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VIDA E OBRA DE EMÍLIA DAÚSSE

(1953-1973)

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Vida e Obra de Emília Daússe

Ficha Técnica:

Título: Vida e Obra de Emília DaússeAutores: Agnelo Navaia e Laurindo Malimusse Direcção: Fernando DavaColaboração: Célio Tiane e Arrissis MudenderDesigner: Cândido NhaquilaEdição: ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-CulturalImpressão: AcadémicaTiragem: 1100 ExemplaresNúmero de Registo: 8115/RLINLD/2014Colecção Embondeiro: Edição Especial

Junho, 2014

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Vida e Obra de Emília Daússe

Índice

Introdução....................................................................... 4

1. Nyaakamba como Berço de Emília Daússe................ 6

2. Nascimento e Juventude de Emília Daússe.............. 10

3. Caracterização da Luta Armada na Frente de Tete... 20

4. O Despertar da Consciência Nacionalista em

Emília Daússe.......................................................... 30

5. Ingresso de Emília Daússe na FRELIMO................. 38

6. Preparação Político-militar de Emília Daússe........... 46

7. Emília Daússe na Frente de Tete.............................. 51

8. As Circunstâncias da Morte de Emília Daússe......... 60

Bibliografia..................................................................... 65

Anexos.......................................................................... 67

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INTRODUÇÃO

Em Moçambique, existe uma geração que marca de forma indelével a História do País. Esta geração, nascida da Luta de Libertação Nacional, reveste-se de características particulares, pois, numa época conturbada e em condições extremamente complexas, conseguiu organizar-se para lutar contra o colonialismo português. No âmbito desta Luta, distinguiram-se certas figuras, pelas suas obras heróicas. Com vista à valorização e exaltação dos seus feitos, o Governo moçambicano têm vindo a levar a cabo algumas iniciativas visando a imortalização do seu legado. Desta geração heróica faz parte Emília Daússe.

Nascida em Nyaakamba, Localidade de Kachembe, Distrito de Marara, Província de Tete, Emília Daússe envolveu-se, desde cedo, nos esforços conducentes à libertação da terra e do povo moçambicanos, através da sua integração nas fileiras da FRELIMO, primeiro como combatente na clandestinidade e, depois, guerrilheira, tendo actuado na Frente de Tete.

O seu engajamento, coragem, zelo e dedicação contribuíram para que assumisse o cargo de Chefe do Destacamento Feminino, no Quinto Destacamento do Quarto Sector, em Nyaluiro, posição que assumiu até a data da sua morte.

Na sua qualidade de Chefe do Destacamento Feminino, revelou-se um dos esteios da Luta de Libertação em Tete, por ter se notabilizado na mobilização das guerrilheiras e da população para se engajarem no transporte de material de guerra, produtos alimentares e medicamentos para o Quarto Sector, o baluarte do avanço da Luta para a Frente de Manica e Sofala e, sua extensão para o Sul do País.

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Abnegada e sempre predisposta para sacrifícios, em prol da libertação dos moçambicanos da dominação estrangeira e, chamando para si a prontidão combativa, Emília Daússe conseguiu criar um grande entrosamento entre os guerrilheiros e a população. As suas realizações contribuíram para um efectivo e profícuo engajamento popular na Luta, um factor de inestimável importância numa guerra de guerrilha.

Emília Daússe perdeu a vida a 11 de Novembro de 1973, na Base de Nyaluiro, vítima de um ataque do exército colonial português. É no espírito de valorização do legado que surge esta obra, enquadrada nas celebrações dos 40° aniversário da sua morte.

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1. NYAAKAMBA COMO BERÇO DE EMÍLIA DAÚSSE

O povoado de Nyaakamba, local onde Emília Daússe nasceu e deu os seus primeiros passos de vida, localiza-se na Localidade de Kachembe, Posto Administrativo de Marara Sede, Distrito de Marara, Província de Tete, na região Centro de Moçambique. Nyaakamba é limitado a Norte pelo povoado de Nyamajanela; o monte Dupula, a Este, e os povoados de Nyantondo e Nyansanga, na parte Sul e, a Oeste pela região de Chioco.

Segundo a memória popular, o topónimo Nyaakamba está associado a um rio do mesmo nome, que atravessa o povoado. Neste rio abundavam muitos cágados, designados localmente por khamba, como resultado da existência de água e plantas ribeirinhas que constituem a base da sua alimentação. À palavra khamba adicionou-se o prefixo Nyaa (zona ou local), formando-se a palavra Nyaakamba, que significa “Terra dos Cágados”.

Em Nyaakamba coexistem três grupos etno-linguísticos, nomeadamente, Nyungwe, Shona e Tawara. Acredita-se que os primeiros são considerados originários da zona, enquanto os dois últimos teriam emigrado das terras próximas ao rio Luia, zona fronteiriça com a República do Zimbabwe. De facto, Rita-Ferreira (1982), refere que os Tawara de Moçambique teriam chegado à região entre os rios Mazoe1 e Mussenguêzi, antes dos Tonga haverem ocupado a margem direita do Zambeze, da mesma forma que os Tawara da Rodésia teriam precedido a própria fundação do Estado dos Mutapas por volta de 1450.1Mazoe é um rio que atravessa o distrito de Changara.

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No que tange à organização social, na zona predomina um sistema patrilinear. A gestão comunitária é repartida entre a autoridade tradicional, representada pelo chefe tradicional, instituição legitimada pelo Decreto 15/2000, e um poder mágico-espiritual (nvula), mais conhecido por praticante da medicina tradicional. Refira-se que o povoado que compreende o Posto Administrativo de Marara foi inicialmente liderado por Chiundiza, passando doravante a adoptar o seu nome. Dentre os vários mfumos de então, destacam-se Therere, Nchekanyassa, Chaoma Ngoma e Nguirazi Kampira, este último do povoado de Nyaakamba.

Líderes tradicionais

Na Província de Tete, tal como em Manica e Sofala predomina o espírito mbhondolo (Leão)2. Este é considerado o dono da terra que a governa tendo, 2Durante os cultos tradicionais usa-se a língua cishona. Para a compreensão dos presentes, na sua maioria falantes de cinyungwe, recorre-se a um intérprete/tradutor. Estes interpretes eram localmente conhecidos como Four Boy, e considerados pelos habitantes de Nyaakamba como “sabwiras” (pessoas de bem, com quem se pode divertir mesmo nas cerimónias fúnebres).

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como seu representante os chefes tradicionais. Este é encarnado durante a possessão no nvula, uma espécie de intermediário na comunicação entre os vivos e os mortos.3 Com efeito, a respeito das crenças mágico-religiosas em algumas comunidades tradicionais, Carvalho (1982:56), refere que:

- “(...) Estas práticas revestem-se de um papel importante, constituindo uma arma fundamental do poder e da coesão social. (…). Como elo da cadeia que liga os anciãos mortos e aos vivos, em que os oficiantes detinham uma função que era uma base de poder. Em algumas regiões de Moçambique, como Tete, Manica e Sofala, desenvolveram-se cultos a mbhondolo, sobretudo entre os Shona”.

Os cultos mágico-religiosos visam a busca de uma estabilidade sócio-espiritual, por se acreditar que os antepassados são os guardiões dos vivos. Na zona de Nyaakamba, estes são realizados por baixo de uma árvore frondosa, localmente designada por m’toe (figueira africana). Pelo facto de exercer este papel, a árvore é sagrada para a comunidade, pelo que assume a função de um altar. A memória colectiva acredita que a referida árvore foi plantada por um dos primeiros líderes espirituais da zona, de nome Kazembe.

3Rangisse Xereni, entrevista de 14/09/2012. Nyaakamba.

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Árvore sagrada no povoado de Nyaakamba

As actividades económicas predominantes em Nyaakamba são a agricultura, baseada no uso de técnicas tradicionais e a criação de gado com destaque para o bovino e caprino. A caça é uma actividade complementar nas comunidades. A produção de carvão vegetal, virada a comercialização é uma das formas alternativas de obtenção de renda nas famílias.

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2. NASCIMENTO E JUVENTUDE DE EMÍLIA DAÚSSE

Emília Daússe Thembo nasceu em 1953, no povoado de Nyaakamba. É filha de Daússe Chibozo Thembo e de Joanica Faqueiro. Este casal teve outros filhos, a saber, Noliana, Kandime4, Criminosa, Kamboy5, Jorge6, Alberto e Sande. Daússe Thembo, pai de Emília era originário da Rodésia do Sul, actual Zimbabwe e pertencia ao grupo etno-linguístico Shona. Este teria chegado à zona de Nyaakamba integrado na comitiva de Kazembe. Acredita-se que este grupo emigrou à procura de melhores condições agro-ecológicas. Com efeito, Thembo e a sua comitiva estabeleceram-se nesta região, atraídos pelas potencialidades oferecidas pelo rio Nyaakamba. A migração para esta zona por parte de vários grupos foi relatada por Laisson Joaquim, ancião de Nyaakamba, de 82 anos de idade, nos seguintes termos:

- “Eu nasci no povoado de Chamba, no Distrito de Changara. Ainda jovem, a minha família e muitas outras abandonaram a nossa zona, em busca de melhores condições para a prática da agricultura e da caça. A solução na altura foi o povoado de Nyaakamba por causa do rio que tornava as terras propícias para a actividade agrícola e criação de gado. No rio apareciam muitos animais para beber água. Assim, podíamos facilmente caçá-los para a nossa alimentação. Aquando da nossa chegada, fomos recebidos por Daússe Thembo”.7

4Que era tratada no seio familiar por Laina.5Mais conhecida por Febi.6Cujo nome de infância era Chanu. 7Laissone Joaquim, entrevista de 15/09/2012. Nyaakamba.

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Laisson Joaquim

Após um longo período de permanência da família Daússe em Nyaakamba, esta emigrou para o Zimbabwe. A deslocação àquele território pode ser justificada por uma conjugação entre factores naturais e sócio-políticos, com destaque, por um lado, para a seca que assolou a região e, por outro, pelo trabalho forçado e o pagamento do mussoco8.

O Distrito de Changara, entre outros da Província de Tete, é alvo de secas cíclicas, o que o torna vulnerável e carente em produtos alimentares. Em alguns anos 8Tratava-se de um imposto per capita pago pelos nativos ao regime colonial português ou aos dignatários das companhias concessionárias e arrendatárias. Podia ser pago em numerário, em espécie ou ainda em trabalho. Este era cobrado a todos os indivíduos do sexo masculino, dos 16 anos em diante.

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agrícolas, cerca de 80.000 pessoas sofrem de escassez de alimentos. Como refere o Perfil do Distrito (2005:21), as chuvas nesta região são zonais, facto que tem provocado em diversas comunidades, situações de insegurança alimentar e nutricional.

Efectivamente, este constrangimento de carácter agro-climatérico propiciou períodos de elevada vulnerabilidade à fome, aspecto que motivou a emigração de parte da população à procura de melhores terras para a produção ou de emprego melhor remunerado, nos países vizinhos, particularmente, no Zimbabwe. Neste contexto, por volta de 1956/7, a zona de Nyaakamba foi assolada por uma seca severa, deixando todos os reservatórios naturais de água praticamente secos. Sobre este aspecto, Laisson Joaquim, afirmou:

- “Quando Emília ainda era menor, provavelmente com cerca de três anos de idade, a zona de Nyaakamba foi assolada por uma fome severa por causa da falta de chuvas. Assim, a família dela decidiu partir para o Zimbabwe, onde o pai foi trabalhar nas farmas rodesianas, como forma de obter algum rendimento em numerário para sustentar a sua família”.9

É de sublinhar que a migração para o Zimbabwe, com a finalidade de obter rendimentos em numerário era já uma prática historicamente enraizada na Província de Tete. De facto, a partir dos finais do século XIX até a primeira metade do século XX, as características do capital financeiro implantado em Moçambique não contribuíam 9Laisson Joaquim, entrevista citada.

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para a fixação dos moçambicanos em território nacional dados os baixos salários que auferiam, em vários serviços, tais como construção de infra-estruturas, plantações entre outras arbitrariedades. Consequentemente, esta situação provocava a fuga da população para os territórios vizinhos, em particular para o Zimbabwe. A este respeito, Neves (1991:284), acrescenta o seguinte:

-“Para esta migração, contribuíram significativamente as pressões exercidas sobre a população para o trabalho e construção de estradas, cobrança de impostos, comércio fraudulento e o transporte de cargas às costas até aos vapores do Zambeze ou mesmo até à costa do Índico com baixos salários, ou em forma de pagamento do mussoco”.

A emigração para o Zimbabwe era motivada, também, pelas condições mais atractivas que a economia zimbwabweana oferecia em relação a de Moçambique e, essencialmente pela necessidade de mão-de-obra barata. De acordo com Rangisse Xereni10, foi no quadro desta conjuntura que a família Daússe se estabelceu no Zimbabwe, onde o pai conseguiu emprego numa plantação de algodão. Neste território Emília Daússe passou parte da sua infância e, provavelmente, teve a sua iniciação escolar.

A permanência de Daússe Thembo e sua família no Zimbabwe prolongou-se até cerca de 1964/65. O seu regresso à Moçambique pode ser sustentado pela massiva campanha de mobilização que os nacionalistas moçambicanos realizavam ao nível dos seus compatriotas que trabalhavam nas plantações, minas e outros sectores 10Rangisse Xereni, entrevista de 14/09/2012. Nyaakamba.

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de actividade, ou ali radicados, por outros factores. Esta iniciativa contribuiu para o regresso de muitos moçambicanos para se juntarem à causa libertária. Com efeito, de acordo com Damião Banda11, nas plantações, devido a massiva concentração de trabalhadores de origem moçambicana, os políticos visitavam estes lugares para a realização de campanhas de mobilização. Eventualmente, no quadro destas acções, Daússe Thembo terá sido mobilizado para a causa nacionalista. Como resultado, sentiu-se motivado a regressar à Moçambique. Banda acrescentou o seguinte:

- “Nos anos 1964/65 houve uma forte campanha de mobilização nas minas e plantações zimbabweanas, levadas à cabo por nacionalistas moçambicanos, pois, estes sectores empregavam muitos moçambicanos. Por essa razão, os mobilizadores deslocavam-se, com frequência a estes locais para realizarem as suas actividades políticas. Em alguns casos, a mobilização era feita pelos padres. De facto, em algumas igrejas, nas orações e homilias, os clérigos falavam sobre a necessidade do engajamento dos moçambicanos para a sua libertação do jugo colonial português”.12

Regressado à Nyaakamba, Emília Daússe ingressou na Escola Primária e Missionária local, por volta de 1965, onde concluiu a 2ª Classe, em 1969. Segundo Elias Maqui, professor da Emília, nesta escola, ela foi uma das alunas com melhor aproveitamento na sua turma. Maqui, descreveu o processo de ensino-aprendizagem nos seguintes termos: 11Damião dos Santos Banda, entrevista de 29/12/2012. Cidade de Tete. 12Damião dos Santos Banda, entrevista citada.

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- “Eu fui um dos primeiros professores da Escola Primária Missionária de Nyaakamba. Muitas crianças daquela zona foram por mim ensinadas. Lembro-me da Emília Daússe. Ela era uma das mais crescidas, pois, começou a frequentar aquela escola com cerca de 12 anos, tendo feito a 2ª Classe. Nas aulas ela evidenciava-se em relação a muitos outros”.13

Elias Fote Maqui

Benigno Elias Maqui, colega de Emília na Escola de Nyaakamba, descreveu a personalidade e a capacidade da Emília como estudante. Realçou que era bem comportada, responsável e aluna brilhante, sobretudo em matérias como aritmética. Salientou ainda, o seguinte:

- “Eu fui colega de turma da Emília na Escola Primária e Missionária de Nyaakamba. De entre

13Elias Maqui, entrevista de 10/10/2010. Vila de Songo, Tete.

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os colegas, lembro-me ainda de Rafael Zangado, António Zangado, Domingos Mabunda, Carlos Bacacheza, Vicente Gavião, Fernando Ajuda e Teresa Elias Maqui. Emília era uma aluna com boas capacidades e excelente domínio das matérias. Muitas vezes, quando o meu pai lhe chamava para o quadro, ela ia e explicava as matérias, principalmente a aritmética. Ela era das mais crescidas da turma. O seu comportamento era exemplar e não admitia brincadeiras na sala de aulas. Ela impunha disciplina e ordem entre os colegas”.14

Enquanto estudante, Emília Daússe dedicava-se, igualmente, as actividades domésticas, ajudando à sua mãe na confecção de refeições, na limpeza da casa e nas lides agrícolas. Para além disso, nos momentos de diversão, na companhia das amigas, praticava jogos como mfumbwa, tsago e kabissebisse, e danças tradicionais típicas da zona, como m´dai, njole e mafuwe.

Danças Mafuwe e Njole

14Benigno Elias Maqui, entrevista de 10/10/2010. Vila de Songo, Tete.

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Descrevendo as danças njole e mafuwe, Maria da Piedade15 referiu que a primeira era praticada, unicamente, por meninas, e que os rapazes limitavam-se a observar e aplaudir, enquanto njole envolvia ambos sexos. Na altura, geralmente dançava-se nas escolas, durante os intervalos. Estas danças também eram praticadas nas cerimónias fúnebres e no bona, um ritual realizado passados seis meses a um ano após o desaparecimento físico de um indivíduo, simbolizando o fim do luto.

Maria da Piedade Caetano

Concluída a 2ª Classe, em 1969, com cerca de 16 anos de idade, e não havendo outras oportunidades ao nível de Nyaakamba para dar prosseguimento aos estudos, Emília Daússe empregou-se como trabalhadora doméstica, em 15Maria da Piedade Caetano, entrevista de 08/05/2014. Moatize.

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casa do senhor Afonso, em Nyaakamba, que era cacheiro do António Aguiar. Refira-se que sobre esta matéria, o Relatório da OMM (2013:295), apresenta uma outra versão, porém, não consensual e, rebatida por diversas fontes orais, localmente. Com efeito, muitos informantes refutam a ideia de que Emília terá sido macayaya16 de Valentim e sua terceira esposa.

Ao que nos parece, era em alusão a Valente Vicente, pois, àquele nome não é reconhecido na zona. De igual modo, a comunidade local não comunga a ideia de a Emília ter trabalhado em Songo, na loja do tal Valentim, isto, em associação à cegueira do seu pai e, consequente busca de formas para ajudar nas despesas familiares. A este respeito, Aleixo Gimo, primo de Emília Daússe, realçou o seguinte:

“Eu, apesar de ser mais novo em relação a Emília Daússe, vivi muito tempo com ela. Como familiar, sempre estivemos juntos em casa e éramos vizinhos. Os nossos pais conviviam sempre juntos, e nós também. Quando começou a trabalhar como empregada do senhor Afonso, eu e os meus colegas sempre que saíssemos da escola passávamos do seu serviço para conversar e depois seguíamos para casa.

16Expressão usada para se referir a pessoas que cuidam dos menores no seio das famílias, sobretudo na região centro do país.

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Quando a guerra se intensificou, com a vinda de guerrilheiros na zona em 1971, e a saída de muita gente para as bases, o senhor António Aguiar retirou os produtos da loja e alugou-a ao senhor Valente Vicente, mas isso aconteceu depois da saída da Emília e muitas pessoas do povoado”.17

Aleixo Gimo

17 Aleixo Gimo, entrevista de 15/09/2012. Nyaakamba.

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3. CARACTERIZAÇÃO DA LUTA ARMADA NA FRENTE DE TETE

A Luta Armada de Libertação Nacional na Província de Tete iniciou em 1964, com um ataque ao Posto de Charre, no Distrito de Mutarara, seguido de outras acções militares com destaque para a sabotagem da Linha de Sena, ainda em Charre e uma emboscada em Doa, ao carro de um dirigente colonial.18 Integravam este grupo, dentre vários guerrilheiros, Lemos Gouveia, Artur Fole, António Pereira, Lukas Kumato, Mateus Miguel, Félix Costa, Tchokisse Munhiwa, Raúl César, Pedro Seguro e Mário Mairosse (Manjate, 2013).

Devido a constrangimentos de vária ordem, como o posicionamento geográfico da Província que dificultava à assistência logística, a proximidade de alguns países que se mostravam hostis a causa libertária dos moçambicanos e a fraca mobilização da população para a Luta, a Direcção da FRELIMO redefiniu as suas estratégias e prioridades. Na sequência, decidiu-se pela suspensão das operações militares em Tete, no ano de 1965.

Com a consolidação das frentes de Cabo Delgado e Niassa, o Comando da FRELIMO decidiu reabrir a Frente de Tete, em 1967. Na ocasião, foi enviado um grupo de cerca de 12 guerrilheiros liderados por Francisco Manyanga19, com 18Para mais detalhes, vide: MAZUZE, Abel & MATE, Xadreque. Vida e Obra de Armando Tivane. Maputo: ARPAC, 2013.19Como resultado do trabalho levado a cabo por Manyanga e outros guerrilheiros, em Março de 1968, a FRELIMO reiniciou as acções contra posições militares da tropa colonial portuguesa. Foram efectuados ataques a três alvos específicos em Furankungo, Fíngoè e Chifombo.

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a missão de criar as condições indispensáveis para a reativação da Luta Armada em Tete. Este grupo centrou-se, especificamente, na mobilização da população, reconhecimento da região e identificação dos locais estratégicos para a instalação de bases militares.20

A Província de Tete, pela sua posição geo-estratégica, mostrava-se fulcral para o desiderato perseguido pela FRELIMO, como um movimento libertador. De facto, consolidando a Luta em Tete, rapidamente abrir-se-iam corredores para o seu avanço para zona Central e Meridional do território moçambicano, atingindo o centro do poder político colonial, a Cidade de Maputo, então Lourenço Marquês. De igual modo, ter-se-ia maiores possibilidades de apoio aos movimentos de libertação do Zimbabwe e ao Congresso Nacional Africano (ANC), da África do Sul, que lutava contra o regime segregacionista do apartheid.

Estrategicamente, o Comando da FRELIMO enviou, sucessivamente, grupos de guerrilheiros para a Província de Tete, como forma de aumentar o seu efectivo, de modo a fazer frente à poderosa e sanguinária máquina do exército colonial21. Foi neste âmbito que durante o ano de 1968, chegaram a Tete muitos combatentes, sucessivamente, onde se destacam nomes como Elias 20Para mais detalhes sobre o assunto vide MANJATE, Fernando et al. Vida e Obra de Francisco Manyanga. Maputo: ARPAC, 2013. 21Coelho (1989) refere que em 1966 o contingente militar português em Tete era composto por um total de dois batalhões, mais duas companhias, cerca de 1500 homens, com uma actividade essencialmente de patrulhamento. As perspectivas de reabertura da Frente de Tete impuseram grandes mudanças entre 1966 e 1968, com a reorganização do sistema de ocupação do território e o aumento de efectivos. Assim, em Março de 1968 o exército português era constituído por um contingente de três batalhões mais algumas companhias.

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Sigaúque, Tomé Eduardo, António Rufino Cara-Alegre Tembe, João Aleixo Malunga, Armando Tivane, Lucas Langa, Armando Canda, Fernando Machanguana e, Augusto Capece Chico (também conhecido por “dois homens”). Paralelamente, jovens militantes filiados à FRELIMO iam sendo treinados no interior da província. António Rufino Cara-Alegre Tembe, recordando-se da sua ida à Frente de Tete, em 1968, para reforçar o efectivo dos guerrilheiros da FRELIMO, referiu:

- “Após os treinos militares no campo de Nachingwea em 1967, onde estive com outros militantes, como Armando Tivane, Lucas Langa e David Massingue, fui destacado para seguir à Frente de Tete. Em 1968 saímos de Nachingwea até Lusaka, numa viagem feita de carro. Deste território, entramos em Tete. Passar por Malawi era difícil devido ao mau posicionamento do Presidente Banda, em relação a FRELIMO. Mesmo na Zâmbia passámos discretamente, porque o Governo zambiano liderado por Kaunda ainda não estava suficientemente fortalecido, pois, tinha alguns soldados residuais ingleses no comando do exército”.22

No mesmo diapasão, Augusto Capece Chico, recordando-se da sua afectação à Província de Tete, no mesmo contexto, afirmou:

22António Rufino Cara-Alegre Tembe, entrevista de 30/11/2012. Matola.

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- “Partimos de Nachingwea à Província de Tete em 1968. Era um grupo comandado por Elias Sigaúque. À nossa chegada, encontrámos outros combatentes posicionados em Tete. Nós não levávamos armamento, porque o Comando Geral da FRELIMO já havia enviado material suficiente para Tete. No entanto, muito armamento era retido pelas autoridades zambianas. Sem armas, corríamos o risco de ser atacados e capturados, porque a tropa colonial já tinha informação sobre a nossa presença.

Sigaúque organizou um pequeno grupo e regressou à Nachingwea para colocar a preocupação ao Comando Geral. A partir da reunião em Nachingwea, viria a ser convocado um encontro do Comité de Libertação da OUA, que desbloqueou os constrangimentos em território zambiano. A partir dessa altura, começámos a receber material de guerra na província de forma regular e iniciámos com os combates”. 23

A relativa restrição que recaía sobre os guerrilheiros da FRELIMO que transitavam pelo território zambiano, em virtude da presença de forças residuais inglesas, fez-se sentir até cerca dos anos 1970. Em alguns casos, resultou na prisão de militantes e sua posterior deportação para a Tanzania. A título de exemplo, o Relatório Imediato nº. 2366/70/DI/2/SC de 18/11/70 da DGS, refere que a polícia zambiana prendeu militantes da FRELIMO, que estavam acampados na área de “Munzona Store”, tendo-os levado para Chipata.24

23Augusto Capece Chico, entrevista de 24/01/ 2012. Vila de Moatize. 24http://digitarq.dgarq.gov.pt. Código de referência: PT/TT/SCCIM/A/20-7/37, nº 1169, folhas 52.

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No âmbito do reforço do contigente militar da FRELIMO na Frente de Tete, em Maio de 1969, chegou à Província de Tete um outro grupo composto por cerca de 80 homens. Este era dirigido por José Moiane, que fora indicado para o cargo de Chefe das Operações nesta Província, em substituição de António Canhemba.

Guerrilheiro da FRELIMO, transportando material, vendo-se em seguida, José Moiane e Lucas Langa

A importância conferida à Província de Tete para a Luta Armada, levou o Comando da FRELIMO a intensificar a mobilização de voluntários, em diversas regiões do interior, para treinos militares e especialização em áreas consideradas fulcrais, como a artilharia. Um relatório da Direcção-Geral de Segurança do Governo Colonial com o nº 2066/70/DI/2/SC atinente às actividades de recrutamento, refere que em Julho de 1969, partiram, via

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Limbe – Malawi, a fim de receber instrução no campo de Nachingwea, na Tanzania cerca de 11 jovens militantes, onde constam nomes como Dinis Jorge, Jossefate Obedias, Salomão Manuel, Jaime Alberto, António Hama Thay e Joaquim Mapanga. Depois de cinco meses de instrução em Nachingwea, rumaram à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a fim de se especializarem25. Posteriormente, seguiu um outro grupo de cerca de 80 indivíduos. De facto, na altura a maior parte dos guerrilheiros tinha como destino, após a formação, a Frente de Tete.26

Após a sua instalação em Tete, José Moiane, recorrendo a sua experiência acumulada na Frente de Niassa, propôs um plano de divisão da Província em sectores militares. Este foi aceite pelo Chefe do Departamento de Defesa Provincial, tendo sido implementado. Assim, a Província de Tete foi dividida da seguinte maneira:

- “O Primeiro Sector, que compreendia a área a Norte do rio Zambeze até a fronteira com a Zâmbia, entre os rios Aruângua e Capoche, até ao rio Zambeze;

O Segundo Sector enquadrava-se na área entre o rio Capoche e a estrada que liga Tete ao Malawi;

O Terceiro Sector correspondia à região entre a estrada que liga Zóbuè à Tete, o rio Zambeze,

25Seguiram à Rússia os seguintes militantes: Dinis Jorge, Alfredo Zacarias, António Hama Thay, Estêvão Jorge, Joaquim Mapanga, Jaime Alberto, Jaime Zingara e Agostinho J. Mandima.26Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt. Código de referência: PT/TT/SCCIM/A/20-7/37, nº 1169, folhas 105.

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englobando o Distrito de Mutarara até o limite com a Província da Zambézia, no Distrito de Morrumbala;

O Quarto Sector correspondia toda a região Sul do rio Zambeze”.27

Mapa ilustrativo da divisão sectorial da Província de Tete

O Primeiro Sector, local onde estava situado o 5º Destacamento - Nyaluiro, em que Emília Daússe viria a ser colocada em 1973, aspecto a ser desenvolvido mais adiante, servia de elo de ligação entre a sede da FRELIMO, na Tanzania e a Frente de Tete, através da Zâmbia. Era por via deste Sector que toda a Província recebia abastecimento em material letal e não letal (Mazuze e Mate, 2013).27Vide Moaine, José. Memórias de um Guerrilheiro. Maputo: King Ngungyane Institute, 2009.

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Os resultados das acções conjugadas na Frente de Tete não se fizeram esperar. De facto, como resultado da forte campanha de mobilização popular levada à cabo pelos Comissários Políticos, com destaque para João Facitela Pelembe e Armando Tivane, a população passou a prestar um maior apoio à Luta, com ênfase para o transporte de material. Este aspecto levantou o moral combativo dos guerrilheiros, tendo, depois realizado ataques cirúrgicos e sucessivos contra as posições da tropa colonial portuguesa, causando danos consideráveis. Com efeito, um jornal da época reportou que entre os finais de 1969 e meados de 1970, a tropa colonial estacionada em Tete sofreu revezes, como ilustra o recorte abaixo:

Noticias sobre revezes da tropa colonial portuguesa, na Frente de Tete. Fonte: http://digitarq.dgarq.gov.pt.

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A rápida consolidação da Luta nas várias regiões de Tete trouxe desafios para os guerrilheiros desta frente. Com efeito, mostrava-se imprescindível a travessia do rio Zambeze para a expansão da Luta ao Quarto Sector. Foi neste contexto que o Comando Provincial seleccionou um grupo de guerrilheiros para o reconhecimento da travessia do rio e abertura do Quarto Sector. Este era constituído por António Rufino Cara-Alegre Tembe, Armando Tivane, dentre outros. Com o apoio incondicional da população, o grupo efectuou a travessia com sucesso, em Outubro de 1970, não obstante a constante patrulha feita pela tropa colonial.

Refira-se que a administração colonial tinha montado nesta frente uma forte rede de instituições visando obstruir o avanço da Luta. Dentre elas, destaque para a Zona Operacional de Tete (ZOT), na qual operavam o Comando Operacional da Defesa de Cahora Bassa (CODCB), o Comando Operacional das Forças de Intervenção (COFI), o Comando das Cargas Críticas (CCC) e o Centro de Instrução dos Grupos Especiais (CIGE) (Mazuze e Mate, 2013).

Com efeito, contornando esta série de instituições, instalaram-se no Quarto Sector28 os primeiros guerrilheiros da FRELIMO. Este grupo centrou as atenções na mobilização da população local, um dos constrangimentos com que os guerrilheiros se depararam em 1964, operacionalizando a máxima de Mao Tsé Tung de que “o guerrilheiro é peixe e a população água”. Na sequência, o fluxo de combatentes para este sector aumentou 28O Comando do Quarto Sector foi assim constituído: Elias Sigaúque, Comandante; Zeca Caliate, Adjunto-Comandante; Armando Tivane, Comissário Político; Cara Alegre Tembe, Chefe de Artilharia; Mariano Neves, Chefe dos Serviços de Reconhecimento. Mais tarde, Siagaúque foi substituído por Caliate, e este por Estevão Dimaka, que tinha como adjunto António Hama Thay.

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consideravelmente, movimento a que se juntaram jovens militantes recrutados localmente. Acredita-se que foi neste período que um dos irmãos de Emília Daússe, de nome Alberto, juntou-se às fileiras militares da FRELIMO. Importa frisar que o povoado de Nyaakamba, terra de Emília, situava-se no Quarto Sector. José Moiane, referindo-se a importância deste Sector, no contexto da Luta Armada de Libertação Nacional, afirmou:

- “A palavra de ordem da FRELIMO para Tete era fazer de tudo em menos tempo para atravessar o rio Zambeze, antes da conclusão da Barragem de Cahora Bassa, com vista a impedir a construção de colonatos. Ademais, em caso da conclusão das obras da Barragem e consequente enchimento da albufeira, a expansão da Luta para o Centro e Sul seria uma missão espinhosa e extremamente difícil”. 29

Barragem de Cahora Bassa, em construção. Fonte: Google image

29José Moiane, entrevista de Janeiro de 2010. Cidade de Maputo.

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4. O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA NACIONALISTA EM EMÍLIA DAÚSSE

Com a instalação do Quarto Sector, em 1970, na região Sul do rio Zambeze, e o consequente aumento da presença dos guerrilheiros da FRELIMO na zona, a mobilização da população e as actividades militares intensificaram-se. Assim, os guerrilheiros estacionados neste Sector, focalizaram as suas acções para a obstrução das vias de acesso à Barragem de Cahora Bassa através da implantação de minas, colocação de barricadas, com o envolvimento da população, realização de emboscadas, ataques aos aquartelamentos, entre outras.

Como resultado, os custos da construção da Barragem agravaram-se. De igual modo, a capacidade de mobilidade da tropa colonial foi afectada, ficando em alguns casos confinada aos seus aquartelamentos. As contra-ofensivas ficaram extremamente dependentes dos meios aéreos, encarecendo as despesas com a guerra. Na tentativa de contrapor ao sucesso crescente dos guerrilheiros da FRELIMO, o exército colonial redobrou os esforços em acções psicossociais30, com ênfase para os aldeamentos, as injúrias, o aliciamento às lideranças tradicionais e aos guerrilheiros.

De facto, como forma de cortar a base de apoio popular aos guerrilheiros, a população foi retirada à força dos seus povoados e confinada em campos de concentração demarcados e cercados pelo exército colonial, os denominados aldeamentos. Os indivíduos que resistiam 30Para mais detalhes a respeito da acção psicossocial vide CABAÇO, José Luís. Moçambique: Identidades, Colonialismo e Libertação. 2ª edição. Maputo: Marimbique, 2010.

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eram sujeitos à prisões e execuções pela tropa colonial. Ainda sobre os aldeamentos, refira-se que na sua campanha de intimidação, o exército colonial queimava as aldeias e abatia o gado da população. Perante esta situação, viu-se forçada a passar para as áreas sob o controlo colonial, e outra refugiou-se nas bases da FRELIMO, bem como nos países vizinhos. Sobre a destruição de aldeias e povoados, Hastings (1974: 41-43) revelou:

- “Se nos dedicássemos a um estudo cuidadoso do mapa das seguintes regiões de Tete – Mucumbura, Marara, Chicoa, Zumbo, Chiuta e Chipera, seríamos postos perante um problema insolúvel. Faríamos a nós mesmos a pergunta “Onde estão as aldeias de Taquino, Chacolo, Inhamagondo, Chimandabue, Mahanda, Kapinga e Chitengo?”. Foram todas consumidas pelas chamas. O exército limpou tudo. Até os animais foram liquidados. (…). Todos estes animais foram deixados a apodrecer nos estábulos. Teremos de lhes acrescentar os que a tropa comeu, dois aqui, três acolá; sem contar o milho, o amendoin, as bicicletas, os porcos e as galinhas lançadas ao fogo ou pilhados”.

Relativamente às blasfémias, a PIDE difundia no seio das comunidades, informações de que os guerrilheiros somente estavam para enganar a população e que em outros teatro de operações a FRELIMO estava a perder terreno. Mencionavam, igualmente, que a Direcção da FRELIMO estava fragilizada e desavinda, e que a morte de Eduardo Mondlane, então Presidente da FRELIMO, significava o fim irremediável do Movimento, pelo que a população devia aliar-se aos portugueses.

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Mudender et al (2010), citando Matias Pius, refere que durante estas campanhas, a tropa lançava panfletos em que caricaturava a FRELIMO, apresentando-a como uma organização terrorista, desorganizada e fragilizada pelas divisões regionais e étnicas. Nestes panfletos, nos discursos lia-se ou escutava-se conteúdos do género:

- “Fujam do mato, pois, estão a sofrer de fome, cheios de matequenhas nos dedos (…). Tudo isso porque a FRELIMO está a enganar-vos. Eles querem roubar-vos. O colonialismo é o melhor sistema para vocês, povo moçambicano. Vocês devem abandonar as bases e acampamentos, para se livrarem do sofrimento a que estão sujeitos. Se cumprirem isso, terão enormes benefícios, como comida, roupa, habitações melhoradas e uma vida condigna”.

É de frisar que as acções da psicossocial em Nyaakamba recaiam principalmente sobre os chefes tradicionais, pois, era reconhecida a sua influência sobre os seus súbditos. A respeito das campanhas difamatórias lançadas pelo exército colonial, Luciano Nguiraze, filho do chefe tradicional Nguiraze, prestou o seguinte depoimento:

- “Os portugueses lançaram uma forte campanha difamatória contra os guerrilheiros da FRELIMO, em Nyaakamba. Para além da população, contactavam directamente os régulos da zona. Diziam que os ‘turras’ eram pessoas estranhas, com estatura de pigmeus. Eram maus e não respeitavam as pessoas e que só estavam para enganar o povo. Apelavam aos chefes e a

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população para não apoiarem os guerrilheiros e, também, a denunciarem a presença deles no povoado ou qualquer movimentação suspeita”.31

Luciano Nguiraze

Apesar desta campanha de desinformação, os resultados foram contrários. Com efeito, a população continuou a prestar apoio aos guerrilheiros, sobretudo, através do fornecimento de alimentos. Estrategicamente, sob o pretexto de irem buscar água ao Rio Nyaticoma, as pessoas colocavam comida confeccionada em potes, bacias e baldes, e entregavam aos guerrilheiros estacionados nas margens do rio. Emília Daússe foi uma das mulheres que ainda jovem engajou-se neste processo. A respeito desta actividade, Luciano Nguiraze referiu o seguinte:

- “Por alturas de Março de 1971, um grupo de guerrilheiros estabeleceu-se na zona de Nyaakamba. No seio deste grupo uns eram

31Luciano Nguiraze, entrevista de 11/11/2013. Cidade de Tete.

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naturais da zona, como foi o caso de Alberto, o irmão da Emília Daússe. Estes montaram um acampamento nas proximidades do Rio Nyaticoma. Estrategicamente, quando as senhoras iam a busca de água naquele rio, levavam comida dentro das panelas para entregá-la aos guerrilheiros. Emília Daússe, sensibilizada e mobilizada, contribuiu na entrega de alimento aos guerrilheiros”.32

Nesta altura, Emília Daússe começava a exteriorizar o seu espírito nacionalista, manifestando a sua indignação para com o sofrimento do seu povo. Foi uma das mais activas dinamizadoras do movimento de apoio aos guerrilheiros, mesmo ciente da vigilância cada vez mais apertada da PIDE. Neste processo, orientava as mulheres para que tivessem muito cuidado na sua actividade, para não cair nas armadilhas da PIDE.

Mulheres carregando víveres

32Luciano Nguiraze, entrevista citada.

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A progressão da guerrilha da FRELIMO e o apoio por parte da população fizeram com que a tropa colonial enveredasse por métodos de contra-guerrilha agressivos e desumanos. Com efeito, a partir de finais de 1970 e, sobretudo, no decurso de 1971, o exército colonial intensificou as acções de tortura, massacres e assassinatos dos habitantes de diversas aldeias, sob o pretexto de estarem mancomunados com os guerrilheiros. Para além dos massacres, levaram à cabo acções deliberadas de destruição de culturas, de habitações, aldeias e o confinamento dos populares em aldeamentos.

As atrocidades cometidas pela tropa colonial não passaram despercebidas aos olhos de alguns missionários estabelecidos em Tete. Estes, indignados com as barbaridades, produziram relatórios denunciando a desumanidade destes agentes. Sobre este assunto, merecem menção os relatos dos padres Alfonso Valverde e Martin Hernandez, da Missão de Mucumbura, referidos por Hastings (1974:26 e 37), nos seguintes termos:

- “No dia 4 de Maio a tropa apanhou alguns machambeiros e torturou-os até confessarem quais eram as suas relações com a FRELIMO (…). No dia 7 de Maio, soldados portugueses sob o comando de um sargento e de um agente da Direcção Geral de Segurança (DGS), mataram catorze pessoas. Eram todos machambeiros inofensivos. Bateram-lhes, torturaram-nos e massacraram-nos da maneira mais cruel, sendo seu único crime terem dado milho, trigo e outros alimentos aos homens da FRELIMO.

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De 3 a 9 de Setembro de 1971, as tropas rodesianas chegaram para dar ajuda substancial às forças portuguesas e massacraram dezoito pessoas (…). Em 14 de Setembro de 1971, os comandos forçaram um rapaz de quinze anos de idade, Sande Daússe33, a servir de guia. Perdeu a vida num encontro entre guerrilheiros e a tropa em Inhacamba [Nyakaamba]”.

As atrocidades acima descritas foram, igualmente, corroboradas por algumas fontes orais. De facto, Luciano Nguiraze revelou que certa vez, a tropa colonial deslocou-se à aldeia de Nyaakamba, com o intuito de localizar e aniquilar os membros da população que fossem apoiantes da FRELIMO e desmantelar as posições dos guerrilheiros. Enquanto patrulhavam a zona, os soldados portugueses depararam-se com elementos da FRELIMO, facto que culminou num confronto entre as partes. Nguiraze afiançou o seguinte:

- “Num desses dias, um grupo de soldados da tropa colonial veio a este povoado e perguntou ao meu pai se não tinha visto os “turras”. O meu pai respondeu que não, e que nem sabia de que se tratava. No entanto, estes permaneceram na aldeia para detectar qualquer movimento que pudesse ser suspeito, pois, tinham desconfiado que o régulo estivesse a mentir. Pouco tempo depois, eles cruzaram-se com um grupo de guerrilheiros, o que culminou com a troca de tiros entre os dois grupos. Este confronto exacerbou os ânimos da tropa

33Acreditamos tratar-se de um dos irmãos de Emília Daússe.

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colonial, tendo tomado a decisão de assassinar alguns membros da população e prender todos os régulos, a excepção de Nyakwawa Chiundiza, que era colaborador da PIDE”.34

Emília Daússe vivenciou toda esta série de barbaridades cometidas pela tropa colonial. No entanto, ao invés de se render à crueldade ou refugiar-se nos países vizinhos como Malawi, Zimbabwe e Zâmbia, não se acobardou. Corajosamente, ludibriou a vigilância da PIDE e juntou-se directamente às fileiras da guerrilha da FRELIMO. Alimentava a sua consciência nacionalista e colocava a sua vida em troca da libertação do povo moçambicano.

Mulheres mobilizadas para a Luta Armada

34Luciano Nguiraze, entrevista citada.

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5. INGRESSO DE EMÍLIA DAÚSSE NA FRELIMO

Emília Daússe ingressou na FRELIMO em 1971, na Base Nyambhandu, no então Distrito de Changara. Nesta altura, a FRELIMO já tinha se instalado em vários pontos estratégicos ao Sul do rio Zambeze, o referido Quarto Sector. Neste contexto, no seu trajecto, Emília passou por algumas destas bases.

Com efeito, saindo da Aldeia de Nyaakamba, Emília seguiu para a Sub-Base Nyambhandu, pertencente ao Quinto Destacamento do Quarto Sector, numa zona conhecida por Chacolo, em Nyamajanela. Foi neste local onde se encontrou com outras militantes recentemente mobilizadas. A estadia do grupo em Nyambhandu não foi prolongada, em virtude de um ataque perpetrado pela tropa colonial a esta Base. Por razões de segurança, Emília Daússe e suas companheiras foram transferidas para Kangudzi, base onde se encontrava o Comando do Quinto Destacamento. Neste local permaneceram cerca de três meses. Integravam o grupo, figuras como Maria da Piedade Caetano, Maria Jacalasse e Cressia Jone35.

De Kanguzi, o grupo seguiu para a Base de Segurança36, conhecida por N’solo wa Nzou (cabeça de elefante), na zona de Chintholo, ainda, no Quarto Sector37. Aqui, 35Maria da Piedade Caetano, entrevista de 08/05/2014. Vila de Moatize.36Antes de ser estabelecida no local conhecido por N’solo wa Nzou, esta base esteve numa zona denominada Jeque. Portanto, na generalidade as bases da guerrilha não eram fixas e não tinham posições permanentes, podendo ser transferidas para outros locais, sobretudo, por razões de segurança. 37Refira-se que a Base de Segurança era a Base Regional do Quarto sector. Esta base possuía os seus destacamentos, de entre eles, o Quinto Destacamento. Cada destacamento tinha as suas sub-bases, que podiam ser bases de protecção, de avanço

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encontrou outras mulheres que acabavam de se filiar à FRELIMO, como Lúcia Samissone e Joana António. A este respeito, Maria Jacalasse, uma das companheiras de Emília Daússe durante a odisseia, prestou o seguinte depoimento:

- “Em 1971, apareceram em Nyamajanela, povoado onde eu vivia, os senhores Biquiwane, Cicio e um outro de que não me recordo o nome, a fazerem mobilização na comunidade para a FRELIMO. Eu voluntariei-me logo. Saímos de Nyamajanela e fomos à Base Nyambhandu, onde encontrei Emília Daússe, que me pareceu ter chegado poucos dias antes. Eu já a conhecia desde a nossa infância. Em Nyambhandu ficámos poucos dias, porque a base foi atacada pelos portugueses. Tivemos de sair, e para não retardar a marcha, levámos somente cobertores como forma de evitar muita carga.

A caminhada levou-nos até a base onde estava o comando do Quinto Destacamento, chefiado por Kalulu Sapezeka38, na zona de Kangudzi, onde permanecemos três meses. Em seguida, levaram-nos para a Base de Segurança N’solo wa Nzou, em Chintholo, onde estava o Comando Sectorial, e ficamos cerca de seis meses a fazer trabalhos diversos. Emília Daússe sempre era voluntária no desempenho das actividades que nos eram confiadas”.39

e de material. As sub-bases eram “alimentadas” ou reforçadas em termos de efectivos e material de guerra pelo destacamento e este pela Base Sectorial. Em casos de uma operação de grande envergadura organizada pelo destacamento, este podia solicitar a participação de contingentes provenientes das suas sub-bases.38De seu nome oficial Sandramo Banda.39Maria Jacalasse, entrevista de 14/10/2013. Chitima.

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Maria Jacalasse

Efectivamente, durante a sua estadia na Base N’solo wa Nzou, Emília Daússe evidenciou-se na organização das companheiras para o transporte de material para abastecer o Quarto Sector. Recorrendo à sua experiência de Nyaakamba, ainda que curta, onde disfarçadamente ludibriava a vigilância e prestava assistência aos guerrilheiros da FRELIMO; associada à sua persistência, coragem, agilidade e destreza; Daússe e seu grupo contornavam os desafios inerentes a esta espinhosa tarefa. Vezes sem conta, dirigia-se ao Primeiro Sector e de lá retornava com material letal, víveres e medicamentos. A este propósito, Maria Jacalasse, acrescentou:

- “Durante o tempo que ficámos na Base N’solo wa Nzou não tivemos treinos militares. Apesar disso, fazíamos o transporte de material para abastecer os guerrilheiros. Emília Daússe destacou-se nesta actividade. Por causa da sua coragem e empenho, foi-lhe confiada a responsabilidade de organizar algumas mulheres na base para se deslocarem

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ao Primeiro Sector e trazerem armas e alimentos. Era uma missão que exigia grande sacrifício. Ela mobilizava-nos para marcharmos sem muitas paragens de modo a que os materiais chegassem a tempo ao destino”.40

Mulheres transportando material bélico

40Maria Jacalasse, entrevista citada.

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Como resultado da intensificação das acções militares na região, a responsabilidade de abastecimento logístico à Base N’solo wa Nzou recaiu sobre Emília Daússe e suas companheiras. Com efeito, foi-lhe confiada a tarefa de organizar outras mulheres na Base, para a desafiante missão de transportar armamento e alimentos, actividade que assumiu com afinco e dedicação, mostrando um cometimento com a causa libertária, ainda que não tivesse sido submetida a treinos militares. A este respeito, o Brigadeiro José Ajape, prestou o seguinte depoimento:

- “Na Base N’solo wa Nzou, Emília Daússe teve a tarefa de organizar outras militantes para o transporte de armas e alimentos. Ela criou grupos de 10 a 15 combatentes, que a cada sete dias seguiam à busca de material de guerra para as frentes de combate. Um dos locais de onde se buscavam víveres era a zona do velho Mereque. Numa dessas deslocações, a Emília caiu numa emboscada com outros guerrilheiros. Durante os confrontos, viu três armas do tipo AKM no chão. Mesmo sem ter recebido treinos militares, de forma corajosa, e evidenciando uma destreza táctica impressionante, levou as armas e saiu a correr a “todo vapor” para um local seguro dos confrontos, tendo, de seguida apresentado as armas ao Comando da Região, na Base de Segurança”.41

41Brigadeiro José Ajape, entrevista de 25/04/2014. Cidade de Maputo.

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José Ajape

Emília Daússe distinguiu-se, para além das actividades referidas, na produção agrícola para o abastecimento aos guerrilheiros bem como para a alimentação das crianças nos centros educacionais, dentro das Zonas Libertadas. De facto, transportando alimentos como milho, mapira, mexoeira e legumes, Emília Daússe alheava-se ao perigo representado por bombardeamentos, emboscadas, minas anti-pessoais, travessia de riachos caudalosos, entre outras contrariedades. Deste modo, esta combatente materializava as directrizes da FRELIMO, relativamente ao papel da mulher. A este respeito, Eduardo Mondlane (1995:147), debruçou-se da seguinte forma:

- “No processo da Luta de Libertação Nacional, competia à Mulher, a mobilização e organização das massas populares; o recrutamento de jovens de ambos os sexos, para engaj á-los na Luta Armada; produção; transporte de material; protecção militar das populações”.

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Na mesma senda, Josina Machel, publicou um artigo na “Voz da Revolução”, em 1970, no qual fazia um balanço a respeito do papel da mulher, mais concretamente, do Destacamento Feminino no processo revolucionário que estava em curso em Moçambique. Enfatizou o seguinte:

- “Uma das principais funções do Destacamento Feminino é (…) participar nos combates. Em Moçambique, as actividades militares das mulheres estão, geralmente, juntamente com as milícias, concentradas na defesa das zonas libertadas. (…). Embora sejam muito eficientes no campo militar, a contribuição das mulheres tem ressaltado mais no campo político. Desde 1967, as mulheres têm demonstrado desempenharem um papel fundamental na mobilização e educação política do povo e dos guerrilheiros.

Neste trabalho nós explicamos ao povo a necessidade de lutar, que tipo de luta estamos a travar, contra quem lutamos, quais as razões da nossa luta, os nossos objectivos, porque é que escolhemos a luta armada como único caminho para a independência, quem são os nossos inimigos e quem são os nossos verdadeiros amigos, etc. (…). Além disso, as nossas actividades dirigem-se também aos homens, e a presença de mulheres com armas é um elemento muito importante para a mobilização dos homens: eles ficam envergonhados e não se atrevem a recusar aquilo que as próprias mulheres estão a fazer”.42

42SECRETARIADO NACIONAL DA ORGANIZAÇÃO DA MULHER MOÇAMBICANA. 7 de Abril de 1981: 10 Aniversário da Morte da Camarada Josina Machel, Símbolo da Mulher Moçambicana Combatente. Maputo: INLD, 1981.

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Josina Machel

O empenho e dedicação demonstrados por Emília Daússe na prossecução das tarefas que lhe eram confiadas não passaram despercebidos aos responsáveis da guerrilha no Quarto Sector. Como corolário, Emília viria a ser seleccionada para seguir à Tanzania, com o fito de receber treinos político-militares, no entendimento de que, esta formação seria uma mais-valia para a causa nacional, uma vez que se augurava uma notável maximização das suas qualidades e capacidades.

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6. PREPARAÇÃO POLÍTICO-MILITAR DE EMÍLIA DAÚSSE

Emília Daússe realizou os seus treinos político-militares no Campo de Nachingwea, na Tanzania, onde chegou em Março de 1972, na companhia de outras militantes vindas da Frente de Tete. Com efeito, saídas da Base de Segurança, passaram pela Base Chifombo e seguiram até Kassuende, um local de trânsito da e para a Frente de Tete. Desta última Base, o grupo teria atravessado a fronteira com a Zâmbia e seguido até Lusaka. Neste local, juntaram-se a um outro, igualmente, proveniente da Província de Tete. Da capital zambiana, foram encaminhadas à Tanzania, concretamente ao Campo de Nachingwea.43

Mulheres num campo de treinos militares

Létia Zaqueu Caponda, combatente da Luta de Libertação Nacional, encontrou-se com Emília Daússe e seu grupo em Lusaka, num campo de trânsito e de cultivo pertencentes a FRELIMO, na altura sob a direcção de Solomome 43Maria da Piedade Caetano, enrevista citada.

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Machaque. Decorrido cerca de duas semanas, o grupo, agora mais numeroso, partiu para Tanzania transportado em três camiões. Létia salientou o seguinte:

- “Encontrei-me com Emília Daússe em Lusaka. O meu grupo, que era composto por dez combatentes, saiu do Segundo Sector, e era chefiado pela camarada Carolina. Então, chegados à Lusaka, fomos estacionadas num campo da FRELIMO que era chefiado pelo “velho” Solomone. O grupo da Emília, que era mais numeroso, encontrou-nos neste local. Ficámos juntos durante cerca de duas semanas, período durante o qual, dedicávamo-nos ao cultivo dos campos agrícolas daquele centro. Passado este período, fomos transportadas em camiões e seguimos viagem, passando por Mbea, Tunduru, e finalmente, chegámos ao Campo de Nachingwea. Foi uma viagem que levou, pelo que me lembro, dois dias”.44

De pé, Solomone Machaque, a direita, na companhia de Francisco Langa

44Létia Zaqueu Caponda, entrevista de 09/05/2014. Vila de Moatize, Tete.

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O Campo de Nachingwea foi aberto em Outubro de 1965, por instrutores moçambicanos dirigidos por Samora Moisés Machel. Neste campo, viria a ser estabelecido o “Comando Nacional das Forças de Libertação de Moçambique”, após a formação do Conselho de Comando Nacional, em 1966, sob a responsabilidade do Chefe do Departamento de Defesa, Filipe Samuel Magaia.

Em Nachingwea, a formação era orientada por instrutores chineses, em parceria com moçambicanos. Destinava-se à preparação de pelotões, companhias e batalhões. Havia, igualmente, cursos especiais de instrutores, engenharia militar, produção e outros (Pelembe, 2012). Por Nachingwea passaram vários militantes, pelo que este local tornou-se no epicentro da Revolução Moçambicana. A importância conferida ao Centro fez com que o Comando da FRELIMO criasse condições de segurança e saúde para os guerrilheiros.

A importância do Campo de Nachingwea foi, igualmente, reconhecida pela tenebrosa PIDE. De facto, num relatório elaborado por esta instituição referente à organização da FRELIMO na Tanzania, escreveu o seguinte:

- “O Campo Politico-Militar de Nachingwea dispõe de cerca de 40 assistentes chineses, que têm por missão orientar os instrutores e instruendos moçambicanos (…). A segurança próxima é mantida por 4 postos de sentinela. A cerca de 100 metros há posições de armas contra aeronaves. A 6 quilómetros situa-se um antigo quartel da Tanzania, cedido à FRELIMO para arrecadação de todo o armamento destinado ao interior (…). Relativamente a saúde estava permanentemente de serviço, um médico chinês, coadjuvado por enfermeiros moçambicanos”.45

45Processo 19-GAB 10.02/TZ/SC, com o n.º 2195/70/DI/2/SC de 28-10-1970. In: http://

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Faziam parte da estrutura administrativa do Campo de Nachingwea, por volta de 1970, Sebastião Chinguane Marcos Mabote, Chefe de Operações; Dinis A. Moiane, Comissário Político; Tobias Sigaúque, Chefe de Instrução Militar; Fernando Raúl, Chefe do Departamento de Defesa; Fernando Matavele, Chefe da Administração do Campo; e José Munhepe, Chefe do Serviço de Transmissões. Dentre várias matérias ministradas, destacam-se a marcha, armamento, táctica de guerrilhas, estratégia, política revolucionária e noções de recrutamento.46

A instrução ministrada às mulheres não diferia da que os homens estavam sujeitos. Foi neste âmbito que Emília Daússe foi submetida aos treinos acima mencionados. No entanto, o facto de ter sido confiada particularmente às mulheres a missão de transporte de armamento e munições, e reconhecimento de posições da tropa inimiga, passou a ser ministrado, somente a elas, lições de camuflagem. De entre as instrutoras, algumas colegas de Emília Daússe em Nachingwea lembram-se de nomes como Evenia Sevene Chissinga e uma outra tida simplesmente como sendo Albertina. Emília Daússe, uma vez mais, destacou-se na assimilação dos ensinamentos transmitidos. Importa frisar que Emília é recordada pelas suas companheiras de trincheira como uma mulher inteligente e de rápido raciocínio. Debruçando-se sobre os treinos em Nachingwea, Létia Caponda, acrescentou:

- “Fazíamos todos exercícios, desde a marcha, manuseamento de armas, tácticas militares, política e outras matérias ligadas à guerrilha. Tínhamos ali

digitarq.dgarq.gov.pt. Código de referência: PT/TT/SCCIM/A/20-7/37, nº 1169, folhas 130 e 131.46Esta informação é, igualmente, referida em http://digitarq.dgarq.gov.pt. Código de referência: PT/TT/SCCIM/A/20-7/37, nº 1169, folhas 137 e 138.

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duas instrutoras, a Evenia e Albertina, que davam marcha. Havia também dois homens, cujos nomes não me lembro. Estes davam táctica: progredir, recuar, diminuir o alvo, rastejar. Nós fazíamos parte do Pelotão E, pois, havia outros pelotões. Saíamos por volta das 6:00 horas, e voltávamos à hora do almoço. À tarde retomávamos os treinos.

Emília revelou-se sempre uma grande líder, incentivando-nos a superar os obstáculos nos treinos. Apesar do pelotão ter como chefe a camarada Carolina, a Emília Daússe era a líder natural do grupo, demonstrando um rápido raciocínio e uma sagaz assimilação dos conteúdos”.47

Létia Caponda

47Létia Caponda, entrevista citada.

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7. EMÍLIA DAÚSSE NA FRENTE DE TETE

Após o término dos treinos político-militares em Nachingwea, Emília Daússe regressou ao interior da Província de Tete, por volta de Setembro de 1972. Nesta Frente o grupo dirigiu-se, primeiramente, à Base de Chadiza, um local próximo à fronteira com a Zâmbia, no Primeiro Sector. A partir desta base, o grupo foi desmembrado em pequenos contingentes, e enviados para os diferentes sectores. Assim, a título de exemplo, Maria da Piedade foi para a Base Mazeze, em Fíngòe, no Primeiro Sector; Létia Caponda para a Base Chirungo, em Chifunde, no Segundo Sector; e Emília Daússe para a Base Kassuende, no Primeiro Sector.

A Base Kassuende funcionou, durante a Luta de Libertação Nacional, como um centro logístico da FRELIMO na Frente de Tete. Era neste local onde todo o material de guerra e víveres vindos da Tanzania eram armazenados e, a partir daqui, enviados para as frentes de operação. Em Kassuende, Emília Daússe foi indigitada Chefe de Pelotão. Nesta qualidade, desdobrou-se na prossecução de actividades diversas, com destaque para o transporte do material junto à fronteira com a Zâmbia para Kassuende e, desta Base, para as zonas de avanço.

Tendo se destacado nestas actividades, Emília Daússe foi enviada para a região de Nyaluiro, uma zona de avanço do Primeiro Sector. À sua chegada, Emília Daússe encontrou na região um outro contingente de guerrilheiras48. Na altura, o comando da Base de Nyaluiro era constituído por 48De acordo com Lúcia Samissone, o seu grupo chegou a Nyaluiro pouco antes do da Emília Daússe. Este, era chefiado por Joaquina Assuade, e integrava combatentes como Fernanda Malunguissa e Berta Faife.

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António Ibrahimo, como Comandante, Agnesse Juliasse, Chefe do Destacamento Feminino, e Maquenze Kabeque, como Chefe de Material.

Nyaluiro revestia-se de uma importância particular para o avanço da Luta. Efectivamente, era a partir da zona de Nyaluiro que o material era canalizado ao Quarto Sector, um sector da Luta que evidenciava uma vibrante e bem-sucedida actuação da guerrilha da FRELIMO. De facto, a partir desta região foi possível fazer a extensão da Luta para a então Província de Manica e Sofala, bem como para a Quarta Região49.

Neste contexto, competia ao grupo de Emília e outros combatentes o grande desafio de garantir o abastecimento regular em armamento e medicamentos a estas regiões. O regime colonial português tentou contrapor este desiderato através da construção da Hidroeléctrica de Cahora Bassa.50 Relatando sobre a indicação de Emília Daússe para o Destacamento de Nyaluiro, no Quinto Destacamento do Primeiro Sector, em Nyaluiro, Maria Jacalasse referiu:

- “Quando terminaram os treinos, em Nachingwea, fomos enviadas para Chadiza. Neste ponto, fomos separadas. Emília Daússe foi para a Base Kassuende e eu fiquei na Base de John Thauro, que servia de segurança à de Kassuende. Em todos os sectores o nosso ponto forte era o abastecimento

49Refere-se a região Sul do País. 50Sobre as implicações políticas e militares da Barragem de Cahora Bassa pode ver-se, entre outros, MAZUZE e MATE, 2013:47-48; AHU, UM/GM/GNP/030; http://www.guerracolonial.org; Sellström, Tor. A Suécia e as Guerras de Libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Upsala, 2008.

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em material de guerra e alimentação para as novas frentes de combate. Mais tarde, Emília Daússe, comandando um pelotão de cerca de 40 combatentes, entre homens e mulheres, foi enviada para a zona de Nyaluiro. Esta era uma zona muito importante para o avanço da Luta no Quarto Sector e para Manica e Sofala ”.51

Guerrilheiras transportando material bélico e víveres

Bernardo Beca Jofrisse debruçando-se, igualmente, sobre os imperativos da guerrilha em Tete, salientando que foram constituídos dois pelotões chefiados por Emília Daússe e Evenia Chissinga, respectivamente, para garantir o avanço impetuoso da Luta para novas regiões. Este, acrescentou o seguinte:

- “Das orientações que a Província de Tete tinha recebido, uma dizia respeito à necessidade do avanço da Luta para além do rio Save. Foi

51Maria Jacalasse, entrevista citada.

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na sequência desta medida que o Comando da Província, em coordenação com instâncias superiores, destacou dois pelotões, constituídos por elementos do Destacamento Feminino. Um deles era comandado pela camarada Emília Daússe, posicionado em Nyaluiro, foi encarregue pelo abastecimento em material de guerra, ao Quarto Sector e, ainda, a Província de Manica e Sofala. Posteriormente, faria o mesmo trabalho para a Quarta Região. O pelotão chefiado por Evenia Chissinga dirigiu-se para o Segundo Sector, cujo objectivo era fazer avançar o material para a Província da Zambézia”.52

Bernardo Beca Jofrisse

António Rafael Ibrahimo corroborou com as informações fornecidas por outros actores do processo libertário na região, tendo afirmado que, no decurso das suas actividades, Emília mostrou-se uma combatente bastante 52Bernardo Beca Jofrisse, entrevista de 27/01/2013. Cidade de Tete.

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dedicada a libertação da sua pátria. António Ibrahimo, sublinhou:

- “Eu era o Comandante do Quinto Destacamento do Primeiro Sector, em Nyaluiro. À sua chegada, em Janeiro de 1973, Emília Daússe comadava um pelotão composto por cerca de Quarenta elementos. A este viria juntar-se um outro que já se encontrava a operar na região, perfazendo cerca de Setenta combatentes. Este grupo tinha uma missão específica, que era o transporte de material de guerra e víveres para garantir o avanço da Luta a Sul do Rio Zambeze, incluindo Manica e Sofala. Devido às suas qualidades, pois, Emília era uma camarada muito activa e com uma incomensurável dedicação ao trabalho, foi possível garantir o abastecimento regular dos materiais necessários à guerra, e consequentemente, o avanço impetuoso da Luta na região”.53

Efectivamente, Emília Daússe mostrou uma entrega e abnegação incontestáveis no processo libertário. Para além disso, empenhava-se, ao nível do seu pelotão, com a eficiência e eficácia para o sucesso das tarefas que lhe eram acometidas. De igual modo, evidenciava um elevado sentido humano, na medida em que se preocupava com a moral dos combatentes sob o seu comando. Sabia ouvir-lhes e daí tirar lições que pudessem contribuir para o sucesso das suas missões. Elisa Fole, guarda-costas de Emília Daússe, revelou que esta inspirava aos guerrilheiros no sentido de melhorarem cada vez mais o seu desempenho. Elisa Fole, rematou:

53 António Rafael Ibrahimo, entrevista de 2/12/2012. Cidade de Maputo.

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- “Eu conheci a Chefe Emília Daússe em 1973, quando cheguei à Base de Nyaluiro. Pouco tempo depois escolheu-me para ser a sua guarda-costas. Daí, passei a estar sempre ao seu lado. Preparava a água para o seu banho e a sua comida. Quando se deslocava à busca de material, íamos juntos e eu é que carregava a sua bagagem. Emília Daússe era uma camarada que sabia ajudar os outros, consolando-os. Dizia sempre que devíamos ser fortes e capazes de superar todas as dificuldades e adversidades. Dava-nos conselhos para nos dedicarmos ao trabalho porque, segundo ela, depois da independência, seríamos livres. Era uma mulher que não se cansava de qualquer maneira. Quando tomasse uma decisão levava-a até as suas últimas consequências”.54

Elisa Fole

54Elisa Fole, entrevista de 24/10/2013. Chitima, Tete.

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O processo de transporte de material para o teatro de operações estava devidamente estruturado. Mediante um trabalho aturado de mobilização, ao nível das zonas onde a FRELIMO se encontrava implantada, a população, os estudantes e os guerrilheiros envolviam-se de forma abnegada nesta difícil tarefa. Para o caso da Província de Tete, havia três direcções, tendo como ponto de partida a Base Kassuende. Como salientou Bernardo Jofrisse, de Kassuende uma parte do material seguia para Chifombo e Doela, atravessando os rios Mussenguezi e Luenha, desembocando na Província de Manica e Sofala. Outro seguia para a Base Chadiza, e desta era encaminhado para o Quarto Sector, passando pela Base Nyaluiro. Finalmente, outro seguia para Mulowe, na então Vila Gamito, e abastecia o Segundo e Terceiro sectores. 55

Lúcia Samissone recorda-se das actividades por si desenvolvidas em parceria com Emília Daússe, tanto no que diz respeito ao transporte de material, quanto na mobilização das comunidades para se engajarem na Luta Armada. Conforme afiançou, a população era incentivada a participar no carregamento do material, no fornecimento de alimentos e a participar nos esforços com vista a criação e consolidação dos serviços sociais, designadamente, educação e saúde. Segundo esta informante, um grupo trazia o material para um esconderijo localizado nas imediações da Base Nyaluiro. Deste local, o material era levado para o Rio Zambeze, e daí embarcado para o Quarto Sector. Lúcia realçou o seguinte:

- “Nós nem sempre chegávamos à Base Kassuende. Havia um grupo que levava o material de Kassuende até um esconderijo, nas montanhas

55Bernardo Beca Jofrisse, entrevista citada.

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de Chinsinga, próximo à Base Nyaluiro. Daqui, transportávamos o material para o Rio Zambeze. A distância que percorríamos pode ser estimada em cerca de 20 Km. No entanto, devido as exigências da Luta, as vezes fazíamos três viagens, diariamente. O material era embarcado a partir das 18:00 horas, em canoas remadas por guerrilheiros, com o envolvimento de membros da população que conheciam melhor os contornos e o comportamento do rio”.56

Lúcia Samissone

Como se pode depreender, o engajamento popular afigurava-se um factor de elevada importância no transporte do material e, consequentemente, para o sucesso da Luta. Com efeito, era a população que conhecia os melhores itinerários a serem seguidos e os 56Lúcia Samissone, entrevista citada.

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principais acidentes geográficos. Neste aspecto, Emília Daússe constitui uma referência incontornável na História da Luta de Libertação Nacional e da Frente de Tete, em particular. As realizações desta combatente representaram uma victória da Linha Revolucionária da FRELIMO, no que se refere à importância do envolvimento da mulher na Luta. Com estes feitos, definitivamente, provava-se que a Linha Reacionária perdia a razão, ao subestimar o papel da mulher, alegadamente porque ela não possuía capacidade física para enfrentar os desafios trazidos pelo desenvolvimento da Luta Armada.

Neste sentido, Emília Daússe fazia jus a correcta visão do movimento libertador da Pátria Moçambicana, defendida no seu II Congresso, realizado de 20 a 25 de Junho de 1968, em Matchedje, Província de Niassa. Com efeito, esta magna reunião da FRELIMO, nas resoluções sobre a Luta Armada, sublinhou que “(…) é conferido um papel particularmente importante ao Destacamento Feminino, para o impulso da Luta Armada de Libertação Nacional”.

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8. AS CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE DE EMÍLIA DAÚSSE

Emília Daússe perdeu a vida no dia 11 de Novembro de 1973, em Nyaluiro, vítima de um ataque da tropa colonial portuguesa. As circunstâncias da sua morte são descritas por alguns guerrilheiros que se encontravam a desempenhar as suas actividades nesta região. Na altura, Nyaluiro vinha sendo fustigado por acções da tropa colonial na tentativa de inviabilizar o processo de transporte de material de guerra e víveres para o Quarto Sector.

Esta zona estava cercada por várias posições do exército colonial. Com efeito, tinham sido estabelecidos nas proximidades, quartéis como Nhenda, Mafigo ou Chiunfungo, Cawero, Ahmad, Chiboco e Chissete57. De igual modo, estavam estacionados perto de Nyaluiro, vários batalhões reforçados, e com todas as especialidades, em Chipera e, Fíngòe, na sede do distrito de Marávia.

Aquando da operação que viria a vitimar Emília Daússe, a Base de Nyaluiro acabava de receber um carregamento de material bélico e medicamentos que tinham como destino o estratégico Quarto Sector. Como se referiu anteriormente, quando o material vinha de Kassuende era colocado num esconderijo, nas montanhas de Chinsinga, à espera de uma oportunidade para ser transportado, transitoriamente, para as margens do Rio Zambeze.

Na tentativa de desmantelar a Base de Nyaluiro, a tropa colonial efectuava várias investidas, visando o aniquilamento desta Base, sem sucesso. No entanto, a 11 de Novembro, invadiu a zona e atacou o grupo da Emília 57Gervásio Pingo, entrevista de 11/05/2014. Cidade de Tete.

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Daússe, quando realizava mais uma missão de transporte de material, tendo sido alvejada mortalmente. A este respeito, Lúcia Samissone relatou o seguinte:

- “No dia 11 de Novembro, Emília e eu, chefiávamos duas secções, para levar material em Chinsinga, à margem do Rio Zambeze. A minha secção encarregou-se do medicamento, enquanto a da Emília, do armamento. Estrategicamente, as secções deviam andar separadas, para evitar danos maiores em caso de emboscadas. Quando chegamos ao rio Senjere, o meu grupo atravessou sem problemas e, passamos pela Base Nyaluiro. No entanto, minutos depois ouvimos disparos e fumaça vindo das proximidades da Base. Demo-nos conta que o inimigo tinha emboscado a secção comandada pela Emília Daússe. Foi neste ataque que Emília perdeu a vida”.58

Outra testemunha deste trágico acontecimento perpetrado pela tropa colonial é Elisa Fole Jassi, guarda-costas de Emília Daússe. Corroborando com Lúcia Samissone, salientou que durante a incursão militar do exército colonial, Emília Daússe, chefiando um pequeno grupo saiu da Base de Nyaluiro na tentativa de garantir o transporte do material que tinha acabado de chegar para o rio Zambeze. Assim, enquanto saíam do esconderijo do material, foram surpreendidos com uma ofensiva da tropa colonial. O grupo tentou ripostar, no entanto, devido ao efeito-surpresa, alguns combatentes recuaram, no sentido de tomar posições defensivas. Em face deste recuo, Emília Daússe perdeu cobertura, ficando exposta às balas do inimigo. Elisa Fole acrescentou: 58Lúcia Samissone, entrevista citada.

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- “A comandante Emília Daússe perdeu a vida em 1973, na zona de Nyaluiro, vítima do ataque do inimigo. Na altura, acabava de chegar na zona uma grande quantidade de material de guerra, vindo de Nachingwea, cujo destino era a região a Sul do Rio Zambeze. Provavelmente, porque o inimigo sabia da presença deste material, decidiu efectuar um ataque à zona. Durante o ataque, muitos soldados recuaram, ficando a comandante Emília Daússe exposta às balas do inimigo. Ela não queria recuar, pois, pretendia garantir a segurança e integridade do material. Foi nesta tentativa de resistência e contra-ataque que ela foi mortalmente atingida. No dia seguinte, recolhemos os seus restos mortais e sepultámo-los próximo da Base Nyaluiro”.59

António Ibrahimo, Comandante do Quinto Destacamento de Nyaluiro na altura do fatídico acontecimento, descreveu, igualmente, as circunstâncias da morte de Emília Daússe. Apesar de algumas divergências, em linhas gerais, os elementos por si arrolados corroboram com os anteriores. De acordo com Ibrahimo, em Novembro de 1973, a zona de Nyaluiro foi invadida por um contingente da tropa colonial portuguesa. Esta incursão aconteceu, precisamente, no momento em que se procedia à transferência do material do esconderijo para o Rio Zambeze. Emília Daússe, sempre predisposta e voluntariosa, decidiu dirigir um dos grupos que ia realizar essa actividade. Foi neste processo que ela viria a ser atingida por uma bala inimiga, como consta no seu depoimento.

- “Na manhã do dia 11 de Novembro de 1973, dois pelotões tinham saído para fazer o transporte do material. Um deles era chefiado por Emília Daússe.

59Elisa Fole, entrevista citada.

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Entretanto, a zona de Nyaluiro tinha sido invadida por uma companhia da tropa colonial portuguesa. Por volta das 15:00 horas ouvimos tiros, não muito distante do local em que me encontrava. Suspeitamos que fossem elas que tivessem sido emboscadas pelo inimigo. Mandei um elemento disparar dois obuses de um morteiro de 66 mm, como forma de auto-defesa e para dispersar o inimigo que, dissuadido, fugiu em debandada. Emília foi a única pessoa a ser atingida pelas balas inimigas, quando atravessava o rio Senjere. Depois deste incidente, avancei com alguns camaradas ao local do fatídico acontecimento. Encontramo-la já sem vida. No dia 12 de Novembro realizamos o funeral”.60

António Rafael Ibrahimo

60António Rafael Ibrahimo, entrevista citada.

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Assim terminou a história de uma vida dedicada a causa da libertação da Terra e do Povo moçambicano. Uma vida caracterizada por uma total entrega em prol da emancipação da mulher, da promoção dos mais nobres valores da Humanidade, como a igualdade e a não discriminação com base no género. O seu exemplo serviu de farol que passou a inspirar e a iluminar as suas companheiras no comprometimento e prossecução da Luta pela Libertação Nacional. As suas obras ainda hoje inspiram a mulher moçambicana, no esforço quotidiano para o seu empoderamento, pela melhoria das suas condições de vida e para um desenvolvimento mais equilibrado e sustentado da Nação moçambicana.

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Anexos

Anexo 1: Lista de entrevistados

Aleixo GimoBenigno Elias MaquiBernardo Beca Jofrisse César Jorge AlguineiroElias Fote MaquiElisa CalicheElisa FoleGervásio PingoInês Dique CassongoJosé AjapeJosé MoianeLaisson JoaquimLétia Zaqueu CapondaLúcia SamissoneLuciano NguirazeMaria da Piedade CaetanoMaria do Céu SaineteMaria JacalassePaulo JoaquimRangisse XereniRosária BacachezaRosé Filipe JoãoTeresa TemboVaireta Sainete.

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Alguns familiares de Emília Daússe residentes em Nyaakamba

Vairedi Sainete e Maria do Céu Sainete, sobrinhas de Emília Daússe

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