25. castelos de areia

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C A S T E L O S D E A R E I A Drama Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 2008

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CCCCAAAASSSSTTTTEEEELLLLOOOOSSSS DDDDEEEE AAAARRRREEEEIIIIAAAA

Drama

Texto de: JULIO CARRARA

Escrita em 2008

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PERSONAGENS:

ELA

ELE

ÉPOCA: Atual

CENÁRIO: Sala de jantar de um apartamento. Uma mesa grande no centro e

duas cadeiras entre outros elementos a critério do cenógrafo.

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CENA 1

(Luz sobe em resistência. Ela está sentada numa cadeira ao lado da mesa. Nesta mesa

estão diversos salgadinhos, doces, bebidas, copos descartáveis e um bolo no centro.

Silêncio absoluto. Ela está impaciente, cruza e descruza as pernas, tamborila com os

dedos no mármore da mesa, levanta-se, olha pela janela, volta ao mesmo lugar, olha

para o relógio até que é surpreendida pelo toque da campainha. Ela se precipita e

imediatamente liga o som, pega alguns copos plásticos que joga no chão.)

ELA

Peraí... já vou...

(Corta o bolo e coloca vários pedaços em diversos guardanapos, joga bebida no chão,

enfim, faz uma zona geral. A campainha soa novamente.)

ELA

Um momentinho.

(Bagunça o cabelo e finalmente vai abrir a porta. Ele entra com um buquê de flores

vermelhas na frente do rosto e canta.)

ELE

Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos

de vida... (Abaixa as flores.) Ué, cadê todo mundo?

ELA

Já foram embora...

ELE

Mas tão cedo?

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ELA

Sabe como é, né? Todo mundo trabalha amanhã. É isso que dá fazer

festa no meio da semana. Mas pra mim, aniversário tem que ser comemorado

no dia...

ELE

(Percebe as flores que ainda estão em suas mãos.) Ah, pra você...

ELA

Obrigada.

ELE

Que chato todo mundo ter ido embora. São dez horas ainda.

ELA

Droga!!!

ELE

O que foi?

ELA

Dez horas... Preciso desligar o som senão os vizinhos vão reclamar do

barulho! (Faz o que diz.)

ELE

É um porre morar em apartamento!

ELA

Né?

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ELE

Além de ficar espremido em poucos metros quadrados não podemos

bater o pé no chão, gritar, ouvir música alta a hora que quiser... Um saco!

(Pausa. Ambos ficam sem assunto e se olham, constrangidos.)

ELA

Quer comer, beber alguma coisa?

ELE

Quero, claro. Tô morrendo de fome!

ELA

Eu te sirvo!

ELE

Pode deixar que me sirvo. Sei me virar sozinho.

ELA

Já que insiste!

ELE

(Imitando um francês.) Champagne, mademoiselle?

(Ao sinal afirmativo da moça, Ele pega as taças, despeja o champagne nelas e brindam.)

ELE

Tchim-tchim... (Batem as taças e bebem. Ele demonstra um prazer enorme ao

ingerir a bebida e depois fica com o nariz bem próximo à taça.) Eu adoro sentir essas

bolinhas do champagne fazendo cócegas na ponta do nariz... É tão bom...

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ELA

Você parece criança!

ELE

Você não sabe o que é bom... Vamos lá, experimente!

ELA

Ai, ai, ai...

ELE

É muito legal! Pode ter certeza!!! (Ela faz como ele.) Não é gostoso?

ELA

(Achando um tédio.) É...

ELE

Pena que a gente não sabe valorizar os pequenos prazeres que a vida

nos oferece.

(Longa pausa. Eles bebem.)

ELE

Veio muita gente na festa?

ELA

Veio. A galera da faculdade, do trabalho... Tinha umas 30 pessoas mais

ou menos... uma turma bem legal.

ELE

Que bom! Queria conhecer essas pessoas. Pena que eles não estão mais

aqui.

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(Longa pausa.)

ELA

Viu a bagunça que deixaram?

ELE

Vai dar um trabalhão pra limpar. Se quiser, amanhã depois do trampo

eu venho pra te ajudar na faxina.

ELA

Não precisa. Amanhã vem a diarista. Ela dá uma geral em tudo.

Obrigada!

(Longa pausa.)

ELE

Vou ligar o som baixinho... Posso?

ELA

Se for baixinho, pode sim!

(Ele liga o som. Ouve-se uma música romântica. Ambos ficam extremamente

constrangidos.)

ELE

Sem comentários!

ELA

Pois é...

ELE

Logo a nossa música...

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ELA

...que faz parte de um passado que eu prefiro esquecer!

(Pausa.)

ELE

Foi tão ruim assim?

ELA

Sempre voltamos ao mesmo ponto.

ELE

E sabe por quê?

ELA

Não sei e nem quero saber!!!!

ELE

Porque fugimos...

ELA

Pronto, começou!!!

ELE

Fugimos, não, você fugiu...

ELA

Eu não fugi de nada...

ELE

Fugiu sim...

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ELA

Se voltar nesse assunto, acho melhor você ir embora.

ELE

E pela milésima vez vamos deixar essa pendência... E nunca vamos

resolver porra nenhuma!

ELA

Será que você não percebe que acabou e que não tem mais volta? Até

quando você vai ficar pegando no meu pé? Eu já lhe disse com todas as letras

que não te quero mais...

ELE

Exatamente. Disse com todas as letras através de um e-mail. Agora eu

quero que você olhe no fundo dos meus olhos e diga que não me quer mais...

Diga!

ELA

(Encarando-o, mas insegura.) Eu não te quero!

ELE

Você fala de uma maneira mas seus olhos dizem outra coisa... Por quê?

ELA

Não sei... Eu não posso corresponder a esse amor da maneira que você

quer...

ELE

Eu te exigi isso?

ELA

Não, mas...

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ELE

Mas o quê?

ELA

Sei lá... Acho melhor você ir embora. Vai ser melhor assim...

ELE

Quem sabe o que é melhor pra mim sou eu...

ELA

(Grita.) E o que é melhor pra você não é melhor pra mim!

(Longa pausa. Ele desliga o rádio.)

ELE

(Calmo.) Ok. Você tem toda razão... Eu fiz muito mal em vir aqui hoje.

ELA

Pelo menos reconhece.

ELE

Mas eu sou burro... Sei que não tenho mais nenhuma chance com você e

continuo insistindo. Mendigando pelo seu amor, pelo seu carinho, pela sua

atenção e o que você faz?

ELA

Para!

ELE

Me despreza... Toda vez que escuto essa merda de música eu tento

pensar em outra coisa, mas você sempre aparece no meu pensamento. Queria

não ouvi-la nunca mais. Mas não tem jeito. Eu ligo a TV, tá passando o

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videoclipe da música, vou almoçar num restaurante e o cantor escolhe para

cantar justamente essa música, ligo o rádio, ouço a música... Ela me persegue e

me traz de volta as lembranças do tempo em que passamos juntos, no

momento onde tudo começou...

ELA

Vamos parar, por favor! Deixa de ser masoquista.

ELE

Você se lembra como a gente se conheceu?

ELA

Já pedi pra você parar...

ELE

A gente tava numa festa, a festa acabou e eu te convidei pra ir lá em

casa. Achei que não fosse aceitar, mas pra minha surpresa, você aceitou. Eu

tinha acabado de sair de uma relação e jurei pra mim mesmo que nunca mais

ia me envolver com ninguém...E ao deitar ao seu lado no sofá, senti uma

vontade louca de te beijar e não tive dúvida.

ELA

Chega!

ELE

E quando colei meus lábios nos seus e você me correspondeu, naquele

exato momento eu joguei no lixo meu juramento. Eu estava completamente

apaixonado... Poderia ser só uma transa, nada mais, mas foi além da

sacanagem. Nossas bocas se encaixavam e aquele vazio que sentia, deixou de

existir.

(Longa pausa.)

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ELE

(Quase implorando.) Volta pra mim?

ELA

Não me pressiona!

ELE

Por que você foge quando eu te procuro? Por que não atende o telefone

quando te ligo? Por que não responde os e-mails ou as mensagens no celular?

ELA

Não sei... Eu tô nervosa, tô confusa!

ELE

Isso não é novidade pra mim... Eu só quero saber por que você não me

atende. Só isso.

ELA

Porque eu não quero te machucar. Pára de me pressionar. Isso não tá

fazendo bem nem pra mim e nem pra você...

ELE

Eu sei.

ELA

O que eu sinto hoje por você não tem a mesma intensidade que tinha no

começo. O tesão acabou... Entenda isso de uma vez por todas!

ELE

Racionalmente eu entendo, mas o que eu posso fazer se esse coração

burro não entende? (Pausa.) Quando você me disse que não me queria mais,

senti o chão sumir debaixo dos meus pés naquela madrugada fria daquele

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maldito 27 de julho. Se eu ficasse em casa mais um pouco, ia enlouquecer. Saí

pra rua. Caminhei a Paulista toda, desci a Consolação, a Ipiranga, a São João.

Eu queria te esquecer, te mandar pro inferno, mas quanto mais tentava, mais

forte você aparecia no meu pensamento, trazendo de volta as mesmas

sensações e a mesma intensidade de tudo o que a gente viveu. E pra

completar, ouvia a droga daquela música. Chorava como uma criança e me

deparava com os olhares curiosos de algumas pessoas tentando decifrar o que

estava acontecendo comigo. E voltei pra casa fazendo o caminho inverso...

Mais de duas horas de caminhada... E desde esse dia, nunca mais fui o mesmo.

E nunca mais serei o mesmo. Mesmo que eu me case, tenha filhos com outra

mulher, o seu perfume vai estar para sempre impregnado nas minhas narinas

e você nunca vai sair da minha cabeça.

ELA

Será que eu vou precisar te expulsar daqui? Você tá sendo

inconveniente!

ELE

Pode me chamar do que quiser, mas eu não saio deste lugar enquanto

não me disser tudo o que se passa com você!

ELA

Então vai ficar falando sozinho... Eu vou pro meu quarto. (Faz menção de

sair.)

ELE

(Segura a mulher abruptamente e a faz se sentar.) Você vai ficar aí!

ELA

(Assustada com a atitude do rapaz.) O que é isso?

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ELE

Isso sou eu... Isso é o que sobrou de mim...

ELA

(Irônica.) Rá, rá, rá! Você quer que eu chore?

ELE

Eu quero que saiba que nunca te esqueci e que nunca vou te esquecer.

Que depois do nosso curto relacionamento saí com muitas mulheres com o

objetivo de tirar você da minha cabeça. A cada boca que beijava era a sua que

queria beijar, a cada abraço que recebia era o seu que queria receber. Por que

eu não consigo te esquecer, hein? Por quê?

(Ele pega mais uma taça de champagne e de uma só vez ingere a bebida. Ambos se

olham por um longo tempo. Ele começa a chorar.)

ELE

Me abraça!

ELA

(Abraçando-o.) Não chora!

ELE

Eu te amo tanto!!!!

ELA

(Colocando o dedo indicador nos lábios dele.) Psiuu!!!!

ELE

Por que acabou?

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ELA

Porque como tudo o que começa, termina um dia... Nós estamos

vivendo momentos diferentes. Você tá na vibe de namorar, casar, ter filhos...

Eu não! Eu tô na vibe de ficar, de não ter compromisso com nada... Lembra o

que você me disse uma vez? Sobre ser livre?

ELE

Eu disse que não temos o direito de prender quem nasceu para ser

livre...

ELA

E pior que isso é atirar num pássaro em pleno vôo. (Pausa.) Eu torço

muito pra que você encontre alguém que te faça feliz. Só que eu não sou essa

pessoa!

ELE

Eu não confio mais em ninguém.

ELA

Por que?

ELE

Não sei. Mas a cada dia que passa, me decepciono mais com as pessoas.

Elas se aproximam por algum interesse, te usam para conseguir o que querem

e depois te jogam no lixo. Você dá o melhor de si para elas, elas te sugam,

sugam, sugam... e um dia, simplesmente viram as costas e vão embora, como

se nada tivesse acontecido. E aos poucos, vão te deletando da sua vida como se

tudo aquilo que vivemos não tivesse a menor importância. Tem pessoas que

esquecem fácil das coisas... Elas, em vez de acrescentarem, substituem as

amizades. Como se dissessem: “Ah, esse aqui não me interessa mais. Agora vou

partir pra outra!” E por aí vai. E se os amigos agem dessa maneira, o que posso

esperar do amor?...

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ELA

(Confusa.) O amor não existe... Tudo é interesse.

ELE

Existe sim... Eu só queria saber o que há de errado comigo. Penso que se

eu fosse um tremendo filho da puta as pessoas iriam me valorizar mais.

ELA

Você tá muito nervoso. Vou pegar um copo de água pra te acalmar...

(Ela vai até a cozinha, mas no meio do percurso dá uma leve torcida no pé.)

ELA

Ai!

ELE

(Correndo até ela.) O que foi?

ELA

Pisei em falso.

ELE

(Amparando-a.) Senta aqui... Vou te fazer uma massagem.

(Ele ajoelha-se no chão e segura com cuidado o pé torcido dela.)

ELE

Tá doendo?

ELA

Um pouco...

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ELE

Se doer, você fala!

(Ele inicia a massagem. Vez ou outra ela solta um gritinho de dor. Ele massageia com

mais cuidado a região dolorida.)

ELE

Foi só uma torçãozinha boba!

ELA

Ainda bem... (Ri, saudosista.)

ELE

O que foi?

ELA

Tava com saudade

ELE

De que?

ELA

Da sua massagem.

ELE

(Irônico, mas num tom de brincadeira.) Ah, pra isso eu presto, né?

ELA

(Idem.) A gente tem que prestar pelo menos pruma coisa na vida...

ELE

O que é bom deixa saudade.

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ELA

(Ri.) Olha que convencido!

ELE

Só agora que você percebeu? Arrogante!!!

ELA

Tem quem goste!

ELE

Quem? Não tô vendo!!!

(Ambos riem. O riso, pouco a pouco vai dando lugar ao silêncio. Ela toma o rosto dele

nas mãos com muita ternura. Ele vai se levantando e beija-a apaixonadamente e ao

mesmo tempo com uma certa dose de violência. Ela retribui. Ouve-se no áudio a

música-tema do casal. Ambos se deitam no tapete. Ela tira a camisa dele e vice-versa.

Luz vai caindo em resistência. Apenas o clarão da lua cheia ilumina a cena. O casal se

beija e se toca. Black-out.)

CENA 2

(Horas mais tarde. Luz sobe em resistência revelando o casal dormindo de conchinha

num colchão. Ela acorda e se assusta.)

ELA

O que foi que eu fiz? (Acordando ele.) Ei, acorda... (Chacoalhando-o.)

ELE

Só mais um pouquinho...

ELA

Pelo amor de Deus...

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ELE

Pelo amor de quem?

ELA

De Deus...

ELE

Deus não existe...

ELA

Que seja!

ELE

(Continuando.) ...e se existe, é um tremendo sacana!

ELA

Não é hora da gente ficar falando sobre isso.

ELE

Tem razão. É hora da gente dormir de conchinha... Vem cá, vem...

ELA

Não... Tô falando sério... Você precisa ir embora!

ELE

Deixa eu ficar só mais um pouquinho, vai?

ELA

Eu tenho que trabalhar daqui a pouco. Se você ficar aqui, não vai me

deixar dormir...

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ELE

Deixo, sim...

ELA

Hum... sei, te conheço!

ELE

Pode acreditar, sem maldade, vou te deixar dormir... Mas só se for de

conchinha...

ELA

(Dando-se por vencida.) Tá bom!

(Ela deita-se ao lado dele, ambos de conchinha. Depois de um tempo, ele, que não

dormiu, começa a acariciar seu corpo.)

ELA

Você disse que ia me deixar dormir! Tá faltando com a palavra!

ELE

(Falando no ouvido dela.) Tô com o pipi duro...

ELA

(Idem a ele.) É? Vai mijar que amolece!

(Riem. Tempo. Ele volta a assediá-la.)

ELA

Quer tirar essa mão boba daí?

ELE

Ops, foi mal!

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(Eles ficam quietinhos por um tempo. Ela está cochilando e ele levanta-se

cuidadosamente para não acordá-la. Vai até a mesa, corta um pedaço do bolo, despeja

refrigerante num copo. Come e bebe em silêncio. Queda-se, pensativo, olhando para

ela.)

ELE

(Numa explosão, grita.) Burro!!!!

(Ela acorda assustada.)

ELA

O que foi?

ELE

Não, não. Pensei alto... Dorme! Você tem que acordar cedo pra ir

trabalhar!

ELA

Acho que perdi o sono!

ELE

Deita aí que eu canto pra você dormir.

ELA

(Rindo.) Bobo!

ELE

Você tem o sorriso lindo, sabia? Pena que tem o olhar triste, que não

combina!

ELA

Já me falou sobre isso. Logo que a gente se conheceu.

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ELE

E eu ainda vou descobrir tudo o que há por trás desse olhar melancólico.

Juro por Deus.

ELA

Ué, você não é ateu?

ELE

Depende das circunstâncias...

(Riem. Ela para e ele continua rindo histericamente.)

ELE

Eu tava pensando...

ELA

No que?

ELE

Nas causas que levam uma pessoa a cometer suicídio!

(Ela se assusta com a mudança brusca de comportamento dele.)

ELE

(Rindo muito.) Você chega em casa, abre a porta e não vê ninguém, não

ouve nenhum barulho, não tem uma pessoa ali para você dar boa noite e pra

conversar sobre o seu dia. Acende todas as luzes para espantar os fantasmas

da solidão, liga a TV e responde boa noite quando o apresentador do telejornal

se despede. Procura desesperadamente na agenda do celular, nomes de

pessoas para convidá-las para sair e só então você percebe que não tem tantos

amigos assim e àqueles com os quais poderia contar, estão com outros

compromissos e não podem ou não querem sua companhia. Aí você se sente

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abandonado, desprotegido. E aos domingos você se sente mais só, porque a

cidade tá deserta, não há nada que preste nas emissoras de TV e para piorar,

ouvimos aquela música do Fantástico, que nos faz lembrar que o domingo tá

acabando e que é hora de dormir porque precisamos acordar cedo no dia

seguinte para enfrentarmos mais uma semana de trabalho. Você deita na

cama, procura por um ombro amigo e não encontra. E depois, ficamos virando

de um lado para o outro até pegar no sono. (Para de rir abruptamente.) E quando

acordamos no dia seguinte, pensamos: “Mas que merda! Vai começar tudo outra

vez!!!”. A gente nasce e morre sozinho. E por que temos que passar a vida

inteira ou a maior parte dela, sozinho também? Isso já não é o bastante para

uma pessoa, por mais equilibrada que seja, pular de um prédio, se enforcar ou

dar um tiro na cabeça?

ELA

Isso é fuga. E fuga é a saída dos covardes.

ELE

Será? É preciso ser muito corajoso para agir dessa maneira. É como

brincar de ser Deus – pra quem acredita, claro. (Macabro.) O suicida pensa

assim: Eu não tive o poder de me dar à vida, mas eu tenho o poder de tirá-la. Teremos

nós mesmos que ser Deeeeeeeeeus... É mais fácil acabar com tudo do que viver

como um sonâmbulo, vagando por essas ruas sujas e sem perspectiva de

espécie alguma. Nós somos exemplos vivos disto...

ELA

Êpa, me inclua fora dessa!

ELE

Então me diga quais são os seus objetivos? Suas perspectivas? Aonde

pretende chegar?

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ELA

Ah... sei lá! Sou muito nova pra ficar pensando nisso. Eu deixo rolar...

ELE

Não tá se dando conta de que o tempo está passando e que não volta

atrás? Por que todas as coisas que começa, você não termina? A faculdade, por

exemplo, já é a terceira que faz. A primeira,você fez dois ou três semestres, a

segunda, trancou a matrícula logo no primeiro mês e agora, nesse novo curso,

não faço idéia de como será. Torço para que você conclua...

ELA

Ah, não... Não me venha com lição de moral.

ELE

Não tô lhe dando lição de moral. É só um conselho.

ELA

Eu não preciso de conselhos!

(Clima tenso. Silêncio.)

ELA

Desculpa. Quando eu tô com sono eu fico irritada!

ELE

Se o nosso relacionamento fosse à base do silêncio, com certeza ele daria

certo.

ELA

Eu tô vendo que vou precisar me afastar de você!!!

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ELE

Já se afastou há muito tempo. Desde quando ainda estávamos juntos.

Quantas vezes eu te beijei e você só me correspondia por educação? Quantas

vezes eu chorei num quarto escuro porque sentia que você tava indo

embora!!!... Mas você não tem culpa.

ELA

E de quem é a culpa?

ELE

Minha!!! Eu é que sou o culpado. Culpado por te conhecer, culpado por

te roubar um beijo, culpado por me apaixonar por você, culpado por acreditar

que o meu sentimento simbolizasse algo pra você, culpado por acreditar que

poderia dar certo e que viveríamos felizes para sempre como nos contos de

fadas. Só que não estamos num conto de fadas. É vida real. E é muito mais

cruel do que poderia suportar, porque para piorar a situação, sou uma pessoa

romântica. E ser romântico hoje em dia é ser piegas, é brega, é estar totalmente

fora de moda.

(Ele vai até a janela. Fica olhando para fora por um tempo. Ela permanece imóvel.

Silêncio.)

ELA

Para de se maltratar! Já parou pra pensar como me sinto quando te vejo

implorando por um amor que eu não posso retribuir? Eu me afastei de você,

sim. Não só de você, mas de todos os homens com quem me relacionei porque

não sei como lidar com isso. Me afastei, talvez, por medo de te ferir ainda

mais. Medo de que cometesse uma loucura. Me afastei porque comecei a

gostar de outro homem. E pra variar, não tô mais com ele. Durante o tempo

em que ficamos juntos eu nunca te traí e sei que você também não me traiu. E

por esse motivo e para sermos honestos um com o outro, achei melhor colocar

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um ponto final em tudo. Só que você interpretou esse ponto final como

reticências...

ELE

Como assim? Não entendi!

ELA

Como se eu te desse alguma esperança... Em vez de deixar as coisas

fluírem naturalmente, você forçou a barra, insistiu tanto para voltarmos e aí

desgastou a nossa relação, principalmente na amizade.

(Longa pausa.)

ELE

Sabe qual é a minha maior frustração? A de nunca ter transado com

você. Nós sempre ficamos nas preliminares, mas nunca passamos disso. E eu

nunca vou entender o motivo. Sei que transou com outros homens assim como

eu transei com outras mulheres, mas com a gente isso nunca aconteceu.

ELA

Pois é...

ELE

E eu, pacientemente, esperava por este momento. Só que este momento

nunca chegava... até que um dia, simplesmente, você disse que não me queria

mais, que tinha partido pra outra. Se eu te obrigasse a transar comigo, se te

pegasse de jeito e agisse como um animal no cio, com certeza não estaria aqui

hoje pra contar essa história.

ELA

E porque não fez isso?

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ELE

Porque eu te amava. Porque não queria fazer de você um depósito de

porra como fiz com outras mulheres com quem saí depois que terminamos.

Porque o que sentia e ainda sinto por você é muito maior do que pode

imaginar. Você não compreende isso porque nunca amou ninguém de

verdade.

ELA

Como pode ter tanta certeza disso? Já amei sim.

ELE

Não sei como foi o seu passado, mas desde que te conheci, você só se

aproximou de outros caras por tesão. Tesão é uma coisa e amor é outra...

ELA

(Cínica.) Nossa, que descoberta incrível! Parabéns! Genial!

ELE

Poupe-me dos seus cinismos...

ELA

Desculpa, mas não resisti à tentação!

ELE

Você já escreveu versos de amor pra alguém?

ELA

Não!

ELE

Já saiu de madrugada e foi até a entrada do prédio de determinada

pessoa e ficou horas olhando pela janela do seu apartamento?

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ELA

Não!

ELE

Já ficou a noite inteira acordada velando o sono de alguém que amasse?

ELA

Não!

ELE

Já se escondeu num ponto de ônibus e ficou observando a pessoa amada

na calçada do outro lado da rua sem que ela te visse?

ELA

Também, não!

ELE

Já ficou de cama, ardendo em febre, devido ao sofrimento causado pela

perda de seu grande amor?

ELA

(Irritada.) Quer parar com esse interrogatório, caralho?

ELE

Quero que saiba que eu já fiz tudo isso por você. Fiz, faria tudo de novo

e quantas vezes fosse necessário... Pode me chamar de obsessivo... (Pausa

reflexiva.) Taí, acho que encontrei a resposta. Eu sou obsessivo por você. Parece

que quanto mais as pessoas falam pra eu me afastar de você, mais eu quero

estar do seu lado... (Gritando em direção da janela.) Eureka! Eureka!

ELA

Para de gritar, seu louco. Daqui a pouco os vizinhos vão reclamar...

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ELE

E quem se importa? (Grita na janela.) Eu quero que o mundo se acabe em

batata doce pra eu morrer peidando...

ELA

(Ouve-se o interfone.) Tá vendo? Não falei? (Atende ao interfone.) Alô... oi,

seu Manoel... (Fazendo gestos de querer matá-lo.) Eu sei disso, seu Manoel.

Barulho só depois das 8. É que o meu amigo descobriu uma coisa muito

importante, por isso ele gritou... Ok, não vai mais se repetir... Desculpa... Um

bom dia pro senhor também... (Desliga. Em seguida parte para cima dele, muito

brava.) Seu filho da puta! Tá vendo o que você fez? Se eu receber uma multa do

condomínio, é você quem vai pagar!!!!

ELE

(Abraçando-a.) Sabia que eu adoro te ver assim, bravinha? Fico morto de

tesão!

ELA

Vá pro inferno.

ELE

Eu sou obsessivo, sabia? E você sabe que uma pessoa obsessiva é capaz

de fazer qualquer coisa!!!!

ELA

Pensa que eu tenho medo de você? Que piada!

ELE

Ah, não tem?

ELA

Não!

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ELE

Muito bem...

ELA

O que cê vai fazer?

(Ele dirige-se até a porta, verifica se está trancada, tira as chaves e vem chacoalhando o

molho na direção dela.)

ELE

(Com a sua bipolaridade aflorada.) Pronto!!! Quero ver como você vai sair

daqui!

ELA

Me dê essa chave!

ELE

Ué, você acabou de me dizer que não tinha medo de mim.

ELA

E não tenho mesmo.

ELE

Então por que tá tremendo toda?

ELA

De raiva!

ELE

Não parece!

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ELA

Me dá essa chave, porra!

ELE

Não!!! Agora estamos trancados. E você não tem mais saída! Ou melhor,

tem uma só. A da janela. Só que estamos no 14º andar. Ou você pula ou cria

asas e sai voando!!!!

ELA

Para de brincadeira!

ELE

Eu não tô brincando! Tô falando muito sério!

ELA

Já deu, né? Vamos parar com essa brincadeira de mau-gosto?

ELE

(Num rompante.) Você assistiu a um filme chamado Ata-Me?

ELA

O que isso tem a ver?

ELE

Assistiu ou não assistiu?

ELA

Assisti, mas já faz muito tempo, não lembro direito.

(Ela vai ficando espantada.)

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ELE

Então vou refrescar a sua memória. (Em tom de suspense, saboreando todas

as palavras) É aquele filme do Almodóvar em que um órfão chamado Ricky,

personagem do Banderas, depois de fugir de um hospital psiquiátrico, tudo o

que mais deseja é ter uma família, uma noiva e um emprego. E para sua noiva,

escolhe uma estrela de filmes pornôs chamada Marina, personagem de

Victoria Abril, com quem passou algumas noites quando fugia da instituição.

Só que ela não o reconhece e ele percebe que sua única opção é raptá-la e

deixá-la atada, confiante de que ela vai se apaixonar por ele... (Pausa tensa.) A

nossa história não é muito diferente: eu sou órfão, quero ter uma família e a

mulher que eu amo, não me quer... Se o Banderas conseguiu o amor da

Victoria Abril, eu posso muito bem conseguir o seu usando os mesmos

artifícios que ele usou no filme... (Ri.)

ELA

(Horrorizada.) Meu Deus, você pirou. Você tá completamente louco.

(Tenta sair correndo.)

ELE

(Segurando-a.) Não fuja! Fique quieta!

ELA

Me solta, pelo amor de Deus...

ELE

Deus não existe, minha querida. Mas chama por Ele, chama. Vamos ver

se Ele vem te ajudar!

ELA

(Gritando.) Socorroooooooo!

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ELE

(Tapa-lhe a boca.) Se eu fosse você eu não gritava porque senão pode vir

uma multa do condomínio!!! (Ri.)

ELA

Vai se foder, seu escroto!

ELE

(Êxtase.) Isso. Xinga. Xinga mais... O que mais que eu sou, hein? Vamos,

tá na hora de falar tudo o que pensa a meu respeito, porque daqui a pouco

estará amordaçada e não vai poder falar mais nada!!!

ELA

Eu nunca vou dizer o que quer ouvir...

ELE

Com um pouco de tortura, vai sim.

ELA

Não vou mesmo.

ELE

Então mente. Mente! Diz que me ama! Quem sabe assim, você fica livre

de mim pra sempre!

(Derruba-a no chão e deita em cima dela.)

ELA

O que quer de mim, hein?

ELE

Sabe muito bem o que eu quero!

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ELA

Você quer me comer, é isso?

ELE

O que você acha?

ELA

Então vai, me come. Vamos, o que tá esperando? Me come logo, seu

bosta!!!!

(Pausa tensa. Ele a encara.)

ELE

Seria falta de educação de minha parte recusar a esse pedido...

ELA

(Temerosa.) Você não seria capaz de...

ELE

Foda-se. Eu não tenho mais nada a perder. E olha... Não sou EU quem tá

na sua frente. É um BICHO. E é como um bicho que vou agir.

(Há uma luta entre os dois. Ele, bem mais forte, domina a garota. Ele joga-a no chão e

transa com ela. Para evitar que ela grite, tapa a sua boca. Ela resiste, mas aos poucos,

se entrega a ele. Após atingirem o orgasmo, ele sai de cima dela, muito satisfeito.)

ELE

(Exausto.) Pronto! Agora você tá livre de mim pra sempre assim como eu

tô livre da minha frustração! (Pausa.) Isso foi bom porque cheguei a uma

conclusão. (Ela não tem mais forças.) Não podemos obrigar ninguém a gostar da

gente.

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(Pausa reflexiva. Ele vai até a janela. Ela chora sem parar.)

ELE

Sabe qual foi o meu maior erro?... Foi dizer SIM pra tudo o que você me

pedia, como, por exemplo, desmarcar um compromisso com um amigo para te

encontrar porque você queria ver um filme. Chego ao cinema com cinco

minutos de atraso e não te encontro. Ligo pro seu celular e você não me

atende, deixo recado na caixa postal pedindo pra você me retornar e... nada.

Nenhuma satisfação de sua parte. Simplesmente sou ignorado. E aí começo a

pensar num monte de bobagens, sei lá: assalto, atropelamento, sequestro... E

termino a noite sozinho e angustiado... E ao chegar em casa, te ligo outras

vezes e... nada. Não consigo dormir direito e só descanso quando você me

atende só no dia seguinte e então, me certifico que você tá bem e que nada de

ruim lhe aconteceu. E é sempre assim. Você me pede alguma coisa e eu digo

SIM. E o pior é que pra você eu não consigo dizer NÃO!

(Longa pausa. Ambos estão exaustos.)

ELE

Por que você não me disse a verdade?

ELA

(Soluçando.) Que verdade?

ELE

Sobre seus amigos!

ELA

Quer falar coisa com coisa, por favor?

ELE

A única pessoa que compareceu na festa do seu aniversário fui eu!

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ELA

(Desconsertada.) Eles vieram, sim.

ELE

(Zombando dela.) Rá, rá, rá! Só se foi na sua imaginação. Eu sei que não

veio ninguém porque tô na frente do prédio desde às sete horas da noite. Eu te

vi saindo na janela diversas vezes, preocupada, olhando pra ver se chegava

alguém. Só que ninguém chegou. E fiz questão de subir às dez horas. Você fez

toda uma encenação: encheu copos, derrubou refrigerante no chão, cortou o

bolo, sujou o apartamento à toa, tudo pra me dizer que tinha rolado aqui uma

festa do caralho e que várias pessoas estiveram presentes... (Aplaudindo-a.)

Bravo, você é uma excelente atriz, só que a mim não engana. É frustrante, né,

receber só um convidado? E justamente uma pessoa que você queria ver bem

longe... Não precisava disso.

(Ela continua chorando. Ele a contempla.)

ELE

Mas eu vim te desejar um feliz aniversário. Vim porque você é

importante pra mim e não iria deixar que essa data passasse em branco. Vim,

mesmo sabendo que não era só pra comemorar os seus 23 anos, mas que essa

data também marcaria a cerimônia do nosso adeus!

(Ele pega suas coisas.)

ELA

(Hesitante.) Fica mais um pouco!

ELE

Não quero!

(Pausa.)

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ELA

(À meia-voz.) Me liga?

ELE

Você tem o meu telefone e o meu endereço.

ELA

Eu... E se eu dissesse agora que eu... que eu te amo?

(Pausa.)

ELA

Responde...

(Pausa.)

ELE

Eu não ia acreditar... Só lhe digo uma coisa. Eu prefiro mil vezes amar e

não ser correspondido, do que não poder corresponder a quem me ama.

ELA

E se um dia eu te corresponder?

ELE

Esse dia parece estar tão longe!!!!!

ELA

Responde a minha pergunta... você me espera?

(Pausa.)

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ELE

(Olhando-a fixamente.) Talvez...

ELA

Eu não conheço o “talvez”

ELE

Então “quem sabe”!

ELA

Também não conheço o “quem sabe”! Só conheço o “sim” e o “não”...

ELE

Sim, não, talvez, quem sabe!!!! Que diferença faz? Que importância tem

isso agora?

(Faz menção de sair.)

ELA

Você sabe me definir o que é o amor?

ELE

A melhor definição que já ouvi sobre o amor veio de um menino de 13

anos. Ele disse: “O amor é como a onda do mar: nasce, cresce, morre e vira

lágrima...”

(Entra música “Stop Crying Your Heart Out”, de Oasis. Ele sai deixando-a na mais

completa solidão. Luz cai em resistência, bem devagar até o black-out final.)

FIM

Fevereiro/2008