desconstruir uma verdade, que por si mesma já esta provada.

Eu sabia que o meu caso era indefensável e teria comparecido ao tribunal sozinho, mas a hipocrisia do sistema jurídico não permite que ninguém se apresente em um tribunal sem uma defesa, mesmo que o acusado já tenha reconhecido publicamente a sua culpa e a tenha assumido cabalmente.

Até mesmo o diabo teria que ter um advogado se um dia fosse levado às barras dos nossos tribunais. E é bem possível que acabasse sendo absolvido, pois que nesses teatros de pantomimas, o que vale são as habilidades dialéticas dos causídicos e não a verdade dos fatos que ali se discute. E no inferno, como se sabe, há muitos mais advogados competentes do que no céu.

Mas no meu caso, eu não fazia a menor questão de escapar sem penalidade. Eu mesmo forneci as provas, eu confessei, eu fiz questão de não deixar nenhuma dúvida sobre a minha culpa. E o meu defensor, que fez jus ao mérito da sua profissão, evidentemente não podia fazer mais do que fez. Ele tentou de tudo; sacou todos os recursos que tinha na sua polpuda caderneta de cultura jurídica, mas foi em vão. Procurou até levar o caso para a seara dos crimes passionais. Falou da violenta emoção que prejudica a razão das pessoas em momentos como esse, da comoção que eu devia estar sentindo, do sentimento de rejeição que me levou a perder a cabeça, etc. O coitado esgotou todo o seu repertório de conhecimentos psicológicos e jurídicos e fez o possível e o impossível para convencer o júri de que eu era um caso de internação em

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

manicômio judicial e não um assassino frio e metódico que deveria passar uma longa temporada numa penitenciária de segurança máxima.

Não conseguiu. Não havia meios de conseguir. Contra fatos não se opõem argumentos. Afinal, eu mesmo me incriminara. Confessara, com riqueza de detalhes, a minha participação no crime e declarara, com firmeza e concisão, as minhas motivações.

Tudo muito simples e muito claro. Não havia motivos para dúvidas e hesitações. Então, o júri não fez por menos. Votou com unanimidade pela condenação. Não fiquei aborrecido com isso. Eles tinham razão. Eu era mesmo culpado. Por isso ouvi a acusação com a placidez de um oficial nazista no Tribunal de Nuremberg. Frio como o interior de uma geladeira. Impassível como um guarda no Palácio de Buckingham. Era como aquilo não fosse comigo. Como se estivessem falando de outra pessoa e não de mim.

Não movi um músculo na minha face quando o juiz abriu aquele fatídico envelope com o veredicto. Nem quando ele pronunciou a sentença. Menos ainda quando a pena foi cominada. Fiquei impávido como uma estátua de pedra, tal qual um impassível moal pascoano, olhando, com olhos fixos e vazios, o infinito do oceano fundindo-se ao longe com o azul metileno do céu.

Minha frieza deve ter acalmado a consciência dos jurados, pois ela mostrava que eu era mesmo tudo aquilo que a acusação argumentou que eu era. Um monstro sem entranhas, um miserável sem alma, um psicopata assassino que não sentia um pingo de remorso diante da enormidade do crime que perpetrara. E nem precisava tanto. Estava tudo tão meridianamente claro, tão cristalino, que sequer se precisaria de tanta arenga para convencer o júri da minha culpa.

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JOÃO ANATALINO

O que tem de ser, que seja. Eu ofendi a sociedade e peguei trinta anos de cadeia por causa disso. Que fossem cem, não me importaria. Nada me importa agora. Por isso renunciei até a apelação.

Tudo aconteceu simplesmente porque eu me apaixonei. Nunca tinha sentido nada igual àquilo. Um desejo ardente de estar com uma mulher todas as horas do dia. Uma ânsia louca de abraçá-la, beijá-la, fazer amor com ela. Aquela mulher era o meu primeiro e último pensamento diário.

Deus! Como é bom se sentir assim. E como isso dói também. Uma paixão como essa é o maior dos prazeres e a mais atroz das dores!

Eu era um homem que se pode chamar de muito bem sucedido. Perto dos quarenta anos bem vividos, naquela fase em que se está cheio de entusiasmo e com muitos planos na cabeça. Tinha uma existência para lá de confortável, invejável mesmo. Minha empresa era próspera e respeitada. Eu tinha um padrão de vida elevado, uma vida social intensa e gozava de um respeito profissional conquistado com muito trabalho e competência.

Obtive tudo isso praticando uma disciplina de vida quase espartana, que deixava pouco espaço para sentimentos pessoais e aventuras românticas mais sérias. Programei a minha vida e apliquei o meu talento e capacidade para a realização de um único objetivo: ganhar dinheiro e usufruir do prazer que ele pode proporcionar.

Com tudo isso, eu pensava, poderia comprar amigos, satisfação pessoal e até amor. Sucesso profissional e dinheiro, esses eram os meus sinônimos de felicidade, e até então, eu acreditava piamente que havia me enganado. Eu tinha tudo isso e era exatamente o que queria e precisava.

Durante vários anos não precisei me queixar do modo de vida que eu escolhi. Ele me satisfazia plenamente. Sentia-me

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

feliz, estável, autossuficiente. Casei-me três vezes, tive vários relacionamentos com mulheres lindas, charmosas. Algumas eram até inteligentes, pois conseguiram viver bem comigo alguns bons anos e depois me tiraram uma bela grana no momento da separação.

Nem disso eu me queixava. Afinal, sempre respeitei gente que tem boas estratégias para ganhar dinheiro. Mesmo que esse dinheiro seja baixado da minha conta bancária. Tudo bem. Nunca me importei em pagar o preço do meu prazer. Foi isso que eu comprei e foi isso mesmo que eu recebi. Elas se deram bem e eu tive o que queria delas. Todo negócio é bom quando satisfaz os dois os lados.

Mas é claro que eu sabia que nada do que eu tive com elas era amor. Tinha certeza que não era, porque sempre tive consciência dos meus estados interiores. Sei quando gosto e quando não gosto. Quando estou alegre e quando estou triste. Aprendi a identificar quando estou ganhando ou perdendo na vida. Quando estou satisfeito ou insatisfeito. Nunca fui um homem dividido, incapaz de isolar e entender os meus sentimentos. Psicólogos e psiquiatras morreriam de fome se dependessem de clientes como eu. As igrejas também ficariam vazias e os profissionais da fé teriam que procurar, ou arrumar outra forma de enganar as pessoas para tirar o dinheiro delas.

Nunca me apaixonar, nunca me ligar a ninguém por laços de sentimento, de emoções profundas, de envolvimento comprometido, era uma opção consciente que eu fizera. Eu escolhera essa alternativa de vida e estava feliz com ela. Ela me dava liberdade para me relacionar com quem quisesse, na hora que eu quisesse e como quisesse. Assim, meus relacionamentos acabavam sendo praticamente negociais, daqueles que quando não estão mais produzindo os resultados desejados, a gente paga a multa contratual e desfaz o negócio sem levar para casa nada mais do que um desfalque na nossa conta bancária. Mas

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JOÃO ANATALINO

isso era o de menos para mim, por que dinheiro eu tinha de sobra.

Foi assim até o dia em que encontrei aquela mulher. Aconteceu numa festa. Eu não a conhecia pessoalmente, mas já tinha visto a fotografia dela em jornais ou revistas. Ela não me chamara muito a atenção até então. Afinal, eu não sou mesmo um tipo muito visual. A mensagem visual, para mim, não é muito impactante. Isso significa que o que eu vejo não me impressiona, pois logo a minha mente procura decompor a imagem para tentar descobrir o que há nela de produzido e o que sobra de natural.

Não me comovo com o que vejo nem me emprenho pelos ouvidos. Na verdade, eu sou um tipo muito sinestésico. Por isso não costumo comprar nada pela aparência, pelo designe ou pela cor. Nem pelo que se fala do produto. O que eu vejo não faz minha cabeça. Sou daquele que quer testar, provar, pegar, tocar, cheirar, degustar, fazer test drive.

Adoro o feeling da sinestesia pura. Por isso tenho absoluta certeza que tudo aconteceu quando peguei na mão dela, no momento em que ela me cumprimentou. Ainda agora sinto o calor daquela mão na minha. Lembro-me que o aroma do hálito dela me atingiu como uma brisa, uma brisa que tendo atravessado o laboratório de um perfumista, vinha me informar que uma nova e embriagante essência havia sido sintetizada com as flores que ela havia tocado.

E aquela pele macia que cobria a pequena e cinzelada mão que ela me estendeu para eu apertar...; a mão que eu apertei e em seguida beijei, muito menos para demonstrar cavalheirismo e muito mais para sentir o gosto da pele dela em meus lábios...

Ah! Com uma mulher daquela eu me tornaria até monogâmico, pensei imediatamente. Renunciaria às minhas crenças e viveria até o fim da vida em perfeita união conjugal,

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cumprindo à risca todas as falsas promessas que a gente faz no altar, diante do padre e das testemunhas.

Em poucos minutos de conversa e de contemplação eu já sabia que havia me apaixonado irremediavelmente. Tinha quebrado minhas próprias regras e me tornara, para sempre, vulnerável. Sentia-me como um cangaceiro, cujo corpo fechado havia sido aberto naquele instante por um feitiço irresistível.

Ela era uma socialite. Por isso eu tinha visto sua foto nos jornais e revistas. Uma professora universitária que fazia muito trabalho social. Aquele jantar estava sendo promovido pela ONG que ela presidia. Tratava-se de um evento organizado para arrecadar fundos para as obras de caridade que a sua entidade patrocinava.

Que maravilha! Além de linda, cativante, também fazia um meritório trabalho social. Não que isso me impressionasse de qualquer modo. Não sofro dessa doença chamada responsabilidade social. Sempre achei que Deus fez os empresários para ganhar dinheiro e os padres, pastores e filantropos para fazer trabalho social. Uns e outros são úteis para a dinâmica da sociedade, mas que cada um cumpra seu papel sem meter o nariz no negócio do outro. Às vezes fazemos parcerias, quando o interesse nos une, mas a coisa não deve passar disso.

Agora, quanto a aquela mulher, ela era deveras fascinante! Era perfeita. Uma professora universitária, intelectual, que se movimentava elegantemente pelos salões da sociedade paulistana, altiva como uma rainha, com a graça de uma bailarina clássica no palco! Era o autêntico modelo da intelectualidade inteligente, que faz sucesso na vida pessoal e social, sem aquele ranço do socialista invejoso que vive criticando quem tem muito dinheiro, porque simplesmente, ele

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não consegue ganhar nenhum. Também não tinha nada a ver com o capitalista envergonhado, que patrocina projetos sociais para purgar a culpa que sente por ter ficado rico empesteando o ambiente com os resíduos da sua fábrica, ou do comerciante hipócrita que se sente culpado por manter um “caixa dois”. Ela parecia acreditar piamente no que fazia e tudo nela era natural.

Não tive dúvidas que ela era, realmente, a mulher que a vida inteira eu andara procurando sem saber. Nunca encontrara uma mulher de verdade, que fizesse o meu peito arder de vontade de estar com ela. Geralmente o meu ardume costumava se manifestar em outro lugar, no baixo ventre, entre as pernas. Nunca naquele lado do peito, onde fica o coração. Por isso adotara aquele comportamento de cínico inveterado, de machão imune a qualquer envolvimento que passasse de prazer, fosse o prazer do sexo, ou o que vinha da certeza de saber que os outros homens me invejavam, pela capacidade que eu tinha de estar sempre acompanhado por mulheres elegantes, deslumbrantes, vistosas, gostosas, que provocavam a cobiça dos outros homens. Na verdade, o meu amor era puro erotismo e ostentação.

O convite para esse jantar me foi oferecido por um cliente. Fui porque estava avulso mesmo. Acabava de me divorciar da terceira esposa (uma das que me levou uma boa grana) e pronto para saltar sobre o cavalo que passasse encilhado em baixo da minha janela. Então fui ao tal jantar, até porque o meu cliente me garantiu que lá encontraria algumas mulheres bonitas.

O jantar não foi grande coisa. Os mesmos canapés, as mesmas massas e escalopes ao molho madeira, o mesmo vinho barato, ou uísque de segunda, que se costumam servir nessas festas. Mas quando ela veio à minha mesa e pegou na minha mão para me cumprimentar, então o raio caiu em cheio na minha cabeça. Aquele rosto angelical, com aquela cascata de

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cabelos castanhos claros caindo em cachos sobre os ombros esculturais, aqueles lábios rubros e sedosos, os olhos de um azul profundo e tranqüilizador, emoldurados em um conjunto que exibia um deslumbrante espetáculo de beleza e magia sedutora, onde cada olhar, cada palavra pronunciada entrava como promessas deliciosas nos meus sentidos, era algo simplesmente avassalador. Eu não conseguia ver, ouvir, ou pensar em mais nada, a não ser naqueles lábios carnudos que se moviam feito pétalas da mais perfumada rosa sendo acariciadas pelo vento.

Ah! sou romântico, isso sou. Não por inclinação de personalidade, mas razões práticas mesmo. Sempre achei que uma postura romântica é uma eficiente ferramenta de sedução e eu aprendi a usá-la bem. Descobri que os homens que abrem a porta do carro para a mulher, puxam a cadeira nos restaurantes para ela sentar, mandam flores dia sim, dia não, e nunca criticam abertamente itens da sua maquiagem ou do guarda roupa, têm muitas vantagens sobre aqueles que não fazem nada disso. Eu sei que o cavalheirismo é compensador. Se os homens soubessem o quanto ele rende nesse tipo de investimento, todos investiriam um pouco de si mesmos nesse verniz e nenhuma mulher precisaria reclamar da insensibilidade masculina.

Durante toda aquela noite não tirei meus olhos dela. “Deus! O que fizestes comigo? Foi castigo por eu nunca ter acreditado que existias? Foi por isso que pusestes aquela deusa na minha frente, como a dizer-me: ─ Negue-me agora, seu filho da puta! Agora que te mostrei que a divindade existe e o paraíso é uma realidade!”

Falei com ela naquela noite e disse que a minha empresa estava disposta a patrocinar um dos projetos de sua ONG. Não estava mentindo. Tenho no orçamento da minha empresa uma

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verba para essas coisas. Cumprimos, com isso, a nossa parte nessa nova idiotice que esses socialistas de araque inventaram ― a tal noção de responsabilidade social ―, e melhoramos a nossa imagem junto ao mercado. Sei que tudo isso é uma baita hipocrisia, mas o sucesso nos negócios exige algumas concessões. A hipocrisia é a deusa dos homens bem sucedidos, e principalmente, dos políticos.

Marcamos um almoço para dali a dois dias. Eu estava ansioso, mas a razão dizia que eu não devia dar passos tão rápidos. A minha libido reclamou, mas a minha razão sempre foi uma conselheira de respeito. A experiência me ensinou que as mulheres que realmente valem a pena não gostam de abordagens muito explícitas já no primeiro encontro. Elas gostam de namorar um pouco. Querem saber com quem estão se envolvendo antes de se abrir para um relacionamento mais profundo.

Fomos jantar no Gigeto. Eu queria impressionar. Fazia questão de mostrar que não sou um tarado que se atira em cima das mulheres logo no primeiro encontro. Jantar num lugar fino sempre cria um clima de romantismo, sem resvalar para o lugar comum. Se a coisa não rola, sempre fica o charme e o prazer da noitada.

Adotei uma estratégia de aproximação bastante convencional. Falei da minha empresa, dos meus planos, ouvi os dela, deixei-a falar bastante sobre o seu trabalho, sobre os projetos da ONG, as idéias que ela gostaria de implementar. Eu sei que esse tipo de mulher gosta disso. Adoram ser tratadas como pessoas que têm coisas mais valiosas para negociar, além do sexo. E ela na verdade, tinha mesmo. Além de linda e cativante, era uma mulher bem preparada, inteligente, de conversação muito agradável. Combinação difícil de encontrar numa pessoa só. Companhia perfeita para um homem como eu.

 Indaguei, com muito cuidado, sobre a vida pessoal dela. Ai veio a desgraça. Ela era casada com um advogado. Acho

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que devo ter sido muito explicito em minha linguagem não verbal, pois ela logo percebeu a minha intenção, embora eu tenha feito um imenso esforço para não mostrar o que estava sentindo com aquela revelação. Mulher tem muito feeling para essas coisas. Daí, acredito, a convicção com que me ela falou da sua paixão pelo marido.

Do jeito que ela falou, se eu fosse mulher, teria me apaixonado pelo cara. Ele era perfeito. Inteligente, versátil, compreensivo, amoroso, eficiente em seu trabalho, e pelo visto, em tudo o mais. Mesmo acreditando que não existe um cara assim – pois em tudo existe um componente de custo e benefício que nos força a tirar de um lugar para por em outro – eu ouvi tudo com um silêncio respeitoso por fora e uma tempestade de inveja e rancor por dentro. Acredito ter sido a soma desses sentimentos que denunciou o meu estado interno, pois ele deve ter se estampado em meu rosto com uma nitidez inconfundível, enquanto ela falava das excelências do marido e do quanto ela era feliz no casamento. Pudera, eu estava queimando por dentro como um vulcão, ardendo de despeito e ódio daquele cara.

Mulher é um bicho muito sutil. Quando quer, ela sabe afastar qualquer aproximação indesejável. Basta mostrar, com muita convicção, que nenhum novo romance poderá ser melhor do aquele que ela está vivendo no momento. Que ninguém será capaz de melhorar o que ela já tem. E para o homem que se aventura numa empreitada dessas, nada pior do que saber que entra num jogo, onde suas chances de vencer estão reduzidas a zero.

Mas eu não sou de desistir tão fácil. Ainda mais com aquela paixão que me consumia como um fogo inextinguível que se acendia de manhã, quando eu acordava, e me queimava até o último momento em que eu conseguia fechar os olhos, à noite, bêbado do sono que não chegava, e não raras vezes de

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álcool mesmo, que eu tomava para dormir, justamente porque não conseguia deixar de pensar naquela mulher.

Fui para casa naquela noite, moído de inveja e frustração. Mas as tratativas para os investimentos que eu prometera fazer na sua ONG iriam me dar a oportunidade de manter mais alguns contatos com ela. Isso me daria a chance de fazer mais algumas investidas, para tentar penetrar naquela fortaleza de virtude e perfeição estética, que havia me humilhado justamente naquele ponto nevrálgico, que era o meu orgulho de machão conquistador. Assim, ao longo dos demais encontros, usei todos os meus trunfos, meu charme, meu dinheiro, minhas promessas de eterno amor, mas nada disso adiantou. Por fim, depois da quarta investida, ela me disse com uma firmeza que não deixava dúvidas: “Por favor, não insista mais. Eu não quero ser indelicada com você. Mas eu amo de verdade meu marido. E o amarei enquanto ele viver.”

“Enquanto ele viver”. Essa frase ficou ressoando no meu cérebro como se fosse um mantra diabólico. “Enquanto ele viver”. Foi aí que eu tive o maldito insight. “Então, se o problema é esse, removamos o problema.”

Contratar um matador em São Paulo é mais fácil do que achar um bom encanador. Basta ter dinheiro e tutano para fazer uma coisa dessas. Eu tinha os dois. E também tinha amigos na polícia. Alguns deles faziam bico na minha empresa como seguranças. Disse a um deles (eu já tinha informações que o cara era do ramo) que estava sendo ameaçado por um antigo funcionário que havia sido despedido da empresa por justa causa. Estava preocupado com isso por que o cara já mostrara ser violento e perigoso. Ele entendeu logo o que eu queria. Nem precisei dar detalhes. O danado era mesmo do ramo. Piscou um olho e disse para eu não me preocupar. Era só dar a ficha do indivíduo, que eu podia dormir em paz. Serviço limpo

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e garantido. Os meus motivos não interessavam, só o quanto eu podia pagar.

Combinamos o preço, tratamos de todos os detalhes, mostrei uma foto do tal sujeito, dei o endereço, disse quando ele poderia ser pego sozinho, enfim, municiei o prestador de serviços com todas as informações necessárias.

Daí para frente era só ficar esperando pelas notícias. Tínhamos combinado que eu pagaria a metade antes e o resto depois que o serviço fosse feito. Fiquei aguardando, com uma ansiedade mortal.

Três dias depois recebi um telefonema bem lacônico. “Dê uma olhada nos jornais de amanhã”. Logo de

manhãzinha corri a uma banca e comprei o jornal. Nas páginas policiais estava a notícia. “Casal assassinado ontem á noite em seu apartamento.” Li a matéria.

“Ontem á noite um homem e uma mulher foram encontrados mortos em seu apartamento na Rua... Ele foi identificado como sendo o advogado... e ela a professora ..., presidente da Associação... Tudo indica que se trata de um crime passional ou um assassinato encomendado, pois o assassino não tocou em nada no apartamento. A polícia está examinando o local em busca de pistas e já requisitou todas as fitas gravadas pelo sistema de segurança do prédio e locais vizinhos. Nas próximas horas as autoridades policiais esperam ter alguma novidade sobre o caso (...)”

Meu coração deu um salto e todo o meu corpo esfriou, como se naquele momento eu tivesse sido trancado dentro de um freezer. Era como se eu tivesse morrido. Aliás, tenho certeza que a morte de verdade não será tão fria, opressiva e dilacerante, como foi aquele golpe que me atingiu direto no coração, com um punhal que me estivesse sendo espetado ali, num golpe certeiro e fatal.

Não fui trabalhar naquele dia. Fiquei no apartamento, me consumindo numa angústia dilacerante, opressiva, mortal,

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esperando o cara vir buscar o restante do dinheiro. O que fizera aquele imbecil? Ele destruíra também o objeto dos meus desejos, o prêmio pelo qual eu me envolvera naquela aventura insana. Não sabia se o que eu sentia era medo ou ódio. Ou dor e desespero. O que aconteceria agora? Que loucura eu fizera? Era aquilo um castigo de Deus? Uma ironia do destino? O Diabo estaria brincando comigo?

─ Meu Deus! O que você fez, imbecil? Eu não lhe dei todas as indicações? Não lhe disse para ir exatamente naquele dia e naquela hora para pegar o cara sozinho? Por que você matou a mulher? Era só do cara que eu queria me livrar.

─ É verdade patrão, o senhor falou, estava tudo certo, mas não deu não. Eu tinha acabado de despachar o cara com três tiros e já estava pronto para sair. Mas, de repente, a mulher entrou no apartamento. Ela havia saído como o senhor disse, mas não sei por que cargas d’agua voltou. Acho que esqueceu alguma coisa. Ela me viu e começou a gritar. O senhor sabe, eu não podia ser reconhecido, por isso atirei nela também. Mas não se preocupe que eu não vou lhe cobrar por isso.

Ah! O maldito! E maldito seja eu também pelo resto da minha agora curta e odiosa existência e por toda a eternidade também, se algo assim existir. Para que continuar vivendo agora?

Confesso que fiquei até satisfeito quando a polícia pegou aquele idiota e ele entregou tudo. Ele não tinha argumentos, nem álibis para destruir as provas que as câmeras de televisão do prédio proveram contra ele, e eu não tinha motivação e nem vontade de negar a minha participação nesse sórdido negócio.

A promotoria e a imprensa adoram casos como esse. A mídia exulta quando o escândalo aflora na parte fina da sociedade. Todo mundo sabe que a podridão, neste nosso mundo grã-fino, é um lugar comum, mas ela quase nunca é percebida, por que costuma ser disfarçada com o perfume do

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dinheiro e a máscara do poder. Na classe pobre ela é comum e banalizada. Como dá poucos pontos no Ibope, a mídia a ignora e o Ministério Público a trata como rotina. Agora, um empresário que encomenda a morte de um advogado bem sucedido porque queria ficar com a mulher dele, e contrata um pistoleiro trapalhão que mata os dois, que prato poderia ser mais saboroso para um promotor com alma de mariposa, e para um repórter com DNA de abutre?

Eis porque fui condenado a trinta anos de cadeia. Mas isso é o que menos me aborrece, afinal. Eu mereço. E além de merecer, que me importa a vida agora, se tudo que eu mais desejava já não existe? Eu, na verdade, já estou morto também. Esta minha primeira morte antecede a segunda, que deve ocorrer esta noite. Eu a estou digerindo como uma espécie de antepasto, de sabor igual aqueles que eu comia, nos jantares caros, naqueles restaurantes bacanas que eu ia.

O quanto tudo isso me parece vazio e sem propósito agora... Não sou muito dado a tiradas filosóficas, mas não posso deixar de me sentir como aquele personagem de um romance de Sartre, que via a vida como um longo rosário de ações destinadas a preencher um vazio sem fim. Uma jornada inglória, besta e inútil, entre o Ser e o Nada.

Esta noite, no escuro da minha cela, vou dar um fim definitivo aos meus miseráveis dias. Se tudo que fazemos na vida se destina a preencher um vazio que nunca se esgota, então algumas gotas a mais, ou a menos, não farão diferença no conteúdo deste vaso de amarguras.

Talvez eu me encontre com a minha deusa, nessa outra vida que dizem existir depois desta. Eu nunca acreditei nisso, mas hoje, antes de realizar esse ato supremo, vou rezar com muita devoção para que isso seja verdade. Quem sabe, livre

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destas loucas memórias de um louco amor, nós possamos dar um final diferente para esta história.

Se não, irei arder para sempre no inferno, se esse lugar efetivamente existir. Mas isso não me amedronta nem um pouco. Não acredito que a minha existência nesse lugar de horrores possa ser menos suportável que essa dor que estou sentindo agora.

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As Virgens de Alá

Não tinha memória de quando começara a sentir aquela

compulsão por doces. Parecia ser um daqueles registros que estão perdidos para sempre no arquivo morto da inconsciência. Quando criança, disso se lembrava bem, ele não ligava muito para isso. Preferia salgadinhos. Sua mãe sempre brigava com ele por causa disso.

─Você só quer comer porcaria, n’é, menino? E daí? Ele gostava, e ela, embora vivesse pegando no pé

dele por causa disso, no fundo não ligava, pois deixava que ele comesse quanto salgadinho quisesse e até os comprava quando ia ao supermercado.

Sua mãe. Que falta ela fazia. Toda vez que se lembrava dela, não conseguia reprimir as duas lágrimas quentes que brotavam dos seus olhos, mas que eram enxugadas rápido e sorrateiramente, para evitar que alguém as visse. Odiava que as pessoas o pegassem chorando. Detestava qualquer manifestação que pudesse ser taxada de sentimentalismo. Isso era coisa de boiola. Comportamento de babaca. Frescura de menina.

Meninas gostam de doces. Isso é o que ele dizia a si mesmo, amiúde, achando que elas compartilhavam desse seu desejo compulsivo por esse tipo de guloseima. Descobriu da pior forma que estava errado. Uma vez, na escola, achou de oferecer um brigadeiro para uma garota da sala. Já fazia algum tempo que ele estava de olho nela. Era uma menina bonita, de cabelos louros, bem lisos, e grandes olhos azuis. Sentava-se na terceira cadeira da primeira fila, no lado direito da sala, para quem olhava da mesa do professor. Ela pintava os contornos

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dos olhos como se eles estivessem dentro de uma moldura. A pintura realçava o azul dos olhos dela e os fazia parecer maiores do que realmente eram.

Gostava de ficar olhando para o rosto dela, mas ela nunca reparara no interesse dele. Ou fazia de conta que não reparava. Foi então que ele pensou que oferecer-lhe aquilo que ele mais gostava seria uma estratégia inteligente para se aproximar dela. Nós sempre pensamos que aquilo que nos agrada deve agradar também aos outros. A sabedoria de que não existe um principio de identidade entre as preferências das pessoas, nunca é a primeira descoberta que a gente faz na vida. E também não há escola nem professor que nos ensine isso, assim tão cedo. Nem faz parte da grade curricular de nenhum curso o ensinamento de que uma pessoa é uma pessoa e outra pessoa é outra pessoa. Que elas são diferentes porque é assim que o mundo funciona. Que ele é um quebra cabeças, cujas peças precisam ter diferentes contornos para serem devidamente encaixadas umas nas outras. E que só assim os desenhos se completam.

Fora apenas um gesto amistoso e gentil, mas a tentativa resultou em desastre. A menina só faltou dar um tabefe na cara dele. Primeiro ela o olhou com tanto nojo que ele não sabia se ela estava vendo nele um sapo, uma lesma ou um monte de merda. Depois disse um palavrão que ele jamais pensaria ouvir daqueles lábios, que ele julgava tão encantadores. Sempre imaginara que daquela boca só poderia sair um repertório de ternura e encantamento. Nunca um projétil tão mortífero e destrutivo como aquele “tira essa merda da minha frente”, que os lábios rosados da menina cuspiram para cima dele, como se aquela linda boquinha rubra, que ele comparava a uma cereja laqueada em mel, tivesse se transformado, de repente, na boca do cano de uma arma fumegante que acabava de ser disparada

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à queima a roupa contra o seu coração, matando instantaneamente a sua auto-estima.

 Sua mente consciente registrou esse acontecimento na forma de uma vigorosa rejeição por parte da espécie feminina. Sua mente inconsciente, no entanto, arquivara o fato com essa, e com outros pedaços de informação. Ele acabara de fazer quinze anos. Não sabia que a nossa mente é programada pela linguagem. Na maioria das vezes, não é o que a gente ouve, vê e sente na experiência vivida que molda o nosso comportamento, mas sim a mensagem não verbal que a acompanha. Ele não tinha consciência que as informações mais importantes que recebera da experiência com aquela garota estavam nas caretas de desgosto e desprezo que ela fez. No rubor do rosto dela, que expressava uma raiva tão grande que mudou a coloração da pele rosada do rosto da menina, no tom ferino e mordaz da sua voz, na postura de repulsa e desagrado que ela apresentava em relação ao seu amistoso gesto de aproximação.

Até então não percebera o quanto era arrastado o r da pronúncia dela. Nem quanto aquele som o incomodava. Aquele “tira essa merrrrda da minha frente” ficou martelando na cabeça dele por vários dias. Era como se alguém lhe cutucasse, diuturnamente, uma ferida aberta no seu peito.

Durante muitos dias tivera sonhos decorrentes. Ás vezes sonhava com canos fumegantes de revólveres, canhões, bazucas e até bocas de vulcões, vomitando lava e fumaça com cheiro de merda, pelo azul de um céu imaculado e inocente. Outras vezes sonhava que andava por um jardim, cheio de flores lindas e perfumadas. De repente, pisava em algo mole e pastoso. Afundava até os joelhos. O cheiro nauseabundo não deixava dúvidas. Era aquilo. A merda.

Soube depois, por meio de um colega, que a tal menina sonhava ser modelo. Doce, para ela, era palavrão. Era ofensa das grossas. Mas para ele, foi o que bastou. Nunca mais teve

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coragem de se aproximar de outra garota. Em sua cabeça ele era uma merda que precisava ser retirada da frente dos outros. Mas se alguém lhe perguntasse sobre esse  assunto ele diria, com muita convicção, que nem se lembrava mais disso. E era verdade.

Mas o problema não era só esse. Ele tinha quase certeza que era isso mesmo que ele era. Ouvira a mesma coisa, várias vezes, do seu pai bêbado. “Você é uma bosta que não vale o que come”, era a locução favorita do velho, quando ele fazia algo que o aborrecia. Como o velho estava sempre bêbado e aborrecido com alguma coisa, isso era o que ele mais ouvia. Mas o pior era ouvir isso também dos colegas. Gostava de jogar futebol, mas nunca conseguiu ser bom de bola. Sempre sobrava para ele a posição de goleiro. Goleiro é sempre o lugar onde os “grossos” são colocados, diziam os mais gozadores. Tudo bem, ele sabia que não era craque. Podia suportar muito bem isso e até fazer um papel bonito jogando no gol. Afinal, muitos goleiros fazem fama e fortuna defendendo o último portal. Muitos jogos são ganhos pelo goleiro. Esses eram pensamentos que o consolavam.

Mas ele não era um bom goleiro e então vinham os “frangos”. E com eles os xingamentos. “Você é mesmo uma bosta. Nem para goleiro serve”.

Cresceu com esse som desagradável na cabeça e esse cheiro nauseabundo no nariz. Nenhuma namorada, raros colegas. Com vinte e quatro de idade tornou-se um jovem afastado de tudo, e principalmente, de todos. Enquanto a mãe era viva, ele ainda mantinha um elo de ligação suportável com o mundo. O pai, desprezível pudim de cachaça, havia morrido de cirrose hepática há uns três anos atrás. Ficou aliviado pelo fato de Deus ter se antecipado a ele, pois sua intenção era acabar com a vida daquele desgraçado na primeira

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oportunidade. Era uma mágoa tão grande que ele guardava daquele cara, que sua morte, e principalmente a lembrança da agonia dolorosa que ele sofreu antes de morrer, lhe caíram como se ele tivesse tomado um remédio milagroso que aliviava repentinamente as dores de uma úlcera péptica que o consumia, toda vez que a presença daquele homem feria qualquer um dos seus sentidos.

Se ele era tímido, retraído, caladão, enquanto a mãe vivia, depois da morte dela – ocorrida dois anos após a morte do pai – tornou-se completamente, arisco, selvagem, quase um ermitão.

Terminara, com muita dor e dificuldade, o ensino médio. Mais por conta da pressão materna do que por vontade própria. Por ele teria deixado a escola no mesmo dia em que aquela menina o transformara naquele “monte de merda ambulante”, que tinha que viver escondido para não provocar aqueles esgares de nojo e desprezo que ele pensava ver na linguagem não verbal das pessoas que se aproximavam dele, ou de quem ele tinha que se aproximar, mais por obrigação de viver, do que por necessidade ou desejo de se relacionar.

Em alguma coisa, no entanto, esse isolamento lhe fora proveitoso. A solidão e o afastamento do convívio com as pessoas fizeram dele um nerd. Tornara-se perito em informática. A informática, mais que uma profissão, é a doença dos solitários. Nerds são criaturas que estão mais próximas de cyborgs do que de seres humanos.

Sabia muito sobre computadores. Aprendera a trabalhar com tudo quanto era programa existente na praça. Só não se tornara um hacker porque tinha medo. Não de morrer, mas de ser preso e seviciado na cadeia, como são as "carnes novas" que lá são atiradas...

Seu mundo era a Internet. Nela vivia, nela comia, nela sonhava. Quando não estava trabalhando, estava viajando pela rede.

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JOÃO ANATALINO

Aos vinte anos arranjara um emprego numa editora de livros. Era uma editora especializada em livros religiosos e esotéricos, que publicava escritores independentes que pagavam os custos de edição de suas obras.

Ele fazia a diagramação dos livros. No começo se surpreendeu com a quantidade de escritores esotéricos que contratavam os serviços da editora para publicar suas estranhas obras. Eram composições literárias de pouco valor artístico, que falavam de vampiros, lobisomens, seriais killers, bruxas, rituais satânicos, simbologia sagrada, sociedades secretas, fetiches e fobias bizarras, esquizofrenias e outras aberrações da mente humana.

Até então não tinha idéia de quão grande era o número de pessoas que gostava de ler sobre esses assuntos. Mas o mercado devia ser bem amplo, porque os livros tinham bastante saída. A editora publicava por demanda. Alguns deles alcançavam tiragem de dois, três, até dez mil exemplares, o que, num país cujo povo não gosta de ler, diga-se, é um verdadeiro fenômeno.

Pouco a pouco, ele foi mergulhando naquele mundo de fatos e fenômenos banidos do mundo da razão e do convívio com as pessoas normais. Começou a estabelecer uma relação de simpatia e prazerosa convivência com aqueles assuntos malditos, que se hospedavam nos livros que ele diagramava. Eles eram como ele, monstrengos deportados para um mundo de sombras, onde não poderiam ficar constrangendo as pessoas com suas aparências horrendas. Eram fenômenos catalogados como sobrenaturais, anormais, aberrantes, coisas que precisavam viver nas sombras como vampiros, ou esperar noites de lua cheia para se manifestar, como lobisomens.

Sim, eram como ele, um sujeito estranho que precisava sair de casa de madrugada, sob o manto protetor da escuridão e voltar já bem tarde, protegido pela capa da noite já densa,

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

esgueirando-se pelas ruas mais desertas, para evitar os olhares das pessoas, a voz delas, o contato com elas.

Odiava as pessoas tanto quanto amava os assuntos dos livros com os quais trabalhava. Sabia tudo sobre Jack, O Estripador, o pistoleiro Billy the Kid, Karyl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha, O Assassino do Zodíaco, que apavorou a vida dos californianos durante a década de 60, David Barkowitz, o famoso filho de Sam, que nos anos setenta, matou uma dúzia de pessoas nos Estados Unidos, e por aí afora. Seu preferido era o motoboy Francisco de Assis Pereira, que na década de 90 assassinou mais de dez garotas em São Paulo. “Elas mereceram” dizia para si mesmo, toda vez que pensava naquele assunto. “Todas as garotas merecem. São depravadas e só pensam em sexo”, concluía, para justificar o seu julgamento.

Sua banda preferida era os Dead Boys, cuja música heavy, soturna e arrepiante, o confortava e lhe dava prazer. Quando chegava em casa à noite, onde morava sozinho desde a morte da mãe, era isso que ele fazia. Sentava-se em frente ao computador e ficava navegando na rede, ouvindo o rock pesado da banda, até altas horas da madrugada. Quando a aurora chegava, ele se levantava, tomava um banho e saia para trabalhar.

Quase não dormia durante a semana. Tirava uns pequenos cochilos ali mesmo, diante do computador. Deixava para dormir de fato nos fins de semana, quando praticamente não saia da cama no sábado e no domingo. Só se levantava para comer as "quentinhas" que encomendava no restaurante  próximo à sua casa.

Desenvolvera uma estranha simpatia por doutrinas racistas e religiões fundamentalistas. Achava as teorias que fizeram a cabeça de Hitler, como ele costumava dizer, o máximo da sabedoria. Por conta disso leu Alfred Rosemberg, Chamberlain, Gobineau e Nietszche, com grande prazer.

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Comprou todos os CDs que reproduziam a música de Richard Wagner, compositor favorito de Hitler. Ao ouvir a Cavalgada das Valquírias, a Ópera Parsifal e o Anel dos Nibelungos e depois, lendo na Internet o libreto com a história e a interpretação dos mitos que serviram de inspiração para as respectivas óperas, ele logo compreendeu porque elas exerciam tanto fascínio sobre o espírito do lúgubre ditador alemão.

Não era à toa. Eram obras que falavam de heroísmo e da nobreza do povo ariano. Descreviam sangrentos holocaustos e sugestivos sacrifícios rituais. Descortinavam um mundo de heróis e deuses impiedosos, cujo objetivo era emular a força, a coragem, a ousadia e a determinação que faz de um homem um espécime invulgar entre os seus pares.

Tudo aquilo nada tinha a ver com o mundo mesquinho, tacanho e moralista em que fora posto para viver e que, por isso mesmo, o rejeitara. Talvez fosse essa a causa da rejeição. Ele não era igual aos demais. De repente passou a sentir-se um ser superior, posto por engano numa comunidade de inferiores, e começou a achar que as pessoas sentiam isso quando em contato com ele. “Todos tememos aquilo que não podemos vencer”, costumava dizer para si mesmo.

Com redobrado entusiasmo ele teria sido um soldado das

S.S. E com muito orgulho e indescritível prazer teria participado das missões dos einsatz grupens, aqueles soldados alemães, que durante a Segunda Guerra Mundial eram destacados para missões especiais de extermínio de minorias raciais e grupos étnicos indesejáveis, que prejudicavam a gloriosa missão ariana de construção de uma humanidade pura e saudável.

Depois de algum tempo passara a admirar também aqueles terroristas muçulmanos que explodiram as Torres Gêmeas naquele fatídico 11 de setembro de 2001. Que coragem tinham aqueles caras, pensava ele. Eles eram

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terroristas para os americanos. Para ele eram verdadeiros heróis. Que destino fantástico era o daqueles homens, que escolheram morrer por uma causa na qual acreditavam de verdade! Quantas pessoas no mundo teriam feito o que eles fizeram, com tanta frieza e determinação? Só os kamikases japoneses, na última guerra mundial, tinham feito coisa semelhante.

Acreditava, de verdade, que eles estavam agora no paraíso prometido pelo Alcorão. Esse era outro assunto que o fascinava. Tinha certeza que essa promessa era verdadeira. Devia haver mesmo um paraíso, povoado por garotas, que por mais sexo que fizessem, ainda continuavam virgens. Seria bom ser mandado para um lugar assim, onde os himens nunca se rompiam, onde o pênis nunca amolecia e o sexo era uma atividade perene, desejável e santificada. Esse pensamento o excitava, e ele então se masturbava.

Não tivera nenhuma experiência sexual até então. Era virgem de contato com mulheres. Virgem como uma huri, aquelas meninas que habitavam o paraíso muçulmano. Compreendia o valor que a religião islâmica dava à questão da virgindade feminina, pois ela figurava o corpo da mulher intocada como um território de prazeres. A virgem era como uma praia deserta, onde o sonho do homem, de possuir um pedacinho do Éden, se realizava plenamente.

Talvez fosse por isso, por essa ilusão de eterna virgindade, que as huris, as Virgens de Alá, eram capazes de manter o pênis do felizardo que as conquistava ereto para sempre. Não importava que os infiéis dissessem que o paraíso dos muçulmanos se assemelhava a um bordel santificado. Essa era uma imagem caluniosa que dele faziam os imperialistas cristãos, uma raça de infiéis que não conseguia entender a grandeza dessa concepção, capaz de levar um homem a sacrificar a própria vida em prol de uma causa, coisa que nenhuma crença cristã, nos dias de hoje, era capaz de fazer.

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Decididamente o ocidente se tornara um mundo de valores corrompidos e sem honra que estava mesmo destinado a desaparecer. Por isso apoiava a causa dos lutadores da Jihad e se fosse possível, gostaria de se juntar a eles. Só não sabia como fazer isso.

Em seu trabalho na editora tinha que diagramar muitos livros. Assim acabava lendo vários deles. Ficara fascinado por um conto, onde um desses terroristas suicidas detonava um colégio inteiro nos Estados Unidos, por que seu mestre lhe dissera que a Jihad seria mais completa quanto maior fosse o número de infiéis que ele conseguisse matar com seu ato. E maior seria o seu galardão no paraíso, porque as pessoas que ele matasse se tornariam seus escravos. Se fossem homens, seriam transformados em eunucos, se mulheres elas se tornariam as virgens que fariam parte do seu harém de huris.

Se fossem todas virgens enquanto vivas, melhor ainda. Então o maluco sequestrou um avião e jogou-o em cima de um colégio feminino, matando mais de uma centena de meninas adolescentes. Duas eram as motivações do suicida: providenciar uma provisão bastante farta de huris para o seu harém e diminuir o número de matrizes que os infiéis teriam à disposição para reproduzir os seus malditos rebentos.

Com isso, Alá ficaria duplamente satisfeito. Mas para fazer um negócio desses o sujeito teria que ter coragem para cruzar, de livre e espontânea vontade Sete Portais, sendo o Último o sacrifício da sua própria vida.

Sete Portais era o nome do conto. O primeiro era o Portal da Fé. Só Alá é Deus e Maomé o seu profeta. Tinha que acreditar piamente nisso. Nenhum outro caminho o conduziria ao Paraíso, senão a religião de Maomé. O segundo era o Portal da Submissão. Tinha que se entregar todo à causa. Submeta-se, dizia a doutrina do Islã. Você não tem livre arbítrio sobre seu destino, como dizem os cristãos. Alá já traçou o destino de

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todos os homens. Mak Tub. Estava escrito. O terceiro Portal era o da Determinação. Os servos de Alá tinham que ser determinados. Não podiam duvidar, um só momento, de que escolheram o caminho certo. Em quarto vinha o Portal da Coragem. Soldado de Alá não podia ter medo. Tinham que entregar a própria vida pela causa. O quinto era o Portal do Desapego. Para realizar as façanhas que Alá esperava dele, seria preciso que o indivíduo não tivesse apego às coisas do mundo e às coisas que o mundo dá. Só pela esperança de encontrar, um dia, o paraíso, é que valia a pena viver. Quem se apegava aos bens do mundo eram os infiéis ocidentais. Os verdadeiros muçulmanos não. O sexto Portal era o do Ódio. Ódio substantivo e maiúsculo aos infiéis. Morte a todos eles. Matar um infiel não era pecado. Era realizar a vontade de Alá. O sétimo e último Portal era o do sacrifício, no qual o soldado de Alá imolava a si próprio.

Em sua vida cotidiana ele sentia que já havia passado espontaneamente por alguns deles. Desde que se tornara, por convicção, um muçulmano, ele adquirira uma fé inabalável nos postulados do Islã; portanto, a ele se submetia de todo coração. Por outro lado, já não tinha sonho algum em relação ás conquistas deste mundo criminoso e apodrecido que os ocidentais haviam construído. Tudo nele era pecado e heresia. Por consequência odiava tudo isso. A única coisa que não tinha ainda certeza era se teria coragem para transpor o último Portal, sacrificando a própria vida em proveito da causa. Mas isso é o que ele iria ver quando chegasse a hora.

O conto era, naturalmente, uma sátira e o seu autor tinha

uma flagrante intenção de deboche. O autor fazia uma interpretação estereotipada e debochada das crenças islâmicas e da idéia que eles tinham do paraíso. Pintava-o como se ele fosse um magnificente bordel, onde prostitutas de luxo eram treinadas para satisfazer psicopatas tarados. Ali eles

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consumiam as delícias que Alá prodigalizava aos homens por conta dos atos loucos que haviam praticado na guerra santa contra os infiéis.  

Mas essas maluquices tinham amparo numa certa lógica fornecida pela História. O paraíso muçulmano, assim como o cristão e outras figurações dessa utopia, nada mais são do que retratos metafóricos das sociedades que as engendram. Afinal, era costume na Idade Média, quando essas idéias começaram a ganhar corpo, que o perdedor de um combate se tornasse escravo do vencedor. Ele e suas mulheres. Os homens se tornavam eunucos e as mulheres concubinas. Se fossem virgens, melhor ainda. Portanto, não havia nada de absurdo na idéia de que o morto pudesse se tornar servo do seu matador no outro mundo e suas mulheres se tornassem huris. Era uma crença que já tinha tido sua correspondência na própria prática consagrada pela sociedade humana.

Pensando assim podia entender melhor o que se passava na cabeça dos caras que jogaram aqueles aviões no World Trade Center. Quantos eunucos não estavam eles fazendo com aquele ato? Entre eles, quantas virgens, entre as mulheres mortas, não estariam sendo arrebanhadas para os seus haréns? Não valia a pena morrer por um prêmio assim?

Adotara como tela de abertura no seu computador a imagem do gigantesco boeing se arremetendo sobre as Torres Gêmeas. Desenvolvera outras telas com o mesmo motivo, mostrando aviões se chocando contra a Torre Eiffel, o Castelo de Windsor, o Prédio do Parlamento inglês, o Taj Mahal, o Ginza Store, a Estátua da Liberdade, o Krenlin, o prédio das Nações Unidas, enfim, todos os prédios e monumentos que simboliza-vam a tirania do homem contra o homem.

Em cada uma dessas montagens ele era o piloto do avião. Com isso sentia-se um herói lutando por uma causa. Não era mais um “monte de merda que devia ser afastado da frente das pessoas.” Dessas ações emergia como um sultão, de pênis

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eternamente rígido, e servido, não por uma lourinha malcriada de subúrbio, mas por um séquito de escravos e um exército de huris de olhos amendoados e escuros, castas como donzelas intocadas, mas ainda assim, sensuais como uma ninfa das Mil e Uma Noites.

Com um prêmio desses não se importaria de jogar um avião no prédio do Congresso, em Brasília, ou contra a estátua do Cristo Redentor. Adoraria ver todos aqueles deputados e senadores, filhos da puta, transformados em eunucos; e suas mulheres e filhas em deliciosas huris, que seriam fodidas todo dia por ele. Afinal, não era isso que aqueles malditos políticos faziam o tempo inteiro? Foder todo mundo?

Quanto ao avião que se chocava contra o Cristo Redentor, não era por ódio dos cariocas ou do Rio de Janeiro que ele fizera aquela imagem. Era pelos sentimentos que o cristianismo lhe inspirava. A religião cristã era, para ele, a maior farsa que já fora perpetrada contra a humanidade. Uma religião de hipócritas, feita para hipócritas. Uma crença, cujos praticantes falavam de paz, amor e perdão, mas na prática faziam a guerra, disseminavam o ódio e condenavam, sem piedade, milhões de pessoas à morte. Pela fome, controlando os mercados, pela guerra, incentivando o comércio de armas, e pela doença, através do controle das patentes farmacêuticas e da detenção do conhecimento em círculos muito restritos. E tudo isso somente para obter lucro. O Lucro, na verdade, era o deus dos cristãos, e não Jesus, o filho de Maria, que na verdade, nunca foi mais que um profeta, menor que Maomé.

Que diabo de humanidade era essa que o Cristo representava? E a quem ele estendia aqueles braços? Deviam ser tão poucos os privilegiados, que talvez mal enchessem o círculo de pedra dos seus braços, abertos inutilmente no alto daquele morro. Afinal de contas, cristão era o mundo que o rejeitara. Seu pai também era cristão. Cristã era a menina que o considerara um “monte de merda que devia ser afastado dos

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olhos do mundo”; e cristãos eram os moleques que debochavam nele na infância.

Por isso, quando deu o primeiro tiro, dentro daquela sala de aula, naquele colégio onde ele entrara disfarçado de professor, ele não teve muito tempo para gozar o prazer que isso lhe causou. Mas não importava. Ele já o havia gozado centenas de vezes, antes ao planejar aquela ação. Durante um ano estudara todas as nuances da sua Jihad pessoal. Conseguira até permissão para ser professor voluntário naquela escola, para ensinar para os alunos algumas aplicações mais avançadas de informática.

Escolhera aquele colégio porque era uma escola particular. Ficava num bairro rico da Zona Sul. Não podia haver local melhor para mostrar ao mundo o seu inconformismo.  E porque a grande maioria dos alunos era do sexo feminino. Elegera o período matutino porque era reservado aos estudantes do ensino fundamental. Uma maioria de meninas entre doze e quinze anos. Maior probabilidade de serem virgens. Cerca de trinta alunos por classe. Muitos eunucos e huris para serem arrebanhados para o seu paraíso.

Ao disparar o primeiro tiro escolhera a menina sentada na terceira cadeira da primeira fila, do lado direito da sala, visto a partir da mesa do professor. Fora numa cadeira igual aquela, na mesma posição, que a lourinha dos seus quinze anos o transformara num “monte de bosta que precisava ser tirado da frente dos olhos e dos narizes do mundo”.

“Eu não sou um monte merda”, murmurou ele, antes de apontar a arma e perguntar para a menina da terceira cadeira: ”Você é virgem?”

Não deu nem tempo para ela se recuperar do espanto de ouvir pergunta tão inusitada, feita de maneira tão extravagante e assustadora. A cabeça dela acabara de explodir, como se nela surgisse, de repente, uma cratera de vulcão esguichando sangue

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e pedaços de osso. Depois ele não viu nem pensou em mais nada. Em sua mente desfilavam imagens rápidas e confusas de canos fumegantes, aviões explodindo contra prédios e monumentos, soldados sem rosto, marchando ritmados e resolutos, vestidos com uniformes negros, com cruzes gamadas pintadas no ombro esquerdo. Toda a imensa confusão em que sua mente vivera até aquele momento, aflorou naquela hora, como um vulcão que acabasse de entrar em erupção. E viu também que suas mãos haviam se transformado em duas crateras vomitando fumaça e jatos de lava de cor alaranjada e sinistra, que contaminavam um céu azul, inocente e imaculado como um paraíso bíblico.

“Você é virgem? Você é virgem?” Perguntava e atirava contra a turma que fugia e gritava e se atropelava e escorregava em poças de sangue, que se tornavam cada vez mais densas e espalhadas. Não tinha tempo para fazer a conta. O importante era a quantidade de almas que precisava ser capturadas. Sentia-se um bandeirante caçando índios para trabalhar no seu canavial, ou um soba africano, na sua frenética tarefa de capturar seus compatriotas para vendê-los aos fazendeiros do novo mundo.

Quase uma eternidade havia decorrido quando ele sentiu uma brasa queimar seu flanco direito. Alguém atirara nele. Arqueou, mas não caiu. Correu para a escada, mas não conseguiu descer os degraus. Sua visão começava a turvar-se. Sentiu o mormaço do sangue que começava a escorrer pelas pernas e a pingar no chão, formando manchas rubras e escorregadias. Sentou-se em um dos degraus, tremendo com a friagem que se espalhava pelo corpo inteiro.

Soube imediatamente que tinha chegado a hora de transpor o último Portal. Viu os homens da polícia, chegando com seus revólveres, apontando para ele. Não podia esperar que o empurrassem. O ritual exigia que a iniciativa fosse sua.

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Não podia ser morto pelos inimigos. Isso inutilizaria todo o seu esforço. As Virgens de Alá não o receberiam se a iniciativa não fosse sua. Por isso, com as últimas forças que ainda restavam no seu braço, e num último lampejo de consciência, encostou uma das armas na própria cabeça e puxou o gatilho. Completara sua Jihad, a sua guerra santa Restava agora esperar pelo julgamento de Alá.______________________________

*Nota: este conto, embora inspirado em fatos reais, é fruto exclusivo da imaginação do autor. Qualquer semelhança entre os personagens nele referidos e as pessoas que viveram essa experiência, terá sido meta coincidênci

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Corpo seco(lenda urbana)

Não se sabe de que força ele era ou foi. Se do exército, da polícia, marinha ou aeronáutica, o fato é que ninguém jamais o vira fardado, nem como adquirira a patente que ele ostentava. Mas todos o conheciam como Capitão. Era o Capitão Tinoco. Talvez fosse apenas apelido. Afinal, na cidade havia também um sargento Zacarias, um coronel Salustiano, um brigadeiro Farias, o major Faustino, o cabo Lua, e nenhum deles, a que se saiba, jamais vestira uma farda na vida. Mas ostentavam essas patentes, da mesma forma que o Almirante, aquele cantor e compositor de sambas, ou aqueles apresentadores de programas sertanejos que gostavam de adotar nomes artísticos baseados em patentes militares. Os mais antigos certamente se lembrarão do Capitão Barduino, do Comendador Biguá, do Capitão Furtado, do Cabo Pitanga, simpáticos radialistas que apresentavam programas sertanejos nas madrugadas paulistanas.

O Capitão Tinoco não era radialista nem apresentador de programas sertanejos. Seu avô havia sido membro da antiga Guarda Nacional, com a patente de capitão, e seu pai herdara o título honorífico e o passara para ele. Era uma tradição que a família mantinha e as pessoas respeitavam, porque, afinal de contas, isso não incomodava ninguém.

O Capitão Tinoco era, na verdade, um sujeito bonachão, que trocava figurinhas de jogadores de futebol com a molecada, batia bafo, rodava pião, jogava gude e empinava

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pipas como se fosse, ele também, um moleque. Por isso a criançada o adorava.

Possuía um forde bigode que era usado concomitantemente como ambulância, táxi, caminhão para transportar mudanças, e outras coisas mais. Servia para tudo a charanga dele. Todo mundo que precisasse de transporte para alguma coisa o chamava. E ele nunca negava. E também nunca cobrava nada de ninguém.

Só pedia votos na época das eleições. Dessa forma ele sempre era eleito. Foi vereador por seis legislaturas seguidas e chegou a ser vice-prefeito duas vezes.

Sua popularidade era inconteste e ele se sentia o mais amado dos cidadãos da sua comunidade. Até o dia em que lançou a sua candidatura a prefeito e não conseguiu se eleger. Foi vencido por apenas dez votos. O povo preferiu eleger o Dr. Belizário, um advogado da cidade, que de há muito era adversário político do Capitão.

Ele ficou muito magoado com o povo da cidade. Afinal de contas, toda a vida dele fora dedicada ao serviço da comunidade. E na hora que ele mais precisou, o povo a quem ele serviu durante uma vida inteira o preteriu em favor de um sujeito que jamais tinha feito nada por ninguém, a não ser enganar as pessoas, pois que todos os advogados só sabem mesmo fazer isso, como ele dizia.

Sua mágoa era tão grande que degenerou numa úlcera enorme que ele só conseguia controlar à custa de muito medicamento. Por conta disso, o Capitão Tinoco se tornou de fato uma pessoa muito amarga. Já não era mais aquele sujeito bonachão, que nos sábados de Aleluia fazia bonecos de pano e amarrava nos postes para a molecada malhar o Judas. E depois da malhação jogava balas para os garotos. Parou de brincar com os meninos na rua e nunca mais emprestou seu forde bigode para ficar levando gente para o hospital, ou para

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transportar bujões de gás, cadeiras de rodas e outras coisas que ele costumava carregar para as pessoas.

Também deixou de praticar o ato, que durante mais de trinta anos, foi o acontecimento mais marcante nos natais da cidade: a farta distribuição de brinquedos que ele fazia para as crianças pobres e o grande almoço que ele patrocinava para elas.

Ele era o proprietário do único cinema da cidade. O

cinema estava instalado numa sala bem grande, com mais de quinhentas cadeiras de madeira. O Capitão ficava na bilheteria vendendo os ingressos e quando a lotação passava dos cinqüenta por cento ele costumava deixar os garotos pobres, que não tinham dinheiro para comprar os bilhetes, entrarem de graça. Por isso, toda noite era aquele monte de garotos na porta do cinema. Ficavam ali, esperando que o Capitão liberasse a entrada. E quando ele abria a porta para eles, era aquela farra.

Depois da perda da eleição, essa benevolência que ele tinha com a garotada pobre da cidade também foi cortada. Custou um bom tempo e alguma violência por parte dos dois seguranças do cinema, (um crioulo fortão chamado Landão, ex-policial expulso da corporação da Guarda Civil e outro sujeito mal encarado conhecido como Gogó, cuja mão, segundo os garotos, pesava mais que um paralelepípido) para que eles deixassem de se aglomerar na porta do cinema, esperando a hora do Capitão liberar a entrada deles. A garotada não entendia aquela mudança abrupta de comportamento. Como uma pessoa tão boa se tornara, assim tão repente, tão ruim?

A mudança de comportamento do Capitão logo foi notada na cidade. E não foi perdoada nem entendida. Ao contrário, ele, que era uma pessoa querida e admirada por todos, logo passou a ser “persona não grata” em praticamente todos os lugares que ia. Diga-se, por oportuno, que eram poucos os lugares em que ele aparecia. Na verdade,

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desenvolvera uma ojeriza tão grande pelas pessoas da cidade, que na sua ótica o haviam traído, que já não fazia questão de vê-las. Tornou-se um ermitão, que ia da casa para o cinema, do cinema para casa, sem cumprimentar nem falar com ninguém.

Com as poucas pessoas com quem ainda conseguia conversar, o assunto não era outro: a abjeta traição do povo a quem ele sempre servira. Com o tempo, eram raras as pessoas que conseguiam ver ou se comunicar com o Capitão. Ele só era visto toda semana na farmácia, comprando os medicamentos para a sua úlcera, que segundo o farmacêutico, estavam sendo usados por ele em doses cavalares.

Por isso não provocou nenhuma comoção na cidade a notícia da morte do Capitão Tinoco. O farmacêutico disse que não podia entender como aquele homem ainda continuava vivo, depois daquelas doses cavalares de antibióticos e anti-inflamatórios que ele tomava todos os dias. A última vez que o vira ele parecia mesmo uma múmia ambulante. Era só pele e ossos. Um verdadeiro esqueleto, coberto com uma película que estava mais para papel celofane do que para pele de verdade. Era brilhante e enrugada como um pergaminho. Ele estava mesmo com uma figura de tal modo extravagante e assustadora, que se fosse encontrada à noite num beco escuro, certamente seria tomada por uma assombração, ou um defunto exumado.

Na verdade, a cidade inteira sentiu alívio com a morte do Capitão. Ele havia se tornado muito inconveniente nos últimos tempos, com aquele ódio que desenvolvera pelas pessoas. Falava a quem tivesse a paciência de escutar, que fizera um pacto com o demônio para se vingar do povo daquela cidade. Que dera a sua alma por conta daquela prerrogativa. E nos últimos dias, dizia que já não tinha mais alma, pois que o diabo já a levara. E que era somente o seu corpo que ainda andava

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pelo mundo, esperando pela hora do desenlace, que seria também a hora da vingança.

Claro que todo mundo achava que o Capitão havia ficado louco. Que o ódio havia destruído, não só o seu estômago, com aquela úlcera, mas também o seu cérebro havia sido prejudicado, por conta de todos os remédios que tomava. Daí, vivia falando aquelas sandices. Mas também havia aqueles que tinham medo, e por isso, quando souberam da morte do Capitão, ficaram extremamente aliviados. Um deles era o Dr. Belizário, que mesmo sendo um advogado, tido como um homem inteligente e preparado, não obstante, não conseguia refrear aquele arrepio na espinha quando via, na rua, aquela múmia ambulante em que se tornara o Capitão.

Ele tinha apenas um filho, que herdou todos os seus bens, inclusive o cinema. Mas como o rapaz tinha os próprios interesses para cuidar, resolveu vendê-lo. Quem o comprou foi justamente o Dr. Belizário. Afinal, o cinema era um bom negócio. Além de ser o único da cidade, não havia outras opções de lazer ali. Principalmente nos fins de semana, as três sessões do dia estavam sempre lotadas.

Não havia se passado mais de seis meses do enterro do Capitão, quando um acontecimento infausto provocou um grande trauma na cidade, enchendo de tristeza e luto várias famílias daquela comunidade. Era um sábado, e o cinema estava completamente lotado, pois justamente naquela noite estava passando um filme do Mazzaropi. Os filmes do famoso humorista caipira eram a maior bilheteria da época. Nenhum clássico de Hollywood conseguia levar mais gente aos cinemas do que ele. E naquela ocasião todas as quinhentas e tantas cadeiras da sala estavam ocupadas.

De repente o teto do cinema desabou. Praticamente a laje toda, de uma só vez, caiu sobre a multidão feliz e sorridente com as trapalhadas do Mazzaropi. Toneladas de ferro, concreto

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e lajotas, sem qualquer motivo aparente, caíram sobre as quinhentas e tantas pessoas que estavam na sala, sem dar tempo para que elas fugissem. Foi uma coisa tão rápida e inesperada, que ninguém teve tempo de esboçar qualquer reação. Vinte e seis pessoas morreram no ato e doze mais tarde, por causa dos ferimentos. E entre as demais, que escaparam da morte, nenhuma delas saiu sem um machucado.

Nem os bombeiros, nem a polícia, nem os peritos contratados para apurar a causa do desabamento conseguiram dar qualquer resposta técnica para o fato. Todos foram unânimes em informar que não havia defeito na construção, nem qualquer outro problema de conservação que pudesse ter causado o acidente. O Dr. Belizário, ainda que não tenha sido responsabilizado pelo acidente, teve, no entanto, por força de decisão judicial, que suportar os custos do enterro da maioria das vítimas e do tratamento dos feridos. Ficou praticamente reduzido à miséria. E houve quem dissesse que ele também ficara louco depois, pois vivia dizendo a todo mundo que quem derrubara o cinema fora o Capitão Tinoco.

Transcorridos mais de dez anos desse terrível

acontecimento, a cidade praticamente se esquecera do fato. Ninguém sequer se lembrava mais do Capitão Tinoco nem falava do acidente do cinema. Até que um dia, vinte anos mais tarde, faleceu o filho do Capitão e ele foi levado a sepultamento na tumba da família. Era uma tumba de três gavetas, que já estavam ocupadas, razão pela qual a família pediu à administração do cemitério que removesse os ossos dos três defuntos ali sepultados para a cripta do ossário, a fim de abrir espaço para o corpo do novo defunto.

Quando abriram o esquife do capitão, os coveiros estranharam o fato de o corpo estar virado de lado, em posição completamente diferente daquela em que fora enterrado. Mas o que arrancou deles um grito de horror, e depois um pedido de

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

demissão daquele emprego, foi o que eles presenciaram depois, quando tiraram os trapos da mortalha que cobria os restos mortais do capitão. Pois o corpo estava exatamente igual ao que era no dia em que o enterraram. Seu cadáver não havia se decomposto e apresentava aquela mesma aparência mumificada que ele apresentava em seus últimos tempos de vida. Mas o que os assustou mais foi o sorriso diabólico que ele ostentava nos lábios. E não demorou muito, logo começou a aparecer um monte de gente afirmando ter visto a múmia do Capitão Tinoco andando pela cidade, naquele dia em o que o teto do cinema ruiu.

Essa história é contada na cidade até os dias de hoje. .

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O Último Sonho

Quando criança, ele acordou uma vez no meio da noite e pensara que havia ficado cego. A escuridão era total. Deve ter feito um escândalo formidável, pois se lembrava dos seus pais correndo como loucos, abraçando-o e acalmando, como se uma cobra o tivesse mordido.

Mas desde então, o seu maior medo sempre foi ficar cego. Pensava que deve ser horrível ficar cego. Andar por um mundo onde a luz não penetra, onde se pode encontrar, sabe-se lá que tipo de vidas, ou não vidas. Vira uma vez um filme do fundo do oceano, onde nenhuma luz conseguia penetrar. Havia estranhas formas de vida lá. Eram monstruosas! Pensou que a escuridão total talvez fosse como o fundo do oceano. Os antigos sacerdotes egípcios diziam que era. No Livro dos Mortos eles descreviam a terra intermediária, a Tuat, terra que a alma dos mortos precisava atravessar para chegar até o céu, como um oceano profundo, habitado por formas monstruosas.

Não tinha medo do que é simplesmente escuro. Sabia que o escuro que temos neste mundo em que vivemos é apenas a luz obstruída. Removida a obstrução, ela reaparece em toda a sua integridade.

Tinha usado essa metáfora para resolver alguns problemas práticos em sua vida. Sempre que as coisas ficavam confusas para ele, figurava um quarto onde nenhuma luz penetrava. Aí ele se punha em meio à escuridão e se imaginava acendendo uma luz. E depois projetava em sua mente uma luz se acendendo e iluminando todo o ambiente, mostrando pouco a pouco, todos os objetos que havia dentro dele.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Costumava dar certo, essa metáfora visual. A escuridão era removida e o cérebro podia ver claramente os caminhos. Até então nunca vivera uma experiência daquelas brabas, em que a gente se sente perdido numa escuridão total e nada se pode fazer para removê-la. Por isso ele treinava a mente para sempre encontrar uma luz.

Mas naquela noite, ele estava de volta àquela experiência da infância. Acordara novamente no meio da noite, em meio á uma total escuridão. Um breu, indevassável e silencioso, o cercava. Procurara, às apalpadelas, o interruptor de luz e o acionara. Nada. A energia estava desligada. Lembrava-se que antes de deitar, uma tempestade havia se formado no céu. Relâmpagos cortavam o ar de todos os lados, como se fossem espadas flamejantes, e os trovões ribombavam nos céus, numa competição maluca de sons abafados e contínuos, que pareciam jamantas carregadas de dinamite, colidindo umas com as outras.

“Parece que São Pedro tem uma pedreira no céu”. Sua filha de dez anos, agora já casada, lhe dissera uma vez, quando uma dessas tempestades desabou em cima da casa deles. Ele achara engraçada a comparação que ela fizera, mas era isso mesmo − uma pedreira sendo explodida a dinamite – o que parecia ser aquele ser balé de estocadas luminosas, acompanhadas de estrondos assustadores.

De certo foi isso que cortara o fornecimento de energia. Isso já acontecera outras vezes e não era nenhuma novidade. Pela manhã estaria tudo bem.

Levantou-me e abriu uma fresta da janela. Afastou um pedacinho da persiana e tentou ver se enxergava alguma coisa. Nada. Estava mais escuro lá fora do que dentro do quarto. A chuva continuava caindo, intermitente.

Lembrou-se da preocupação com que sua mulher tinha ido se deitar naquela noite. 

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“Será que essa chuva vai ser uma daquelas?” Perguntou ela. “Se for, talvez seja melhor a gente não ir dormir. Nunca se sabe. Esses barrancos que ficam atrás da casa me dão medo. Não sei. Nunca confiei neles."

”Bobagem”, disse ele.“ Moramos aqui há mais de vinte anos. Nossa casa tem alicerces bem firmes. Não há perigo. Vamos dormir.”

Talvez tenha sido a preocupação dela que o levou a acordar no meio da noite, naquela total escuridão. Costumava dizer, brincando, que quem dorme com cachorro no quarto sonha com lobisomem e quem dorme com preocupação na mente sonha com mulher ou com encrenca, porque a presença de uma traz sempre a outra junto com ela.

Uma vez fora dormir depois de ter brigado com a mulher. Nunca fizera isso antes. Brigar era comum entre os dois. Brigavam desde que casaram, mas nunca tinham ido para a cama sem fazer as pazes. Nessa noite sonhou que um cachorro tinha comido o pinto dele. Acordou encharcado de suor e uma estranha sensação no baixo ventre. Correu para o banheiro e só se acalmou depois de ver que tudo estava em ordem, que fora só um sonho mau aquele. Mas teve que se lavar porque urinara dormindo.

Dizem que escuridão completa não existe, assim como a pura luz. A luz é a escuridão fecundada e trevas é a luz interdita. Uma e outra são faces da mesma moeda. Pensou que se isso fosse verdade, talvez ele tivesse mesmo ficado cego. Pois não era capaz de enxergar absolutamente nada em meio a essa treva espessa que o envolvia. Era estranho. Não havia sons nem sinestesias naquela escuridão. Era um mundo ausente de qualquer coisa que se relacionasse com coisas vivas. Parecia que estava dentro daquela canção do Simon e Garfunkel, o “Som do Silêncio”. “Hello darkness, my old friend, I came to

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

talk with you again, because a vision softly creeping, left its seeds while I was sleeping...”

Sabia que sua mulher estava roncando como de hábito. Ás vezes ela roncava como uma chaleira no fogo. Fsssssssss, fssssssss, fsssssss. Outras vezes parece uma lixadeira desbastando uma tábua cheia de nós. Rrrrrrrrrr. Rsssssss. E tinha também aquele som de locomotiva a vapor diminuindo a marcha quando entra numa estação. Rrrrrrrr, ffffff, Rrrrrr, ffffff.

Estranho. Sabia que ela estava roncando, mas não escutava o ronco. Também sabia que estava chovendo e não escutava os pingos tamborilando na vidraça. Estava sentado na cama, mas não conseguia sentir a sinestesia da própria pele em contato com a textura das roupas.

Parece que todos os seus sentidos tinham sido amortecidos por aquela escuridão. “Se cá fora nada vês que te agrade, vai para dentro de ti”, dissera um desses poetas anônimos que escondem na noite dos inéditos as suas mágoas cotidianas “Quem sabe nesse labirinto que tu és, consigas capturar uma réstia de luz. Quando conseguires esse sucesso, dá o teu grito de liberdade. Tu estarás irremediavelmente morto.”

De hábito, não gostava muito dessas aventuras pelos porões da própria inconsciência. Suas próprias memórias, e os arquivos das suas experiências passadas, já não eram lá muito confortáveis de explorar. Seu passado não o orgulhava e por isso o seu presente o incomodava. Do futuro não queria nem falar. Por isso sempre evitava o mergulho fundo pelo medo da lama que eu podia libertar.

Mas nessa noite não tinha outra alternativa. Seu caminho, no mundo exterior, estava bloqueado como se a chuva torrencial, que caia lá fora não tivesse apenas derrubado barreiras e fechado as estradas. Uma força o impedia de sair como se estivesse preso no próprio corpo.

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Para dentro de si era a única direção que ele podia caminhar naquele momento. Do lado de fora era só a indevassável escuridão. Seu quarto era um mundo de onde fora banida toda e qualquer informação que pudesse dizer aos seus sentidos que ainda existia um mundo real. Cada passo que ele desse, se ele pudesse dar qualquer passo, o levaria a lugar nenhum, pois no espaço à sua frente só podia pressentir a existência de um vácuo imenso, um buraco sem fundo, onde toda informação de vida deixava de existir. Sabia isso pelo nada que sentia existir naquele quarto e no mundo fora da sua janela. Era um vazio completamente sem memória.

Então ele decidiu caminhar para dentro de si mesmo. Ali havia uma possibilidade de sair em algum lugar. Sentia que dentro desse labirinto em que se metia, era possível encontrar alguma luz.

Viajou como um astronauta que se vê, de repente, atirado em um buraco negro. Sentiu a forte gravitação, a infinita relatividade que ele irradiava. Viu, num relance, tudo que vivera desde que fora concebido. Desde o momento em que não podia ser distinguido de uma minúscula gotícula de ácido nucléico. Depois, o difícil caminho percorrido num canal estreito, que era o zigoma de onde ele proviera. Depois, o lento crescimento, a formação do embrião, o desenvolvimento do feto até adquirir o formato de um ser humano. Depois o difícil caminho percorrido num canal estreito, silencioso e escuro, até saltar para um vazio iluminado e sonoro, mas desprovido de calor e proteção. Depois a difícil adaptação ao mundo dos sentidos e dos valores. Aprender a comer, a andar, a falar, a fazer as necessidades sozinho. A sentir dor e prazer. A distinguir o que devia amar e o que devia que odiar. Que tinha deveres e direitos. Que umas coisas podia fazer, outras não. Que umas vezes podia confiar, outras desconfiar. Que tinha que agradar algumas pessoas e desagradar a outras.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Tudo isso passou pela mente dele com a velocidade da luz. Estava sentado na cama, mas parecia que estava levitando. Contou mais de setenta anos revividos em átimos de nano segundos, e no entanto, estava tão cansado como se tivesse, realmente, vivido tudo outra vez. Sofreu e gozou de novo cada fracasso e cada vitória. Cada dor e cada momento de prazer. Toda paz e toda guerra.

E foi então que viu a luz. Começou com um pequeno pontinho azul, como se fosse uma pequena lâmpada de natal acesa no fim de um túnel. Mas ele sabia que era a luz de uma explosão nuclear. Era estranho. Ela estava fora dele, mas ele sabia que provinha dele, e era a sua consciência se desintegrando.

Ele sabia, também, que à medida que se aproximasse dela, ou que ela se aproximasse dele, ele seria envolvido por ela, que ela o descarnaria, o dissolveria, dispersaria como a água faz com o açúcar, o vento com a poeira, o ar com a fumaça. Mas ele tinha que ir ao encontro dela, por que ela o atraia como um magneto atrai limalha de ferro. Então ele foi, já sem dor ou prazer, sem alegria ou tristeza, por que todos os valores, todas as crenças, todas as sinestesias que antes se hospedava neste complexo que ele chamava de Eu, haviam desaparecido como se tivessem sido lavadas com um produto que não deixa marcas nem resíduos.

Leve como o mais fluído dos gases ele entrou na zona de luz. Mas, antes de ser totalmente absorvido por ela viu, de relance, seu próprio corpo deitado sobre os escombros daquilo que fora a sua cama. Ao lado dela, o corpo da sua mulher sangrando, mas ainda respirando e tentando se livrar da lama e dos entulhos sobre os quais ambos estavam sepultados.

E só então ele percebeu que estava morto. Esse fora o seu último sonho, do qual jamais acordaria.

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Uma sombra no pé da escada

Em princípio pensou que fosse um sonho. Afinal, ele estava deitado no sofá assistindo televisão. O filme estava tão interessante que ele não tinha sentidos para mais nada a não ser a trama que se desenvolvia na telinha. Estava completamente absorvido por ela.

Então, num relance, ele viu um vulto de mulher passando rápido com um flash na sua frente e entrando pela porta que dava para o corredor. Vuup! Parecia ser Adélia, sua mulher. Mas ela havia saído. Ele mesmo a acompanhara até o portão, meia hora atrás. “Ué, será que ela voltou e eu não vi?”, ele perguntou a si mesmo.

Fora uma aparição tão rápida que ele nem tivera tempo de fixar a percepção. Então se levantou do sofá e foi procurá-la no quarto, onde pensou que ela poderia ter ido. “Ela deve ter esquecido alguma coisa”, pensou. Mas não havia ninguém no quarto do casal. Nem nos outros quartos. Concluiu que ela poderia ter descido para o andar de baixo, onde ficava o escritório, o salão de festas, a lavanderia.

Desceu a escadinha em caracol e esquadrinhou toda a área de serviço e o salão de festas. Nada. “Que estranho”, disse para si mesmo.

Mas só poderia ser Adélia embora não tivesse muita certeza. Havia alguma coisa naquele vulto que não se parecia com Adélia. Mas ele passara tão rapidamente que não deu para identificar.

  Talvez tivesse sido vítima de uma alucinação, causada pelo estado de relaxamento em que se encontrava em face do filme que estava assistindo.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Ele sabia que essas coisas podem acontecer conosco quando estamos em estado de transe. A mente praticamente se desliga dos fatores ambientes e passa a representar as imagens que o subconsciente formata. Elas são enviadas ao nosso sentido visual e projetadas como imagens mentais sem a censura da consciência. Então elas nos aparecem na forma de imagens, alucinações, aparições, mas são apenas conteúdos psíquicos inconscientes que afloram nesses momentos em que a razão não está vigiando nossos pensamentos. São “formas-pensamento”, como dizem os espiritistas, ou seja, conteúdos mentais liberados inconscientemente por uma pessoa em transe, que assumem formas físicas e acabam influindo no comportamento das pessoas a quem elas são dirigidas.

Era isso, ou então ele não estava efetivamente desperto. Embora parte dos seus sentidos estivessem plugados no filme, sua mente estava, na verdade, naquele estado de modorra que antecede a inconsciência do sono. Então ele estaria praticamente dormindo, e o que ele teve, foi efetivamente um sonho. Rápido, instantâneo, mas nada mais que um sonho.

Voltou para o sofá e apertou o botão do controle do vídeo para dar continuidade ao filme que ele havia interrompido. Não havia transcorrido mais de dez minutos, no entanto, ou pelo menos ele assim pensou, quando aconteceu de novo. O vulto saiu do mesmo lugar de antes, o quarto onde Adélia tinha instalado o seu computador e costumava ficar, horas a fio, fazendo os seus trabalhos.

Passou por ele rápido como um lampejo de relâmpago. Zuuup!

“Não é possível”, pensou ele. Não pode ser Adélia. Voltou os olhos rapidamente para a porta onde o vulto sumiu e num salto estava junto à porta que levava ao andar inferior. Deu ainda para ver levava ao andar inferior.

Desceu rapidamente a escada e esquadrinhou novamente toda a parte baixa de casa. Desta vez entrou no escritório e no

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quarto da empregada, lugares que ele não havia ido na primeira vez.

Olhou até no quartinho onde, antigamente, ele mantinha uma pequena adega. Nada. Foi até o quintal, procurou atrás da velha mangueira e do abricozeiro, onde a Rita, sua primeira esposa, falecida ha dez anos, costumava amarrar uma rede nos dias quentes de verão.

Rita, Rita, que saudades da Rita. Começou a ficar meio preocupado. Não tinha medo de fantasmas, nem acreditava em espíritos. Mas tinha medo da loucura, do descalabro mental que pode acometer qualquer pessoa. Será que estava ficando louco?

Voltou para a sala. Não tinha mais nenhuma vontade de voltar a ver o filme. Resolveu retomar a leitura de um livro que havia começado a ler no dia anterior. O livro era O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde, estranha estória de um sujeito que tem sua vida aprisionada em quadro.

Mas logo percebeu que não conseguia se concentrar no livro. Seus sentidos estavam alertas, olhando para todos os cantos da casa. Havia alguma coisa ali, uma presença indefinível, invisível aos olhos, mas bem sensível aos seus sentidos prio-ceptivos, pois era algo que mexia com sua sensibilidade sinestésica, na forma de um arrepio no couro cabeludo e uma vaga sensação de estar sendo observado. Tudo isso lhe provocava um irreprimível sentimento de inquietude.

Foi então que ele a viu novamente. Era, sem dúvida, um vulto de mulher, agora saindo do antigo quarto das crianças.

Vuuup”! Mais rápido do que um lampejo de memória, o vulto atravessou o pequeno corredor e desceu as escadas em direção ao andar inferior.

“Desta vez não”, pensou ele. E de um salto foi atrás daquilo que parecia uma sombra de mulher. Não era Adélia, sua segunda esposa, disso agora ele tinha certeza.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Quando ele principiava a descer os degraus em perseguição à sombra que desaparecera no fim da escada, percebeu a réstia de luz que entrava pelo pequeno vitral que havia no saguão onde a escada em caracol começava. Ela batia num retrato de Rita, que ele, logo após a morte dela, havia pendurado na parede oposta do pequeno saguão. Viu que o quadro projetava um reflexo na parede ao pé da escada, e toda vez que o sol saia de trás de uma nuvem e sua luz passava pela superfície do quadro, um reflexo passava pela sala e desaparecia no fim da escada.

Foi então que ele percebeu que havia alguma coisa diferente no retrato de Rita. Quando o sol se escondia atrás das nuvens, aquele sorriso aberto e gostoso com que fora pintada desaparecia. Seu rosto ficava triste e seus olhos pareciam perder todo o brilho. Quando o sol bária nele o sorriso e o olhar voltavam a brilhar. Não era alucinação nem ilusão de ótica. Olhou o quadro de várias posições diferentes. Testou sua percepção várias vezes. Era isso mesmo. A modificação só acontecia conforme o retrato recebia a projeção de sombra ou de luz.

Ele sentou-se num degrau da escada e duas lágrimas silenciosas brotaram dos seus olhos. Tinha entendido finalmente o que estava acontecendo. Já não sentia medo nem se preocupava mais com o temor de estar ficando louco. Sabia agora que não havia fantasmas na sua casa nem alucinações na sua mente. Era apenas a memória de Rita que lhe dizia não queria ser apenas uma sombra no fim da escada.

Foi então que ele levantou-se, tirou o retrato dela daquele local e o colocou na sala de estar, onde a claridade de uma grande janela lhe fornecia luz o dia inteiro.

Entendia agora porque existem pessoas que dizem que todos os espíritos, de pessoas mortas ou vivas estão sempre em busca de luz. Por que todo espírito é pura luz. O espírito odeia a escuridão.

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Não se tornou um crente depois disso, mas já não tem certeza se continua sendo um inveterado cético, nem se diz mais um convicto ateu.

E no novo lugar onde agora está, o retrato de Rita mostra uma jovem senhora, com um doce e cativante sorriso nos lábios e um lindo brilho nos olhos.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

O outro lugar

 

A sua última lembrança era a de estar escalando um muro e de repente alguma coisa queimou a suas costas com uma violência tal que o impacto o atirou imediatamente para o outro lado do muro.

Caíra com um baque surdo no chão e podia até ouvir o som do seu corpo batendo pesadamente na terra. Mas depois disso não sentira mais nada. Tudo era um vazio escuro e complemente informe, onde toda e qualquer informação sensível deixara de existir.

Não conseguia se lembrar de nada que tivesse acontecido entre aquele momento em que seu corpo despencara de cima do muro e o instante em que viu naquela cama de hospital e aquela moça loura, bonita como um anjo, vestida de branco, enxugando o suor da sua testa.

Era estranho. Não se lembrava de nada que acontecera depois que caíra do outro lado do muro, mas se recordava bem do que acontecera antes. Lembrou-se que era um criminoso, um ladrão procurado, que tinha sido surpreendido assaltando um posto de gasolina e tivera que fugir com a polícia em seu encalço. Fora encurralado num beco sem saída que terminava num muro de cerca de dois metros e meio de altura. Tentara escalá-lo e já estava quase no topo dele quando ouviu o som de uma arma sendo detonada. Imediatamente após sentiu o impacto da bala queimando suas costas como se uma brasa tivesse sido encostada ali com extrema violência.  

Deitado na cama daquele hospital (nunca vira antes um lugar tão limpo, tão imaculadamente branco) ele começou a rememorar sua vida. Vivia nas ruas desde os nove anos de idade. Sua mãe um dia o deixara numa das esquinas da cidade,

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num semáforo, e mandara que ele aproveitasse os intervalos para pedir uns trocados para as pessoas que estavam nos carros. E se ele voltasse para casa de mãos vazias ia apanhar tanto que não teria mais vontade de aparecer em casa. Ele sabia que ela cumpriria a ameaça, pois tudo que ela tinha lhe dado até o momento, fora xingamentos e pancadas.

Então aprendeu a se virar. Começou pedindo esmolas, mas logo evoluiu para flanelinha. Arranjou um balde, que enchia de água no rio Tietê, e um pano sujo, que ficava passando nos para-brisa dos carros que paravam no semáforo.

Percebeu logo que os motoristas preferiam pagar para que ele não passasse aquele pano imundo no vidro ao invés da pretensa limpeza que ele se propunha fazer, e então ele deixava que a água ficasse cada vez mais preta e o pano cada vez mais sujo. Bastava ele chegar perto do carro com aquele balde de água nauseabunda e aquela flanela pegajosa, que os caras iam logo tirando uns trocos do bolso e dando para ele.

Do pai ele nem se lembrava direito. Ele não teria mais de cinco anos quando o sujeito sumiu da vida deles. Também não se importava com isso. As únicas lembranças que tinha do cara eram dos porres que ele tomava e dos palavrões que dizia. E dos sopapos que levava dele. Decididamente fora um alívio saber que aquele desgraçado nunca mais apareceria no barraco onde eles moravam.

Mas isso também não resolveu nada porque a partir de então sua mãe tomou o lugar dele em tudo que havia de ruim. Aprendera todos os palavrões do pai, os comportamentos agressivos, o mau humor, e até o hálito infecto de pinga barata, ela adquirira. Parecia que todo dia ela bebia.

Aprendera a fumar maconha com dez anos e experimentara o crack com doze. Aos treze já era ladrão e com quinze, assassino. Desde os onze já não voltara mais para casa, e vivia na rua. Dormia em um velho prédio em ruínas ali pelos

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

lados da Cracolândia e nunca mais voltara a ver sua mãe. Ela também não o procurara mais. Não sabia o que tinha sido feito dela e não se importava.

Seu primeiro delito havia sido um assalto praticado contra uma professora. A descuidada parara no semáforo com o vidro do carro aberto. Ele chegou de surpresa, encostou na cabeça dela uma chave  de fenda enferrujada e exigiu que ela entregasse a bolsa que estava no banco da frente e o tocador de CDs removível.

Depois disso andou atuando como trombadinha na Praça da Sé e adjacências, tomando carteiras e bolsas de velhas senhoras que saiam do metrô. O crime de morte fora praticado contra outro trombadinha que tentara tomar o seu ponto. A polícia não o incomodou por causa disso e ele verificou que ninguém estava muito preocupado com a vida de sujeitos como ele, e se ele não aborrecesse pessoas importantes, nem “desse bandeira” demais, poderia viver daquele jeito durante muito tempo sem ser incomodado.

Especializara-se em abordagens a motoristas nos semáforos e em assaltos a postos de gasolina. Mas um dia dera o azar de abordar um delegado de polícia num semáforo. Ele estava com a janela do carro aberta e ele o atacara com uma faca. Jamais imaginara que a vítima fosse fazer aquilo. Ela abriu a porta do carro rapidamente e lhe deu um tranco com a porta, atirando-o no meio da rua. Rapidamente ele saíra do carro e o imobilizara.

Fora sua primeira experiência com a FEBEM. Tinha dezesseis anos e ficou lá cerca de seis meses. Foi uma escola onde aprendeu muitos truques para burlar a polícia e praticar com mais segurança seus crimes.

Mas apesar de toda a experiência adquirida não pode deixar de cumprir pena na penitenciária estadual. Preso aos vinte e cinco anos após um assalto a um posto de gasolina, no

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qual acabou matando o dono, que reagiu ao assalto, ele foi julgado dois anos depois e pegou vinte e oito anos de pena. Cumpriu cerca de oito anos. Com mais os dois que ficara preso antes do julgamento ganhou o direito de progressão e menos de dois anos depois estava na rua.

Fazer o que com a liberdade? Foi a primeira coisa que ele se perguntou. Durante o tempo em que ficara na prisão chegou a frequentar os cultos de uma seita evangélica, na qual aprendeu os fundamentos da religião cristã e ficou sabendo que a vida do homem sobre a terra é uma espécie de provação na qual as almas concorrem para obter um grau de mérito que lhes permite sobreviver numa esfera de existência superior em determinadas condições. E conforme for o grau do mérito, a sua alma adquire o direito de viver de novo em outro corpo.  

Viver de certa forma na terra era garantia de uma sobrevivência digna no céu e de uma reencarnação em melhores condições a cada vez que isso acontecia.

Ficou preocupado com essa perspectiva, pois se fosse assim, pensava ele, seu passivo estaria bem grande e talvez todas suas encarnações restantes não fossem suficientes para zerar essa contabilidade.

Mas saíra da prisão disposto, pelo menos, a diminuir esse passivo. Porém, como fazer isso? Ninguém lhe dava trabalho digno. E ele nunca trabalhara. Fizera alguns cursos profissionalizantes no presídio. Aprendera, por exemplo, a fazer instalações elétricas domiciliares, alguns rudimentos de marcenaria, um pouco de construção civil. Mas quando ele se apresentava para uma vaga em uma empresa, sua carteira de trabalho vazia de experiências e seu passado de presidiário logo o eliminavam de pronto. E quem se arriscaria a admitir, dentro da sua casa, um egresso de penitenciária, para fazer concertos domiciliares?

Foi assim que seis meses depois de ser posto em liberdade ele estava de volta ao crime. Escolhera aquele posto

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de gasolina porque era uma das empresas que o recusara como funcionário. Ele sabia que fora a discriminação que o alijara da vaga, pois ela ainda não havia sido preenchida.

Mas desta vez se dera realmente mal. Talvez estivesse destreinado também para esse tipo de operação. Fora lento na ação e descuidado na preparação. Não estudara devidamente as rotas de fuga e fora encurralado pela polícia naquele beco sem saída, em frente daquele muro que ele não conseguira pular a tempo.

Já fazia um bom tempo que ele estava naquele hospital. Não tinha como precisar quanto por que não sabia quando tinha sido levado para lá nem que dia era aquele. Não havia calendários ali.

Estranhou a liberdade que lhe davam para andar pelo prédio. Não havia guardas na porta e todos os médicos e enfermeiras que o visitavam atendiam todos os seus pedidos sem contra argumentar. Manifestara o desejo de fumar e tomar cerveja e imediatamente lhe trouxeram os objetos de seus desejos. Teve desejo de comer feijoada e foi logo atendido. Até seus desejos mais íntimos, que ele não tinha coragem de manifestar, pareciam ser adivinhados e eram imediatamente atendidos. Inclusive seus apetites sexuais eram prontamente atendidos por uma linda enfermeira que parecia adivinhar todas as suas preferências.

Era fantástico aquilo. Ele nunca imaginara que pudesse haver no mundo um lugar como aquele onde todos os desejos de um homem eram prontamente atendidos. Ele não precisava fazer absolutamente nada para isso. Bastava desejar e pronto. Era como se ele tivesse, de repente, sido posto numa daquelas fábulas das Mil e Uma Noites, em que um gênio era colocado à sua disposição, pronto para atender a todos os seus desejos.

E assim ele continuou a viver ali. O tempo passou, ele conheceu outros internos e logo percebeu que não era um

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hospital. Era uma espécie de colônia penal. Mas era uma colônia diferente, onde tudo estava à sua disposição e bastava apenas desejar para ser atendido.

E ele não estava só ali. Havia milhares de pessoas como ele, cujas histórias de vida eram semelhantes, alguns até com históricos muito mais escabrosos do que o dele.

Que lugar era aquele afinal? Uma colônia penal onde o governo estaria fazendo alguma experiência pedagógica de recuperação de criminosos? Ele se lembrou de um filme que assistira na cadeia. Sabia que o filme fora passado com segundas intenções. O filme era os Miseráveis, baseado no romance de Vitor Hugo, onde o herói era um presidiário que alcançava a redenção depois de ser beneficiado por um ato de bondade de um padre que ele havia roubado.

O filme tinha a intenção de mostrar aos presidiários que nem tudo é maldade no mundo. Que existe a bondade sem segundas intenções. Então talvez fosse isso: o governo estaria pagando o mal que eles haviam feito com o bem. Estavam aplicando o preceito de Cristo; estavam dando a outra face. Estavam mostrando como poderia ser o paraíso, para que ele desejasse ardentemente conquistar o direito de viver para sempre nele. Sim, era uma estratégia interessante.

Mas com passar do tempo ele percebeu que ela parecia não estar funcionando. Porque depois de algum tempo vivendo naquele paraíso, ele estava se sentindo terrivelmente entediado. Era um saco viver num lugar onde não se precisava fazer nada para ter tudo. O tédio começou a envolvê-lo. Tudo que ele gostava antes começou a desagradá-lo. Nada mais parecia dar-lhe prazer.

E não era só com ele que isso estava acontecendo. Todas as pessoas com quem ele conversava não demonstravam qualquer sinal de felicidade em seus rostos nem confessavam

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qualquer alegria por estar ali. Alguns estavam inclusive extremamente infelizes e já tinham perdido qualquer esperança.

Um dia ele encontrou o mais antigo habitante daquela colônia e perguntou-lhe porque não tinha ainda ido embora dali, já que ele se sentia tão infeliz por estar naquele lugar.

− Porque nós não podemos sair daqui− disse o homem.− Porque? Perguntou ele. − Não há muros, não há

guardas, não há qualquer tipo de vigilância ou impedimento para que a gente sair daqui.

.− Você ainda não entendeu rapaz, disse o homem, com um arremedo sarcástico de sorriso. − Fora daqui não existe mais nada para nós. Não há nenhum lugar onde possamos ir. Aqui é o lugar onde viveremos a eternidade. Eu já nem lembro quando fui encerrado aqui, só sei que foi no início do tempo. Rebelei-me contra o autor de todas as coisas e ele me mandou para cá.  Aqui são encerradas as almas que não tem mais direito a nenhuma oportunidade de vida. Aqueles que morreram a sua última morte e já foram julgados irrecuperáveis para o processo de construção do universo. Nossa pena é nada precisar fazer porque é a necessidade de fazer alguma coisa que leva uma alma a desejar viver.

Então que ele se lembrou. Rápido como um relâmpago que fulgura na noite escura e desaparece sem deixar rastro, todas as encarnações vividas e todo o processo kármico á que a sua alma fora submetida ao longo do tempo se desenrolou à sua frente. Sentiu a dor de desencarnar e a alegria de encarnar. Sentiu o acúmulo do karma ruim que foi aderindo à sua alma como crostas de lama que ele não conseguiu lavar nas encarnações seguintes.

E por fim uma imagem. O fulgor de uma arma de fogo iluminando a noite escura. O som abafado de um tiro. A queimação nas costas. A queda do outro lado do muro. A

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escuridão indevassável que se apossara da sua mente. O nada absoluto.

−Entendi− disse ele, finalmente, depois de um prolongado silêncio. − Eu morri. E aqui estamos todos mortos. E não vamos ter outra oportunidade de consertar os nossos erros.

− Até que enfim você entendeu – disse o outro, balançando a cabeça.

− Mas tem uma coisa com a qual eu ainda não atinei. Se todos aqui temos histórias de vida mais ou menos iguais, nós não deveríamos estar no outro lugar? − perguntou ele.

−Mas aqui é o outro lugar – respondeu o outro. Mas desta vez ele não parecia infeliz. E com uma gargalhada diabólica ele se transformou numa nuvem de fumaça, deixando no ar um cheiro fétido de enxofre.

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A viúva negra

Se tudo fosse através de um inquérito oficial, sério, conduzido por autoridade competente, onde fossem arrolados documentos e depoimentos de testemunhas oculares sérias, Dona Benedita jamais seria condenada, pois ninguém poderia, de boa mente, jurar que ela realmente fazia as coisas de que era acusada.

Claro que era tudo fantasia das pessoas. Mas diziam que à noite, ela se transformava numa aranha negra, daquelas que devoram o macho depois  que por ele é fecundada. Tinha gente que até jurava ter visto uma enorme aranha caranguejeira, do tamanho de um jabuti, peluda como um gorila, sair da casa da Dona Benedita de noite. Era noite de lua cheia e nessas ocasiões é que ela saia para caçar macho. Ela então se transformava numa linda garota para atrair os incautos. Todo homem sumido na cidade era computado na lista dela.  

Macumbeira de certo que ela era. Afinal, ser macumbeiro, fazer mandingas para o bem ou para o mal não é um ato que tenha sido recepcionado no Código Penal como crime passível de pena. Assim, não havia nada estranho no fato de ela degolar galinhas pretas nas sextas-feiras e servi-las, na encruzilhada ou na beira do riacho que passava no fundo do seu quintal, aos seus orixás, junto com farofa, cachaça, charutos para sobremesa, tudo á luz de muitas velas, como num jantar de muito requinte.

Quem ficava puto da vida com isso era a molecada que costumava jogar bola no campinho que havia no fundo da casa da Dona Benedita. Pois as encomendas geralmente acabavam sendo colocadas na beira do campo, onde terminava o gramado

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e começava o leito do riacho. Não era difícil a bola bater nas macumbas, derrubar a garrafa de “marafo”, espalhar a farofa, apagar as velas.

Pior era quando ficava suja com o sangue da galinha. Ai o jogo acabava mesmo. Quem ia querer chutar uma bola batizada e quebrar a perna?

Pois era isso que se dizia que ia acontecer. E não faltava que dissesse que fora isso que acontecera com o Jaiminho, que havia quebrado a perna e com o Neco que destroncara o braço depois de pisar numa daquelas tranqueiras.

E também não faltava quem dissesse que o timinho do bairro nunca conseguia ganhar de ninguém naquele campo por causa das mandingas da Dona Dita. Diga-se, a bem da verdade, que os garotos do bairro não eram ruins de bola, pois quando jogavam em outros campos, até que eles faziam bonito, mas quando jogavam na Varginha era só vexame.

Daí aquela fama que a Dona Dita adquirira, de feiticeira das brabas. Mas isso ninguém podia provar. Ser macumbeira é uma coisa, ser feiticeira é outra. O macumbeiro é, quando muito, um aprendiz de feiticeiro. Já o feiticeiro é outra coisa. É um mestre que já subiu os degraus de uma iniciação mais profunda nos mistérios da natureza física e principalmente espiritual das coisas.

Diga-se, a bem da verdade, que os mestres da feitiçaria, homens e mulheres, desapareceram no século XVII, queimados que foram pela Inquisição. Já os macumbeiros, herdeiros bastardos dessa arte tão sutil que tirava o sono dos bons padres da Idade Média, só tiveram mesmo o seu status reconhecidos depois que os descendentes afros começaram a mostrar aos seus senhores brancos que a sua medicina era tão boa quanto as panacéias receitadas pelos seus doutores, pois baseavam-se todas no mesmo princípio, que é a fé, pura e simples.   

Dona Benedita talvez não fosse feiticeira de verdade. Mas que era uma nega velha muito mal humorada e ranzinza,

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isso era. Perdera o marido muito cedo e nunca casara de novo. Não tivera filhos, por isso vivia sozinha numa velha casa, toda caindo aos pedaços, que parecia ser mesmo mal assombrada. Tudo isso excitava a imaginação das pessoas. Toda feiticeira adora morar casas velhas. Pode criar ratos e teias de aranha. Pode hospedar fantasmas e outras entidades nas madeiras podres que estalam e nas portas que rangem.

Ela era feirante. Tinha uma barraquinha na feira, que vendia frutas, verduras, ervas e raízes medicinais. As ervas, as frutas e as verduras vinham do seu próprio pomar e horta. No grande quintal da Dona Dita, de mais de dois mil metros quadrados, havia diversas laranjeiras, limoeiros, goiabeiras, uns pés de nêspera, algumas bananeiras e pelos menos dois abacateiros que produziam frutos o ano inteiro. E também canteiros com hortelã, alfazema, louro, arruda, alecrim, boldo e outras plantas, que ela cultivava e vendia na sua barraca.

Naturalmente, o quintal da Dona Dita era o principal objetivo da molecada depois que o jogo acabava. Sempre havia um ou outro moleque mais ousado tentando entrar no pomar dela. Só não acontecia uma verdadeira invasão porque Dona Dita havia erguido uma cerca quase indevassável de coroas-de-cristo, uma planta espinhosa e tóxica, as quais, misturadas com uma cerca de caraguatá que dava volta no quintal inteiro formava uma verdadeira muralha de espinhos venenosos que afastavam os “sócios” indesejáveis do pomar da Dona Dita.

Além disso, ela tinha dois cachorrões da raça dobermans que não eram de brincadeira. Quem conseguisse atravessar a indevassável cerca da Dona Dita poderia terminar sua vida nas mandíbulas dos diabólicos cachorros. 

Com um histórico desses Dona Dita não podia mesmo ser muito simpática à vizinhança. Além das suas práticas religiosas e da natural desconfiança que uma pessoa assim tão arredia ao convívio social provoca, ela tinha o péssimo costume de brigar

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com os vizinhos por causa da molecada que tentava invadir seu pomar. Não havia família na rua, pelo menos entre aquelas que tinham moleques na idade complicada, que não tivesse sido interpelada pela nega velha, que diga-se, não poupava as mães e pais dos moleques de xingamentos e ameaças.

Dona Dita não teve filhos. As mães do bairro diziam que ela odiava os moleques por causa disso. Quem não tem filhos próprios costuma odiar os filhos dos outros. Uma lógica fácil e bastante provável no caso da Dona Dita, pois ela era realmente agressiva com a criançada. Se uma bola caísse no quintal dela, não voltava mais. Se o diabólico casal de dobermans não a estraçalhasse com suas terríveis presas, ela mesma o fazia, por sua conta, com sua afiada faca de degolar galinhas pretas.

De todos os moleques da rua, o que ela mais odiava era o vizinho Joanico. Esse era moleque danado, que vivia fazendo arte. Por duas ou três vezes tentou tacar fogo na cerca da Dona Dita. Por maldade ou por que queria roubar algumas frutas, não se sabe, mas essa era uma das coisas que a velha nega não lhe perdoava.

A inimizade com seus vizinhos, pais do Joanico era uma coisa já de longa data. Começara no dia em que o Joanico deixara enroscar uma pipa no abacateiro dela e à força de tanto puxar a danadinha, derrubara também um monte de abacates maduros que se espatifaram no chão. Dona Dita foi reclamar com a mãe do Joanico. Queria receber uns trocos pelo prejuízo, mas a mãe do moleque também não era uma criatura fácil de lidar. Ao invés de ralhar com o filho e  pagar o prejuízo passou uma descompostura na Dona Dita, chamando-a de velha mesquinha e ranzinza.

Dona Dita disse que eles iriam se arrepender amargamente por aquilo. "Tratem de dar um jeito nesse capetinha", disse ela, "se não vocês ainda vão chorar lágrimas de sangue".  

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Até hoje ninguém sabe como aconteceu. Aliás, todo mundo pensa que sabe, mas na verdade nem a polícia chegou à conclusão nenhuma sobre aquele crime horrendo que chocou toda a cidade. Tanto que o delegado que presidiu o inquérito não conseguiu indiciar ninguém e o Ministério Público não teve a quem denunciar.

E foi exatamente essa ausência de culpados que exasperou a opinião publica e esta não perdoa. O crime que chocou a população foi o sumiço do Joanico durante três dias, nos quais ninguém conseguiu encontrar nenhuma pista dele. E depois o fato de o corpo dele ter sido encontrado jogado no leito do córrego que passava nos fundos do quintal da Dona Benedita, perto do campinho de futebol onde os meninos jogavam sua bola todas as tardes.

O menino estava com a garganta dilacerada. Seu pescoço era uma massa informe de carne rasgada, de tal modo que foi difícil ao legista que examinou o corpo determinar que tipo de arma teria produzido um resultado tão feio como aquele. O laudo saiu como “ferimentos produzidos por objeto perfurante não identificado”, que tanto poderia sem uma faca, uma chave de fenda ou até dentes de animal.

Na época não faltaram as especulações. Provavelmente um tarado, foi a primeira desconfiança. Mas não havia sinais de violência sexual. A coisa parecia mais um assassinato ritual, pois o corpo do garoto, completamente sem sangue, tinha algumas marcas esquisitas, que uns identificaram como letras de um alfabeto desconhecido, outros como figuras geométricas dispostas em forma de mandalas. O legista disse que eram escoriações naturais produzidas em um corpo que foi arrastado por um solo irregular cheio de tocos.  

Então alguém se lembrou dos cachorros da Dona Dita. Aquilo, disse um dos habitantes do bairro, eram sem dúvida, mordidas de cachorro. Outro, que parecia entender bastante

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desses animais, disse que dobermans, especialmente, adoram morder no pescoço. Outro lembrou que vira a casa da Dona Dita, durante três noites, permanecer iluminada madrugada adentro, com uma luz bruxuleante, meio azulada, como se diversas velas tivessem sido mantidas queimando a noite inteira. E dentro dela uns estranhos sons, como se ali estivesse sendo rezado um tipo qualquer de missa.

Os pais do Joanico logo se lembraram da ameaça que a Dona Dita havia feito: “Vocês vão chorar lágrimas de sangue”, ela havia dito.

Assim, não demorou muito para que umas cinqüenta pessoas se juntassem em frente à velha casa da Dona Dita, gritando impropérios, chamando-a de feiticeira, bruxa, assassina e coisas mais. Alguns deles começaram a chutar a porta. Dona Dita não era mulher de se intimidar. Saiu à janela e desancou a multidão. Chamou de putas às mulheres, cornos aos homens e ignorantes a todos. Com isso acirrou ainda mais os ânimos.

Cercaram a casa toda. Os cachorros começaram a latir e Dona Dita os botou para dentro. Não demorou muito para alguém aparecer com uma garrafa de gasolina e atirá-la para dentro da casa dela. E não faltou quem riscasse um fósforo. Casa velha, madeira podre, não demorou muito para tudo virar uma pira enorme, que soltava paletas carburetadas e rolos de fumaça preta que enegreceu as roupas nos varais no bairro inteiro.

Para muitos, isso acabava sendo uma diversão. As pessoas riam e cantavam. Parecia fogueira de São João. A feiticeira estava sendo queimada junto com seus diabólicos cachorros.  

Dona Dita não se intimidou nem se deu por rogada. Ninguém a ouviu gritar nem pedir socorro. Ao contrário, fechou depressa a janela e sumiu em meio às chamas e a fumaceira em que se transformou sua velha casa. Nunca mais

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foi vista depois disso. Mas não faltou quem dissesse que vira uma enorme aranha preta fugindo pela porta da cozinha. Tinha quase o tamanho de um jabuti.

Não é preciso dizer que quando a polícia chegou, da casa só restava um monte de cinzas. Nada de Dona Maria ou dos cachorros, nem restos mortais que normalmente se encontra em um incêndio desses. Ossos, restos de unha, cinzas orgânicas, etc. Também não é preciso dizer também quis e ninguém foi responsabilizado pelo incêndio. Todos as testemunhas ouvidas foram unânimes em dizer que o fogo começou naturalmente e que a turba que se ajuntou em frente da casa era de gente que viera socorrer ou então simples curiosos que viram a fumaça e vieram ver o que estava acontecendo.

A conclusão final foi que o incêndio ocorrera por causa da mania da Dona Dita de ficar com velas acesas na casa durante a noite inteira.

A única coisa que ainda intriga o povo daquela comarca até hoje é o destino dos pais do Joanico. Pois no espaço de uma semana, de um para o outro, ambos foram encontrados mortos em sua casa. Segundo o legista, foram picados, em sua cama, por uma aranha extremamente venenosa. E até hoje tem gente que jura ouvir o latido de dobermans à noite, embora nas redondezas ninguém mais tivesse esse tipo de cachorro.

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O senhor das trevas

Dizem que a luz só pode ser gerada a partir da escuridão. Por isso a Bíblia ensina que o mundo foi feito de luz, luz que Deus tirou das trevas.” E exista luz. E a luz existiu. E Deus viu que luz era boa” O Evangelista João também começa a sua crônica do Novo Testamento com um discurso que fala de trevas e luz.

Convencionalmente se costuma dizer que o século XVI foi “o século da luz”. A cultura ressurgiu através do chamado Renascimento. A Reforma religiosa rompeu os nós com que um clero corrupto, supersticioso e ignorante havia amarrado o espírito humano durante mais de um milênio.

Entretanto, para que a luz possa brilhar, é preciso que antes experimentemos as trevas. Assim, o período que precedeu o século das luzes, ou seja, o século XV foi talvez o período em que a ignorância, a credulidade e a superstição atingiu o mais alto patamar na história da cultura ocidental. Contribuíram para isso as guerras dinásticas, a cupidez dos bispos e papas da Igreja e uma espiritualidade de caráter extremamente duvidoso, canalizada principalmente para finalidades egoísticas e ávidas de poder.

O século XV foi a época em que as dinastias reais começaram a se afirmar e as monarquias locais davam os primeiros passos para criar os estados nacionais. No Ocidente, França e Inglaterra lutaram uma Guerra de mais de Cem Anos para ver quem dominaria aquela parte da Europa. Na Europa central, as lutas eram para definir quem herdaria os restos

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do esfacelado Sacro Império Romano Germânico, que as guerras papais, especialmente, haviam contribuído para destruir. Uma multidão de príncipes, barões e prelados religiosos disputavam esse butim, em meio a guerras e conflitos étnicos, que até hoje ainda não foram devidamente solucionados.

De outro lado vinham os turcos otomanos, povo guerreiro que havia liquidado o Império Romano do Oriente em 1453 e voltava seus olhos para a Europa Ocidental na esperança de ampliar seus domínios e levar mais longe a glória de seus sultões.

Foi o reflexo desse ambiente de pobreza e ignorância, fermentado pelas guerras de conquista e por um clero mais cúpido corrupto que piedoso, mais supersticioso que religioso, que levaram rapidamente à população ocidental à degradação intelectual e ao nascimento da cultura da superstição e da falsa ciência.

Na Europa Central nascia a lenda do príncipe Vlad Dracul, que inspiraria o mito do Conde Drácula. Na Europa Ocidental, começava a se desenvolver uma cultura mística e transcendental, que fazia dos magos, feiticeiras, bruxos e alquimistas, a verdadeira oposição para uma Igreja corrupta e vazia de espiritualidade, que caminhava a passos largos para uma derradeira e definitiva cisão.

Esse foi o caldo do Renascimento, pois como se já se viu, a luz habita nas trevas, e não há luz sem trevas que a anteceda. O Século XV foi a época em que o delírio alquímico atingiu o seu auge. Uma multidão de sopradores e charlatães vendiam seus falsos conhecimentos aos barões, príncipes e autoridades eclesiásticas, prometendo a realização de um sonho quimérico, que era a sinterização da pedra filosofal e o elixir da longa vida. Esses eram os dois produtos que segundo o sonho alquímico, surgiam como corolários dessa estranha ciência que

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produziu alguns homens de gênio e uma imensa legião de falsários.

Viver muito e se possível rico. Essa era a principal meta de quem podia contratar um mago, ou um feiticeiro, ou até um verdadeiro cientista para trabalhar para ele na procura da tão sonhada pedra filosofal. Por isso, reis, príncipes, barões e bispos, todos tinham o seu alquimista, ou o seu mago. Uns desenvolvendo a sua estranha prática em laboratórios equipados com fornos, foles, pipetas, astrolábios e balanças, outros em templos ornamentados com sinistras decorações.

Cada corte europeia tinha o seu adivinho. Nada se fazia sem consultá-lo. Por isso, o século XV e as primeiras décadas do século XVI foi a época de ouro dos alquimistas, dos magos, das bruxas, dos feiticeiros, dos videntes e de toda superstição que ainda hoje impressiona a mente humana.

Todos os homens de espírito se envolviam, de uma forma ou de outra, em aventuras místicas. Uns pelo sincero amor ao conhecimento, outros pelo desejo cúpido da fama, do dinheiro, ou do poder puro e simples. O Século XV e as primeiras décadas do XVI foi a época de Paracelso (1493-1541) e Rabellais (1494-1553), mas também foi a época de Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois padres dominicanos, autores do bizarro tratado denominado Maleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), obra sinistra que tinha por objetivo ensinar aos piedosos padres e príncipes da época como identificar e exterminar o grande mal do século, ou sejam, os bruxos, os magos e as feiticeiras.

Aliás, para esses dois grandes defensores da fé, o mundo estava povoado desses agentes de Satanás, e entre eles, a grande maioria eram mulheres. Não foram poucas as mulheres que pagaram por suas superstições nas fogueiras e nos tachos da Inquisição, cujas águas eram fervidas para que os reis e padres provassem os caldos e pelo gosto pudessem identificar se as pobres coitadas eram ou não feiticeiras.

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O século XV também viu nascer Joana D!arc e Gilles de Rais, dois nomes cujas experiências psíquicas e aventura espiritual, vivida por ambos na mesma época e com igual intensidade, jamais serão devidamente explicadas de forma racional. E por um estranho destino, os dois nomes estão ligados de maneira tão estreita e paradoxal, que é difícil desvincular uma da outra e não pensar que ambas tiveram praticamente a mesma inspiração, ou seja, o ambiente místico e supersticioso da época em que os dois viveram.  

À luz de uma análise fática e racional, hoje dificilmente se escaparia de concluir que Joana D!arc era uma menina esquizofrênica que sofrera um grande trauma em sua infância, provavelmente em conseqeência de algum episódio da Guerra dos Cem Anos. Afinal, sua aldeia, a pequena Donremy estava na rota dos combates travados entre franceses e ingleses pela posse da principal cidade da região, a fortificada Órleans.

Não é impossível que muitas barbaridades tenham sido praticadas ali pelos soldados ingleses, que queimavam, chacinavam e cometiam todo tipo de brutalidades com as populações das aldeias invadidas. Isso era praxe em todas as guerras medievais. Não é difícil imaginar que alguma pessoa da família de Joana Darc, ou até ela própria, tivesse sido vítima de tais agressões. Daí o ódio que ela votava aos invasores ingleses e o caráter francamente icônico que se deu á sua qualidade de virgem, marca da simbologia religiosa que foi chumbada à sua figura.

Joana, de certo, acreditava na sua missão messiânica, mas as autoridades francesas, que a usaram para seus propósitos, certamente só viram nela um grande trunfo político. E souberam usá-lo muito bem. Isso está patente no comportamento deles, pois Joana acabou sendo julgada e condenada como bruxa e feiticeira. Foi morta na fogueira, embora tenha sido levantada depois como santa e conquistado um lugar no panteão dos eleitos para o Paraíso. Mas Giles de

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Rais, que foi um dos seus mais competentes generais, e um amigo dos mais leais, embora acusado de práticas satânicas e outras barbaridades rituais, que foram muito além da romântica esquizofrenia da donzela de Orleans, acabou escapando da fogueira e foi até perdoado pela igreja, embora os tribunais civis o tenham condenado à forca.

Gilles De Rais foi o maior serial killer que se tem notícia na História da humanidade. Conhecido como o Senhor das Trevas, ele nasceu em 1404 em Machecoul, uma aldeia próxima à fronteira com a Bretanha. Seus pais se chamavam Guy de Montmorency-Laval e Marie de Craon. Feito cavaleiro aos quatorze anos de idade, aos quinze ele já havia feito sua primeira vítima na pessoa de um amigo de infância, a quem ele convidara para um duelo simulado, onde ele pretendia demonstrar as habilidades que havia adquirido em seus treinamentos de cavaleiro. Era para ser um duelo de brincadeira, mas Gilles o levou a sério, matando o colega com uma estocada certeira de sua espada.

Desde criança, entretanto, ele já mostrara a sua perversidade matando e esquartejando animais. Dizem que ele fazia isso com uma fúria e uma frieza quase ritualística, e já nessa época demonstrava possuir um espírito místico e uma personalidade sinistra e demoníaca, que assustava os seus parentes e amigos.

Agressivo por natureza e perverso por instinto, logo foi atraído pela carreira militar e entrou para o exército do pretendente ao trono francês, o Delfim Charles, mais tarde, Charles VII, rei da França, coroado por obra e graça de Joana D!arc. Sua posição como general das tropas francesas o levou a conhecer a jovem donzela guerreira, com quem estabeleceu uma sólida e fiel amizade que durou até a prisão e morte dela na fogueira.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Aliás, Gilles de Rais e Joana tinham personalidades muito parecidas. Ambos eram místicos e fanáticos. Ambos acreditavam que uma orientação de ordem superior informava suas ações. Por isso lutavam com denodo, atacando os inimigos sem medo e sem piedade, fazendo das batalhas em que participavam, mais do que uma ação militar, uma missão verdadeiramente religiosa.

Joana D’Arc acreditava que Deus havia escolhido a ela para libertar a França do domínio inglês. Gilles de Rais acreditava que poderia conquistar um poder ilimitado e transcendental através de práticas ritualísticas que envolviam, principalmente, o derramamento de sangue humano.

Enquanto houve guerra e ele pode derramar o sangue dos seus inimigos no campo de batalha, Giles de Rais aplicou nas ações militares toda a sua habilidade para matar. Com isso tornou-se um herói para os franceses e um respeitado soldado, temido pelos inimigos. Ganhou prestígio, fama e riqueza após as vitórias que ajudou Joana D’Arc a conquistar. Enquanto ela era capturada e julgada pelos ingleses (com a conivência do rei francês a quem ela ajudara a conquistar o trono), Giles de Rais se tornava um dos maiores barões de França.

Após a morte da sua grande inspiradora Joana Darc e a derrota dos ingleses, a paz entre os dois reinos foi selada e Gilles se viu sem o seu principal esporte, que era a guerra. Casou-se, mas logo viu que esse tipo de vida não fazia o seu gênero. Informações sobre o seu caráter homossexual logo começaram a ser veiculadas. E também logo começaram a ser comentadas as estranhas práticas às quais ele se entregava, no segredo dos seus soturnos e misteriosos castelos de Tiffauges e Machecoul.

Na região da Bretanha, onde ficavam seus domínios, um grande e terrível mistério começou a preocupar os habitantes daquela localidade. Num período de oito anos, cerca de mil garotos, com idades variáveis entre 7 e 11 anos desapareceram

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sem deixar rastros. Logo se espalhou pela região a notícia de que eram demônios que surgiam à noite e levavam os meninos. Outra versão dizia que era a própria Igreja que raptava os garotos e os trancafiava em conventos para serem transformarem em padres, já que na época a Igreja passava por um momento de crise e ninguém queria ser padre.

Todavia, em seu castelo Gilles havia fundado uma estranha Confraria que cultuava todo tipo de magia e superstição que havia na época. Lá havia laboratórios de alquimia, onde os adeptos trabalhavam em busca da pedra filosofal, usando sangue humano como matéria prima; havia salões e locais preparados especialmente para bruxos e feiticeiras praticarem seus rituais, e salas especialmente preparadas para ele e os sádicos membros da sua fraternidade executarem os próprios rituais.

Suas reuniões eram verdadeiros banquetes orgíacos nos quais se praticavam a sodomia e os mais aberrantes comportamentos sexuais. Mas os momentos culminantes eram aqueles em que os meninos raptados pelos membros da estranha Confraria eram torturados, estuprados e assassinados no cumprimento de um estranho e satânico ritual, que segundo seus acusadores, tinha por objetivo obter a vida eterna. 

No começo do ano de 1440 uma investigação feita por ordem da Igreja acabou descobrindo as atividades de Gilles de Rais e sua estranha seita. E logo ficou patente que o desaparecimento dos meninos da Bretanha tinha a ver com os macabros rituais que eram praticados em seus castelos. E assim teve início um dos mais emblemáticos processos da História da luta do homem contra os males que assolam sua mente nas épocas em que a escuridão e a ignorância se tornam dominantes.

Giles de Rais, o principal acusado é um homem que se diz temente a Deus. Ostenta os títulos de primeiro barão da

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Bretanha, marechal de França, grande senhor feudal, companheiro de armas de Joana d’Arc, a maior heroína da França, com quem compartilhava da sua fé e das vozes que a inspirava.

Cometer crimes contra a fé foi exatamente a acusação que lhe foi feita. O libelo de acusação, redigido pelo Bispo de Nantes, fala em pactos demoníacos, prática de sodomia com caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos, assassinatos rituais, no curso dos quais se contabilizavam mais de 600 vítimas, todas ela, crianças entre 7 e 11 anos.

Gilles de Rais tinha na época 34 anos. Nas atas do processo que o condenou, o que mais impressiona são suas próprias confissões dos crimes que cometeu e os motivos pelos quais os cometia. Não os negou, nem às circunstâncias em que foram cometidos. “Eram lindas crianças,” diz ele. “Eu as estrangulava. Quando elas desfaleciam, praticava neles o vício da sodomia. Quando estavam mortas, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos”.

Inquirido dos motivos pelos quais fazia coisas tão horrendas, respondeu calmamente: “Não procurava senão o mais puro e completo deleite carnal. O único sentimento capaz de levar um espírito ao que chamais de paraíso.”

“Por que razão”, prossegue ele em seu depoimento, “nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre, vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como animais no matadouro, aqueles que acabava de amar? Como negar que sentir o odor de sua carne queimada me lançava numa forma de desmaio, de prazer indizível, que se assemelhava ao ingresso no paraíso?”

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Giles de Rais foi condenado e excomungado no tribunal da Inquisição, mas sendo um barão da corte francesa, escapou da fogueira, sentença ritual que era praxe para todo condenado por heresia, bruxaria, satanismo e práticas afins. A única coisa que parecia incomodá-lo era a excomunhão. Não obstante o caráter perverso que tinha, e a monstruosidade de seus crimes, a idéia de que os fazia com espírito religioso o levava a justificar tudo.

Não temia a morte, mas tinha receio de perder o beneplácito das potências luciferinas que cultivou, por que, segundo confessou aos seus inquisidores, essa era também uma forma de cumprir os desígnios de Deus e honrar a sua amada Santa Madre Igreja. Assim como sua santa e dileta amiga Joana D!arc, ele também ouvia suas vozes. As vozes de Joana a mandava matar ingleses para libertar a França. As de Gilles o incitava a sacrificar e sodomizar crianças para libertar a suas almas. Dessa forma tudo se justificava.

Diferentemente de Joana, cuja condenação foi orquestrada por motivos puramente políticos, já que ela foi julgada justamente pelos ingleses, os inimigos a quem combateu, o sádico satanista e serial killer Giles de Rais foi indultado pela Igreja após pedir perdão e confessar todos os seus crimes. O bispo de Nantes, presidente do Tribunal, fez então a clássica pergunta que o tribunal da Inquisição fazia a todos os criminosos desse tipo: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado na Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”

Essas mesmas perguntas foram feitas a Jacques de Molay e seus companheiros templários cerca de um século e meio antes; fora feita também a Joana D!arc, momentos antes de ser levada à fogueira A que se saiba, nem os templários nem Joana responderam afirmativamente, mas Gilles de Rais sim.

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E assim, caído de joelhos, o maior serial killler da História mal consegue acreditar no que ouve. Está absolvido. Seu espírito não irá sofrer as penas do inferno. Ele chora e suspira. E ante tais demonstrações de arrependimento, o tribunal eclesiástico decide readmiti-lo nas hostes católicas, retirando a acusação de heresia. Com toda a contrição e fervor com que praticara seus crimes Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, presidente do tribunal, o absolve e o reintegra na congregação dos fiéis católicos, admitindo a sua participação dos sacramentos. Dessa forma o trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado e o espírito do Senhor das Trevas, como era chamado o perverso barão da Bretanha, estava em paz. “Vai em paz, monsenhor de Rais”, diz o bispo. “Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. A decisão agora cabe ao braço secular”.

Mas isso, para Gilles, é o de menos. Morrer ele já sabe que irá. Deus, através da Igreja, perdoa, mas a sociedade não. A sociedade exige o seu sangue por conta do sangue inocente das centenas de crianças que ele matou no curso das suas práticas satânicas. Deus pode fazer acordo com o Diabo para salvar almas, mas a sociedade precisa ser implacável na defesa dos seus valores porque se trata da sua própria sobrevivência.

Do tribunal civil ele sabe que não escapará. Mas para ele isso pouco importa. Já conquistou o seu objetivo, que era tomar o céu de assalto. Daí que venha a tortura e a forca. O seu espírito ganhara a prerrogativa de viver eternamente.

Ele foi enforcado no final do ano de 1440. Não foram poucos os que defenderam as práticas de Gilles de Rais. Houve quem dissesse que as crianças que ele assassinou se tornaram anjos graças ao caráter sacrificial de suas mortes. Também não faltou quem cultuasse sua memória fazendo dele um verdadeiro santo.

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Em 1793 sua tumba foi profanada e seus ossos foram roubados. Diz-se que nunca mais foram encontrados e se tornaram relíquia de uma determinada seita secreta. No lugar do seu túmulo admiradores do terrível mago das trevas ergueram um santuário, onde durante muito tempo mulheres grávidas costumavam peregrinar para orar pedindo uma gravidez tranquila e leite abundante. Esse santuário foi demolido por ordem da Igreja, mas consta que até os primeiros anos do século XX, no lugar onde ele se erguia ainda se cultuava a Virgem do Bom Parto e do Cria-Leite. 

Isso nos mostra que a loucura humana não tem limites. Só nos resta mesmo contar com a benevolência de Deus e com o seu justo julgamento para que o equilíbrio da nossa razão, muitas vezes perdido em virtude da nossa própria ignorância e perfídia, seja mantido para herança e salvaguarda dos nossos descendentes.

   

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

O mistério da rua cinco

Que a Marlene um dia ia se dar mal todo mundo sabia. Ou pelo menos, era o que se pensava lá no bairro. Principalmente as mulheres mais velhas e as outras meninas, que não perdoavam o fato de ele ser muito “dada”.

Dada era o termo usado pelos mais educados para a garota muito namoradeira. Para a maioria ela era uma “galinha” mesmo.

Aos quinze anos a Marlene já havia namorado a metade dos rapazes da vizinhança. Entre as outras meninas era um falatório só. Talvez fosse a rigidez da educação que elas tinham naquele tempo, que as fazia parecer tão sérias. Ou talvez fosse apenas inveja, mas o fato é que nenhuma menina queria andar com a Marlene. Bastava isso para ficar falada também.

Talvez fosse essa a razão de ela só ser vista ser rodeada de meninos. E era isso que incomodava as outras garotas. Entre os meninos também havia muito falatório com respeito à Marlene. Só que, na verdade, todos estavam esperando a sua vez. Era como fila para ganhar presente de natal. Quem já foi? Quem é o atual? Qual será o próximo?.

Feio ou bonito, todos tinham esperança com a Marlene. Ela era muito democrática. Distribuía o seu produto com a equidade de um socialista que realmente acredita que as pessoas devem ter iguais oportunidades de consumo. Por isso ela ficava com todos sem muita distinção de cor, tamanho, aparência ou idade. Ora era o Siqueira, um baixinho de 1,50, ora era o Peixoto, um sujeito que tinha uma cara e um cheiro insuportável de peixe(trabalhava numa peixaria), ora era o

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Zecão, um cara tão grandão, que só andava com as mãos no ombro dela, porque de mãos dadas não dava altura.

Certo que o ficar, como se diz hoje, naqueles tempos, não era como se faz agora. Saia, quando muito, um beijinho depois de uma semana, um amasso mais firme depois de um mês, e uma ou outra passadinha de mão mais ousada, quando a coisa se tornava um pouco séria.

Antes disso era levar tapa na cara com certeza. As meninas se guardavam para a noite de núpcias. Havia até uns caras ─ os mais estudados, ou lidos ─, que ainda chamavam a noite de núpcias de himeneu. Noite do hímen. Por isso, se descoberto, nessa noite mágica, que a menina já tinha gasto aquele selinho que faz prova da sua virgindade, isso era sinal de a carta já havia sido lida, e no dia seguinte ela podia ser devolvida ao pai e o casamento anulado. Isso está no Código Civil até hoje e continua a ser tradição em alguns lugares do país, mas na época era lei mesmo e muito aplicada.

Os meninos diziam que a Marlene não dava tapa quando a mãozinha boba rolava. Ao contrário ela deixava a coisa rolar até onde as outras só liberavam depois do padre, do cartório e da festa. Mas ninguém, entre os meninos com que ela ficou, podia jurar, de pés juntos, que tinha conseguido ir além disso, pois segundo era a queixa geral, na hora ela sempre deixava o cara com o negócio na mão.

Agora, que a danada era bonita, isso era. Talvez a melhor imagem que se possa fazer dela é que ela parecia a Gabriela do Jorge Amado. Todo mundo dizia que era. Na aparência e na personalidade. Com aquela pele da cor de jambo e aqueles cabelos compridos que batiam na cintura, que de tão negros pareciam azuis-metálico, ela era fogosa e brejeira como a arisca morena de Ilhéus, que deixava os velhos e babões coronéis do cacau de queixo mole e negócio duro.

Quando a Marlene passava pela Rua Cinco ela também provocava um arrastão de olhares gulosos e uma banda inteira

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de assobios e gracejos que ela respondia naquela linguagem corporal de rebolados e sorrisos matreiros que só ela sabia falar com tanta fluência e significado. Exibida, diziam as outras meninas. Gostosa, diziam os rapazes. Escandalosa, diziam as mulheres mais velhas. Mas não havia quem não a olhasse, quem ficasse indiferente ao molejo dela.

Agora, escândalo mesmo ela provocou quando começou a namorar o Pai João. Pois esse era um negão com mais de quarenta anos de idade (ela não passava dos dezesseis), e tinha má fama no bairro. Todo mundo sabia que ele era bicheiro e havia quem desconfiasse que ele também fosse distribuidor de erva.

Isso que hoje é tão banal, encontrável em toda esquina de qualquer cidade, naqueles tempos era uma verdadeira raridade. Mas já começava a se tornar hábito entre os rapazes mais ousados “dar uma bola na chiba”, que era a expressão usada na época para fumar um baseado.

Pai João tinha também a fama de ser macumbeiro e fazedor de sortilégios. Havia quem afirmasse que ele capaz de fazer macumbas para separar casais, uni-los, matar uns e curar outros, fazer gente se apaixonar e desapaixonar assim, sem mais nem menos, com um simples despacho na encruzilhada.

Verdade ou não, o fato é que no cruzamento da rua Cinco com a rua Sete, onde ele morava, todas as sextas-feiras havia lá uma garrafa de marafo das boas, acompanhada de charutos, velas, às vezes doces e outras comidas, tudo disposto num arranjo artisticamente preparado, ora em formas geométricas, ora dispostos em estranhos desenhos que formavam mandalas e arabescos incompreensíveis.

Todos sabiam que isso era arte do Pai João e que alguém ia se ferrar ou se dar bem por conta daqueles troços. A maioria zombava do negócio, mas ninguém se atrevia a desmanchar os despachos que ele fazia, salvo um ou outro atrevido que às

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vezes chutava as oferendas, ou então bebia a cachaça e comia a comida do ”santo”. Mas esses, diziam, sempre acabavam se “ferrando” de alguma forma. Ora quebravam uma perna jogando bola, como o Alemãozinho, ora eram atropelados como o Vicentão, ou então pegavam caxumba como o Zé Mineiro, e ficavam impotentes, ou alguma coisa pior.

Era evidente que o Pai João tinha feito alguma mandinga para a Marlene se apaixonar por ele. Não cabia na cabeça de ninguém que a menina mais bonita e liberal do bairro fosse se engraçar, de forma definitiva, justamente com aquele negão, que além de marginal, macumbeiro e feio como um rascunho do capeta, ainda tinha mais que o dobro da idade dela.

Dizem que quem ama o feio bonito lhe parece. Essa era a frase do dia. Outros justificavam o fato dizendo que o coração tem razões que a razão desconhece. Eram apenas frases, mas as outras meninas se sentiam vingadas, as mulheres mais velhas sacudiam a cabeça, como quem não entendia o que estava acontecendo e os meninos estavam com a sua auto-estima arriada. Não gostavam nem um pouco de terem sido passados para trás por aquele “nego véio mutreteiro”.

Mas para alegria deles o namoro da Marlene com o Pai João não durou muito tempo. Marlene tinha um irmão, o Maurão, que não era um cara fácil de lidar. Tinha fama de brigão e arruaceiro. Enquanto os arrufos da irmã aconteciam com os garotos do bairro ele não se importou muito porque sabia que a irmã era fogosa mesmo, mas que também era muito esperta e jamais deixaria que as coisas passassem dos limites que ele mesmo costumava chegar com as meninas que ele também pegava.

Só que quando entrou em cena o Pai João, a coisa ficou feia. Aí ele resolveu interferir. Primeiro por que havia o  preconceito. Afinal, o cara era negão. Não havia lei Afonso Arinos que o fizesse aceitar pacificamente um negócio desses.

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Segundo porque o cara tinha idade para ser pai dela. E um sujeito com uma idade e uma fama daquelas não ia ficar só nos beijinhos e nos amassos. Terceiro porque a família começava a ser a gozação do bairro. A irmã dele era a namorada de um negão bicheiro, marginal e macumbeiro.

Assim, a primeira tentativa foi falar com ela. Tinha que largar aquele cara. Foram inúteis todos os argumentos, as ameaças e os pedidos. Os pais também entraram em cena. Pediram, choraram, ameaçaram. Nada conseguiram. A menina ficou irredutível. A razão, quando a paixão se sobrepõe a ela, perde a voz. Amava o Pai João e ia casar-se com ele custasse o que custasse, fizessem o fizessem. “Se continuarem a me encher o saco” disse ela, “eu fujo com ele”. Foi o que ela prometeu que faria e eles sabiam que ela cumpriria a promessa. Eles sabiam a filha que tinham e o Maurão também conhecia bem a irmã.

Diante da irredutibilidade dela, que só podia ser mesmo produto de uma mandinga bem feita pelo negão, só cabia mesmo falar com ele. E lá foram o Maurão e os pais da Marlene tentar fazer com que o Pai João ouvisse a voz da razão. “Você tem o dobro da idade dela. Quando ela estiver com trinta, você já estar com mais de sessenta. Acha que isso vai dar certo?”, disseram os pais da garota. O Maurão foi mais incisivo: “Se você insistir nesse negócio vai dar pau”, disse ele, com melhor cara de pugilista que conseguiu fazer.

Bem, Pai João não queria saber o que iria acontecer dali a trinta ou quarenta anos. Ele queria viver a sua paixão naquele momento, enquanto ele tinha vigor suficiente para dar para a Marlene aquilo que ela queria. Nem tinha medo da fama de mau do Maurão. “No longo prazo”, dizia ele, filosoficamente, “ estaremos todos mortos”. “E se for para dar porrada, eu também seu fazer isso”, com um sorriso sarcástico nos lábios, que dirigiu para os pais da Marlene, e um olhar desafiador para o Maurão.

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Para o Pai João o único futuro que lhe interessava era o dos outros, dos consulentes que o procuravam para que ele lhes desvendasse os sortilégios que ele dizia ser capaz de fazer para que as pessoas se dessem bem em seus negócios e nos seus relacionamentos. O dele não. O dele era agora e com a mulher da sua vida. O resto que se danasse. E assim ficou o dito pelo não dito e o namoro dos dois continuou.

Apesar dos comentários maldosos que a maioria dos rapazes fazia a respeito do comportamento da Marlene, um bom número deles seria capaz de qualquer coisa para melar o namoro dela com o macumbeiro. Mas nenhum deles era tão apaixonado quanto o Zé Mineiro, um jovem soldado da Policia Militar, que também já havia passado pelas mãos da Marlene, ou o contrário, e não havia conseguido esquecer nem se conformar que ela o houvesse preterido e trocado por um sujeito como o Pai João. Afinal, como costumava dizer, ele entrara para a Polícia Militar justamente para ter um emprego estável para poder casar com ela. Estudara que nem um calouro de medicina para passar nas provas e na hora de erguer a taça tinha sido passado para trás por um sujeito quem nem primário tinha concluído.

Foi então que o Zé Mineiro e o Maurão resolveram bolar um plano para acabar com o romance da Marlene com o Pai João. Foi fácil como tirar doce de criança. Zé Mineiro era da polícia. Todo dia ele pegava uns caras “puxando um fuminho” na esquina da Rua Seis, que era o ponto onde os maconheiros da rua se encontravam. Ele conhecia a maioria dos caras, e não costumava dar duro neles. Só passava uma descompostura e tomava os “fininhos” que ele encontrava em poder deles. Naqueles dias, consumidor também pegava cana, não era só o traficante não. Os legisladores de hoje cancelaram a lei da oferta e da procura e batem só no fornecedor, como se o comércio de drogas fosse um mercado de uma mão só. Tratam

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o vendedor como criminoso e o consumidor como doente, se esquecendo de que não haveria oferta se não houvesse procura. Mas esse negócio é como uma hidra de duas cabeças. Quanto mais você poda uma delas, a outra cresce na mesma proporção.

Mas quanto ao Zé Mineiro, não demorou muito para ele

juntar uma boa quantidade da erva. Pai João já tinha fama de bicheiro e traficante. Mas nunca ninguém o pegara traficando. E nenhum dos garotos do bairro, que gostavam da “fruta”, jamais tinham comprado o “bagulho” com ele. Se traficava, era longe dali.

Mas para o Zé Mineiro bastou ficar uma noite de tocaia na esquina onde o Pai João ia fazer suas macumbas e surgir na hora em que ele dispunha os arranjos da sua oferenda para os santos. Não deu outra. Com o testemunho do irmão da Marlene e mais dois garotos que se ofereceram espontaneamente para assistir o flagrante, o Pai João foi preso e pegou cinco anos de cana.

No dia do seu julgamento, ao ver que o advogado que havia contratado para defendê-lo não conseguira destruir as provas que foram habilmente forjadas contra ele, prometeu que os caras que tinham armado aquilo iam se arrepender amargamente. Como isso ia acontecer, ele não disse para ninguém.

Com feitiço ou sem feitiço, o fato é que o fogo da Marlene era mais forte que qualquer sortilégio ou mandinga que o Pai João pudesse ter feito. Ou pelo menos todo mundo assim pensou. Pois com o seu negão na cadeia, ela logo recomeçou o rodízio de rapazes. Pegou mais uns dez antes de finalmente, com dezenove anos, casar-se com o Zé Mineiro, que não havia desistido e nesse tempo todo, ficara pacientemente esperando a roda girar para ele entrar outra vez.

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Entrou e não saiu mais. Marlene e Zé Mineiro estavam casados há dois anos e o bairro estava em paz. Eles moravam numa casa que os pais dela haviam construído nos fundos do terreno da residência deles. Ela havia se transformado numa dona de casa normal, que já não provocava mais comentários no bairro quando passava com o seu rebolado provocante. As meninas e as mulheres mais velhas da Rua Cinco já haviam até se esquecido da garota espevitada e escandalosa que tanto as irritava. Tinha, segundo se dizia, sossegado o pito.  Algumas delas tinham até se tornado amigas dela.

O bairro nunca se esqueceu daquele dia. Mais de duzentas pessoas se ajuntaram em frente à casa da Marlene para saber o que tinha acontecido. Eram cerca de cinco horas da tarde quando os gritos começaram. Todo mundo ouviu sons de coisas quebrando, voz de homem em plena fúria agredindo uma mulher e depois barulho de homens brigando entre si. Em seguida  um estampido surdo e abafado, como de uma arma sendo disparada. Logo após o silêncio inquietante, sinistro e tétrico que acompanha a tragédia que todo mundo sabe que aconteceu, mas ninguém tem coragem para ir ver de perto. Depois de uns dois minutos, outro estampido surdo, abafado foi ouvido. Depois mais nada.

Quando a polícia chegou e algumas pessoas conseguiram entrar na casa, não conseguiam acreditar no que viam. Dois corpos agonizantes, abatidos a tiros, estavam no chão, exalando os últimos suspiros. Um deles era o Maurão,  o irmão da Marlene. O outro era o Zé Mineiro. Este estava com o rosto todo arrebentado, olhos inchados, nariz esguichando sangue. Num canto, acossada como um animal, com um rosto marcado por muitas pancadas, estava Marlene, com um revólver ainda quente e fumegante nas mãos.

O inquérito conduzido pela autoridade policial apurou que a briga começara entre o casal. Zé Mineiro começara a bater em Marlene porque descobrira, ou desconfiara que ela

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

estaria traindo-o. Nunca ninguém soube ao certo se isso era verdade ou apenas uma desconfiança dele. O fato foi que no curso da discussão ele se tornara violento e começara a espancá-la com força.

Ele gritara e pedindo socorro. Seu irmão ouvira os gritos e correra  para acudir.  

Começou uma briga com o Zé Mineiro. Maurão era mais forte. Zé Mineiro ficou em desvantagem e não gostou de apanhar. Então pegou a sua arma e disparou contra o cunhado. Depois, exausto e prostrado pela enormidade da tragédia que havia se envolvido, deixou cair o revólver e começara a chorar como uma criança. Marlene pegara o revolver e disparara contra ele. Depois se acostara num canto, como uma fera encurralada, com olhos vazios, pronunciando frases sem nexo, onde a única coisa que se entendia era o nome do Pai João.

Marlene não foi condenada. Ela respondeu ao processo em liberdade e no julgamento seu advogado conseguiu convencer o júri de que ela havia atirado no marido em legítima defesa. Nessa altura ela já havia sumido do bairro e ninguém nunca mais a viu por aquelas bandas. Também não se ouviu mais falar no Pai João. Disseram até que ele havia morrido na prisão.

Mas um dos antigos namorados da Marlene, que trabalhava na companhia de distribuição de energia elétrica e fazia leitura dos relógios de luz afirmou um dia tê-la encontrado, cinco anos mais tarde, vivendo em uma bela residência, numa cidade vizinha. Ele estranhou por que a luz estava ligada em nome de um cara chamado João Ribeiro, que segundo os vizinhos, era um negão bem mais velho do que ela e tinha fama de macumbeiro.

Quanto aos moradores do bairro, a tragédia foi esquecida. A única coisa que ainda incomodava o povo do lugar era o despacho que toda sexta-feira aparecia na esquina onde o Pai

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João costumava entregar suas oferendas para os santos. Eram sempre aquelas coisas dispostas num arranjo artisticamente preparado, ora em formas geométricas, ora em maneira de bizarros desenhos que formavam mandalas esquisitas e arabescos incompreensíveis. Segundos alguns dos moradores da rua, até hoje, mais de trinta anos depois, de vez em quando ainda aparecem por lá essas estranhas encomendas. E hoje como ontem, pouca gente ousa mexer nas “entregas”.

Isso continua sendo um grande mistério para os moradores da Rua Cinco, que já há algum tempo, até trocou de nome. Hoje tem nome de vereador.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Três cruzes(Lenda Urbana)

Adail era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria o rei nesse negócio de humilhar colegas na escola, desclassificar os companheiros no trabalho, rebaixá-las nos grupos, acabando com a autoestima delas. Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e algumas pessoas descobriram que umas pessoas são mais frágeis que outras. A mesma motivação que hoje informa o bullying no passado fez nascer a escravidão e é responsável por todos os abusos que os mais fracos têm que suportar dos mais fortes. O desejo de mostrar superioridade, de sobrepor-se aos outros, de servir-se do próximo para massagear o próprio ego é algo que está no “programa” que informa a personalidade humana e só a custo de muita civilidade consegue ser mitigado. 

Quanto ao Adail, os meninos menos espertos e pouco valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Era uma turminha do capeta. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados.

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Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos limpinhos que usavam óculos e roupas bonitas. Geralmente eram garotos bem educados, que não conheciam os truques sujos que o Adail e seus amigos aprendiam na rua.

Um deles era o chamado “Pau de Bosta”. Essa brincadeira nojenta consistia em simular uma briga, na qual um dos lutadores se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então um dos brigões dizia para ele largar o pedaço de pau e brigar de mãos limpas, se ele “fosse homem”. Em volta dos dois brigões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga. Então o brigão “armado” escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segurar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bastão, o sacana o puxava com violência deixando a mão do “engomadinho” toda suja de merda.

Essa era uma pegadinhas mais frequentes. A outra era esconder os óculos dos garotos. Os coitados ficavam doidinhos. Era uma judiação.

Brigar era outra das atividades preferidas do Adail. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.

Aos quatorze anos ficou conhecido como matador de gatos. Caçava gatos para esfolar e tirar o couro. Vendia-os para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito saborosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato. Era comum, á noite, encontrar a rodinha da turma do Adail, em baixo da torre da Light, em volta de uma fogueira, assando uma “carninha”. Quando a população de gatos começou a diminuir no bairro os donos dos animais se

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

deram conta do que estava acontecendo. Chamaram a polícia para tentar resolver o problema. O delegado chamou os pais do Adail e exigiu que ele desse um jeito no moleque. O velho mandou o garoto passar umas férias na casa da irmã, em São Paulo até as coisas se acalmarem.

Aos quinze anos foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no estabelecimento à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardinhas em lata, algumas latas de conservas e uma meia dúzia de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar.

Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes. Esses, todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.

Os pais do Adail nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os outros garotos que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.

Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a traficar também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quantidade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.

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Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.

Geralmente tudo ficava na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Adail naquele caso. Um sujeito grandão, Louro e com sotaque de polaco, primeiro quase bateu nele; depois ameaçou mandá-lo para um reformatório e por fim desmanchou-se em conselhos. Que ele estava acabado com a própria vida; que era um caminho sem volta; que estava magoando seus pais etc, etc. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele. Sabia que não existiam reformatórios no Brasil. E o resto que se danasse.

Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.

Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lotados e a burocracia era um inferno.

Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com frequência e nessas ocasiões ficava muito violento. A

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principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Adail.

Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Adail até gostava disso, pois já havia feito amizade com alguns caras e, portanto, quando ia para lá já sabia como se divertir. Pouco importava se o ambiente era perigoso, por que ele também era. E ele nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada. Era um daqueles canivetes de que os jovens rebeldes do filme “Juventude Transviada” usavam. Esse filme era o favorito do Adail.

Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. O miserável começara a brigar com sua irmã tivera início na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, começara a seção habitual de espancamento. Ela correu para a sala, onde ele estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã, todo machucado, sangrando e o sangue subiu-lhe instantaneamente à cabeça. O cunhado era um cara grandão, tinha pelo menos uns vinte quilos a mais de peso que ele e era uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Mesmo bêbado o cara ia ser um páreo duro. Então puxou o canivete e começou a retalhar o infeliz.

Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. A irmã gritava, chorava e se escabelava, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos do marido. Pedia desesperadamente para ele parar, mas o Adail parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Ele babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.

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“Ele ficou que nem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todos os garotos da sua turma queriam saber como foi que acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo. O caso saiu nos jornais da capital e até uma emissora de rádio dramatizou o acontecimento, transformando-o numa pequena enquete trágica. O Gil Gomes, principal repórter policial da época, deu grande destaque ao episódio. O Adail se tornou uma celebridade no bairro. Contava com prazer e orgulho o seu feito e parecia estar realmente feliz com a subida notoriedade que alcançara. Parecia que até as meninas do bairro estavam olhando de modo diferente para ele. Era medo, mas ele queria pensar que era admiração.

Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz de que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele saiu ileso de mais essa.

A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era

uma superstição que a sua mãe havia plantado na cabeça dele. Ela, que era dada a frequentar centros espíritas, havia dito a ele que quando se mata alguém, o espírito da pessoa morta costuma ficar de encosto no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois desde algum tempo tinha a impressão de que nunca estava sozinho. Em qualquer lugar que ia, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre a de alguém observando o que ele fazia. Era uma presença, muda, indistinta, insensível, como de algo, ou alguém que não se manifesta como presença física, mas que no entanto emite alguma forma de energia, que é captada pela

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parte mais sensível da nossa mente, aquela onde se alojam os arquétipos fundamentais que moldam nossos instintos mais primários. Daí vinham aqueles calafrios constantes que percorriam sua espinha, acompanhados de arrepios no alto do couro cabeludo e aqueles princípios de vertigem, como se alguém estivesse tentando se apossar de sua consciência.

Ao cabo de alguns meses carregando aquela impressão, ele começou a sentir-se incomodado a ponto de começar a abrir armários para ver se havia alguém dentro dele, a olhar debaixo da cama, olhar atrás das portas e em outros locais para ver se havia alguém a observá-lo.

Até que chegou a um ponto em que não aguentou mais e resolveu ir a um dos centros espíritas que sua mãe costumava frequentar. Falou dos seus problemas e confessou o seu crime. Achava que estava ficando louco.

O médium que o atendeu lhe disse que o espírito das pessoas que morrem violentamente costuma ficar vagando na escuridão, e por não encontrar caminho para a luz, não consegue desencarnar definitivamente. Ficam presos à matéria, mas como não têm corpos para se hospedarem, sua única referência no mundo da matéria é a pessoa que lhes tirou a vida. Por isso “encostam” nela.

“Essa é uma qualidade da mente humana” disse o médium. “Ela gera sentimentos. Sentimentos são energia. O ódio, o amor, a compaixão, o apego, o ciúme, a raiva, a inveja, a culpa, são poderosas emissões energéticas que ligam as pessoas na vida e não diluem depois de elas morrem. Permanecem no mundo físico gerando descargas energéticas até serem finalmente dissipadas, ou pelo tempo ou por outras ações da mente no sentido de neutralizá-la. Descarregar essas energias negativas, deixadas pela mente das pessoas que morreram sem paz era o objetivo das orações, dos rituais e das oferendas que se fazem nos chamados centros espíritos.

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Indagado como poderia fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de trabalhos que deviam ser feitos. Eram despachos numa cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser feita, além de outras várias oferendas que deveriam ser feitas ao dito espírito, para ver se ele o perdoasse e acabasse, afinal, por entender que estava morto e devia libertar-se definitivamente do seu invólucro carnal para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.

Mas a principal oferenda que o Adail devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de indivíduo perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a viver direito. Não devia mais brigar, nem machucar ninguém, nem judiar de pessoas mais fracas ou de animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranquilo, trabalhador e honesto.

Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Mas não se pode dizer que o Adail não tenha tentado. Arranjou um emprego numa fábrica e passou a frequentar o centro espírita. Participava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos amigos, quando estes o convidavam para sair para a farra. ¨ Não posso”, respondia ele. “Hoje vou sair com a minha namorada.”

Todo mundo se admirou com a mudança sofrida pelo Adail. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranquilo, que não provocava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.

Toninha era o nome da menina que ele dizia que estava namorando. Ele a conhecera numa das seções do centro espírita que frequentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro

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de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum o motivo. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encontrar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando.

Por isso ele nunca conseguiu acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois seria uma tragédia se alguém da sua família a visse com ele.

Adail não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos sessenta.

Toninha morava numa chácara, afastada cerca de um quilômetro de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da chácara.

Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Adail achou que era hora de ir falar com os pais dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se estivessem praticando um crime. Disse a ela que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe contasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desesperança que ele via no rosto dela.

“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência.

Então, esse era o segredo dela, pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é que significava, para uma moça naqueles tempos, se perder.

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Não era mais moça, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez achasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.

“ E o sujeito que a enganou, o que aconteceu com ele?”, perguntou Adail.

“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, ela disse.

Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Adail passou muitos dias pensando no caso. Então Toninha era uma daquelas meninas que havia perdido a virgindade e se tornara mãe solteira. Situação complicada. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo haviam perdoado o deslize dela. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria. Por isso o pavor dela em vista com outro rapaz.

Pensou bastante no caso. Sem dúvida era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ouvira qualquer comentário sobre esse assunto, tanto no centro espírita que eles frequentavam, quanto de parte dos seus amigos. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha.

Isso o tranquilizou. Talvez ninguém soubesse, mesmo, desse caso. Ponderou que ele também tinha um/ita culpa para pagar. Tinha sido um ladrão e um assassino. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez redimindo a namorada ele pudesse afastar definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto.

Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável.

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Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la. Parecia que a vida tinha perdido todo o sentido.

Durante três semanas ela não apareceu no centro espírita para a sessão da semana. Não suportando mais a ausência dela, ele, no dia seguinte Adail encheu-se de coragem e foi até a casa da Toninha, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Ele perdoaria tudo.

Queria casar-se com ela o mais rápido possível. Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família dela. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito dificilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam aceder.

“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.

“Como assim, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Adail.

“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas mora aqui nem se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.

“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Adail. “É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos, compridos.”

O caseiro franziu ainda mais o cenho. “Olha moço”, disse o caseiro, agora demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai. Era uma vagabunda que se perdeu com um rapaz e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança há uns quarenta anos atrás. As duas cruzes

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que você vê na entrada da chácara foram postas lá por causa deles.”

O Adail voltou a ser um cara mau e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso tornou-se também um sujeito amargo e triste. Largou o trabalho e só podia ser visto à noite, rondando a Chácara do Alemão. Tomava todas, fumava um baseado, depois ficava sentado no barranco, em frente às duas cruzes.

Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espírita. Certa vez, passados uns três meses depois daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, o sair pela manhã para buscar pão, encontrou Adail deitado de bruços ao pé de uma das cruzes. A princípio não estranhou, pois já o havia visto outras vezes sentado no barranco, em frente das cruzes, como se fosse uma sentinela da morte montando guarda no túmulo da sua amada. Nunca ligou, pois sabia que o cara era um bêbado contumaz. Talvez tivesse tomado todas e dormido.

Mas ao tentar acordá-lo verificou que ele tinha um canivete de molas esperado no coração. Estava morto.

Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. O pessoal da polícia logo arquivou o caso e é bem possível que tenha ficado satisfeita em se livrar de mais um problema. Nada mudou naquele bairro. Apenas as cruzes que eram duas passaram a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.

Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi vendida para uma imobiliária nos anos setenta e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se via no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o verdadeiro motivo delas. Houve quem afirmasse que

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elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropeiros onde ele passara a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas em homenagem à missa que foi rezada ali. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.

O que maioria concordava era que o local era realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam ser vistas por ali. Duas eram de homens, uma era mulher e a outra era de uma criança de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.

Quem disse que viu e ouviu essas coisas jura que tudo é verdade. Mas a maioria das pessoas sempre achou que tudo não passa de lenda urbana. Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento era tão comum e tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas daquele bairro onde ficava a Chácara do Alemão. Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.

Para terminar, vou dizer que as pessoas que conheceram o Adail testemunharam que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O centro espírita que ele frequentava ainda existe hoje e algumas pessoas que assistem ás suas seções dizem que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da sessão para pedir reza, velas e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda hoje ele está vagando.

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O neto do professor

Os quinze anos de Jacyra deviam ser comemorados com uma bela festa. Afinal, a garota mais bonita da turma merecia. Ia ser a festa de debutantes mais badalada da cidade. Os pais dela já tinham tudo preparado. Guardaram a grana durante dois anos para bancar o aluguel do clube, o buffet, as flores, a improvisada orquestra do maestro da cidade para tocar a valsa e tudo mais.

Tudo preparado, tudo arranjado, tudo na maior ansiedade, e agora aquilo. A Jacyra, aos prantos, vinha dizer que não queria mais a festa. Que tudo era uma grande bobagem, só dinheiro gasto á toa, só aparência. Meu Deus! Suspirou a mãe, que estava curtindo tudo aquilo. Ela, que sequer se lembrava de ter feito quinze anos, e muito menos tivera uma festa para celebrá-los, já estava sentindo toda aquela atmosfera como se fosse ela própria a debutante.

Tinha mandado fazer um belo vestido longo, tão branco e tão bonito quanto o da própria filha. Não via a hora de entrar naquele salão com aquela roupa. Gozava antecipadamente os minutos de admiração e os olhares de inveja que iria despertar.

E o pai então... O Professor Valter antegozava a experiência. Via a imagem da filha bonita, naquele lindo vestido branco, rodopiando com ele pelo salão, ante os sorrisos

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de inveja dos amigos e os olhares gulosos dos rapazinhos, que dariam a vida para estar no seu lugar.

Mas não. Já desde alguns dias a Jacyra dera de esconder no quarto e não fora uma única vez que ela fora surpreendida numa crise de choro. Parecia ter adoecido. Os olhos perderam aquele brilho de menina travessa e encantada com a maturidade do corpo, que as garotas assumem quando chegam á essa idade. A pele também ficara mais pálida, não de uma coloração doentia, mas de alguém que parece estar vivendo um estado interno de medo e desequilíbrio.

Talvez fosse justamente a proximidade da festa. Os quinze anos. Desarranjo hormonal. A insegurança que bate em todo adolescente quando se confronta com a perspectiva de ser o alvo de todos os olhares.

O professor Valter já tinha lido alguma coisa a respeito. Adolescentes crescem tão depressa que ás vezes não tem nem consciência de espaço. Ficam desajeitados, quebrando coisas em sua volta, muitas vezes escondendo as mãos, porque não sabem o que fazer com elas. O hábito de fumar, dizia o psicólogo que escreveu o artigo, muitas vezes tem muito a ver com esse problema das mãos. Reminiscência da mamadeira, algo para se levar á boca, algo nas mãos para não ter que escondê-las.

Talvez fosse isso, ou talvez Jacyra estivesse mesmo doente. Sua mãe já notara que ela, ultimamente, andava com falta de apetite e a pegara duas ou três vezes a correr para o banheiro com ânsia de vômitos. Insistira com ela para ir ao médico.

Aliás, a última vez que fora ao médico, tinha sido o pediatra que cuidara dela desde a infância. O médico dela, um senhor já entrado em anos e muito simpático, sorriu e disse que já estava na hora de ela procurar um clínico geral, ou um ginecologista, o que seria mais correto.

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– Clínico geral ou ginecologista? perguntou a mãe, com um olhar desconfiado.

Jacyra caiu num choro convulso e sua mãe não precisou perguntar mais nada.

– Meu Deus! E essa agora...A mãe de Jacyra tinha muito muita razão para se

preocupar e sentir o aperto no coração que sentiu naquela hora. Começou a suar frio. O que fazer em face de uma situação como aquela? Sabia que o marido jamais iria aceitar um negócio daqueles.

E não aceitou mesmo. O professor Valter era um homem austero. Íntegro, á sua moda, religioso, de nunca faltar nos cultos, de ler Bíblia todos os dias de manhã e á noite, e nunca comer sem as devidas graças.

Mas agora, sua filha, sua linda, querida e única filha, a princesa da sua vida, estava grávida. Mas como? Como uma menina de quinze anos pode ficar grávida? Não, podia ter acontecido isso com ele, ele que a criara com todo o desvelo, com todo o cuidado, com todo o amor que um pai pode ter. Nos preceitos da religião, na rigidez dos valores da família, na respeito aos mandamentos de Deus. Mas acontecera. Um namoradinho na escola. Ele nem conhecia direito o menino. Vira a filha conversando com o rapazinho na porta da escola e depois quando ele fora, com mais algumas amigas, buscá-la para uma festinha. Nada mais que isso. Ah! Essa juventude...

E o que fazer agora? Não. A solução proposta pela mãe e que parecia ser a vontade da própria Jacyra ele não ia aceitar. Não. Não ia permitir que sua filha, uma menina de quinze anos, para quem ela sonhava um futuro brilhante, um casamento pomposo, uma vida de rainha, acabasse terminando como aquelas meninas da periferia para quem ela dava aulas.

Além de tudo ele era professor. Viu a gravidez precoce da filha, a barriga dela crescendo, o abandono escolar, e ele criando o neto... Era um quadro que conhecia muito bem e

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

deplorava. Sempre odiara os pais que deixavam que seus filhos praticassem sexo sem responsabilidade, gerando crianças que geralmente cresciam sem pais e acabavam na rua, sem futuro e sem esperança, e muitas vezes, vítima de traficantes e outros bandidos. Considerava-os responsáveis por todas as mazelas sociais que levavam as pessoas à pobreza, á ignorância, á marginalização, ao crime. Famílias sem estrutura. Crianças sendo geradas por outras crianças. Irresponsabilidade.

Não, ela não podia ter esse filho. Tinha que fazer um aborto. Maldisse a sorte, maldisse Deus, maldisse o mundo. De que adiantava agora toda aquela patacoada evangélica que ele ouvia na Igreja? Se Deus existisse, ele não era tão justo assim, pois lhe tinha dado um castigo que não merecera. Sempre fora um pai extremoso, um marido correto, um homem honesto, um cidadão sem mácula. E o que recebera em troca? A sua única filha, o amor da sua vida, o seu orgulho, toda a justificativa de uma luta árdua e quase ascética para dar a ela um futuro brilhante agora estava comprometido.

Não ele não aceitaria isso. Aquele feto, que segundo o ginecologista que examinou Jacyra não fizera ainda dois meses, podia ser tirado sem muita complicação para a menina. Se esperassem mais tempo, se deixassem o bebê amadurecer mais, ai sim, a coisa ficaria complicada.

O pastor da sua Igreja ficou possesso quando ele anunciou a disposição de submeter a menina a um aborto.

– Além do perigo que ela vai correr – disse o pastor, – essa é uma afronta a Deus. Se ele lhe deu um neto você devia aceitar e agradecer em vez de pensar numa barbaridade dessas.

– Não é ele que vai criar– respondeu o pai de Jacyra. E se ele fosse bom e justo como o senhor diz, teria me poupado dessa calamidade. E o senhor sabe o que eu penso da gravidez precoce, de crianças que são geradas dessa forma irresponsável. Deus não tem nada a ver com isso, e se tiver, então ele não é tão bom e justo como o senhor diz.

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– Não diga blasfêmias. E não renegue o Senhor. Lembre-se que onde ele é renegado, o Diabo toma conta.

Jacyra e a mãe também eram contra. A menina queria ter o filho. Pensava nele como nas últimas bonecas que tivera. Deixara de brincar com elas há algum tempo, mas o despertar do sentimento materno a fazia pensar naquele pequeno bonequinho, ou bonequinha viva, que ela ganhar.

Sua mãe era mulher e sabia o que significa, para a mulher, um filho. Tirar o bebê? Não. Era uma parte do seu próprio corpo. Um homem pode não ter muita consciência do que isso significa, pois ele não gera, ele não nutre, ele não carrega durante nove meses, o bichinho na barriga. Não pode sentir a força da ligação que existe entre uma mulher e o seu filho. O homem fornece só a semente. Ele é como o agricultor que planta, mas que não tem nenhum problema de consciência se precisar arrancar a planta quando ela não lhe dá os frutos esperados. Mas a mulher não. A mulher era a terra que gestava. Para ela, tanto fazia se gestava uma frondosa macieira, capaz de dar muitos frutos, ou uma mera graminha, inominada e inútil, que nunca geraria frutos ou mesmo flores. Quem sabe das dores da terra quando se lhe arrancam uma erva?

Mas para o professor Valter isso tudo era poesia. Mera especulação filosófica que não tinha valor algum quando contrastada com o futuro comprometido da filha, o trabalho e as despesas que eles teriam para criar um neto, a vergonha de ter uma mãe solteira em casa, e todo o constrangimento da situação.

O professor Valter não era homem que pudesse ser contrariado. Nem Jacyra, nem a esposa, nem o pastor da igreja, que ele deixou de frequentar (e também proibiu a família de o fazer), o demoveu da idéia. Desistiu da festa, pegou o dinheiro que havia economizado e pagou ao ginecologista sem escrúpulo a quem ele levou Jacyra para que o aborto fosse

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

feito. Pouco se importava com a tristeza da filha, que queria a criança, e com o desgosto da mãe, que temia principalmente o castigo de Deus. As palavras do pastor não saiam da sua cabeça. “De onde Deus é renegado, o Diabo toma posse.”

Jacyra tirou o bebê, mas estranhamente a sua barriga continuou a crescer. Dois meses depois da operação, parecia que ela estava grávida há uns seis meses. Valter a levou no ginecologista que fizera o aborto. Fizeram ultra som e radiografias. Estranho. Jacyra ainda estava grávida. Então não era apenas um bebê? Mas todos os exames haviam mostrado se tratar apenas de um feto. E quando ele fez a operação também não havia dúvidas. Era apenas um feto. Todos os exames haviam mostrado isso. Mas ali, na barriga de Jacyra estava crescendo outro bebê, que agora já estaria com seis meses ou mais. Esse, agora, não dava para tirar. Estava maduro demais.

O professor Valter, em princípio, tomou aquilo como um castigo por ter obrigado sua filha a fazer o aborto. Por isso, e por que foi convencido ser muito tarde para um novo aborto, não insistiu mais no assunto.

Jacyra e a mãe se sentiram compensadas e consideraram aquilo uma graça de Deus pelo sofrimento pelo qual passaram. O pastor da igreja, quando soube do caso, estufou o peito e se sentiu o máximo ao receber as desculpas do professor.

–Eu não disse? Deus escreve certo por linhas tortas. O que ele faz não para homem nenhum desfazer.

O professor Valter acostumou-se com a idéia de ter um neto e até começou a sentir prazer em pensar em ter uma criança de novo em casa. Deliciava-se com a idéia de embalá-la, cantar canções para ela dormir, levá-la para passear quando ela começasse a andar, ensiná-la a andar de bicicleta. Recuperara a alegria da paternidade. Serenou a mente, mitigou seus escrúpulos de consciência, sentiu-se até feliz. Um sentimento de estranha confiança no futuro e uma mudança radical nos seus valores começava a acontecer na sua mente.

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Com tudo isso, nem ele, nem Jacyra, nem sua esposa se importaram muito com a aparência do bebê quando ele nasceu. A terra ama a sua criação, não importa o que ela seja, pensou. A criatura era, sem dúvida, tão feia, tão estranha, que o obstetra que a aparou e as enfermeiras que o ajudaram no parto não puderam deixar de sentir um arrepio na espinha e um esgar de horror quando ela chorou pela primeira vez. Eles jurariam que aquilo não era um choro. Era um uivar de cão, um rosnar de lobo, um som de animal feroz na presença de um inimigo. Menos choro de uma criança. O bebê, um menino, era peludo como um animal e tinha as pupilas vermelhas como manchas de sangue. E toda a maldade do mundo parecia estar concentrada naqueles pequeninos olhos perversos.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

A capela do pai Justino

Ninguém sabia dizer de onde veio e como. Mas um dia, pela manhã, ele estava lá, o mendigo, dormindo na porta da velha capelinha. Um negro velho, ou pelo menos parecia ter bastante idade. Uma barba hirsuta e desgrenhada, com aparência de muitos anos por fazer. Roupas sujas, puídas, rotas até o mais miserável estado.

Ninguém estranhou o fato. Afinal, mendigos eram comuns naquela região. Eles vinham, pediam esmolas, comida, e depois sumiam. Os mendigos da região sabiam que não era coisa muito saudável ficar perambulando pela cidade. O prefeito não gostava deles. Se demorassem muito na cidade, ou se ele os encontrasse dormindo nas ruas, ele botava todos num camburão e os descarregava bem longe, na rodovia, na calada da noite. Depois, era aquela barra para encontrar um local para descansar. Por isso, a cidade quase não via muitos mendigos.

A igrejinha ficava fora do perímetro urbano, uns dois quilômetros na estrada que a ligava à capital. Parecia bastante antiga, pelo tipo de construção. Tijolos grandes, de barro cozido, sem armação. Ninguém sabia quando fora construída, nem por quem. Era uma pequena capelinha, cerca de três metros por quatro, e ao que parece, se encontrava fechada há muitos anos. Os moradores mais antigos jurariam que há séculos, pois que não havia ninguém que confessasse que um

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dia, a vira aberta. A Câmara Municipal já havia pedido ao Patrimônio Histórico o tombamento da pequena capelinha. Mas ela era tão insignificante como edifício que os burocratas daquele serviço engavetaram o pedido e o deixaram lá. O vereador que fez o projeto não conseguiu repetir o mandato e esqueceu o pleito. Ninguém mais se lembrou e ficou por isso mesmo. E a capelinha lá ficou, na beira da estrada, até o dia em que o Pai Justino apareceu na porta dela.

Por que o nome “Pai Justino” ninguém se preocupou em levantar a razão. Foi o nome pelo qual ele ficou conhecido. E ele ficou conhecido através de um acontecimento bem bizarro. Uns garotos o viram dormindo na porta da capelinha. Então resolveram mangar com ele. Botaram fogo na sua barba e saíram correndo. O velho mendigo acordou com o calor e o cheiro dos pelos queimando. Tratou de apagar logo o fogo jogando nas barbas a lata de água que ele enchera para a higiene do dia e o café que ele ia fazer pela manhã. Viu os garotos correndo, já quase atravessando a estrada. Viu também quando o carro, em alta velocidade, pegou em cheio um deles. O garoto foi atirado no acostamento, todo arrebentado. Os outros dois se perderam na mata que circundava a estrada. O garoto atropelado ficou estrebuchando no acostamento, uma massa sangrenta, em plena agonia.

Alguns carros pararam e pessoas desceram. Logo se formou uma pequena multidão em volta do garoto atropelado. Alguém chamou, pelo telefone, uma ambulância e a polícia. Parecia que não ia adiantar muito. O garoto estava muito machucado. Era questão de minutos. Dificilmente resistiria a uma remoção.

E todos viram também o mendigo, com aquela barba chamuscada, cheirando a pelos queimados, se debruçar sobre o menino agonizante e murmurar algumas palavras ininteligíveis. Parecia uma prece, um mantra, qualquer coisa numa língua

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

desconhecida. E todo mundo viu, igualmente, aquele menino agonizante, todo destroçado, sangrando por todos os poros, de repente abrir os olhos e chorando de dor, sentar-se, como se tivesse apenas sofrido um tombo que o fez sangrar abundantemente, mas sem qualquer gravidade.

O menino foi levado ao hospital e medicado. As radiografias e os exames feitos não revelaram nenhuma fratura, nenhuma comoção interna. Era um verdadeiro milagre. Todos os que presenciaram o acidente juraram que o carro que o atropelou estava há, pelo menos, uns cem quilômetros por hora e havia colhido o garoto em cheio, lançando-o pelo menos há uns dez metros de distância. Ninguém seria capaz de sobreviver a um acidente desses.

O fato é que, durante uma semana, o Pai Justino deu consultas e curou centenas de pessoas que o procuraram na porta da velha capelinha. Ele impunha as mãos sobre as pessoas e as livrava de enxaquecas, dores musculares, hérnias, infecções e outras moléstias emergenciais. Também receitava chás e outras bulas que as pessoas juraram, mais tarde, que as livraram de várias moléstias. Quanto ás dores morais e problemas de relacionamento, ele deu conselhos e receitas que se revelaram muito eficazes por quem as recebeu e testou.

Mas no fim de exatos sete dias, o Pai Justino desapareceu. Quem o procurou, já nas primeiras horas da alvorada, como costumava acontecer nos dias anteriores, não o encontrou. Foi feita uma busca na cidade inteira e nas cidades vizinhas. Ninguém vira o velho mendigo. Naturalmente, o prefeito foi o primeiro suspeito de ter dado um sumiço no velho curandeiro. Mas ele jurou, de pés juntos, que não havia tomado nenhuma providência a respeito. Disse, com a natural hipocrisia dos políticos, que até estava gostando da presença do Pai Justino na cidade, por que ele estava atraindo muita gente das cidades vizinhas, e elas estavam movimentando a economia local. Ninguém acreditou. Azar dele que as eleições

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estavam próximas. Perdeu feio a reeleição e ainda acabou processado pelo Ministério Público por corrupção e peculato.

Ninguém ouviu mais falar no Pai Justino. Um ano depois, o terreno onde a capelinha estava foi desapropriada pela prefeitura. Pretendia fazer ali um conjunto de casas populares. A capelinha precisou ser demolida. A curiosidade atraiu um grande público ao local no dia em que ela começou a ser derrubada. Não só a lembrança do Pai Justino, mas a vontade de saber, finalmente, o que havia dentro dela, fez juntar umas cem pessoas no local. Mas elas saíram de lá muito decepcionadas, pois lá dentro só foram encontradas umas roupas velhas, já praticamente destroçadas e puídas, e uma cruz, o que indicava que a tal capelinha tinha sido construída para marcar o nome de alguém que morrera naquele lugar. Na cruz, ainda se podia ler um nome: Jesuíno Jesus da Silva. A data da morte era de uns cem anos atrás.

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Dever de médico

Uma leve pressão na nuca e um ligeiro tremor nas mãos foi o primeiro sentimento que ele teve. Depois veio o sono. Um sono repentino, pesado, que dava a impressão que suas pálpebras pesavam um quilo e mais. Não conseguia mantê-las abertas. Mas ele não queria dormir. Não era hora de dormir.

Eram apenas duas horas da tarde, ele tinha muita coisa para fazer. Era esquisito aquele sono naquela hora. Nunca fora de dormir á tarde. Tinha plantão para atender no hospital, mas antes precisava ir ao banco pagar aquela fatura da prestação apartamento. Era o mais imperioso no momento. A fatura já vencera. Cada dia que passava vencia juros de 0,30% por dia. Eram uns ladrões os caras da construtora. Juros de 0,30% ao dia era coisa de praticante de agiotagem. Nem os bancos, reconhecidamente agiotas, cobravam juros tão escorchantes. Mas ele sabia disso e assim mesmo fizera o negócio. Afinal, o apartamento era o que sempre sonhara. Três bonitos quartos, um deles com banheiro conjugado, uma sala em L para dois ambientes, uma cozinha pequena mas bem bonitinha, com todos os aparelhos necessários, fogão, micro-ondas, geladeira, filtro de água, torradeira, enfim tudo que um jovem casal precisava para começar a vida.

Ia se casar no mês seguinte. Viviane, sua noiva, não cabia em si de contente. Seis anos de namoro, frequentando a faculdade juntos, ele fazendo medicina, ela psicologia,

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finalmente iam ter o seu corolário. Casamento, carreira, filhos. Suspirou com satisfação.

Mas agora aquele sono repentino. Não, não podia dormir. O torpor aumentava. Sentou-se na poltrona do apartamento novinho e pensou que dentro de um mês estaria morando ali. Bocejou. O peso nas pálpebras aumentara. O torpor também. Mas ele não podia dormir.

Duas horas e dez minutos. Tinha que ir, de qualquer maneira, ao banco. Nada de pagar juros para aqueles agiotas. Fez um esforço danado para levantar e ir ao banheiro. Jogou água no rosto. Mas era estranho. A água não tinha uma temperatura. Pelos menos ele não sentiu nenhuma. Era como se seu rosto estivesse protegido por um vidro. A água batia, escorria, mas não fazia som nenhum, nem provocava qualquer sensação identificável. Talvez fosse aquele torpor que sentia no corpo. Estranho. Sentia-se leve como uma nuvem, mas o corpo estava tão entorpecido que ele não sentiu o girar da chave na mão, quando abriu a porta do apartamento e saiu. Não tinha sensibilidade nas mãos nem no resto do corpo. Era aquele torpor. Na rua também tudo estava muito estranho. As pessoas falavam, mas ele não as ouvia. Andava por entre elas como se fosse um fantasma. Parecia que ninguém o via nem ouvia.

O banco era próximo. Apenas um quarteirão distante do seu prédio. Pensou naquela maldita porta que havia lá. Sempre enguiçava com ele. Tinha que esvaziar os bolsos, tirar moedas, chaves, o cinto, por causa da fivela de metal, e já tivera que tirar até a aliança para passar pela maldita porta. “Qualquer dia vou ter que ficar completamente nu para entrar nessa porcaria de banco”, ele já dissera para o guarda com cara de idiota que ficava controlando a entrada. Tinha certeza de que ele era o problema. Ele, o guarda com cara de idiota, controlava o mecanismo da porta e só barrava as pessoas com quem gostava de implicar.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

Mas naquele dia não aconteceu nada daquilo. Era o mesmo guarda com cara de samambaia que estava controlando a porta. Ela não foi obstáculo. Passou por ela como se a tivesse atravessando sem abri-la. Dirigiu-se á maquininha emissora de senha. “Coisa mais idiota”, pensou, “ter que pegar uma senha para ser atendido no caixa”.

Havia umas seis pessoas na sua frente. Entrou na fila. Não saberia dizer quanto tempo passou até que ouviu aquele estampido surdo atrás de si. Voltou-se imediatamente para ver do que se tratava, e a única coisa que viu foi uma mancha de sangue se espalhar no peito do guarda com cara de idiota. Ela formava uma espécie de rosa rubra, embaixo da mão dele. Gritou. Fez um movimento em direção ao guarda que caia. No mesmo instante percebeu que alguém se voltava para ele com um cano fumegante de revólver na mão. Da boca daquele cano saiu uma lavareda azulada, seguida de um som abafado e uma nuvenzinha de fumaça. Algo queimou no seu flanco direito. Botou a mão no lugar da queimadura e tirou-a empapada de um líquido quente, grosso, viscoso. Sua mente começou a apagar-se. Nãooooo! Ele gritou.

Acordou empapado de suor. Estava sentado na poltrona do seu apartamento. Seu flanco direito ainda queimava. Passou a mão no local, esperando encontrar um líquido quente e viscoso, como aquele do sonho. Nada. Estava tudo bem. Tinha sido apenas um pesadelo. Adormecera por alguns minutos. Não mais que cinco minutos, verificou, pois o relógio marcava duas horas e quinze minutos.

Lembrou-se que precisava ir ao banco. Tinha que pagar a fatura vencida do apartamento. Levantou-se e foi ao banheiro. Exatamente como fizera no sonho. A lembrança estava bem nítida em sua mente. Abriu a torneira, jogou água no rosto. Mas agora ele sentiu. A frialdade da água batendo em seu rosto despertou-o de vez. Não era mais aquela

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sensação de água batendo na vidraça. “Meus Deus! Que sonho tão real”, pensou.

Pegou a fatura em cima da mesa da sala e saiu. Desta vez sentiu a chave trabalhando na fechadura. Ouviu o click dela girando no tambor. Desceu até a rua. As pessoas iam e vinham. Ele agora as ouvia perfeitamente. Deu bom dia para algumas e ouviu bom dia de volta.

O banco era apenas a um quarteirão dali. Não demorou mais que cinco minutos para chegar na porta dele. A porta. A maldita porta com o guarda com cara de samambaia. Será que ela ia se comportar como no sonho? Se abriria simplesmente para ele entrar sem aquele odioso ritual a que usualmente era submetido diariamente? Mas não. A porta emperrou como das outras vezes. Tirou as chaves do apartamento e colocou na abertura que havia ao lado. Depois algumas moedas que tinha no bolso. A cinta, com sua fivela de metal. “ Vai querer que eu fique pelado?”, perguntou ao guarda com cara de idiota. Mas ele continuou olhando para ele com aquela cara inexpressiva.

Finalmente a porta girou e ele entrou. “Ah!, a maldita senha”, pensou. Foi até a maquininha e pegou um número. Havia seis pessoas na frente dele. “Merda!”, pensou. “Quem mandou deixar essa bosta atrasar?” Entrou na fila.

Foi então que ouviu o estampido atrás dele. Viu o guardinha com cara de samambaia levar a mão ao peito, tentando estancar uma rosa vermelha que se abria no peito dele. Mas agora a cara dele tinha uma expressão. Era de dor, espanto, perplexidade. Voltou os olhos para a direita e viu um cano de arma fumegante apontado para ele. “É um assalto!” ouviu alguém gritar. “Todo mundo com as mãos para cima!”. Gritou, vendo o guardinha desabar no chão, com as mãos tintas de sangue. Fez um movimento para correr em seu socorro. Era médico. Era o seu dever.

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

E tudo foi tão rápido que nem teve tempo de pensar que já vivera aquilo antes. Viu a labareda azulada que saia do cano do revólver. O som do estampido. A fumaçinha, que agora tinha um cheiro de pólvora que ele não sentira antes. A sensação de queimadura no flanco esquerdo. O sangue quente e viscoso nas mãos. Sim. Ele já sentira tudo aquilo antes. A sua mente começou a apagar-se. “Não é possível”, foi o seu último pensamento. “Estou tendo o mesmo sonho outra vez”.

A notícia estampada no jornal do dia seguinte falava do assalto a uma agência do banco X e dos dois mortos que os assaltantes deixaram. O guarda que controlava a porta e um jovem médico, recém formado, que não se sabe por que cargas d!gua foi baleado pelos bandidos. Ele não esboçara nenhuma reação contra eles. Apenas fizera um movimento em direção ao guarda baleado, provavelmente para ajudá-lo. Afinal de contas ele era médico. Esse era o seu dever.

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Enterrado vivo

Não sei dizer como isso aconteceu. Essa é uma daquelas experiências para os quais o nosso sistema de linguagem não tem recursos suficientes para descrever. A língua humana é limitada a um conjunto de símbolos que representam sons, imagens e sensibilidades, mas o nosso organismo é um imenso território onde a maior parte ainda não foi explorada nem catalogada. Por isso, quando acontece um caso desses nós ficamos em dificuldade para explicá-lo. Estava certo aquele filósofo que disse que o mundo é do tamanho da nossa capacidade de linguagem.

Vou tentar fazer o retrato mais verossímil possível dessa experiência, malgrado as dificuldades que sei que irei enfrentar. Pois que desse mundo onde estive inconscientemente, e para onde estou sendo mandado definitivamente, em plena consciência, nenhum cartógrafo conseguiu ainda fazer qualquer mapa confiável, nem qualquer lingüista foi capaz de criar um alfabeto que pudesse dar uma mínima descrição do que ele é e do que ele tem.

Tudo começou com uma repentina queda de temperatura no meu corpo. Algo assim como se algum elemento

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

refrigerante fosse injetado no meu sangue e ele se espalhasse rapidamente por todo meu organismo. Fiquei rígido como um cadáver, e minha consciência me abandonou instantaneamente. Utilizando uma analogia (que é uma das poucas formas lingüísticas que temos para representar conteúdos não absorvidos pela linguagem gráfica), direi que eu, de repente, me senti como se tivesse tirado de um ponto isotérmico de 25 graus centígrados, para outro onde a temperatura era menos de zero grau. Num momento fui levado do Brasil à Sibéria. Essa sensibilidade começou, me parece, na ponta dos dedos das mãos e se espalhou imediatamente pelo corpo todo. E não saberia dizer quanto tempo levou para essa sensação passar dos membros para o resto do corpo, até chegar ao coração e invadir o cérebro, levando-me ao colapso. Utilizando uma metáfora (que é outra forma lingüística que serve para explicar aquilo que a linguagem comum não consegue), eu sofri um “apagão”. Isso é o que acontece quando o cérebro “desliga” completamente e nos lança em uma total escuridão.

Não sei se o que desligou primeiro foi o cérebro ou o coração. Provavelmente foi o cérebro, pois é ele que controla o fluxo sanguíneo e os movimentos do coração. O cérebro desliga, o coração para, a máquina toda fica imobilizada. E aí, pouco a pouco, começa aquele relaxamento muscular, aquela distensão nos nervos, aquela rigidez cadavérica que caracteriza o rigor mortis. Houve um momento, um momento tão breve, que não foi mais que um bruxulear de chama de lamparina, em que eu tive consciência do que estava acontecendo. Mas foi tão rápido que nem tive tempo de sentir medo. Então mergulhei na escuridão total de um túnel sinuoso, que parecia não ter fim.

Quanto tempo estive naquele túnel escuro, de trevas tão

impenetráveis, onde nada, nada mesmo parece existir, a não ser a própria leveza da não existência? Pareceu-me uma eternidade, embora na medida do tempo, essa curiosa fórmula

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JOÃO ANATALINO

que os homens inventaram para medir o fenômeno da duração, esse sentimento de completa ausência possa ter durado apenas alguns segundos. Foi, com certeza, muito breve aquele momento de total ausência, de queda no vazio, em que eu fui atirado. Por que, no instante seguinte, me vi flutuando, num espaço vazio de toda matéria e forma, onde a única presença era o meu eu eterizado, destituído, entretanto, de qualquer elemento de identidade, ou seja, peso, forma, substância, dimensão, temperatura, cor, enfim, qualquer código neuro-linguístico que pudesse identificar a presença de um ser nessa dimensão, cuja única essência é o nada.

Mas essa sensação também não durou mais que um relampejar de faísca elétrica, rasgando a treva de uma noite tempestuosa. Pouco a pouco, como uma cidade que ficou as escuras, pequenas luzes começaram a se acender em meio à noite nebulosa. Minúsculos pontos luminosos, que eram resquícios de lembranças, sensibilidades, experiências vividas, que me vinham na forma de sons entrecortados, ininteligíveis, imagens sem cores fixas nem contornos definidos, e estranhas sensi-bilidades, impossíveis de catalogar.

Pouco a pouco, entretanto, as imagens foram se estabilizando, os sons se tornaram audíveis, e eu já podia identificar algumas das sensações que me acometiam. Percebi que estava deitado em uma sala e havia muitas pessoas á minha volta. Um aroma de flores e velas acesas me feriam as narinas. Ouvi soluços e, ao que me pareceu, alguém chorando á minha cabeceira. As imagens, agora estabilizadas, mostravam uma sala cheia de pessoas, decorada com muitas coroas de flores, crucifixos e algumas bandeiras e estandartes encostados nas paredes, que reconheci como sendo de alguns clubes de serviço e organizações não governamentais. Sim, lembrei-me que pertencia a algumas delas, e ainda pertenço. Senti-me em casa. Aquela sensação de vazio absoluto e completa ausência de identidade começavam a se desvanecer. Talvez eu tivesse

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

desmaiado em algumas daquelas cerimônias ou reuniões que costumava freqüentar. Não teria sido a primeira vez. A minha tendência a crises de catalepsia era já uma coisa diagnosticada desde há algum tempo e minha família já tinha sido até preparada para esses casos.

Sorri. Intimamente comecei até a achar graça daquela situação. Agora a razão me voltara em toda sua plenitude e eu já entendera o que tinha acontecido. Tivera uma crise de catalepsia patológica e esta durara tanto tempo que a minha família, e provavelmente os próprios médicos, teriam se enganado e me dado como morto.

Tive que conter-me para não soltar uma sonora gargalhada. Imaginei o reboliço que seria, se de repente eu me levantasse daquele caixão cheio de flores e começasse a rir como um sarcástico demônio que acaba de enganar o padre que tentou exorcizá-lo.

Pensei abrir lentamente os olhos e começar a respirar de uma forma tão leve que fosse imperceptível aos presentes naquela sala. Assim, de repente, alguém perceberia que eu estava vivo e a coisa toda seguiria um processo normal, com a chamada de um médico, as providências usuais de ressuscitação, a remoção, para um hospital, enfim, a coisa toda como deveria ser, e não a simples cena de um filme de horror, com o morto se levantando do caixão simplesmente, rindo como um sátiro perverso, provavelmente matando de susto, ou de enfarto, alguns dos velhos senhores e senhoras que ali estavam, velando o falso defunto.

Mas apesar de todo o meu esforço, não consegui abrir os olhos. Eles não se moviam. Parece que um imenso peso havia sido colocado em minhas pálpebras, de tal modo que nem toda a força muscular que eu possuía seria capaz de mover aquelas tênues películas que me cobriam os olhos. No entanto, eu podia ver tudo! Estavam ali todos os meus parentes e amigos. Outros não tão amigos, mas, de alguma forma, conhecidos. Todos

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pareciam tristes, mas não deixavam de conversar, de tratar de seus assuntos cotidianos, como se a presença da morte entre eles não constituísse um motivo de pausa e reflexão diante da fugacidade da vida, mas sim, apenas mais uma oportunidade para as pessoas se encontrarem e tratarem de negócios de seu interesse.

Mas não me aborreci com isso. Eu sempre entendi que a vida não deve ser constrangida nem em presença da morte, e eu mesmo já aproveitara alguns funerais para tratar de assuntos que me interessavam. Agora era o meu funeral que servia a esses propósitos, mas tal como eu via, tudo aquilo logo se transformaria numa grande piada, que estaria em todos os jornais, como um acontecimento inusitado que se transformaria, provavelmente, numa lenda urbana. Eu era o defunto que ressuscitara, o morto que estava vivo, o que seria enterrado vivo. Que formidável assunto para os jornais! Que fantástica experiência para uma obra literária...

Mas, no entanto, eu não conseguia abrir os olhos, nem movimentar os lábios para aquele sorriso de Monalisa, que eu pensava, seria o primeiro sinal da minha volta para o mundo dos vivos. E logo percebi também que não conseguia respirar. Os músculos peitorais não se movimentavam, os pulmões não funcionavam, o fluxo sanguíneo se transformara numa viscosa pasta escarlate, na qual não se percebia nenhum movimento.

Tudo bem, pensei. Mantenha a calma, disse para mim mesmo. Logo os meus sinais vitais voltarão e todos perceberão que eu estou vivo. Procurei respirar com calma, pausadamente, como fizera em outras oportunidades, em já tivera crises de catalepsia. Mas o meu sistema respiratório não respondia. Procurei mover as pontas dos dedos dos pés e das mãos. Nada. Absoluta rigidez em todos os membros, nenhuma resposta muscular, nem qualquer atividade peristáltica, nada que pudesse indicar que eu estava vivo. Comecei a ficar preocupado. Gritei, mas o som não saiu da minha garganta. Eu

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

ouvia as pessoas, mas ninguém podia me ouvir. Lembrei-me da canção de Simon e Garfunkel “O Som do Silêncio”. O desespero começava agora a tomar conta de mim. O que era agora? Um padre! Um padre encomendava o meu corpo! Meu Deus! Devolva o meu corpo! Eu estou vivo! Socorro! Não! Por favor, não fechem esse caixão, não, por favor, não...

Mas a tampa fechou-se sobre o meu corpo. Ouvi o som das cravelhas se fechando... De novo a escuridão. Mas não, eu estou vendo tudo. Estão me colocando num rabecão. Estão me levando para o cemitério. Um cortejo de alguns minutos. Pessoas que caminham lentamente. Palavras á beira de um túmulo. Meu Deus, eu estou sendo enterrado! Parem! Eu estou vivo! Não! Não joguem essa terra em cima de mim!

Mas não adiantaram os meus rogos, o meu desespero, as minhas mudas súplicas. Sei que em algum momento os meus músculos recuperarão os movimentos, os meus sistemas voltarão a funcionar, a minha mente voltará a ter contato com o meu corpo e os sinais vitais reaparecerão. Mas então será tarde demais. Antevejo esse momento e sinto já o desespero, o desconforto e o pânico que então me invadirá quando eu acordar deste transe cataléptico e descobrir que fui enterrado vivo! A escuridão total! A dificuldade para respirar! O cérebro morrendo lentamente pela falta de oxigênio! O medo de que tudo aquilo que eu nunca acreditei seja finalmente verdade! Se existe outra vida, como será ela?

Daqui há alguns anos meu esqueleto será desenterrado para dar lugar a outro defunto. Então meus ossos serão jogados naquele poço onde todas as identidades finalmente se confundem. O meu único consolo, se é que se pode chamar isso de consolo, é o susto que os coveiros vão tomar quando virem que eu estarei todo revirado dentro do caixão. Então saberão que eu fui enterrado vivo. E virarei então uma nova lenda urbana.

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Quarta-feira de cinzas

... Quarta-feira de Cinzas amanheceNa cidade há um silêncio que pareceQue o próprio mundo se despovoouUm toque de clarim, além, distanteVai levando consigo, agonizanteO som do Carnaval que já passou...

Sentado num banco da praça da catedral, ás três horas da manhã de uma quarta-feira de cinzas, ele estava cumprindo um ritual que já praticava ha três anos. Desde que ela morrera, sempre fazia isso. Ia assistir o desfile das escolas de samba, depois ia para aquela praça e ficava ali sentado até as primeiras horas da manhã. Depois ia para casa, com um gosto de quarta-feira de cinzas na boca.

Sentado no banco da praça tudo lhe parecia igual aos anos anteriores. Só não sabia por que o som dessa velha canção da sua infância estava sendo recuperado naquele momento. Fazia mais de cinquenta anos que ele não a ouvia. E nem se lembrava de um dia ter gostado dela ou de ter aprendido sua letra. Lembrava-se apenas que seu pai gostava, pois toda vez que ela tocava, naqueles programas noturnos que ele ouvia todo dia, ele a cantarolava. Mas ali estava ela, a canção, sendo cantada na voz chorosa daquele cantor que ele nem sabia o nome. Era uma canção melancólica, que falava de um amor perdido, de um passado tão distante, que parecia estar se

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MEMÓRIAS DE UM LOUCO AMOR

referindo a outro mundo, perdido na bruma do tempo, como a Avalon das lendas...

...E repete-se a cena de costumeCacos dispersos de lança-perfumeSerpentina e confete pelo chãoÉ a máscara que a vida jogou foraMostrando que a alegria foi-se emboraNos rastros da passagem da ilusão...

Confetes, serpentinas, lança-perfumes. Tudo isso já havia sido banido da história do carnaval há muito tempo atrás, assim como a alegria do carnaval que ele tanto experimentara, ali mesmo naquela praça onde estava sentado, não sabia há quanto tempo já. Deixara a passarela do samba naquela noite, onde agora as escolas de samba se apresentavam com fantasias luxuosas, moças seminuas, enormes carros alegóricos e uma estranha batida de samba que mais parecia marcha militar. Não se sentira bem lá. Muito barulho, muita poluição visual, mas pouca melodia nos sambas-enredos, poesias desconexas e um ambiente que parecia muito mais uma feira de plumas, paetês, artigos feitos de plástico reciclado e outros materiais. Tudo organizado como se fosse um ballet ensaiado durante o ano inteiro para ser apresentado em uma hora naquele palco montado naquela rua especialmente preparada para isso. Era a rua do sambódromo, estranha palavra que ele não encontrara no seu velho Aurélio, mas que agora existiam no país inteiro, mostrando que a língua, ás vezes, é mais lenta que o povo que a utiliza. Não pode deixar de pensar também que a evolução daqueles blocos absurdamente coloridos parecia uma parada militar. Ninguém podia perder o passo.

Em outros tempos tudo era diferente. Os blocos

desfilavam na rua principal da cidade. Saiam lá do começo da rua, onde ficava a velha rodoviária, e desciam a rua calçada

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com paralelepipidos, até a praça do jardim, onde ficava o único cimena da cidade. Todos podiam participar dos blocos. Cada um com sua própria fantasia. Vampiros, lobisomens, bebês-chorões, arlequins, palhaços, colombinas, um ou outro soldado romano, e a grande maioria dos homens vestida de mulher. Aliás, eram poucas as mulheres que se aventuravam a participar daqueles cortejos. Quem se arriscasse dificilmente escapava da má fama pela manhã.Depois todos iam para os salões. Neles bastava uma máscara, um spray de lança-perfume, um saquinho de confete e a farra estava garantida. Sentiu saudades dos carnavais da sua mocidade.

...Minha vida também durou três diasAlimentada pelas fantasiasRecordações de minha vida inteiraUm retrato, uma flor, uma aliançaNa maior festa da minha esperançaQue também teve a sua quarta-feira...

Ele a conhecera no salão do clube que frequentava. Quase não se falaram na primeira noite, que era um sábado. Ela estava num grupo com várias amigas e dançavam ao som das marchinhas formando geralmente uma roda que não permitia a entrada de estranhos. Parecia que ali eram todos conhecidos.Ele estava sózinho. Sempre ia sozinho a esses bailes.

Ás vezes, conforme a música, os grupos formavam um trenzinho. Num desses momentos ele entrou sorrateiramente numa roda e não saiu mais. Foi justamente no na frente de uma garota de máscara negra ele entrou. Rompeu a corrente ocupando o espaço entre ela e a garota que estava na frente. Ela gostou e a amiga não protestou. Na verdade, a amiga sorriu de modo cúmplice. Já havia percebido os olhares que ele havia trocado com a colega. Depois ele pegou na mão

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dela e não largou mais a noite ineira. Gostou do calor daquela mão que ele iria segurar pelos próximos trinta anos da sua vida.

Sim. Foram três dias de intensa emoção que lhe pareceram uma vida inteira. Em comparação com o carnaval de agora, pensou, tudo aquilo era tão ingênuo e puro...Três dias de folia e na quarta-feira, na igreja, as cinzas do expurgo daquela orgia. Aquilo lhe parecia uma grande hipocrisia, mas era a oportunidade de vê-la fora do buliçoso e barulhento ambiente do salão. Foi a hora de falar de um amor que nascia já forte e quase adulto, pronto para enfrentar uma vida juntos. E depois o retrato, que até agora ele ainda tinha na carteira,uma foto muito amarelada, enrugada, quase sem brilho.

Aquela praça, as flores, as pipocas que eles comeram juntos ali. Será que o pipoqueiro ainda era o mesmo? Olhou para a aliança que ainda brilhava no seu dedo. Fazia agora parte da sua anatomia. Para tirá-la teria que cortar o dedo fora. Duas lágrimas rolaram dos seus olhos. E a velha canção que não sai da sua mente.

...Hoje ante o silêncio sepulcralDos despojos de mais um carnavalConfronto este cenário à minha dorO que ontem pra mim foi iluminadoHoje são restos mortais do passadoCinzas do carnaval do meu amor...

A letra da música ressoava no seu cérebro. Estranho. Jamais se dera conta de que ela tinha sido registrada na sua memória com toda a sua intensidade emotiva. Conseguia se lembrar dela inteirinha como se a tivesse ouvido a vida inteira.

– Como é que você consegue ficar tão triste numa noite de carnaval? – perguntou a moça que sentou-se ao seu lado no banco da praça.

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Ele levou um susto. Não havia percebido a presença dela.

– Hum? – Foi o único som que conseguiu pronunciar, como se seu espírito tivesse sido trazido de uma outra dimensão e arrojado violentamente dentro do seu próprio corpo. Por isso, talvez, o arrepio que percorreu todo o esqueleto, desde o alto do couro cabeludo até a sola dos pés.

– Eu não estou triste– respondeu ele. – Estou recordando. Há quarenta anos atrás eu estava sentado nesta mesma praça, neste mesmo banco, com a minha esposa. Éramos recém casados. Havíamos casado nessa igreja ai em frente. Eu a conheci num baile de carnaval – completou ele, um tanto surpreendido por estar confessando á uma desconhecida coisas tão íntimas.

– E onde está ela agora?– perguntou a moça. – Ela faleceu há cinco anos atrás– respondeu ele,

olhando para ela, e reparando, pela primeira vez que a moça usava uma pequena máscara negra. –Desde então, toda terça-feira de carnaval eu venho me sentar aqui nesta praça, onde nós passamos os nossos melhores momentos.

– Então essa é a causa da sua tristeza– disse ela. – Deve ser mesmo muito triste perder alguém a quem se amou muito e com quem se dividiu tanta coisa.

–É estranho– disse ele. – Mas eu não me sinto como se a tivesse perdido. Para mim, é como se ela tivesse viajado para algum lugar e eu, um dia, também irei para lá me encontrar com ela.

–E você se sente preparado para ir ?– perguntou a moça.

–Estive me preparando nestes três últimos anos– disse ele, – mas agora não posso deixar de reconhecer que estou com medo.

– Todo mundo tem medo de viajar para um lugar que não conhece– disse ela. – Eu também, quando fui, tive muito

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medo. Mas logo me dei conta que era apenas a sensação do desconhecido. Eu vim buscar você.

Ele olhou para ela como se não tivesse entendido. Mas no seu peito alguma coisa explodiu como se seu coração fosse a barragem de uma represa que rompia. Sua mente foi tomada por uma profunda escuridão.

– Não precisa ter medo– disse ela, tirando a máscara e beijando docemente os lábios dele. – A vida é como o carnaval. Uma doce ilusão que se vive e acaba muitas vezes. E sempre recomeça de alguma forma. Se você amou e fez alguma coisa na vida que lhe deu mérito, você viverá para sempre porque o combustível da vida é o mérito. Se você o tem, o universo o conservará vivo por toda a eternidade. Nossos corpos se vão, mas o que feito em nome do amor repercute na eternidade.

A última sensação que teve foram os lábios dela colando nos dele. Ele, a princípio, os sentiu frios. Mas depois veio a vertigem e a frialdade foi substituida por uma sensação de leveza e fluidez. Era como se um aspirador o sugasse com uma força que ele não conseguia resistir. Sentiu-se puxado por uma força estranha que o conduzia por um túnel escuro e estreito. Mas ele não sentia medo agora. Sabia que havia uma presença sutil ao seu lado, guiando-o. Logo ele viu no fundo do túnel uma estranha luz. Nunca havia presenciado uma luz como aquela. Sentiu que ela o atraia como ímã atrai limanhas de ferro. Viveu uma eternidade num único segundo. Contente e já com uma sensação de paz em todo o seu ser, caminhou em direção a ela, agora sem dúvidas nem temores.

Os amigos que compareceram ao seu velório foram unâmines em dizer que ele tinha morrido do jeito que queria. Tinha sessenta e seis anos e morreu sentado num banco da praça da catedral da cidade. Os frequentadores da praça também se lembravam bem dele. Todo ano, religiosamente, ele

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costumava se sentar lá na terça-feira de carnaval e lá ficar até de madrugada. Gostava de ver a cidade vazia e silenciosa depois da muvuca do carnaval.

Um enfarto de miorcárdio, registrou o médico legista que o examinou. Ele era uma pessoa de quem todo mundo gostava. Houve muito choro e lamentação no seu funeral. A única pessoa que não ficou triste com a morte dele foi o gari que varria a praça da catedral. Junto com um punhadinho quase imperceptível de cinzas, uma máscara preta e o retrato amarelado de uma moça, ele encontrou duas grossas alianças que vendeu a um comprador de ouro por duzentos reais.

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Hitler reencarnado

Não existem pessoas más. Existem pessoas cujas mentes são informadas por crenças tão absurdas que próprio Diabo talvez se sentisse constrangido em adotá-la. Uma anedota diz que quando Hitler chegou no inferno, o Diabo, depois de cumprimentá-lo pelo bom serviço realizado em prol da sua causa, perguntou se ele não sentia constrangido em ser acusado de tantas mortes e maldades. Ele respondeu que um homem tinha que escolher entre ser uma águia e uma cegonha. Ele escolhera ser águia. Águias eliminam milhares de presas. Cegonhas, metaforicamente, são aves que trazem novas vidas para a terra. Ele matara milhares de presas e não deixara nenhum filho.

Dizem que o Diabo ficou tão impressionado com a firmeza da crença do ditador alemão que fechou-lhe imediatamente as portas do inferno com medo de que ele tomasse o seu lugar. Hitler então foi para o céu, e logo na porta encontrou Jeová e Jesus. Depois de agradecerem ao ditador alemão pela quantidade absurda de mártires que ele fez entre o povo escolhido e entre os próprios cristãos, porque isso aumentou em muito as hostes das almas admitidas no céu por conta do sofrimento por ele causado, eles perguntaram a Hitler se não se sentia nem um pouquinho culpado de ter causado

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tanto sofrimento no mundo.  Ele respondeu que ninguém tinha feito um bem maior para a humanidade ao eliminar as espécies mais fracas.

Isso é o que natureza sempre fez e ele somente ajudou a natureza a andar mais depressa.

Então Pai e Filho olharam um para o outro e ficaram impressionados pela firmeza das crenças daquele homem com bigodinho á moda de Carlitos. Então fecharam imediatamente as portas do céu para Hitler, por que ali, um sujeito com crenças tão firmes poderia desencaminhar todas as hostes celestes, como aquele outro havia feito há muito tempo atrás

Desconsolado e sem lugar para ir, Hitler pediu para voltar para a terra e reencarnar. Prometeu, de pés juntos, que iria se comportar bem e não iria mais promover guerras e matar tanta gente como fizera antes. Jesus e Jeová confabularam cerca de duas horas, e resolveram dar uma chance ao soturno ditador desde que ele se tornasse um médico, pois assim poderia compensar as mortes que causou, salvando muitas vidas. E para evitar que desenvolvesse os mesmos preconceitos e a desumanidade que havia mostrado na sua vida anterior, ele deveria voltar como mulher, pois as mulheres, como se sabe, costumam ser mais humanas e sentimentais que os homens, graças ao instinto materno.

Foi assim que Hitler se tornou uma médica intensivista e foi trabalhar em uma Unidade de Terapia Intensiva num hospital brasileiro que atende pelo SUS.

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O braço da morte

 

O jovem Adolfo estava muito contente com sua conquista e resolveu comemorar de uma maneira não muito condizente com suas próprias inclinações. Ele havia conseguido passar no vestibular da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo e ia, finalmente, realizar o seu sonho de ser médico. Ser médico era o sonho que ele acalentava desde menino. O pai, Dr. Adolfo, também era. Talvez tivesse herdado dele essa inclinação, mas Adolfo Filho nunca teve dúvidas sobre o que queria na vida.

Seu pai era legista. Ás vezes costumava levar o jovem Adolfo para vê-lo trabalhar. O garoto adorava aquilo. Preferia o silêncio e o cheiro do laboratório onde o pai dissecava cadáveres ao ambiente aborrecido da sua própria casa, ou dos shoppings e plays games onde seus colegas costumavam se reunir. Ficava fascinado ao ver o pai abrindo crânios, ou cortando com aquele tesourão as vértebras de um cadáver para analisar suas entranhas. Parecia um mecânico abrindo o capô de um carro para examinar seu mecanismo. Admirava o conhecimento dele quando dizia que o fulano morreu por tal e

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qual causa, e estipulava a hora exata em que a morte ocorreu, as circunstâncias e detalhes que só mesmo um grande perito naquela arte saberia dizer.

Desde pequeno o jovem Adolfo aprendera a ver o corpo humano como se fosse uma máquina construída e programada para a execução de determinadas funções. Os membros superiores e inferiores eram como alavancas de impulsionar, agarrar, manipular coisas e proporcionar movimento ao corpo; a cabeça e o tronco eram caixas onde se armazenavam os órgãos funcionais do corpo, e esses órgãos, pensava ele, eram como caixas de câmbio, engrenagens, bielas, anéis, foles, bombas, motores, fiação, placas de circuito impresso, como o cérebro e a rede neural, e por aí adiante.

Para ele não haviam seres humanos, no sentido em que a filosofia e a religião o colocam. Sempre ouvira o pai dizer que o ser humano era um produto da natureza, tanto quanto qualquer outro animal. “O que os filósofos e os religiosos chamam de espírito”, dizia ele, “é apenas uma característica desenvolvida pelo organismo humano, num processo que levou alguns milhões de anos para chegar a esse resultado. É simplesmente uma reação química que se processa nos neurônios do homem, reação essa que nós chamamos de pensamento”.

Adolfo nunca fora a uma Igreja, e livros como a Bíblia e outras escrituras consideradas sagradas, ele nunca lera. Conhecia por ouvir falar as teses que sustentam que o homem era uma criação especial de Deus, que ele tinha uma alma, um espírito, que sua personalidade sobrevivia após a extinção do corpo, que havia vida após a morte, que a consequências de ações realizadas nesta vida repercutiam em vidas posteriores, ou em outros lugares onde a nossa consciência sobrevive, etc. Para ele tudo isso era balela, superstição, mentira urdida por alguns espertalhões para tomar dinheiro dos idiotas que eram incompetentes demais para conquistar o próprio espaço no

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mundo e gerir a própria vida; e que por isso ficavam sonhando com recompensas após a morte, e principalmente com um Deus onipotente e gestor do mundo, para ajudá-los a realizar as coisas que eles mesmos, por conta das suas impotências, não conseguiam realizar.

“Se Deus existisse”, dizia ele, repetindo o que ouvia do pai, “ ele seria um péssimo gestor, pois este mundo é uma verdadeira bagunça.” E quando o interlocutor era uma garota, ele olhava libidinosamente para ela e completava: “ e pior ainda, ele é um péssimo arquiteto, pois ao projetar a mulher, colocou uma área de lazer ao lado de um cano de esgoto”.

Tudo isso talvez explique o que aconteceu ao jovem Adolfo naquela noite.  Após ver o seu nome na lista dos aprovados para o curso de medicina, ele resolveu comemorar junto com alguns amigos numa danceteria. Bebeu, dançou, flertou, divertiu-se até á saciedade. Ele não era muito de beber. Arriscava, quando muito, uma cervejinha de vez em quando, porque aprendera com seu pai, que o álcool “prejudica o desempenho da máquina.” Mas a verdade que ele era fraco com bebida. Ficava "alto" com pouca coisa. E naquela noite ele bebeu além da conta.

Deixou a danceteria ás cinco da manhã. Estava visivelmente embriagado. Pegou o carro e saiu pelas ruas quase desertas, naquela hora da manhã, sem perceber o quanto estava dirigindo perigosamente. Mas, para ele, tudo estava bem. Parecia até que seus reflexos estavam melhores. Sentia uma euforia gostosa ao passar as marchas, ao cantar os pneus nas curvas, ao sentir o vento batendo no seu rosto. Nem percebia que andava em zig zag pelas ruas, ou que andara subindo em calçadas ao fazer as curvas, e que ás vezes, até dirigia pela contra-mão.

Tinha acabado de entrar numa avenida quando sentiu um impacto violento contra o pará-brisa do carro. Foi tudo tão

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rápido que ele mal conseguiu perceber o que acontecera. Viu um corpo se chocando contra o pára-brisa do carro e rolando na calçada;  uma bicicleta atirada contra um muro; jatos de sangue borifando os vidros; um espelho lateral arrancado; os estilhaços do vidro explodido que voaram para dentro do carro, um grande buraco no pára-brisa; cones de marcação voando pelos ares; uma coisa sangrenta que pulou para dentro do carro através do buraco feito no vidro. Ouviu o canto dos pneus e gritos de dor e imprecações.

Como se tivesse saído repentinamente de uma dimensão para outra, ele se sentiu completamente lúcido e logo percebeu a tragédia em que se envolvera. Não parou para ver o que tinha acontecido. Sabia, por intuição, que havia atropelado alguém. Era um ciclista. Vira sua bicicleta voar pelos ares, sentira o impacto dela contra a frente do carro, vira, de relance um corpo chocar-se contra o carro e rolar na calçada, os cones que voavam pelos ares, e sentira, naqueles átimos de segundo, toda a adrelina que o envolveu quando fazia as manobras para equilibrar o carro e voltar para a faixa que lhe competia. Soube imediatamente que havia invadido a ciclovia existente naquela avenida e atropelara um ciclista. Instintivamente olhou para o velocímetro: ele marcava mais de cento e vinte. Olhou rapidamente para trás e não viu ninguém. A avenida estava vazia. Ninguém, fora ele e a vítima, havia visto o acidente. Isso o tranquilizou.

Mas ele não parou. Virou imediatamente na primeira esquina que deu mão e saiu daquela avenida fatídica. Andou a esmo por algumas ruas silenciosas e vazias. Caiu em uma outra avenida que beirava um rio. Não sabia que rio era aquele, mas também não importava. O que ele queria era afastar-se, o mais que pudesse, do local do acidente. Sentia-se completamente aturdido.            

Foi então que olhou para aquela coisa sangrenta que saltara para dentro do carro quando os vidros se partiram. Em

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princípio pensou que fosse um cachorro, ou um bicho qualquer que o ciclista levava com ele, ou que estivesse passando pela calçada invadida naquele momento. Mas não. Ele logo viu que era um braço. Tinha arrancado, no impacto, um dos membros superiores do ciclista. Sentiu medo e nojo. Mais nojo do que medo. Aquilo era simplesmente horrível. Pegou o membro, ainda vertendo sangue como se fosse uma ferida recentemente aberta. Sentiu o cheiro ocre e nauseante do sangue pingando no assento do carro. Parecia que aquela coisa ainda estava viva.

Lembrou-se dos comentários do pai, quando o vira dissecar cadáveres no Instituto Médico Legal. “Membros são peças articuladas que executam movimentos comandados pelo cérebro”. Parou o carro na beira do rio. “ Isso é apenas uma peça de máquina”, disse para si mesmo. E então atirou aquela coisa nojenta e mal cheirosa no rio. Ela afundou imediatamente nas águas grossas e pútridas do rio. Voltou para o carro e deu partida.

Não tinha andado cerca de dez minutos quando uma idéia lhe encheu a mente de uma forma intensa e inarredável. Aquele braço ainda estava vivo! Podia sentir as pulsações dele. Era como uma coisa que havia sido privada da sua fonte vital e vibrava, buscando, com todas as energias que ainda tinha, restabelecer a conexão com o organismo de onde viera. Parecia uma lagartixa, da qual se cortara o rabo e este continuava a se mexer, como se estivesse procurando o corpo, de onde fora separado.  

Sabia, por que aprendera com seu pai, que as células de um membro separado do corpo ainda sobrevivem por cerca de seis horas, e se este for reconduzido ao seu lugar de origem pode ser reimplantado e recuperar as suas funções. Mas ele o jogara no rio. Era como se estivesse praticando um aborto, ou uma eutanásia, por que, de certa maneira, estava impedindo

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que algo, ou alguém, exercesse o seu direito de viver. Mesmo para um ateu como ele, que não tinha doutrinas nem acreditava em absolutamente nada que não fosse o positivismo do mecanismo físico-químico que nos mantém vivos, havia as consequências jurídicas que certamente adviriam. Se ele se apresentasse á polícia, registrasse a ocorrência, prestasse socorro á vítima e levasse o membro amputado para o hospital, talvez ele pudesse ser reimplantado, e sua situação não ficaria tão complicada. Do jeito que estava, e pelo que tinha feito, a repercussão seria, sem dúvida terrível.

Foi por isso que ele voltou ao lugar do rio onde havia atirado o braço amputado. Precisava encontrá-lo e levá-lo ao hospital para onde a vítima fora levada. Tinha cerca de seis horas para isso. Não pensou duas vezes. Mergulhou nas águas pútridas do rio e esquadrinhou a lama do fundo. Nada. Tentou mais duas vezes. Nada. Na quarta tentativa se deu conta da besteira que estava fazendo. Ele não tinha competência para tal trabalho. Era preciso chamar o Corpo de Bombeiros. Começou então a nadar para a margem. Mas não chegou nela. Na terceira braçada, sentiu uma pressão na garganta, e que algo o puchava, com uma força contra a qual a sua nada significava, para o fundo. Lutou, debateu-se, engoliu a água lodosa e nauseabunda do rio, gritou pedindo socorro. Mas eram as primeiras horas da manhã e ninguém estava passando por ali naquela hora. Afundou como uma pedra, se misturando á lama negra e mal cheirosa do fundo do rio.

Seu corpo foi encontrado ás 11 horas daquele dia uns dois quilômetros rio abaixo. Seu pai, o legista Dr. Adolfo, diagnosticou que o seu filho havia morrido afogado. Em princípio pensou que ele havia bebido muito e provavelmente sofrera um acidente, no qual fora arremessado para fora do carro, caindo no rio. O estado do carro parecia confirmar essa

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hipótese. Com a frente e o capô todo amassado, o para-brisa quebrado, o espelho lateral arrancado, o sangue no interior do carro, não deixavam dúvidas que ele sofrera um acidente antes de cair no rio. De qualquer modo, as perícias a serem realizadas e as investigações policiais iriam, mais tarde, apurar o que fato acontecera. Agora, era chorar pelo infausto acontecimento. Só uma coisa continuava intrigando o Dr. Adolfo. Aquelas marcas na garganta do seu filho, que pareciam ser de dedos. Onde será que ele as obtivera? Teriam sido feitas antes ou depois do afogamento? Isso ele não soube explicar. Nem a polícia, nem os outros legistas que examinaram o corpo. Foi um mistério, enterrado com o infeliz rapaz.     O ciclista atropelado não morreu. Tornou-se um atleta pára-olímpico, que ganha medalhas nadando com um braço só. Quando lhe perguntam pelo acidente e como ele sente em relação ao sujeito que o aleijou, ele responde que não tem qualquer mágoa ou constrangimento por isso.  Ele nunca soube quem foi que o atropelou e não estava preocupado com isso. Só dizia, com a certeza de quem realmente acreditava no que dizia, que a pessoa que decepou seu braço já tinha pago, e muito caro, pela maldade que cometera.

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A  múmia do general

O ano é 2063. Nas ruas de Cascara, capital da república bolivareana da Cavelândia, uma extraordinária agitação popular está sacudindo os 15 milhões de habitantes dessa que é uma das mais populosas e problemáticas cidades do planeta. O petróleo, que é a maior riqueza do país está se esgotando e o governo não conseguiu alavancar uma economia sustentável com os lucros da exportação desse produto, pois durante os últimos cinquenta anos procurou seguir á risca a doutrina imposta por seu grande líder, o coronel Lugo Cávez, cujo nome foi dado ao país após a sua morte. Essa política, centrada num programa de distributivismo sem contrapartida, que alienou o povo ao invés de fazê-lo participar do processo de desenvolvimento, estava agora cobrando sua parte.

Um povo sem educação e sem saúde, um país sem indústrias e pobre em serviços públicos e privados, entrava agora em ebulição, ameaçando um governo conduzido com

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mão de ferro pelos herdeiros do grande líder bolivariano que, agora, cinquenta anos após sua morte, estava de novo na berlinda.  O povo de Cavelândia, durante todos esses anos, viveu ás custas dos dividendos do petróleo, distribuídos pelo governo na forma de cestas básicas, bolsas-família, vale isso, vale aquilo e outras benesses desse tipo, que já não podiam mais ser mantidas por força do esgotamento das suas jazidas de petróleo.   

Porém, o grande frenesi que sacudia a capital do país não era propriamente as dificuldades do governo em manter a ordem social ameaçada pelo colapso da sua economia. Essa, bem ou mal o governo controlava pela repressão e pela truculência da sua polícia. Os mortos se contavam aos milhares, mas isso era o que menos importava aos governantes.

Foi a notícia que se espalhou pela cidade desde a noite passada, que mobilizava todos os escalões do governo e enchia todas as páginas da imprensa controlada e os canais de Tv. Pois ela dizia simplesmente  que o grande líder Lugo Cávez, cujo corpo estava depositado numa urna de vidro numa sala especial do museu de Caracas, desde a sua morte, em 2013, havia ressuscitado.

Nada mais normal para o bom povo cavelista, pois este sempre considerara seu grande líder como um Messias que havia vindo á terra para libertar o seu país do domínio imperialista predador, praticado pelas chamadas nações desenvolvidas, especialmente o grande vizinho do norte, os Estados Unidos da Cariméa. Durante toda sua vida ele mesmo havia pregado isso e depois, durante os cinquenta anos de sua morte, o governo, dominado pelos seus seguidores, procuraram fortalecer essa doutrina cada vez mais, controlando a mídia, a educação, a vida do país em todos os seus seguimentos e evitando, a todo custo, que a oposição prosperasse e que qualquer contra informação pudesse colocar em dúvida que o

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cavelismo era a doutrina redentora e nenhuma outra mais poderia levar a Cavelândia ao paraíso.

Na verdade a noticia que circulou naquela noite não dizia, propriamente, que o grande líder havia ressuscitado. Mas sim, que ele voltara á vida por um breve momento para dizer ao seu amado povo quem era o culpado pelas dificuldades que o país estava passando. Isso foi contado por quem presenciou a bizarra cena, ou seja, os soldados que montavam guarda dia e noite em frente á porta da sala especial do museu onde o esquife do grande líder bolivariano estava depositado há cinquenta anos. Eles contaram, que por volta da meia-noite do dia anterior, ouviram um grande grito na sala do esquife, seguido por um barulho que parecia ser de vidros quebrados. Imediatamente abriram a grande e pesada porta de madeira, e com as armas engatilhadas (porque a primeira idéia foi de que um ladrão havia penetrado ali, talvez para roubar as magníficas medalhas e a primorosa espada que o corpo já quase mumificado do grande líder ostentava), se prepararam para abater o miserável profanador. Mas o que viram fez com todos os seus cabelos se arrepiassem e seus quepes voassem de suas cabeças como se arremessados por uma descarga elétrica. Pois ali estava, sentado no esquife, com a boca desmesuradamente aberta, soltando um grito agudíssimo, com o dedo apontando para o norte, como que a imprecar e apontar para alguém, o grande líder, Coronel Lugo Cávez

Os guardas, assustados, não quiseram saber de mais nada. Largando seus rifles a lazer, importados dos Cariméa, fugiram espavoridos. E foi só depois de algumas horas, medicados e finalmente acalmados em seus estados de completo blackout emocional, que eles conseguiram reportar aos policiais e para médicos que os atenderam o bizarro acontecimento. É claro que, em princípio, ninguém acreditou na história deles. Provavelmente tinham sido vítimas de uma alucinação. Afinal, mesmo sendo quem era, o grande líder e profeta do cavelismo

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não poderia competir com aquele que há mais de dois mil anos atrás inaugurara esse tipo de experiência. Seria ousadia demais.

Mas para desencargo de consciência foram ao museu para certificar-se. E o que lá viram, embora os deixasse desconfiados, não obstante não deixou também de provocar-lhes um arrepio no alto do couro cabeludo. Pois a tampa de vidro da urna em que o corpo do grande líder estava depositado estava toda quebrada. Os cacos de vidro, espalhados no chão, não deixavam dúvidas: o impacto que a destruíra, tinha vindo de dentro do esquife e não de fora. Na cabeça e nas mãos do cadáver podiam ser notadas algumas escoriações que pareciam ter sido provocadas pelo impacto deles contra a tampa de vidro. Nada havia sido roubado. As belas medalhas, os botões dourados da túnica do presidente, sua linda e coruscante espada, tudo estava ali. O que mais espantou os policiais e os paramédicos que os acompanharam, entretanto, foi o fato de que o cadáver estava agora em outra posição. Sua cabeça estava virada para o norte e seu dedo indicador também apontava para essa direção.

“Nossa”, disse um dos paramédicos, bem baixinho aos ouvidos do colega mais próximo: “ Não é que ele parece mesmo o Ransés II?” *

______________________________________________________Nota:         Ramsés II foi o mais famoso faraó do Egito. Em seu longo reinado, que durou cerca de cinquenta anos, o Egito antigo alcançou o seu período de maior glória. Foi também um grande guerreiro e administrador. Conquistou boa parte do Oriente Médio e construiu os maiores templos e monumentos e o Egito já conheceu. Ficou famoso pelas guerras que travou contra os hititas, povo que habitava na Anatólia, região hoje pertencente á Turquia. Acredita-se que ele tenha sido o faraó da época em que os hebreus, comandados por Moisés, deixaram o Egito no grande Êxodo descrito na Bíblia. Seu governo foi marcado também por uma intensa ação social-

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assistencialista, de forma que esse faraó foi chamado pelo povo egípcio de “pai dos pobres”. Há uma lenda urbana a esse respeito, muito divulgada e acreditada por muita gente. Conta-se que a múmia de Ransés II foi depositada numa urna de vidro com a cabeça voltada para o sul no museu do Cairo. Logo na primeira noite em que ela passou no museu, os guardas ouviram um grito agoniado, seguido do ruído de vidros partidos, que partia da sala onde ela estava exposta. Correram para lá e o que viram os deixou completamente atônitos: a múmia do faraó Ransés II, estava sentada no sarcófago, com a boca completamente aberta, gritando. Em seguida virou-se dentro do sarcófago, voltou a cabeça para o norte e deitou-se novamente na posição onde se encontra até hoje.

SINOPSE

No território da inconsciência humana todas as entidades estão vivas. Bruxas, vampiros, lobisomens, magos e monstruosidades físicas e psíquicas constituem uma fauna necessária, sem a qual a imaginação dos homens não consegue sobreviver. Todos os povos têm as suas lendas urbanas, os seus contos de horror, as suas estórias sobrenaturais. Muitas vezes essas estórias acabam refletindo em comportamentos pessoais, gerando acontecimentos que causam espanto na sociedade. Alguns desses acontecimentos foram adaptados pelo autor em contos como As Virgens de Alá, Hitler Reencarnado, O Braço da Morte, O Último Sonho e a Múmia do General. Aqui o leitor se reencontra com esse lado negro do seu inconsciente e o reintegra á sua personalidade como uma parte necessária dela.

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