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Minha amiga Mônica, Nós estamos nessa estrada pedagógica já faz quase trinta anos, desde o segundo ano de Pedagogia, lá na saudosa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Escrevo para você, pois trilhou o caminho da pós-graduação junto comigo e na escola pública, da qual nunca saiu e a qual dedicou tua carreira, teu cotidiano. Escrevo para contar uma experiência muito rica que estou vivenciando na EMEI Jardim Monte Belo, que

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Page 1: Web viewAo brincarmos com construção de casas, castelos, pontes, cinemas, e inúmeras outras - que elas fazem no tapete (um dos nossos espaços), por exemplo

Minha amiga Mônica,

Nós estamos nessa estrada pedagógica já faz quase trinta anos, desde o segundo ano de Pedagogia, lá na saudosa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Escrevo para você, pois trilhou o caminho da pós-graduação junto comigo e na escola pública, da qual nunca saiu e a qual dedicou tua carreira, teu cotidiano.Escrevo para contar uma experiência muito rica que estou vivenciando na EMEI Jardim Monte Belo, que pertence a DRE Pirituba. Quando cheguei aqui em maio, no primeiro momento, levei um susto - sabe aquela surpresa boa, que enche os olhos?

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Todos os alunos estavam sentados no pátio e eram cerca de cem crianças entre quatro e seis anos, ouvindo as educadoras – as professoras e as agentes de apoio - repassarem com elas os combinados de uso do espaço escolar. Temos aqui um projeto cujo nome é “Alegrias de Quintal” – que faz parte do currículo compondo um horário de cerca de duas horas, complementando as quatro horas que as crianças ficam aos cuidados educativos de uma mesma professora. Neste horário intermediário – turma da manhã das onze às treze horas e o período da tarde, das treze às quinze horas - o uso do espaço escolar amplia-se. É criança para lá e para cá,

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experienciando atividades diferenciadas propostas pelo grupo de educadoras.Depois dessa reunião inicial as crianças escolhem as atividades que vão realizar e o tempo que vão ficar em cada uma delas – são cinco ou seis espaços, dependendo se o dia está com chuva ou sem chuva.O almoço também é oferecido nesta hora e elas têm cerca de uma hora para almoçar e servem-se do que querem – compõem seus pratos, assistidos pela equipe de apoio que observa e as auxilia na escolha e a pensar sobre a importância de cada alimento. Qual será o motivo de tamanha admiração? - você deve estar questionando. Respondo-te: é percebe-me envolta em um

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projeto pedagógico com um grupo de educadores humanistas, dialógicos, aprendentes. Eu tive a oportunidade de passar um dia em Summerhill, na Inglaterra. Foi um pequeno gosto que me dei a mais de 10 anos. E lembro que quando fui recebida por dois adolescentes que se ofereceram na Assembléia Semanal para me acompanhar e me apresentar à escola, eu senti tanta energia boa, mas muito boa naquele lugar, que nunca mais esqueci a sensação. Parecia palpável. Era como se o espaço físico tivesse incorporado toda a liberdade que foi proposta e vivida por Neill e que ainda hoje é realizada por sua filha Zoe. Parece que até hoje sinto o

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cheiro de “eu posso”, “me permito”, “vamos conversar”. Escrevo sobre Summerhill, pois admiro os libertários e todos aqueles que se propõe a pensar sobre seus medos, observando os outros e vivendo com os outros a opção de ter escolhas.Essa mesma sensação que senti lá veio a se repetir quando entrei nesta escola – e foi muito bom ter aquela sensação que estava na minha memória sentimental quieta tornando-se consciente novamente.É assim que me sinto aqui: desafiada.Quem vive entre crianças sabe como é trabalhoso constituir relações de diálogo e que estas precedem o observar, o escutar e o direito a fala.

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Também, ao escrever para ti, agora, me veio à mente Marcuse. Gosto de ler suas análises, uma vez que os teóricos da Escola de Frankfurt foram por nós estudados lá na pós. O livro que mantive na cabeceira da minha cama durante bom tempo dele é A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. . É vital estarmos sempre em alerta sobre nossas práticas cotidianas percebendo os limites de uma instituição social, como a escola, nessa nossa sociedade capitalista, tecnológica, de dominação e opressão. A escola não é só um local de reprodução social, quando esta se propõe ao exercício da crítica, ou seja, a não se

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permitir veículo de controle de consciências, mas, ao contrário, de apresentar aqueles que aqui chegam, independentes de suas idades, um local que se propõe diferente, ousado, que quebra com um mecanismo de conformismo social e, que sim, incomoda.Tenho muito esta preocupação, pois ao estudarmos com afinco os mecanismos de nossa sociedade excludente, por vezes, perdemos a esperança. Quando nas reuniões formativas, nos horários de debate coletivo, percebo a quanto à equipe pedagógica faz esse exercício de tentar compreender esse universo de relações e o exercício de tentar entender o papel da escola, percebo a importância desse

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espaço de formação social quando nos propomos a quebrar um paradigma dominante que atribui a escola um papel artificial, de satisfação de necessidades falsas. Falsas no sentido de que desejamos a formação de seres autônomos e não autômatos. Aqui as crianças fazem um exercício de fala, de construir argumentos. Nas nossas reuniões somos sempre “puxadas” por nossa coordenadora pedagógica de volta os princípios – que estão lá escritos, documentados, na Proposta Política Pedagógica.O diálogo e a mediação são fundamentos dessa proposta. Eu, uma menininha criada em escola estadual, na década de 70, onde as aulas de educação

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física se resumiam a treinar a marcha para o desfile de 7 de setembro – Dia da Independência do Brasil ? – e depois jogar queimada até dezembro, não vive como estudante na escola básica o diálogo, ou propostas dialógicas, uma vez que, com exceção de alguns professores, vive minha formação histórica nesses tempos duros de repreensão e “Amor a Pátria”.Toco nesse momento para me contextualizar historicamente, para entender quem sou quando tenho dificuldades de não ser impositiva com as crianças. De querer controlar o processo, de dar as respostas prontas quando eles questionam.Mônica, como é difícil dialogar.

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Estou aqui percebendo que o diálogo na escola não passa somente por duas ou mais pessoas conversando sobre algo ou uma situação vivida, mas também temos que dialogar com o espaço – o físico mesmo. Aqui as salas de aula são organizadas por Cantos. Sabe aqui noto as influencias do pensamento de Maria Montessori – uma guerreira; de Decroly; de Froebel; de Freinet. Os “vejo” aqui pelos corredores...Mas, quem mais “vejo” é Vigotsky e a quebra do tempo linear na constituição do currículo, dos passos pré - estabelecidos em planejamentos rígidos. Aqui percebo o que ele elaborava a cem anos atrás, em meio a

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Revolução Socialista nas terras russas: a interação como a base da formação do conhecimento social.Eu estou em um processo de aprendizado rico, muitas vezes me pego a começar a fazer alguma fala com as crianças e minha mente se cala – ou seja, o que penso não se transforma em fala. Fico aflita e observo, pois estou aprendendo a parar aquele segundinho, minutinho, no meio do burburiu do espaço escolar, junto com as crianças e me dar o direito a ficar quieta e pensar sobre o que ocorre e tentar realizar uma intervenção pedagógica mais inteligente, apropriada e que proporcione aquela criança um aprimoramento sobre o objeto de estudo em questão e a

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oportunidade de sermos, eu e elas, mais criativos.Vou te dar um exemplo. No mês passado, na reunião coletiva, estávamos nós Professoras junto a Coordenadora pensando sobre nossa prática e discutindo o espaço do parque, de como torná-lo mais interessante para as crianças, não limitado aos brinquedos fixos como casinha de madeira, balança, túnel, etc. Já temos ali uma parede de azulejos e brincadeira com bolinhas de sabão. Bem, na conversa percebemos que podíamos colocar algo a mais e verificar como as crianças lidavam com isso. A Coordenadora Meire Festa sugeriu caixas de papelão.Lá fui eu colocá-las lá. Fiquei só observando e alguns meninos

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olharam. Um dos nossos pequenos pediu para eu fazer um avião com a caixa e perguntei a ele como poderia ser feito. Ele me mostrou. Colocamos uma fita para fazer de cinto, abrimos a caixa e ele “voou” muito pelo parque. Outros também. Bem, aprendida a lição, eu fiquei com vontade de ir para o Ateliê na próxima semana. Lá montei uma “Fábrica de Carros” e durante duas semanas vários carros foram pintados, vários acessórios criados, e muita brincadeira rolou pela escola, nos corredores, no parque. Uns faziam, outros não faziam, mas todos podiam brincar com os carros. Quando perguntavam se podiam levar para casa. Conversava com eles e fazia a

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proposta de deixarmos a disposição de todos. Eles não mostraram resistência e eu fiquei admirada, pois tanto se estuda, nos meios pedagógicos, sobre o egocentrismo existente nessa idade. Percebi o quanto práticas livres colaboram para que as crianças lidem com este sentimento de modo tranqüilo.Também estou aprendendo a esperar as crianças a criar coisas belas. Tinha uma vontade de trazer exemplos de tudo para elas olharem e se inspirarem. Mas, estou percebendo seus repertórios e registrando-os por meio de fotos, nesse primeiro momento, e de algumas falas. As fotos são por eles analisadas e ocorrem observações, comentários, e

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novas construções. Agora, neste momento, estou elaborando como apresentar repertórios já constituídos socialmente. Ao brincarmos com construção de casas, castelos, pontes, cinemas, e inúmeras outras - que elas fazem no tapete (um dos nossos espaços), por exemplo – me pego refletindo em como apresentar coisas interessantes e belas que já estão por aí, nesse nosso mundo. Tenho vontade de apresentar as belas pontes já construídas pelo mundo afora, perceber com elas as formas desenhadas e construídas, os locais onde estão e perceber as necessidades sociais que foram sanadas por estas construções. Mas, como e quando fazer isto? Em que momento da

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brincadeira? Será necessário ou é só uma necessidade pessoal. Tenho também o direito de trazer para o grupo algo que é importante para minha pessoa? Como não ser autoritária? Estou pensando.Tem tanto mais a escrever, mas tudo tem fim, não é?Vem cá um dia, Mônica, nos conhecer. A escola fica do lado do Pico do Jaraguá – é um lugar alto, verde e com bom ar. Beijos amiga, para ti e para teus gêmeos – Mari e Matheus.

Obs: só para deixar como registro reescrevo aqui umas palavrinhas do mestre e também umas fotos da dinâmica.“ A ‘mecãnica da submissão’ se propaga da ordem tecnológica para a ordem social; ela governa o desempenho

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não apenas nas fábricas e lojas, mas também nos escritórios, escolas, juntas legislativas e, finalmente, na esfera do descanso e do lazer.” Herbert Marcuse – Tecnologia, Gerra e Facismo.