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Do Bicho Papão ao Lobisomem – De Castro e Silva [RTS] Página1 De Castro e Silva

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Do bicho-papão ao lobisomem

Edição Saraiva SÃO PAULO

1963

Contos Folclóricos

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Disponibilização, Digitalização e Capa: Jossi Borges (RTS)

Revisão: Jossi Borges Formatação e Revisão Final: Luciane Le Faye

Romance com Tema Sobrenatural - Blog

As lendas e mitos do nosso folclore estão presentes nesses

contos, de forma impressionantemente lúdica e encantadora. O ar de brasilidade de nossos mitos e a magia dos “causos”

contados pela “Negra Miquilina”, a personagem contadora de histórias, nos fazem voltar ao tempo de nossos avós, quando uma história de assombração era mais interessante de ouvir

que assistir um filme de terror.

Adorei esse livro, uma edição antiga, mas com histórias tão maravilhosas que foi impossível não compará-las aos contos de fadas europeus. Você também se encantará com histórias sobre o Saci, o Quibungo, o Lobisomem, duendes brasileiros

com todo o sabor e a magia da infância.

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Í N D I C E O Caipora O Caipora O Caipora O Lobisomem O Lobisomem O Lobisomem O Quibungo O Curupira O Saci-Pererê O Sem Fim (Saci ornitológico) A Mãe D'água — A Iara O Boto A Mula sem Cabeça Matinta Pereira A Cuca Notas Finais

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P R E F Á C I O A lua começava a clarear o terreiro da "casa-grande” a calçada, feita de

lajes compridas, reluzentes como jaspe, que rodeavam a velha e ampla mansão de meus avós, era uma recurva chapa de prata ao clarão da lua cheia.

No velho curral, em frente, as vacas e os bezerros, deitados nuns restos de grama, ruminavam satisfeitos e abanavam as orelhas e o rabo, tangendo as moscas e os mosquitos importunos.

A lua parecia também lhe acetinar os pelos e suas sombras se moviam, por vezes, em redor, como que agitadas pelo vento. A velha game- leira mal suportava o peso da folhagem e o seu alto e velho tronco semelhava um vasto ponto exclamativo na solidão.

As estrelas, no céu rendilhado de nuvens, que se deformavam constantemente, tremeluziam inquietas.

De longe em longe} ouviam-se passos na estrada ao lado: ora um cavaleiro passava trotando o seu cavalo, ora um viandante caminhando a passos lentos e cansados, naquele andar matuto que não para nunca.

Nas lajes da calçada nós nos assentávamos conversando uns, outros fazendo estalar cafunés, e eu e alguns mais curiosos ficávamos a ouvir as histórias contadas pela preta velha Miquilina.

Como era bom ouvi-la! Como nos alegravam as histórias que ela nos contava! Tinha um sabor estranho o que nos referia, porque, como ninguém, sabia

dar às palavras o sentido real que as mesmas pareciam possuir. Desse tempo, dessa idade que se foi} — que sendo o pretérito, é também

o presente e o futuro — é este punhado de contos. Porque as lendas não desaparecem, não se desafiguram. As assombrações não morrem e os mitos passam, de geração a geração,

acompanhando as lendas, a arte, a vida e, enfim, o desenvolvimento dos povos, em todos os seus vestígios e vicissitudes. DE CASTRO E SILVA

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1 O C A I P O R A

A noite era igual a esta. As estrelas pareciam que eram as mesmas e o silêncio amortalhava a noite inteira.

"Seu" Joaquim pegou da tarrafa; olhou se as malhas estavam perfeitas; se os chumbos continuavam bons e decidiu-se a ir pescar na "lagoa dos bambus".

O luar convidava. Vestiu a sua roupa grossa de roceiro, apanhou a sua capa e o chapéu,

grande, de palha; pôs a tiracolo uma espécie de samburá pequeno. E saiu. Com ele foi o negrinho Zé Veira, que era mais preto que uma noite de

trevas. Continuamos conversando, sentados nas lajes, como de costume, e

ouvimos a porteira bater no mourão, com a pancada taciturna e pesada que elas sempre têm, em noites assim, no silêncio das fazendas.

Ao longe, ainda avistávamos a figura de "seu" Joaquim, no caminho estreito que levaria à "lagoa dos bambus".

O negrinho, atrás, só deixava ver aqueles pedacinhos de roupa branca e o chapéu, porque o resto de seu corpo se confundia com o escuro da noite.

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Era cedo, ainda. E, quando ele ia pescar, nós ficávamos conversando até tarde, à sua

espera. Trazia, como sempre, muito siri-patola, camarão, curimatã, bagre, e outros

peixes e crustáceos, que a "lagoa" emprenhava com fartura. Eram mais ou menos 11 horas da noite, quando "seu" Joaquim regressou. O moleque não podia falar. Os olhos, muito brancos, parece que queriam pular fora das órbitas. O nariz se acendia de momento a momento. E as pernas finas tremiam, ainda, como varas verdes tangidas pelo vento. "Seu" Joaquim também não era o mesmo. Todos ficamos assustados com aquilo, quando ele começou a explicação,

aos poucos. Pôs o chapéu em cima da mesa grande.

Entregou a Maria Congo os peixes que pescara e mandou estender, nos caibros da cozinha, a tarrafa úmida e pesada demais, da água da "lagoa".

— Zé Vieira começou a dizer que um preto velho nos estava seguindo. A princípio não liguei; não dei a menor importância. Continuamos a andar, como fazíamos naturalmente todas as vezes,

despreocupados e alegres. O moleque insistia. E, quando, atendendo à sua impertinência e ao seu medo, me virei para

olhar, pude ver que, de fato, um preto velho nos acompanhava. — Era velho; cabeça branca e muito grande; os olhos apavorados, como

que pulando fora da cara; o nariz enorme; a boca, de beiços grossos e vermelhos, parecia abrir-se para nós dois.

Pernas meio tortas, cambaias; braços ossudos e flácidas as suas carnes; mãos abrutalhadas; meio corcunda, camisa fora das calças e, ao pescoço, pendentes de um cordão encardido, umas figas e outros amuletos.

Na mão direita, um enorme cajado, e, no rosto, a expressão horrorosa de um símio fabuloso.

Olhou-nos demorada e assombrosamente. Zé Vieira, agarrando-se às minhas calças, tremia de medo e de pavor. Eu, também, era a primeira vez que o encontrava, muito embora de si já

tivesse ouvido as maiores descrições. — "Quero fumo"!, foram as suas palavras. "E fumo de rolo"! Não tive a menor dúvida. Tirei do bolso um bom pedaço de fumo e lhe entreguei. Com aquelas mãos enormes e sujas, dedos grandes e calejados, ele

recebeu o fumo que lhe dava. O seu olhar era ainda o mesmo, mas, não sei por que, não me apavorava

como antes. — "Teve sorte! Se não tem o fumo que pedi, ficava "encaiporado". — "Tá perdido?", perguntou ainda com a sua voz gutural, que ecoava no

silêncio da noite. — "Não", respondi. E ele, então, se dirigiu, mascando o fumo, em procura da "lagoa dos

bambus". Nós, que já regressávamos com o produto da pescaria, alargamos os

passos.

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Zé Vieira, ao menor ruído de uma folha caída, ao estalar de um graveto pisado, agarrava-se a mim, quase chorando.

— Era o Caipora, — expliquei-lhe, durante a caminhada, na volta. Ao redor da mesa, à luz mortiça de um candeeiro, escutávamos o

encontro de "seu" Joaquim e de Zé Vieira com o Caipora. Maria Congo preparou as curimatãs e, com um pirão de farinha bem

gostoso, saboreávamos a pescaria daquela noite. O moleque estava deveras assombrado e em tudo ele pressentia o

Caipora. Todos foram dormir, depois, quase de madrugadinha. E, até o momento em que os da casa se levantaram de novo, Zé Vieira se

remexeu na esteira o tempo todo. E o Caipora deve ter lhe tirado o sono, coitadinho. Miquilina nos relatava tudo isso como se nós estivéssemos vendo "seu"

Joaquim e Zé Vieira saírem para a pescaria. Como se nós tivéssemos visto também o Caipora e comêssemos na

mesma mesa as curimatãs pescadas e o pirão de farinha bem batizado com sal.

Foi a primeira história que Miquilina contou, e, como o negrinho Zé Vieira, desde que a ouvi, me remexi a noite inteira em minha cama macia.

As crianças são mesmo assim, têm medo do Caipora e guardam na imaginação os tipos e as personagens dos contos de Miquilina.

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2 O C A I P O R A

Os meninos aproveitam sempre a noite de lua, na "casa grande", para brincar na grama do terreiro.

A velha e boa Miquilina, com o seu vestido limpo, de chita graúda e de "cabeção", já está nas pedras da calçada.

Eles brincam. Brincam despreocupados, — brincadeira sem malícia e sem artifícios,

diante da Natureza adormecida. A gameleira, ramalhuda e anciã, farfalha as folhas ao movimento instintivo

dos pássaros que nela se aninham, ao cair da tarde, ou ao perpassar do vento pelas suas franças.

A coruja, de longe em longe, rasga o céu com o seu pio forte e "agourento", enquanto Miquilina se benze supersticiosamente e, temerosa, quase que se recolhe mais, dentro de si mesma.

Estréias brilhavam no firmamento e a grama orvalhava-se aos pouquinhos.

Os garotos já estão cansados, mas brincam ainda. Brincam sempre. Zé Vieira também está no bando infantil, porém não se afasta muito, e, ao

bolir de uma folha ou ao menor movimento dos animais, no curral em frente, pára e procura, com a vista alongada, o lugar onde se acha Miquilina.

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Lembra-se, de certo, do que lhe aconteceu àquela vez, na "lagoa dos bambus".

"Seu" Joaquim, d. Iaiá e as negrinhas de casa observam os garotos e penetram no olhar e nos gestos de Zé Vieira.

— Certamente, diz "seu" Joaquim, está se lembrando do Caipora que viu naquela noite de pescaria.

Miquilina ajeita o "cabeção", mas ainda deixa à mostra as carnes relaxadas do colo e do pescoço, já pregueado e cheio de rugas, denunciadoras de sua velhice.

Os braços, com as suas carnes bambas e moles, movem-se em acenos e mais acenos, chamando os meninos para junto de si.

Cansados, com a respiração ofegante, e suados, eles se assentam junto à velha Miquilina, com um respeito quase filial, para ouvi-la.

— Vou contar-lhes hoje outra história de um daqueles "bichos", que pediu fumo a "seu" Joaquim e que Zé Vieira ainda se assusta ao recordá-lo.

— Não se deve ter medo desses "bichos" que a tradição criou para encher os nossos rios, povoar as nossas matas e as nossas imaginações. — Vocês, crianças, devem conhecer as nossas lendas, porque elas, além de bonitas e belas, são pedaços do nosso passado. Zé Vieira achegava-se cada vez mais para junto "das saias" de Miquilina. E ela começou. — O Caipora não surge somente como o negro velho que apareceu naquele momento, quando Zé Vieira e "seu" Joaquim voltavam da pescaria. Ele também é representado como um menino, menino igual a vocês, porém cabeludo, que fuma cachimbo como eu, e é protetor da caça. O Caipora, assim, anda sempre montado num porco do mato, que tem os dentes enormes e afiados fora do focinho, numa corrida danada, guiando o resto dos porcos que o seguem, levando nas costas o caboclinho Caipora. Ele é um tipo pequeno, nüzinho, cheio de pêlo, com os olhos arregalados, beiços grossos, que agarram e apertam o cachimbo; o nariz, também fornido e arrebitado; cabelos caídos por cima dos olhos, assemelhando-se aos filhos do Totonho, que nunca souberam o que foi tesoura. Na cabeça, esse caboclo usa um pequeno chapéu de palha, parecido com aquele dos anões de Branca de Neve, que vocês já viram no livro de figuras que d. Iaiá mostrou outro dia. Esse "capeta", que leva na mão direita uma vara com ferrão na ponta, agarra-se com a esquerda nos cabelos do porco, que rompe as capoeiras, no escuro da noite, ou em plena luz do dia. Não deixa nunca de fumar esse caboclo peludo, que topa com os caçadores, para lhes pedir fumo. E todos que vão à caça levam fumo em rolo, porque se não tiverem fumo para dar a esse Caipora, ficam "encaiporados" para o resto da vida. O caboclinho não cresce, apesar de já haver muitos e muitos anos que existe. Isso, porque as lendas nascem, vivem e morrem, quando morrem, com o mesmo tamanho e o mesmo feitio. Às vezes passam a outros lugares, tomam formas diferentes daquelas de origem, aumentam um pouquinho ou diminuem, mas, são, na essência, as mesmas. São lendas, meus meninos.

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São histórias de caçadores indígenas, que viam em tudo um mito, uma coisa pagã, um deus ou um demônio, que os protegia ou os amedrontava, como disse "seu" Joaquim. Não as devemos temer, porque não se deve ter medo de nada, na terra; o que se não deve é ridicularizá-las, porquanto todas elas, boas ou más, são patrimônio de nossos avós, são troncos ainda enterrados na terra dos Tempos e que poderão ter raízes e produzir flores e frutos, amanhã. São velhas árvores, que o fogo queimou, que o sol, muito forte, não permitiu ainda que florescessem, mas que algum dia a chuva poderá revivescê-las, para outras reproduções mais felizes. Assim são as lendas.

Miquilina dizia isso tudo com as suas palavras próprias, com a sua linguagem matuta, que a meninada não cansava de ouvir.

Até, notava-se, desaparecia o sobrôsso que, porventura, se quisesse agasalhar naquelas almas infantis.

Miquilina não contava aquilo para fazer medo às crianças, não. Contava, sim, para que elas vissem nas lendas não um espantalho, uma

afugentação, mas um motivo de interesse por tudo que a fantasia e a imaginação dos nossos mais velhos criaram, não sabendo entender os mistérios das selvas, dos rios, da própria Natureza.

Se nós ainda não compreendemos, insistiu Miquilina, pelo menos não devemos nos amedrontar com essas coisas.

A coruja rasgou, de novo, com o seu pio agourento, o silêncio da noite, e Miquilina, instintivamente, persignou-se medrosa.

Zé Vieira queria dormir, porém não tinha coragem de ficar sozinho consigo mesmo.

Chegava-se mais para perto de Miquilina. — Ora gentes!, que moleque medroso! — Tem corage, Zé Vieira! E o moleque não conseguia resistir!

Abria a boca, mostrando os dentes alvos; distendia os braços; passava a mão na cara- pinha; esticava as pernas, mas não saia do lugar. Os meninos todos mangavam1 dele.

Os bois mugiam no curral e galos começavam a cantar, anunciando noite alta.

A lua entrava e saia de nuvem em nuvem e as estrelas brilhavam cada vez mais, no céu distante.

O sereno caia de mansinho e a grama estava molhada e macia, com o orvalho da noite.

"Seu" Joaquim e d. Iaiá já se retiravam para dormir e as pretinhas sonolentas iam recolhendo as cadeiras e tamboretes.

Miquilina, apanhando o cachimbo já meio apagado, bateu-o na laje para deixar cair o resto do fumo e cinzas e deu um chupo no canudo, para tirar o "sarro". Abriu a boca, demorada e preguiçosamente, e, ajeitando de novo o "cabeção"2, procurou levantar-se, apoiada no portal, com o pé meio dormente.

— As cadeiras3 da nêga não presta mais! 1 Mangar: Debochar. N. da R. 2 Cabeção: Tipo de camisola longa, usada antigamente. N. da R. 3 Cadeiras: Quadris, parte inferior do corpo. N. da R.

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No pequeno curral, perto da "casa grande", os porcos se empurravam, fazendo um barulho enorme, no chafurdamento da lama, enquanto os porquinhos, despreocupados e vadios, disputavam as mamas da velha porca, que mal se levantava, de tão gorda.

Zé Vieira não havia dormido direito e começou a lembrar-se, então, da história que Miquilina contara.

— "Diabo desses porcos fazendo barulho agora!" — dizia Zé Vieira, de si para consigo.

A esteira de pipiri foi revolvida o resto da noite e Zé Vieira, medroso, não dormiu mais uma vez, por causa do Caipora.

Os meninos ressonavam despreocupadamente e os porcos continuavam num "rrrum-rrrum" sem fim, na pocilga, ao lado.

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3 O C A I P O R A

O carro de bois, chiando, lá vinha, estrada afora, carregado de milho verde.

"Seu" Zacarias, de quando em quando, batia com a "macaca" nos bois de coice ou os furava com a "vara de ferrão", afiada e comprida.

O carro chiava mais forte, quando o velho carreiro empurrou a porteira do cercado, para lhe dar entrada.

As empregadas, velhas e moças, juntamente com Miquilina, já se preparavam para descascar o milho, fazendo as gostosas pamonhas e canjicas, que os meninos tanto apreciam, pois raspavam até o fundo do tacho aderido de canjica tostada.

Dado início ao alegre trabalho, as palhas melhores eram guardadas para o embrulho das pamonhas.

D. Iaiá ziguezagueava dentro de casa, dando ordens e ajudando também a preparar a festa costumeira, para os festejos de São João. "Seu" Joaquim já havia mandado trazer a lenha necessária para a grande fogueira, que deveria ser armada em frente à "casa grande".

Miquilina, com as suas carnes meio derreadas, ajeitava a camisa rendada, com um decote bem grande, que deixava aparecer as pregas do colo e do pescoço e as pelancas dos braços,

— "Vamo Zéfa, cuida desse mio qui é pramóde saí cêdo essas pamonha", — dizia Miquilina, cachimbando em grandes puxos e cuspinhando no terreiro, de vez em vez.

Zé Vieira, com os olhos brancos na moldura negra de sua pele, carregava água do rio, num póte, para encher as fôrmas de barro da cozinha.

Geraldo já havia regressado da feira com os grandes molhos de "fogos do ar", "mijões", "traques", "estrelinhas", "busca-pés", "espanta- coió", para as festividades da noite. Ás três horas "seu" Joaquim voltava do serviço, satisfeito e patriarcal, como os bons senhores das "casas grandes".

Em todas as casas de palha, à beira dos caminhos, ajeitavam-se gravêtos para as fogueiras humildes, mas homenageosas ao senhor São João.

A porteira bateu no mourão e "seu" Joaquim apeou-se de seu cavalo ruço cardão, afadigado e pingando suor.

A fogueira estava pronta e havia lenha bastante para queimar a noite inteira.

As comidas de milho, quase prontas também, já se viam por cima da mesa comprida, notando-se os pratos de canjica, enfeitada com canela em pó, que fumaçava a valer.

D. Iaiá arrumava o santuário e dava ao seu São João o lugar de destaque entre os outros santos queridos.

As flores enfeitavam os jarros e as toalhas brancas e bordadas, bem limpas, pendiam, adornando o pequeno altar no "quarto dos santos".

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As velas, novas, espetadas nos castiçais de vidro, estavam ali para iluminar as orações votivas, da noite.

Os sobrinhos de d. Iaiá vieram passar uns dias na "casa-grande" e enchiam-na com a alegria própria àqueles que, na vida, não possuem preocupações.

O sol caia a pouco e pouco, iluminando o firmamento. Os candeeiros já se acendiam, prenunciando noite. "Seu" Joaquim e d. Iaiá, metidos em seus trajes de festa, recebiam os

vizinhos e amigos, que chegavam para as rezas, as canjicas e as fogueiras juninas. Reunidos e ajoelhadas as mulheres no "quarto das rezas", d. Iaiá começou a tirar o terço, pausadamente, amolegando as contas das "ave-marias", dos "padre-nossos", entre os dedos macios. Todos a acompanhavam, com respeito e devoção.

Os moradores, os homens, ficavam no pátio, olhando pela janela. A fogueira foi acesa ao findar as orações e as achas começavam a estalar e arder, enquanto as labaredas iam subindo, como línguas de fogo, vermelhas e estrepitosas.

Tudo era alegria e os foguetes espoucavam no ar, continuamente. Os guris jogam os traques nas calçadas, assustando os cachorros que se aproximavam, os meninos pobrezinhos e medrosos dos roceiros e as velhas beatas, que não suportavam os estouros.

As canjicas, o angu, o arroz-doce, as pamonhas, eram servidos com café quentinho trazido no bule grande, que ficava depois sob o abafador enfeitado com bordadões coloridos, onde se viam ramos de flores e pássaros beliscando frutos.

A fogueira ardia mais e mais, e, de quando em vez, um pedaço de madeira comburida caia, espalhando as brasas.

Assavam-se milhos verdes e encenavam-se promessas de "compadre e comadre".

Liam-se sortes e faziam-se adivinhações. Zé Vieira já estava empapado de tanta canjica e pamonha, porém

mastigava ainda um milho assado, que lhe queimava as mãos. Os foguetes explodiam e "seu" Joaquim e d. laiá não cabiam em si de

contentes, Era uma noite feliz, aquela, "Seu" Joaquim, com os outros fazendeiros,

conversava sobre as plantações, dizendo das .suas esperanças por uma grande safra, caso não o desajudasse o inverno.

Contava as suas "proezas" com o quartau, que havia adquirido na feira de animais, em Itabaiana, não o vendendo por dinheiro algum, pois o "bicho" era pau para toda obra.

Cada um que contasse as suas coisas e os causos, com o sabor e a naturalidade que há nesses homens do campo, quando se reúnem em noites assim.

D. Iaiá, com as suas amigas, palestrava também, sobre meninos, as coisas da casa e bolos, flores e os preparos para as próximas desobrigas, nas "missões" anunciadas pelo frei Damião. Miquilina, — brigando com os mole-ques, que se abeiravam da fogueira para assar milho ou corriam a apanhar a flecha dos foguetões, — assentava-se nas pedras da calçada, tirando as baforadas de seu gostoso cachimbo.

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Contava histórias, dizia adivinhações e não se cansava de olhar cuidadosa e carinhosamente por todas as crianças. De quando em quando punha um menino no colo e o acariciava até dormir.

Depois de narrar as histórias do João Batista, a "negação" de S. Pedro e outras, próprias àquela festa, Miquilina, olhando para Zé Vieira, que já parecia mole e sonolento, começou a cortar mais uma "façanha" do Caipora. Ela adorava esses contos, pois, muito embora sem instrução e sem conhecimentos folclóricos, essa velha, de carnes bambas, achava nessas narrações de duendes e mitos a raiz de todo o nosso passado.

E começou: — O Caipora, aquele caboclinho cabeludo de que lhes falei na vez

passada, também aparece aos caçadores, sendo visto somente de "uma banda só", com a metade do corpo.

— "É feio qui nem sei dizê", e não larga o cachimbo como eu". Montado num porco do mato, vem ele, vereda a fora, assoviando, saltar na frente dos caçadores para pedir fumo.

Espanta os porcos, dá surra em cachorro e não tem medo de desacuar as onças nas moitas.

É um caboclo medonho e impossível. O que ele quer é fumo e fogo, somente isso, nada mais. A sua ambição é pequena, mas, se o não satisfazem nesse desejo, o

Caipora faz tanta cócega na gente, que, de tanto rir, é-se capaz de morrer." Miquilina contava isso com a sua linguagem própria, gostosa e atraente, e

os meninos a ouviam encantados. Zé Vieira despertou ao pressentir falar-se em Caipora, e, com os

cabelinhos especados e duros, tremia de medo, quando a fogueira deixava cair as achas, já transformadas em brasas.

Miquilina parou um pouco, como a querer lembrar-se de alguma coisa. — Ah!, vou recitar para vocês uns versos sobre o Caipora, que o pai de

"seu" Joaquim me ensinou, uma vez. E deu início — "É caboclinho feio, Alta noite, na mata a assoviar; Quando alguém o encontra nas estradas, Saltando encruzilhadas, Se põe a esconjurar ! É a alma de um Tapuio, Fazendo diabruras no sertão... Cavalgando o "queixada" mais bravio, Transpõe vales e rios com um cachimbo na mão. Assombra e ataca em meio do caminho; Enreda a onça em moita de cipó; De montanha, vai pulando, Vai quase que voando, Suspenso num pé só ! Ao pobre viandante Assombra e ataca em meio do caminho; E pede fogo e fumo, e sem demora Lhe mostra o Caipora seu negro cachimbinho.

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Servido no que pede, As contas justas, safa-se a correr... Do contrário, se fica descontente, De cócegas a gente Faz rir até morrer. Ê caboclinho feio, Alta noite, na mata, a assoviar; No Norte, diz o povo convencido: Não indo prevenido, Nem é bom viajar!" (4) Algumas visitas já tinham ido embora. A fogueira queimava o resto da lenha, mas aquecia ainda o terreiro, já

molhado pelo sereno da noite. Miquilina ia deitar outro menino, que adormecera em seus braços. Zé Vieira não a deixava mais. Ia para onde ela ia, como a sua própria sombra. Os moradores davam "boa noite" ao "seu" Joaquim e d. Iaiá e levavam,

nos braços, os molequinhos mais novos, que dormiam. A lua clareava os caminhos e a noite alegre de São João se findava como o clarão da fogueira, extinguindo-se, cada vez mais, a pouco e pouco.

Miquilina, vendo o medo do negrinho Zé Vieira, prometeu não dizer histórias de Caipora, indo referir-se na próxima vez à do Lobisomem.

Zé Vieira ficou mais animado, pois não sabia ainda o que era Lobisomem. Foi dormir tranqüilo e só acordou quando a velha Miquilina balançou os

punhos da rede, na manhã do outro dia.

4 * Versos de Melo Morais Filho.

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E x p l i c a n d o - O C A I P O R A

De origem ameríndia, o Caipora era um gigante peludo e taciturno, calado, que protegia a cabeça do mato. Inicialmente, de gigante que era, ao perpassar do tempo, com a colaboração do elemento africano, trans- mudou-se num preto velho, também protetor da caça. Finalmente, o nosso caipira modificou-o em caboclinho peludo, montando num porco e de cachimbo à boca.

Em alguns lugares é visto apenas de um lado só, notadamente no Nordeste brasileiro e em Sergipe. O caçador é obrigado a dar-lhe fumo e fogo para alimentar o seu cachimbo e o seu vício, sob pena de perder-se no mato e ficar "encaiporado". Diz Euclides da Cunha, em "Os Sertões", " . . . As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros"; (pag. 139, 7.* ed.) / E Tobias Barreto, falando de "superstições e lendas", assim conclui um seu escrito em 1884: "A superstição, considerada em si mesma, não tem caráter religioso. Quem acredita em certas forças, pessoais ou impessoais, não precisa tê-las por entes superiores; e o supersticioso não quer mais do que pô-las a seu serviço, como se fossem outras tantas forças da Natureza, à maneira da água e do vento, do animal e do homem. Que a mitologia zoológica não era estranha aos africanos, já o mostrou Bleck em seu Reynard the Fox on South África or Hottentot Fables and Tales; assim como não se limitava aos Hottentotes, como queria o mesmo Bleck, mas estendia-se a muitos outros povos africanos, provou-o, de sobra, a coleção de Kolle. É o que nos diz Felix Librecht (Volker-Psychologie) vol. 5, pag. 59). Como quer que seja, o certo é que a determinação do quinhão africano nas gêneses das nossas lendas e superstições populares, está apenas começada, e exige muito estudo" (Filosofia e Crítica — III vol. Obras completas, edição Estado de Sergipe, 1926). E Couto de Magalhães o descreve: "Homem colossal, de corpo peludo, montado em um porco do mato, ninguém o podia ver sem ser extremamente infeliz o resto da vida. O Cahapora é, pois, um ente tão mau, que não pode ser visto sem que arraste a infelicidade para quem o avistar. Assim é; mas ouçamos a tradição, e ela nos dará a explicação do fato. O Cachapora era o gênio protetor da caça do mato e só era visto quando, rodeando-se uma família inteira de animais selvagens, se pretendia extinguir a mesma. Portanto, aqui, como na tradição do Anhangá, o que há é uma boa ação; é um ato de proteção, exercido pelo gênio, contra quem pretendesse destruir aqueles seres que, segundo as crenças selvagens, foram confiados a seus cuidados e de cuja não destruição os primeiros interessados eram os próprios selvagens". "Entre os selvagens, assim como entre nós, a ação atribuída aos espíritos sobrenaturais é uma ação benéfica; quem se recusar a enxergar nesses seres a manifestação de um verdadeiro e poderoso instinto religioso, a pretexto de que entre eles tais seres são capazes de mal, esse negará que os gregos e romanos tivessem tais instintos. Por muito rude e bárbara que, à primeira vista, pareça uma instituição qualquer de um povo, ela deve ser estudada com respeito. As instituições fundamentais dos povos,

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qualquer que seja o seu grau de civilização ou barbaria, são o resultado necessário das leis eternas de moral e de justiça, que Deus criou na consciência humana, leis que, em fundo, são as mesmas no selvagem ou no homem civilizado, embora susceptíveis de manifestações diversas, segundo o grau de adiantamento a que cada um tiver chegado". ("O Selvagem", pag. 163, 4.* ed. vol. 52 "Brasiliana").

Monteiro Lobato já disse muito bem que "enquanto houver escuro haverá medo, e enquanto houver medo haverá monstros".

X É o Caipora um dos mais populares duendes de nosso folclore. Todos o conhecem; e a palavra encaiporado é designativa de "enfeitiçado", "encalistrado", "infelicitado", "azarado", etc. G R A F A - S E

C a a p o r a (do tupi), C a h a p o r a , segundo Couto de Magalhães, C a o p o r a , C a c h a p o r a e C a i p o r a .

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4 O L O B I S O M E M

ERA um domingo.

Amanhecera bonito e "seu'' Joaquim e d. laiá se preparavam para ir à missa, na vila.

Havia muito que não lhes era possível cumprir com esse dever cristão. "Seu" Zacarias preparava o carro de bois, que os levaria à igreja. Acabava

de ajeitar o toldo, que serviria de coberta e já forrava a mesa do carro com uma colcha nova, onde se assentariam os patrões e os meninos.

Terminado o café, aprontaram-se, e o carro movimentou-se chiando, caminho a fora.

O carreiro chamava, de quando em quando, os bois mansos, que puxavam o carro, aboiando, para que se desviassem de buracos e poças de lama e atoleiros.

Os guris, dentro do carro, imitavam o preto Zacarias, e repetiam, alegres e felizes, o nome dos bois. — "Êi Malambá"!, anda, "Moreno"!

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Apeados no adro da igreja, a missa ia em começo e o padre acabava de recitar as orações iniciais.

"Seu" Joaquim e d. Iaiá ajoelharam-se com as crianças e persignaram-se respeitosamente.

Zacarias, do lado de fora, sentado ou encostado à mesa do carro, tomava cuidado para os bois não se espantarem, quando soltassem os foguetões e o sino repicasse à hora da elevação.

Finda a missa, eram os abraços e as conversas ligeiras e breves com os conhecidos e os vizinhos de sítios, antes de regressarem à casa.

O sol já se elevava e, causticante, mormaçava a terra. D. Iaiá se abanava dentro do carro e "seu" Joaquim, encasemirado, suava

a valer. A casa já. ia ficando perto e os meninos, doidos para chegar. Miquilina e

Zé Vieira estavam à porta, à espera. O cachorro corria para encontrá-los e latia, latia e pulava, em querendo

subir para o carro. Deram graças a Deus por terem chegado, e d. Iaiá foi logo trocando de

indumentária, me- tendo-se em suas roupas caseiras, folgadas, à vontade, livre de espartilhos e outros "aperreios" da moda.

Mais tarde seria o almoço e as crianças, em companhia de "seu" Joaquim e Zé Vieira, lá se foram tomar banho no açude grande.

Mil recomendações foram feitas, — "tenham muito cuidado", "não se afastem de seu pai", "não nadem muito para o fundo", "não se distanciem demais da margem"!

E Miquilina dizia a Zé Vieira, — "vê, negrinho, vai te sair de mais e depois não te arre- prendas com o Caipora e o Lobisomem"!

Vindo o almoço, o calor ainda era intenso. Miquilina não o suportava e, no quarto dos fundos, deitou-se numa

esteira, somente de "cabeção" e cachimbando às baforadas. A janela aberta, corria mais um fresquinho. Os meninos a descobriram aí e insistiram para que contasse a história do

Lobisomem. — "Conta, Miquilina, conta", repetiam. Zé Vieira, meio desconfiado, olhava para os Indos sem fazer coro àquele

pedido. — "Não, agora não", disse Miquilina, "quem conta história de dia cria

cotôco, fica com rabo". — "De noite, sim, eu contarei a vocês a histór ia do Lobisomem que vira

cachorro". — "Credo, eu já ia começando a história"! Zé Vieira sentiu um grande alívio e respirou melhor. A noite não era de lua, mas havia algumas estrelas no céu. Nuvens carregadas pareciam prenunciar chuva.

O calor que fizera durante o dia não podia deixar de ser outra coisa senão chuva.

Mas, há de ser coisa ligeira, se chover, — era conversa de "seu" Joaquim e d. Iaiá, sentados na sala de visitas, a acariciarem o pêlo macio do Angorá, limpinho, ali deitado.

Miquilina sentou-se no velho sofá da sala contígua e os meninos cercaram-na, para ouvi-la.

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Bateu o cachimbo, apertou o fumo com o dedo polegar e acendeu-o com um tição, que havia trazido da cozinha.

E desandou a falar. — Dizem que as famílias que têm sete filhos, o último de todos, o caçula,

vira Lobisomem, nas noites de sexta-feira. Esse caçula é sempre o homem amarelo, bem amarelo mesmo, sem

sangue nenhum na cara, que se transforma num cachorrão medonho, num verdadeiro lobo, com as carnes pelo avesso, mas todo coberto de pêlo.

Fica assim como um cachorro lobo, bem grande, as orelhas caídas, as unhas afiadas, que corre pelo escuro para morder tudo que encontra.

Penetra nos galinheiros para espedaçar as galinhas. Vai aos chiqueiros para estraçalhar e comer os porquinhos, lá, no mesmo

lugar onde se espojou na lama, antes de virar Lobisomem. Os olhos parecem duas brasas acesas e os dentes aguçados vão

rasgando as próprias sombras que aparecem à sua frente. Já de madrugadinha ele se "desencanta" e volta à figura de homem,

amarelo, sujo, cabelos desalinhados e compridos, barbado e feio. Se, num desses momentos, alguém de mais coragem consegue cortar-lhe

uma pata, logo se desencanta e reaparece como o indivíduo que era antes, porém com uma perna ou o braço cortado, correspondente à pata perdida.

Para evitar-se que esses caçulas fiquem assim, coitados!, costuma-se tomar a irmã mais velha como sua madrinha.

Vemo-lo sempre com a língua de fora, cansado e fazendo como os próprios cachorros e lobos. Latem e uivam, amedrontando e ameaçando os animais e as pessoas.

Os meninos pareciam medrosos e a chuva pingava ainda nas goteiras. Zé Vieira, nem se fala! E, cada vez que olhava o cachorro deitado no chão, abanando a cauda e

as orelhas por causa dos mosquitos, mais ainda se lhe delineava a figura do Lobisomem.

Miquilina explicava direitinho todas as passagens da história, com a sua maneira própria de dizer e comentar, fazendo com isso que as crianças não guardassem no espírito nenhuma impressão de pavor.

— "Vocês têm medo deste cachorro que está deitado aqui?" "Não têm, não é"?!

— "Mas, Miquilina, este é diferente", redargüiu o mais velho. — "É, sim, eu sei. Mas esse outro, o Lobisomem, parece que não existe,

é só imaginação, é somente história., como as do Caipora, as do Quibungo..." — "Taí, eu vou contá a vocês, depois, essa, do Quibungo". — "É muito parecida com esta, do Lobisomem A chuva voltava a cair com maior força. O relógio grande, na parede da sala de jantar, batia dez horas. Era hora de dormir. No dia seguinte, Zé Vieira ainda olhava desconfiado para o cachorro de

casa. Alguém bateu com força à porta. As palmas ressoaram lá dentro. Um aleijado pedindo esmolas. — "Uma esmolinha pelo amor de Deus, para um pobre aleijado". Zé Vieira ficou meio lívido ao encontrá-lo.

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Amarelo, barriga crescida, barbado e emagrecido, cabelos desalinhados, compridos e sujos.

Com uma trouxa às costas, apoiava-se n'ua muleta. Faltava-lhe a perna esquerda. Zé Vieira chegou lá dentro com os olhos esbugalhados e tremendo. A fala meio engrolada, mesmo assim ele pôde dizer o que queria ou... o

que não queria. — "Tem um Lobisomem pedindo esmola aí, na porta", — disse, e correu

para os fundos do quintal, numa carreira desabalada, precipitada, louca. Os meninos trouxeram farinha e pão para dar de esmola ao pobre homem,

àquele que Zé Vieira pensou tratar-se do Lobisomem. Mais tarde foram encontrar o molequinho dentro das bananeiras, todo sujo, no quintal.

Fora o medo, o susto do Lobisomem, coitado!

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5 O L O B I S O M E M

— “Vocês não ouviram falar do preto velho José dos Anjos, que dizem ter virado Lobisome? Pois bem, esse sem-vergonha, esse peste} era feiticeiro e vivia somente fazendo mandinga para cima dos outros, provocando o mal a todo mundo.

Era um desgraçado mesmo. Diz o povo que quem vive dessa maneira, quem envelhece nesse ofício,

acaba virando Lobisomem. Vou contar a vocês como José dos Anjos transformou-se em cachorro. — "Miquilina, você não ia contar outra história?, aquela do Quibungo?, —

não era?" — Ah!, sim. Mas vamos deixar para depois. Vou dizer logo esta, antes que

me esqueça e para dar tempo a me lembrar da outra. Estou esquecida de uns pés.

Miquilina ajeitou-se toda. Bateu do casaco a cinza que caíra do cachimbo e cuspinhou para um

lado, atirando longe a saliva fedorenta, impregnada de fumo. Estirou a perna, que estava meio encolhida e já dormente e olhou para o

molequinho pouco interessado na história, mas que não se afastava dali, de jeito nenhum.

O medo de Zé Vieira era bem salutar, porque os meninos se enlevavam nele, mofando e rindo do pretinho, e, com as palavras boas de Miquilina, essas narrações não lhes ficavam muito no subconsciente, recalcando-os e inibindo-os, no futuro.

Miquilina, calma e paciente, ia atendendo a todos e apaziguando a briga do Carlinhos e o Alfredo, que pretendiam agarrar-se por causa de um pedaço de cana, que queria tirar ao outro.

— José dos Anjos viveu todos os seus dias fazendo feitiçaria. Era conhecido. Morava para as bandas do "Calumbí" e, quando alguém queria fazer mal a outrem, já sabia, era só procurar esse safado e a coisa estava feita!

— Isso é muito feio. Não se faz mal a ninguém e Deus me livre de saber que vocês, meus meninos, praticarão o mal, amanhã, a quem quer que seja.

Deve-se sempre fazer o bem; isto sim. Mas José dos Anjos era da parte do demônio; só pensava no que era

mau. E assim viveu toda a vida. Assim envelheceu. E, por isso, contam que ele, já ancião, foi ficando amarelo e começou a

inchar. As mãos, as pernas, a barriga, o corpo inteiro foi amarelando e José dos

Anjos parecia mais gordo, mas uma gordura intumescida, feia, horrível. A cara do negro afigurava-se bem mais comprida; as orelhas se

alongavam, ficando iguais a dois abanos pendurados de cada lado, e os pés,

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com as unhas crescidas, davam-lhe um aspecto aterrador. As unhas afinavam-se e confundiam-se com as dos cachorros, aguçadas e terríveis.

A barriga, como se fosse estourar. E o amarelão tomava conta do corpo todo.

Um cansaço se apoderava do feiticeiro e trabalhava já com sacrifício. Os cabelos, cheios de caspas, cresciam, cobrindo as orelhas e o pescoço. E ele nem se lembrava de cortá-los. Apesar de tudo isso, José dos Anjos não se dava por achado; não se

preocupava em tomar u'as meizinhas que lhe curassem o amarelão; nada. Era mesmo o destino!

Agora, à medida que os dias iam passando, dele se apossava um sono pesado e forte.

Com o feiticeiro morava somente um rapazinho, o Geraldo, que ninguém sabia se era seu parente, — seu filho, seu sobrinho, seu neto, ou apenas um conhecido ou aprendiz.

O ano já estava no fim e o novo aproximava-se apressado. Para o feiticeiro, contudo, nada parecia mudar; somente a sua inchação persistia e o amarelo pintava as manchas últimas da pele preta, que lhe cobria o corpo envelhecido.

A semana santa chegou. E, na primeira sexta-feira, logo após a "quarta-feira de cinzas", quando os

galos começaram a cantar, de poleiro em poleiro, anunciando meia-noite, José dos Anjos acordou devagar, olhou para os lados e, pé-ante-pé, saiu de mansinho, abriu a porta do casebre, uma porta de palha trançada, escorada com um pau, e ganhou o terreiro. Andou uns trezentos metros, e, na casa do Ladislau, procurou o atascadeiro, onde se encontravam os porcos.

Espojou-se na lama; lambuzou-se todo e foi perdendo a forma de homem.

Começou a virar porco. Roncou, roncou como os suínos, até que se foi transformando em

Lobisomem. De manhã, quando Geraldo acordou, não viu José dos Anjos. Ficou assustado. Não o encontrou e saiu a procurá-lo nas casas mais próximas. Ninguém dava notícias. Mas, pelo que vinha ocorrendo com ele, devia ter virado Lobisomem, na

certa. E o Ladislau disse ter ouvido, na noite anterior, um barulho diferente, no

quintal, no chiqueiro dos porcos, tendo um bacorinho amanhecido morto. Muitas pessoas afirmavam que estava aparecendo Lobisomem. Era, com certeza, o feiticeiro José dos Anjos. E todos o descreviam. É um cachorro lobo, enorme, de "arrepiar cabelo". Os seus dentes, afiados e pontudos, pareciam os do caititu, saindo-lhes

das mandíbulas superiores. Um pêlo amarelo e comprido lhe recobre o corpo. Apóia-se nas patas

traseiras e as dianteiras parecem braços levantados para o ar. Quando os outros cães o atormentam, põe as mãos no chão e, imitando

os burros danados, começa a dar coices, sem olhar para trás.

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Os cachorros vadios perseguem-no, tão logo sai do chiqueiro, e, de vez e vez, um ou outro ó agarrado por ele e o cu-en cu-en da vítima 6 o último protesto que se ouve.

Nos puleiros os galos pressentem a sua aproximação e largam aflitos os seus có-có-cós, procurando defender as galinhas, e os pintinhos inespertos, sob as asas protetoras, se resguardam pressurosos.

Os bacorinhos grunhem e se enterram na lama, com medo também do Lobisomem. E ele passa, temível, dentro da noite, ameaçando tudo.

Ninguém mais queria sair de noite, no vilarejo. Mas o Ladislau, que era caboclo corajoso e não tinha medo de nada,

resolveu topar o bicho. Foi encontrá-lo no mato. Enfiou o chapéu num toco de pau e escondeu-se. Não demorou muito e lá vinha ele, agora, em procura de casa. Quando avistou o toco com o chapéu em cima, assustou-se. Ladislau,

então, desfechando-lhe um tiro certeiro o matou, acabando, de vês, com o feiticeiro que atemorizava os pobres supersticiosos dos lados do "Calumbi".

Miquilina narrava essa história com a mesma facilidade de imagens e de palavras, com que fizera antes.

E os meninos escutavam, atentos. Zé Vieira deu graças a Deus por Ladislau haver acabado com o monstro e

Alfredinho, todo entusiasmado, queria logo ser homem, para igualar as suas proezas àquela do Ladislau.

Miquilina foi mostrando o que resulta às pessoas que praticam o mal e que bem podem acabar como o José dos Anjos, naquele triste destino de feiticeiro, giboso, malvado, perverso. E de Lobisomem, amarelado, orelhudo, cheio de pêlos e dentes aguçados, sujo, imundo, como os próprios pensamentos e atos que praticou.

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O L O B I S O M E M

A VELHA Miquilina, incansável e boa, perrengue e cheia de reumatismo, ia se arrastando para sentar-se nalgumas pedras da calçada.

A grama polvilhava-se de gotículas de orvalho, atapetando o terreiro da "casa grande". Os meninos não se afastavam muito de junto da preta velha, porque não fazia luar e o quarto minguante clareava muito pouco o caminho, o curral, a área em frente.

Os sapos coaxavam perto, no rio, e pulavam, de vez em vez, para dentro de casa.

Miquilina, de cacete na mão, atirava-os longe, prevenindo de que "tivessem cuidado com a mijada nos olhos". Era já o começo do inverno.

As poças de água e de lama abrigavam os batráquios e a criançada não podia ficar à vontade, porque molhava os pés e enlameava-se antes de deitar-se.

Durante o dia ninguém se importava tomassem banho de chuva, que ficassem ao abrigo das biqueiras, que se empapassem a valer, porquanto deviam viver na intimidade da natureza e com ela gozar de todos os prazeres.

Corriam no sítio; trepavam nas árvores; tiravam frutos e se empanturravam, chupando-os; montavam os potrinhos e brincavam na areia do rio, quando verão, ou se perdiam no descampado, com o velho Vitor, nos dias calmos de inverno.

Tomavam banho no rio e até pescavam camarões, com pussá, ou ajudavam "seu" Joaquim a fazê-lo, nas tapagens que construía, para apanhar os crustáceos inadvertidos.

A lua não devia vir naquela noite e o céu, novamente, prenunciava chuva. Miquilina assentou as crianças perto da porta, do lado de dentro, e deixou-

se ficar encostada ao portal, cachimbando e cuspindo, de quando em quando. — Vou lhes dizer mais uma história do Lobisomem, mas daquele que

aparece nas praias, bem longe daqui, no litoral deste Brasil, que é nosso. — Vocês se lembram do que é o mar, a praia, os coqueiros; os

caranguejinhos correndo na areia com as patas alevantadas, em forma de tesouras; as jangadas, os peixes, o vento forte do Nordeste, os praieiros, os sargaços, os mariscos. E também as "caravelas"; uma até queimou este moleque desesperado e medroso, que chorou danadamente com o corpo empolado pelos raios daquele "bicho" cheio de linhas, que encalombou as costas de Zé Vieira. Corriam no sítio; trepavam nas árvores; tiravam frutos e se empanturravam, chupando-os; montavam os potrinhos e brincavam na areia do rio, quando verão, ou se perdiam no descampado, com o velho Vitor, nos dias calmos de inverno.

— Pois bem, lá na praia também surge o Lobisomem. É um sujeito amarelo, que gosta de comidas salgadas, com muita pimenta, preguiçoso que vive com uma sede medonha. O seu andar é vagaroso, tardio, cansado

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mesmo, como se carregasse consigo toda a preguiça do mundo naqueles gestos de indiferença, de tédio.

— Todo encolhido e ensimesmado, a máscara amarela, encardida, que se lhe afivela ao rosto é prova de seus íntimos e loucos pensamentos.

E dando realidade aos instintos, ele caminha até onde os animais se atolam na areia, o, esfregando-se de um lado para o outro, repetidas vezes, num perfeito rito, vai comendo todas as cascas de caranguejo, de grauçás, que houver pela praia.

Todo sujo e lambuzado, com o corpo cheio de equimoses, provocadas pelos detritos do saibro ficado na beira-mar, quando do seu espojamento, o homem amarelo de ainda há pouco começa a correr pela praia, devagar a princípio, com um passo um tanto lento, devorando as últimas cascas daqueles crustáceos que por aí perambulam inocentemente.

Quando parece não existir mais nenhum que o possa alimentar, desanda a correria, desabalada e louca, à beira-praia, sempre se afastando da pancada do mar, às vezes entre os coqueiros e guajirus, no perdido da noite.

O opilado e triste praieiro encantou-se agora em Lobisomem e, porque a

água do mar é sagrada e ele não pode adentrar-se pelo oceano, então procura a terra firme, desassossegando as pessoas que encontra em seu caminho.

Os coqueiros, soprados pelo vento, enchem, juntamente com o barulho das ondas, o ambiente praiano de aterrador assombro.

Aquela figura, pois, naquele cenário vivo de sons perturbadores, espalha medo e terror àquela gente supersticiosa.

Diziam todos que o viam passar como uma flecha, numa carreira desesperada, ser o velho Manoel Luiz que se estava encantando em Lobisomem.

O vulto do cachorrão-lobo varava o espaço, às pressas, uivando, com as orelhas pendentes e fazendo estalar o mato seco, que pisava com as suas patas ferozes.

Diziam mais, — que ele, já ao quebrar das barras, cansado e arranhado, ia desencantar-se no cemitério que existia sob as ramas de um cajueiro descomunal e anoso, crescido para as bandas de um maceió. Lá, espojava-se nas covas, batia de encontro às cruzes de madeira e voltava, a pouco e pouco, à sua forma humana.

Era a crendice. E isto porque os mais afoitos do "Béssa", quando se dirigiam, aos sábados, para a feira e tinham que passar perto do cemitério-cajueiro, onde se delineava o caminho, encontravam as sepulturas revolvidas, as cruzes meio tomba- das, as coroas de flores atiradas a esmo, como se alguém houvesse mexido em tudo aquilo.

Metia medo a quantos por aí vagassem e a lisura do velho Manoel Luiz aparecia, então, depois disso, mais macilenta e cada vez mais n batido o seu todo de velho calado e tinhoso.

Todos o temiam e esconjuravam a sua presença. Exorcizavam-se, com o dedo polegar me- tido entre o indicador e o

médio, em forma de figa , quando o viam passar, sozinho, em procura da venda, ou com uma vara de pescar ao ombro, em direitura do maceió, à cata de algum peixinho para o seu alimento, ou, então, caranguejo e goiamuns, do que mais gostava.

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Tudo isso concorria para aumentar a crendice daquela gente simplória e faladeira.

O amarelão do velho Manoel Luiz, a alimentação preferencial de crustáceos, os passeios pela praia, pelo maceió, pelas proximidades do cemitério, para sondar, de certo, algum morto mais recente, num desejo de necrofagia, tudo levava a acreditar fosse o ancião Manoel Luiz o Lobisomem que tanto se temia.

A velha Miquilina começou a sentir a chuva molhando-lhe os pés e as pernas e foi um trabalhão para levantar-se dali.

O reumatismo e as cãibras faziam com qu e os movimentos lhe fossem dificultados. A custo conseguiu erguer-se.

Os meninos, tontos de sono, quase que não podiam ouvir o resto da história.

Somente Zé Vieira, com o branco dos olhos aparecendo nas trevas da noite, estava acordado, menos por insônia que por sobressalto, escutava todas as palavras a respeito do encantamento do velho Manoel Luiz, na praia do "Béssa".

Miquilina disse-lhes, ainda, que os homens do litoral faziam signos de Salomão nos braços, no corpo, e também os pintavam na porta ou nos alpendres, para afugentar o Lobisomem.

Que traçavam com as palhinhas bentas do Domingo de Ramos aquele sinal cabalístico, para pendurá-lo à parede, com receio de que o Lobisomem os visitasse.

E explicou ao molequinho o que era o signo de Salomão ou, de Salamão, como chamavam outros.

— Era uma estréia de seis raios, feita com dois triângulos e que servia como um poderoso fetiche.

Zé Vieira ouvia tudo com o mesmo aparvalhamento com que escutara as histórias anteriores, narradas com aquelas palavras simples e a maneira de dizer própria de Miquilina.

Modos e frases que enfeitiçavam as crianças e os adultos, que a ouviam à distância, como acontecia com o "seu" Joaquim e d. Iaiá, no quarto contíguo.

Zé Vieira, quando Miquilina o deixou na rede, depois de tomar-lhe a benção, pediu que ela fizesse na porta do seu quarto, no dia seguinte , um grande signo, mesmo que fosse riscado a carvão. O que ele queria era o Salomão para afastar o Lobisomem.

— Que bicho ruim, que veio nojento aquele Manoel Luiz! — ficou dizendo, num mastigar de palavras, num matraquear de dentes, o pivetinho medroso, de olhos arregalados, o negrinho da "casa grande", o moleque Zé Vieira.

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Crendice zoometamórfica quase generalizada no país inteiro, e uma "concepção onde intervém velhas crenças européias, acrescidas de crenças totêmicas e míticas de origem ameríndia e africana".

O Lobisomem não é mais do que o correspondente do Licantropo das ve-

lhas lendas da humanidade. Em Virgílio, Petrônio, Tylor e outros encontramos alusões a esses fantasmas antropomórficos. E Artur Ramos, referindo-se ao Lobisomem, diz que "há um fundo de verdade nessa crendice. A ancilostomíase acarretando distúrbios cinestésicos, pode provocar em débeis e predispostos mentais, sintomas de alucinação da cinestesia, podendo levar até aos fenômenos de transformação da personalidade". ("O Negro Brasileiro" e "O Folclore Negro no Brasil" — Artur Ramos). Alfredo Brandão, em seu interessante livro "Viçosa de Alagoas", ao estudar a fauna daquele estado e, notadamente, desse município, diz que "O guaxinim, ou, como é mais direito se escrever guaraxaim, é um belo animal, bastante crescido de pêlo longo e cinzento. Visto nas noites de luar passar através dos campos, o seu vulto afeta maiores proporções. A fêmea, quando está parida, torna-se um pouco agressiva. Os campônios timoratos e inexperientes, ao encontrarem-se à noite, nos lugares desertos, com algum guaxinim, dão às de vila Diogo e no dia seguinte propalam, no engenho, ter visto um Lobishomem". ("Viçosa de Alagoas" - Alfredo Brandão — Recife — 1914"). Monteiro Lobato, num de seus contos realísticos e fortes, mostra-nos a transformação do cachorro, e não do homem, em Lobisomem. " . . . Era ali o mato sinistro, onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento Merembico, nome tresandante a satanismo, para o faro do povilhéu. Ás sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merembico virava Lobishomem e se punha de ronda no cemitério, com lamentosos uivos à lua e abocamento às pobres almas penadas — coisa muito de arrepiar". ("Bocatorta" — conto — in "Urupês" -Monteiro Lobato, ed. Nacional, 1943"). Souza Carneiro, criticando esse cachorrão, escreve: " . . . o Lobisomem que se conhece no Brasil é o da Idade Média, eivado de coisas da Igreja e da feitiçaria européia, parente do Espíritoãos - Matos, que serviu aos nossos indianistas para vestirem Caiporas, Curupiras, Sacis e semelhantes". ("Os Mitos Africanos no Brasil" — Souza Carneiro — ed. Brasiliana — 1937").

O Quibungo, que forma um verdadeiro ciclo, é um mito afro-baiano. Na

Bahia, abre- se em leque por todos aqueles recantos, indo povoar as margens do São Francisco e, em mistura com as suas águas, percorre as povoações marginais — aqui prendendo-se às suas ribeiras e ficando; ali, fantasiando-se com novas roupagens; acolá, transmudando-se e ampliando-se, — e, assim, essa importação africana aparece sob dezenas de formas. Já, como o cachorro com o buraco no espinhaço, já, como a figura de um preto velho, esmolando e andrajoso, de "pés cascudos e esparramados, de saco às costas, terror da cambada miúda". Nina Rodrigues, Basílio de Magalhães, J. da Silva Campos, Câmara Cascudo e outros, recolheram material sobre o Quibungo e os "contos" pululam às dezenas. Basílio de Magalhães assim se refere a esse personagem

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tão desenvolvido e sério. "... Pondo à bandas as acepções populares degeneradas, evidentemente de sentido translato, tenho para mim que o "Kibungo" é o Capelobo africano, ou melhor, um lobisomem afro-brasílico, até que se lhe descubra genuíno tronco africano. Considere-o, portanto, até mais ver, como um mito secundário e composto, formado pelos negros do Brasil". (Souza Carneiro, op cit.)

Gilberto Freire também a ele faz menção. "E o Quibungo? Este, então, veio

inteiro da África para o Brasil. Um bicho horrível. Metade gente, metade animal. Uma cabeça enorme, etc." ("Casa Grande & Senzala" — Gilberto Freire).

Souza Carneiro insiste e reforça os seus comentários, dizendo: "... Agora,

no Brasil, em falta de um Lobisomem africano, se está querendo fazer do Quibungo esse Capelobo..." (Souza Carneiro, op. cit.).

E Câmara Cascudo, assim se refere: "...Papão negro, ogre africano,

popular na literatura oral da Bahia." "Não é, entretanto, como Mapinguari, o Capelobo, o Pé-de-Garrafa, um mito, mas apenas uma figura, um personagem, um centro de interesse na literatura oral afro-baiana". "È um Barba Azul de meninos". "(Dicionário do Folclore Brasileiro", ed. 1954, pag. 532 — Luis da Camara Cascudo).

Em Goiás, onde andei, ouvi também referências ao Quibungo; e lá, mais

como sinônimo pejorativo, de cloaca, sentiria, latrina, urinol, etc. Conversando com um sujeito, que fora preso em Balisa, por haver morto uma mulher, ele assim se expressou: "...ora, veio me chamar de quibungol, era demais! Matei-a!"

G R A F A - S E

LOBISOMEM — LOBIS-HOMEM, CHIBUNGO — CHINBUNGU — KIBUNGO — QUIBUNGO.

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7

O Q U I B U N G O

Seu Joaquim e dona Iaiá foram à cidade, logo depois da semana santa. Os meninos os acompanharam e todos se hospedaram em casa da tia Amália, casada com o coronel Leôncio.

Casal sem filhos. Era, pois, uma alegria estar com os sobrinhos, ouvir-lhes a algazarra e rir

alegremente com as suas peraltices. Seria, assim, uma semana feliz. E foi. Os dias corriam devagar, como se o próprio tempo quisesse compartilhar

dessa efusão. Visitavam os parentes, os conhecidos e passeavam, admirando os melhoramentos da urbes.

Faziam compras e conversavam sem parar, comentando de tudo e de todos, tirando a ferrugem das línguas.

As mulheres, então, falavam de modelos de vestidos e receitas de bolos, das coisas de casa e de crianças, de empregadas, de religião, de tudo, enfim.

Em casa, Miquilina ficou como a dona. E, em verdade, o era. Ela, que viu nascer "seu" Joaquim, que ajudou nas festas do casamento,

que assistiu à chegada de todos os seus filhos, que era uma pessoa quase da família ou mais do que isso agora, uma segunda mãe, — essa mãe preta que substituíra d. Engrácia, quando morreu, com os olhos cobertos de catarata sem poder reconhecer o filho, a nora, os netos, só o fazendo pelo tato e pela audição de suas vozes, — ela, essa preta velha Miquilina, era a dona do co-ração de todos eles e, sem exceder-se, a maior e a mais respeitada autoridade naquele lar feliz.

De noite, acabada a ceia, depois de saborear a batata-doce, o angu, a tapioca quentinha e o café cheiroso, torrado em casa e esfarinhado no pilão, Miquilina pegava do candeeiro de pé, de vidro, que clareava a sala com o seu pavio, cheio de morrões, e ia com o molequinho Zé Vieira e as demais empregadas, assentar-se nas pedras da calçada.

Com uma caixa de fósforos no bolso do casaco e um pedaço de fumo, começava a cortá-lo com uma quicé bem amolada, esfregando-o, de quando em quando, entre as mãos, para desfiá-lo e pulverizá-lo por completo.

Enchia o cachimbo. Riscava o fósforo para acendê-lo, mas o vento apagava toda vez.

Maria Congo foi buscar um tição e trouxe-o para ajudar Miquilina. Na mão de Maria Congo, dentro de casa, quase escuro, aquele fogo

parecia a Zé Vieira o olho de alguma coisa que lhe não era estranho, o olho de um Lobisomem.

E o pretinho, coitado, foi se chegando bem para junto da negra Miquilina. Expelidas as primeiras fumaçadas do seu cachimbo, começou a

arrebanhar a saia e despir o casaco, para gozar melhor a brisa noturna. "Seu" Zacarias veio vindo, para saber se queriam alguma coisa e

aumentou, com a sua presença, o número de abissínios ali sentados e, por que não dizê-lo?, felizes.

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Todos viviam satisfeitos, todos trabalhavam e tinham bons patrões, que sabiam ajudá-los nas doenças, nas incertezas da vida.

"Seu" Zacarias puxou conversa e disse, como quem está com grande saudade — "a estas hora os patrão está na cidade, cum os minino, na certa, cum sordade daqui e a gente também cum sordade deles, — num é Miqui-lina?!"

— "Ah!, "seu" Joaquim não pôde deixá o serviço; nasceu pro trabáio, prá lutá cum essa terra e essa gente do êito. É um caboclo forte e bom. Os menino tomém saíro a ele. Todo5, desde o mais pequeno até o mais maió, são experto e trabaiadô."

"D. Iaiá, qui boa pra gente, qui coração! Tumara qui eles já vortem..." — Ah! Zé Vieira, vou dizer a historia do Quibungo, que prometi outro dia.

— Miquilina, por que você não espera pelos meninos? — dizia Zé Vieira, com a sua fala errada e meio tímida.

— Não, não tem nada; quando eles voltarem eu contarei outras, mais bonitas, mais engraçadas. Dizem que é lá para os lados da Bahia, onde chegaram os primeiros negros, meus irmãos, que aparece esse "bicho" chamado Quibungo. Afirmam que é um cachorrão, maior, às vezes, que o Lobisomem, de que já falei; mas, possuindo um enorme buraco nas costas, como as baleias, onde guarda as pessoas que consegue pegar. Quando abaixa a cabeça esse buraco se abre e, quando se levanta, ele se fecha.

Assim, esse rival do Lobisomem passeia pelas terras do Brasil, metendo no buraco das costas todos os meninos malcriados, que há por aí a fora.

É um cachorro peludo, com um focinho comprido e dentes afiados. Tem um porte de cão selvagem e, de noite, os olhos parecem mesmo dois tições acesos, que quisessem queimar tudo.

É esse Quibungo que se encontra espalhado por aí, nos nossos matos e capoeiras, de noite e de dia, pegando as crianças e os que se transviam em suas caminhadas.

Recolhe, nas cidades, os meninos grosseirões e guarda-os naquele buraco das costas, para comê-los depois, no mato escuro, dentro das moitas.

Para acalmar Zé Vieira, Miquilina dizia que isso era somente invenção; que foram os negros das senzalas que criaram essa história, quando se reuniam aos grupos, de noite, depois dos trabalhos pesados, à vista do feitor desalmado e cruel.

Inventaram mais para fazer medo aos f i lhos do senhor branco, que não se saiam do meio dos negros, como toda criança, aliás, que gosta do convívio dos empregados, nessa mistura alegre de cor, que houve na formação étnica de nosso tipo racial.

Miquilina conhecia muitas, diversas histórias do Quibungo, como também as do Curupira, que vive nas florestas, e, porque protege as árvores, também é chamado "Pai do Mato".

Zé Vieira alegrou-se mais, quando pressentiu que havia acabado a história desse cachorro, que se assemelhava com o Lobisomem, aquele que o fez correr para o quintal e sujar-se todo.

O vento soprava na frança das árvores e assobiava mais forte ao passar pelas folhas da gameleira frondosa, existente no curral, em frente.

Parece que ia chover. Era inverno.

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"Seu" Zacarias levantou-se, pegou do cipó-pau que trouxera e estalou os dedos chamando o "Rompe-Nuvens", que dormia a sono solto na grama fria do terreiro.

Deu "boa noite" e saiu. Bateu a porteira no mourão e certamente o Quibungo não o largou até

chegar em casa. A superstição do nosso povo decorre, em sua maioria, da ignorância, do

analfabetismo, e, também, da dosagem de sangue indígena e hotentote que corre em nossas veias.

Miquilina apanhou o casaco e o cachimbo e apoiou-se em Maria Congo, para poder levantar-se.

As cãibras lhe tomavam os membros inferiores e dificultavam os seus passos, já tardos e vagarosos.

Correu os ferrolhos das portas e janelas, trancando-as. Recolheram-se todos, e os galos, no poleiro, soltavam os primeiros

cantares, anunciando o escurecer da noite. A chuva começava a cair, e, talvez, tivesse alcançado "seu" Zacarias,

ainda a caminho de casa. Pela telha de vidro do quarto, mais tarde, a lua derramava os seus raios

clareando a rede de Zé Vieira, totalmente embrulhado dos pés à cabeça.

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8 O C U R U P I R A

Miquilina achou que devia contar uma história mais bonita. Durante o dia procurou lembrar-se de uma, para, de noite, dizê-la aos

meninos. Deu tratos à imaginação. Pensou muito, num reexame das que conhecia e

lembrou-se, então, daquela do Curupira, também chamado "pai do mato". Miquilina ficou contente e avisou aos guris que lhes ia narrar uma história

diferente — bonita, atraente, encantadora, sobre o Curupira. Zé Vieira começou logo a preocupar-se, pois ignorava o que fosse

"curupira", lembrando-se ainda do "lobisomem", do "caipora", do "quibungo", que lhe tiravam o sono e a tranqüilidade.

O negrinho era mesmo assombrado. Os meninos, todavia, aguardavam-na com interesse, sabendo como a

velha Miquilina possuía o dom de descrevê-las, com a fantasia e o colorido soberbo de suas palavras, simples, sinceras, que inspiravam confiança e alegria.

Zé Vieira, porém, era o único que não pensava desse jeito. As palavras de Miquilina, se lhe infundiam crédito e familiaridade, não

deixavam, também, de abalar o seu todo de pretinho nervoso e espantado. Depois da ceia, Miquilina foi se derreando num tamborete, porque as suas

pernas não permitiam mais que a preta velha se assentasse no chão, dada a dificuldade de levantar-se, depois. O cachimbo já parecia quase apagado e

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apagado foi ficando. Miquilina estava hoje com a garganta pigarreando e o fumo forte não lhe faria bem.

Os meninos cercavam-na em roda e Zé Vieira agachava-se junto ao tamborete, com o nariz frocado e as narinas se dilatando, como quem se atemoriza e tem medo.

— O "pai do mato" ou "Curupira," é o protetor das florestas e das matas. Diversas são as suas formas e representações. O mais comum é vê-lo como um tapuia, de cabelos vermelhos, tendo nas

mãos um cacete, com que sai batendo, de árvore em árvore, para ver se elas conseguem resistir às ventanias e às tempestades. Dizem que em sua companhia vem sempre uma irara, um animal carnívoro parecido com a doninha, ou, então, um bando de papagaios gritando, num barulho ensurdecedor, currupapacos-papacos.

O que mais caracteriza o Curupira são os pés. Os seus calcanhares voltados para a frente enganam, portanto, toda

pessoa que lhe seguir os rastos. Miquilina queria lembrar-se de alguma coisa, que completasse a

narração. — O pai de "seu" Joaquim, uma vez, leu, para eu ouvir, uma poesia sobre

o Curupira, que também se parece com os Matuius. Era mais ou menos assim que começavam aqueles versos:

"De pés virados, marcha avessa e rude, dedos atrás, calcâneos para a frente, ainda viveis, mentores sem virtude,

que a verdade escondeis. à vossa gente!

Sabeis, — e errais propositadamente, traidores nas lições e na atitude:

aos corações o vosso exemplo mente, como no solo o vosso rasto ilude."

"Pobre quem calca o vosso piso errado: em vez de liberdade encontra um muro;

pedindo salvação, cai num pecado;

e acha em lugar da glória o lodo impuro; para seguir-vos, vai para o passado;

por imitar-vos, foge do futuro". (5)

Outros apresentam o Curupira como um curumin, sempre de cabelos vermelhos, porém pequenos, montado num veadinho, com os calcanhares para a frente e os dedos para trás.

5 Olavo Bilac — "Poesias", pag. 295, 18 edição, 1940.

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O Curupira protege os vegetais e castiga aqueles que destroem as árvores do seu domínio.

Aparenta ter uns 8 a 15 anos, é muito ligeiro, dá guinchos como o caraia, aqueles macacos grandes que infestam as florestas, ou voa e grita como o caracará, que vocês conhecem também com o nome de gavião.

A sua voz assemelha-se ao som de uma buzina de taboca, quando não à do carachué, sabiá, ou ao zumbido da carapanã, aquelas muriçocas que cantam nos ouvidos da gente, a noite inteira, atrapalhando-nos o sono e aferroando o nosso corpo.

O Curupira também traz nas mãos, ao invés de um pedaço de pau, um casco de jabuti, com que vai batendo de árvore em árvore, para ver se estão fortes e boas.

Zeloso guardador das florestas, o Curupira esconde ou mostra a caça àqueles que a procuram, guiando ou fazendo com que se percam os caçadores, a quem, às vezes, revela propriedades medicinais das plantas.

Do Curupira contam as histórias mais interessantes possíveis, e esta, que lhes vou repetir, é uma delas.

Miquilina não se conteve e pediu a Adelaide que trouxesse uma brasa do fogão, para acender o cachimbo.

Não podia estar sem ser cachimbando. Era um vício medonho; era igual ao Saci. Ajeitou o fumo, cuspiu para um lado, e encostou o tição à boca do

cachimbo. As baforadas longas e o cheiro de fumo e a fumaça encheram a sala. Miquilina começou a falar, devagarinho, passando a mão pela cabeça

alourada do Carlinhos. — Foi uma vez um caçador que se perdeu no mato, tendo conseguido

apenas matar um macaco, que esperava lhe servisse de alimento. A noite aproximava-se.

As estréias piscavam no alto e o caçador, na impossibilidade de orientar-se, tratou de atear um foguinho, a fim de preparar o alimento e aquentar-se no perdido da mataria.

Começou a ouvir umas pancadas nas árvores, como se batessem com um casco do jaboti.

Era o Curupira, pensou consigo mesmo. Criou ânimo e esperou tranqüilo. Vendo o caçador ali perto, o Curupira foi dizendo: — Como vai, meu neto? — Ah!, eu me perdi, meu avô, respondeu o caçador, com voz sumida. O Curupira sentou-se ao seu lado e foi resmungando: — Estou com fome, meu neto, e quero a sua mão para comer. O caçador lembrou-se do macaco e, no escuro, cortou-lhe a mão e deu-a

ao "pai do mato". O Curupira comeu-a quase de uma vez, e, lambendo os beiços,

balançando-se todo, de contente, prosseguiu: — Como a sua mão é gostosa! Quero a outra. O caçador repetiu a mesma façanha e o Curupira mastigou-a às pressas,

devorando-a às bocanhadas. Achou-a saborosa e pediu-lhe os pés. O caçador decepou as outras duas mãos do macaco, atendendo-o na sua

manifesta maldade.

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Ele disse, então: — está gostoso mesmo o seu pé. E antes que pedisse outra parte de seu corpo o caçador foi-lhe dizendo

que também estava faminto. — Agora eu é que quero comer, meu avô, disse o caçador aperreado. — Dê-me o seu coração. E o Curupira, quase sem demora, abriu o peito, para retirar o coração.

O caçador, assombrado com aquele gesto, pegou do restinho de macaco e saiu mesmo, às escuras, sem rumo certo, caminhando pela floresta a dentro.

O tempo correu. Os meses passaram-se e o caçador, um dia, lembrou-se do encontro com

o Curupira. Animou-se a ir à mata buscar os seus dentes verdes, para fazer um colar,

o osso da canela para uma flauta e os demais ossos para pontas de flechas. Partiu. Foi pelo itinerário mais ou menos percorrido antes e encontrou o Curupira

estendido no chão, como o havia deixado, com a boca aberta, a dentuça verde aparecendo.

Foi-se aproximando a passo e passo e tocou-o de leve. O Curupira abriu os olhos, meio estremunhado, e falou pausadamente: — É você, meu neto? Estou com sede; dê-me água para beber. O caçador começou a tremer, mas, assim mesmo, conseguiu trazer água

para o Curupira. — Você me salvou a vida e, por isso, vou premiar a sua camaradagem.

Levantou-se. Caminhou com dificuldade, a princípio, mas> depois, firmou-se melhor e foi

até uma árvore gigante, donde retirou, de uma de suas aberturas, uma flecha que a entregou ao caçador, seu neto. Já agora com firmeza, repetiu: "com esta flecha você poderá matar quanta caça quiser, — anta, paca, tatu, veado, cotia, uru, mutum, cateto, jacu, tudo quanto é caça de pena ou de pêlo.

— Basta você atirar a flecha, que ela vai direitinho e mata o bicho ou a ave que desejar.

Mas, há uma coisa: — ninguém poderá vê-la. O caçador recebeu-a, agradeceu muito e partiu, contente e feliz. Não lhe

faltaria mais alimento. Seria o caçador mais respeitado e com melhor pontaria. Todos o invejariam, doravante. No caminho avistou uma paca e meteu-lhe a flecha, vendo-a cair

esperneando entre a folhagem, bem perto do riacho do Evangelista. Chegou à casa cheio de si, carregado e alegre. Não sabia, porém, onde esconder a flecha, Lembrou-se dum oco de pau que havia perto de casa e guardou-a lá.

Todos os dias ia buscá-la e saia para a caçada. Os seus companheiros voltavam panemas6. Intrigados com o vizinho fizeram-no espreitar e descobriram que guardava

a sua flecha milagrosa, como já a chamavam, na abertura de um pau.

6 Termo que vem de “gavião-panema”, que por sua vez, vem do tupi: infeliz, sem sorte, azarado.

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O filho mais velho de um deles foi até a árvore, furtivamente, roubar a flecha, mas, para surpresa sua, viu-a transformar-se numa cobra enorme, que o mordeu, matando-o.

O Curupira, vendo descoberto o segredo da flecha, fez com que a mesma desaparecesse dali, por já lhe parecer inútil, dado ter sido vista por outrem.

O caçador, quando foi, no dia seguinte, buscá-la na árvore próxima, para dirigir-se à caça, não mais a encontrou, atribuindo logo ter sido descoberta por alguém, merecendo, assim, a ira do "pai do mato".

Os meninos estavam todos atentos, interessados mesmo na história do Curupira.

Miquilina disse-lhes, ainda, que o Curupira possui, também, o nariz em forma de bico corne, mais forte e maior do que o do tucano. Seus peitos ficam-lhe sob os braços.

Tem os pés tortos e as pernas sem articulações. É dotado de orelhas enormes, que servem para conduzi-lo pelos ares,

afora a função auditiva, natural, que representam. Zé Vieira bocejava e se espreguiçava todo, passando as mãos pela

carapinha, com um jeitão de sono e cansaço. Disse a Miquilina que queria dormir e, juntamente com a boa preta e os

meninos, encaminhou-se para o seu quarto, trepando na rede e embrulhando-se da cabeça aos pés, com medo, de certo, do inofensivo Curupira.

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9 O S A C I - P E R E R Ê

As festas do Natal já vinham próximas e a "casa grande" preparava-se para festejar o nascimento do menino Jesus, tão querido nos lares deste nosso imenso e adorado Brasil.

A vivenda de "seu" Joaquim e d. Iaiá não abria exceção a essas comemorações, mas, ao contrário, parecia fazê-lo com um amor e misticismo todo especiais, que contagiava os de casa, vizinhos e moradores.

Não eram apenas as fogueiras que se acendiam, nem as comidas de milho que, com tamanho esmero, se preparavam, porém o cuidado e o carinho dispensados à árvore de Natal, que se erguia na sala de visitas, cheia de presentinhos espetados em seus galhos e em seus ramos, E o presépio, onde sobressaia o menino Deus, na manjedoura, entre palhas secas e humildes, rodeado por Maria e José, os pastores, os reis magos, os anjos, os animais domésticos e a estrela luzindo no alto... como bússola àqueles que buscavam o lugar sagrado dos primeiros ensinamentos do cristianismo.

D. Iaiá era toda afazeres, arrumando o presépio, dando graça e beleza às toalhas, às rendas, que enfeitavam o altar, onde se alçava a lapinha.

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"Seu" Joaquim comprava os presentes para distribuir com os filhos, os empregados, os meninos dos vizinhos e os garotos humildes dos moradores.

O Natal, para eles, era uma festa de dádivas e recordações, em que todos se sentissem alegres e felizes.

E nada melhor, para crianças e agregados, que receber presentes pelo Natal.

Era um casal feliz. E gostava de proporcionar felicidade aos outros. O vinte e cinco de dezembro, com as suas pompas e os seus guizos, veio

encher de satisfação a quantos moravam nas proximidades da "lagoa dos bambus" e na "casa grande" de "seu" Joaquim.

Miquilina não cabia em si de contente. Transbordava alegria e ventura e não parava um momento sequer, indo e

vindo dentro de casa, apesar da idade avançada que lhe somava os anos e o reumatismo que lhe freava os movimentos.

Miquilina não trabalhava mais como antigamente, pois estava aposentada, por força mesmo da idade, mas não se dava por vencida, nem parava um minuto. Reclamava sempre as dores nas cadeiras. O cansaço se apossava daquele coração envelhecido, quando caminhava mais depressa. A vista já não era boa e a catarata lhe ia anuviando os olhos, dificultando-lhe a visão.

Escutava com dificuldade o que lhe diziam e sempre pedia repetissem alguma palavra, porque estava ficando "mouca". A surdez se agravava tanto quanto o reumatismo. Mas não entregava os "pontos", mesmo assim.

Era a velhinha querida e estimada por todos, sempre contando histórias, sempre fazendo adivinhações, recordando, a qualquer momento, um fato passado, um "causo" vivido com Zé Vieira, com o preto Zacarias, com tantos outros.

Nessa noite festiva do Natal Miquilina botou o seu melhor vestido de chita, enfeitou-se toda com as suas "jóias" e não se esqueceu de, no bolso do casaco, trazer o cachimbo, o fósforo e o fumo inseparáveis.

Eram os seus velhos companheiros, desde a infância, quando fumava às escondidas, trancando o cachimbo entre as mãos, ao pressentir a aproximação de "seu" Joaquim, ou ocultando-o entre as pedras, à presença de d. Iaiá.

Hoje não o escondia mais, porque se integrara na sua própria vida. Cachimbava o dia todo e era um prazer fazê-lo e uma graça vê-la murchando as bochechas num pitar sem fim aquele fumo cheiroso e forte.

Miquilina foi ajeitando os meninos, agora já crescidos e até alguns menos interessados por essas histórias de Lobisomens e Uaiporas, porém ouvindo-as mesmo assim, com um certo interesse, pelo bem que lhes poderiam proporcionar, iludindo-a com esse devotamento às suas primaríssimas narrações folclóricas.

Zé Vieira já estava taludinho e não mais se deixava impressionar nem atemorizar pelo medo.

Lembrou-se Miquilina de narrar-lhes a história do "Saci-Pererê", que muitos livros já traziam belamente contadas, para gáudio das crianças.

O Saci-Pererê, disse-lhes Miquilina, é um demônio de arteiro! É um negrinho engraçado, barrigudinho, com uma carapuça vermelha na

cabeça, tendo na boca, constantemente, um pito de barro ou uma combuca de coco, igual à velha Miquilina.

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Os seus olhos são como duas brasas, dois tições acesos. O cachimbo apagado, eternamente apagado, é um motivo para pedir fumo

a quantos vai encontrando, como faz o Caipora, de que lhes falei. O Saci tem uma perna só e sai pelas estradas enfezando os caminhantes,

desamarrando as cabras e os cavalos que ficaram presos nos pastos. Da nó na cauda dos animais. Monta na garupa dos cavalos e os espanta, provocando queda naqueles

que, indiferentes e satisfeitos, trotam, caminho a fora, cavalgando-os. Faz cócegas nos caçadores deixando-os quase mortos no mato, de tanto rir. Espanta as caças e as aves, quando o tiro já lhes é certeiro. É um verdadeiro capeta solto nos matos a aperrear a gente com as suas diabruras. Todos o temem, amedrontados com o que lhes possa fazer de maldades e xingamentos. Parece que voa no ar, como se fosse uma bruxa. Ou, então, são legiões espalhadas, porque parecem estar em todo canto, em toda parte.

Miquilina contava aquilo tudo como se fosse verdade e, de quando em quando, com os dedos em figa, persignava-se toda.

— Ele é tão danadinho, continuava ela, que também aparece com um pé bipartido, como o de cabra, e, então, ei-lo a trepar pelos outeiros, espalhando e tangendo as ovelhas e os cabritos.

Ou, ainda, com um pé de pato, espadanando a água das lagoas, espantando os peixes, correndo com os gansos selvagens e as galinhas d'água.

Outras vezes, encontramo-lo com um par de chifres, perseguindo os cachorros e os animais domésticos, esfregando-os de encontro às árvores e às cercas, maltratando-os até os berros, num amedrontar sem fim.

Espantalho das lavadeiras, dá beliscão nas suas pernas, como se fosse uma lagosta e logo se vê é um molecote de uns dez anos, às gargalhadas, pulando para fora d'água, preto retinto, com uma carapuça na cabeça e uma camisola vermelha vestindo-lhe o peito.

Cachimbando e sumindo-se entre os arbustos, antes pisou, com um pé só e sujo, por sobre a roupa estendida à margem, lambuzando-a todinha, a obrigar, assim, as lavadeiras a um novo e cansativo trabalho de limpeza.

Às vezes entra com o vento pelas casas a dentro, desarrumando tudo e entorna o leite, faz queimar o feijão, espalha o lixo já disposto a um canto, puxa o rabo dos gatos deitados nas cadeiras, abre a gaiola dos pássaros, soltando- -os, e vai-se embora, atormentar mais longe.

Uma vez, um caçador assustado, inventou uns versos para o Saci. Miquilina puxava pela memória.

Impertigou-se toda, bateu o cachimbo no banco e recitou, pausadamente, procurando recordar da melhor maneira possível, as estrofes de que ainda se lembrava:

"Noite má! Noite má! Como a noite do limbo

Do outro lado de lá! O Saci-Pererê cruza as picadas,

Pedindo fumo para o seu cachimbo,

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A quem volta do mocambo a horas caladas. Quando andar pela roça à meia noite, não se esqueça,

"Nhô" moço: ponha um breve ao pescoço E não se afoite pelas encruzilhadas sem ter dito

O credo sete vezes, sem o que nem Deus o livra da unha do maldito Do Saci Pererê".(7 )

Pois é assim o Saci, concluiu Miquilina. Pega a gente desprevenida e massacra até não poder mais. Vocês que se livrem dele é o que lhes desejo nesta noite de Natal. E calou-se. Lá dentro, o vai-e-vem dos convidados. A ceia servida. A árvore de Natal repleta de presentes. O presépio enfeitado e muito lindo era a curiosidade de todos. "Seu" Joaquim e d. Iaiá não paravam, atendendo a quantos enchiam a sua

casa. A meia-noite se aproximava, quando tiveram início as rezas e as preces

se ergueram ao Deus-Menino, naquela festa de graças e de recordações. Zé Vieira, mais crescido e mais esperto, mesmo assim não queria

brincadeiras com o Saci-Pererê. Esse Saci de carapuça vermelha, que traz um orifício na palma das mãos,

por onde faz passar a brasa com que se diverte, jogando-a para cima. Esse Saci brincalhão e às vezes do "contra", que faz gorar os ovos, que faz com que o milho não vingue nas espigas, que chupa, igual aos morcegos, o sangue dos cavalos, que da nó cego na crina dos animais. Esse negrinho unípede, galhofeiro e impossível, há sido a preocupação de muitos, — uns, explorando-o folcloricamente, outros, por ele explorados nas encruzilhadas, aturdidos pelas suas diabruras, encalistrados com os seus enfeitiçamentos e perseguidos sempre pelas suas aparições constantes, nos rios e nos caminhos da vida.

7 "Feitiçaria", poema de Teodoriek de Almeida

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O S E M F I M

(SACI ORNITOLÓGICO) SEU Zacarias escutava atento a lenda do Saci, contada por Miquilina.

Findas as rezas, distribuídos os presentes, espoucados os foguetes, "seu" Zacarias animou- -se a contar, também, a sua história.

Uma história do Saci, do pássaro conhecido pelo nome de SEM FIM. - Homem afeito ao mato, na sua velha função de carreiro, acostumado a

lidar com os bois, encontrava, segundo dizia ele, um pássaro de que muito falavam.

Com o seu linguajar arrastado de caipira, com as suas palavras erradas no português, porém sinceras nas intenções, ele contava, ou tentava fazê-lo, a história do SEM FIM como uma coisa real, certa, verdadeira.

— É um pássaro bonito e garboso, com uma cauda comprida e alongada, de plumagem macia e sedosa. O SEM FIM é muito conhecido no Brasil. Também é chamado "Tempo Quente" e "SACI".

O seu canto é a repetição perfeita do nome SACI. — Ai de quem lhe imitar o assobio! Será por ele atacado e tostado com

brasas. Por isso, quando alguém, no mato, ouve o canto dês- se pássaro não procura assobiar, porque se ar- receia de ser queimado por ele.

Os demais pássaros, certamente, temem a companhia do "Tempo Quente", pois, como o espírito do SACI aperreia e belisca os companheiros, de galho em galho, ou num vôo ligeiro, no ar.

"Seu" Zacarias fazia um esforço bem grande para desincumbir-se dessa narração, porquanto, dizia ele, somente Miquilina "nasceu para contar histórias".

E concordemos que era mesmo! Miquilina, ouvindo-o, ficava satisfeita e prometia dizer outras, depois,

como, por exemplo, aquela da "MÃE D’ÁGUA". "Seu" Zacarias, coitado, sem jeito nem idéia para alongar-se em imagens,

a fim de conseguir impressionar pela narrativa, deixou um esboço apenas do Saci Ornitológico, desse perigoso "SEM FIM", com que muitas vezes topou nas suas andanças.

A noite já ia avançando. O sereno molhava a grama e o arvoredo, e o frio começava a penetrar

pela fresta das janelas, mexendo com o reumatismo de Miquilina. Ajudada pelos "netinhos", levantou-se devagar, praguejando as "dores nas

cadeiras" e, agarrando-se aos portões, foi até à cozinha verificar se haviam apagado o fogo, no fogão de lenha, para deitar-se, tranqüila, depois de ter encomendado ao Menino-Deus, protetor daquela noite, a sua pobre vida e a vida preciosa daqueles entes queridos, que tanto lhe valiam.

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A M Ã E D ' Á G U A — A I A R A

A alegria do Natal já havia desaparecido e um novo ano trazia mais idade a Miquilina.

Mais idade e mais reumatismo. Os dias da semana santa, — recordando agora o sofrimento e a morte

daquele Menino Deus, que ontem nascera n'ua mangedoura — emprestavam, às famílias cristãs daqueles tempos, um período maior de piedade e recolhimento.

A casa-grande de "seu" Joaquim e dona Iaiá, um verdadeiro lar feliz, impregnava-se também daquele mesmo ar de misticismo encontrado em as

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naves eclesiásticas, durante as funções religiosas, quando das tradicionais "se-manas santas".

Miquilina, depois que usou o "sebo de carneiro", que lhe ensinaram, melhorou um pouco das dores reumáticas e animou-se, então, a contar novas histórias, a história da "mãe d'água", há muito prometida. Finda uma história, Miquilina já ia se lembrando de outra, contando com a sua memória privilegiada de anciã, e logo anunciava aquelas do "Boto" e da "Mula sem cabeça".

A do "Boto" interessou muito a Zé Vieira, mas a da "Mula sem cabeça" deixou-o de orelha em pé, pois, voltando aos velhos tempos, imaginava não ser lá coisa muito boa.

Do mesmo modo que os matos são infestados por Lobisomens, Caiporas, Sacis, Curupiras, as águas também o são pelas "Mães d’água", pelas "laras", pelos "Botos", pelas "Iemanjás" e tantos e tantos mitos e duendes que dão vida às superstições e às lendas.

A "Mãe d’água" é uma belíssima mulher, com os cabelos verdes da cor dos musgos e olhos de ouro, metade mulher e metade peixe.

É a deusa dos rios, dos lagos, dos oceanos. A perdição dos incautos, que se deixam enlevar pelas suas cantigas e se

extasiam pela sua formosura: A "Mãe d'água" vive nos rios e, nos rios e nos lagos, atrai os pescadores e

os homens descuidados, que os enfeitiça, até levá-los á profundeza das águas, prendendo-os, escravos, para o seu reino marinho, no gozo eterno de suas presenças.

Os velhos nautas, nos grandes oceanos, têm sofrido a influência das sereias, em noites enluaradas, conduzindo-os até à perdição, pelo canto maravilhoso das suas enleantes canções de amor. E seguem-nas, sem rumo e sem bússola, até o encontro do perigo, encalhando em bancos de areias desconhecidas, sem que saibam regressar a um ancoradouro certo.

Atraídos que foram pela "Mãe d'água", outro recurso não lhes resta senão se deixarem ficar naquele palácio encantado, no fundo dos mares, em tão esquisitas mas encantadora companhia.

Miquilina falava dessa história para advertir os garotos, seus "netinhos", de que tivessem cuidado com as "sereias" da terra, também perigosas, tanto quanto as outras, da profundeza das águas.

— Mulheres bonitas, ou aparentemente bonitas, são como as "lavas", que nos atraem com as suas lindas cantigas, porém falsas, para poder pegar os tolos e levá-los para o prazer de sua festa de encantamento, nos labirintos ma-rinhos, no abismo das torrentes.

— Conta-se que o Manoel Passarinho, pescando, uma vez, no "Calumbí", começou a ouvir alguém cantando uma canção bonita.

Procurou escutar atentamente e a voz como que se aproximava cada vez mais.

De repente, sozinho, de noite, viu, bem perto de si, uma belíssima mulher, à beira da lagoa, sentada, cantando, com os cabelos soltos ao vento e os olhos faiscantes e lindos como duas pedras de brilhante, fulgurando ao contato da luz da lua.

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Manoel Passarinho, mulherengo como ele só, não se conteve e aproximou-se também, não sem algum receio, lembrando-se da história da "Mãe d'água

Mas, acima de tudo isso, estava a figura da mulher divinizante, que o conquistara.

Aproximou-se mais ainda e a sua voz como que o envolvia todo, num extasiamento fatal.

Nem sequer pressentiu que a "Iara" se afastava de mansinho, para dentro da água, arrastando-o, imperceptivelmente.

E lá se foram os dois, perdidos, para o desconhecido dos precipícios. Quando se deu falta de Manoel Passarinho somente o seu paletó foi

encontrado, juntamente com a linha de pescar, que denunciavam o seu desaparecimento.

Foi a "Iara", de certo, que o levou. No grande rio brasileiro do Amazonas a "Iara" é bem conhecida e

freqüentemente aparece àqueles que navegam nas suas águas. Miquilina, então, recomendava cuidados especiais aos seus queridos

"netinhos", quando demandassem à Amazônia. Viu o Carlinhos já crescido e que, em breve, não estaria ali a ouvir as suas

histórias, mas sim, ao concluir lá fora os seus estudos, iria viajar, depois, por este Brasil imenso, tomando conhecimento dessas "conversas" bobas da velha Miquilina, que tão fielmente as procurava descrever e imaginar,

Isso tudo passava pela cabeça de Miquilina e sentia que, um dia, quando esse menino fosse homem feito e conhecesse melhor este país, soubesse compreender as suas histórias, para amar melhor a terra dos seus avós, o berço dos índios bravios e ferozes, que aqui se criaram e cresceram, como as primeiras raízes deste "pau-brasil", que deu nome à terra, que é nossa e nossa será eternamente, enquanto existir um brasileiro digno.

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O B O T O

Os achaques e o reumatismo da velha Miquilina prostraram-na, meio alquebrada e abatida.

Pouco se levantava, agora, e, quando o fazia, era com um esforço tremendo.

Todos cercavam-na do maior carinho e conforto. D. Iaiá e "seu" Joaquim queriam-na com verdadeira adoração e viam no

seu aniquilamento o fim de uma idade e o desaparecimento de uma raça que se extinguia, nos últimos longes de uma época...

Miquilina reclamava os remédios e protestava toda vez que lhe iam aplicar injeções.

A preta velha não se adornava àquele tratamento, furando-lhe os braços, espetando-lhe as carnes.

Mas, mesmo assim, com todos esses protestos, Miquilina melhorava, a pouco e pouco.

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Seu coração não era dos piores e o seu estado geral não parecia ser tão precário.

As dores reumáticas a atormentavam e deixavam-na acamada por muitos dias.

E, no leito, a preta velha debulhava as contas do rosário, desfiando todas as orações quaresmais, apelando, com muita fé e simplicidade, à misericórdia divina, para abrandar os seus padecimentos.

Miquilina, à distância, no seu modesto quarto, acompanhava as rezas, na "casa grande", a benzer-se freqüentemente, no final de cada mistério ou de cada padre-nosso repetido.

Acabado o terço, Miquilina reuniu a "turma miúda" junto à sua cama e lhes anunciou a história do "boto".

Iria contar-lhes uma, parecida com aquela da "Mãe d'água", porém de sentido puramente masculino e dom-juanesco.

O "boto", que é representado como um moço bonito, forte e loiro, transforma-se numa bela figura de homem, sentado à barranca dos rios.

Esse mito aquático aparece, sempre, tocando violão, para, assim, à maneira das Iaras, seduzir, com a sua música e a sua cantiga, as cunhas, que se deixam ficar à beira do rio.

Lembrando-se da história e da figura do "boto", Miquilina se recordava também do acontecido a Joaninha Vintém, já contada em versos modernistas e ligados à lenda do "boto", naquela região amazônica.

E repetia os versos, lentamente: “Joaninha Vintém Conte um causo... Causo de que? Qualquer um. Vou contar causo do Boto: Putirum Putirum. Amor chovi-á chuveriscou, Tava lavando roupa, Maninha, Quando Boto me pegou.

Ó Joaninha Vintém, Boto era feio ou não? Ai, era um moço loiro, Maninha, Tocador de violão". (8 )

Esse boto, peixe amazônico transmudado em homem, sedutor de mulheres, violento e farrista, alongava-se na imaginação daqueles que a ouviam, numa fantasia cada vez mais bela e mais primorosa, tocando às raias de uma quase realidade.

As palavras de Miquilina pareciam um todo harmonioso de encantamento e verdade.

Tinha-se a impressão de ver, à margem do rio, entre as árvores crescidas e cipós pendurados, no meio de plantas aquáticas e vitórias- régias mais salientes, o Boto, sobraçando um vistoso e bem encordoado violão, a cantar modinhas e canções brejeiras, temadas no amor e na luxúria.

O "boto", com os olhos grandes e o corpo ainda recoberto de escamas, com um cigarro atrás da orelha, um bigode ralo cobrindo o lábio superior e uma voz melodiosa e atraente, a tudo encantava ali por perto.

8 Versos de Raul Bopp, em "Cobra Norato".

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Era o boto amazônico e brasileiro, impregnado do lirismo transbordante daquelas paragens quase paradisíacas, onde as lendas se misturam à realidade e, de súbito, a verdade se transforma em mistério, assombração, duendes.

Miquilina, — já um tanto cansada, com as dores reumáticas dando-lhe pontadas dolorosas, mais forte às vezes, às vezes mais fracas — foi vergando o corpo nos travesseiros e pegou no sono ali mesmo, mansamente, como se tivesse deixado enfeitiçar-se pela cantiga do Boto amazonense.

Os meninos foram saindo, pé-ante-pé, para não acordá-la, enquanto Zé Vieira ajeitava o vaso sob a cama, para a velha cuspir à vontade, durante a noite.

Na cadeira, perto, deixou o cachimbo, o fumo e o fósforo e puxou o lençol meio caído, cobrindo-lhe melhor as carnes bambas do colo e dos braços, que estavam a descoberto.

Todos saíram e a velha já começava a roncar, naquele sono misturado de dores, alegrias, tristezas e recordações.

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13 A M U L A S E M C A B E Ç A

Dr. Haroldo, formado há uns dois anos, estava agora passando umas férias com a sua tia, d. Iaiá, e fora um daqueles que, na infância, se haviam deliciado com as histórias maravilhosas de Miquilina.

Quantas e quantas vezes não adormecera no colo da preta velha, sentindo o carinho dos seus dedos amaciando-lhe os cabelos até a chegada do sono, até o desaparecimento total da confabulação dos seus pensamentos infantis, imaginando, ampliando, sugestionando-se com as figuras do Lobisomem, do Caipora, de todos os trasgos que povoam os caminhos fantasmagóricos, que Miquilina sabia percorrer em suas companhias.

A velha melhorava devagar. E o Dr. Haroldo não se cansava de assistida, com uma dedicação quase

filial. Miquilina envaidecia-se com aqueles cuidados, vendo no "doutorzinho" um

dos muitos que se absorveram e encantaram com as suas "histórias".

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Dr. Haroldo revolvia toda a medicina aprendia nas velhas escolas, rebuscando fórmulas e poções, ensinamentos preciosos que valessem e servissem na cura e pronto restabelecimento de Miquilina.

E ela melhorava mesmo, para a alegria de todos. Chegada a noite, — porque é à noite que as histórias são narradas com

maior prazer e ocasião — aproveitando a estada ali do Dr. Haroldo, Miquilina anunciou uma nova história, que iria contar.

Zé Vieira, de volta do trabalho, já agora forte e musculoso, com a voz meio grossa e o cabelo bem alisado com brilhantina barata, também estava presente para escutá-la uma vez mais.

Miquilina pegou do cachimbo, empurrou o fumo com o dedo polegar e já ia acendendo, quando o Dr. Haroldo disse-lhe que não fumasse, pois o fumo estava piorando os seus achaques.

Devia passar um tempão sem usar fumo, principalmente cachimbo, como sempre fizera.

Miquilina aquiesceu, mas sabe Deus como! — Tá certo!, — doutorzinho não qué que a nêga véia fume mais! — Então, ouçam a história que vou dizer, — é aquela da "mula sem

cabeça". Vocês não conheceram a negra Mariquinhas, mas dizem que era amante do padre Joca, um padre meio errado que andou por estas bandas e arranjou um "chamego" com essa negra sem-vergonha, que não se dava a respeito. Nem ela nem o reverendo.

— E dizem as más línguas que a negra Mariquinhas gostava mesmo do padre.

Era enrabichada por ele. Mas, cada dia que se passava, ia ficando esquisita e horrorosa, até que

ninguém teve mais notícia dessa pobre criatura. E o padre Joca, coisa estranha, também desapareceu. Logo depois os tabaréus começaram a encontrar u'a mula, tropeando em

disparada, montada por um homem feio, de chapéu de palha, pés em forma de "pés de pato", armado com rebenque e munido com esporas afiadas, com que rasgava o vazio e as ancas do animal, espirrando-lhe sangue.

A mula, que é toda preta, muito retinta e lustrosa, corre, mais veloz do que o vento, tirando fogo das pedras por onde pisa.

Não possui cabeça e, por um orifício no pescoço, deixa escapar uma fumacinha azulada e vai a perseguir todo e qualquer tropeiro que encontre no caminho.

Todos a temem, porque atribuem ser o demônio que a cavalga. Mesmo em casa, deitados nas suas redes amarradas nos caibros, os

caipiras se benzem e se encolhem, quando ouvem, lá longe, na calada da noite, um tropel mais desusado de animal em disparada.

Deve ser a "mula sem cabeça" que vai passando, sem destino, a correr, a perseguir os caminhantes, que se alongam nas suas jornadas.

E Miquilina observava, então, — "Aquilo num foi padre, aquilo era o diabo feito gente, para enganar a negrinha donzela, a pobre Mariquinhas, que se perdeu, coitada, à-toa".

Esta era uma das versões da "mula sem cabeça", ou "mula do padre", como chamavam alguns.

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Contam de outro modo, também, dizendo que era uma vez uma rainha, que, às escondidas do rei, ia, alta madrugada, aos cemitérios, devorar cadáveres.

Uma rainha muito ruim, perversa, desumana, que se não contentava somente em fazer mal às pessoas vivas.

Ia mais além a sua maldade e a sua miséria. Queria devorar os cadáveres daqueles a quem mandava matar. Desejava

vê-los verdadeiramente destruídos de uma vez por todas e achava que somente ela poderia fazê-lo, indo identificá-los, à noite, nos cemitérios, nas covas ainda frescas.

Numa dessas noites foi surpreendida pelo próprio rei, que, de há muito, já vinha suspeitando disso e seguindo-a.

Descoberta a sua necrofilia, pegada em flagrante na prática desse monstruoso crime, transformou-se na "mula sem cabeça", que anda por ai, à-toa, sem destino e sem rumo.

Era o tinhoso9, na certa, que já se havia apossado da alma daquela pobre mulher.

Era o dimunho, aquele diacho ruim e mau, que, hoje, tomando conta do corpo e do espírito da rainha malvada e perversa, esquipava pelas estradas, pelos campos desertos, pelas escarpas e cercanias, molestando os pobres e cansados homens do campo, quando regressam às suas casas.

Miquilina narrava aquilo com tanta ênfase e aprumo, que até se amedrontava, dadas as cores de realismo que emprestava às suas palavras.

E benzia-se muitas vezes, repetindo baixinho as palavras pouco audíveis, — sujo, maldito, atiça, canhoto, Padre Botelho, tinhoso9 todo um rosário de nomes com que se designava o diabo!

Esquecida, ou talvez assim se fazendo, Miquilina ia pegando o cachimbo, furtivamente, quando o Dr. Haroldo o fechou dentro da mão, deixando a sua sobressair, naquele contraste de epiderme, onde a da preta velha se confundia com a cor da noite e a dele aflorava, macia, apertando a mão maternal e carinhosa daquela que tantas vezes, na infância, o fez adormecer tranqüilamente.

— Não fume, negra velha, não fume, que o fumo está lhe fazendo mal e aumentando os seus padecimentos,, dizia-lhe o Dr. Haroldo, filialmente falando.

— "Ora, doutorziriho, a nêga véia não presta mais, não var mais nada, deixa a nêga véia fu má! . . .É mêrmo, quem fuma morre, quem não fuma morre, pur-isso deixa a nêga cachimbá!, deixa, doutor zinho, deixa!"

O Dr. Haroldo não atendia aos seus rogos, porque Miquilina, para ele, para todos nós, era como que uma relíquia, era tudo neste mundo, neste "mundão de meu Deus", como "seu" Zacarias costumava dizer.

9 Tinhoso: Demônio, diabo.

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14 M A T I N T A P E R E I R A

JÁ que o Dr. Haroldo não queria permitir a Miquilina que desse as baforadas no seu velho e sarrento cachimbo, ela, então, cheia daquela verve e alegria de palavras, que caracterizavam as suas "histórias", disse que ia contar uma outra, dedicada ao "doutorzinho".

Era a "matinta pereira". Integrada nas lendas que povoam o Amazonas, essa se mistura às muitas

que enriquecem o folclore daquela região tropical. — "Matinta pereira" é uma velha cafuza, magra, representação da África

distante, com os beiços grossos e revirados, os seios caídos, pendurados e murchos, os braços alongados e finos, os ossos quase perfurando a pele suja e enegrecida, o nariz, um bolão atufado sob os olhos, e o pé, mal conformado e calejado pelas andanças, — compõem esse todo de mulher feia e horrenda, que anda aos pulos, como o Saci-Pererê, fumando incessantemente um "pito com canudo de taquarí e cabeça de barro",

Miquilina afirmava parecer-se com a Matinta pereira, pois as duas eram pretas e velhas, ambas fumavam demasiadamente, e, se esta possuía uma

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perna só, a outra, que ainda era dona das duas, parecia, na realidade, não ter nenhuma.

Eram pernas doloridas, cansadas, perrengues, que, ültimamente, pouco lhe serviam.

O Dr. Haroldo a encorajava infundindo-lhe ânimo forte, mas Miquilina era que sofria as dores, e quem as sofre não esquece, assim, depressa, como queriam os demais.

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15 A C U C A

MIQUILINA sabia que a sua saúde chegava ao fim. As suas horas estavam contadas.

A sua velhice, as suas mazelas, os seus achaques lhe abreviavam os dias.

Que a morte seria a sua companheira muito em breve, levando-a, de braços dados, a percorrer o desconhecido. Como agora faziam a sua memória e a sua imaginação, passeando pelos caminhos tortuosos das assombrações e das lendas, divagando nesse emaranhado folclórico, onde muitos se perdem e outros se saciam e deleitam.

Miquilina tinha consciência do seu fim. Mas, satisfeita e feliz, — porque estava contando com o carinho, o afago e

o cuidado de todos — não deixava que as lágrimas lhe molhassem as faces, nem permitia que os seus últimos instantes fossem torturados por essa idéia de aniquilamento e desesperos.

Sabia que aqueles remédios eram-lhe paliativos e pouco influiriam no seu restabelecimento físico.

O coração já não era aquele dos velhos tempos. Não possuía o vigor e a energia da mocidade, nem resistiria às próximas

investidas dos colapsos.

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E, para não dar mostras de fraquejamento, impertigou-se toda, na sua cama de enferma e começou a contar mais uma das suas belíssimas histórias.

Talvez a última, quem sabe!, naquele desfiar de narrativas, que encantavam adultos e adolescentes, enfeitiçando as crianças, que se deixavam ficar quietas ao ouvi-la ou amedrontadas e perplexas, como Zé Vieira, nas suas primeiras primaveras.

— Não sei se já lhes contei a história da "Cuca", da "Velha Cuca", como outros a chamam.

Talvez não se lembrem, porque muito piquititinhos, mas d. Iaiá e eu, quando íamos deitar vocês, cantávamos uma cantiga da época, que se repetia em todos os lares brasileiros: “ . . . dorme, neném, dorme, neném, que a noite é escura e a Cuca aí vem!"

E, com medo da Cuca, todos dormiam, ao embalo da rede, ou nos braços das queridas babás, sem que fizessem o menor ruído ou o mais leve esperneio. A Cuca era uma velha bruxa, horrenda, feia, desengonçada e disforme. Com uma cabeça muito grande; um nariz adunco e vermelho, cheio de verrugas; uma boca enorme, resguardando apenas dois ou três dentes; um corpo raquítico e miúdo; braços esqueléticos e pendidos; uns olhos monstruosos e crescidos, como que soltando faíscas, e impressionantes; os pés saídos para os lados, mostrando a finura das pernas e os mocotós mal feitos e cheios de nós, metidos nuns chinelos gastos pelo uso e pelo tempo; com um fichu nos ombros a cobrir-lhe os ossos e mostrar os buracos e os molambos, a Cuca não deixava de ter um caldeirão fervendo, numa trempe de tijolos, onde as labaredas cresciam e se alongavam, num crepitar sem fim. Com uma concha de cabo comprido a Velha Cuca remexia os ingredientes aí depositados, numa ablusão sem limites, numa avidez de mistérios e bruxarias.

Dentro daquela gruta, onde a velha se enfurna, proliferam aranhas, morcegos, sapos, gatos pretos, corujas e galos cambaios, que ela os conserva para as suas "encomendas" e os seus "'despachos".

Naquele caldeirão atira todos os meninos que, perdidos nas matas, consegue aprisionar.

Essa Velha Cuca tem entrevistas com o diabo e dele recebe instruções para aplicar nas suas mandingas.

O gato preto e o cururu, seus inseparáveis amigos, seguem-lhe os passos e a desventura, nesse arquitetar de maldades, que leva a agonia e a miséria, a dor e o desespero, desprazer, penas e sofrimentos, a quantos se consomem pelas suas maquinações e perversidades agourentas.

Uma coisa má e infeliz, que semeia, por onde passa, — como algumas pessoas nossas conhecidas — a intranqüilidade e o desassossego, o ódio e a peçonha, o prazer pela desgraça e a satisfação doentia pelo aniquilamento do próximo.

Miquilina, possuída daqueles sentimentos bons que lhe enchiam a alma e o coração, parecia temer a Velha Cuca, que lhe motivara, pela fertilidade de sua imaginação, um quadro tão vivo e perfeito da maldade humana.

— Não!, Vocês não devem temer a Velha Cuca, porquanto o mal por si se destrói!"

— "Nunca se perde por fazer o bem. Nunca se arrependerão vocês de haverem praticado uma ação boa para consigo mesmo ou com o semelhante".

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Do Bicho Papão ao Lobisomem – De Castro e Silva [RTS]

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O Dr. Haroldo notou que a velha Miquilina havia se entusiasmado demais e o seu coração parecia baquear, tão fortes eram as suas pulsações naquele encerramento de jornada.

De repente, parou. Segurou o terço encardido entre os dedos, tentou recostar-se aos

travesseiros, mas, sem forças suficientes, amolambou o corpo para trás e caiu de vez sobre o leito de morte.

E ali ficou, moribunda e arquejando, a suster uma vela, que lhe puseram, às pressas, entre as mãos.

Expirou ao fim. Estendida sobre a cama, com as vestes já mudadas para a última viagem,

a sua expressão era tranqüila e feliz. O seu enterro foi sentido e acompanhado carinhosamente por quantos a

estimavam e lhe queriam bem. Os "netinhos", que eram muitos, choravam, deveras, a sua perda e, com

as saudades das suas lágrimas, encheram aquele caixão que se fechou como um grande cofre. Entesourando o corpo virgem da velha Miquilina, querida e alegre, inteligente e feliz, porque soube viver e morrer, contando histórias que eram vidas e acariciando vidas que hão de ter histórias.

Uma cruz, uma coroa, uma laje com uma inscrição singela, dão-nos notícia dessa meiga velhinha que foi tudo na vida de tanta gente, sem ter sido nada na vida: — M I Q U I L I N A !

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N O T A S F I N A I S

Eram estas algumas das histórias que contavam às crianças, no alvorecer

de nossos dias, nas "casas grandes" e nas "senzalas", patriarcais, ensolaradas, neste nosso imenso e grandioso Brasil. Eram histórias que apa-voravam os guris, que os inibiam para o amanhã da vida.

E criavam-se, assim, meninos medrosos, tímidos, amulherados, sempre apreensivos com as figuras de Lobisomens e Quibungos, Sacis e Caiporas. Nem todos possuíam a felicidade de ter em casa uma preta velha inteligente, igual a Miquilina, que soubesse contar todas essas histórias procurando tirar o melhor efeito possível, já em benefício das lendas, já, no das crianças.

Não lhes incutia pavor, contando-as, mas, imprimia-lhes, pelo contrário, um amor às mesmas. O próprio Zé Vieira que se amedrontava, às vezes procurava reagir, fazendo "das tripas coração".

Ademais, essas lendas e esses mitos só viviam para servir de espantalho e obrigar os pequenos a obedecer à força, numa deformação de sentimentos, sem nexo às vezes, às vezes deturpadas e infielmente traduzidas.

Entretanto, não maldigamos esses erros, que serviram, todavia, para conservar as suas linhas e os seus traços mais fortes, de origem.

Agora, que uma nova mentalidade se vem formando e o folclore é estudado sob um aspecto mais real e fiel, ao invés de relegarmos todos esses mitos e duendes, devemos aproveitá-los e fixá-los em molduras mais eternas, — como alicerce, se possível, ou, ao menos, como um esteio mais forte — nes-se grande e impressionante quadro de nosso passado étnico. Os estudiosos de hoje, aprofundados em investigações mais seguras e banhados em conhecimentos mais certos e puros, vindos de outras terras e de outras gentes, já sabem que as Miquilinas foram úteis e que os meninos de hoje vão às verdadeiras fontes do folclore, diferentes, portanto, daqueles outros que se amofinavam e tremiam ao pensar que o "bicho papão" ou os "papa-figos" po-deriam agarrá-los de uma vez. Por isso foi que Gilberto Freire escreveu que o "menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo".

Estes contos, todos eles, de crendice popular, os repetimos aqui, ora com uma linguagem nossa, ora querendo fazê-lo como se fosse a preta Miquilina, n'ua mistura de simplicidade, boa vontade e singeleza de expressões, que caracterizou estes escritos.

A contribuição aqui deixada é espontânea e sincera, porque, indo às crianças do Brasil, em forma descritiva de "contos", vai também aos velhos cultores desse precioso acervo de nossas raízes raciais, que se agasalham, no tempo, num aprofundar de séculos, e, no espaço, no amplexo comum das raças, mesmo as mais diferentes e distantes.

O titulo não me obrigou a catalogar cronologicamente esses mitos que se reencarnam nesse "bicho papão", que são todos os bichos, desde o Lobisomem ao Curupira, do Caipora à Velha Cuca.

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Ai ficam eles, escritos com o coração e ilustrados imaginosamente pela figura de Miquilina, que não existiu, e, materialmente, pela inteligência moça e tão logo desaparecida de Octavio Sgarbi, a quem dedico, póstumamente, todo esse nosso esforço, dele e meu, em proveito da arte folclórica em nosso país.

DE CASTRO E SILVA

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