Cmera muy very good pra mim trabalhar - IVANA BENTES IVANA BENTES Pesquisadora de cinema e comunicao, professora da Escola de Comunicao da UFRJ, coordenadora adjunta do Curso de Ps Graduao da ECO-UFRJ. Abril 2004.

Num momento em que as questes em torno da potncia das imagens como forma de conhecimento e pensamento, como comunicao e estranhamento radical do outro e de si tornam-se decisivas para se pensar a cultura contempornea, o projeto Vdeo nas Aldeias, coordenado por Mari Corra e Vincent Carelli, ganha uma dimenso singular. Para alm do pioneirismo, esse projeto, que existe desde 1987, chega em uma etapa decisiva e radical, ao apresentar, no apenas a produo de vdeos da equipe do projeto sobre os ndios no Brasil, mas ao formar uma gerao de realizadores indgenas que vm fazendo uma espcie de auto-etnografia ou auto-documentrio, em que os prprios ndios registram e editam suas imagens, passando de objetos a sujeitos do discurso. Ao descolar a cmera da mo dos antroplogos e cineastas profissionais e formar realizadores indgenas, a primeira questo que podemos sublinhar a do deslocamento de poder e uma reflexo decisiva sobre a produo do saber. Quem tem a cmera tem o comando e a simples posse pelos ndios desse instrumento de observao, interveno e comunicao pode produzir um outro pensamento ou dar visibilidade a uma outra lgica visual e mental. A experincia do projeto com o audiovisual mostra ainda a possibilidade de se passar da cultura oral ao audiovisual, sem a necessidade de um domnio da cultura letrada, campo por excelncia do saber ocidental, das cincias sociais e da prpria antropologia. Ao introduzir o vdeo, uma nova tecnologia, no cotidiano das aldeias, o projeto tambm pe em questo a idia de pureza, isolamento, conservao que condenaria essas comunidades mltiplas e singulares a uma espcie de estado de museu, um museu da humanidade, lugar comum reiterado mesmo entre antroplogos, indigenistas e ecologistas. Em Vdeo nas Aldeias se Apresenta, realizado por Mari Corra e Vincent Carelli (2002), os autores registram essa experincia de descoberta e aprendizado da cmera, dos planos, dos princpios da narrativa e da edio pelos ndios em formao e as questes sobre essa passagem da inocncia auto-conscincia pela imagem. A questo interessa no apenas para se pensar o uso das imagens na antropologia, na etnografia ou nas cincias sociais, mas d visibilidade aos impasses em torno do documentrio contemporneo que vm problematizando temas como a produo da auto-imagem, a fabulao, a construo do real, a nossa relao com a imagem do outro, temas recorrentes em toda uma srie de filmes. Mas antes de analisar esses trabalhos feitos pela primeira gerao de realizadores indgenas formados pelo projeto, j encontramos uma srie de questes em doisvdeos clssicos, realizados por Carelli e que sintetizam a esttica, propostas e potencial do projeto Vdeo nas Aldeias: O Esprito da TV (1990), de Vincent Carelli e A Arca dos Zo (1993), realizado em parceria com Dominique Gallois. Ao levar uma televiso, um videocassete e uma cmera de vdeo para a tribo dos Waipi, em O Esprito da TV, a equipe do projeto Vdeo nas Aldeias desencadeia uma reflexo original sobre a funo da imagem numa sociedade, captando a emoo e lucidez do grupo diante de suas prprias imagens e das imagens de outra tribo, trazida pelo aparelho de TV. bom conhecer os outros pela TV, diz um ndio Waipi diante das primeiras imagens que lhes chegam da tribo dos Zo (norte do Par), revelando numa frase, a tica da TV e da janela eletrnica em que o mundo vem ao nosso encontro antes mesmo que o desejemos e com toda a segurana da mediao. desse confronto tecno-antropolgico que, em O Esprito da TV, as mais diferentes funes da imagem e do registro eletrnico vo surgindo com sua lgica prpria. No tive imagens dos meus parentes; agora, com a TV, os jovens vero os velhos. O registro do vdeo um suplemento de memria, meio de transporte que traz a pessoa e a sua fala. A televiso, verdadeira terapia e vcio entre ns, tambm tem entre os Waipi uma funo mgica: poltergeister domstico, canal aberto que transporta o corpo e os espritos da tela para a realidade e vice-versa. Assistindo a um ritual mgico de outra tribo, o paj Waipi se apressa em montar guarda diante do aparelho de TV dizendo: Eles [os espritos] no vo passar daqui, vieram pela TV, mas no vo passar. O zelo pela sua imagem, a intuio de sua importncia, tambm se mostra crucial para o grupo filmado. No queremos que vejam imagens dos ndios bbados; No bom mostrar que somos poucos; bom mostrar que ficamos perigosos quando bebemos, que arrancamos e comemos cabea de branco, bem gostoso. A imagem investida e vivida em todos os nveis, meio de reconhecimento e estranhamento do outro. Diante das imagens dos Zo, os Waipi forjam parentescos e distncias: Tm a mesma fala, a mesma pele, mas os lbios so diferentes. A funo pedaggica da imagem, de registro e transmisso de rituais, mitos e histrias, tambm aparece.

Em A Arca dos Zo, quinto documentrio da srie, o vdeo torna-se instrumento antropolgico e elo decisivo no processo de pensamento e conhecimento. Os Waipi decidem encontrar-se com a tribo que conheceram pela TV, os Zo e levam o vdeo para documentar e confrontar ritos e mitos, numa meta-antropologia em que um grupo passa de objeto a sujeito de conhecimento. Devir antropolgico dos prprios ndios, que colocados numa posio de comando, de produtores das imagens de seus parentes tornam-se os observadores participantes, analistas, tericos dessa situao. A Arca dos Zo um dos mais intrigantes trabalhos sobre o encontro, comunicao e estranhamento entre duas tribos indgenas (os Waipi e os Zo), mediados pela imagem que cria nos Waipi o desejo de conhecimento do outro. Acompanhamos uma experincia original do ato de olhar em que ndios de duas tribos se reconhecem, se diferenciam, se comparam primeiro pelas imagens, para depois trocarem impresses, palavras e finalmente objetos. Na visita aos parentes, ao constatar que os Zo andam nus, as mulheres e os homens com os rgos sexuais mostra, o narrador Waipi, cuja tribo usa tanga de pano, fica envergonhado, a princpio, mas logo acostuma: Fui dormir com vergonha e acordei sem vergonha. As tantas diferenas (lngua, ornamentos, simpatias, medicina, artefatos) criam a necessidade do narrador Waipi dizer: Eu tambm sou ndio e alertar os parentes mais isolados sobre um futuro comum a essa condio: a poluio dos rios pelos brancos, a explorao dos garimpeiros, as doenas, epidemias e mortes que podem vir com o homem branco, que a tribo dos Zo ainda pouco conhece. As imagens da TV trazem para os Zo o conhecimento de perigos inimaginveis, como tratores do garimpo escavando a terra e arrancando rvores, mas tambm as imagens que fazem rir dos parentes danando numa festa em que todos beberam muita caissuma, e modos de viver e de fabular que disparam sua imaginao. Grandes e pequenas descobertas, como o fascnio das ndias pelo pano vermelho da tanga dos Waipi, o material liso e metlico da fuselagem de um avio monomotor ou a idia de troca entre esses iguais-diferentes, como na partida final em que se encomendam pano, arco, um p de bananeira. Quando o Waipi leva um Zo pela mo para ver suas imagens na TV e explicar o que vem, surge uma nova dificuldade: Como televiso na nossa lngua? No sei. As diferenas de grau entre uma tribo e outra (nus ou com tanga, formas diferentes de caar, tecer, preparar a comida, etc.) se tornam menores diante do grande outro, o branco, curiosamente o aparato tecnolgico, o equipamento que possibilita o contato e comunicao entre as tribos isoladas, passa rapidamente de objeto de estranhamento a objeto de fascinao e uso cotidiano. A televiso como rede de troca simblica, a cmera como mediadora do encontro e descoberta do outro ganha nesse filme um sentido que ser desdobrado nos demais vdeos da srie. Em Antropofagia Visual (1995), Vincent Carelli mostra como os ndios Enaun Nau, do norte Mato Grosso, reagem com performances e encenaes, humor e comicidade, chegada dos cineastas e da cmera. Mais do que isso, ver TV e ver fico na TV cria um desejo de encenao e performance. A apropriao da cmera pelos ndios o novo diferencial desse projeto. Da observao participao e interveno, esses novos sujeitos do discurso invertem os pontos de vista tradicionais da antropologia, o que marca a nova fase do projeto que vem formando videastas ndios. Ao lado do tradicional discurso de denncia, em que os prprios ndios tratam dos seus interesses, um uso instrumental do vdeo, vemos surgir um desejo de fabulao e fico sobre o cotidiano, um desejo de linguagem. claro que o processo de formao dos realizadores indgenas, a compreenso do poder das imagens e o seu domnio passam pelo aprendizado dos cdigos e formas de narrar e que no h nada de natural ou neutro nessa alfabetizao audiovisual, pois so passadas instrues precisas sobre corte, planos, construo de um ponto de vista, construo de um personagem, etc. Dois vdeos so importantes para se acompanhar essa formao e o que ela teria de indutora da linguagem usada: ndio na TV (2000), de Vincent Carelli e Vdeo nas Aldeias se Apresenta, de Mari Corra e Vincent Carelli (2002), sobre o prprio projeto. Em ndio na TV, os ndios so confrontados com as imagens da mdia e da populao sobre o que os brancos acham que eles so, e devolvem suas prprias imagens num interessante embate performtico de uma equipe de realizadores indgenas, com cmeras nos ombros e um entrevistador (o ndio Hiparendi) na estao de metr da praa da Liberdade em So Paulo. Isso, no dia 18 de setembro de 2000, aniversrio de 50 anos da TV no Brasil. Nesse vdeo, as imagens de aldeias e tribos de todo o Brasil so exibidas em telas simultneas diante dos passageiros do metr, enquanto uma equipe entrevista os transeuntes sobre a imagem do ndio na mdia. As entrevistas so feitas sob o impacto de um cinegrafista e entrevistador ndio no corao da cidade e os passantes falam sobre o que a TV mostra sobre esses mesmos ndios e o que poderia se ver de novo na TV. As falas trazem tona todos os clichs em torno do ndio no imaginrio social brasileiro. Dois tipos de programas parecem marcar esse imaginrio, na poca da filmagem, a novela das sete Uga Uga, exibida na Globo, cujas imagens tambm passam no telo, em que um ndio louro de olhos azuis, branco e forte apresentado como o bom selvagem a ser civilizado, e as narrativas de programas como o Globo Reprter.

Diante dessas imagens e das imagens de tribos gravadas pelo projeto Vdeo nas Aldeias algumas consideraes: e se as tribos tivessem um canal de TV prprio? Reconhecimento da alteridade (cultura, costumes), de lutas (pelas terras), mas tambm a necessidade da fico como construo de subjetividade. Quem sabe uma novela s com ndios? So propostas que aparecem nos depoimentos. Os clichs do que ser ndio no nosso imaginrio social aparecem de forma bem mais assustadora em certos depoimentos do Vdeo nas Aldeias se Apresenta. Preconceito social e racial, os ndios so considerados como preguiosos, inadaptados ao trabalho, selvagens, agressivos, infantis, necessitados de tutela e proteo, ou relacionados a tudo o que no presta, uma sub-humanidade destituda de encanto ou encarnao do puro exotismo: nus ou de tanga, falando uma lngua incompreensvel e fazendo com a boca uh! uh! uh! Esse vdeo importante como documento da metodologia de formao dos realizadores indgenas, sua descoberta do que alguns brancos pensam sobre eles, a percepo da imagem e da cmera como lugar de poder, de troca, de encontro, e at o desejo de imitar, fazer o mesmo que os brancos, como o Programa de ndio, feito e exibido na TV de Cuiab e outras emissoras com ndios de palet, gravata e maquiagem, imitando os apresentadores de telejornais. O mais interessante, entretanto, acompanhar o aprendizado da imagem e da linguagem do vdeo. A experincia de olhar pelo visor e descobrir a que distncia do outro (de longe, de perto) se pode chegar, a vergonha do contato visual com o outro e o momento que a cmera se torna invisvel. Ou ainda, a troca das imagens entre as triboscomo novo ritual de conhecimento. A descoberta de como cada tribo ou ndio reage diante das imagens de si mesmo, de outras tribos, de ancestrais. O fascnio diante das imagens da Comisso Rondon, de 1917, e a descoberta da eternidade e ressurreio pelas imagens. A imagem como lugar da memria e comunicao com o passado e com o futuro. Memria muito curta. No vi meus ancestrais. Vou guardar imagem para os meus netos. O desenvolvimento da formao, com a prtica da edio (onde cortar, pergunta a professora para um realizador indgena), a construo de narrativas e a possibilidade de fazer encenaes e fico, traz as questes mais fascinantes. O lugar do realizador um lugar de poder. E isso fica claro na pergunta: Por que s homens filmam? So poucas as realizadoras indgenas. Questes que vo chegar at o direito autoral e a negociao das imagens, quando os ndios so informados do valor real da sua imagem. Conscincia de um capital imaterial que durante dcadas foi pilhado sem criar nenhum constrangimento. As imagens de ndios que circulam no mundo inteiro em jornais, revistas, cinema, TV so parte desse esplio. Nos diferentes trabalhos realizados pelo projeto Vdeo nas Aldeias, o tom didtico, instrumental, se impem, mas o que seriam questes aparentemente simples ou bvias, ganha estatuto perturbador num segundo momento. Perguntas como: Por que os livros de histria falam dos ndios com o verbo ser no passado? Como se j estivessem todos mortos e no tivessem futuro. Como mudar isso? Nesse contexto os vdeos dos realizadores indgenas ganham um outro estatuto, por tornar a colocar essas culturas no eterno presente das imagens e da narrativa audiovisual, de forma muito prxima da experincia de eterno presente dos ritos e mitos das narrativas orais e com um diferencial: a possibilidade de criar redes, fazer mdia, trocar informaes, imagens, valores, entre eles, num tipo de miscigenao, multiculturalismo que mal tinha sido vislumbrado pela antropologia. Atravs das imagens as tribos se vm de fora (auto-imagem), conhecem outras tribos, entram em contato com o mundo do branco, constroem suas prprias imagens e chegam ao intercmbio com tribos estrangeiras, fora do pas. E o que pode acontecer quando os ndios se tornam mdia? Essa uma das mais intrigantes questes do audiovisual contemporneo, a entrada no circuito da informao de um contingente de subjetividades. Uma outra questo se impe, qual o valor esttico desses vdeos? Que qualidades, que potencial expressivo trazem? E aqui as questes de linguagem se avolumam, sobrepondo-se, do clssico Nanook, o esquim, passando pelo cinema de Jean Rouch, o realizadorantroplogo, e chegando s experimentaes do documentrio contemporneo, em que esses novos sujeitos do discurso recebem ou tomam as cmeras e passam a produzir. Trata-se de um processo histrico, para alm do contexto indgena, sobre o qual no nos deteremos aqui, destacando tambm que no h nada de natural nesse processo e sua viabilizao. Transformar os ndios em cinegrafistas e realizadores, nos parece estratgico no projeto Vdeo nas Aldeias, que j tem a participao de antroplogos, indigenistas e profissionais da imagem, com seus interesses especficos, e vem criando um campo e mercado novos, renovando as lutas polticas a partir da questo tecnolgica e da qualificao dos ndios para um trabalho decisivo no capitalismo cognitivo: a produo de imagens. O desafio, nos parece, fazer do vdeo um instrumento de reconfigurao de foras e de produo de subjetividade, de compreenso, explicao, interpretao do mundo, onde para alm da relao entre os prprios ndios, ns mesmos podemos nos ver como alteridade. Quando os cineastas so ndios, ndios somos ns, como diz a antroploga Sylvia Caiuby Novaes. Em Wapt Mnhn: Iniciao do Jovem Xavante, de 1999, so quatro videastas Xavante e um Suy do Mato Grosso que usam a cmera para registrar o ritual de furao das orelhas de jovens Xavante. A

primeira impresso que j vimos essas imagens em inmeros registros de festas indgenas nas televises culturais ou no Globo Reprter, mas o fato dos cinegrafistas serem ndios, Divino Tserewahu, Bartolomeu Patira, Caimi Waiass, Jorge Protodi e Winti Suy, vai criar situaes inusitadas e novas. Esse vdeo tem um formato hbrido. tradicional se pensarmos o uso dos letreiros informativos, dos depoimentos para a cmera, falas em off com legendas. Ao mesmo tempo abre espao para que seus realizadores ndios se apresentem, comentem as dificuldades de filmagem num trabalho de longa durao, de 1996 a 1998 e realizado com intimidade, de dentro. As falas dos participantes dos rituais se referem presena bem-vinda da cmera. Eu entendo a importncia da imagem, diz um dos condutores do ritual. A fala dos ndios mais velhos legitima a presena da cmera e do vdeo como memria suplementar e testemunho. Numa das partes do ritual de iniciao dos adolescentes vida adulta, quando se deitam rapidamente com a futura esposa, o ato simblico tem toda a comunidade como testemunha do compromisso futuro e tambm, sublinha o condutor, um olho testemunhal suplementar: a cmera e os visitantes. Os cinegrafistas ndios comentam opes e lamentam oportunidades perdidas: filmar os animais vivos antes da caada e no apenas mortos ou a necessidade de um dos cinegrafistas abandonar as filmagens para ajudar o afilhado numa prova de corrida, etc. As imagens, nem muito rpidas, nem lentas, tentam sintetizar um percurso no tempo, acompanhando dois anos de uma srie de acontecimentos rituais numa edio final de 75 minutos. As imagens captam aspectos mltiplos dessa longa durao: toda a dureza das provaes por que passam os adolescentes, embates corporais, isolamento, frio, a dor da furao da orelha, vergonha da nudez (mulheres que tem que tirar o suti), conformidade com a tradio, mas tambm o humor, o lado ldico e brincante dos jovens dentro do rio, no banho, nas corridas e o sentido crtico de algumas falas: Os velhos so ruins, vo matar a gente de frio. Os valores em jogo so a construo do adulto Xavante e o ideal de virilidade, coragem, fortaleza, ensinado com duras provaes corporais a cada menino. E ainda reprimendas e provaes de limites, como nas belas imagens de bateo de gua em que os jovens produzem barulho e agitao nas guas do rio por horas seguidas, num esforo exaustivo. Ao final desses dois anos de um mundo recriado pela imagem, a mensagem sinttica de um dos cinegrafistas, Caimi Waiass: Agora que vocs j sabem tudo sobre a nossa vida, podem ir cuidar da de vocs. Entre os vdeos mais originais dos realizadores indgenas, podemos destacar os que tratam do cotidiano das aldeias. Nem rituais, nem festejos, o dia a dia numa temporalidade outra, num mundo outro, capaz de surpreender o espectador. Alguns desses vdeos fazem lembrar as propostas do cinema contemporneo iraniano, na sua sofisticada simplicidade e transparncia. O vdeo Shomtsi, do realizador ndio Valdete Pinhanta, uma obra-prima na forma como capta o tempo do cotidiano do seu tio Shomtsi, que ele escolheu como personagem de uma crnica da aldeia, na fronteira do Brasil com o Peru. Narrado pelo sobrinho cinegrafista, em voz off, o vdeo alterna essa fala com som ambiente, msica de flauta, sons da mata, da aldeia, do rio e as falas do tio com outros ndios ou com o prprio cinegrafista (no filma meu saco, faz careta para a cmera, sorria, o buraco da filmadora est te vendo). O que se registra um cotidiano lento, de quase desacontecimentos, acordar, passar o urucum no rosto, ir pra roa com os filhos, mascar coca e fumar tabaco, ir tomar banho no rio, beber caissuma. Os finais de semana so mais enfeitados, com dana, caissuma, tocar flauta e flertar com as mulheres. Uma parte do registro a ida de Shomtsi cidade para receber sua aposentadoria, de canoa, com a neta e outros ndios. Como o dinheiro no chegou no posto resolvem fazer um tapir na beira do rio e esperam trs dias, fazendo fogo, comendo mandioca e no final, sem alimentos, comendo graas ao cinegrafista que compra comida. A conversa na beira do rio parece acompanhar o fluxo vagaroso das guas e gira em torno do apego dos brancos e comerciantes ao dinheiro. O papel do dinheiro forte. No desmancha como o papel comum, que feito bolacha, pode molhar, lavar, secar. Falam da inutilidade do dinheiro para os ndios, algo que no se pode levar para o cu e que no precisam para viver. O dinheiro recebido por Shomtsi, R$ 302 reais, quase todo gasto na hora, e a comitiva do tio do cinegrafista volta para a aldeia, feliz de sair da cidade e do tempo de espera por um bem que no valoriza. Aqui termina meu filme, mas a vida continua, diz o narrador. A edio de Mari Corra deixa o tempo fluir, escorrer, colocando o espectador numa situao de imerso no mundo, talvez insuportavelmente outro, de Shomtsi. Esse tempo ganha outras qualidades no vdeo Das Crianas Ikpeng para o Mundo (2002), filmado por trs jovens cinegrafistas: Natuyu Txico, Karan Txico e Kumar Txico. A idia do encontro pela imagem realizado atravs de quatro crianas Ikpeng que mostram sua aldeia para a cmera, tendo como interlocutores e respondendo a uma video-carta das crianas da Sierra Maestra em Cuba. O vdeo funciona como um dedo apontado para o real e um olhar direto que fala para o interlocutor distante. Meu nome ... Vamos mostrar nossa aldeia. Este o nosso cacique. Esta a mulher do cacique. Essa a minha casa. Toda a fala das crianas se dirige aos interlocutores virtuais, sempre mostrando o presente, a forma de fazer e agir dos antepassados e perguntando como vocs fazem a?. As falas recorrentes so: era assim que nossos avs dormiam, faziam redes, batiam o timb... etc. assim que

as mulheres fazem, cozinham enquanto os homens vo pescar, fazem mingau, assim que usam as conchas para raspar mandioca, etc. E finalizam sempre: e as mulheres a? Ou Como vocs fazem os seus brinquedos? Ensinem pra gente... etc. Toda a curiosidade e frescor do grupo de meninas e meninos que apresentam a aldeia, os adultos e outras crianas, captado por uma cmera que acompanha, anda, observa, participa das brincadeiras de muito perto, criando intimidade e confiana com os narradores. As cenas dos banhos de rio, da pesca com timb, das correrias com medo de ona, da brincadeira com aviozinho de madeira, os risinhos e fabulaes tpicas das crianas, do ao vdeo um carter singular. O mundo dos adultos ndios se torna distante e as crianas surgem como senhoras do seu tempo e da sua fala na aldeia, o que pode ser apenas um efeito do vdeo, mas cria um fascnio especial e uma intimidade difcil nos documentrios tradicionais. O tom de crnica tambm marca o vdeo Kinja Iakaha: um dia na aldeia (2003), direo coletiva de Araduw Waimiri, Iawusu Waimiri, Kabaha Waimiri, Sanapyty Atroari, Saw Waimiri e Wam Atroari. Nesse vdeo, diferentes dos demais, o tempo da narrao de vrios acontecimentos simultneos na mesma aldeia cria uma sensao de atividade febril e incessante. Os meninos que saem para pescar a pedido do pai, a me e filha que tecem esteiras, os homens que vo caar, as mulheres que preparam comida, o grupo que vai extrair fibras e casca de rvores para tranados , as meninas que sobem no p de aa, as crianas que brincam de arco e flecha e inventam brincadeiras. So muitos grupos e personagens que agem ao mesmo tempo, mostrando o mundo do trabalho de forma ldica. No meio do vdeo uma chuva forte desacelera o tempo e pra uma parte das aes e os homens se voltam para trabalhos dentro das casas, onde podem esperar passar a chuva Os personagens sempre falam com os cinegrafistas e para a cmera explicando o que esto fazendo e relacionando esse presente com a tradio. Mais uma vez a intimidade e cumplicidade entre os personagens e os seis cinegrafistas tambm ndios criam um diferencial na captao. As cmeras entram em canoas, correm de vespas, esto nos ombros de cinegrafistas que se deslocam com desenvoltura no meio de uma caada e conseguem criar um ambiente, uma aldeia quase arquetpica e simultaneamente singular. O resultado sem dvida no vem de nenhuma espontaneidade ou milagre. Pode-se vislumbrar a dinmica de oficinas repetidas, participao da comunidade na escolha de temas, a construo dos personagens escolhidos e, em outros vdeos at a experimentao com encenaes e desenho animado. Nos parece decisivo ainda o trabalho de edio do material, nem sempre feito pelos realizadores indgenas, mas pelos professores das oficinas, como Mari Corra. Esse cinema e fabulao indgenas abre um campo de cruzamento entre cinema, etnografia e antropologia que faz pensar. Cmera muy very good pra mim trabalhar, a afirmao do ndio Divino Tserewah uma aposta na imagem no apenas como representao de si para os outros, mas radicalmente como a descoberta de uma forma de pensamento audiovisual, uma aldeia audiovisual global, em que a singularidade dos ndios brasileiros se encontra com a singularidade e vigor do documentrio e das questes do cinema contemporneo.

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