vida de santa maria madalena

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Page 1: Vida de Santa Maria Madalena

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Page 2: Vida de Santa Maria Madalena

EDIÇÕES:Márcia Cristina Martins

[email protected](0xx21) 2595-1472 e 9157-9559

PROGRAMA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Largo de São Francisco, 1, sala 325-BCentro – Rio de Janeiro – RJ

CEP 20051-070 E-mail: [email protected]

Direção da Coleção: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Leila Rodrigues

da Silva, Maria Cristina Correia Leandro Pereira

Diagramação, Produção do Miolo e Capa: Márcia Cristina da Rocha Martins

Impressão e Acabamento: Fábrica de Livros - SENAI

ANÔNIMO. Vida de Santa Maria Madalena.Texto Anônimodo século XIV

56 p. - Rio de Janeiro, março de 2002.Coleção Idade Média em Textos 1Programa de Estudos Medievais ISBN 85-88597-02-0Idade MédiaHagiografiaHistóriaLiteraturaMaria Madalena

Page 3: Vida de Santa Maria Madalena

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Page 4: Vida de Santa Maria Madalena
Page 5: Vida de Santa Maria Madalena

Apresentação ............................................................. 7

Introdução à Vida de Santa Maria Madalena .............. 9

1. Maria Madalena no Novo Testamento ............... 9

2. Maria Madalena nos evangelhos gnósticos ....... 11

3. Maria Madalena, uma construção medieval ..... 15

4. O culto a Maria Madalena na Idade Média ..... 19

5. Características da Vida Castelhana de Santa

Maria Madalena ................................................... 24

6. A Vida Castelhana de Santa Maria Madalena

face à Legenda Áurea ........................................... 26

Bibliografia ................................................................ 35

Notas sobre a edição e a tradução ............................. 36

Vida de Santa Maria Madalena ................................. 37

Notas ........................................................................ 51

Responsáveis pelo número ........................................ 53

S u m á r i oS u m á r i oS u m á r i oS u m á r i oS u m á r i o

Page 6: Vida de Santa Maria Madalena

6 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

Page 7: Vida de Santa Maria Madalena

7VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

O Programa de Estudos Medievais da UFRJ lança, com

este volume, a CO L E Ç Ã O ID A D E MÉ D I A E M TE X TO S , pro-

posta voltada para a publicação de documentos medievais em

edições bilingües e de trabalhos analíticos sobre diversos as-

pectos da cultura medieval.

Com tal iniciativa objetivamos, sobretudo, contribuir

para o incremento dos estudos medievais no Brasil, atingindo

não apenas especialistas, mas também alunos de Graduação e

Pós-Graduação e interessados em geral no período.

Com o volume ora apresentado, colocamos ao alcance

do público brasileiro o texto castelhano em prosa da Vida de

Santa Maria Madalena do século XIV e sua tradução, ainda

não editados no país.

Ao leitor, desejamos que o presente trabalho proporcio-

ne um agradável encontro com o Medievo.

Andréia Cristina L. Frazão da SilvaLeila Rodrigues da Silva

Maria Cristina Correia L. Pereira

A p r e s e n t a ç ã oA p r e s e n t a ç ã oA p r e s e n t a ç ã oA p r e s e n t a ç ã oA p r e s e n t a ç ã o

Page 8: Vida de Santa Maria Madalena

8 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

Page 9: Vida de Santa Maria Madalena

9VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

INTRODUÇÃO ÀINTRODUÇÃO ÀINTRODUÇÃO ÀINTRODUÇÃO ÀINTRODUÇÃO À VIDA CASTELHANA DEVIDA CASTELHANA DEVIDA CASTELHANA DEVIDA CASTELHANA DEVIDA CASTELHANA DE

SANTA MARIA MADALENASANTA MARIA MADALENASANTA MARIA MADALENASANTA MARIA MADALENASANTA MARIA MADALENA

1. MARIA MADALENA NO NOVO TESTAMENTO1. MARIA MADALENA NO NOVO TESTAMENTO1. MARIA MADALENA NO NOVO TESTAMENTO1. MARIA MADALENA NO NOVO TESTAMENTO1. MARIA MADALENA NO NOVO TESTAMENTO

Maria de Magdala, ou Maria Madalena, é a figura femininamais citada no Novo Testamento - ainda mais que a Virgem.Além disso, é personagem importante na cena da ressurreiçãode Cristo.

No Evangelho segundo Mateus ela é mencionada diretamenteduas vezes. Em Mt. 27,56, na cena da crucificação, é a primeira aser nomeada entre as mulheres que acompanhavam Jesus desde aGaliléia, e em Mt. 28,1, no relato da ressurreição, ocasião em queJesus aparece às mulheres e ordena que dêem a notícia aos apósto-los e que estes sigam até a Galiléia, é novamente lembrada em pri-meiro lugar: “Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro”.

Marcos se refere a ela quatro vezes. Na cena da crucificação,em Mc. 15,40-41, ela é mais uma vez identificada como parte dogrupo de mulheres que seguiam a Jesus desde a Galiléia e é citada,também, em primeiro lugar: “Estavam também ali algumas mu-lheres, observando de longe; entre elas Maria Madalena, Maria,mãe de Tiago, o menor, e de José, e Salomé”. Um pouco mais àfrente, em Mc. 15,47, ela é apontada como testemunha do sepul-

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10 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

tamento: “Ora, Maria Madalena, e Maria, mãe de José, observa-ram onde ele foi posto.” O relato da ressurreição segundo o Evan-gelho de Marcos é o que dá mais importância a Madalena. Ela édestacada duas vezes: em Mc. 16,1, ela aparece indo comprar aro-mas com outras mulheres para embalsamar Jesus; e em Mc. 16,9afirma-se: “Havendo ele ressuscitado de manhã cedo no primeirodia da semana, apareceu primeiro a Maria Madalena, da qual ex-pelira sete demônios.”

O Evangelho segundo Lucas faz alusões diretas e indiretas aMaria Madalena. Em Lc. 8,2-3 ela é mencionada como uma dasmulheres que seguiam a Jesus; dela “saíram sete demônios”; e,junto a outras mulheres, prestava assistência a Cristo com os seusbens. Em Lc. 23, nos relatos da morte e sepultamento de Jesus,ela figura como uma das discípulas que o acompanhavam desde aGaliléia, primeiro assistindo a crucificação e, depois, preparandoaromas e bálsamos para ungir o corpo do mestre. Por fim, em Lc.24,10, Madalena é a primeira a ser enumerada entre as mulhe-res que vão levar as boas novas da ressurreição: “Eram MariaMadalena, Joana e Maria, mãe de Tiago; também as demaisque estavam com elas confirmaram estas coisas aos apóstolos”.

É só no Evangelho segundo João que Madalena não é nome-ada em primeiro lugar dentre aquelas que assistem a crucificaçãode Jesus: “E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela,Maria, mulher de Cleopas, e Maria Madalena” (Jo. 19,25). Nasegunda vez em que é citada, em Jo. 20,1, Madalena vai ao sepul-cro de madrugada e encontra a pedra que o fechava revolvida,indo avisar o acontecido a dois discípulos. Ou seja, ela é a prota-gonista do relato presente em Jo. 20,11-18, quando, sozinha, cho-rando ao pé do túmulo, primeiro vê dois anjos e depois o próprioJesus, que conversa com ela.

São estas as informações sobre Maria Madalena contidas noNovo Testamento. A partir desses dados bíblicos, podemos re-

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11VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

construir alguns aspectos de sua biografia: Maria Madalena erauma mulher de posses que vivia na cidade de Magdala; após umaexperiência religiosa, tornou-se discípula de Jesus, acompanhan-do-o em suas viagens, junto a outros discípulos, homens e mulhe-res, e inclusive financiando-o. Pela forma como é nomeada, é pos-sível inferir que possuía uma situação familiar incomum em seutempo. Diferentemente de outras mulheres das Escrituras, ela éidentificada por seu lugar de origem ao invés da referência a umhomem, forma de designação mais usada para as mulheres nestemomento. Sendo Maria relacionada somente à sua cidade, Magdala,aliás, de onde deriva o nome Madalena, é provável que ela fosseuma mulher solteira e independente.

Ainda que sejam escassas as informações sobre Madalena, secomparadas às de outros personagens bíblicos, não é isento designificado o fato de que ela é tratada mais vezes do que qualqueroutra mulher no Novo Testamento e, na maioria delas, em pri-meiro lugar. Assim, sua figura despertou interesse e levou a exegesee a tradição posterior a adicionar muitos outros elementos a estapersonagem, tornando-a mais complexa, como veremos adiante.

2. MARIA MADALENA NOS EVANGELHOS

GNÓSTICOS1

O gnosticismo foi uma doutrina que inspirou a formação deum conjunto de seitas cristãs - condenadas pela Igreja como hete-rodoxas - sobretudo nos três primeiros séculos de nossa era. Em-bora as diversas seitas gnósticas possuíssem divergências, tinhamem comum o dualismo, que identificava o mal com a matéria, econsideravam o bem como uma essência espiritual acessível ape-nas aos que detinham a gnose,2 do que decorria a crença na salva-ção do homem justamente a partir da rejeição da carne.

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12 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

Os gnósticos fixaram suas tradições sobre Cristo e os após-tolos em vários evangelhos apócrifos redigidos, em sua maioria,entre os séculos II e IV. Madalena figura nesses textos com fre-qüência, pois era vista como a encarnação da sabedoria celeste ecomo companheira de Jesus. Em todos estes escritos, ela é tidacomo o modelo de gnóstico perfeito, na medida em que se elevaao ápice da visão e do amor espiritual.

Assim, no Evangelho de Felipe, Madalena é apresentada comocompanheira de Cristo:

A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Se-nhor amava Maria mais do que a todos os discípulos,e a beijou com freqüência na boca. Os outros, vendoo seu amor por Maria, lhe disseram: ‘Por que amas aela mais do que a nós todos?’ O Salvador respondeu-lhes: ‘Como não vos amo tanto como amo a ela?’3

Estes beijos que Jesus dá em Madalena, que causam estra-nheza ao leitor não familiarizado com a simbologia gnóstica, re-presentam, segundo Santos Otero, a aliança espiritual, a uniãomística entre a Sofia Celeste, encarnada por Madalena, e o LogosEterno, Cristo,4 na qual a dualidade sexual era superada, vistacomo sinal de imperfeição para boa parte dos crentes gnósticos.5

Madalena aparece também no Evangelho de Tomé como aconsorte do Senhor e sua interlocutora mais importante, aindaque suscitando a hostilidade de Simão Pedro:

Simão Pedro lhes disse: Maria, se afaste de nós, poisas mulheres não merecem a vida! Jesus respondeu: Eis,eu a guiarei de tal forma a torná-la homem. Assimtambém ela se tornará um espírito vivo semelhante avocês homens. Porque toda mulher que se torna ho-mem entrará no reino dos céus.6

Aqui, embora as palavras de Jesus sejam em defesa deMadalena, elas apontam para a idéia de que o gênero feminino é

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13VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

falho, principalmente porque é procriador e, portanto, entravepara o caminho da salvação no entender de algumas seitasgnósticas. Assim, Madalena ganha destaque não por ser mu-lher, mas por personificar a Sabedoria, o que a permite, den-tro da lógica do texto, inclusive transcender seu gênero.

Na Pistis Sophia, um tratado gnóstico escrito no século IIIsob a forma de um diálogo com os onze apóstolos e quatro mu-lheres – Maria, mãe de Jesus, Maria Madalena, Marta e Salomé –a maior parte das perguntas é feita por Madalena. Além de inter-vir repetidas vezes para interrogar Jesus, também responde às suasindagações. E ele a louva entusiasticamente por sua profundidadeespiritual:

“Bem aventurada és tu, Maria, que eu aperfeiçoareiem todos os mistérios do alto (...), tu, cujo coraçãoestá voltado para o reino dos céus mais que todos osteus irmãos!”.7

Nesta obra, portanto, Jesus considera Madalena como umapessoa que compreende seus ensinamentos facilmente, enquantoque aos outros pede que se esforcem para tanto:

“Muito bem, Maria, a tua pergunta é excelente, elanças luz sobre qualquer ponto (...).Por isso não vosdeixarei mais nada escondido daqui em diante, masrevelar-te-ei tudo com certeza e clareza. Por isso, es-cuta, Maria, e vós todos discípulos procurai entender...”8

Ou seja, na Pistis Sophia Madalena é a discípula por excelên-cia: ela tem o direito de falar e contempla o mistério antes depregar.

Outro documento gnóstico de grande importância é o Evan-gelho de Maria, escrito ainda no século II e transmitido bastantefragmentado. Nesse texto Jesus, depois da Ressurreição, responde

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14 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

a diversas perguntas de seus discípulos e os deixa em grande per-turbação. Madalena, no entanto, consola-os, restabelecendo nelesa tranqüilidade. Pedro, então, pede a Madalena que revele osensinamentos que Jesus só dera a ela, e esta assim o faz. Masquando termina sua preleção, André duvida de suas revelações ePedro questiona o próprio fato de Jesus ter escolhido uma mulhercomo interlocutora privilegiada, revelando a ela coisas que deixaraescondido deles. Neste ponto da narrativa,

“Maria explodiu em choro e se dirigiu a Pedro assim:‘Pedro, meu irmão, o que estás pensando? Crês talvezque eu mesma tenha inventado essas coisas em meucoração, ou que iria mentir a respeito do Salvador?”9

Na visão dos gnósticos Pedro representava o momento deafastamento da verdade de Cristo pelo qual passava a “ortodo-xia”10 e Madalena, o gnosticismo, que continuava a sentir o Se-nhor, por mais tempo que tenha se passado de sua Ascensão. É àluz desse quadro que a reação violenta e misógina de Pedro deveser compreendida.

Os evangelhos gnósticos, tomando por base as próprias la-cunas presentes nos textos canônicos, a preeminência que Madalenaocupa no Novo Testamento e os relatos orais, fundaram todauma linha de tradições a respeito de Madalena, na qual ela é apre-sentada como uma mulher sábia, companheira próxima de Cristoe boa oradora. Tais obras, embora confeccionados por grupos con-siderados heréticos, foram transmitidos por gerações e influenci-aram, direta ou indiretamente, a visão medieval sobre esta perso-nagem.

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15VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

3.3.3.3.3. MARIA MADALENA, UMA CONSTRUÇÃOMARIA MADALENA, UMA CONSTRUÇÃOMARIA MADALENA, UMA CONSTRUÇÃOMARIA MADALENA, UMA CONSTRUÇÃOMARIA MADALENA, UMA CONSTRUÇÃO

MEDIEVALMEDIEVALMEDIEVALMEDIEVALMEDIEVAL

A Santa Maria Madalena, como o Ocidente a venera, nãofigura nas Escrituras. De fato, ela é fruto de uma lenta constru-ção, que uniu elementos e personagens distintos. Em um primei-ro momento, fundiram-se em uma só três mulheres que são apre-sentadas nos Evangelhos canônicos: Maria de Magdala, de quemCristo expulsou sete demônios, que o seguiu até o Calvário e quetestemunhou a ressurreição;11 Maria de Betânia, irmã de Marta eLázaro; e a pecadora anônima que lavou os pés de Jesus na casa dofariseu Simão.

Uma das passagens neotestamentárias que mais influencioua formação desta tradição a respeito de Maria Madalena é Lc 7,36-50, que narra o almoço de Jesus na casa de Simão, o fariseu. Du-rante o almoço, segundo informa o evangelista, entrou uma mu-lher, identificada como “pecadora na cidade”,12 que se ajoelhouante Cristo chorando. Ela, então, começou a beijar e banhar-lhesos pés com perfume e lágrimas e a enxugá-los com seus cabelos. Ofariseu, ao ver que Jesus não se opunha a tal contato com umapecadora, desconfia dele, perguntando-se se ele era realmente umprofeta. Então Jesus narra a parábola dos dois devedores, mos-trando que aquele que tem pouco para ser perdoado, ama poucoao seu credor. Como daquela mulher muitos pecados foram per-doados, ela amava muito a seu mestre.13

Em Mt. 26,6-13 e em Mc. 14,3-9 a unção da cabeça deJesus com perfume se repete, contudo num contexto bem dife-rente. A mulher anônima não é mais identificada como pecadorae a refeição se dá agora na casa de Simão, o leproso, e não mais nade Simão, o fariseu. Já em Jo. 12,1-8, a passagem sobre a unçãotoma outra forma: a mulher que “ungiu os pés de Jesus e os enxu-

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16 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

gou com os seus cabelos” é identificada com Maria de Betânia,14

irmã de Marta e Lázaro.Assim, partindo-se da união dos vários elementos presentes

nos evangelhos canônicos e apócrifos constitui-se uma Madalenavenerada na Idade Média, a pecadora arrependida, fruto da junçãode características provenientes de três personagens: Maria deMagdala, Maria de Betânia e a pecadora da cidade de Lc. 7.15 Aconfluência destas três figuras esteve relacionada, provavelmente,à tendência, própria das sociedades patriarcais, de associar a mu-lher com os pecados da carne, principalmente porque elas estavamcercadas de símbolos da feminilidade: o perfume, o choro, os bei-jos e os cabelos.

Referências na literatura cristã a respeito dessa união de per-sonagens logo começaram a surgir. Orígenes, em seu ContraCelsum,16 no qual trata de Maria Madalena, não reconheceu aunificação das três figuras bíblicas em uma única figura, mas acita, mostrando que desde então – século III – a confusão entre astrês mulheres começava a se formar. Ambrósio é outro dos Padresda Igreja a discorrer sobre o tema. Ele tenta solucionar adiscordância entre os evangelhos, sugerindo que as “Madalenas”talvez possam ter sido duas.17

Gregório Magno, bispo de Roma do século VI, é quem reú-ne definitivamente Maria de Magdala, a pecadora anônima de Lc7 e a irmã de Lázaro em uma só personagem. Embora essa idéialhe fosse anterior, é ele quem a consolida para a posteridade. Emsua Homilia XXXIII ele diz que: “a mulher designada por Lucas apecadora, chamada Maria por João, é a mesma que Marcos afirmater sido libertada dos sete demônios.”18 Neste momento, o amorde Maria Madalena por Jesus torna-se um dos temas centrais davida dessa santa, sendo considerado maior ainda do que o de Pedro,idéia claramente influenciada pelos textos neotestamentáriosapócrifos, e os sete demônios que foram expulsos de seu corpo

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17VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

passam a ser identificados aos sete pecados capitais. Madalena,a grande pecadora, começa a ganhar vida.19

Pedro Crisólogo, arcebispo de Ravena, no início do séculoVIII, demostrou muito interesse por Madalena. Ele a via comosímbolo da Igreja, santa e pecadora, visão que será adotada poroutros autores medievais. Ele considerou significativo que MariaMadalena tenha recebido o mesmo nome que a mãe de Jesus.Entretanto, a identificou como uma nova Eva, que oscilou entreo pecado e a redenção.20

Segundo Iogna-Prat,21 é atribuído a Odon, abade de Clunyno início do século X, o primeiro sermão sobre Madalena, a serlido em 22 de julho, dia da celebração da santa. Trata-se de umcomentário do texto evangélico que pretende extrair uma liçãomoral. Ele vê Madalena como uma mulher, o que é indicado pelaconstante repetição no texto da palavra mulier, e, mais especifica-mente ainda, uma dama, que conseguiu se distanciar do mundanoe se dedicar ao divino. Nesse texto, a natureza feminina, atravésde Madalena, é definida pela fraqueza e pelo amor.22 Este autorretoma Agostinho ao sublinhar o papel de Maria Madalena naeconomia da salvação, afirmando:

Isto fez-se para que a mulher que trouxe a morte aomundo não permanecesse no opróbrio: pela mão damulher a morte, mas pela sua boca o anúncio da Res-surreição. Tal como Maria sempre virgem nos abre aporta do Paraíso, do qual nos excluiu a maldição deEva, também o sexo feminino se desembaraçou doseu opróbrio por Madalena.23

No século XI são produzidos mais dois relatos sobreMadalena: a Vida Apostólica e a Vida Eremítica.24 A Vida Apostóli-ca relata a viagem de Madalena e Maximino, um dos discípu-los de Cristo, até Marselha, onde ambos evangelizaram a re-gião de Aix.

Page 18: Vida de Santa Maria Madalena

18 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

A Vida Eremítica é inspirada em uma biografia de Santa MariaEgipcíaca, pecadora arrependida, que circulava pela Europa des-de, pelo menos, o século IX, e narra a retirada de Madalena para odeserto, após a morte de Cristo.25 Esta obra foi composta no sulda Península Itálica, por volta de 900, e se espalhou, a partir deentão, por toda a Europa ocidental. Foi na segunda metade doséculo XII que se fixou a tradição sobre o local em que Madalenaviveu como eremita. Teve início a circulação da legenda segundo aqual Madalena, após aportar na França proveniente da Palestinacom Lázaro, Marta e outros companheiros,26 teria se dedicado aoeremitismo nas grutas de um monte localizado em Sainte-Baume.

No início do século XII, Geoffroi, abade do mosteiro daTrindade de Vêndome, compôs um sermão dirigido aos mongessob o seu comando intitulado Em nome da bem aventurada MariaMadalena.27 Nele, Madalena é pintada com as cores do pecado, opecado da carne. Ela é uma meretrix. Baseando-se inteiramente noEvangelho segundo Lucas, o abade descreve a cena da refeição nacasa do fariseu, apresentando Madalena primeiramente como fa-mosa pecadora, e depois como gloriosa pregadora. Maria Madalena,segundo Geoffroi de Vêndome, só se redimiu por completo de-pois de ter se lançado inteiramente no caminho da conversão, queatingiu por meio da mais dura penitência. Reinterpretando a VidaEremítica, ele a situa, após a ascensão, em meio a penas ascéticasauto-infligidas.

É no século XIII, com o surgimento das grandes compila-ções hagiográficas, que é escrita uma das Vidas mais difundidas deMaria Madalena, a redigida por Tiago de Vorágine, futuro bispode Gênova, em sua Legenda Áurea. Na narrativa dedicada aMadalena reúne os vários elementos da tradição que circulavamaté então, como as tradições relativas aos padres do deserto, oscontatos com a lenda de Santa Maria Egipcíaca,28 a visão da ex-prostituta penitente etc.29 Nesta obra, Madalena segue Jesus como“procuradora”, isto é, encarregada de cuidar das questões materi-

Page 19: Vida de Santa Maria Madalena

19VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

ais, e não como discípula. Escrita inicialmente em latim, seu su-cesso foi tamanho que, já no século XIV, foram feitas traduçõespara diversas línguas vernáculas.

A Madalena que figura nos textos medievais é uma mulherrica, natural de Betânia, que dedicou parte de sua vida aos praze-res carnais. Após arrepender-se, seguiu a Jesus, financiando-o e,depois de sua morte e ressurreição, tornou-se uma grande orado-ra, convertendo muitos através de sua eloqüência. Para aper-feiçoar-se ainda mais no campo espiritual, terminou seus diascomo eremita.

Pela junção das personagens neotestamentárias (Maria deMagdala, Maria de Betânia e a pecadora da cidade), das tradiçõesapócrifas e da lenda de Maria Egipcíaca, no decorrer da IdadeMédia foi forjada uma Madalena que possuía diversas faces: peca-dora e arrependida; companheira amorosa de Cristo; mulher ricae generosa; pregadora e eremita.

4.4.4.4.4. O CULTO A MARIA MADALENA NA IDADEO CULTO A MARIA MADALENA NA IDADEO CULTO A MARIA MADALENA NA IDADEO CULTO A MARIA MADALENA NA IDADEO CULTO A MARIA MADALENA NA IDADE

MÉDIAMÉDIAMÉDIAMÉDIAMÉDIA

Como assinalamos no item anterior, da Antiguidade à IdadeMédia foram muitos os autores ocidentais que citaram MariaMadalena. No começo de forma indireta, pois ela ainda não eracultuada isoladamente, mas junto a outros santos que tambémestavam presentes na cena da ressurreição. Depois do século XII,ela ganha destaque e seu culto se desenvolve de forma excepcional.Assim, a partir da Baixa Idade Média, Madalena começará a ga-nhar mais popularidade. O crescimento da sua adoração, no en-tanto, não foi estimulado por grupos subalternos, mas principal-mente pela Igreja e pelos poderes seculares.

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As homilias, sermões, vidas, enfim, os escritos medievaissobre Maria Madalena deixam transparecer que o culto a essa san-ta estava imbuído de variadas funções, que receberam maior oumenor ênfase no decorrer do período, em função das diferentesdemandas sociais, religiosas e políticas.

No texto atribuído a Odon de Cluny, datado do século X,citado no item anterior, a figura dessa mulher é relacionada à Igre-ja e, particularmente, à comunidade monástica. Nesse período éenfatizado o gesto mais eloqüente da santa: o ato de se ajoelhardiante de Cristo. Essa postura de humilhação ocupava lugar cen-tral nos ritos de passagem que representavam a conversão, ou seja,o abandono de um determinado estado para a adoção completa deoutro. O rito de vassalagem, o casamento e o próprio ingresso nomundo monástico eram exemplos disso: durante o ritual de en-trada na vassalagem, o vassalo se ajoelhava diante do seu senhor;no casamento, a noiva ajoelhava-se diante de seu esposo; na pro-fissão monástica, os monges se ajoelhavam diante do Senhor, talcomo descrevem os costumes de Cluny. Esse gesto indicava aobediência. Com ele Madalena convidava os homens a servir aoSenhor, abandonando-se de forma magnífica, como ela própriahavia feito.

O primeiro centro de devoção a Madalena no Ocidente foi aabadia beneditina de Vézelay. Em 1037, um novo abade foi elei-to, Geoffroi. Seu objetivo era reformar o mosteiro e torná-lo prós-pero. Para tanto, foram “inventadas” e expostas relíquias deMadalena,30 e em 1050 este cenóbio foi colocado sob a proteçãoda santa. É nessa época que os monges da abadia começam a espa-lhar a notícia de que os restos de Madalena estavam em sua posse.Não tardou até que grupos de peregrinos se formassem para visi-tar o mosteiro. A peregrinação a Vézelay provocou em toda acristandade latina a explosão do culto à santa.

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21VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

Por que em Vézelay escolheu-se justamente MariaMadalena como patrona? Duby31 aventa dois motivos possí-veis: talvez porque a veneração a esta santa já houvesse come-çado a crescer no Ocidente; e principalmente porque ela setornara a padroeira da reforma dos costumes eclesiásticos na-quela região. Como é sabido, no século XI a reforma eclesiás-tica encontra-se em andamento, sob a direção do papado, eMadalena tornara-se um de seus emblemas. Os exemplos desubmissão, de serviço e de amor dados pela santa deveriamestender-se a toda a Igreja, seja nos braços regular ou secular.Se tal instituição estava maculada, culpável, deveria ajoelhar-se e converter-se, abandonado a vida antiga, como fizera asanta.

Durante o século XIII Maria Madalena se afirmava cadavez mais como pecadora e penitente. É nesse século que aadoração da santa atinge o auge. A pregação popular se am-plia e a figura de Maria Madalena ganha lugar de destaque napiedade das novas ordens religiosas mendicantes. Franciscanose Dominicanos tornam-se propagadores do culto e da ima-gem desta santa. Para alguns, ela continuava sendo a “beataamorosa”, mas o que domina a cena agora é o pecado da car-ne, expiado pela autodestruição física. Isso pode ser atesta-do, dentre outros fatores, pela mudança da leitura, ao longodo século XIII, a ser feita no dia 22 de julho. Da passagemsobre a manhã de Páscoa, descrita por João,32 passa-se para arefeição na casa do fariseu, narrada por Lucas,33 e acentua-seo abandono da Maria Madalena esvaída em pranto pela dorda perda de seu amado Senhor a favor da prostituta que cho-ra seus pecados.

Em fins daquele século, em 1279, o futuro rei CarlosII, de Nápoles, então conde da Provença e príncipe de Salerno,encontrou na basílica de Saint-Maximin um corpo que foi

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22 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

tido como de Madalena. Tal notícia obteve muita repercus-são no Ocidente, reanimando as peregrinações e a fundaçãode outros santuários madalenianos. Houve então um desa-cordo entre os monges das abadias de Vézelay e Saint-Maximin, cada grupo tentando provar a veracidade dos res-tos da santa que possuíam por meio de documentos forjados.Tal disputa não visava somente a devoção, mas em grandeparte o encorajamento das peregrinações e, consequentemente,das esmolas que as seguiam, visto que neste momento o cul-to a Madalena já havia se expandido. Além disso, a descober-ta provençal aliava a amada discípula de Jesus com a dinastiaangevina e sua ambição imperial. Com a “casual” descobertade Carlos de Salerno, Maria Madalena se transformou napatrona angevina e na protetora da Provença.34

Ao mesmo tempo em que, nos séculos finais da Idade

Média, o culto a Madalena se popularizava e crescia, sua ima-

gem como mulher rica, nobre e devotada a Cristo vai sendo

substituída pela imagem de uma criatura portadora do mal e

dilacerada pela mortificação. Estes dois dados devem ser com-

preendidos à luz do sucesso alcançado pela reforma eclesiásti-

ca patrocinada por Roma e pelas novas necessidades que

esta Igreja, agora juridicamente organizada e centralizada

sob a direção do papado, suscitavam.

No século XIII, a atenção da Igreja Romana esteve vol-

tada para o cuidado dos fiéis, sobretudo das mulheres. Com

a retomada de Aristóteles neste período, consolidou-se a idéia

de que as mulheres eram homens imperfeitos e que deveriam

ser constantemente tuteladas. Logo, fazia-se necessário apre-

sentar para as mulheres leigas modelos bíblicos de comporta-

mento e Maria Madalena foi a escolhida.

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23VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

Neste sentido, os sermões sobre Madalena influencia-ram de forma definitiva os hábitos religiosos femininos eenraizaram cada vez mais na cultura religiosa medieval a confissãoe a penitência como meios para o fiel encontrar a salvação;35

estimulavam a inserção mais ativa da mulher nos quadros ecle-siásticos; e, acima de tudo, o exemplo da santa constituiu umaimagem ideal feminina mais humana que a vigente até então,a da Virgem Maria.

Maria Madalena também representou um papel sim-bólico fundamental em todas as iniciativas de recuperaçãode mulheres “perdidas”. Durante todo o século XIII váriasorganizações e sociedades para prostitutas convertidas sur-giram tendo essa santa como padroeira e/ou em seu nome,como, por exemplo, a Ordem das Penitentes de Santa Ma-ria Madalena, fundada na Alemanha em 1225, ou ainda daOrdem de Madalena, surgida em Nápoles, em 1324.36 Essarecuperação de mulheres de “má vida” ocorria paralelamenteà organização espacial e social dessas mulheres nas cida-des.

Porém, Maria Madalena significou para Igreja não sócomo um modelo no qual as mulheres deveriam espelharsua conduta, mas ajudou também em outros propósitos.Como era considerada uma mulher de muitas posses, jus-tificava a riqueza eclesiástica. Se a santa criatura não tevepudor de seus bens, porque deveria a Igreja despojar-sedos seus? 37

No decorrer da Idade Média também foram atribuídos po-deres milagrosos à santa: ela devolvia a visão aos cegos, a fala aosmudos, o movimento aos paralíticos – milagres que o próprioCristo havia realizado. Assim, acreditava-se que nela o fiel pode-ria encontrar a cura, a libertação dos pecados, o amor divino, aslágrimas, a remissão.

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24 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

5.5.5.5.5. CARACTERÍSTICAS DACARACTERÍSTICAS DACARACTERÍSTICAS DACARACTERÍSTICAS DACARACTERÍSTICAS DA VIDAVIDAVIDAVIDAVIDA

CASTELHANA DE SANTA MARIA MADALENACASTELHANA DE SANTA MARIA MADALENACASTELHANA DE SANTA MARIA MADALENACASTELHANA DE SANTA MARIA MADALENACASTELHANA DE SANTA MARIA MADALENA

A Vida de Santa Maria Madalena aqui publicada foi extraídado manuscrito h-I-13, da Biblioteca do Mosteiro do Escorial. Elafoi transmitida de forma incompleta, já que faltam quatro fóliosdo manuscrito. Além desta, fazem parte do manuscrito outrasnove vidas, entre elas a de Santa Marta e a de Santa MariaEgipcíaca.38 Escrita por um autor anônimo do século XIV, trata-se de um texto em prosa, que combina narrativa e diálogos entreas personagens, e é dividido, na forma em que nos chegou, emcinco partes: Milagre que fez Santa Maria Madalena; Como amulher do cavaleiro se foi com ele; Como a senhora deu à luz;Como mamava a criança estando sua mãe morta, e Como o ro-meiro achou a criança trabalhando na beira do mar.

Esta obra é, provavelmente, parte de um Flos sanctorum –florilégio dos santos – ou seja, insere-se em um conjunto de nar-rativas simplificadas da vida e dos milagres de um determinadogrupo de “eleitos de Deus”.

Esta não foi a única versão da Vida de Maria Madalena acircular na Península Ibérica no século XIV. A título de exemplo,destacamos os textos que foram elaborados em catalão em fins doséculo XIII ou início do XIV: uma obra em versos, Cantinella deSancta Maria Magdalena, e uma tradução livre do texto deVorágine, De senta Maria Magdalena, uma das vidas presentes nacompilação Vides de sants rosselloneses.39 Também há notícias deum poema composto em castelhano, no século XIII, em cuadernavía, hoje perdido, na obra Vida de Sant Alifonsso por metros(273bcd):40

e el de la Magdalena ovo enante rimado,al tiempo que [de] Úbeda era beneficiado.Después quand éste fizo bivié en outro estado.

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25VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

A presença de tantas versões sobre a vida de Madalena

compostas em línguas romances na Península Ibérica é um in-

dício da popularidade alcançada por esta santa nesta região ao

final da Idade Média, sobretudo entre os leigos.

É bem provável que a Vida de Santa Maria Madalenaque apresentamos neste volume teve como sua fonte primor-

dial a Legenda Áurea, tendo em vista as semelhanças entre os

textos. Mas não se trata de uma tradução completa desta

obra, e sim de uma adaptação livre. Face ao relato da Legen-da Áurea, a Vida de Santa Maria Madalena é muito mais

breve. Direcionado a um público leigo, não letrado, objeti-

va, sobretudo, divulgar o culto de Madalena.

Uma das características mais latentes dessa vida anônima

é sua marcada oralidade: tem-se a impressão de que o autor

fala diretamente a seu público. A narrativa transcorre em um

tom inteiramente informal, que denuncia uma sociedade em

transição: de uma cultura amplamente fundada na transmissão

oral passa-se a uma mais literária, ou escrita. Escreve-se como

se fala. Daí o questionamento: essa vida teria como objetivo a

recitação ou a leitura solitária?

É provável que ambas as respostas sejam válidas. Foi re-

citada, levando em conta o espaço de difusão da hagiografia

em vernáculo: voltadas para uma audiência leiga, estas obras

eram, provavelmente, lidas nas praças, igrejas e mosteiros em

dias de festividades religiosas. Além disso, como o texto en-

contrava-se em castelhano e fixado por escrito, também estava

acessível para a leitura individual que começava a se impor

neste momento entre os leigos.41

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26 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

6.6.6.6.6. AAAAA VIDA CASTELHANA DE SANTA MARIAVIDA CASTELHANA DE SANTA MARIAVIDA CASTELHANA DE SANTA MARIAVIDA CASTELHANA DE SANTA MARIAVIDA CASTELHANA DE SANTA MARIA

MADALENAMADALENAMADALENAMADALENAMADALENA FACE ÀFACE ÀFACE ÀFACE ÀFACE À LEGENDA ÁUREALEGENDA ÁUREALEGENDA ÁUREALEGENDA ÁUREALEGENDA ÁUREA

Uma comparação entre a narrativa sobre Madalena escritapor Tiago de Vorágine e a que vai aqui publicada se justifica,sobretudo, pela semelhança entre as duas, inclusive com a presen-ça de frases similares,42 o que leva a supor que o autor anônimotenha se baseado naquela compilação hagiográfica para compor asua própria narrativa. Além disso, como já assinalamos, o relatopresente na Legenda Áurea foi um dos mais importantes produzi-dos no medievo sobre esta santa, já que foi o primeiro a reunir osprincipais elementos que cristalizaram a imagem de Madalenacomo pecadora arrependida, asceta e pregadora.

Os dois textos estão estruturados de forma diferente. NaLegenda os capítulos são subdivididos por números43 e na versãocastelhana estes se separam por títulos. Além disso, os capítulosnão coincidem nas duas versões.

À Maria Madalena é dedicado o capítulo 96 da obra de Tiagode Vorágine, uma das vidas mais longas da Legenda Áurea sobreuma mulher. Ele inicia seu relato com um estudo etimológicoacerca dos significados do nome de Maria Madalena, que nãoaparece na versão em castelhano. Essa pequena reflexão etimológicafeita pelo autor genovês é, por um lado, fruto do estilo pessoal doautor, mas também está em harmonia com a sua proposta deelaborar uma compilação voltada para um público letrado e, emsua maioria, clerical. Como o autor da Vida de Santa MariaMadalena em castelhano não possuía os mesmos objetivos e visa-va atingir um outro tipo de público, tal preâmbulo é omitido emsua obra.

A essa introdução segue-se a vida de Madalena baseada nosrelatos dos Evangelhos canônicos, ainda que de forma bastantelivre. A Vida castelhana, no entanto, não considera esse conteú-

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27VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

do, tratando diretamente da parte lendária da vida da santa, apartir de sua viagem a Marselha. Seu primeiro parágrafo já evi-dencia uma diferença marcante em relação à Legenda Áurea. En-quanto esta última afirma que a viagem a Marselha foi um mila-gre de Deus, pois Madalena e seus companheiros haviam sidolançados ao mar numa embarcação sem remos por pagãos quequeriam matá-los, aquela indica que a viagem fora planejadapor Madalena.

Porém, apesar da diferença anteriormente realçada, as seme-lhanças se mostram importantes. Entre outras, podemos destacaro fato de que as personagens da “aventura” são as mesmas – Lázaro,Marta, Maximino e o cego, que na Legenda Áurea é nomeadoCedônio – ainda que Martila, a serva de Marta, não esteja presen-te na versão castelhana que possuímos.

Lá chegando, segundo Tiago de Vorágine, a comitiva deMadalena refugiou-se debaixo do telhado de um templo pagão,onde ela começou a pregar aos que ali viviam. Este episódio estáausente na versão em castelhano. Aqui eles dormem na praia ondeaportaram e é nela que os pagãos vão sacrificar aos deuses.

Em ambos os relatos segue-se então a descrição de Madalenacomo grande oradora, elemento que, como vimos, desenvolveu-se a partir, sobretudo, dos evangelhos apócrifos.

Depois do primeiro encontro com o governador da provín-cia e sua esposa, segundo a Legenda Áurea, Madalena consegueconvencê-los a não mais adorar aos deuses. Na vida em castelhanoesse convencimento só se dá após um sonho e adiciona um novodado: a esposa do governador manda alimentar a comitiva deMadalena depois do primeiro encontro.

É interessante sublinhar que o redator castelhano identifi-ca o cargo de governador provincial, tal como figura na LegendaÁurea, com títulos como “señor da provincia” e “cauallero”,

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28 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

adaptando o vocabulário latino aos termos correntes no cotidi-ano ibérico.

Segue-se então nas duas versões a descrição – extremamentesemelhante – das aparições noturnas de Madalena àquele casal abas-tado que não podia ter filhos. Repetem-se a narrativa da ira deMadalena, de todos os seus argumentos, de sua ameaça e, por fim,da aceitação do casal em ajudá-la e a seus companheiros. Contu-do, na versão castelhana, logo depois deste fato, Madalena opera omilagre de conceder-lhes um filho, enquanto que na Legenda Áu-rea o governador diz que só aceitará Cristo se lhe fosse dada agraça de ter uma criança. Outra diferença entre as duas versões notocante a este milagre é que, na versão original, não há menção àrelação sexual mantida pelo casal que resultou na gravidez da mu-lher. Segundo a Legenda Áurea, a mulher do governador ficougrávida após fervorosas preces de Madalena. Na vida castelhana lê-se: “ E pouco depois disso, tendo o senhor dormido com suamulher, ela concebeu.”

Posteriormente à realização deste milagre, o governador de-cide viajar para encontrar-se com Pedro e confirmar sua fé emCristo. Sua esposa insiste em unir-se a ele nesta viagem e paraconvencê-lo, segundo a Legenda, “apelou para os recursos que asmulheres usam em semelhantes casos: a obstinação e as lágrimas(...) e não cessou em seu pranto nem se levantou do solo até queconseguiu o que pretendia.”44 Tiago de Vorágine seguiu, nesteaspecto, o pensamento corrente no medievo que associava o choro àmulher, seja como sinal de fraqueza ou como uma artimanha paraobter favores. Essa passagem também está presente na Vida castelhanada santa, contudo sem incluir um juízo sobre o pranto da mulher.

O embarque e a turbulenta viagem são relatados da mesmaforma em ambas as vidas. Nas duas está presente o desespero dopai e a insistência dos tripulantes em jogar o corpo da mãe aomar, para que a tempestade chegasse ao fim. Repetem-se também

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29VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

as súplicas do governador aos marinheiros para que não se livras-sem de sua esposa; a repentina aparição, ao longe, de uma peque-na porção de terra, onde seria enterrada a mãe e a criança posta àmorte; a impossibilidade de enterrar a mulher; as palavras amar-gas que o governador dirige a Madalena.

É neste ponto que as duas narrativas se distanciam um pou-co. Na Legenda Áurea o homem volta ao barco e navega até Romapara encontrar Pedro.45 No relato em castelhano o autor narra omilagre carregado de emoção, dizendo que mesmo com a mãemorta a criança ainda mamava em seus seios, mantendo-se, por-tanto, viva. Ainda sublinha que embora seu corpo não mais vives-se, a alma da mulher acompanhava seu marido na peregrinação.Segue-se, então, o início da narrativa sobre a chegada do governa-dor e sua conversa com Pedro, mas ela é interrompida, porque aobra não foi transmitida completa.

Na Legenda Áurea, no entanto, o relato continua. A mãe dacriança ressuscita e conta ao esposo que peregrinou com ele emespírito. O casal retorna a Marselha, agradece imensamente aMadalena, e manda destruir todos os templos pagãos da região,erguendo igrejas em seu lugar. Lázaro é eleito bispo desta cidade eos outros dirigem-se a Aix, onde Maximino recebeu a ordenaçãoepiscopal. Com o estabelecimento da fé cristã nesta região,Madalena considera sua missão cumprida e se retira para o deser-to. Durante trinta anos, sete vezes por dia, os anjos a levavam aocéu para assistir aos ofícios celestiais. Finalizando o relato, MariaMadalena, sentindo que a morte se aproximava, vai até uma Igrejapara comungar antes de ir se reencontrar com o Senhor.

Além de mais sintético, o relato da Vida castelhana não apre-senta discussões ou referências eruditas. Mais pragmático, centradonas angústias humanas e emotivo, não incorpora críticas ao com-portamento feminino. Dá realce ao fantástico, provavelmente paraseduzir seus ouvintes, sobretudo leigos.

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30 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

1 Maria Madalena figura em diversos textos apócrifos do Novo Testamen-to. Ressaltamos somente os apócrifos gnósticos já que, dentro desta dou-trina, ela ocupa um lugar de destaque.2 Gnose é um termo grego que significa conhecimento superior das coisasdivinas.3 SANTOS OTERO, A. (Org.). Los Evangelios Apócrifos. Edicción crítica ybilingüe. Madri: BAC, 1987. p. 724.4 Idem.

Em um momento em que o arrependimento e a confissãoainda estão sendo estimulados pela Igreja e que se faz mister com-bater as heresias através da pregação, sobretudo dos mendicantes,a vida desta santa arrependida em castelhano tornou-se um relatomodelar que alcançou, por sua brevidade e simplicidade, os fiéisnão letrados.

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31VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

5 Certos grupos gnósticos baseavam suas crenças no cristianismo. Algunspromoviam sua helenização, unindo-o a cultos orientais. Sua ética variavabastante, tendo certos grupos defendido uma postura puritana, e outros,orgiástica. Cf., entre outros, SIMON, M. et BENOIT, A. Judaísmo e Cristia-nismo Antigo – de Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira/USP, 1987. p 275-87 e KUNTZMANN, R., DUBOIS, D. Nag Hammadi. O Evan-gelho de Tomé. Textos gnósticos das origens do cristianismo. São Paulo:Paulinas, 1990.6 SANTOS OTERO, A. Op. cit. p. 693.7 SCHMIDT, C. et MACDERMOTT, V. (Trad.) Pistis Sophia. Book 1, cap. 17.In: www.pseudepigrapha.com/PistisSophia/pistisSophia_Book1.htm8 Idem.9 The Gospel According to Mary. Gnostic Scriptures and Fragments. TheGnostic Society Library. In: www.gnosis.org/library/marygosp.htm10 Embora não se possa ainda falar de ortodoxia nesse momento, por con-ta da falta de sistematização da doutrina naqueles primeiros séculos daIgreja, utilizamo-nos de tal termo em oposição às seitas heréticas.11 Ver item 1.12 O relato não faz nenhuma menção ao pecado específico dessa mulher.Contudo, a expressão “pecadora na cidade” equivale à de pecadora públi-ca e permite supor que ela era uma prostituta.13 Logo após a narrativa da pecadora na casa de Simão, Lucas nomeiaMaria Madalena pela primeira vez e informa que dela haviam saído setedemônios. No cristianismo primitivo os demônios estavam relacionadoscom o pecado, e como esse relato se segue ao da “pecadora da cidade”,pouco a pouco as duas personagens foram sendo confundidas e sobrepos-tas.14 Maria de Betânia é lembrada uma vez no Evangelho segundo Lucas (Lc.10,38-42) e duas vezes no Evangelho segundo João (no capítulo 11 e nojá citado Jo. 12,1-8).15 SEBASTIANI, L. Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito depecadora redimida. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 71.16 ORÍGENES. Contra Celsum Libri VIII. In: Patrologia Grega, v. XI, col. 65-1632.17 AMBRÓSIO. Expositio Evagelii secundum Lucam. In: Patrologia Latina, v.XV, col. 1527-852.18 GREGÓRIO MAGNO XL Homiliarum in Evangelia libri II: -Homilia XXXIII.In: Patrologia Latina, v. LXXVI, 1238-1246.19 A figura de Maria Madalena está estreitamente ligada à idéia do “perfemina mors, per femina vita”. Já Agostinho, inspirado em Paulo, dizia:“pelo fato de o ser humano ter caído por meio do sexo feminino, por meiodo sexo feminino foi curado de novo, a partir do momento em que umaVirgem havia gerado o Cristo e uma mulher anunciava que ele havia res-suscitado. Pela mulher a morte, pela mulher a vida.” AGOSTINHO. Sermão

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32 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

CCXXXII (In diebus paschalibus III: De resurrectione Christi secundumLucam). In: Patrologia Latina, v. XXXVIII, col. 1108.20 PEDRO CRISÓLOGO. Sermo XCII (De conversione Magdalenae). In:Patrologia Latina, v. LII, col. 460-4.21 IOGNA-PRAT, D. Marie Madeleine, (sainte). In: VAUCHEZ, A. (Dir.)Dictionnaire encyclopédique du Moyen Âge. Paris: Cerf, 1997. V. 2, p. 963-4, p. 963.22 O “ardor fervorosíssimo do amor” é mostrado, neste sermão, como umavirtude maior. Idem, p. 37.23 Odon de Cluny apud DALARUN, J. Olhares de Clérigos. In: DUBY, G. &PERROT, M. (Dir.), KAPLISCH-ZUBER, C. (Org.) História das Mulheres. AIdade Média. Porto-São Paulo: Afrontamento-EBRADIL, 1990. p. 50.24 DUBY, G. DUBY, G. Maria Madalena. In: ___. Heloísa, Isolda e outras damasdo século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. P. 31-54, p. 43.25 A Vida de Santa Maria Egipcíaca, na qual esse relato se baseia, foitraduzida do grego no séc IX por Paulo Diácono e por Anastácio, o Bibli-otecário, passando a ser conhecida no Ocidente. Cf. SAXER, V. MariaMadalena, santa. In: BIBLIOTHECA SANCTORUM. Roma: [s/ed.], 1967. V. 8,col. 1089.; DUBY, G. Idem. e DALARUN, J. Op. cit. p. 49.26 O topos da viagem além-mar do Oriente ao Ocidente é significativo notempos das Cruzadas, e revestido de valores morais e religiosos, já queunia em si elementos da peregrinação e do martírio.27 DALARUN, J. Op. cit. p. 48.28 Ruiz Dominguez, no entanto, acredita que a Vida de Santa Maria Egipcíacafoi, na verdade, inspirada na de Madalena, e não ao contrário. RUIZDOMINGUEZ, J. A. El Mundo Espiritual de Gonzalo de Berceo. Logroño:Instituto de Estudios Riojanos, 1999. p. 81-2.29 Tiago de Vorágine resolveu o problema da identificação de MariaMadalena com Maria de Betânia, irmã de Lázaro, fazendo as denomina-ções derivarem das propriedades que herdou. Assim, Maria de Magadala,ou Maria Madalena, tinha esse nome porque era proprietária do castelo deMagdala, situado em Betânia, sendo também conhecida, conforme assina-lam os Evangelhos, como Maria de Betânia. SANTIAGO DE VORÁGINE. LaLeyenda Dorada. Madri: Alianza, 1994. 2 v. V. 1, p. 383.30 A Europa carecia de relíquias dos apóstolos, penúria grave numa épocaem que o corpo de um santo era visto como elemento de ligação entre océu e a terra, e em que era premente vincular-se aos tempos apostólicosatravés daqueles que haviam convivido com Jesus. Era essa presença quefazia o sucesso das peregrinações a Roma, onde jazia Pedro, e a Compostela,onde jazia Tiago, únicos apóstolos sepultados na Europa Ocidental.31 DUBY, G. Op. cit. p. 4232 Jo. 13,18.33 Lc. 7,36-50.

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33VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

34 JANSEN, K. The Making of the Magdalen: preaching and popular devotionin the later Middle Ages. New Jersey: Princeton University Press, 2000.p.1935 O IV Concílio de Latrão torna a confissão anual obrigatória. Cf. FOREVILLE,R. (Ed.). Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973.36 PILOSU, M. A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Es-tampa, 1995. p. 76.37 DUBY, G. Op. cit. p. 45.38 BAÑOS VALLEJO, F. La hagiografía como género literario en la Edad Me-dia. Tipología de doce vidas individuales castellanas. Oviedo: Departa-mento de Filología Española, 1989. p. 240-8.39 CANTAVELLA, R. Medieval Catalan Mary Magdalen Narratives. In: CONOLLY,J.; DEYERMOND, A. et DUTTON, B. (Ed.) Saints and their authors: Studiesin Medieval Spanic Hagiography. In Honor of John K.Walsh. Madison, 1990.p. 27-36.40 DEYERMOND, A. Lost hagiography: A Tentative Catalogue. In: CONOLLY,J.; DEYERMOND, A. et DUTTON, B. (Ed.). Op. cit. p. 139-48.41 Sobre a leitura entre os séculos XII ao XV no Ocidente ver SAENGER, P. Aleitura nos séculos finais da Idade Média. In: CAVALLO, G. et CHARTIER, R.(Org.). História da Leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. p.147-84.42 Por exemplo, na Legenda Áurea encontramos uma frase que aparece deforma quase idêntica no relato castelhano, porém, em uma parte um pou-co posterior, depois da santa ter encontrado o prefeito e sua esposa. Notexto de Vorágine lemos: “Não deveis estranhar que de uns lábios que tãodelicada e piedosamente haviam coberto de beijos os pés de Cristo, bro-tasse a palavra de Deus com especialíssima unção”; na versão castelhanaanônima, “E não deveis maravilhar-vos que a boca de Madalena bem eprudentemente falasse, pois ela havia beijado os pés de Jesus Cristo”.43 A divisão dos textos em números é uma característica das compilaçõeselaboradas no fim da Idade Média. Sobre a questão, ver a obra já citadaCAVALLO, G., CHARTIER, R. (Org). Op. cit.44 SANTIAGO DE VORÁGINE. Op. cit., p. 386.45 Há que ressaltar que na Vida castelhana não é mencionado o lugar paraonde os peregrinos se dirigiam.

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34 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

BIBLIOGRAFIA

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36 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

O texto da Vida de Santa Maria Madalena (SMM) que pu-blicamos nesta edição é a transcrição do manuscrito h-I-13 daBiblioteca do Escorial (Espanha) elaborada por Thomas D.Spaccarelli, sob a direção de John O´Neill, e editada por TheHispanic Seminary of Medieval Studies de Nova York. Mantivemosrigorosamente a ortografia do texto,1 realçando as lacunas no do-cumento através do uso do sinal “ ? “. As glosas e os títulos pre-sentes no manuscrito foram preservados, bem como as indicaçõesdos fólios.

Tendo em vista que esta tradução é resultado do trabalho deuma equipe de historiadores, e não de lingüistas ou filólogos,optou-se por realizar uma versão interpretativa do documento enão sua tradução literal. Neste sentido, consideramos que o textoque apresentamos em português é uma leitura possível, mas não aúnica, da SMM.

Como um de nossos objetivos é divulgar os textos medie-vais entre estudantes e interessados em geral, optamos por incluirnotas explicativas que auxiliem a apreensão desta obra por partedo público não familiarizado com a História da Idade Média.

NNNNNOTASOTASOTASOTASOTAS SOBRESOBRESOBRESOBRESOBRE AAAAA EDIÇÃOEDIÇÃOEDIÇÃOEDIÇÃOEDIÇÃO EEEEE AAAAA TRADUÇÃOTRADUÇÃOTRADUÇÃOTRADUÇÃOTRADUÇÃO

1 As variações nas grafias das palavras, a ausência de pontuação e pará-grafos, a falta de rigor no uso de maiúsculas e minúsculas eram comunsnos manuscritos medievais, já que tais regras estavam ainda em formaçãoe longe de serem universalmente aceitas e fixadas. Elas foram, contudo,inseridas em nossa tradução como parte integrante de nossa interpreta-ção sobre o texto. Sobre a questão ver PARKES, M. Ler, escrever, interpre-tar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In: CAVALLO, G.,CHARTIER, R. (Org.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo:Ática, 1998. p. 103–122.

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37VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

V ida d e San t aV i d a d e San t aV i d a d e San t aV i d a d e San t aV i d a d e San t aMar i a Mad a l e n aMar i a Mad a l e n aMar i a Mad a l e n aMar i a Mad a l e n aMar i a Mad a l e n a

TTTTT E X T OE X T OE X T OE X T OE X T O BBBBB I L Í N G Ü EI L Í N G Ü EI L Í N G Ü EI L Í N G Ü EI L Í N G Ü E

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38 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

[fol. 1r]Despues que nuestro señor Jesu xpisto que fue medianero entredios & los omes por su pasion & por su Resurecion ouo vencidala muerte & fue glorificado & sobido a los cielos ala bendita santamaria magdalena & ?? s?? ??miano a que sant pedro la encomendocon su hermana santa marta & con su hermano sant lazaro & ??aquel ciego que nuestro señor ihesu xpisto guarecio por sumisericordia & con aquella palabra que dixo a ihesu xpisto enlapedricacion Beatus uenter qui te portauit & ubera quae ssusiste quequier dezir bendito fue el vientre que te traxo & las tetas quemamaste & muchos otros dicipulos venieron com ella ala mar &entraron en vna naue & ouieron buen viento & aportaron enmarssella & descendieron de la naue & entraron enla villa & nonfallaron quien los albergase & tornaronse ala Ribera & ouieron deyazer enlas piedras & alla yoguyeron toda la noche en pregarias &en oraciones & enla mañana llego la mala gente dela villa por fazersacrificio a los ydolos & quando ellos llegaron leuantarase ya lamagdalena

AD. Flos sanctorum vidas de algunos santos & otras historias&lla era muy fermosa & de buen donaire & muy sesuda & demuy buena palabra & muy arreziada & comenco de pedricar laspalabras dela vida & dela salut asy que todos se marauillaron delasu beldat & delas sus sesudas palabras de como las mostrauasesudamente

mjraglo que fizo santa maria madalenaOtro dia despues veno a aquel logar vn ome de grant guysa comsu mugier por sacrificar a los ydolos & el era señor de toda aquellaprouincia & auia muy grant pesar por que non podia auer fijo ninfija que deseaua mucho.

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39VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

Depois que nosso senhor Jesus Cristo, que foi mediadorentre Deus e os homens por sua paixão e por sua ressurreição,venceu a morte, foi glorificado e subiu aos céus, a bendita SantaMaria Madalena - encomendada a São Maximiniano por São Pedro-1 juntamente com sua irmã Santa Marta, com seu irmão SãoLázaro & ?? aquele cego,2 que nosso senhor Jesus Cristo protegeupor sua misericórdia - com aquela palavra que disse sobre JesusCristo na pregação, Beatus uenter qui te portauit & ubera quaessusiste,3 que quer dizer “bendito foi o ventre que te carregou e astetas em que mamaste”, muitos outros discípulos vieram com elaaté o mar e entraram em um navio.

Houve bom vento. Aportando em Marselha, desceram donavio e entraram na cidade. Não encontrando quem os hospedas-se, voltaram à praia e tiveram que deitar nas pedras. Ali alegra-ram-se4 toda a noite, com pregações e orações. Pela manhã, a mágente da cidade chegou para fazer sacrifícios aos ídolos. Quandoeles se aproximaram, Madalena já havia se levantado.

AD. Flos sanctorum: vidas de alguns santos e outras históriasEla era muito formosa, gentil, muito prudente, de muito

boa palavra e muito corajosa. Começou a pregar as palavras daVida e da Salvação, de tal forma que todos se maravilharam comsua beleza e com suas sábias palavras e de como as explanava pru-dentemente.

MILAGRE QUE FEZ SANTA MARIA MADALENADepois, em outro dia, veio àquele lugar um homem de grande

condição com sua mulher para sacrificar aos ídolos. Ele era senhorde toda aquela província e tinha uma dor muito grande porquenão podia ter filho nem filha, o que desejava muito.

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40 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

& la bendita magdalena pedricaua alli de ihesu xpisto como nascieradela virgen & como los judios lo crucificaron & como fuera muerto& ssoterrado & como Rescucitara al tercer dia & por esto lesmandaua que non feziesen sacrificio a los ydolos. & que aquelcreyesen & adorasen que todo el mundo feziera & formara aquellostodos que oyan la su palabra yuan despues a ella mas de grado &mas de buen corascon la ascuchauan & bien tanto por su beldatcomo por sabor de oyr su palabra & non uos deuedes marauillarsyla boca dela magdalena bien fablaua & sesuda mente Ca ella auiabesado los pies de ihesu xristo &ntonce la mugier de aquel Ricoome enbio dar de comer a aquellos omes por sus sieruos queentendio quel eran leales Ca sse temja mucho dela crueza de sumarido & dela deslealtad de dos que biuian conel & despuesdestoAquella dueña dormia vna noche con su marido & la ssantamagdalena le aparescio [fol. 1v]en ssueños & dixole que pues ella era tan Rica que por que dexauamorir de fanbre & de sed alos santos omes & amenazola synon lodixiese cedo a su marido que les feziese alguna cosa & la dueñadesperto mas non oso dezir a su marido su vision & a otra nochedespues vino a ella como de ante mas la dueña nonlo oso dezir.Otrossy la tercera noche la bendita magdalena. aparecio muy Sañudaa anbos & muy temerosa & semejaua su Rostro como si fuesefuego o asi como sy la casa ardiese. & dixoles ome de grant cruezatu & tu mugier que estouo tanto que te non dixo lo que le mandeTu fuelgas que eres enemigo dela cruz de ihesu xpisto & crias tucuerpo con muchas maneras de comeres & de beueres & dexasmorir los sieruos de dios de fanbre & de sed & de otras coitas &yazes tu en tu palacio enbuelto en paños de seda & ellos yazen enmesquindat & en lazeria. Tu ves que ellos son desconfortados &non los confortas Tu ves que non an posada & non gela das tupasas por ellos & non los catas Ay desleal tu non escaparas asy anteconpraras lo que tanto tardaste en fazer les bien. despues que estodixo la bendita magdalena fuese

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41VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

A bendita Madalena pregava ali sobre Jesus Cristo, comonascera da Virgem, como os judeus o sacrificaram, como foramorto e sepultado, e como ressuscitara ao terceiro dia. Por isto,ela os exortava que não fizessem sacrifício aos ídolos, que cresseme adorassem aquele que fizera e formara todo o mundo. Todosaqueles que ouviam a sua palavra seguiam-na de bom grado, e debom coração a escutavam, tanto por sua beleza quanto pelo saborde ouvir sua palavra. E não deveis maravilhar-vos que a boca deMadalena bem e prudentemente falasse, pois ela havia beijado ospés de Jesus Cristo.

Então a mulher daquele homem rico mandou alguns de seusservidores, aqueles que lhe eram leais, dar comida àqueles ho-mens, pois temia muito a crueldade de seu marido e a deslealdadedos que viviam com ele. Certa noite, quando a mulher dormiacom seu marido, Santa Madalena lhe apareceu em sonhos e per-guntou-lhe que já que ela era tão rica, porque deixava morrer defome e sede os santos homens. Ameaçou-a, caso não contasse issologo a seu marido, de fazer-lhes algo. A mulher acordou mas nãoousou contar a seu marido sua visão. Na noite seguinte, Madalenaveio a ela como antes, mas a mulher não ousou contar o ocorrido.Do mesmo modo, na terceira noite, a bendita Madalena apareceumuito furiosa e muito temível a ambos. Seu rosto assemelhava-seao fogo, e era como se a casa ardesse. Ela lhes disse: “Homem degrande crueldade! Tu e tua mulher, com quem estive tanto, mas quenão te contou o que eu mandei. Tu te gabas que és inimigo da cruzde Jesus Cristo. Tu cuidas de teu corpo com muitos tipos de comi-das e bebidas diversas e deixas morrer, de fome, sede e de outrascoisas, os servos de Deus. Tu deitas em teu palácio, envolto emtecidos de seda, enquanto eles jazem na pobreza e na miséria. Tuvês que eles não têm conforto, e tu não os conforta. Tu vês que elesnão têm abrigo e tu não lhos dá. Tu passas por eles e tu não os vê.Ai, desleal, tu não escaparás assim! Antes cumprirás o que tantotardaste em fazer, fazer-lhes o bem.” Depois que a bendita Madalenadisse isso, ela se foi.

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42 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

& la buena dueña desperto & comenco luego a ssospirar & ssumarido le pregunto por que ssospiraua & ella dixo Señor vistes loque yo vy ssy dixo el vi lo & marauillo me muchomas que fa?? de & ella dixo yo lo querria & ternja por mejor defazer lo quela bendita magdalena nos pedrica & dize Ca aueremosla ssaña de dios ca ssin Razon non nos dixiera aquella & fagamosles bien & digamos ala magdalena que Ruegue al su dios que yopueda concebir & el señor sse otorgo en consejo de su mugier &mando que diesen a la santa conpaña posada & lo que les fuesemenester & asy fue fecho despues desto acabo de poco Auenoquel señor yogo con su mugier & ella concebio & muchos ouieronende grant plazer

Como se fue la mugier del cauallero con elLuego que esto aueno guisose el señor de yr a saber si era Verdatdelo que la magdalena pedricaua de ihesu xpisto Quando lo sumugier sopo dixole sseñor que es esto cuydades uos yr alla ssin mjssy a dios plaze esto non auerna ssy uos fuerdes yre yo ssy vosvenierdes verne yo ssy uos folgardes. folgare yo non sera assi dixoel señor Mas uos fincaredes en casa & enderecaredes vuestras cosasque si me yo fuere non finquen mal enderecadas demas las carrerassson luengas & malas de andar & la mar es de grant peligro & vosssodes flaca & preñada & podriades muy ayna caer en grant peligro& la dueña contra aquello non dixo cosa pero non mudo lo queen el corascon tenja Antes sse dexo caer a pies de ssu marido;& lloro tanto fasta que su señor le otorgo su yda desi fueronseala

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43VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

A boa mulher despertou e começou logo a suspirar. Seumarido lhe perguntou porque ela suspirava e ela respondeu: “Se-nhor, viste o que eu vi?”; “Sim, disse ele, vi e me maravilhei,muito mais que ?????” E ela disse: “Eu queria, e acharia melhorfazer o que a bendita Madalena nos exorta e diz para não atrair-mos a ira de Deus, porque, sem razão, ela não nos diria aquilo.Façamo-lhes o bem e digamos a Madalena que rogue ao seu deuspara que eu possa conceber.”

O senhor acatou o conselho de sua mulher e mandou quedessem pousada e o que fosse necessário à santa comitiva. E assimfoi feito. E pouco depois disso, tendo o senhor dormido5 com suamulher, ela concebeu. E muitos tiveram nisso grande prazer.

COMO A MULHER DO CAVALEIRO SE FOICOM ELE

Logo que isto se deu, o senhor foi saber se era verdade aqui-lo que Madalena pregava sobre Jesus Cristo. Quando sua mulhersoube, disse-lhe: “Senhor, que é isto de cuidar-vos de ir sem mim,se a Deus isto não agrada? Se vós fordes, irei eu. Se vós virdes,virei eu. Se vos alegrardes, alegrar-me-ei.”6 “Não será assim”, dis-se o senhor, “mas vós ficareis em casa e governareis vossas coisas,porque se eu for elas não poderão ficar mal dirigidas. Além disso,os caminhos são longos e difíceis de andar, o mar é de grandeperigo, vós sois fraca e estais grávida e podereis, muito facilmen-te, cair em grande perigo.”

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44 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

magdalena & metieron en su guarda sus tierras & sus heredades& ella les puso la Señal dela cruz enlas ssus[fol. 2r]espaldas que el diablo non los pudiese estoruar de ssuproponimiento & enseñoles que por sant pedro principe de losapostolos podrian saber de ihesu xristo lo que les ella ante dixiera

Como pario la dueñaDespues que ellos fueron cruzados & aprendieron que de santpedro podrian saber aquello tomaron mucho oro & mucha plata& muy Ricos paños de muchas guisas & entraron en vna naue &andaron vn dia & vna noche por la mar a buen belar & el bientocomenco a crescer & la mar a engrosar & a poca de ora fue latenpestad muy grande & todos aquellos que enla naue andauanouieron grant pauor. quando vieron las ondas quebrar & ouieronmuy grant cuyta & la dueña que era preñada & muy cansada &que comenco que queria auer ssu fijo fue en muy grande coyta &el parto fue tan fuerte que morio ende. & el njño que nascierabuscaua la teta & en baladrando & en llorando en grant dolor fueel njño nado & la madre muerta. oujera el njño de morir por quenon auia quien lo criar Ay dios que fara nuestro Romero que yasu mugier es muerta & el njñodemandar teta en llorando & la tenpestad era tan mãe grande &los marjneros dar bozes & dezir echat fuera dela nao este uerpo cademjentre y andar non quedara la tenpestad & sabed que esto esverdat & cosa bien prouada que la mar non quier ensy cosa muerta& quando los seruientes dela nao quesieron tomar el cuerpo porlo echar enla mar el rromero les dixo amigos por dios sofrid uosvn poco. & sy uos non queredes sofrir por mj njn por la dueñaque avn esta caliente sofrid uos por el njño que demanda la teta &esto non es synon de crueza lancar enla mar vn cuerpo mediomuerto & nunca fue ome que tan pequeño cuerpo quesiese matarsofrid uos vn poco & veremos si la dueña acordara del trabajo queouo enel parto

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45VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

A senhora não disse nada contra aquilo, mas não mudou oque levava no coração. Antes deixou-se cair aos pés de seu marido,e chorou tanto até que seu senhor autorizou a sua ida. Assim,foram até Madalena e colocaram sob sua guarda suas terras e pro-priedades. Ela lhes colocou o sinal da cruz nas costas para que odiabo não os desviasse do seu propósito, instruindo-lhes que porSão Pedro, príncipe dos apóstolos,7 poderiam saber sobre JesusCristo o que ela antes lhes dissera.

COMO A SENHORA DEU À LUZDepois que eles tomaram a cruz e entenderam que de São

Pedro poderiam saber aquilo que desejavam, pegaram muito ouro,muita prata, ricas roupas de variados tipos e entraram em umnavio. Viajaram um dia e uma noite pelo mar em boas condiçõesaté que o vento começou a soprar mais forte e o mar a se agitar.Em pouco tempo formou-se uma grande tempestade e todos aque-les que estavam no navio tiveram grande pavor ao ver quebrar asondas, ficando muito aflitos.

A senhora, que estava grávida e muito cansada, entrou emtrabalho de parto em meio a muitas dores. O parto foi tão difícilque, por fim, ela morreu. A criança recém-nascida procurava oseio. Gritando e chorando em grande dor, foi a criança nascidae a mãe morta. A criança deveria ter morrido, pois não haviaquem a criasse. Ai, Deus! Que fará nosso romeiro, agora que suamulher está morta e a criança chora pelo seio? A tempestade eratão grande que os marinheiros davam vozes para dizer: “Jogai forado navio esse corpo, pois desta forma não cessará a tempestade.Sabei que isto é verdade e coisa bem provada: que o mar não querem si coisa morta”. Quando os tripulantes quiseram tomar o cor-po para jogá-lo ao mar, o romeiro lhes disse: “Amigos, por Deus,esperai um pouco. E se vós não tendes compaixão por mim nempela senhora que ainda está quente, sofrei pela criança que busca oseio. Isto não é outra coisa senão crueldade, lançar ao mar umcorpo meio morto. Nunca houve homem que quisesse matar cor-po tão pequeno. Esperai um pouco e veremos se a senhora acor-dará do trabalho que teve no parto.”

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46 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

como mamaua el njño seyendo su madre muertaDespues que el esto ouo dicho cato & ujo la naue yr por cerca devna montaña & penso que dexase alli ala madre & al njño antesque los comiesen peces & dixo a los marjneros tomad de mj auerquanto uos quesierdes. poned me la dueña & el njño en aquellamontaña por quelos pueda soterrar. Quando los marjneros oyeronla promesa del auer que deseauan asy como el pece desea la yscaotorgarongelo & fizieron su voluntad & el quiso soterrar la dueña&fallo el suelo tan duro & tan pedregoso quela non pudo soterrar &fuela poner en vn logar apartado dela sierra & puso alli el njño alastetas Ay santa maria madalena dixo el, & por que veniste tu nuncaal puerto de marsella. por mi destroimiento[fol. 2v]& por mi desterramiento veniste tu y & yo catiuo por que te creyde comencar esto. Rogaste tu por esto tu dios que my mugierconcebiese por se perder lo que traxiese ora son perdidos anbos. elconcebido & la que concebio. ca la madre es muerta con las coytas& con los dolores que sufrio & el niño nascio por morir que nonha quien lo crie & esto es lo que yo gane por tu Ruego a queencomende todas mjs cosas. Yo te demando & rruego que Rueguesa tu dios que sy el es tan poderoso como tu pedricas que ayamercet dela alma desta dueña & que por tu Ruego aya piadat deaqueste njño que se non pierda despues que esto dixo cobrio ladueña & el njño de su manto & tornose a la naue enel batel.despues que entro enla naue los marineros tornaron a guyar sunaue

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47VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

COMO MAMAVA A CRIANÇA ESTANDO SUA MÃEMORTA

Depois que ele disse isso, olhou e viu o navio se aproximarde uma montanha e pensou em deixar ali a mãe e a criança antesque os peixes os comessem. Disse aos marinheiros: “Tomai deminhas posses quanto vós quiserdes. Colocai a senhora e a criançanaquela montanha para que eu os possa enterrar.” Quando osmarinheiros ouviram a promessa dos bens que desejavam tantocomo o peixe deseja a isca, concordaram com ele e fizeram suavontade.

Ele quis enterrar a senhora, mas achou o solo tão duro e tãopedregoso que não pôde enterrá-la. Colocou-a num lugar afastadoda serra e pôs a criança entre seus seios. “Ai, Santa Maria Madalena,porque vieste tu ao porto de Marselha! Para a minha destruição,meu desterro e meu destino vieste tu. E eu, cativo porque te cri,dei início a isso. Por isto rogaste tu a teu deus? Que minha mu-lher concebesse, para se perder o que carregava? Agora estão am-bos perdidos: o concebido e a que concebeu, porque a mãe mor-reu em aflição e com as dores que sofreu e a criança nasceu paramorrer, porque não há quem a cuide. E é isso o que eu ganhei porteu rogo? A quem encomendei todas as minhas coisas? Eu te peçoe rogo que clames a teu deus, se ele é tão poderoso como tupregas, que tenha piedade da alma desta senhora. E que por teurogo tenha piedade daquela criança para que não se perca.”

Depois que disse isso, cobriu a senhora e a criança com seumanto e voltou ao navio em um barco. Depois que entrou nonavio voltaram a navegar.

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48 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

Ay que misericordia de ihesu xpisto Ay que merescimiento delamadalena. Ay que bendita partera ella escogio que fue pedricar entierra & le dio conforte & ayuda al Romero que por su confortenon se desesperase & ella lo conforto que non fallesciese por sullorar. &lla estudo al parto dela madre &lla fizo el oficio delamaestra &lla conforto la dueña en sus dolores &lla conforto elnjño que lloraua & ella fizo el oficio de ama&lla le dio la leche. quien oyo nunca estas cosas &lla enseñaua &pedricaua en tierra & la consejaua en mar era maestra. &lla eraama &lla confortaua el Romero que non dexase lo que comencara&lla criaua &l njño que lloraua por lo confortar & lo quitar dellorar &l cuerpo dela madre yaz syn alma & da leche al njño &otra cosa que es maraujlla la alma dela dueña fue en Romeria porconplir lo quel cuerpo auja comencado & ninguno non la veyamas ella veya a todos. & el cuerpo della jazia asy como vn vasovazio & de aquel vaso vazio tomaua el njño leche. & el vaso eraseñalado del señal dela cruz santa & jazia tan seguro que njn vientonjn elada njn enbierno njn calentura non le enpescia. njn fanbrenjn sed non auja njn podrescio njn se perdio & sabet que asi songuardadas las cosas que sson encomendadas a santa mariamagdalena.

como el romero fallo el njño trebejando rribera dela marOra tornaremos a nuestro rromero & non ayades enojo de oyr elconforte que le ella dio de su desconforte & que fizo por su rruego& como su tristeza fue tornada en alegria la naue ouo buen viento& llego cedo al puerto que deseaua & salieron fuera & despues apoca sazon topo con sant pedro & quando el vendito apostol vioel rromero cruzado & preguntole por cuyo mandado prendiera lacruz & por que venjera ally & sant pedro entendio muy bien quedonde el venjera que pedricaria alla la palabra de ihesu

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49VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

Ai, que misericórdia de Jesus Cristo! Ai, que merecimentode Madalena! Ai, que bendita parteira ela escolheu, que foi pregarna terra. Ela deu conforto e ajuda ao romeiro, que por causa deseu consolo não se desesperou. Ela o confortou para que não fa-lecesse e tanto chorar. Ela esteve no parto da mãe, ela fez o ofíciode mestre.

Ela confortou a senhora em suas dores. Ela confortou a cri-ança que chorava. Ela desempenhou o papel de ama. Ela lhe deu oleite. Quem já ouviu falar dessas coisas? Ela ensinava, pregava eaconselhava no mar. Ela era mestre. Ela era ama. Ela confortava oromeiro para que não deixasse o que começara. Ela cuidava dacriança que chorava, para a confortar e cessar seu choro.

O corpo da mãe jaze sem a alma e dá leite à criança. E outracoisa que é maravilhosa: a alma da senhora foi em romaria paracumprir o que o corpo havia começado. Ninguém a via, mas elavia a todos. O corpo dela jazia como um recipiente vazio. E da-quele recipiente vazio a criança tomava o leite. O recipiente eramarcado com o sinal da santa cruz e jazia tão seguro que nemvento, nem geada, nem inverno, nem calor o atingia. Nem fome,nem sede sentia. Não apodreceu nem se perdeu. Sabei que assimsão guardadas as coisas que são encomendadas a Maria Madalena.

COMO O ROMEIRO ACHOU A CRIANÇA TRABA-LHANDO NA BEIRA DO MAR

Voltemos ao nosso romeiro. Não se negue a ouvir sobre oconforto que ela lhe deu em seu desconforto, o que fez por seurogo e como a sua tristeza foi transformada em alegria. O navioencontrou bom vento e logo chegou ao ponto que desejava. Edesembarcaram. Pouco tempo depois, o romeiro se deparou comSão Pedro. Quando

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50 A IDADE MÉDIA EM TEXTOS 1

Rxpisto & el Romero le conto todas las cosas quel auenieran entierra & en mar & por cuyo mandado tomara la cruz & la Razonpor que ally veniera Quando ssant pedro esto.

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51VIDA DE SANTA MARIA MADALENA

o bendito apóstolo viu o romeiro com a cruz, perguntou-lhe a mando de quem a tomara e porque viera ali. São Pedroentendeu muito bem que de onde ele viera, ali havia sido anunci-ada a palavra de Jesus Cristo. O romeiro lhe contou todas as coi-sas que ocorreram em terra e no mar, a mando de quem tomara acruz e a razão porque viera até ali. Quando São Pedro isto ???

Notas da Tradução

1 O texto foi reconstruído a partir da versão da Vida de Maria Madalenapresente na obra Legenda Dourada de Tiago de Vorágine. Porém, esseautor identifica São Maximino como aquele a quem Maria foi encomenda-da. Outras versões desta vida denominam este guia espiritual como SãoMaximiniano. É esta variante que adotamos em nossa tradução, pois é aque figura no manuscrito que tomamos como base, ainda que esteja cor-rompido exatamente neste nome.2 A lacuna na transcrição do texto poderia corresponder ao nome do cego,Cedônio, assim como consta na Legenda Dourada. A tradição da presença

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de um cego junto a Maria Madalena e seus irmãos pode ter se constituídoa partir do relato da ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44), no qual é feitauma referência a um cego que fora anteriormente curado por Cristo (Jo9). Nos versículos 36 e 37 do capítulo 11, o evangelista registra o comen-tário dos judeus: “Então, disseram os judeus: Vede quanto o amava. Masalguns objetaram: Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer queeste não morresse”.3 Lc 11,27. O texto do Evangelho não identifica a mulher que proferiu estafrase. Porém, tendo em vista a proximidade desta passagem de uma ou-tra, na qual Marta e Maria são nomeadas (Lc 10,38;42), sua inclusão nes-ta obra pode assim ser justificada. Segundo Lilia Sebastiani, esta mulherfoi identificada como Martila (em alguns textos Marcela ou Maximila),empregada de Marta. Na Legenda Dourada ela compõe a comitiva deMadalena. SEBASTIANI, L. Maria Madalena: de personagem do evangelhoa mito de pecadora redimida. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 110, n. 8.4 No castelhano medieval, entre os séculos XIII ao XV, o verbo yogar pos-suía diversos significados: folgar-se, gozar, alegrar-se, burlar, estar detidoou permanecer em um determinado lugar e, particularmente, ter prazersexual. Optamos por traduzi-lo, nesta frase, pelo verbo alegrar, porqueacreditamos que este termo melhor exprime o sentimento de exultaçãoreligiosa. MARTIN ALONSO. Diccionario Medieval Español. Salamanca:Universidad Pontifícia de Salamanca, 1986. 2 v. V. 2 p.1632.5 Ver nota anterior.6 A fala da mulher do cavaleiro possui claros paralelos com Rt. 1, 16- 17.7 A presença de São Pedro neste relato, identificado como príncipe dosapóstolos e detentor das verdades sobre Cristo, pode ser vista como umareferência à Igreja Romana, cujo chefe era considerado um sucessor diretode Pedro, que se apresentava como a portadora de todos os mistérios deCristo. Há que ressaltar que no século XIV a Igreja Romana foi abalada pordiversas crises, tais como a permanência da cúria em Avignon, o desenvol-vimento das teses e o crescimento das facções conciliaristas e a eleição deanti-papas. Sobre a Igreja Romana e o papado no período ver DUFFY, E.Acima das Nações: 1000-1447. In: ___. Santos e Pecadores: história dospapas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 87-132.

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Responsáveis Pelo Número:

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva - Mestre em Histó-ria Antiga e Medieval (UFRJ), Doutora em História Social(UFRJ), Professora do Departamento de História da UFRJ,Pesquisadora do CNPq.

Carolina Coelho Fortes - Bacharel em História (UFRJ),Mestranda em História Social (Programa de Pós-graduaçãoem História Social - UFRJ).

Fabrícia Angélica Teixeira de Carvalho - Bacharel e Licen-ciada em História (UFRJ), Mestranda em História Compa-rada (Programa de Pós-graduação em História Comparada -UFRJ).

Maria Cristina Correia Leandro Pereira - Mestre em His-tória Antiga e Medieval (UFRJ), Doutora em História Me-dieval (EHESS), Professora do Departamento de Funda-mentos e Técnicas Artísticas da UFES.

Shirlei Cristiane Araújo Freitas - Graduanda e Licenciandaem Letras (UFRJ), Bolsista do PROFAG (UFRJ).

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O Programa de Estudos Medievais (Pem), concebido em1991, tem caráter interdisciplinar e desenvolve atualmente váriasatividades. Conheça algumas destas iniciativas:

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No endereço http://www.pem.ifcs.ufrj.br estãodisponibilizadas as principais informações relacionadas ao Progra-ma de Estudos Medievais. Aqui estão registrados dados acerca datrajetória do Pem desde sua criação, sobre seus pesquisadores,colaboradores e projetos concluídos e em curso, assim como arespeito dos eventos organizados nos últimos anos.

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A lista tem como principal objetivo a reunião de estudiososde diversas áreas do conhecimento para um grande diálogo, noqual é possível a troca de experiências, debates e a divulgação dequestões variadas concernentes à medievalística. Para inscrever-se,basta mandar uma mensagem para o e-mail: [email protected] .

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Periodicamente, o Pem patrocina atividades levando à co-munidade e ao público em geral notícias sobre a Idade Média, taiscomo conferências, cursos de extensão, e encontros de caráter ci-entífico, como as semanas de Estudos Medievais.

PPPPPUBLICAÇÕESUBLICAÇÕESUBLICAÇÕESUBLICAÇÕESUBLICAÇÕES

Semana de Estudos Medievais,3, 1995, Rio de Janeiro. Atas...Rio de Janeiro: UFRJ/ Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Ex-tensão / SR5 ,1995.

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Fontes Medievais: Anotações para um Estudo Crítico. Rio deJaneiro: UFRJ/ Sub-Reitoria de Ensino e Graduação e CorpoDiscente/SR1, 1996. (Cadernos Didáticos UFRJ, 21).

Semana de Estudos Medievais, 4, 2001, Rio de Janeiro. Atas... Rio de Janeiro: Pem, 2001.