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Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marília. Modernidade e Movimento Nova Era: novas perspectivas subjetivas de interação indivíduo-sociedade. Vinicius Ortiz de Camargo Marília, São Paulo, Novembro de 2003.

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  • Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marlia.

    Modernidade e Movimento Nova Era: novas perspectivas subjetivas de

    interao indivduo-sociedade.

    Vinicius Ortiz de Camargo

    Marlia, So Paulo, Novembro de 2003.

  • UNESP Universidade Estadual Paulista

    Campus de Marlia

    Modernidade e Movimento Nova Era: novas perspectivas subjetivas de

    interao indivduo-sociedade.

    Dissertao apresentada a Faculdade de Filosofia e Cincias da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Campus de Marlia, para a obteno do ttulo de mestre em Cincias Sociais.

    Marlia, Outubro de 2003.

  • C172m Camargo,Vinicius Ortiz de. Modernidade e movimento nova era: novas perspectivas subjetivas de interao indivduo-sociedade / Vinicius Ortiz de Camargo. Marlia, 2003. 131 f. ; 30 cm. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Faculdade de Filosofia e Cincias, Universidade Estadual Paulista, 2003. Bibliografia: f. 124-129 Orientador: Prof Dr. Antnio Carlos Mazzeo. 1.Esoterismo. 2.Religio. 3. Indivduo I. Autor. II. Ttulo.

    CDD 291.13

  • Termo de Aprovao

    _______________________________

    Antnio Carlos Mazzeo (orientador)

    _______________________________

    Jose Geraldo Alberto Bertoncini Poker

    _______________________________ Andreas Hofbauer

  • Dados Curriculares

    Vinicius Ortiz de Camargo Nascimento: 12/09/1976 Itapetininga-SP Filiao: Flvio Ortiz de Camargo

    Teresa Serafim Gorreri Ortiz de Camargo

    1994-1998 Bacharelado em Cincias Sociais

    Faculdade de Filosofia e Cincias

    UNESP Campus de Marlia

    2000-2003 Curso de Ps-Graduao em Cincias Sociais,

    nvel de mestrado, na Faculdade de Filosofia e

    Cincias da UNESP, Campus de Marlia.

    2001-2002 Professor de Histria e Sociologia no ensino

    mdio, junto ao Colgio Etapa de Itapetininga-SP.

    2002-2003 Professor de Histria e Geografia no ensino

    mdio e fundamental, junto ao Colgio Adventista

    de Assis-SP.

    2002-2003 Professor de Sociologia do Instituto Superior de

    Educao (ISER) das Faculdades Integradas

    Ranchariense (FRAN).

    2003-2003 Professor Conferencista de Sociologia junto ao

    Departamento de Histria, da Faculdade de

    Cincias e Letras, UNESP Campus de Assis.

  • Este trabalho s pode ser dedicado Patrcia e Tereza.

  • Agradecimentos

    Quando me pergunto sobre o significado deste trabalho percebo

    que, alm de confirmar um processo de amadurecimento

    intelectual, ele s ganhou existncia pelo apoio constante e

    irrestrito de minha esposa Patrcia, de modo que a ela vai meu

    profundo agradecimento e minha alegria de poder experimentar

    uma parceria de sucesso no campo profissional - a nica e

    afetivo. Tambm no posso deixar de agradecer minha famlia,

    pais, tios e tambm sogro, sogra e cunhados e aos meus amigos

    do peito, Marcelo, Ricardo, Bris, Felipe, William, Andr e

    Alexandre, que sempre me deram o feedback necessrio para a

    valorizao de meu trabalho. Neste momento em que o papel

    poltico e social do intelectual est obscuro, em que este se sente

    carente de meios para exerc-lo, o apoio desses familiares e

    amigos tornou-se a nica muleta digna de se usar para continuar

    a trilhar pelos caminhos da cincia.

    Agradeo ao professor Antonio Carlos Mazzeo pela gentileza e

    profissionalismo por aceitar ser meu orientador e a outros

    professores, Maria Orlanda, Ftima Cabral, Jos Geraldo Poker

    que gentilmente aceitou o convite para compor a banca de defesa

    e Andras, que de uma forma ou de outra me ajudaram a

    aprender sobre o real funcionamento dos mecanismos

    institucionais da academia e sobre os obstculos no caminho da

    produo de uma dissertao.

  • A modernidade prometia trazer o tipo de clareza e transparncia para a vida humana que s a razo pode oferecer. Isso no aconteceu, e hoje no mais acreditamos que venha a acontecer. Estamos cada vez mais conscientes da irremedivel contingncia de nossa existncia, da inevitvel ambivalncia de

    todos as opes, identidades e projetos de vida. (...) a falncia do projeto iluminista requer novas modalidades de reflexo, uma agenda de

    problemas a serem discutidos que tome para si e nomeie a angustiante dramaticidade de se viver na

    ambivalncia algo que se estende poltica, economia, ao desenvolvimento tecnolgico e

    subjetividade. (Agnes Heller)

  • Sumrio

    1 Introduo ...................................................................................... 10 2 Caracterizao e origens do movimento Nova Era ....................... 17 2.1 Antecedentes histricos ........................................................................... 17

    3 A Nova Era e a condio ps-moderna ..................................... 51 3.1 Na trilha do ps-moderno ....................................................................... 56 3.2 Ps-modernidade e religiosidade ............................................................ 81 3.3 O movimento Nova Era e a condio ps-moderna ...................... 91

    4 A contradio indivduo-sociedade: possibilidades de

    transcendncia da alienao ........................................................... 99

    4.1 A categoria do indivduo e a reproduo social ................................... 101 4.2 A categoria do indivduo e a possibilidade de transcendncia da alienao .................................................................................................. 110 4.3 A Nova Era e a transcendncia da alienao ........................................ 117

    5 Consideraes Finais ................................................................... 122 Referncias Bibliogrficas ............................................................................. 124 Bibliografia ........................................................................................................ 127 Resumo e Abstract ......................................................................................... 131

  • Movimento Nova Era e modernidade: novas perspectivas subjetivas de interao indivduo-sociedade

    INTRODUO Este trabalho tem por objetivo analisar o movimento Nova Era

    atravs de sua relao com a individualidade contempornea, ao modo como este movimento confere aos sujeitos mecanismos de respostas e modalidades de comportamento que negam ou intensificam o processo de alienao.

    Para tanto, parte-se da constatao de que o desenvolvimento da sociedade moderna possibilitou o surgimento do indivduo enquanto uma categoria social, ou seja, no mbito das relaes sociais moderno-capitalistas entrou em cena a noo e a atitude de uma individualidade particularizada, sustentadora de uma autonomia prpria e legitimada por prticas sociais que comeam a se centrar nas necessidades individuais. Na modernidade a posio social ocupada pelo indivduo passou a negar a ordem estamental feudal em troca de um modo de vida marcado pela contingncia econmica e reformulao dos valores tradicionais por valores que reforavam um esprito de autodeterminao. As relaes sociais passaram a incorporar a orientao individual da realidade, contradizendo toda a ordem estamental anterior marcada por regulaes e convenes socialmente fixas, uma ordem com a qual os indivduos se relacionavam e se identificavam de uma forma mais imediata.

    Nesse contexto, de acordo com a concepo marxiana da histria, torna-se possvel o reconhecimento histrico de uma individualidade que, em-si, se diferencia e se especifica diante da sociedade, permitindo ao sujeito, na sua dimenso objetiva e subjetiva, capturar sua mediao com esta. um reconhecimento que afirma as especificidades entre o indivduo e o processo de sociabilizao, descartando e negando uma considerao dualista, de oposio simples entre ambos.

    Essa possibilidade histrica, considerada enquanto uma capacidade potencial de o sujeito transcender sua alienao perante a sociedade e a si prprio, pode, por isso, ser recuperada a partir da dimenso da subjetividade, com os valores e simbolismos que a permeiam, seus conflitos e suas respostas engendradas diante da processualidade social que a atravessa, a conforma e conformada por ela.

    A Nova Era ser um fenmeno que, nessas ltimas dcadas, passar a orientar um nmero expressivo de subjetividades, oferecendo a estas respostas que procuram rearticular e resignificar as tendncias sociais presentes, propondo transformaes que, num primeiro momento, negam a ciso e dualidade indivduo-sociedade.

    Surgida no fim dos anos 60, a Nova Era ser um movimento que funda uma modalidade comportamental pouco afeita s instituies e

  • identidades fixas, se conformando, como aponta Leila Amaral (2000), a partir de um sincretismo em movimento.

    Os agentes desse movimento acabam tomando o paradigma de uma realidade holstica, na qual os diversos 'mundos' que a compe se apresentam inter-relacionados, o mundo mental, espiritual, emocional, tornando-se importantes fontes de comunicao para queles indivduos que pretendem transcender seus egos. Busca-se, com isso, o self, mas um self que, segundo Amaral, se afasta do sentido de uma individualidade auto-suficiente. A procura pelo self o encontro com o eu superior de cada indivduo, sua centelha divina, um eu ligado a uma totalidade inesgotvel que representa uma manifestao sagrada. Nessa manifestao os sujeitos se desconectam das categorias sociais que o identificam e o rotulam para vivenciarem uma experincia sacralizada. o indivduo se 'afogando' no sagrado, uma fora ou energia que perpassa todo o universo e que, por isso, no se limita ao poder individual, nem a qualquer grupo, comunidade ou instituio.

    Essa fora ou energia, ou qualquer smbolo que a represente, sempre buscada porque no fixa ou finita e, desse modo, a sua manifestao se d atravs de uma experienciao subjetiva que estabelece relao com uma totalidade aberta, em potencial, sem regulaes que lhe marquem uma identidade fixa. Atravs dessa atitude, pode-se deparar com uma viso que se distancia dos marcos tanto do individualismo, como do comunitarismo.

    Apontando para uma totalidade sem fuso, em desconforto com a lgica do poder, e afastando a polmica, prpria de indivduos racionais em busca de 'universais', os errantes Nova Era tentam chamar ateno, performticamente, para a indeterminao, ou coexistncia do mltiplo, como consubstancial sua espiritualidade. Uma indeterminao, cuja dinmica manter as pessoas cheias de expectativas, no para acabar, pois apresenta-se, nesse universo, como um valor garantidor do prosseguimento da jornada isto , a procura do essencial como um fim em si mesmo. (AMARAL: 2000, p. 211)

    Tais perspectivas no poderiam ser reconhecidas enquanto uma crtica ao dualismo indivduo-sociedade e, assim, dentro da lgica da dinmica processualidade histrica, converter-se-ia em uma forma de combate positiva alienao do homem moderno?

    Tal considerao, todavia, requer apreender a dimenso da subjetividade na sua dialeticidade com os marcos estruturais do capitalismo tardio (Cf. Jameson, 2000), das relaes sociais e de produes co-determinantes da atualidade. Nesse sentido, a questo da alienao - que s pode ser avaliada nessa dinmica processualidade - e as modalidades de respostas que os sujeitos Nova Era engendram so fundamentadas pelo contexto da alta modernidade ou ps-modernidade, o terreno social na qual se desenrola a dinmica capitalista.

  • A anlise deste terreno parece conferir uma nova objetividade s relaes sociais e de produo, revelando uma nova configurao temporal-espacial nas formas de sociabilidade e, por isso mesmo, revelando novas construes representacionais-simblicas que procuram reorientar as aes individuais.

    A prtica de novas modalidades comportamentais desenvolvidas pelo sujeito Nova Era esto intimamente relacionadas a este terreno social. A medida e a fora do impacto dessas modalidades comportamentais, assim como suas possibilidades de transformao desta nova objetividade que as substancializam podem demonstrar os limites e as potencialidades das aes dos sujeitos Nova Era quanto a questo da alienao.

    A questo, portanto, de o movimento Nova Era contribuir para a alienao ou no, passa pelo crivo das transformaes que ele resulta na objetividade das relaes sociais e de produo, sejam essas transformaes feitas de uma maneira consciente, inconsciente ou inconseqente.

    Para dar o devido prosseguimento a tal objetivo, procurou-se dividir o texto em quatro captulos. O captulo 1 traa as origens do movimento Nova Era como tambm suas principais caractersticas. O captulo 2 pretende aprofundar as caractersticas do movimento Nova Era a partir do modo particular em que o movimento est inserido na contemporaneidade, procurando suas conexes com as modalidades de respostas dadas pela individualidade nessa realidade e, nesse sentido, levantando a hiptese do significado socializador ou privativo/solitrio (Cf Mszros: 1981) de tais resposta. No captulo 3, a postura do indivduo Nova Era ser posta em anlise atravs da categoria da alienao. Atravs dela, o movimento Nova Era e as modalidades de resposta que ele apresenta ao indivduo ser posta em xeque, procurando, com isso, problematizar a categoria da alienao atravs da anlise de um movimento social contemporneo e, tambm, problematizar a capacidade de o movimento Nova Era propor respostas aos indivduos capazes ou no de superar os limites da alienao.

    I CARACTERIZAO E ORIGENS DO MOVIMENTO NOVA ERA.

    1.1 - ANTECEDENTES HISTRICOS Segundo Leila Amaral, o movimento Nova Era surge de um

    cruzamento de idias que vinha se desenvolvendo desde o sculo XIX, na Europa e Estados Unidos, representados pelo Transcendentalismo, o Espiritualismo, a Teosofia, a New Thought e a Christian Science. Todas essas manifestaes religiosas incorporavam, umas mais, outras menos, as concepes da religiosidade oriental. Reafirmavam, tambm, o

  • misticismo, sem desprezar o pensamento ocidental moderno e suas religies mais antigas.

    A autora sugere que, nesse cruzamento de idias, no se poderia ignorar a importante influncia do movimento romntico. A idia romntica de finito perpassado pelo infinito, de um universo incomensurvel considerado divino, de uma totalidade que engloba todos os seres, na qual o indivduo deveria ir atrs, buscando se encontrar com a sua essncia divina, mesmo que essa busca, em torno de tal infinitude, nunca termine. Essa busca deveria se dar atravs da intuio, da percepo e dos sentimentos, resgatando tambm antigos caminhos de civilizaes, ou melhor, de comunidades, j que estas so vistas como uma fonte de comunho dos objetivos romnticos e, por isso, uma negao (...) s relaes de competio, conflito, utilidade, consentimento contratual e individualismo despersonalizado nas cidades.(AMARAL: 2000, p. 27)

    Embora com uma forte influncia de um conjunto de idias provenientes do sculo XIX, o aparecimento do movimento Nova Era, pelo menos com essa denominao, data, segundo alguns estudiosos do fenmeno, do final da dcada de 60 e incio da dcada de 70. quando a terminologia que simboliza esse movimento, a Nova Era, passa a ser referida com maior freqncia por um pblico crescente. Tal terminologia significaria:

    (...) uma cosmologia astrolgica : refere-se a uma mudana ocasionada pela chamada precesso dos equincios no aparente trajeto do sistema solar em relao ao zodaco ( uma espcie de faixa com 12 subdivises projetada na abobada celeste), ao longo do qual parecem mover-se os astros, perfazendo determinados ciclos. (...) A nova era que agora se inicia a Era de Aqurio, trazendo ou anunciando profundas alteraes para os homens em sua maneira de pensar, sentir, agir relacionar-se uns com os outros, com a natureza e com a esfera do sobrenatural. De uma forma geral, essas transformaes so entendidas no sentido de um reequilbrio entre plos corpo/mente, esprito/matria, masculino/feminino, cincia/tradio, etc at ento opostos e em conflito. (Magnani: 2000, p. 9-10)

    A este primeiro significado tambm vo se incorporar certas teorias cientficas desenvolvidas pela fsica quntica e a psicologia, orientaes teraputico-religiosas provenientes de antigas comunidades indgenas, a preocupao ecolgica e a literatura de auto-ajuda.

    A toda essa combinatria de elementos diversos pode-se constatar, tambm, a grande influncia que o movimento Nova Era herdou da contracultura. Surgido nos anos 60, o movimento da contracultura ajudou a quebrar a hegemonia do discurso cientfico, aumentando o fluxo de relaes entre ocidente e oriente, abrindo espao para que outros discursos encontrassem ressonncias no campo do pensamento e possibilitando o surgimento de (...) inmeros projetos

  • espiritualistas valorizando uma transformao, em primeiro lugar, do prprio homem.(EGYDIO: 1995, p. 29)

    Entre esses projetos, pode-se destacar um que deu origem ao Movimento do Potencial Humano, um movimento surgido na dcada de 60 nos Estados Unidos e que, a partir da dcada de 70, se voltou para um pblico cada vez maior. Anterior a Nova Era, o Movimento do Potencial Humano desenvolveu a combinao de religies orientais com a psicologia e a medicina alternativa. Na regio de Esalem, Califrnia, ele significou:

    (...) uma convergncia da comunidade metafsica do oculto com a cultura da droga e experincias msticas e psquicas, bem como a interao da psicologia humanista, introduzida por Maslow, com a Gestalt Therapy, da qual Friotz Perls foi um dos principais difusores, e a bioenergtica, desenvolvida por Wilhelm Reich, para promover a 'revoluo pessoal' e alcanar um nvel de conscincia intensificada, atravs de experincias com drogas, sexo e arte as duas ltimas com entradas e contatos com intelectuais da Escola de Frankfurt. Desse encontro comea-se a desenvolver pesquisas e experincias dedicadas ao desenvolvimento pessoal, com nfase na auto-realizao, na importncia do 'aqui-agora', no papel do corpo, no crescimento psquico e na dinmica de grupo. (AMARAL: 2000, p. 23)

    Outra importante instituio, a Comunidade Findhorn, na Esccia -

    cujos ideais repousavam na interpretao de que todo homem possui dentro de si um eu interior, uma essncia que o liga diretamente a incomensurabilidade divina, e que no importa o caminho escolhido para se chegar a este ser desde que se deixe como guia nosso eu interior vai ser um contato importante que tornar o Movimento do Potencial Humano um rgo de destaque na expanso e fortalecimento do movimento Nova Era nos Estados Unidos e em outros pases durante os anos 70.

    Durante esse perodo, alguns ideais do movimento Nova Era vo acabar sendo reafirmados com o lanamento do livro O Tao da Fsica de Fritjoff Capra, um terico da fsica que vai propor certas semelhanas entre as ltimas teorias desenvolvidas pela Fsica e os discursos provenientes do misticismo oriental, ambos detentores de uma viso sistmica do universo na qual a razo e o irracional, a conscincia e a inconscincia, o micro e o macro, so partes que no devem ser opostas, pois, de alguma forma, elas esto interligadas formando um todo.

    Mais para o fim dos anos 70, Marylin Ferguson, uma jornalista americana, escreve o livro A Conspirao Aquariana, associando neste certas caractersticas muito peculiares ao movimento Nova Era, como o fato desse movimento se organizar em forma de rede, com nfase na redistribuio do poder. Segundo ela, a conspirao aquariana:

  • (...) uma rede poderosa, embora sem liderana que est trabalhando no sentido de provocar uma mudana radical nos Estados Unidos. Seus membros romperam com alguns elementos chaves do pensamento ocidental, e at mesmo podem ter rompido com a continuidade da Histria. (FERGUSON, p. 23: sem data).

    Esses dois livros tornaram-se best-sellers e contriburam, como aponta Magnani (2000), para que o Movimento Nova Era deixasse de ser visto apenas como excentricidades de hippies, uma vez que seus membros passaram a ser compostos pelos mais diferentes tipos de integrantes, chegando at a possuir personalidades ligadas a comunidade cientfica, ao jornalismo, etc.

    J no Brasil, Magnani diz que o Movimento Nova Era comea a aparecer no fim dos anos 70. Segundo esse autor, o Tropicalismo, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, abrindo espao para uma postura identificada com a esttica libertria e dionisaca da contracultura, j trazia ao pblico, no comeo dos anos 70, temas ligados a uma viso holstica do mundo, contudo:

    (...) foi Raul Seixas quem explorou explicitamente em suas composies aspectos mais msticos, chegando inclusive a participar, juntamente com o ento parceiro Paulo Coelho, de sociedades iniciticas inspiradas na doutrina do famoso esoterista ingls se- cosmopolita e ganhar propores de mercado. (MAGNANI:2000, p. 23) Nesse perodo, Anthony D'Andrea, destaca o importante papel de divulgao de um programa da Rdio Imprensa FM, no Rio de Janeiro. O programa se chamava O Eremita: (...) era um programa ecltico de cultura 'espiritualista-esotrica', com a 'proposta de integrar cincia, filosofia e religio.' Com msica new age e rituais especiais de encerramento, o Eremita baseava-se em duas ou trs entrevistas dirias, conduzidas por Kaanda ou assistentes (mais as perguntas anotadas dos ouvintes), de membros convidados, representantes dos mais diversos sistemas, prticas e instituies alternativas: paracientficos, esoteristas, orientalistas, espiritualistas, xamnicos, mgico-ocultistas etc. (D'ANDREAS: 2000, p. 11)

    Com durao de duas horas, em horrio nobre, o escritor e bruxo Paulo Coelho participava sempre do programa, o que lhe possibilitou, segundo D'Andrea, um importante ponto de difuso de seu nome e de lanamento de seu primeiro livro, O Dirio de Um Mago. Estouro de vendas, mais de 23 milhes de livros vendidos em diversos pases, quarenta por cento s no Brasil, Paulo Coelho no pode deixar de ser entendido enquanto um cone para a expanso das idias da Nova Era no Brasil.

  • Nos anos 90, no s no Brasil, mas tambm em outros pases, o mercado de produtos voltados para a Nova Era ter um crescimento vertiginoso, aumentando significativamente o nmero de publicaes sobre o tema como tambm o nmero de locais prprios para o desenvolvimento de atividades e consumo de produtos. Segundo Magnani, tal fato possibilita observar na cidade de So Paulo, por exemplo, um circuito neo-esotrico atravs das regularidades espaciais na distribuio dos locais prprios da Nova Era, podendo averiguar elementos que a configuram como mais um estilo de vida:

    (...) sejam quais forem as motivaes, filiaes filosficas e propsitos, todos esses estabelecimentos de um ponto de vista operacional e de implantao na paisagem urbana, constituem uma oferta regular e visvel de produtos e servios. Formam, assim, um circuito (...) ao longo do qual os usurios, adeptos e freqentadores ocasionais constroem seus trajetos e fazem suas escolhas. (MAGNANI: 2000, p. 33)

    Adaptados a um tipo de organizao descentralizada e fluda, a prtica Nova Era vai favorecer, de acordo com Carozzi (1999), a disseminao do prprio movimento. Sem as amarras de ter que optar por este ou aquele discurso, esta ou aquela comunidade, e sem uma autoridade centralizada, os adeptos da Nova Era podem transitar dentro do campo heterogneo desta, ora como discpulos, ora como oradores, todos consumidores de uma rede de servios. 1.2 CARACTERIZAO DO MOVIMENTO NOVA ERA. Essa forma de organizao far do movimento um grande defensor da circulao e da fluidez, resultando, tal defesa, em:

    (...) um elemento central da tica Nova Era. Atravs do vocabulrio do 'fluir' e a 'transformao', a circulao torna-se positiva, em todos os campos de sua generalizada aplicao. O valor da circulao expressa-se na concepo teraputica segundo a qual 'a circulao da energia' postulada como condio de sade, enquanto que os 'bloqueios' so considerados como causa da doena. (CAROZZI: 1999, p. 19)

    atravs desse tipo de organizao que, segundo Viotti, o

    movimento Nova Era pode ser caracterizado:

    (...) como uma grande mobilizao de pequenos grupos, dispersos em diversos locais, mas unidos no mesmo pensamento e objetivo, que forma uma grande rede de ao. O movimento Nova Era abrange centenas de entidades, instituies e grupos, sem que todos necessitem entrar em contato, ou mesmo se conhecerem. (VIOTTI: 1995, sem p.)

  • Segundo o autor:

    Essa mega-sede descrita por Merilyn Fergson: 'Enquanto a maioria de nossas instituies vm fechando, surge uma verso contempornea da velha relao tribal ou familiar; a rede, um instrumento para o prximo passo na evoluo humana. (...) Este modelo sistemtico de organizao social presta-se a uma melhor adaptao biolgica, mais eficiente e mais consciente` do que as estruturas hierrquicas da civilizao moderna. A rede moldvel, flexvel. Para todos os eleitos, cada membro o centro da rede. As redes so cooperativas, no competitivas. So como as razes da grama: auto-geradoras, auto-organizadoras, por vezes at auto-destruidoras. Representam um processo, uma jornada, no uma estrutura organizada.(...) As redes so a estratgia atravs da qual pequenos grupos podem transformar uma sociedade inteira. (VIOTTI: 1995, sem p.)

    Num estudo sobre essa forma organizacional, principalmente em seu a a um de ns. Essa centelha ligaria a conscincia do indivduo social a outras formas de conscincia, como a conscincia planetria e csmica.

    Tal fato, segundo a autora redefiniria a prpria noo de autonomia. Ser socialmente autnomo agora ser divino e estar ligado a uma totalidade divina.(CAROZZI: 1999, p. 160).

    A essa sobrenaturalizao do aspecto autonmico, passa-se a questionar no mais apenas as hierarquias terrenas, como tambm as hierarquias divinas e, assim:

    (...) o universo sobrenatural povoa-se de seres pequenos, maleveis e que no exercem autoridade de nenhum tipo sobre os homens, mas que se limitam a acud-los quando so chamados: fadas, gnomos e anjos constituem o universo sobrenatural do homem autnomo. (CAROZZI: 1999, p. 161)

    Participante do 17 ENCA Encontro Nacional de Comunidades Alternativas Aquarianas Leila Amaral vai encontrar a mesma interao, fluida e anti-hierrquica, entre os participantes do encontro com a entidade sobrenatural arbacon. Durante o encontro, arbacon apareceu em diversas ocasies e locais, da qual proferiu algumas mensagens aconselhando os homens a seguirem o princpio equilibrado e harmonioso da natureza, (...) perpassada pelo poder divino, (...)'destruindo' tudo o que no expressa a sua 'verdadeira natureza interior' para rejuvenescer-se sem cessar. (AMARAL: 2000, p. 153) Essa mensagem colocaria em destaque a:

    (...) dimenso corrompida do homem, que deve ser corrigida seguindo-se o caminho da natureza, num sentido de respeito a natureza perpassada pelo poder divino; subordinao ao divino universo que incluiria a prpria humanidade como espcie, da

  • qual o indivduo apenas uma realidade particular; uma imanncia imperfeita.(AMARAL: 2000, p. 153)

    Apesar do reconhecimento de sua imanncia imperfeita, a subordinao desse indivduo ao divino universo, no traz, como j apontou Carozzi, uma hierarquizao de seu mundo terreno com o mundo sobrenatural, pois se a este o homem deve se integrar porque ele visto como um co-participador da criao. Assim diz abarcon:

    Ns [Espritos da natureza, porta-vozes do divino] somos apenas um Esprito, somos apenas uma voz, cabe responsabilidade de vocs, sua educao espiritual e, acima de tudo, ao de sua educao espiritual para a construo de um novo mundo. (AMARAL: 2000, p. 155)

    De forma que o reconhecimento da imanncia imperfeita do homem, representada nas mensagens de arbacon, no significa propriamente a subordinao humana a uma hierarquia divina, mas (...) parece contrapor-se, assim, ao mito racionalista da 'imanncia radical e completa' do indivduo absolutamente destacado por ele mesmo, tomado como origem e certeza.(AMARAL: 2000, p. 154)

    Segundo Amaral, arbacon parece sugerir a necessidade da ajuda dos homens para que o plano da criao divina se realize em toda a sua plenitude.

    Em outras palavras, Deus precisa da ao dos homens, do esprito humano potencializado por sua educao espiritual, para poder fazer sentir as suas prprias foras. (AMARAL: 2000, p. 156)

    A co-criao entre o homem e o divino , portanto, necessria e, dessa forma, tem-se no movimento Nova Era a nfase na passagem livre entre mundo do aqum e mundo do alm, com um vnculo entre homem e divindade que suprime qualquer instituio ou qualquer outro elemento como fonte mediadora. Assim, no existe o padre nem a Igreja, nem o mdium ou um santo especfico no qual o sujeito Nova Era deva se orientar para alcanar uma conscincia csmica. Atravs de seu eu interior, de sua centelha divina, este sujeito pode caminhar autonomamente em direo ao mundo do alm, passando, sim, por uma srie de orientaes, de discursos, mas sem a obrigatoriedade de se fixar em nenhum deles ou de criar um espao sagrado especfico de passagem para o alm. Por isso, a busca pelo sagrado cabe ao indivduo, no se encerra nele, mas cabe a ele ir ao encontro trilhando seu prprio caminho, atravs de seu eu interior. Com base nessas caractersticas atribudas ao sujeito da Nova Era, Carozzi afirma que esse movimento acaba se sobrenaturalizando, deixando de lado a sua dimenso social, pois a sua defesa de autonomia individual a defesa da autonomia do indivduo.

  • (...) em relao com qualquer um e todos os aspectos de sua socializao, autonomia individual em relao com qualquer influncia ou modelo externo, autonomia individual absoluta como forma de encontrar o Deus dentro, a centelha divina, o Eu superior, o guia interior. (CAROZZI: 1999, p. 164)

    Nos debates, em palestras, workshops e em outras modalidades de encontro, os convidados especiais nunca se atribuem como agentes responsveis pelas mudanas provocadas em seus ouvintes, eles dizem ser somente facilitadores e no guias, pois o caminho quem faz o prprio indivduo a partir de seu eu interior. Nesse sentido, o fato de muitos participarem dos mesmos encontros, pactuarem orientaes e condutas parecidas, no deve ser interpretado como sendo conseqncia de um processo de sociabilizao, devido s imitaes e relaes entre pessoas, por exemplo. Isso seria impreciso e estaria restrito a uma esfera, a social, que no a nica de acordo os agentes Nova Era, pois:

    (...) como os terremotos, as enchentes ou as tempestades, a Nova Era 'alguma coisa' que 'se produz' 'a nvel planetrio' sem mediarem as relaes e imitaes entre as pessoas. Concomitantemente, as coincidncias em prticas e crenas que se produzem dentro da rede Nova Era, quando no naturalizadas como o produto de 'alguma coisa' que germina no interior dos indivduos, resultam sobrenaturalizadas. (CAROZZI: 1999, p. 168)

    Assim, paradoxalmente, toda a modalidade de transformao social defendida pelo movimento acaba negando a funo social do agente transformador, a funo social das relaes travadas entre seus membros no sentido da direo e orientao para a transformao da realidade.

    No se declaram parte de um movimento social ou cultural, o qual significaria que foram influenciados, que se uniram aos outros, que seguiram um modelo, (...) Os ativistas da Nova Era definem-na como uma conspirao, como um sentimento que germina, cresce, brota naturalmente dos coraes ou sobrenaturalmente de uma energia que vibra em unssono, nunca como um movimento social nem como resultado da interao de indivduos e grupos. (CAROZZI: 1999, p. 164-165)

    Todavia, essa sacralizao do movimento, sua sobrenaturalizao, no o impede, necessariamente, de propor transformaes no mbito da individualidade capazes de impor um novo conjunto de relaes entre o indivduo e a sociedade. E nesse novo conjunto podemos j notar um certo desconforto no trnsito de categorias sociolgicas para a interpretao do mundo. No h um abandono absoluto delas, mas a sua flexibilizao para a incorporao de novos elementos que no so prprios, e muitas vezes so opostos,

  • s categorias mais representativas da esfera social. Nesse sentido, os sujeitos da Nova Era vo muitas vezes procurar (re) interpretar o mundo e seu lugar nele menos por esferas como a da poltica, da economia e da sociologia, e mais por uma experincia sensvel, atravs de um desejo que no se esgota e que no pode ser explicado pela razo, podendo ser entendido e sentido atravs de seu vivenciar, levando em considerao uma outra forma de temporalidade, a temporalidade mtica.

    A defesa de uma temporalidade mtica faz com que o movimento Nova Era rompa com a temporalidade linear cientificista, sustentando, atravs da imaginao simblica, um mundo mtico que (re) apresenta o divino, o misterioso, ambos detentores de uma concepo de mundo.

    Segundo Egydio:

    Dentro dessa linha, a percepo usada em detrimento da razo-kantiana, tanto a percepo imediata (as sensaes imediatas) como a percepo indireta, aquela que busca um sentido para o no concreto, para o no perceptvel imediato, um sentido no baseado numa temporalidade linear que atua sobre as causas 'secretas', 'ocultas'(o cosmos, Deus) e no as definem.(...) Cria-se assim uma nova alternativa para o sujeito que pode sair da finitude da cincia racionalista kantiana abarcando um edifcio de representaes mticas pelo misticismo, cuja caracterstica principal uma nova individualizao do sujeito (o crescimento individual pelo sujeito, no seu ntimo). (EGYDIO: 1995,p. 30)

    Juntamente com a tentativa de uma nova individualizao pelo sujeito, o referencial holstico aparece como uma importante fonte de orientao a este, pois suas representaes acerca do mundo e dos homens vo sustentar o caminhar pela trilha da percepo, dando a esta uma conotao mais que individualista, uma conotao que enfatiza mais a integrao do que a separao. Atravs do imaginrio holstico, o sujeito Nova Era procura uma linguagem csmica para interpretar seus relacionamentos, e essa linguagem constitui-se num experenciar os homens, o planeta e o universo como seres energeticamente interligados, muito longe das classificaes racionais e dualistas, das categorias societrias de identidades, mas ao encontro de um contato mstico com o que racionalmente no se pode explicar, o misteriun tremendus.

    Assim diz o mdico Di Biase, utilizando-se do referencial holstico:

    Pessoas so um todo biopsicossocial dinmico, integrado com a natureza e o cosmo, e no somente clulas e rgos trabalhando juntos. Um todo, cuja dinmica global auto-organizadora gera propriedades novas, refletindo no microcosmo do organismo a ordem macrocsmica do organismo universal. (DI BIASE: 1995, p. 12)

    Sendo um neurocirurgio/neurologista, com formao cientfica

    slida, Di Biase utiliza a viso holstica em sua profisso e em sua vida,

  • uma viso que, segundo ele, comeou a vir durante a revoluo cultural dos anos de 1960, com a incorporao de filosofias orientais, como Tai Chi Chuan, meditao, o To Chins, com algumas constataes da fsica quntica, atravs de Fritjof Capra, David Bohm, Karl Pribam, etc. Com base nesses saberes, Di Biase pode afirmar o seguinte:

    Percebi com o tempo que conhecimentos dispersos nas mais diversas reas cientficas revelam convergncias com os mais antigos pensamentos da humanidade, permitindo perceber o universo como uma mente csmica, uma memria hologrfica universal da qual nossas conscincias so partes integrantes, como se atravs de ns o universo tentasse compreender-se a si mesmo. Acredito que hoje participamos ativamente dessa conscincia csmica, que o prprio universo auto-organizando-se, em um jogo infinito de interaes dinmicas, e tomando conscincia de si mesmo. (DI BIASE: 1995, p. 13)

    (...) como um aviso de que a integrao harmnica, por algum motivo, foi rompida. A noo de doena compreendida pelos terapeutas no-mdicos atravs de seu aspecto positivo de 'sinal' de rompimento do equilbrio caracterstico do 'Ser integral'-, na medida em que um orientador visvel de um processo ainda no perceptvel. Nessa concepo, o paciente , ao mesmo tempo, o agente responsvel e transformador desse processo, tanto da instaurao da doena como de sua recuperao. (TAVARES apud CAROZZI: 1999, p. 115)

    Tais idias e prticas se encaixam nas experincias Nova Era de

    cura, em que a busca do verdadeiro Eu, para a plena potencializao do auto-desenvolvimento e auto-realizao individual, se articula com o imaginrio holstico acima referido.

    Observando a proposta de cura xamnica, uma modalidade de cura muito difundida dentro da Nova Era, Amaral afirma que suas tcnicas pretendem proporcionar

    (...) uma viagem para o reino da 'energia primal' nvel do mnimo indizvel, comum a tudo o que existe no universo. Quando a visualizao realizada apropriadamente, espera-se que o paciente e o curador entrem em contato com o 'self superior', definido como no-matria, como a menor unidade do indivduo, isto , como ondas de luz e energia que podem ser emitidas ou absorvidas, maneira dos quantum.(AMARAL: 2000, p. 65-6)

    O contato com este 'self superior' (o eu interior) se d atravs de uma viagem, sem grandes dificuldades do mundo do aqum para o mundo do alm, demonstrando-se a porosidade entre eles e a possibilidade de o sujeito comunicar-se com o indizvel, conferindo-lhe uma percepo da realidade para alm dos cdigos sociais prevalecentes. quando o ego, a personalidade influenciada pelos

  • padres scio-culturais, deixa de predominar, revelando-se para o sujeito um outro tipo de relao, uma relao que, segundo Amaral, fundaria uma ontologia da comunicao, quando o indivduo mergulha no indizvel e, ao retornar, tem a possibilidade de refazer os vnculos, relacionar-se de forma diferente com o mundo.

    Para a autora:

    O modelo xamnico parece sugerir uma 'ontologia da comunicao', uma re-significao da ontologia da relao quando articulada com a linguajem quntica e espiritual, aguando a viso Nova Era de cura como um processo de transformao constante que pode ter efeitos no indivduo e no ambiente mais amplo. O aspecto introspectivo da visualizao, um exame de conscincia auto-reflexivo, fica relativizado pelo a priori da comunicao para alm dos limites de espao e tempo.(AMARAL: 2000, p. 67)

    A comunicao com algo indizvel, se no pode ser explicada racionalmente, pode, pelo menos, resultar numa transformao da personalidade individual, agora muito menos presa aos cdigos sociais reinantes e perpassada por um sentimento universalista, em que as questes relativas aos homens e a natureza podem ser reformuladas, e os velhos vnculos tambm.

    Assim, do ritual xamnico, poderia ser retirado os seguintes significados:

    (...) ser outra coisa que ser simplesmente um membro, um representante de uma categoria ou classe e a busca para situar-se no 'espao do tornar-se' outra coisa ou pelo menos 'tornar-se melhor' do que se . (AMARAL: 2000, p. 90)

    A comunicao espiritual sugerida nesse ritual parece requerer dos sujeitos uma linguagem que, segundo Amaral, ofereceria a possibilidade destes agirem localmente na medida em que as tcnicas teraputicas funcionam como meios (rituais) para o processo incessante do indivduo 'tornar-se melhor', dentro da sociedade existente e atravs de seus relacionamentos concretos e face a face 'pensando globalmente'- isto , pensando o 'estar junto'antes do 'estar com'. (Cf. AMARAL: 2000, p.96)

    O ritual xamnico d, portanto, um outro significado ao processo de cura. Esta diz respeito a uma transformao individual capaz de estabelecer uma comunho entre os homens e destes com uma totalidade maior, resignificando sua vida cotidiana e suas relaes. Nesse processo de resignificao, o indivduo passa por uma desprogramao dos rtulos sociais, a ponto de se encontrar nu e, ento, reencontrar o seu verdadeiro eu interior (o self). Nesse ambiente, (...) torna-se possvel imaginar o refazer dos vnculos. Ensaia-se, enfim, pelo ritual, um novo modo de o indivduo se relacionar com o mundo.(AMARAL: 2000, p. 69)

  • Participando de um Workshop em Lancaster (UK), The Healing Circle, Leila Amaral observa que o processo ritual de cura, empreendido atravs da utilizao de tcnicas xamnicas, de tcnicas baseadas no expressivismo psicolgico, entre outras, possibilitava uma atmosfera de encontro, onde as pessoas, numa relao face-a-face, despiam de todas as suas identidades sociais, no sendo considerado importante o que era dito, mas como era dito. A anlise dos contedos no importava, mas sim, o modo como eles eram expressos. Os sentidos, a percepo e a emoo predominavam no ritual, e, como tal, eram os campos no qual se processava a cura, uma harmonizao com o eu interior e com o holos, o todo, (...) produzindo alguma coisa que excede ao pensamento (pensado): o desejo de tornar-se melhor, ser outra coisa que ser, ou transformar-se, para utilizar uma categoria new age.(AMARAL: 2000, p. 93)

    importante salientar que os processos de cura, dentro das prticas teraputicas da Nova Era, no negligenciam as descobertas e solues trazidas pela cincia mdica ocidental. Elas acabam sendo incorporadas, pois so vistas como recursos importantes para o processo de cura. Elas somam-se s tcnicas antigas do budismo, hindusmo e dos indgenas, juntamente com as ltimas descobertas da Biologia, Fsica e Psicologia. Contudo, a crtica que se faz a elas pelos terapeutas alternativos diz respeito a sua limitao ao corpo biolgico do indivduo, descartando os outros corpos, como o emocional, o mental e o libidinal. Estes devem ser vistos como interligados ao corpo biolgico.

    A corporeidade do indivduo passa, portanto, a ser vista de modo mais complexo. Nele a sade e a doena ganham outro significado, (...) elas so vistas como partes de uma mesma coisa e no como parmetros opostos de uma representao idealizada da sade como fato orgnico. (CAROZZI: 1999, p. 87) Nesse sentido, (...) a doena no constitui necessariamente um mal, devendo, ao contrrio, ser entendida como um sintoma, um sinal importante do funcionamento do aparelho biopsquico e emocional. (CAROZZI: 1999, p. 88)

    Nessa perspectiva, o corpo passa ser visto como um local de sade e prazer, um (...) corpo-linguagem que questiona o antigo corpo-instrumento para valorizar culturalmente as imagens fantsticas, as emoes e os desejos.(CAROZZI: 1999, p. 85)

    Pode-se notar, at aqui, que o processo ritual de cura vai transcender os limites da dor biolgica e da crise psicolgica para refundar um novo patamar de percepo a respeito do indivduo e do mundo.

    interessante observar que esse novo patamar se pauta por uma constante experimentao, nunca chegando a um fim, a uma finalizao da busca individual. A ao de buscar deve continuar, sua riqueza e capacidade transformadora estariam nesse contnuo, pois para o indivduo da Nova Era seu sentido de vida deve ser balizado pelo constante tornar-se. Como no ritual xamnico, abrir-se para uma

  • realidade maior significa nunca encontr-la definitivamente, j que ela simbolizada como fazendo parte de uma totalidade caracterizada pela infinitude. No existe, nesse caso, um ponto final. Por isso as identidades fixas e as instituies acabam se tornando obstculos.

    Perceptivos de que fazem parte de uma realidade maior, de que fazem parte dela, carregando ela dentro de si - seu eu interior - mas sem perder sua individualidade, esses sujeitos sentem-se, durantes os rituais, participantes

    (...) de uma fora de criao sem lugar fixo ou determinado, mas sempre disponvel como potencialidade ou virtualidade.(...) Enfim, possvel sugerir que, apesar do discurso e da inteno manifesta no meio Nova Era para alcanar um 'holismo' radical, do nvel corporal ao nvel csmico, sua prtica ritual parece enfatizar que esse 'holismo Nova Era' tem a ver mais com uma concepo de totalidade como mistura, espao aberto para improvisos e desvios, para o contingente e o provisrio, do que para a idia de uma totalidade sistmica ou hierrquica. (AMARAL: 2000, p. 103)

    Nesse sentido, possvel entender o fato de o movimento Nova Era comportar diversas modalidade religiosas, sem se fixar em nenhuma delas. Recorrem a crenas do passado, s manifestaes religiosas tradicionais, reorganizando-as atravs de experincias novas que, to logo alcanadas, no se fixam e cedem espao a novas experimentaes.

    A perspectiva do sagrado, nesse caso, se d atravs de um constante buscar e de uma constante experimentao. Assim, ele no pode se fixar, no trnsito que se pode encontr-lo, no h um local definido para encontr-lo. Ele se manifestar nas buscas, nos rituais, nos encontros, na residncia, no escritrio ou na rua. um sagrado sem lugar.

    O sagrado ento criado e recriado no 'improviso', na contingncia dos encontros, a partir de uma 'estrutura sem substncia' - o myisterious tremendum que s se torna presente, (...) atravs de uma relao de 'co-criao'contnua. (AMARAL se fixar, mas que continua sendo um ideal de comunidade, um ideal de comunidade aberta. Um ideal de comunidade no essencialista na qual se estabelece entre os indivduos um tipo de relao que no se pauta pela questo de uma identidade comum, mas que se afirma por um (...)'desejo da semelhana' isto , a coexistncia no dualista entre o nico e o diferente desses participantes entre si, com outros mundos, outras tradies, prximas ou distantes, sem a eles se igualar ou deles se separar. (AMARAL: 2000, p. 109)

  • Dessa forma a busca pelo self, (o eu interior), levaria consigo o desejo de semelhana, separando-se, por isso, do ego, visto como um fator de identidade social estanque, carregado de rtulos da sociedade moderna e que acobertaria a visualizao pelo indivduo de seu lado mais essencial.

    O ego estaria no plo das identidades fixas, das categorias scio culturais substantivas, enquanto o self estaria no plo da abertura, do alargamento, do enriquecimento, do desenvolvimento, das aproximaes e das semelhanas. (AMARAL: 2000, p. 109)

    Segundo Amaral, o constante buscar-caminhar do indivduo Nova Era cria a necessidade de um mercado de bens simblicos sempre disponvel, acessvel a este indivduo vido por novas formas de experincias.

    A organizao do consumo moderno acaba sendo, assim, um eficaz meio de atualizao para o movimento Nova Era. Sua flexibilidade e capacidade de concentrar recursos eficientemente num mesmo local, atendendo aos diferentes gostos e necessidade, faz desse mercado um meio sem o qual o sujeito da Nova Era poderia ficar limitado.

    A autora sugere que as grandes feiras, como o Mind Body International festival, em Londres, do qual ela participou, representam um ponto importante de encontro dos sujeitos da Nova Era, onde uma (...) concepo moral e espiritual no racionalizada se conjuga com uma organizao formal e racional (AMARAL: 2000, p.123), o mercado de bens.

    Todavia, essa ligao, segundo Amaral, torna-se uma necessidade do prprio movimento Nova Era, j que este se pauta pela busca incessante de um sagrado sem lugar, portanto, um sagrado disponvel em vrias formas, representado em tudo e em todos. Por isso, num espao como o das feiras, se cria a possibilidade de se vivenciar o sagrado de varias maneiras, procurando evitar que isto crie um ar de fragmentao ou, simplesmente, uma mistura catica desprovida de qualquer sentido.

    Existe um sentido que permeia a experimentao dos vrios bens disponveis na feira. Esse sentido aceita a fragmentao proveniente do modo de organizao e consumo da feira, mas o aceita na medida em que lhe configura como um espao prprio para a busca de uma totalidade aberta, em que o sagrado est disperso, no se fixando, no se findando em nada.

    A ansiedade que poderia ser provocada por tal representao, que poderia ser afirmada por um consumo de diversos bens que no se esgotaria nunca, relativizada na medida em que, como sugere a autora, se estabelece entre os visitantes da feira, uma moralidade da semelhana, na qual o mais importante perceber naquele espao a (...)'onipresena de foras criativas' (foras de vida ou pleno potencial de

  • vida e criao, isto , do sagrado) no mundo natural e humano. (AMARAL: 2000, p. 130)

    O espao mercantil da feira torna-se, portanto, uma fonte de partilha de uma moralidade que no est preocupada com as diferenas de identidades e de contedo entre os diversos bens venda, pois tal diferena traduzida por uma variedade e diversidade que levam em cada uma delas o sagrado, permitindo ao indivduo a experimentao deste para alcanar seu eu interior.

    Amaral observa que na Mind Body International festival um (...)'tom de celebrao' era caracterstico, (...) tendo no sentimento de 'devoo compartilhada' o seu significado maior.(AMARAL: 2000, p. 130)

    Nessa feira

    (...) a realidade do indivduo, como sujeito de seu prprio aprimoramento e espiritualidade, atravs da liberdade de escolha e do consumo, incorporada natureza inesgotvel da vida e colocada, assim, em sintonia com um sagrado que se encontra em todo e em qualquer lugar como uma 'totalidade aberta' e em contnua transformao.(AMARAL: 2000, 135)

    interessante observar que seja nos espaos dessas feiras, entre outros encontros, seja nos circuitos neo-esotricos das cidades, como aponta Magnani, ou nas comunidades alternativas que se fundam na zona rural, de acordo com Aico Nogueira (1996), os indivduos Nova Era so, em sua maioria, provenientes da classe mdia, mdia alta elitizados. (Cf. D'ANDREA: 2000, p. 83)

    Tal classe, de acordo com D'Andrea, escolarizada, urbanizada e cosmopolita, traduz um sentimento de inquietao diante da 'modernidade tardia', seus membros costumam criticar os sistemas religiosos fechados, como o cristianismo, costumam estudar filosofias orientais e formas paracientficas em busca de uma complementao para suas individualidades. O mercado consumidor e as 'verdades' da modernidade, a razo e o progresso, no so suficientes para atender s necessidades de suas individualidades que querem se refazer e buscar novos caminhos e novos conhecimentos.

    O movimento Nova Era parece conferir caminhos alternativos para essas individualidades, apropriando e expressando de uma maneira particular as questes colocadas pela alta modernidade.

    No prximo captulo, tal questo ser aprofundada, pois, ela abre a possibilidade de entender as relaes entre individualidade e modernidade. Essas relaes parecem ser importantes para interpretar a pertinncia do movimento Nova Era - tanto em seu aspecto modernizante e/ou ps-modernizante - como fonte s respostas que o indivduo busca na sociedade contempornea.

  • II - A NOVA ERA E A CONDIO PS-MODERNA

    O captulo anterior permitiu uma caracterizao geral do movimento Nova Era. Demonstrou-se, atravs da anlise de alguns autores, os diversos caminhos trilhados pelo indivduo New Age, a heterogeneidade imanente destes e, por isso mesmo, a sua difcil conceituao. De modo que, at aqui, pode-se apreender, no estudo desse movimento, um conjunto de aspectos, muitas vezes contrrios, convivendo em relativa harmonia, mas, na maioria das vezes, dando a impresso de uma caoticidade.

    Uma questo importante que se coloca nessa altura a de entender como se articula os aspectos elementares do movimento Nova Era com as transformaes por que vem passando a sociedade nas ltimas dcadas. Uma primeira observao sugere que o carter de heterogeneidade e caoticidade que parecem demarcar o sentido da busca do sujeito Nova Era se relaciona com uma nova dinmica social, proveniente de uma nova fase da reproduo capitalista, por muitos caracterizada como ps-moderna. possvel verificar um novo redimensionamento das relaes sociais e produtivas capitalistas que vo conferir novas formas de sociabilidades, algumas apontando para caminhos alternativos diante das formas de sociabilidades mais tradicionais, como parece ser o caso da Nova Era. As aes e representaes dos sujeitos Nova Era parecem construir relacionamentos que evidenciam uma sintonia considervel com as mudanas provenientes da nova fase de reestruturao capitalista, sem neg-las, se refugiando em perspectivas passadistas, nem as tomando abertamente, sem nenhum tipo de filtragem crtica.

    De acordo com as anlises de David Harvey (1999), essa nova fase vem impor uma nova condio social, ps-moderna, pautada por uma radicalizao do efmero, heterogneo e do fragmentrio, enfatizando o mundo da superficialidade, da sensao e uma negao da busca do eterno e do imutvel.

    A aposta numa moralidade da semelhana, ou a busca por totalidades abertas, sustentando uma atitude individual pautada pelo eterno tornar-se e, por isso mesmo, afastando qualquer espcie de vnculo mais rigoroso com algum grupo, vo fazer do sujeito Nova Era um sujeito capaz de lidar, de uma forma particular, dentro e at mesmo fora do campo religioso, com o efmero e o fragmentrio. H uma espcie de resignificao pelo indivduo New Age de tais elementos caractersticos da nova fase de reestruturao capitalista. Tal caracterstica do movimento Nova Era afirmada, num certo sentido, por Amaral:

    O movimento Nova Era a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar elementos de tradies j existentes e fazer desses elementos metforas que expressem

  • performaticamente uma determinada viso, em destaque em um determinado momento, e segundo determinados objetivos. No mais circunscritos sua comunidade de origem ou a seus grupos naturais, esses elementos religiosos, espirituais e msticos rituais e mgicos so recobertos com uma alta diversidade de significados e usados para uma variedade de propsitos. Apresentam-se mais como recursos simblicos ou de linguagem, com grande grau de flexibilidade e imprevisibilidade, do que como uma doutrina ou como um sistema fechado de significados. Mais que um substantivo que possa definir identidades religiosas bem demarcadas, Nova Era um adjetivo para prticas espirituais e religiosas diferenciadas e em combinaes variadas, independentemente das definies e inseres religiosas de seus praticantes. (AMARAL: 2000, p. 47-48)

    Tambm, de acordo com Terrin:

    A Nova Era simples e inexoravelmente o produto do ps-moderno: de uma cultura que viu ruir todos os seus mitos, as ideologias, a verdade e os valores. uma religiosidade amadurecida por meio de um encontro com as formas expressivas e artsticas em nvel de non-sense e j se encontra impregnada de irracional, de sensaes mais do que de idias, de vontade de crer mais do que convices, de vises e perspectivas deformadoras e de pluralismos indefinidos mais do que apegos e tradies, s grandes histrias e aos grandes mitos do passado. (TERRIN: 1996, p. 9-10)

    Nesse sentido, seria interessante uma anlise da condio ps-

    moderna para poder evidenciar at que ponto possvel uma articulao desta com as caractersticas do movimento Nova Era.

    Torna-se importante ressaltar que esse procedimento compartilha com a viso de D'Andrea, segundo a qual, grande parte da bibliografia nacional e internacional sobre a Nova Era (...) utiliza-se de referncias tericas que se restringem ao corpo especializado das sociologias/antropologias da religio, ignorando teorias gerais clssicas e contemporneas.(D'ANDREA: 2000, p.278)

    Nesse sentido, uma primeira relao da Nova Era com o ps-moderno, principalmente atravs das anlises de David Harvey e Fredric Jameson (1995/97), Rdiger (1995), Sennet (1988) e Bauman (2000), ser possvel evidenciar o quanto as caractersticas da Nova Era extrapolam o campo da religiosidade contempornea e ao mesmo tempo a remodelam, dando condies de refletirmos sobre as potencialidades dadas em tal movimento com relao ao processo de privatizao/isolamento(Cf. MSZROS, 1981) do indivduo.

  • 2.1 NA TRILHA DO PS-MODERNO

    Utilizando-se dos estudos de David Harvey sobre Ps-modernidade, pode-se constatar as diversas situaes enfrentadas pelo indivduo nessas duas ltimas dcadas. Sem entrar no mrito da questo se vivemos ou no uma idade ps-moderna pode-se afirmar, de acordo com Harvey, que a sociabilidade capitalista destas ltimas dcadas parece apresentar uma total aceitao do efmero, do fragmentrio, do descontnuo e do catico, alm de no tentar transcend-lo, opor-se a ele, e se quer definir os elementos 'eternos e mutveis' que poderiam estar contidos nele. (HARVEY: 1999, p. 49)

    De uma forma geral, as foras sociais que produzem esta condio de incerteza na modernidade capitalista, no fim do sculo XX, so compreendidas pelo autor dentro do quadro das transformaes polticas e econmicas deste final de sculo. Transformaes que vo detonar um novo rumo ao processo de acumulao capitalista, o rumo da acumulao flexvel.

    Harvey afirma que este novo rumo, muito embora venha comportar elementos Keynesianos-fordista - e por esse fato sua difcil conceituao - vem quebrar a rigidez de produo da escala fordista, flexibilizando a produo e o consumo de massa padronizado desta era e incentivando uma srie de articulaes inovadoras entre capital e trabalho. Estas articulaes vo apresentar combinaes de elementos velhos e novos do sistema produtivo, processos de trabalho antigos adaptados a novas formas de flexibilidade atravs da sub-contratao, do trabalho temporrio, do trabalhador polivalente, etc.

    Enfim, tal processo de mudana acumulativa do capital acaba resultando numa srie de combinaes entre elementos novos e velhos das relaes de produo, capazes de fazerem-se perceber enquanto uma dinmica capitalista que apresenta uma nova particularidade.

    Conferindo s prticas espaciais e temporais uma estreita implicao em processos de reproduo e de transformao das relaes sociais, Harvey estudar essas relaes no mbito da sociedade capitalista, propondo que as transformaes poltico-econmicas a partir dos anos de 1970, implicou num novo regime de acumulao, a acumulao flexvel, que abriu uma nova fase de compresso tempo-espao nas relaes sociais capitalistas. Compresso do tempo-espao entendido enquanto (...) processos que revolucionam as qualidades objetivas do espao e do tempo a ponto de nos forarem a alterar, s vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para ns mesmos.(HARVEY: 1999, p. 219)

    De acordo com o autor, com a crise de super-acumulao proveniente das relaes produtivas e sociais assentadas num modelo produtivo fordista-keynesiano, cuja caracterstica mais acentuada a sua rigidez no processo de circulao de capital, abriu-se a possibilidade de se reorientar o processo de circulao do capital para um modo de

  • acumulao flexvel. Este acentuava-se num novo patamar de interveno espao-temporal caracterizando-se atravs da maior velocidade dos meios de comunicao e de transportes, em uma acelerao generalizada dos tempos de giro do capital. Transportes e um mercado financeiro mais geis, a espacializao e fragmentao

    (...) a volatilidade e efemeridade das modas, produtos, tcnicas de produo, processos de trabalho, idias e ideologias, valores e prticas estabelecidas (...). No domnio de produo de mercadorias, o efeito primrio foi nfase nos valores e virtudes da instantaneidade (...) e da descartabilidade (...). A dinmica de uma sociedade do 'descarte'(...) comeou a ficar evidente nos anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (...); significa tambm ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estveis, apegos a coisas, edifcios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser. Foram essas a formas imediatas e tangveis pelos quais 'o impulso acelerador da sociedade mais ampla' golpeou 'a experincia cotidiana comum do indivduo'(...). Por intermdio destes mecanismos (...), as pessoas foram foradas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolncia instantnea . (HARVEY: 1999, p. 258).

    A condio do uso da imagem e do simulacro emergiu como grandes instrumentos espao-temporais acelerao, diversificao e induo de um consumo desenfreado e instantneo. Nesse ponto, os espetculos surtiam tambm muito efeito.

    Neste contexto, o espao e o tempo desaparecem como dimenses materializadas e tangveis da vida social e a possibilidade de um indivduo de personalidade esquizofrnica passa a imperar.

    Podemos vincular a dimenso esquizofrnica da Ps-modernidade que Jameson destaca (...) com a acelerao dos tempo de giro na produo, na troca e no consumo, que produzem por assim dizer, a perda de um sentido de futuro, exceto e na medida em que o futuro possa ser descontado do presente. A volatilidade e a efemeridade tambm tornam difcil manter qualquer sentido firme de continuidade. A experincia passada comprimida em algum presente avassalador. (HARVEY: 1999, p. 262-263)

    Esse carter de efemeridade e fragmentao social - que de acordo com Harvey assume atualmente um aspecto mais radical do que em dcadas anteriores vem reafirmar o processo conflituoso atravessado pelo indivduo, fortalecendo, ao que parece o isolamento que este vem sofrendo ao longo da modernizao capitalista.

    Mais do que nunca, como pode-se notar em Rdiger:

    (...) o capitalismo progrediu no sentido da formao de um verdadeiro mercado da personalidade. A concepo mercantil do

  • valor se estendeu s caractersticas abstratas das pessoas. O sucesso social passou a depender da capacidade da pessoa explorar sua singularidade. A liberdade se esvaziou de contedo poltico e moral, tornando-se uma questo de saber se distinguir emprica e psicologicamente dos nossos semelhantes. As peculiaridades do indivduo (o sorriso, o cabelo, a simpatia, o humor, a voz, o sexo, o peso, etc.) no s se tornaram a principal expresso da individualidade, como passaram a ser tratados como categorias econmicas, que, trabalhadas como uma espcie de capital privado, so integradas pessoalmente como valor de troca no mercado. Constata-se uma progressiva atrofia das faculdades antes capazes de favorecer socialmente uma organizao autnoma de indivduos. As pessoas passaram cada vez mais a ter de se contentar com uma espcie de pseudo individualidade, fabricada pelo sistema com vistas a seu consumo pelo mercado. A individualidade noutros termos tende a ser 'reduzida, por modelos estandardizados de comportamento, a uma idia completamente abstrata que j no tem mais nenhum contedo definido'. (RDIGER: 1995, 332-333)

    Segundo Harvey, todo esse processo de fragmentao da personalidade e de compresso espao-temporal tambm desencadeia sentimentos e tendncias opostos: Os prprios capitalistas, inseguros com o processo de volatilizao e financeirizao do capital, passam a empregar meios tcnicos para evitar choques no futuro.

    As empresas subcontratam ou recorrem a prticas flexveis de admisso para compensar os custos potenciais de desemprego provocado por futuras mudanas no mercado. Mercados futuros em tudo, do milho e do bacon as moedas e dvidas governamentais, associados com a secularizao de todo tipo de dvida temporria e flutuante, ilustram tcnicas de descontar o futuro do presente. Toda espcie de seguro contra a futura volatilidade vai se tornando cada vez mais disponvel. (HARVEY: 1999, p. 263)

    A espacializao traz consigo um sentimento de localidade, um

    meio de as pessoas buscarem sua identidade e o prprio capital s vezes oferece isso, na medida em que busca nichos mercadolgicos e as especificidades locais mais lucrativas, muito embora traga uma transformao no sentido de localidade original - alm de que:

    Quanto maior a efemeridade tanto maior a necessidade de descobrir ou produzir algum tipo de verdade eterna que nela possa residir. O rivalismo religioso, que se tornou muito mais forte a partir do final cambiante. (HARVEY: 1999, p. 263-264)

    A busca por segurana, diante de uma compresso espao-temporal cada vez maior acaba, tambm, refletindo num comportamento social que privilegia relaes intimistas, na qual a questo do sensorial-afetivo torna-se o parmetro dos encontros individuais. Nesse caso, os

  • contatos pessoais devem prevalecer, gerando a empatia do relacionamento. Nesse tipo de relao, o indivduo busca no outro uma identidade baseada na semelhana de sentimentos, na capacidade de cada um revelar sua intimidade para com outro, na possibilidade de cada um compartilhar sensaes. Mesmo com o processo de automatizao dos servios e a comunicao distncia propiciada pela Internet, comum verificar na mdia, nos discursos polticos, o predomnio de referncias vida privada de cada personalidade, seus desejos, seu carter, sua convivncia familiar, se usurio de drogas ou consome lcool excessivamente, sendo estes critrios imprescindveis para a formao de vnculos entre as pessoas. A intimidade ganha o maior peso no relacionamento entre os indivduos, como podemos verificar no sucesso de programas como o Big-brother da TV Globo.

    Essas relaes intimistas, centralizadas sob o ponto de vista do sentir e no do agir, vo se opor s relaes impessoais, prprias de um espao pblico onde as decises de uma coletividade so analisadas no mbito das aes que negam a prioridade dos sentimentos, das relaes pessoais. O repdio do espao pblico traz o afastamento da dimenso social nas relaes entre os indivduos, reforando vnculos comunitrios sob o foco das relaes intimistas, cujo objetivo principal formar uma identidade baseada nas relaes pessoais em que os indivduos procuram antes pertencer do que avaliar socialmente suas aes.

    A crena hoje predominante que a aproximao entre as pessoas um bem moral. A aspirao hoje predominante de se desenvolver a personalidade individual atravs de experincias de aproximao de calor humano para com os outros. O mito hoje predominante que os males da sociedade podem ser todos entendidos como males da impessoalidade, da alienao e da frieza. A soma desses trs constitui uma ideologia da intimidade: relacionamentos de qualquer tipo so reais, crveis e autnticos, quanto mais prximos estiverem das preocupaes interiores psicolgicas de cada pessoa. Esta ideologia transmuta categorias polticas em categorias psicolgicas. Essa ideologia da intimidade define o esprito humanitrio de uma sociedade sem deuses: o calor humano nosso deus. A histria do surgimento e do declnio da cultura pblica faz com que, no mnimo esse esprito humanitrio seja posto em questo. (SENNET: 1988, p. 317)

    Diante de um quadro onde a intimidade ganha um aspecto

    tirnico, encerrando o pblico enquanto um simples espao de movimentao individual, o comportamento dos indivduos acaba reforando tendncias anti-sociais que se articulam com uma viso tecnologicamente operacional da sociedade, uma viso balizada pelo sistema produtor de mercadorias que prioriza e possibilita a defesa de uma sociedade do bem estar cuja finalidade o consumismo. O avano das relaes capitalistas aprofundaram a mercantilizao humana, a ponto de o indivduo virar um assinante de mercadorias, estendendo para seu corpo e mente atributos mercantis, fetichistas, se vendendo

  • enquanto imagem e conformando-se a uma atitude operacional que integra os opostos e anula as contradies. (Cf. MARCUSE: 1973) Ao reforar que o estar bem imediato se conjuga com o consumo de bens e de experienciaes que valorizam a intensidade dos sentimentos, a esttica capitalista vende para o sujeito um estilo de vida pautada na constante busca de satisfao individual pouco disposta a entender e vivenciar processos de longo prazo, ou a fazer uma crtica sistemtica s contradies que vo surgindo dessa busca constante de satisfao.

    De acordo com Marcuse, os produtos do processo de produo capitalista iro:

    (...) promover uma falsa conscincia que imune sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benficos disposio de maior nmero de indivduos e de classes sociais, a doutrinao que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. um bom estilo de vida muito melhor do que antes e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformao qualitativa. Surge assim um padro de pensamento e de comportamento unidimensionais, no qual as idias, as aspiraes e os objetivos que por seu contedo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ao, so repelidos e reduzidos a termos desse universo, so redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extenso quantitativa. (MARCUSE: 1973, p. 31)

    Neste caso, as perspectivas para uma mudana social ficam ofuscadas, principalmente porque a esfera da poltica e seu espao de atuao, o espao pblico, so emoldurados no espao do privado, da intimidade e enfraquecidos com o reestruturao/deslocamento do prprio Estado-nao, este cada vez menos resistente aos novos centros transnacionalizados de poder. o que afirma Zygmunt Bauman ao fazer um debate sobre as transformaes por que vem passando a sociedade atual para investigar possveis caminhos de interveno nesta, de forma a recuperar aquilo que ele considera como fator imprescindvel para o desenvolvimento da sociabilidade, qual seja, a conscincia de sua historicidade, ou melhor, a autoconscincia de sua transitoriedade e a participao com responsabilidade na sua construo.

    De fato, para Bauman, tal perspectiva, se no era concretamente realizada na modernidade, em seu sucedneo, chamado ps-modernidade, revela-se impraticvel. que na ps-modernidade as relaes sociais sofreram um rearranjo diante da reestruturao do mundo que resultou no enfraquecimento de um lcus privilegiado para o desenvolvimento de uma sociabilidade para si. Este lcus, residente da esfera poltica, era o espao por excelncia do pblico/privado ou, como diz o autor, a gora, espao importante e capaz de situar e mediar as necessidades privadas e pblicas de modo a garantir e conciliar o direito de liberdade individual e sua conseqente necessidade de realizao dentro de uma coletividade.

  • A gora esse espao nem privado nem pblico, porm, mais precisamente pblico e privado ao mesmo tempo. Espao onde os problemas particulares se encontram de modo significativo Isto , no apenas para extrair prazeres narcssticos ou buscar alguma terapia atravs da exibio pblica, mas para procurar alavancas controladas e poderosas o bastante para tirar os indivduos da misria sofrida em particular; espao em que as idias podem nascer e tomar forma como bem pblico, sociedade justa ou valores partilhados (BAUMAN: 2000, p.11)

    Tal perspectiva perdeu seu lcus privilegiado diante das novas formas de manifestao do poder e autoridade que se articularam num espao cada vez mais distante das decises polticas, estas, ainda fortemente atreladas ao espao local ou, no mximo, ao espao internacional do Estado-nao. Essas manifestaes de poder e autoridade se do no mbito de um espao transnacionalizado, na qual as fronteiras quase inexistem e as decises extrapolam os marcos institucionais do fazer poltico tradicional.

    Vivemos, diz Castells, numa sociedade de classes sem classes, num 'cassino eletrnico global' na qual o capital e o poder escapam para o hiper-espao da pura circulao e j no esto incorporados s classes 'capitalista' e 'dirigente'. A poltica, por outro lado, continua sendo, como antes, um assunto essencialmente local e uma vez que a linguagem da poltica a nica em que podemos falar de curas e remdios para a misrias e preocupaes comuns, a tendncia natural da classe poltica buscar explicaes e tratamentos numa rea prxima ao territrio domstico da experincia cotidiana. (BAUMAN: 2000, p. 57)

    Este papel reduzido e impotente da poltica se articula a uma necessidade crescente de segurana diante de um mundo em que o futuro e a estabilidade j no esto mais garantidos. Nesse contexto, os polticos acabam se desviando do enfrentamento das causas deste sentimento, pois j no os alcana, para a criao de:

    (...) leis de asilo e residncia, para perseguir e deportar estrangeiros indesejados, suspeitos de tendncias invejosas condenveis. Podem exercitar-se no combate aos criminosos, ser 'duros com a criminalidade', construir mais prises, colocar mais policiais nas ruas, tornar mais difcil o perdo aos condenados (...) (BAUMAN: 2000, p. 58)

    Ao sentimento de insegurana soma-se uma ansiedade proveniente das incertezas. A nica certeza, como aponta Bauman, a de que a impreciso dos sinais na estrada da vida e a indefinio dos pontos de orientao existencial j no podem mais ser vistas como uma amolao passageira provavelmente supervel com mais informao e instrumentos mais eficazes (...) (BAUMAN: 2000, p. 26).

    Tais fatos vm minar a autoconfiana do indivduo, ele no procura se lanar na busca de alternativas e, quando as busca, so

  • manifestaes que no atingem o ponto nevrlgico do problema, se desviando para os problemas de segurana, j assinalados. Todas essas buscas se encerram em estratgias autnomas refratrias de qualquer vnculo mais duradouro capaz de transformar as preocupaes individuais em preocupaes sociais, com a conseqente necessidade de uma interveno pblica para o seu sucesso. Os indivduos, quando se aglutinam, no para resolverem seus problemas coletivamente, apenas uma forma de associao que serve para dar ressonncia ao problema, mas cada um tem a responsabilidade solitria para com a sua resoluo. E esta resoluo dura o mesmo tempo que a sua experincia, pois s esta possvel. o caminho sensorial em destaque, aquela emoo do ato em si, prpria do consumo. O sentimento de insegurana, falta de garantia e incerteza iro, com isso, sofrer um processo de privatizao, cujas solues sero infimamente duradouras.

    Esse processo parece vir de encontro ao que Jameson denominou como a lgica cultural do capitalismo tardio, em que ocorre uma intensa expanso da esfera cultural sobre todos os setores da vida social, guiadas e orientadas pela lgica mercantil, contribuindo para uma capitalizao da vida individual e social ao nvel at mesmo do inconsciente. Ele afirma ser esta lgica reprodutora de uma espcie de populismo esttico, diluindo as fronteiras entre a alta cultura e a cultura de massas, apresentando um gosto, um enorme fascnio justamente por esta paisagem 'degradada' do brega e do ktisch, dos seriados de TV e da cultura do Reader's Digest, dos anncios e dos motis dos late shows e dos filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura.(JAMESON: 2000, p.28).

    Jameson ressalta que nessa dominante cultural ps-moderna as oposies e as crticas no mais escandalizam ningum e no s so recebidas com a maior complacncia como so consoantes com a cultura pblica ou oficial da sociedade ocidental(30). Tal condio relaciona-se ao fato de:

    (...) a produo esttica hoje estar integrada produo das mercadorias em geral: a urgncia desvairada da economia em produzir novas sries de produtos que cada vez mais paream novidades (de roupas a avies), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posio e uma funo estrutural cada vez mais essenciais inovao esttica e ao experimentalismo (JAMESON: 2000, p. 30).

    Portanto, as oposies e crticas so conformadas pelo campo da esttica da mercadoria, elas se transformam numa novidade, numa nova manifestao, num novo estilo, esto contidas no feminismo, no homossexualismo, ciber punks e seitas, numa infinidade de grupos e organizaes. Qual voc escolher e por quanto tempo voc permanecer nelas? O leque de escolhas muito diversificado e cabe ao indivduo optar, exercer sua liberdade como um bom consumidor o faz

  • num shopping ou num supermercado. De alguma forma esses grupos no conseguem representar um grave problema para o status quo social. Eles so formas de luta demasiadamente locais, no se vinculam s lutas globais, pelo menos no sentido de engendrar formas de resistncias globais que se oponham ao capitalismo global. O sentido de totalidade para uma transformao profunda da ordem, como afirma Jameson, se perde com esses grupos:

    Os grupos (...) parecem proporcionar a gratificao de identidade psquica (do nacionalismo a neoetnicidade). E tendo se tornado imagens, os grupos podem se esquecer de seu prprio passado sangrento, da perseguio e do repdio, e podem agora ser consumidos: isso marca sua relao com as mdias, que se tornam, digamos assim, seus parlamentos e os espaos de sua 'representao', tanto no sentido poltico quanto no semitico( JAMESON:2000, p.347).

    O campo decisrio da poltica passa, ento, a se constituir num obstculo ao consenso, pois virou espao para a consecuo de relaes intimistas e de formao de grupos que conquistaram um certo orgulho em sua identidade de serem comandados por aquilo que acaba sendo apenas outros grupos, uma vez que agora tudo em nossa realidade social uma marca de filiao a um grupo e conota um conjunto especfico de pessoas (JAMESON: 2000, p.348).

    Os grupos resultariam da esfera das necessidades cotidianas, atuando no imediatismo dessas relaes, muito diferente da perspectiva da classe social, uma organizao de formao de longo prazo, que se revela na mediao com a totalidade das estruturas sociais e que, por isso mesmo, torna-se mais difcil de ser visualizada e experienciada na imediaticidade. As classes:

    (...) so demasiado abrangentes para figurar como utopias, como opes que escolhemos e com que nos identificamos de forma fantasmtica.(...) Mas os grupos so pequenos o suficiente (...) para permitir investimentos libidinais de um tipo mais narrativo. Alm disso, a exterioridade que vem junto com a categoria de 'grupo' como um esqueleto no a da produo, mas a da instituio, uma categoria que j (...) mais suspeita e igualmente mais antropomrfica (JAMESON: 2000, p.347 grifos meus).

    Talvez, por isso, Jameson derive de tais resultados o fato de que

    na lgica cultural ps-moderna ocorra o aparecimento de um novo tipo de achatamento ou de falta de profundidade no qual os modelos de profundidade antes recorrentes, a essncia e a aparncia, o latente e o manifesto, a autenticidade e a inaltenticidade, o significante e o significado, so substitudos por modelos superficiais. O fim desses modelos representariam, segundo o autor, o fim do prprio sujeito individual, agora fragmentado, descentrado, desprovido de ego, sem o qual fica difcil a criao de um estilo individual, nico. Este, agora

  • derrotado pela reproduo mecnica, engendra a prtica quase universal do pastiche.

    O pastiche, como a pardia, o imitar de um estilo nico, peculiar ou idiossincrtico, o colocar de uma mscara lingstica, falar em uma linguagem morta. Mas uma prtica neutralizada de tal imitao, sem nenhum dos motivos inconfessos da pardia, sem o riso e sem a convico de que, ao lado dessa linguagem anormal que se empresta por um momento, ainda existe uma saudvel normalidade lingstica. (JAMESON: 2000, p.44-45).

    Os grupos, nesse sentido, ficam sem uma distino particularizada, incapazes de representarem e manifestarem seu ser, sua individualidade enquanto sujeitos histricos. Eles incorporam um modelo representacional superficial, cuja identidade se d na escala do sentimento de intimidade, da instituio de referncias personalistas, sem desempenhar o papel estrutural caracterstico das classes.

    Assim,

    (...) o que mais surpreendente, e talvez o perigo mais imediato do ponto de vista poltico, que esses novos modelos representacionais tambm encerram e excluem qualquer representao do que costumava ser representado ainda que imperfeitamente como a 'classe dominante'. Faltam vrias caractersticas que so necessrias para essa representao, como j vimos: a dissoluo de qualquer concepo de produo, ou de infra-estrutura econmica, e sua substituio por uma noo j antropomrfica de uma instituio significam que nenhuma concepo funcional de um grupo dominante, muito menos uma classe, pode ser pensada (JAMESON:2000, p.349).

    O predomnio de modelos representacionais cada vez mais

    prximos ao pastiche resulta, conseqentemente, na imitao de um passado cada vez mais desestoricizado, desubstancializado, transformado na cpia autntica de algo que jamais existiu (JAMESON: 2000, p.45), ou seja, transformado numa espcie de simulacro.

    Para Jameson, a linguagem do simulacro e do pastiche vai emprestar realidade presente uma espcie de esmaecimento de nossa historicidade, da possibilidade vivenciada de experimentar a histria ativamente. Essa crise da historicidade desencadearia um grave problema para a temporalidade:

    Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas pretenses e retenes em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experincia coerente, fica bastante difcil perceber como a produo cultural de tal sujeito poderia resultar e outra coisa que no um 'amontoado de fragmentos' e em uma prtica da heterogeneidade a esmo do fragmentrio, do aleatrio. (JAMESON: 2000, p.52).

  • Quando o sujeito j no consegue definir o passado ou presente, seno atravs de um amontoado de fragmentos, cuja relao significante-significado perde sua linearidade e univocidade, cria-se uma personalidade esquizofrnica.

    Segundo o autor, tais transformaes esto implicadas na mutao de nosso espao, um espao em que os homens no conseguem acompanhar sua evoluo, uma evoluo que gera um hiper-espao, uma nova rede global descentrada do terceiro estgio do capital (JAMESON:2000, p.64).

    Esse hiper-espao corresponderia a uma nova prtica coletiva, uma nova modalidade segundo a qual os indivduos se movem e se congregam, algo como a prtica de uma nova e historicamente original hiper-multido.(JAMESON: 2000, p.66).

    O problema, afirma Jameson, que esse hiper-espao conseguiu ultrapassar a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espao circundante e mapear cognitivamente sua posio em um mundo exterior mapevel (JAMESON:2000, p.70)

    Por isso, Jameson v a necessidade urgente de um mapeamento cognitivo capaz de permitir ao individuo a capacidade de representar o conjunto das estruturas sociais como um todo.

    Seria o movimento Nova Era um movimento capaz de dar subsdios para que o indivduo faa o mapeamento cognitivo da nova dimenso espacial-temporal da sociedade capitalista? Estaria, ele, pelo menos, apto a dar para as subjetividades uma capacidade simblica-representacional nesse sentido? Essa uma questo importante, pois possibilita refletir sobre at que ponto o movimento Nova Era engendra modalidades de respostas individuais que implementam uma forma de sociabilidade inovadora capaz de interferir concretamente na prpria objetividade social que a determinou. perguntar se o movimento Nova Era consegue transpor o campo da religiosidade para o campo da poltica, resgatando esse lcus histrico importante para a concretizao das transformaes idealizadas e possveis.

    No mbito da religiosidade, da busca de uma significao, de um sentido existencial atingido atravs de novas modalidades de representaes e simbolismos, o movimento Nova Era parece ser um dos resultados do processo de transformao e readaptao que o campo da religiosidade vem experimentando e, nesse ponto, o movimento compartilha com a sobrenaturalizao prpria da religiosidade, no concretizando a transformao idealizada, se bem que ainda garantindo um referencial moral at certo ponto problematizador da ps-modernidade.

    A anlise das transformaes que o campo da religiosidade vem sofrendo pode revelar as congruncias entre este campo e o movimento Nova Era, assim como reforar as caractersticas que tornam o movimento Nova Era um movimento prprio das ps-modernidade,

  • revelando-se, de certa maneira, enquanto um estilo particular encontrado tambm no campo poltico, social e cultural.

    Nesse sentido, com o propsito de apreender o aspecto de transversalidade que o movimento Nova Era parece evidenciar, far-se- uma breve anlise do campo da religiosidade na atualidade. Torna-se importante enfatizar que a anlise do campo religioso est circunscrito quelas regies que sofrem sistematicamente a nova fase de reestruturao produtiva capitalista.

    2.2- PS-MODERNIDADE E RELIGIOSIDADE

    Torna-se relevante, portanto, para os objetivos deste trabalho, entender os mecanismos de respostas engendrados pelos indivduos no campo da religiosidade. Neste campo, como se d s resistncias e conformidades dos sujeitos diante da ps-modernidade?

    Um primeiro ponto a ser considerado est na nova dinmica no campo dos smbolos e simbolismos ligados ao mundo da religiosidade ou a ela relacionados. que esse campo passa a se orientar cada vez mais a partir de uma opo individualizada na qual se expressa uma experincia polissmica, exclusiva ou transeunte de sistemas nicos, conjugados organicamente ou 'bricolados' subjetivamente, vividos como um direito individual de escolha, construo, envolvimento e trnsito (BRANDO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.35)

    Nesse caso, tanto as classes populares como as eruditas pactuam com esse caminho. As populares, atravs de uma personificao dos seres sagrados e as eruditas atravs de um evidente e crescente foco sobre a impessoalizao cosmicizante (BRANDO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.35).

    Parece que, na atualidade, o religioso vem sofrendo um redimensionamento, se orientando cada vez mais para as perspectivas do caminhar individual. como se a sede do sagrado deixasse de se encerrar numa igreja ou numa nica entidade transcendental e passasse a se constituir durante o caminhar do sujeito de f. Neste caminhar, a busca pelo sagrado se revelaria atravs das vrias verdades que o indivduo encontra passando por vrios sistemas religiosos e por outros campos cuja aura religiosa possvel verificar graas ao carter cada vez mais individualizado da f.

    Dentro desta perspectiva de f individualizada, a verdade religiosa pode ser encontrada nos mais variados lugares, por isso a instituio e o tradicionalismo tornam-se pesados demais para o sujeito. No que ele agora os abandone, mas j no precisa se fixar neles. O que se tem uma espcie de troca de bens religiosos diretos ou indiretos na busca de uma vivncia mstica.

  • Seu alvo: conhecer-se at onde for possvel, dissolver-se na ordem mstica de um cosmos vivo, mas condio de faz-lo trabalhando a plenitude de sua prpria pessoa, do corpo s possveis e vrias dimenses espirituais de si mesmo. Realizar-se, sendo cada vez mais a expresso mais pura de sua prpria plenitude. Para que isto seja possvel, o direito de realizao individual do sujeito pressupe o trnsito entre sistemas oficiais e alternativos, religiosos, eclesisticos, de pequena confraria confessante ou absolutamente solitrios. (BRANDO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.31).

    Neste trajeto, os diversos sistemas de crenas e sentidos, de caractersticas muitas vezes divergentes, vo se conformar a um todo holstico e provisoriamente perfeito e acabado (BRANDO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.33)

    Assim,

    (...) recorre-se a diferentes sistemas, forma-se uma verdade de conjunto onde cada uma das expresses de religio ou mstica representa uma parcela. (...) Pode-se passar por vrios sistemas, transitar por muitos deles, sem que eticamente isso aparea (...) como uma espcie de 'trapaa' com o sagrado. o contrrio: se antes, por exemplo, era Hare Krishina, agora o seu momento de purificao j no est mais a. No que aquilo fosse falso como um convertido que recusa a ex-religio apenas transitou-se por isso e agora se est num estgio superior. (BRANDO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.57)

    De acordo com Renato Ortiz, esta postura do sujeito de f se vincula ao prprio modus operandi do mercado capitalista que pressupe uma diferenciao cada vez maior das religiosidades. Sendo o mercado a instncia hegemnica de atuao das relaes sociais, a religio s poderia existir como um politesmo (ORTIZ in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.137).

    Vemos um processo de mercantilizao do sagrado que, a meu ver, significaria uma adequao das instncias religiosas ao funcionamento interno desse sistema. Isso significa que as religies no tm mais a misso de conquistar a todos; devem, na verdade, vender um produto que seja mais consumido pelos outros. (ORTIZ in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.138).

    Neste caso, o autor conclui que no contexto atual j no mais possvel conferir religio o papel de fundadora de universais e, conseqentemente, de apresentar uma misso catequizadora. Por isso, talvez seja possvel verificar a atenuao e substituio do discurso catlico das questes teolgicas e dogmticas mais fundamentais de seu universo para o debate de questes referentes humanidade de forma geral: direitos humanos, fome, violncia, etc. As velhas e novas religiosidades hoje presentes est