trovadores, donzelas, cavaleiros e castelos no sertão baiano

40
Universidade de Brasília – UnB Instituto de Ciências Humanas Departamento de História Disciplina: Metodologia da História Professora: Eleonora Zicari da Costa Brito Alunos: Ada Dias Pinto Vitenti 01/11635 Geraldo Helcius Dunice Cavalcante – 98/12857 1º / 2002 T rovado res, Donzel as, Cavale iros e Castel os no Sertão Baiano (Segundo as canções de Elomar Figueira Mello)

Upload: ada-vitenti

Post on 11-Nov-2015

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Ada,

Universidade de Braslia UnB

Instituto de Cincias Humanas

Departamento de Histria

Disciplina: Metodologia da Histria

Professora: Eleonora Zicari da Costa Brito

Alunos: Ada Dias Pinto Vitenti

01/11635

Geraldo Helcius Dunice Cavalcante 98/12857

1 / 2002

T

rovadores,

Donzelas,

Cavaleiros

e Castelos

no Serto Baiano

(Segundo as canes de Elomar Figueira Mello)

SUMRIO

1. APRESENTAO DO OBJETO DE PESQUISA2

2. JUSTIFICATIVA4

3. QUADRO REFERENCIAL6

4. PROBLEMATIZAO13

5. APRESENTAO DAS FONTES PRIMRIAS14

6. ENSAIO18

7. BIBLIOGRAFIA25

APRESENTAO DO OBJETO DE PESQUISA

O

s objetos desta pesquisa so algumas canes do compositor baiano Elomar Figueira Mello, O Violeiro (1968), Cantiga de Amigo (1972), O Rapto da Joana do Tarugo (1978) e Gabriela (1983). Tais canes despertaram interesse especialmente por conterem elementos claramente medievais, o que trouxe alguns questionamentos acerca de como ecos do imaginrio europeu-medieval contriburam para compor a cultura sertanejo-nordestina, como tais representaes foram reatualizadas, reformuladas, tornando-se parte de um contexto diferente do europeu medievo e principalmente de que maneira Elomar utiliza esses elementos para falar de seu tempo, de seus problemas, de seus sonhos.

O msico consegue com maestria recriar o trovador (ibrico?) medieval, mesclando s suas trovas as percepes de seu prprio mundo, falando da seca, da pobreza, como tambm das belezas de sua terra, de seus anseios, de sua experincia vivida, que traz em seu bojo tanto a memria da msica eclesistica do hinrio cristo, como das tiranas e parceladas, apreciadas ainda quando menino, alm das diversas outras influncias musicais que recebeu ao longo de sua vida, tendo sempre como eixo norteador de suas composies a temtica sertaneza.

Elomar nasceu em Vitria da Conquista em 21 de setembro de 1937. Embora tendo nascido em Vitria da Conquista, passou toda a sua infncia em So Joaquim, cidade menor, com carter mais rural. Seus primeiros contatos musicais foram com a msica eclesistica do hinrio cristo, do culto batista evanglico, religio de sua me, que influenciou bastante o compositor; de se ainda deixar de levar em conta a grande influncia catlica que recebeu, especialmente por parte de sua av paterna. Contudo, ainda criana tambm conheceu e passou a apreciar a msica dos cantadores, violeiros da regio, os menestris errantes, especificamente Z Krau, Z Guel e Z Serrad cujos temas e estrutura de seus repertrios se afastavam dos da msica eclesistica; estes menestris utilizavam instrumentos malvistos na poca como a viola, o violo e a sanfona. Compunham parcelas e tiranas e alm disso o tema de suas composies eram freqentemente as narrativas picas. Foi ainda menino que Elomar aprendeu os primeiros acordes de violo, elegendo-o desde esse tempo como o seu instrumento.

Em 1954, Elomar mudou-se para Salvador para cursar o cientfico, com um intervalo em 1956 quando voltou sua cidade natal para servir o exrcito, este perodo foi importante em sua formao musical, pois ao voltar Vitria da Conquista, longe de obrigaes com os estudos, pde estabelecer um contato maior com a msica nacional urbana, a seresta, o samba e o tango. Concluiu o curso cientfico em 1957. L pelos dezessete anos j apreciava bastante as novelas de cavalaria, as quais dedicava horas de leitura; foi com essa mesma idade que comeou suas composies literrias e musicais. Em 1959, na cidade de Salvador, ingressou no curso de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1964. Nessa poca tambm freqentou durante um curto espao de tempo a Escola de Msica desta mesma universidade.

Assim que se formou, Elomar voltou para o serto, com o plano de se firmar na profisso, atingindo certa estabilidade econmica, para ento poder dedicar-se totalmente msica. Por conseguinte sua produo musical s comeou a realmente se expandir na dcada de 70, quando passou a compor mais, deixando o trabalho como arquiteto um pouco de lado. Contudo, s colocou sua profisso de arquiteto realmente em segundo plano na dcada de 80, quando passou a firmar-se mais profundamente como compositor, decidido a levar o seu cancioneiro de palco em palco pelo resto do pas.

A escolha de Elomar se deu tambm pelo fato de suas composies no se enquadrarem de modo total a um modelo j padronizado do que se espera que venha a ser a msica nordestina, pois sua obra rene peras, antfonas, concertos, sinfonias, galopes estradeiros, sem esquecer do grande ciclo do cancioneiro. Essa fuga, mesmo que no absoluta, de um esteretipo musical suscitou a possibilidade de se questionar modelos fixados h tempos que forjaram a idia da msica popular brasileira, cujo termo deve ser localizado historicamente e no entendido como natural. Nossa pretenso atravs do trabalho de Elomar penetrar num universo cultural determinado, o serto baiano, num tempo igualmente determinado, dcadas de 60/70/80, pois entendemos que a msica de Elomar interpretao individual de seu mundo, interpretao esta que, contudo, permeada por representaes que o compositor compartilha com a sua coletividade.

JUSTIFICATIVA

P

artindo do princpio de que a msica uma excelente fonte para a anlise historiogrfica, porm ainda pouco utilizada como tal e ao notarmos a escassez de trabalhos sobre a msica brasileira dita popular, sentimos a necessidade de trazer tona algumas reflexes sobre este tema. Nossa inteno propor que a msica deixe o seu lugar de instrumento auxiliar da pesquisa histrica, para ocupar o de objeto principal da anlise. As letras das msicas, entendidas aqui como discursos musicais, carregam as leituras que o compositor faz da poca em que vive, transformando-se assim em um outro meio de atingirmos uma dimenso da realidade qual se refere.

Ao escolhermos a msica brasileira como nosso objeto de investigao sabemos que estamos trilhando um caminho ainda pouco explorado na Histria, sendo assim, uma de nossas intenes colocar a proposta de que haja uma abertura ainda maior de fontes com as quais o historiador possa trabalhar, demonstrando com este trabalho a pluralidade de registros que podem trazer o passado em suas diferentes faces, afinal tais registros, sejam eles uma partitura musical, uma pintura ou um registro oficial de falecimento, tambm so, eles mesmos, o passado que se deseja vislumbrar. Tal abertura talvez possa vir a proporcionar ao pesquisador uma maior flexibilidade em seu trabalho, alm de incentivar a interdisciplinaridade, que ao contrrio de pulverizar a investigao, possa dar a esta novas nuances.

Pensamos pois ser possvel traar uma histria cultural tendo a msica como fonte de investigao. Atravs de um recorte espacial/temporal, pretendemos tomar conhecimento de um universo cultural brasileiro, o universo do serto nordestino, apropriado pelo compositor Elomar Figueira Mello, que traduz suas impresses, suas vivncias, seu tempo, em composies que falam daquele tempo tanto quanto qualquer documento considerado histrico.

A anlise do repertrio de Elomar possibilita a desmitificao da msica nordestina assim como da prpria regio, que por vezes mostrada atravs de alegorias, exotismos, caricaturas, categorias muitas vezes forjadas pela indstria cultural. Quando no, relegada ao segundo plano ou mesmo esquecida. Ao falarmos do serto nordestino (no caso especfico, baiano), estamos falando de um Brasil que na maior parte das vezes estereotipado pelo discurso oficial, pois as noes de progresso, civilizao e modernidade o relegaram a um lugar de imobilidade no quadro institudo como a Histria do Brasil. Dessa maneira que grande parte dos discursos que tratam desse universo esto carregados de modelos pr-fixados, tirando-lhe sua historicidade, suas especificidades, sua dinmica cultural, deslocando o homem sertanejo de seu tempo e seu espao, transformando-o quase num estandarte.

Situando o compositor dentro de seu tempo e espao, procuraremos refletir sobre algumas formas que este encontrou para falar de seu presente, de suas experincias, tornando-o um indivduo imerso em seu tempo, em sua historicidade. No pretendemos fazer de Elomar um smbolo do homem sertanejo; ao elegermos este compositor, o fizemos primeiro porque nos agrada a maneira como ele retrata seu mundo, o modo como compe e encara o fazer musical, contudo o que pesou mais fortemente na escolha foi justamente a forma como ele trabalha com o imaginrio medieval ibrico, utilizando-o como um meio para falar sobre seu tempo, seus anseios, suas impresses do universo em que est inserido.

QUADRO REFERENCIALC

omo abordagem de nosso objeto de pesquisa utilizamos, primeiramente, as noes de Histria Cultural do historiador Robert Darton. Segundo o autor, atravs de uma variedade de documentos possvel mostrar como numa determinada poca e local as pessoas pensavam, sentiam e atribuam valor ao mundo que as cercava. Seria uma espcie de histria com um vis antropolgico, ou seja, uma histria que procura ouvir as vozes do passado como os antroplogos estudam as culturas diferentes da sua, considerando a alteridade, sabendo que alm da sua existem vrias outras maneiras de se conceber o mundo. Esta histria de carter etnogrfico, como a designa o prprio autor, tenta penetrar no pensamento do homem comum. Como, distante dos discursos oficiais, as pessoas percebiam seu universo e quais as estratgias que, fornecidas por sua cultura, utilizavam para viver.

A noo de leitura que o autor prope bastante interessante para este trabalho, pois partindo do princpio que assim como um texto filosfico ou uma comemorao possam ser lidos e servir de fonte para a investigao de uma determinada cultura, acreditamos que a msica tambm possa servir para o mesmo fim.

No caso desta pesquisa o universo cultural a ser estudado o serto baiano, a poca, dcadas de 60/70/80, as fontes documentais, algumas canes previamente selecionadas do compositor baiano Elomar Figueira Mello. A pretenso no tipificar o compositor como o homem do serto, mas sim perscrutar estas canes a fim de entender o que importante para o compositor, o que ele valoriza, quais os seus desejos, smbolos que ele provavelmente compartilha com o grupo no qual est inserido atravs do que Robert Darton chama de idioma geral:

(...) Comea com a premissa de que a expresso individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensaes e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possvel descobrir a dimenso social do pensamento e extrair a significao de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, at abrir caminho atravs de um universo mental estranho.

Lembra o autor ainda que a partir da investigao da cultura possvel perceber como se do os arranjos no campo das relaes sociais, pois a cultura forja vises de mundo, sendo que as pessoas pertencentes a uma sociedade, mesmo levando em considerao diferenas sociais, econmicas, partilham em menor ou maior grau os mesmos significados, em outras palavras, as nuances pessoais que determinados atores do as suas produes, no apagam as marcas dos esquemas compartilhados socialmente, garantia de se produzir sentidos socialmente plausveis.

Neste sentido tambm lanaremos mo das reflexes do historiador Roger Chartier sobre histria cultural e sua profunda ligao com as representaes sociais. O autor entende que o objetivo da histria cultural tentar identificar como uma realidade social construda num determinado momento, no podendo ser dissociada das representaes que a permeiam, pois como numa via de mo dupla a coletividade imprime sentidos realidade assim como a prpria realidade criada a partir desses sentidos, da no se poder separar os discursos dos locais onde so proferidos, o autor explica que,

(...) Desta forma, pode pensar-se uma histria cultural do social que tome por objeto a compreenso das formas e dos motivos ou, por outras palavras, das representaes do mundo social que, revelia dos atores sociais, traduzem as suas posies e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela , ou como gostariam que fosse.

Pode-se deduzir ento que as representaes sociais no tem um nico sentido, podendo ser reapropriadas por novos atores em realidades diferenciadas.

Outro referencial importante para este trabalho, no qual baseamos parte de nossa proposta, so alguns estudos sobre msica brasileira da historiadora Maria T. Negro de Mello. No texto Que qui tu tem, canrio? , a autora faz algumas leituras da obra do compositor Xangai, que inclusive parceiro de Elomar. A autora encara o repertrio do compositor como discursos musicais e estes como fonte de pesquisa histrica. Em seu entendimento,

(...) O argumento norteador funda-se no entendimento de que o estoque do cancioneiro popular, ao recolher do cotidiano temas e situaes diversas para desenvolve-los e devolve-los em forma de arte, constri, ademais, um arquivo de potencial inestimvel, aberto investigao, (...)

Deste modo, Thereza Negro ressalta a importncia da investigao histrica se casar com outras disciplinas. No caso da tentativa de se traar uma histria cultural, a necessidade do pesquisador lanar mo de conhecimentos outros, especialmente a antropologia, se faz premente.

Em outro texto, tambm sobre msica brasileira, no qual analisa o trabalho do compositor Adoniram Barbosa a autora ressalta outras importantes nuances para a anlise historiogrfica que possua a msica como fonte. Um dos pontos ressaltados a necessidade de se refletir sobre o local de produo do discurso musical, local este onde o cotidiano forjado e que assim transposto para a composio. Outro aspecto relevante abordado pela autora justamente o que se baseia o imaginrio. Em seu entendimento este no somente constitudo pela experincia do dia-a-dia mas tambm em sonhos e desejos, e nesse sentido ele no s reproduz a experincia vivida, como a reinventa.

A educadora Llian do Valle, em seu livro A Escola Imaginria, dedica um captulo aos conceitos de imaginrio em uso atualmente propondo uma reviso dos mesmos. Consideramos sua abordagem sobre o tema importante para o nosso trabalho, pois entende o imaginrio social como modo de criao, instituio da sociedade, no qual este expresso coletiva que possibilita criaes individuais reatualizadoras da realidade, que de todo modo no se configura como museu de representaes, sendo importante dar-lhe historicidade.Sobre as prticas discursivas que construram uma idia de Nordeste, nos basearemos no livro A Inveno do Nordeste e outras artes de Durval Muniz de Albuquerque Jnior. O autor prope uma reflexo sobre os discursos forjadores da noo estereotipada do Nordeste e dos nordestinos, noo esta que habita no s o imaginrio social do Pas como reafirmada e reatualizada incessantemente pela mdia.

A partir de 1910 e com maior intensidade nas dcadas de 30 e 40, emergiu no Brasil a construo de um ideal nacional que para se legitimar necessitava de noes como identidade nacional e/ou regional, reafirmadas em grande parte pelo surgimento da instituio Msica Popular Brasileira. Nesse mesmo momento percebe-se tambm os primeiros esboos do que viria a se constituir como Regio Nordeste. A idia de um espao geogrfico como formador e determinador das caractersticas de seus habitantes a partir de traos os mais superficiais fundadora da noo de identidade, nesse sentido a regio historicizada de maneira que se possa localizar as origens da sua identidade, conferindo-lhe continuidade e homogeneidade, nesse aspecto o autor argumenta que:

O procedimento que preside a Histria Regional, o de definir uma regio, um espao geogrfico ou um espao de produo, como um a priori, que anacronicamente remetido para antes da sua prpria constituio, sendo transformado numa transcendncia, naturalizado, no leva em conta o fato de que uma poca ou um espao no preexistem aos enunciados que os exprimem, nem s visibilidades que os preenchem. (...)

O autor entende que assim como a prpria noo de regio histrica, o nordeste e o nordestino tambm o so e aparecem no Brasil justamente quando o discurso nacionalista se torna mais evidente.

Outro ponto importante ressaltado pelo autor o de que a criao de uma regio se d mais no plano cultural do que no poltico, por isso acredita que a anlise de imagens confeccionadas tanto pelo discurso intelectual assim como pelo artstico importante, pois muitas vezes essas imagens fundamentam ou reafirmam as noes de Nordeste como espao que no acompanha a histria do Pas que ficou margem da modernidade e da civilizao, preso aos caprichos da natureza e o nordestino, especialmente o sertanejo, como o matuto, o ingnuo.

A leitura do livro A Inveno do Nordeste, ganha relevncia para a proposta aqui apresentada, pois entendemos que as msicas de Elomar algumas vezes tendem a fugir ao lugar comum do cenrio nordestino descrito na maioria das expresses artsticas que a ele se dedicam.

Sobre a arte o autor ressalta sua importncia no sentido que esta pode atravs de falas mltiplas, conferir materialidade ao Nordeste, reafirmando seu esteretipo ou ao contrrio, contestando-o.

Para uma investigao do eco do imaginrio medieval no imaginrio nordestino (embora este ponto merea ressalvas, inclusive no que diz respeito a um Imaginrio Nordestino), nos basearemos na obra O Canto e a Memria de Silvano Peloso. O autor, atravs de algumas manifestaes culturais, analisa como muitas legendas europias, mais precisamente portuguesas e espanholas, chegaram ao Brasil atravs principalmente da tradio oral e aqui foram e continuam sendo recriadas, atendendo s exigncias de novos tempos e espaos.

No que tange a anlise dos aspectos culturais da Idade Mdia, presentes nas fontes deste trabalho, ainda que no seja nosso objetivo um estudo aprofundado desta poca, procuraremos refletir sobre as apropriaes das representaes medievais por Elomar, eventualmente traando paralelos com os significados destas representaes no mundo europeu-medievo. Basearemos nossas reflexes principalmente na obra A Civilizao do Ocidente Medieval de Jacques Le Goff, na qual o autor interpreta com maestria signos e significados pertencentes ao imaginrio medieval. Para auxiliar uma anlise mais pontual da simbologia medieval utilizaremos o Dicionrio da Idade Mdia. Os glossrios contidos nos encartes dos discos tambm serviro como fonte interpretativa desta pesquisa.

Um ltimo aspecto, mas no menos importante, a relao do compositor com a dita indstria cultural. Foram de grande valia, para a reflexo acerca do tema, as noes trazidas por Muniz Sodr em seu livro Reinventando a Cultura. O autor entende que a economia capitalista tende a transformar obras simblicas, artsticas, em mercadoria cultural, pois no mundo ocidental atual, a cultura em suas diversas manifestaes tambm pode ganhar valor de troca, de bem de consumo, de acordo com a lgica da integrao capitalista. Neste sentido tanto as condies de produo, de consumo, assim como o contedo das obras podem ser profundamente alterados, perdendo especificidade, originalidade ao mesmo tempo em que so homogeneizados, padronizados, o que facilita a sua divulgao e comercializao. Contudo, o autor acredita no na existncia de uma nica e imperativa indstria cultural, mas sim em vrias indstrias da cultura que agem de acordo com o grau de interveno capitalista, o que imprime discusso outras nuances relativas aos efeitos destas indstrias, pois por mais que tendam a hegemonia, no se pode deixar de considerar as brechas, os espaos que estas no conseguem abarcar. Nesse ponto Sodr explica,

O desafio da produo simblica, na verdade o desejo humano de sensibilidade profunda em face do real, hoje levar a obra a gerar suas demandas fora da sistematizao requerida pela realizao do valor do capital (que comanda desejos/necessidades, codifica as diferenas e faz do imaginrio mera alavanca de consumo) no interior de um espao social mediatizado, em que a tecnologia j aparece capaz de produzir o seu prprio discurso sobre o mundo. E em que a estetizao generalizada da vida social tende a uma apologia paralisante do que existe e se pe a servio exclusivo do mercado.

Pertinentes ainda so as propostas do antroplogo, musiclogo e entnomusiclogo Jos Jorge de Carvalho, em seu ensaio Transformaes da Sensibilidade Musical Contempornea. Neste trabalho o autor reflete sobre as mudanas na sensibilidade musical no mundo ocidental neste fim de sculo, a partir principalmente das transformaes na tecnologia da produo musical ocorridas nas ltimas dcadas. Um de seus primeiros questionamentos , justamente, acerca do lugar da msica e dos conceitos forjadores do fazer musical na atualidade. Talvez um dos principais pontos tocados por Jos Jorge para esta pesquisa seja o universo miditico e a homogeneizao que este imprime ao gosto musical, ou seja, ainda que um maior acesso a diversidade musical seja positivo, as tecnologias de gravao e reproduo dos variados estilos baseiam-se num gosto padronizado, o qual obscurece variaes sonoras, fazendo com que toda msica parea a mesma. Alm disso a midiatizao oferece ao consumidor o produto acabado, sem dar a este a oportunidade de conhecer o processo, o que no entendimento do autor significa,

(...) A surgem as crises nos cdigos de sensibilidade inter-culturais: o ouvinte apreende apenas como um produto acabado e no como processo, social e cultural, que se desenvolve, na verdade, como um inter-texto, a realidade sonora funcionando apenas como uma abstrao analtica a posteriori. Da se pensar que o resultado da absoro de estilos musicais tradicionais pela mdia muitas vezes estril. Assim, como uma das facetas das composies de Elomar a sua no-absoro pelo universo miditico, as propostas de Jos Jorge de Carvalho mostram-se bastante enriquecedoras, pois num mundo no qual a tecnologia torna-se cada vez mais um imperativo, mesmo acreditando que inovaes tecnolgicas possam ser por vezes produtivas, as possibilidades de fuga de modelos, padres, engessadores da criatividade, para a construo de uma sensibilidade musical deveras pluralista apresentam-se altamente interessantes.

PROBLEMATIZAO

U

ma das questes que pretendemos levantar com esta pesquisa em que sentido Elomar utiliza deste imaginrio medieval para falar de seu presente? De que modo o compositor lana mo de outras representaes de origem no medieval e quais so elas? Ele utiliza smbolos medievais para reafirmar a imagem do serto como espao mstico, medievalizado, preso s tradies e aos ciclos da natureza ou ao contrrio, ao utilizar tais smbolos acaba por recriar esta mesma imagem, pois trabalha com novos elementos, fugindo assim a esteretipos j h tempos arraigados no imaginrio nacional? Ou ainda transita entre os dois, reafirmando e desconstrundo esteretipos, nas correntes do imaginrio e contra-imaginrio?

Procuraremos questionar a relao de Elomar com a indstria cultural. Ser que a resistncia do compositor massificao a nica responsvel pela no-absoro do mesmo, aos grandes meios de comunicao? Por que mesmo fazendo uso de categorias que forjaram o Nordeste, como a seca, a misria, o xodo, Elomar no est em consonncia com outros compositores que retratam a mesma regio e que conseguiram espao na mdia?

APRESENTAO DE FONTES PRIMRIAS

O Violro (1968)

V cant no canturi primero as coisa l da minha mudernage qui mi fizero errante e violro eu falo sro i num vadiage i pra voc qui agora est mi vino juro int pelo Santo Minino Vige Maria qui ve o qui eu digo si f mintira mi manda um castigo Apois pro cantad i violero s hai treis coisa nesse mundo vo am, furria, viola, nunca dinhro viola, furria, am, dinhro no Cantad di trovas i martelo di gabinete, ligra i moiro ai cantad j curri o mundo intro j int cantei nas prtas di um castelo dum rei qui si chamava di Juo pode acridit meu companhro dispois di t cantado u dia intro o rei mi disse fica, eu disse no

Si eu tivesse di viv obrigado um dia inantes dsse dia eu morro Deus feis os homi e os bicho tudo frro j vi iscrito no Livro Sagrado qui a vida nessa terra u'a passage i cada um leva um fardo pesado um insinamento qui derna a mudernage eu trago bem dent' do corao guardado Tive muita d di num t nada pensano qui sse mundo tud't mais s dispois di pen pelas istrada beleza na pobreza qui vim v vim v na procisso u Lvado-seja i o malassombro das casa abandonada cro di cego nas porta das igreja i o rmo da solido das istrada Pispiano tudo du cumo eu v mostr como faiz o pachola qui inforca u pescoo da viola rivira toda moda pelo avsso i sem arrepar si noite ou dia vai longe cant o bem da furria sem um tusto na cuia u cantad canta int morr o bem do am.

Esta cano est no primeiro compacto de Elomar de 1968 e tambm aparece em seu segundo disco Das Barrancas do Rio Gavio de 1972, produzido no estdio JS Gravaes Bahia.

Cantiga de Amigo (1972)

L na casa dos CarneirosOnde os violeiros vo cantar louvando vocEm cantiga de amigoCantando comigo somente porque voc Minha amiga, mulherLua nova do cu que j no me querDezessete minha contaVem amiga e conta uma coisa linda pra mimConta os fios dos teus cabelosSonhos e anelosConta-me se o amor no tem fimMadre amiga ruimMe mentiu jurando amor que no tem fimL na casa dos CarneirosSete candeeiros iluminam a sala de amorSete violas em clamores, sete cantadoresSo sete tiranas de amor para a amigaEm florQue partiu e at hoje no voltou Dezessete minha contaVem amiga e contaUma coisa linda pra mimPois na casa dos CarneirosViolas e violeirosS vivem clamando assimMadre amiga ruimMe mentiu jurando amor que no tem fim

Cantiga de Amigo est presente em seu segundo disco Das Barrancas do Rio Gavio de 1972, produzido no estdio JS Gravaes Bahia.

O Rapto de Juana do Tarugo (1968)

Infrentei fsso muralha e os ferros dos portais s pela graa da gentil senhora filtrando a vida pelas gros de ampulhetas mortais d'alm de tras-os-Montes venho por campo de justas honrando este amor me expondo Sanha Sanguinria de crtes cruis infrentei viles no Algouo e em Senhores de Biscaia fidalgos corpos de armas brunhidas no temo escorpies cruis carrascos vosso pai enfreado porta do castelo tenho meu murzelo ligeiro e alazo que em lidas sangrentas bateu mil mouros infiis O Senhora dos Sarsais minh'alma s teme ao Rei dos reis deixa a alcva vem-me janela O Senhora dos Sarsais s por vosso amor e nada mais desa da trre Nala donzela venho d'um reino distante, errante e menestrel inda esta noite e eu tenho esta donzela minha espada empenho a uma de mais pura das vestais aviai pois a viagem longa e j vim preparado para vos levar j tarda e quase o minguante est a morrer nos cus O Senhora dos Sarsais minh'alma s teme ao Rei dos reis deixa a alcva vem-me janela O Senhora dos Sarsais s por vosso amor e nada mais desa da torre Juana to bela Naila donzela, Juana to bela.

Esta cano foi gravada no LP Na Quadrada das guas Perdidas de 1978, produzido pelo estdio do Seminrio de Msica da UFBA.

Gabriela (1983)

So treis sorte so treis sina na istrada dsse cristo so treis irirm granfina e de punhal na mo d'ua madrasta avarenta o home nun iscapa no cuma o cego na trumenta l vai o cristo so treis sorte so treis sina ai pobre cantad so treis irirm firina a Morte a Saudade a D O Gabriela na Lagoa Bela lua minguante as eguas vo sonh so eguas baias brancas amarelas so poldas pampas lindas gabrielas monjas cavalgadas vindas de estrelas muito recuadas Lagoa da Porta nas horas mortas o viado branco vem suzin beb.

Gabriela foi gravada nas Cartas Catingueiras de 1983, LP produzido pela gravadora e editora Rio do Gavio.

ENSAIO

N

o comearemos este ensaio amarrando-o a um nico fim. Nosso impulso primeiro partiu da tentativa de traar uma histria cultural do serto baiano, utilizando como fonte quatro msicas de Elomar, nas quais percebeu-se uma forte influncia do imaginrio europeu-medieval, o que nos motivou no s a questionar de que modo tais influncias compuseram e compem a cultura sertanejo-nordestina, mas principalmente como foram e so apropriadas e reatualizadas pelo compositor. Entende-se que Elomar faz uso de representaes que so compartilhadas na sua coletividade, e ainda que imprima caractersticas particulares a estas. As suas composies so um meio que podemos utilizar para alcanarmos uma dimenso da realidade retratada em suas msicas. Para alm deste nosso objetivo principal, e partindo dele, procuraremos refletir sobre os esteretipos atribudos ao homem sertanejo-nordestino e ao prprio Nordeste, pois mergulhar no universo particular de Elomar pode ser uma maneira de dar-lhe especificidade, historicidade.

Elomar comeou a compor bem cedo em sua vida; entretanto no final da dcada de 60 e entre as dcadas de 70 e 80 que passa a intensificar sua produo musical. Esse perodo da histria do Brasil foi marcado, entre outros, por uma ditadura militar, juntamente com um forte movimento de resistncia por parte de intelectuais, artistas e outros setores da sociedade a essa ditadura; foi a poca da efervescncia da msica de protesto, dos grandes festivais, do exlio. Contudo Elomar, em meio a ditadura militar, continuou falando em sua msica, da sua terra, dos problemas que a sua comunidade enfrentava, descrevendo paisagens, sentimentos, sonhos, utilizando inclusive um dialeto, elementos muito prprios de um mundo no qual ele estava inserido. De acordo com o senso comum poderia se pensar ento que talvez o serto baiano no tivesse sofrido com a ditadura, ou que o Nordeste de fato um espao ahistrico, que no acompanha o tempo de seu Pas devido a suas dificuldades to peculiares. Entretanto acreditamos que outros questionamentos so possveis, como por exemplo de que Elomar no tenha falado da ditadura por escolha prpria, no porque no achasse importante, mas por perceber que existem outras formas de resistncia.

A primeira msica de Elomar a ser analisada, O Violro, de 1968, est presente tambm em um de seus primeiros discos, Nas Barrancas do Rio Gavio. Mesmo no possuindo muitas referncias Idade Mdia, a anlise nos pareceu oportuna pelo jogo que o compositor estabelece entre elementos presentes na cano:

(...)Apois pro cantad i violero s hai treis coisa nesse mundo vo am, furria, viola, nunca dinhro viola, furria, am, dinhro no Cantad di trovas i martelo di gabinete, ligra i moiro ai cantad j curri o mundo intro j int cantei nas portas di um castelo dum rei qui si chamava di Juo pode acridit meu companhro dispois di t cantado u dia intro o rei mi disse fica, eu disse no(...) (O Violro)

Martelo, gabinete e moiro so gneros da cantoria nordestina, j a trova, alm de ser um gnero de cantoria, tambm um elemento claramente medieval, difundido a partir dos sculos XII a XIII na Europa. Os versos j int cantei nas portas di um castelo dum rei qui si chamava di Juo apresenta duas referncias explcitas Idade Mdia, a primeira, o castelo, tipo de fortificao que centro de domnio social e econmico, e a segunda, a referncia feita a um rei Joo, talvez Joo I fundador da dinastia de Avis ou apenas uma simples aluso longa linhagem de reis portugueses chamados Joo. A referncia ao trovador medieval est presente implicitamente no resto da msica, especialmente quando Elomar descreve o ideal do cantador/violeiro, que levar sua arte a lugares distantes sem se prender a nenhum deles. Neste sentido h uma equivalncia ao ideal daqueles trovadores, cuja inteno era igualmente apresentar sua msica por vrios reinos.

Traando um paralelo entre Elomar e os trovadores do medievo percebemos uma semelhana na utilizao da linguagem em suas canes. Os trovadores medievais fizeram uso da lngua vulgar, ou seja, da lngua comum, como forma de popularizao de suas canes. Elomar fazendo uso do dialeto sertanezo torna seu repertrio acessvel queles que dele compartilham. O compositor utiliza-se de seu dialeto no s no sentido de popularizao, mas principalmente construindo uma especificidade que, sendo ou no sua inteno, torna-se uma barreira para a absoro de seu repertrio pelas indstrias culturais.

(...)Tive muita d di num t nada pensano qui sse mundo tud't mais s dispois di pen pelas istrada beleza na pobreza qui vim v(...)

Nestes versos Elomar caracteriza bem a dor, os problemas enfrentados pela sua coletividade. A seca e a misria so elementos muito presentes no imaginrio nordestino, ainda que tambm componham uma gama de esteretipos impostos regio. Contudo, ao falarmos de esteretipos, no se pretende dizer que no exista misria, ou que a mesma foi inventada. Tais noes tambm constrem e fazem parte do imaginrio, assim como imprimem sentidos realidade, ou melhor, forjam a realidade. O problema est na naturalizao dos conceitos, que acabam por aprisionar os sujeitos aos lugares a eles destinados no discurso hegemnico, sendo vistos a partir da como um bloco monoltico, sem movimento, sem histria. Elomar ao ver a beleza do modo de vida do sertanejo, para alm de reafirmar o esteretipo, o subverte no porque se submeta s imposies do mundo, mas porque aprendeu a apreciar um modo diferente de se conceber a vida.

Em cantiga de amigo, cantando comigo somente porque voc minha amiga, mulher (Cantiga de Amigo). Composio de 1972, tambm faz parte do disco Das Barrancas do Rio Gavio. Nas cantigas de amigo tradicionais, quem fala a mulher e no o homem. O trovador compe a cantiga, mas o ponto de vista feminino, mostrando o outro lado do relacionamento amoroso - o sofrimento da mulher espera do namorado (chamado "amigo"), a dor do amor no correspondido, as saudades, os cimes, as confisses da mulher a suas amigas, etc. Os elementos da natureza esto sempre presentes, alm de pessoas do ambiente familiar, evidenciando o carter popular da cantiga de amigo. Em Cantiga de Amigo, Elomar apresenta os mesmos elementos que o tipo de composio tradicional. Assim como nas demais canes de amigo no a descrio pormenorizada do corpo da amiga objeto da ateno tanto de Elomar quanto dos poetas medievais. As aluses ao corpo so sempre mais sutis, evitando referncias explcitas, um claro exemplo quando Elomar canta:

(...)Vem amiga e conta uma coisa linda pra mimConta os fios dos teus cabelosSonhos e anelosConta-me se o amor no tem fimMadre amiga ruimMe mentiu jurando amor que no tem fim(...)

O cabelo solto da mulher tem no mundo medieval um forte valor ertico, que normalmente se liga a uma ao. O fato da mulher estar com os cabelos soltos sugere na poesia medieval a virgindade, que se atrela idia da moa ser donzela, juntamente com o fato do cantador pedir a revelao dos desejos e sonhos da moa, d possibilidades mais reais ao amor.

No entanto h uma inverso dos papis masculinos e femininos. Na presente cano o amor visto por uma perspectiva masculina, assim como a dor do abandono, pois quem parte no caso a figura feminina. A Casa dos Carneiros o nome da fazenda de Elomar, na qual a cano se passa, lugar no qual o homem abandonado compartilha com os amigos violeiros seus sentimentos, assim ao colocar aspectos de seu mundo, Elomar particulariza e reatualiza a forma da cantiga de amigo.

Vindas de estrelas muito recuadas a apropriao que Elomar faz das Parcas, seres da mitologia grega responsveis por fiar, tecer e cortar o fio da vida, em sua msica Gabriela. A cano se inicia com os seguintes versos:

So treis sorte so treis sina na istrada dsse cristo so treis irirm granfina e de punhal na mo d'ua madrasta avarenta o home nun iscapa no cuma o cego na trumenta l vai o cristo so treis sorte so treis sina ai pobre cantad so treis irirm firina a Morte a Saudade a D (...)

Aqui as trs irms transformam-se na Morte, na Saudade e na Dor, possivelmente seres mais prximos da realidade do compositor. A madrasta avarenta pode ser uma referncia morte, mas tambm a figura da madrasta m pode ter sua origem nos contos infantis medievais. Na segunda parte da msica:

O Gabriela na Lagoa Bela lua minguante as guas vo sonh so guas baias brancas amarelas so poldas pampas lindas gabrielas monjas cavalgadas vindas de estrelas muito recuadas Lagoa da Porta nas horas mortas o viado branco vem suzin beb.

A msica aparece estruturalmente diferente nessa segunda parte. H uma Gabriela que no sabemos quem , ficando misteriosas tambm as referncias s guas baias brancas amarelas que transformam-se em monjas; talvez nesse ponto Elomar construa ou aproprie-se de um bestirio. No entanto, o tema do veadinho branco aparece no mundo do romance de encantamento medieval e tambm na histria do Imperador Carlos Magno, cujo texto sabido como uma grande influncia da cultura sertanejo nordestina.

Na mais medieval de suas msicas aqui estudadas, O Rapto da Joana do Tarugo, Elomar conta a saga de um cavaleiro que vai em busca de sua amada donzela, disposto a enfrentar os mais diversos desafios. Estruturada como uma cano de amor corts, estilo medieval que teve seu pice no sculo XII, constam da composio elementos clssicos do imaginrio medieval ibrico, h fosso, muralha e portas de castelo. Trs os Montes uma regio portuguesa, assim como o Algouo, sendo Biscaia uma regio na Espanha. Nestas regies o cavaleiro Elomar participou de combates com outros cavaleiros em justas e chegou a enfrentar os mouros na Guerra de Reconquista, longo processo que vai do sculo XI ao final da Idade Mdia.

A figura do cavaleiro durante toda a Idade Mdia foi usada como exemplo de dignidade, honra, justia e de virtudes em geral. Inicialmente se caracterizaram por homens livres dispostos a serem fiis ao rei e lutarem em seu nome, que posteriormente passaram a constituir uma casta aristocrata na sociedade. As justas eram competies nas quais somente os cavaleiros estavam aptos a participar, demonstravam suas habilidades no manejo das armas e no combate. Tambm havia ocasies nas quais as justas se caracterizavam pela disputa do amor das donzelas e/ou pela afirmao da honra destes cavaleiros.

O Senhora dos Sarsais minh'alma s teme ao Rei dos reis deixa a alcva vem-me janelaO Senhora dos Sarsais s por vosso amor e nada mais desa da trre Nala donzela venho d'um reino distante, errante e menestrel inda esta noite e eu tenho esta donzela minha espada empenho a uma de mais pura das vestais

A sarsa um tipo de vegetao que muito comum em torno dos castelos em Portugal. A donzela reafirmada pela figura das vestais, virgens responsveis pelo culto deusa Vesta na mitologia romana. Fica tambm claro nesta composio o grande fervor religioso do msico, nas suas muitas citaes ao Rei dos reis.

Porque Elomar comps uma cano claramente medieval, ou porque faz uso de tal simbologia no o que este trabalho pretende descobrir. O que nos interessa a forma de utilizao destas e de outras representaes pelo compositor, pois atravs desta dinmica social representacional que o mundo atua nos sujeitos e os sujeitos atuam no mundo, reatualizando mitos, forjando realidades histricas. Lanando mo de elementos pertencentes ao seu universo, Elomar tece uma rede vasta de significaes, cujo sentidos muitas vezes parecem opacos para quem est mais distante. Sua msica est impregnada de suas leituras, de seus estudos, mas principalmente carregam suas impresses cotidianas, impresses estas que no podem ser colocadas fora da histria.

As especificidades de um tempo e um espao trazidas pelo compositor nas suas msicas, possibilitam o no enclausuramento destes mesmos tempo e espao, libertando-os de esteretipos a partir do momento que passam a ser encarados historicamente. O serto baiano apropriado por Elomar o espao primordial, no qual afloram seus sentimentos, seu modo de ver o mundo, espao este amarrado aos ditames da natureza, entretanto seu lugar amado, do qual no pretende nunca sair. tambm espao de trovadores, cavaleiros, donzelas e castelos medievais. Est permeado de smbolos j saturadamente atribudos ao Nordeste. No entanto no podemos permanecer na superficialidade da constatao destes smbolos. Como foi visto, por vezes o prprio significado subvertido, dando ao mesmo signo novos sentidos, estando o compositor no trnsito entre imaginrio e contra-imaginrio.

Ainda relacionado a estes pontos est o fato da no absoro de Elomar pelas indstrias culturais. H uma grande resistncia do autor ao mass-media, fator que deve ser levado em considerao. Contudo pensamos que tanto a linguagem verbal quanto a linguagem musical utilizadas por Elomar tambm apresentam-se como obstculo padronizao, homogeneizao, pr-requisitos para a transformao da obra simblica em mercadoria cultural. Acreditamos que a msica de Elomar encontra-se margem do processo de massificao musical, pois traz consigo caractersticas que se colocam como formas de resistncia. A oposio do compositor modernizao desenfreada, utilizao abusiva da tecnologia, sua exposio em shows altamente performticos justifica o isolamento do msico.

Ao compor tambm sinfonias, peras, gneros da msica erudita, desterritorializa tais gneros, pois os compe utilizando temticas prprias de seu universo, acreditando que no se precisa ser europeu para fazer msica erudita. Deste modo o msico situa-se num entrecruzamento de diversos estilos, os quais maneja de forma magnfica, sendo seu repertrio um deleite para os ouvidos.

Como j foi dito, sabemos que trabalhar com arte, e mais precisamente com a msica como fonte historiogrfica seria um tanto complicado, entretanto neste ponto, gostaramos de encerrar este ensaio parafraseando a professora Thereza Negro, quando diz que o historiador pode e deve ser um artista do mesmo modo que existem artistas impregnados de um senso histrico.

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A Inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 1999.

CARVALHO, Jos Jorge de. Transformaes da Sensibilidade Musical Contempornea. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 11, p. 53 91, outubro de 1999.

CHARTIER, Roger. Histria Cultural. Entre prticas e representaes. RJ/Lisboa: Difel/Bertrand, Brasil, 1990.

DARTON, Robert. Introduo. In: O Grande Massacre de Gatos. Rio de Janeiro:Graal, 1986.

LE GOFF, Jacques. A Civilizao do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa. 1995.

LOYN, H.R. (org.). Dicionrio da Idade Mdia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1997.

MELLO, Maria T. Negro de. Cascariguindum Cotidiano, cidadania e imaginrio na obra de Adoniram Barbosa in Albene M. F. Menezes (org.). Histria em movimento. Temas e Perguntas. Braslia: Thesauros, 1997.

MELLO, Maria T. Negro de. Qu qui tu tem, canrio? Cultura e Representao no repertrio de Xangai in Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Imaginrio e Histria. So Paulo/Braslia: Marco Zero e Paralelo 15, 1999.

PELOSO, Silvano. O Canto e a Memria. Histria e utopia no imaginrio popular brasileiro. So Paulo, Editora tica, 1996.

SODR, Muniz. Reinventando a Cultura. A comunicao e seus produtos. Petrpolis, Ed. Vozes, 1996.

VALLE, Llian do. A Escola Imaginria. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1997.

Gneros de cantoria

Elomar utiliza em muitas de suas composies o dialeto sertanezo, modo como ele designa o falar de sua terra.

Stio: PORTEIRA Oficial de Elomar HYPERLINK "http://planeta.terra.com.br/compras/elomar/biografia.html" http://planeta.terra.com.br/compras/elomar/biografia.html - 31/05/2002.

No utilizaremos o termo popular, no presente trabalho, por acreditarmos que este agrega em si conceitos e valores que no inteno deste trabalho discutir profundamente.

Maria T. Negro de Mello. Qu qui tu tem, canrio? Cultura e Representao no repertrio de Xangai in Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Imaginrio e Histria. So Paulo/Braslia: Marco Zero e Paralelo 15, 1999, p. 153.

Robert Darton. Introduo. In: O Grande Massacre de Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 13 a 18.

Idem, ibdem, p.17.

Roger Chartier. Histria Cultural. Entre prticas e representaes. RJ/Lisboa: Difel/Bertrand, Brasil, 1990, p. 19

Maria T. Negro de Mello. Que qui tu tem, canrio? op. cit., p. 151 a 170.

Idem, ibdem p. 155

Cf. Maria T. Negro de Mello. Cascariguindum Cotidiano, cidadania e imaginrio na obra de Adoniram Barbosa in Albene M. F. Menezes (org.). Histria em movimento. Temas e Perguntas. Braslia: Thesauros, 1997.

Llian do Valle. A Escola Imaginria. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1997. p. 47 a 63

Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 1999. P. 29

Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste. Op. cit., Introduo.

Durval Muniz Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste. Op. cit., p. 151 - 164

Silvano Peloso. O Canto e a Memria. Histria e utopia no imaginrio popular brasileiro. So Paulo, Editora tica, 1996.

Jacques Le Goff A Civilizao do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa. 1995.

H.R. Loyn (org.). Dicionrio da Idade Mdia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1997.

Muniz Sodr. Reinventando a Cultura. A comunicao e seus produtos. Petrpolis, Ed. Vozes, 1996.

p. 101 129.

Muniz Sodr. Reinventando a Cultura. Op. cit., p. 129

Jos Jorge de Carvalho. Transformaes da Sensibilidade Musical Contempornea. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 5, n. 11, p. 53 91, outubro de 1999.

Jos Jorge de Carvalho. Transformaes da Sensibilidade Musical Contempornea. Op. cit., p.57

Jos Jorge de Carvalho. Transformaes da Sensibilidade Musical Contempornea. Op. cit., p. 53

Maria T. Negro de Mello. Que qui tu tem, canrio? op. cit., p. 170

926