sagrados - a aliança de maria madalena

75
SagradoS A Aliança de Maria Madalena Anaté Merger Volume I

Upload: anate-merger

Post on 02-Jan-2016

439 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Sinopse: Paris. Um professor da Sorbonne é assassinado e o objeto que ele guardava desaparece. Marselha, três anos depois: uma expedição arqueológica chega à Provença para tentar descobrir se Maria Madalena teria mesmo desembarcado com outros apóstolos na região, como diz a lenda. Os dois fatos inéditos alertam os sagrados, anjos que receberam um corpo para que pudessem sobreviver na atmosfera terrestre desde que começou a Guerra dos Imortais. Eles são os guardiões do segredo que Maria Madalena trouxe da Palestina em uma bagagem extremamente preciosa. Entre seres extraordinários, cavaleiros templários, cenários de sonho no sul da França e muita magia, Diana, Anne, Thérèse e Nina vão se encontrar. Cada uma tem uma missão que por enquanto elas mesmas desconhecem. Descobrir qual é o papel delas nessa aventura e se elas vão estar à altura do desafio é apenas o primeiro passo nesse caminho cheio de surpresas e emoção que começa com SagradoS - A Aliança de Maria Madalena. Como adquirir um exemplar: Para ler o conteúdo do livro basta baixar gratuitamente o aplicativo do Kindle em qualquer smartphone, iPad ou computador. Em seguida, o leitor deve ir até o site do Amazon.com.br, preencher a ficha cadastral com as informações necessárias e clicar em "comprar".

TRANSCRIPT

Page 1: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

SagradoS

A Aliança de Maria Madalena

Anaté Merger

Volume I

Page 2: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Copyright © 2013 Anaté Merger

SAGRADOS

Revisão: Janaína Vieira

Revisão e Copidesque: Carla Santos

Diagramação digital: Carla Santos

Coordenação editorial: Lycia Barros

Capa: Hugo Breves

Fotos: Anaté Merger

Editora: Ases da Literatura

Apesar de alguns personagens, lugares e acontecimentos citados fazerem parte das lendas e história da Provence, esta é uma obra de ficção, resultado

de uma longa pesquisa aliada à muita imaginação. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

É expressamente proibida a reprodução, o armazenamento, a distribuição ou cópia, no todo ou em parte dessa obra, através de quaisquer meios, sem o

consentimento por escrito da autora.

Page 3: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

A Nicolas, o meu porto seguro.

Page 4: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Introdução

Um passo depois do outro por uma floresta que respira desde o

terciário, onde as árvores esqueceram as suas idades e o tempo vem fazer

uma pausa.

Um passo depois do outro por um caminho que se contorce entre

plantas que não fazem parte da flora mediterrânea e que por isso deixam esse

lugar ainda mais irreal.

Um passo depois do outro subindo, forçando os músculos, acordando

o melhor que tenho em mim mesma até chegar ao topo onde em uma gruta

mora uma lenda.

Um passo depois do outro para seguir os traços deixados por Maria

Madalena na história e no folclore da Provence.

Foi assim, com um passo atrás do outro, que a ideia de A Aliança de

Maria Madalena, o primeiro volume da trilogia SagradoS — me perseguiu por

dias e meses até que me convenceu a acreditar no seu potencial e a história foi

se formando, se amalgamando com outras lendas e personagens locais como

Mélusine e Nostradamus, usando lugares mágicos e surpreendentes como os

campos de lavanda ou ainda extraordinários pedaços da Idade Média que

sobreviveram até nós em castelos espetaculares, como o de Tarascon que

inspirou a propriedade da familia Lunenoir.

Com um passo atrás do outro, a história foi crescendo em tramas que

se intercalam, se abraçam e fazem o leitor viajar por uma Provence

desconhecida e misteriosa que esconde muitos segredos.

Com um passo atrás do outro, decidi pegar na sua mão e levá-lo para a

França, onde o fantástico é o guia em uma viagem que vai ter muitas

surpresas, reviravoltas e magia.

Page 5: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

O caminho está pronto, agora o próximo passo é seu.

Anaté Merger

Page 6: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Prefácio

As poças se espalham pela pavimentação irregular e os meus pés,

tentando escapar delas sem a habilidade de uma bailarina, são os primeiros a

reclamar da chuva. A tempestade de outono chega sem avisar e a porta da

loja sem pretensão parece uma saída honrosa para me manter aquecida nos

próximos minutos.

Não me lembro de ter passado por essa rua do centro velho e muito

menos de ter visto a fachada sóbria do prédio.

Page 7: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Entro na livraria pela primeira vez.

Cumprimento o jovem atrás do caixa e esqueço completamente os raios

e trovões, apenas com a promessa de encontrar algo extraordinário, o que

acontecia com uma certa frequência sempre que entrava em um santuário

como esse. Para a minha surpresa, o interior é muito mais amplo do que dava

a entender a fachada do estabelecimento. As estantes se multiplicam e os

volumes invadem as paredes como enormes trepadeiras. Os lançamentos

ficam no térreo e os livros usados nos andares superiores. Subo as escadas

sentindo o agradável cheiro de papel me levar para salas cada vez menores e

mais escondidas. Empurro uma pequena porta redonda entreaberta para

entrar em um local que aparentemente não é visitado há anos. A luz diáfana

que atravessa a clarabóia é a única iluminação. Ao dar o primeiro passo,

tropeço em um banco e derrubo alguns volumes de uma prateleira. Ao

arrumá-los, encontro um manuscrito com folhas amareladas e gravuras em

bico de pena. As páginas que se sucedem, sempre ricamente ilustradas, me

convencem a levá-lo para casa sob um sol radiante.

Por intermédio dele descubro um lado da Provença sobre o qual

ninguém tinha tido interesse ou tempo para me contar. Lendo avidamente

cada capítulo, leio contos que misturam a realidade de fatos históricos a

situações fantásticas. Em um deles, um rei mouro — depois de fracassar na

conquista do território de Baux — usa uma cabra para encontrar uma gruta e

nela esconde uma fortuna em joias. O estrangeiro não recupera o tesouro, que

continua perdido até hoje, protegido pelo mesmo animal. Conheci bruxas que

festejam o sabá e salvam homens de ferimentos mortais com poções de ervas

feitas em um caldeirão. As palavras me levam até Marselha, onde uma

serpente gigantesca, que mata apenas com o olhar, morre depois de cair em

uma armadilha criada astuciosamente por um rapaz. Frases mais tarde,

encontro Mélusine. A bela mulher se casa e exige do marido que ele nunca a

veja nua, do contrário ele perderia todos os bens e as graças que recebeu, e ela

desapareceria para nunca mais voltar. Depois de anos de casamento ele não

resiste e decide observar a esposa no banho. Surpreendida, ela se transforma

Page 8: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

em uma serpente e foge. A quilômetros do castelo onde se passa esse drama,

Hermentaire mata um dragão. O cavaleiro se torna um santo e, Draco, a

origem do nome da cidade de Draguignan. A Tarasca — monstro ainda mais

temido —, ocupa uma caverna do rio Rhône quando é capturada por Martha.

A irmã mais velha de Maria Madalena teria desembarcado com a santa e

outros apóstolos em uma praia da Camargue usando um barco sem velas, nem

remos.

Esta lenda me toca mais profudamente do que as outras.

Talvez pela fé de acreditar que depois de evangelizar a Provença,

Maria Madalena tenha mesmo vivido durante trinta anos como eremita na

montanha que se tornou a Sainte-Baume — gruta santa em provençal. Talvez

pela beleza de imaginar um grupo de anjos vindo alimentá-la todos os dias.

Talvez pela possibilidade de Maria Madalena ter trazido na bagagem

mais do que palavras.

Histórias tão velhas como a humanidade, passadas de uma geração a

outra em noites estreladas, aquecidas por uma fogueira e que continuam

fazendo parte da cultura e da vida dos provençais ainda hoje, em livros mais

ou menos elaborados, ou raros, como o que ganhou um lugar na minha casa.

Para quem nasceu aqui, esses contos são tão reais como os vinhedos, os

campos de lavanda, de trigo e de girassóis, o céu de um azul luminoso, as

montanhas enigmáticas, as florestas ancestrais e os castelos que ainda

impõem respeito pelo seu conjunto arquitetônico. Nas lendas da Provença,

lugares remarcáveis se tornam cenários para as mais diversas aventuras

vividas por feiticeiras, templários, alquimistas e seres celestes.

E eu nunca poderia imaginar que um dia também iria acreditar

nelas…

Page 9: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Houve uma batalha no céu: Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão. O dragão

também lutou, junto com os seus anjos, mas foram derrotados, e não houve mais

algum lugar para eles no céu.

Apocalipse 12, 7-8

Page 10: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Três anos atrás...

Page 11: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 1

Outono em Paris

— Eleito —

Page 12: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Alguém aqui acredita em anjos? — Gilles Sartre lançou a pergunta

como havia aprendido a fazer: em um auditório lotado, no meio da discussão

de um tema importante e envolvente, mas sem nenhuma relação com o que

estava sendo perguntado.

O professor emérito e coordenador do curso de Filosofia da

Comunicação da Sorbonne era tido como uma das melhores e mais excêntricas

cabeças do campus. Mas os questionamentos ligados a temas espirituais, onde

anjos e demônios apareciam constantemente misturados a lendas locais e a

mitos presentes em várias culturas, deixavam os alunos e a direção da

faculdade sem saber como reagir.

E era essa a reação que Gilles observava: alguns riam, outros

aproveitavam a pausa para passar uma mensagem pelo telefone, fazer uma

anotação ou se informar das festas do fim de semana. O certo é que a maioria

dos alunos ignorava solenemente as folclóricas perguntas, mas sempre havia

um olhar que brilhava diante do assunto. Essa faísca alertava o mestre e

mostrava quem poderia estar à altura de ser o próximo Eleito.

A busca de Gilles Sartre pelo seu substituto havia começado no dia em

que completou quarenta anos, como mandava a tradição. Mas a seleção tinha

se intensificado nos últimos meses depois que uma dor de cabeça apareceu

como um pequeno incômodo, uma ou duas vezes por semana. Nada que um

comprimido esporádico não resolvesse, até que o transtorno ganhou outra

proporção. Nenhum dos remédios fazia mais efeito, as distorções visuais se

tornaram frequentes e eram acompanhadas quase sempre de delírios,

náuseas, frases desconexas, zumbidos e desmaios que apareciam em qualquer

momento do dia ou da noite, impedindo-o de dormir e fazendo com que o

professor Sartre se afastasse das suas funções na Sorbonne anos antes da

aposentadoria.

As inúmeras consultas foram inúteis. Todos os médicos visitados eram

unânimes no diagnóstico: nada no corpo do professor indicava uma doença.

Page 13: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

A tomografia computadorizada mostrou um cérebro normal e nenhum dos

outros exames chegou a uma conclusão diferente.

O mal que o atingia era indecifrável para a medicina, mas não para ele.

Depois de se debater contra a evidência, de negar a possibilidade e de ignorar

o conhecimento do que eles poderiam fazer, o professor tinha certeza da

origem da dor que o impedia de viver normalmente e que provavelmente iria

matá-lo.

Infelizmente ele não percebeu a tempo a influência sorrateira se

aproximar, fragilizando ainda mais o seu espírito atormentado pelo vazio

causado pela morte recente da única mulher que tinha amado e com quem

vivera um casamento feliz. Ela fazia falta. Mais do imaginava, mais do que

demonstrava aos filhos e amigos, mais do que podia suportar.

Esse sofrimento indicou o caminho e eles o tinham localizado. Por anos

eles esperaram tranquilamente uma oportunidade, uma brecha. Sem se

preocupar com o tempo. Eles tinham a eternidade.

O espaço foi aberto sem muita dificuldade, talvez pela própria vontade

de se encontrar mais cedo com ela, um sentimento com o qual o professor

lutava todas as horas do dia, mas que era maior do que ele e que funcionava

como uma chave diante do desespero de continuar vivendo sozinho. Gilles

Sartre tinha se preparado para tudo, menos para viver sem ela. Foi esse

sentimento que permitiu que eles aproveitassem o pior momento de sua vida

para infectar cada célula do seu corpo.

Agora era tarde demais. Nem ele, nem nenhum outro Eleito tinha a

força e o poder necessários para afastar a presença nefasta que devorava o seu

corpo por dentro. Para Gilles Sartre restavam algumas horas, apenas o

suficiente para tentar salvar a sua alma.

O objeto que lhe foi confiado e que ele guardava desde os primeiros

anos de faculdade estava em perigo. Não era mais possível escondê-lo. Eles o

conheciam por completo: cada pensamento, cada gesto, cada desejo seu era

Page 14: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

dividido com o pior inimigo que um homem poderia ter. Nenhum local

sugerido pela sua mente seria mais confiável. Por uma questão de segurança,

o nome do homem que o havia iniciado e tudo em relação à Aliança de Maria

Madalena foi esquecido depois de um longo ritual feito em um momento de

lucidez. Gilles Sartre havia tido o mesmo cuidado em relação ao futuro

substituto, mas duvidava do resultado.

A dor retorna. Violenta. Invasiva, destrutiva e impiedosa para atacar

até o menor dos nervos, transformando qualquer movimento em um esforço

titânico. O fim estava próximo e não havia saída.

Gilles Sartre se concentra para se lembrar do código, abre o cofre e tira

de dentro dele o bem mais precioso que há no apartamento decorado com

simplicidade e bom gosto. Ele o enrola em um velho cobertor de criança,

guarda-o delicadamente dentro da pasta de couro que usava para carregar os

livros do curso e sai de casa vestindo o casaco enquanto desce as escadas.

Ele não se preocupa em fechar a porta, Sartre sabe que não vai retornar.

Nunca mais.

Ele está com pressa. Como nunca esteve. O tempo e a dor lhe dão a

impressão de que a luta está perdida e de que não conseguirá chegar ao seu

destino, o único lugar onde poderia encontrar a redenção.

Os sussurros que o acordavam no meio da noite e o pertubavam

durante o dia se tornaram cada vez mais claros e insidiosos até se

transformarem em gritos repulsivos de angústia e desespero. Sartre também

podia senti-los cada vez mais perto, roçando a sua pele lhe causando calafrios

e mal-estar. Ele sabe que para o seu corpo não havia mais nenhum futuro,

mas ele não permitiria que o seu espírito também se perdesse.

Não vai dar tempo...

O táxi estaciona em frente ao prédio como se tivesse sido chamado.

Surpreso, o professor abre a porta e começa a entrar no carro pedindo ao

motorista que vá pelo caminho mais curto ao Père-Lachaise.

Page 15: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O senhor tem certeza? Acharia melhor levá-lo ao hospital, o senhor

não me parece bem…

Mas um calafrio o faz dar um passo para trás e pela primeira vez Gilles

Sartre vê, flutuando e esperando por ele, o que o atormentava há meses: um

anakin, o espectro de um anjo rebelde expulso do Círculo, a hierarquia

celeste. Fluído, instável, transparente e sem forma definida ele lembra uma

chama, mas fria e cinzenta. Movimentando-se rapidamente, o anakin

atravessa o banco e se apodera do corpo do motorista, fazendo-o encarar o

professor com um olhar ensandecido e perigoso.

— Estou esperando, Gilles. Não vai entrar? Vamos chegar atrasados...

Gilles fecha a porta com violência e vê no seu reflexo um homem que

envelheceu décadas em meses. Os cabelos brancos tocam o maxilar e

inúmeras rugas se desenham dramaticamente em seu rosto, onde os olhos

verdes perderam completamente o brilho. Ele se afasta, sentindo a dor se

espalhar pelo seu corpo. Lâminas invisíveis laceram os seus músculos,

fazendo-o tropeçar algumas vezes. As gargalhadas se multiplicam e

explodem em seus ouvidos. Lágrimas banham-lhe o rosto contraído, que faz

um último esforço para não ver os espectros que se aproximam. Segurando a

pasta contra o peito e a apenas algumas ruas do cemitério, o professor se

concentra, para, reúne toda a força que ainda tem e lança uma conjuração. A

força das palavras mágicas cria uma esfera de luz em volta dele, afastando

temporariamente os anakins e a dor.

Em dias de sol, Gilles Sartre fazia esse percurso tranquilamente a pé

para aproveitar a beleza da cidade que restou depois que a esposa partiu. Mas

hoje ele não tinha tempo para observar nada.

Mais alguns minutos e ele atravessa o portão. As vozes dão lugar a um

silêncio confortador e o coração dele fica leve. Sartre havia conseguido.

Naquele terreno sagrado a sua alma estava salva.

Page 16: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Diferente dos turistas que passeavam entre as quarenta mil esculturas

procurando onde repousam Oscar Wilde, Savinien Cyrano de Bergerac, Edith

Piaf, Molière, Auguste Conte, Allan Kardec e Delacroix, dentre muitos outros,

Gilles Sartre não precisava de nenhum guia. O professor conhecia cada rua

estreita do cemitério que ele visitava todos os dias, às vezes pela manhã e à

tarde quando a saudade se tornava devastadora.

Assim que encontra a tumba que procurava ele encosta a valise em um

canto, retira o conteúdo e se senta sobre o mármore. Desdobrando o

desgastado cobertor com delicadeza, Sartre respira longa e profundamente

antes de sussurrar uma frase em latim, desenhando com os dedos figuras

enigmáticas sobre o objeto.

— Pro Luce in perpetuum contra obscurum malum.1

O brilho que emana das mãos do Eleito se transforma em um arco-íris

com a chuva fina que começa a cair sobre Paris. Com um sorriso confiante, ele

guarda o objeto e, com um olhar triste, se desculpa por não ter trazido as

flores que a esposa adorava. Essa foi a única vez em que o professor

atravessou as portas do Père-Lachaise sem um buquê de rosas brancas.

Ele começa a respirar no mesmo ritmo doce das gotas que caem sobre a

sua pele. Insistente, silenciosa e incômoda a chuva termina poucos minutos

depois com um sol tímido, única testemunha de uma sombra se

movimentando em torno de um corpo sem vida, que toca com os dedos a foto

de uma mulher sorridente.

No lugar da pasta em couro, algumas folhas douradas brincam com o

vento frio do outono que, sem condescendência, apaga uma a uma todas as

velas do seu caminho.

1 Em latim: "Eternamente pela luz contra o mal sombrio".

Page 17: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 2

Redação da Télémed, em Marselha

— Enterro —

Page 18: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Anne olha fixamente para a tela do computador e relê cada palavra

duas ou mais vezes para tentar aceitar a notícia que elas trazem.

Lamentamos informar aos parentes, amigos e alunos que o nosso

amado pai e estimado professor nos deixou. Diante do enorme vazio que

sentimos, o que podemos fazer no momento é convidá-los para nos

acompanhar na cerimônia prevista para amanhã, às 10h, no cemitério

Père-Lachaise, em Paris. Atenciosamente, família Sartre.

— Alguém importante? — perguntou Yves Yasslian, com sua voz, forte

e ritmada, por trás da repórter que ainda estava desorientada com o e-mail

que tinha acabado de receber.

Anne girou a cadeira para ver melhor o colega de trabalho.

— Um professor que vinha de Paris uma vez por semana nos dar aula

de Filosofia da Comunicação. Para alguns alunos, Sartre era meio excêntrico,

mas eu adorava assistir ao seu curso. Saía do auditório com a impressão de

que realmente havia escolhido a profissão certa.

— Por que os seus colegas o achavam meio estranho?

— Pelas questões completamente sem sentido e totalmente fora de hora

que ele nos lançava de vez em quando.

— Perguntas do tipo?

— “Se os anjos existem, por que não podemos vê-los?”, “Anjos e

demônios seriam irmãos que escolheram caminhos diferentes?”, “O que faz

de um caminho o caminho certo?", foram algumas delas.

— Acho que você tinha me falado sobre ele… E ele respondia essas

perguntas?

Page 19: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Nunca. Apenas as fazia assim, aleatoriamente, no meio do curso,

como se estivesse semeando um campo de girassóis.

— Pena que não teve tempo para ver o campo florescer… Você vai ao

enterro?

— Gostaria muito, mas não sei se vou poder me liberar. Estou de

plantão.

— Por que não fala com a nova repórter? Ela é sempre tão simpática

com você... Também é solteira e não tem filhos. Acho que não se incomodaria

em trocar de fim de semana…

— Você lembra a minha situação sempre que pode, não é meu amigo?

Você age como se eu estivesse à beira da menopausa. Esse assunto não é uma

prioridade no momento. Um chato, você…

— É verdade. Com certeza não deve estar com pressa para ter os seus

filhotes, ou não trabalharia catorze horas por dia. Mas, você tem razão,

desculpe, o assunto é outro… Se quiser, posso ir com você.

— Você faria isso?

— Há meses não vejo o meu filho e essa poderia ser uma boa

oportunidade. Vamos fazer o seguinte: você verifica se pode trocar o plantão

com a sua colega e eu vejo se a minha mulher está de acordo para passarmos

o fim de semana com Gerard.

Depois de alguns telefonemas estava tudo acertado e poucas horas

depois Anne, Yves e a esposa embarcaram no TGV para uma viagem de três

horas para a capital.

Anne havia conseguido um hotel próximo ao apartamento onde o

Gerard morava desde que saiu de Aix para fazer um mestrado em Psicologia.

Anne não queria incomodar, mas não pôde recusar o jantar que ele havia

preparado com a namorada Emi, uma japonesa que tinha conhecido na

faculdade. A repórter ficou surpresa com as semelhanças entre pai e filho.

Page 20: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Gerard tinha a mesma corpulência e os cabelos em uma batalha permanente

contra a gravidade de Yves e o olhar doce de Carolinne. A esposa do

cinegrafista tocava o filho sempre que podia, na hora de passar o pão ou

quando se levantava da mesa para ir até a cozinha. O amor que se sentia

naquela casa era tão palpável que Anne não conseguiu evitar a inveja e a

raiva. Ela havia perdido os pais e ainda se debatia contra o sentimento de

abandono que surgiu após o acidente de carro havia alguns anos. A angústia

aumenta a tal ponto que o aperto que sente no peito a deixa sem ar e,

encontrando uma desculpa, ela deixa o apartamento antes da sobremesa para

dar uma volta a pé por Paris.

Mesmo que viesse com certa frequência à capital, a cidade sempre a

surpreendia com alguma imagem ou som que lhe despertavam um

sentimento novo. Podia ser uma sessão de moda em pleno Champs-Élysées,

recém-casados fazendo-se fotografar em frente à torre, uma criança se

deliciando com a descoberta da bicicleta, um homem fumando o seu cigarro

em uma janela ou um motorista que lhe lançava um beijo. Foi para encontrar

uma nova imagem como essa que Anne havia saído.

Ela estava abalada com a notícia que havia recebido e a ideia de ir ao

enterro lhe deixava ansiosa. Anne não gostava de cemitérios e passou a evitá-

los ainda mais depois da morte dos pais. A situação a incomodava, mas ela

não conseguia vê-la de outro jeito. Anne simplesmente negava o que havia

acontecido e se recusava a visitar a tumba onde os pais tinham sido

enterrados.

Uma rajada de vento fez a repórter levantar a gola do casaco e colocar

as mãos nos bolsos. O outono em Paris não tem a mesma doçura da Provença

e o frio começa a incomodar desde os primeiros dias.

Anne decide retornar ao hotel, mesmo sem estar muito preparada para

o que viveria no dia seguinte. Nesse momento, ela percebe que havia se

afastado muito e o retorno a pé não parecia uma boa ideia. Com as mãos cada

vez mais incomodadas e as orelhas reclamando diante da falta de uma

Page 21: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

proteção adequada, a repórter escolhe uma estação e desce as escadas do

metrô. Automaticamente ela compra o bilhete e entra no trem. A espera não é

longa e em pouco tempo ela sai do vagão. Subindo a escada, Anne percebe

que o frio havia piorado e ela se apressa para se aproximar do hotel, a apenas

alguns quarteirões.

Entrando em uma rua estreita e deserta, um cachorro a assusta e ela

percebe que não reconhece a rua. Sem poder voltar, ela continua sem muita

segurança até sair em outra viela ainda mais estranha.

Passava das onze horas da noite, Anne se perde, seu celular estava sem

cobertura e não aparecia ninguém para indicar-lhe o caminho certo até o

hotel.

Sentindo o pânico crescer, ela tenta se convencer de que não havia

nenhum motivo para desespero. Ela conhecia Paris, a cidade era segura e com

certeza o hotel estava por perto. Ela o acharia sem problema, só precisava se

controlar.

Sem saber ao certo o porquê, Anne se lembra de uma das músicas que

a mãe cantava sempre que estava cozinhando. Uma maneira que ela havia

encontrado para ficar perto da filha mesmo estando ocupada. Anne não se

lembrava muito bem da letra, mas repetia o refrão, sem interrupção,

esperando que a canção a distraísse e pudesse ajudá-la a encontrar o que

procurava.

— “Papi, papi, papillote. Mamie, mamie m'a donné, quatre jolies papillotes

dans du beau papier doré.”2

Enquanto canta, ela passa a observar a rua com outros olhos. Há meses

não saía à noite. Yves tinha razão para se preocupar. Anne não se lembrava

mais do último filme que tinha visto no cinema ou do jantar em um

restaurante. As amigas foram se casando e se afastando naturalmente.

2 Do original em francês: "Lindo, lindo, bombom, mamãe, mamãe me deu, quatro lindos bombons, enrolados em um belo papel dourado.”

Page 22: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Ela se sentia só.

A noite sem estrelas e estranhamente silenciosa na barulhenta Paris a

perturba ainda mais.

Anne procura a lua, mas não encontra nenhuma iluminação, nenhum

sinal do satélite. O medo insiste em lhe fazer companhia e ela tenta afastá-lo

pensando de novo na sua mãe e nas caminhadas noturnas que faziam na orla

de Marselha, embaladas pela lua cheia. Uma lua esplêndida como a que

aparece refletida na rua molhada pela chuva. O luar ilumina a cidade e os

passos da repórter encontram a rua certa.

Anne olha novamente para o céu na esperança de memorizar a bela

imagem e se surpreende. A noite era de lua nova.

Deve ter sido o vinho... Não apenas comi mais do que precisava, mas bebi mais

do que deveria... Uma alucinação, só pode ter sido isso...

Anne entra no hotel e antes mesmo de abrir a porta do quarto ela havia

esquecido completamente o assunto para se lembrar de outro bem mais

dolorido e concreto. Ela se recorda das aulas e principalmente dos momentos

que pôde discutir calmamente com o professor Sartre. Normalmente essas

conversas não eram longas, mas lhe deixavam com uma intuição muito forte

de que esse homem que ela conhecia tão pouco sempre tentava lhe passar

uma mensagem subliminar. Infelizmente, ela nunca conseguiu assimiliar o

que ele queria dizer nas entrelinhas e todas aquelas perguntas e afirmações

descontextualizadas continuariam sem resposta depois que ele partiu.

O sono se aproxima suavemente e em pouco tempo Anne é levada para

outros lugares, onde vê pessoas que ela não conhece, objetos estranhos,

cadernos gastos, uma velha caderneta vermelha, a sala de aula da faculdade e

situações que nunca viveu. O sonho continua como se fosse uma fita bruta,

onde as imagens não estão na sequência que vão ser mostradas e dependem

de um bom editor para fazer algum sentido.

Page 23: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Anne acorda com uma estranha sensação de que tinha visto ou

entendido algo que deveria se lembrar. Mas, sem tempo para perder com o

inconsciente, ela se prepara rapidamente, desce para tomar café e segue com a

mesma pressa para o cemitério, onde chega meia hora depois, aliviada com a

surpresa e a companhia de Yves.

No portão principal, muitas pessoas vestidas sobriamente esperam o

cortejo começar. Anne troca algumas palavras com os filhos do professor, se

aproxima e se mistura a um grupo de colegas da faculdade, sem perceber que

todos eles estavam sendo observados.

— O substituto está aqui, Olivier?

— Provavelmente, Levi. Você sabe que ele ou ela é selecionado entre os

melhores alunos do Eleito.

— Como sabe que "os melhores alunos" vieram ao enterro?

— Você esqueceu a ligação que existe entre o Eleito e o seu escolhido?

Esse aluno ou aluna deve estar aqui, sofrendo sinceramente com a perda do

mestre. Mesmo que ainda não saiba exatamente porque tenha ficado tão

tocado com a morte de alguém que não fazia realmente parte da sua vida.

— Os peritos disseram que Gilles teve um rompimento de aneurisma.

O que aconteceu realmente?

— Ele teve um derrame, Levi, disso não temos dúvida, mas causado

pelos anakins. Gilles sabia que estava condenado e por isso veio ao cemitério:

ele precisava de um local sagrado para evitar que a sua alma também se

perdesse no processo de infecção.

— Conhecia o poder de influência dos anakins, mas matar um Eleito...

Como eles conseguiram?

— Não temos a menor ideia, Levi. É a primeira vez que um Eleito é

atacado dessa maneira. Sabíamos que o poder dos espectros dos rebeldes

Page 24: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

havia crescido com o tempo, mas matar um homem que tinha sido treinado

como um Eleito é inédito.

— Por que Gilles não pediu ajuda?

— Provavelmente porque percebeu muito tarde o que estava

acontecendo... E você sabe que em uma situação como essa o Eleito precisa

proteger todos os que fazem parte da Aliança de Maria Madalena, apagando

qualquer traço dessas informações em um ritual que, felizmente, você não

precisou utilizar.

— Mesmo assim, ainda não entendi por que Gilles trouxe o objeto para

o cemitério…

— O Eleito quis proteger a família afastando os anakins da sua casa.

Gilles sabia o que eles queriam.

— Espero que ele não tenha colocado toda a humanidade em perigo

com essa atitude…

— Gilles Sartre era um Eleito experiente, Levi. Foi você mesmo quem o

indicou, devemos confiar no seu discernimento.

— Por isso mesmo acho que não deveria estar aqui. Faz décadas que

confiei a Gilles a complicada tarefa de ser um Eleito, esqueci muita coisa e não

tenho mais a juventude e a disposição para participar de uma história como

essa... Fiquei velho, Olivier, mas você não sabe o que é isso, não é meu amigo?

— diz Levi, observando o velho amigo, um homem alto e loiro com olhos de

um verde tão claro que beirava o extraordinário.

Olivier olha com ternura o senhor de cabelos brancos escondidos por

um béret que combina com o cardigã e o terno em risca-de-giz com três peças,

o cachecol e casaco em cashmere. As mãos enrugadas e manchadas apoiam o

peso do corpo encurvado em uma bengala feita em madeira, simples e muito

antiga, que destoa completamente da maneira elegante com a qual o velho

homem se veste.

Page 25: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Sou imortal, não envelheço como qualquer humano e a minha

aparência muda de acordo com os meus interesses, como você sabe muito

bem, Levi. Mas se o chamei aqui não foi para discutirmos sobre as

propriedades da minha alma.

— E por que me chamou?

— Você é o melhor homem para essa missão.

— Se fosse, não teria deixado Gilles morrer dessa maneira... —

responde com uma ponta de culpa no olhar.

— Levi, Gilles foi escolhido por você, um dos melhores Eleitos que

formei. Não se culpe pelo que aconteceu com ele. Isso deve ter alguma razão.

Sempre existe uma razão. Mas agora a nossa prioridade é outra...

— O conteúdo do cofre — afirma Levi com segurança.

— Por um bom tempo ele não corre nenhum risco. Você sabe que ele

tem o poder de se esconder de olhares curiosos. Gilles também deve ter

reforçado a proteção. Mas isso não vai ser suficiente, precisamos recuperar o

que foi roubado.

— Não existe a menor chance de que você desista da minha

participação, não? Estava tão sossegado, aproveitando as doçuras da

Provença...

— Você vai voltar em breve.

— Posso morrer a qualquer momento, Olivier...

— Nesse caso, vamos aproveitar cada segundo que lhe resta —

responde Olivier com um sorriso. — Precisamos descobrir onde Gilles

procurou o seu substituto para que possamos achá-lo. Ele é o único capaz de

recuperar o que foi roubado.

— Gilles deixou algum indício que vai lhe ajudar na busca? —

pergunta Levi.

Page 26: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O filho dele me entregou pessoalmente todos os cadernos, blocos e

outras anotações feitas pelo pai. Como sou eu o professor que vai susbtituí-lo,

ele achou que a iniciativa era necessária para que o curso tivesse uma

continuidade lógica. A boa vontade dele vai facilitar muito o meu trabalho de

decriptagem das pistas de Gilles, mas sabemos que isso não é o mais

complicado, sempre encontro o substituto certo. O maior problema é que o

aluno precisa estar pronto para assumir o papel ao qual é destinado ou a

magia não acontece. E isso pode levar muito tempo...

— Se tem certeza de que o futuro Eleito está entre aqueles estudantes, é

uma pena não podermos entrar em contato com ele ainda hoje.

— Não é o local, e muito menos o momento. E mesmo que

soubéssemos a identidade do substituto, precisamos ter certeza de que a

opção de Gilles é realmente a melhor e isso quem vai ter que nos provar é o

próprio candidato, assim que ele ou ela passar pelos testes.

— Começamos quando?

— Gilles codificava as informações com línguas, métodos e ideogramas

diferentes e mesmo que eu tenha sido treinado para falar todas as línguas

usadas na Terra, posso precisar de várias semanas ou meses até decifrar os

textos corretamente para localizar a pessoa certa, isso se o Eleito indicou

apenas uma.

— Faz muitos séculos que isso não acontece. Por que pensou nisso

agora?

— Observe o grupo de estudantes, Levi. Com o seu treinamento, você é

capaz de ver além da matéria e reconhecer os dons presentes nas cores de

cada aura.

— Faz anos que não coloco esse exercício em prática — responde o

velho professor colocando os óculos na ponta do nariz e fazendo um esforço

com os olhos.

Page 27: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Você está vendo o mesmo que eu? — pergunta Olivier.

Levi não responde e se concentra no grupo que troca comentários

discretos, aguardando o início do cortejo. As suas auras brilham com cores

bem definidas, indicando força, determinação e dons, como a cura, que

poderiam ser desenvolvidos com o treinamento necessário. Um rapaz tinha

em torno dele uma aura mais escura, mostrando a necessidade de um

tratamento para fortalecer a sua alma jovem e despreparada contra as

influências negativas. A energia emanada pela maioria tem um padrão

normal de cor e de intensidade, mas alguns dos jovens brilham em um tom

raro, conhecido apenas por poucos privilegiados que tiveram contato com os

anjos.

— Eles têm auras brancas! Não me lembro de ter ouvido falar em nada

parecido.

— Isso nunca aconteceu antes, Levi. Já tivemos dois candidatos em um

mesmo ano, mas mais do que isso...

— Vamos ter muito trabalho desta vez, Olivier... Volto para Aix-en-

Provence ainda hoje para preparar os testes.

— Apenas mais um detalhe: se Gilles Sartre não teve tempo de apagar

da memória o nome dos candidatos, os anakins podem estar um passo à

nossa frente.

— Você acredita que isso é possível? Gilles não deixaria os escolhidos

em uma situação complicada antes mesmo da decisão de quem vai ser o

próximo Eleito.

— Gilles morreu de uma forma drástica, Levi. Se ele não tomou as

medidas de segurança habituais, o nosso problema pode ser ainda maior do

que estamos pensando. Por isso me encontrei ontem à noite com Yves e pedi

que ele providenciasse uma reunião de urgência com os templários que

continuam em atividade para que a proteção dos alunos de Sartre seja

Page 28: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

providenciada. O encontro está previsto para esta madrugada, na base de

Silvacane, na Provença.

— Estava justamente me perguntando quando iríamos cumprimentá-

lo.

— Não vamos, Levi. Ele veio apoiar uma amiga, não seria conveniente

nos apresentarmos agora...

— Entendo o seu cuidado. Os templários vão verificar se a "Gruta

Santa" continua em segurança?

— Estamos decidindo como vamos resolver esse problema. Você sabe

que não podemos ir até lá e muito menos enviar qualquer um dos nossos

homens.

— Mas estamos correndo um risco muito grande...

— O mesmo contra o qual lutamos há milhares de anos — responde

Olivier com um olhar preocupado.

— A gruta pode estar em perigo...

— E está, mas agora vamos nos concentrar, o cortejo terminou e a

cerimônia vai começar.

Page 29: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 3

Abadia de Silvacane, na Provença

— Templários —

Page 30: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

A secular porta em madeira reclama por estar sendo incomodada a

uma hora tardia da madrugada e se abre com dificuldade para deixar passar

os primeiros cavaleiros do Templo. Assim que entram na nave da velha

abadia, que depois de restaurada se tornou uma atração para os turistas que

descobrem a Provença e um palco para concertos de música clássica, os

homens se despem das roupas ordinárias com as quais estão habituados a ir

ao trabalho, ao cinema, ao restaurante e vestem as malhas, os acessórios e a

capa branca da Ordem. Apenas um detalhe indica que esses templários são

diferentes: no lugar da tradicional e conhecida cruz vermelha, uma árvore

frondosa de aparência milenar bordada em fios prata e carmim lembra as

veias e artérias de um coração. Enquanto alguns se armam com espadas

excepcionais, na família há gerações, outros preparam um altar com incensos

e velas. Em meia hora quase todos os templários ainda em atividade estão

reunidos em Silvacane.

Apenas dois não haviam chegado.

— O doutor Alain e Joseph estão demorando. Você tentou entrar em

contato Yves? — pergunta Taven, uma mulher com cerca de 50 anos.

Magra, atlética, com expressivos olhos castanhos e cabelos de um ruivo

intenso além de ser exímia conhecedora das regras da Ordem e de como usar

uma espada, Taven era uma excelente amazona e uma expert em livros raros

medievais que ela tratava carinhosamente como se fossem seus filhos no

departamento que comandava na biblioteca Méjanes, de Aix-en-Provence.

— Os telefones estão na caixa postal. Deixei uma mensagem.

— Alain costuma atrasar, esse pequeno pecado do nosso amigo virou

folclore, mas Joseph é pontualíssimo. Ele gosta de brincar com a lenda que

gira em torno dele em Paris, de que quando era repórter, sempre chegava

antes do fato. E agora que estava aposentado "não iria contra o que falavam

dele". Se eles saíram de Aix-en-Provence juntos, já deveriam estar aqui —

afirma Taven acendendo mais uma vela.

Page 31: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Isso é verdade. Em todos esses anos de Ordem Joseph nunca chegou

atrasado a nenhuma das nossa reuniões. Acho que vou dar uma volta, talvez

os nossos companheiros estejam com problemas...

— Posso preparar os cavalos — propõe um rapaz com mais de 1,90m

que entra na igreja.

Apesar do rosto juvenil ter pouco mais de vinte anos, os olhos

amendoados e iluminados por um azul-celeste mostram que a aparência

inofensiva é tão ou mais perigosa do que as espadas que estão nas bainhas.

Fabius nasceu na Inglaterra, mas fala francês, alemão, italiano, espanhol,

chinês e russo sem nenhum sotaque. A habilidade para línguas só era menor

do que o talento para armas. Espadas, adagas, pistolas automáticas ou rifles

se tornavam uma extensão dos seus membros como se fizessem parte do seu

corpo. Duas vantagens que aliadas à altura e à força física garantiram

excelentes notas durante a formação como policial e uma rápida promoção.

— Obrigado Fabius. Venha, vamos verificar se Alain e Joseph tiveram

algum problema no caminho.

— Não seria mais conveniente mudar de roupa?

— Você acha mesmo que corremos o risco de cruzar com alguém em

uma madrugada de outono pelos arredores de Silvacane, Fabius?

— Você tem razão, Yves, me desculpe...

— E se fosse o caso, bastaria dizer ao incauto turista que estamos

fazendo um exercício para alguma representação medieval — completa Yves,

rindo.

— Se os senhores cavaleiros não se incomodam, gostaria de ir com

vocês. Uma cavalgada a essa hora é sempre muito agradável.

— Tem certeza de que não prefere ficar? Está fazendo muito frio,

Taven — pondera Fabius.

Page 32: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Mais um bom argumento para cavalgar com essas roupas pesadas

em todos os sentidos — responde a grão-mestre templária sorrindo.

— Vai ser um prazer contar com a vossa companhia, madame grão-

mestre — completa Yves fazendo uma reverência divertida.

Yves se despede dos companheiros e se afasta da abadia com Fabius,

Taven e outros dois cavaleiros. Eles se dividem e cavalgam pela estrada

principal e atalhos de terra por mais de meia hora. Taven encontra o carro

onde Alain e Joseph aguardam a ajuda pacientemente e avisa os outros.

— Pensei que não iam chegar nunca...

— Um obrigado seria mais simpático, não acha Joseph?

— Desculpe-me Taven, mas não estaríamos nessa situação se esse

irresponsável tivesse feito a revisão do carro — responde Joseph, apontando

para o pneu furado.

— Eu fiz. Apenas esqueci de buscar o estepe no mecânico. E você não

carregou o celular... — responde Alain no mesmo tom.

— E você esqueceu o seu... — devolve Joseph.

— As crianças querem parar! Vamos trancar o carro, amanhã cuidamos

disso. Precisamos voltar para a reunião, se é que ainda vamos conseguir ouvir

alguma coisa. Estamos mais do que atrasados...

Joseph e Alain não escondem o embaraço e montam nas garupas de

Fabius e Yves sem dar uma palavra. Os templários retornam para a abadia a

galope, mas assim que atravessam o portão principal do monastério Yves

diminui o ritmo e pede aos colegas que façam o mesmo, desmontando sem

fazer barulho.

A grande porta da entrada da igreja está estranhamente entreaberta.

— Não estou gostando disso, Joseph. Acho melhor você e Alain

aguardarem aqui.

Page 33: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que quer dizer Yves? Os companheiros devem ter deixado a porta

aberta para o nosso grupo.

— Está vendo alguma luz no interior da abadia? — pergunta Taven a

Joseph.

— As velas não foram acesas?

— Como sempre fazemos antes de todas as reuniões, Joseph. Mas eu

também não estou vendo nenhuma delas iluminar o ambiente.

— Taven, aguarde aqui com Joseph e Alain, eles estão desarmados.

Vamos ver o que está acontecendo — conclui Yves olhando para Fabius e os

outros cavaleiros.

Yves tira a espada da bainha, os outros templários seguem o exemplo e

se aproximam do local. Antes de entrar, Yves faz um sinal e o grupo se

divide. Fabius e Yves passam pela porta principal e os dois companheiros se

afastam em direção de uma entrada lateral.

O grão-mestre empurra a porta da velha igreja e levanta

instintivamente a espada, pedindo que o jovem companheiro faça o mesmo. A

escuridão é quase absoluta. Um ou outro raio lunar se esgueira pelos vitrais

coloridos, quebrando a luz em partículas flutuantes e deixando a enorme

nave da igreja com um estranho halo prateado. O brilho oscila de acordo com

o movimento das nuvens, fazendo as sombras dos cavaleiros ganharem

formas e tamanhos sobrenaturais.

O altar e as velas estão destruídos e todos os templários haviam

desaparecido. O silêncio e um odor ácido deixam o ambiente ainda mais

estranho.

Ainda sem entender o que tinha acontecido, Yves se aproxima da

pequena porta que liga a igreja aos alojamentos dos antigos monges que

habitavam o local. Ele encontra os dois templários que tinham entrado pela

lateral desarmados e sem consciência desaparecendo sob uma densa espiral.

Page 34: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

O grão-mestre usa a espada, mas não tem tempo de ajudar os colegas e muito

menos de se afastar do local. Yves também é envolvido por gritos, sussurros e

dores, até que a espada de Fabius dissipa o que parecia ser uma nuvem de

fumaça escura. O jovem pega Yves pelo braço e o leva para fora do

alojamento saltando os degraus, enquanto usa a espada para manter a espiral

afastada.

— O que são essas coisas, Yves? — pergunta Fabius usando todos os

golpes que conhece contra algo que não podia cortar.

— São os anakins, os espectros dos anjos rebeldes. Conversamos sobre

eles — responde Yves, recuperando a espada para dar cobertura a Fabius.

— Não sabia que eles poderiam nos atacar desse jeito. Pensei que os

templários fossem imunes a eles — responde o jovem, se jogando contra o

solo em mais uma tentativa de se afastar da nuvem que se desfaz a cada golpe

de espada para se reagrupar ainda maior e mais forte em seguida.

— Vamos nos aproximar da porta, Fabius. Temos que sair daqui.

Ainda não entendo como eles conseguiram nos atingir...

— Eles a fecharam de novo e vai ser impossível arrombá-la. Vamos

tentar sair pela porta lateral.

Fabius corre para o lugar onde funcionava a sala de jantar do

monastério e investe a espada contra a porta. Ela também havia sido fechada

logo depois que os primeiros cavaleiros entraram no prédio.

A espiral volta a envolvê-lo e o arremessa contra um dos muros. Yves

vem ajudá-lo e juntos eles se lançam violentamente contra a porta. Depois de

algumas tentativas e com a aproximação da nuvem de espectros, a espada de

Fabius brilha de uma forma extraordinária e as placas de madeira não

resistem à força do golpe se partindo em pedaços. Yves e Fabius correm e

montam o mais rápido que podem, levando Joseph e Alain nas garupas.

Page 35: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Por que demoraram tanto? Precisei ameaçar Alain e Joseph com a

minha espada para impedi-los de entrarem. O que aconteceu?

— Ainda não sabemos Taven, mas se quisermos descobrir vamos ter

que sair daqui agora — grita Yves se lançando em um galope alucinado.

Taven e os outros cavaleiros continuam brandindo as espadas em vãs

tentativas de afastar a nuvem espectral que tenta envolvê-los em um túnel de

visões criadas pelo medo. Em uma dessas tentativas, a arma de Fabius volta a

brilhar intensamente e com um golpe dispersa os anakins. Os templários

continuam o galope por alguns quilômetros até se certificarem de que não

estão mais em perigo e se refugiam em uma ruína próxima à rocha que

margeava a estrada.

— Todos desapareceram. Não sobrou ninguém. Ainda não entendemos

o que se passou dentro da abadia e muito menos porque conseguimos escapar

— tenta explicar Yves descendo da montaria e olhando com curiosidade para

Fabius.

— O brilho da sua espada, Fabius... Você tem ideia do que aconteceu?

— pergunta Taven ao jovem visivelmente desorientado.

— Isso não é o mais importante agora, Taven. O que precisamos saber

é como os anakins conseguiram nos atacar e nos vencer dessa maneira —

replica Joseph.

— Nunca ouvi falar de nada semelhante em anos de Ordem... — diz

Alain desmontando do cavalo.

— Essa reunião tinha um objetivo bem preciso, Alain: informar que o

professor Gilles Sartre foi assassinado — responde Yves ao mesmo tempo que

envia uma mensagem para Olivier pedindo orientações.

— O Eleito... Mas como?

— Os anakins — responde Yves.

Page 36: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que ele guardava está a salvo? — questiona Joseph sem esconder

a preocupação.

— Não, Joseph, por isso fomos convocados. Os sagrados contavam

com a nossa ajuda para proteger os alunos de Sartre até que os canditatos que

vão fazer os testes para o próximo Eleito fossem selecionados. Mas agora

temos que descobrir o que houve com os nossos companheiros e trazê-los de

volta. Esperem... Olivier me respondeu. Ele nos encontra daqui a três horas no

canteiro das rosas do parque Borély, em Marselha. Vamos aproveitar para

descansar um pouco. Depois do que vivemos hoje, o sono se tornou mais do

que necessário.

— Taven, você pode ir para casa, nós precisamos retornar à abadia

para recuperar o transporte dos animais e os cavalos que ficaram no

monumento.

— Vocês têm certeza de que é uma boa ideia? — questiona Taven

voltando à sua sela.

— Não podemos deixar os animais na abadia, Taven — responde

Joseph.

— Nesse caso, obrigada. Nos vemos daqui a pouco — responde Taven

se afastando do grupo a galope.

— En route.3

Antes que Yves termine a frase os cavaleiros estão prontos. Eles saem

da ruína e avançam velozmente pelas estradas estreitas e sinuosas até a

entrada sombria da abadia de Silvacane.

3 Em francês: “Pé na estrada.”

Page 37: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 4

Parque Borély, em Marselha

— Guerra dos Imortais —

As primeiras horas da manhã se mostram ainda mais frias com as

Page 38: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

rajadas do vento que sopra forte. O mistral4, velho rabujento conhecido dos

provençais, movimenta até as árvores maiores e os arbustos mais imponentes.

O outono muda a paisagem de toda a Provença e o parque Borély não é

exceção à regra. Diferentes tons de dourado se misturam, e no canteiro das

roseiras a maioria das plantas havia perdido as folhas se preparando para um

longo período de adormecimento. Embaixo do arco, por onde uma trepadeira

cresce preguiçosamente, cinco templários usando roupas normais aguardam

impacientes por Olivier Ares e Éliphas Levi.

Eles chegam ao local acompanhados de um terceiro homem. Vestindo

um pulôver sofisticado em cashmere e um terno também preto, ele anda com

firmeza e exala segurança. Um cachecol em tons de violeta rodeia o seu

pescoço displicentemente, luvas em pelica protegem as suas mãos e um

chapéu esconde uma parte do seu excepcional olhar cor de ametista. Na sua

presença ninguém fica indiferente. Assim que o veem, os cavaleiros fazem

uma reverência discreta, que é retribuída com elegância.

— Lucien Anancara. Não esperava vê-lo aqui. A situação deve ser mais

complicada do que imaginamos... — diz Yves, visivelmente surpreso.

— Lamento muito a partida do professor Gilles Sartre, Yves, sei o

quanto a sua amiga o apreciava.

— Vindo de você isso me parece surpreendente, Elohin5, sempre tão

frio e distante dos problemas humanos...

— Taven! Não seja indelicada...

— Alain, por favor, não se incomode com a reação de Taven. Aceitar a

companhia da morte não é uma das tarefas mais fáceis — responde Lucien

com compreensão antes de continuar. — Pela primeira vez perdemos um

Eleito sob a influência dos anakins, e o que ele guardava desapareceu.

4 Mistral: vento seco e frio dos quadrantes do norte que sopra no sul da França. Faz-

se sentir entre esta região, as Baleares e a Córsega.

5 Elohin: ser celeste, considerado o "braço-direito" de Deus.

Page 39: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que seria exatamente, Lucien? — pergunta Joseph.

— O conhecimento dos templários em relação ao que Gilles Sartre fazia

fora dos muros da faculdade é limitado. O professor Levi veio conosco para

lhes explicar por que o que aconteceu pode nos causar grandes problemas.

— O Eleito protege uma das fórmulas de magia mais poderosas já

criadas. Ela foi ditada pelo líder dos anakins durante a Guerra dos Imortais.

O silêncio que atravessa o espírito dos cinco cavaleiros só é

interrompido pelo barulho do vento que se intromete na conversa. Taven

cruza os braços na expectativa de se proteger do ar frio, que entra sem

permissão pelo seu casaco, e da informação que acaba de receber.

— Com todo o respeito, Lucien, do que está falando? Guerra dos

Imortais?

— Levi vai ajudá-los a entender melhor a situação, Taven. — responde

Lucien.

— É Levi quem vai substituir o professor Sartre? — pergunta Taven.

— Esse assunto não vai ser discutido hoje. No momento, precisamos

nos concentrar no resgate dos templários — conclui Lucien.

Alain se aproxima de Olivier e pergunta, preocupado:

— Você sabe o que aconteceu com os nossos irmãos?

— Não, Alain, e é por isso que estamos aqui. Em nenhum momento os

sagrados receberam a informação do que iria se passar na abadia — responde

Olivier.

— Isso é novo — estranha Taven.

— Depois que ganhamos um corpo adaptado à atmosfera terrestre, o

nosso poder de comunicação com os etéreos ficou limitado. Para a maioria

dos sagrados, ele se perdeu completamente. Por isso continuamos contando

Page 40: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

com a ajuda de jovens humanos, como Thérèse Lesavant, filha de Alain.

Desde muito cedo, ela fala com os anjos e nos mantêm informados de todas as

tentativas dos anakins de nos atacarem — explica Olivier.

— O que significa? Que quem matou Sartre e roubou o objeto está

invisível aos olhos dos sagrados?

— Exato, Joseph.

— Mas como?

— É o que pretendemos descobrir...

O mistral sopra de novo. Ainda mais forte e frio, o vento faz os

cavaleiros tremerem. Apenas Olivier e Lucien não mostram nenhum

desconforto. O frio não os incomoda, nada os abala.

— Os templários que desapareceram, estão... mortos? — pergunta

Fabius recomeçando a conversa.

— Não, apenas presos em algum lugar. Os anakins devem ter usado

um portal dimensional — responde Lucien percebendo a onda de alívio que

percorre o grupo.

— E como vamos resgatá-los?

— Precisamos descobrir para onde eles foram levados e apenas uma

pessoa pode nos ajudar com o ritual e a pergunta certa — responde Lucien.

— Kali Neaudolmen — afirma Olivier.

— Vocês não podem estar falando sério, Kali é uma maga — resmunga

Taven.

— Kali foi formada pessoalmente por um dos nossos e ele julgou que,

apesar de ser uma maga, ela poderia ser um dos nossos melhores reforços.

Nos últimos anos ela não deu nenhum motivo para que desconfiássemos da

sua integridade e por isso acho que devemos confiar no julgamento de quem

Page 41: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

a formou.

— Por que ele não faz o ritual? Por que temos que contar com essa

moça?

— Precisamos dele no resgate, Taven. Você pode me explicar por que

tanta desconfiança?

— Kali se mostrou muito mais poderosa do que pensávamos. E ela

formou e continua formando outros jovens tão habilidosos quanto ela. Quem

nos garante que ela não está criando o seu exército pessoal?

— Com qual objetivo? Assaltar um banco? Kali e os seus alunos estão

do nosso lado. Você precisa acreditar nisso, Taven — insiste Lucien.

— Continuo achando que sagrados e templários não deveriam andar

de mãos dadas com magas. Apesar de dizerem não fazer parte do grupo das

feiticeiras, elas usam as mesmas técnicas e rituais. Passar de uma Ordem a

outra é só uma questão de vontade...

Lucien olha Taven com ternura e se aproxima.

— Se é o rótulo que a perturba, chame Kali como quiser. As pessoas

são o que são, independentemente do que pensamos delas, Taven. Chamamos

Kali de "maga" porque ela tem um poder ligado aos sentimentos. É a maneira

como ela usa esse poder que vai lhe dar uma identidade. Até hoje ela escolheu

que ele seria usado para o bem. Só posso continuar esperando que ela pense

assim até a sua morte, porque apenas Kali pode decidir o que fazer com o

poder que recebeu. E essa liberdade também vale para sagrados e templários.

Não temos outra saída, Taven — responde Lucien, dirigindo-se em seguida a

Joseph. — Providencie tudo o que Kali vai precisar. O ritual deve ser feito

imediatamente. Alain, veja o que houve com Thérèse e avise às famílias que

logo elas vão ter notícias dos templários.

— Quem nos garante que eles vão voltar?

Lucien levanta a cabeça com um movimento sutil e encara Taven.

Page 42: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Desta vez ele impõe o seu olhar com intensidade, fazendo-a sentir a força de

uma descarga elétrica. Todas as células da grão-mestre são envolvidas e em

uma fração de segundo Taven sente uma dor lacinante se apoderar dos seus

músculos, ligamentos e ossos. Ela treme sem poder fazer absolutamente nada,

agora o seu corpo pertence a Lucien. Fabius tenta interceder, mas é impedido

por Olivier. Taven deixa cair uma lágrima e Lucien aceita o seu pedido de

desculpas. Quando os seus joelhos são atingidos pela energia, ela cai e a

sensação vai embora deixando um vazio e um enorme sentimento de

impotência.

— Eu garanto — responde Lucien pegando a mão de Taven para

ajudá-la a se levantar.

Ele ajeita o chapéu e se afasta sozinho e em silêncio.

Depois de um breve momento de tensão, Olivier Ares também se

despede. Antes de sair do parque, ele pede que Levi seja deixado em casa.

Detalhes acertados, o grupo de templários aceita o convite do velho professor

para um passeio em volta do lago.

— Você ainda não se acostumou com a presença de Lucien Anancara,

não é Taven? — pergunta Levi.

Havia minutos que Taven tentava se recompor, mas a contrariedade e

o medo continuavam cintilando em seus olhos.

— Algo nele me incomoda profundamente, mas não posso lhe precisar

o quê. Felizmente não estou ligada a Lucien, ou teria tido muito mais

dificuldade para aceitar essa vocação.

— A missão dos templários não é simples, Taven. Vocês receberam um

chamado para encontrar seres muito mais do que especiais, mas não tiveram

nenhuma informação além disso. O que vocês sabem realmente sobre os

sagrados? — o professor pergunta em voz baixa enquanto avançava com

passos lentos em direção do lago, com o apoio de uma velha bengala em

madeira.

Page 43: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que nos foi dito em sonho por um mensageiro, Levi: "Com uma

bênção, lhe confio a missão de encontrar os seres celestes presentes na Terra desde os

primeiros sopros de violência humana. Os que, como eu, foram chamados de etéreos,

ganharam um corpo e um coração para continuar a proteger a Criação dos anjos

expulsos do Círculo, os anakins. Ache, cuide e ajude os sagrados na construção do

Templo." — responde Joseph.

— E onde vocês entrariam nessa história?

— Acredito que o senhor deve saber melhor do que nós — responde

Fabius, antes de completar: — "Temos a honra de termos sido chamados para

dar cobertura à missão dos sagrados na prosaica rotina humana".

— Mas aparentemente não estamos cientes de muita coisa, não é Levi?

— O que sabem já é extremamente difícil de entender e aceitar, Yves.

Taven é um bom exemplo. Por isso foram poupados de uma boa parte dos

acontecimentos e vocês teriam continuado assim se a reunião em Silvacane

não tivesse sido desastrosa. Para ajudar no resgate, vocês precisam estar

melhor preparados. O que vou lhes contar agora vai além de qualquer

situação que possam ter imaginado um dia, mas não esperem que o véu de

todos os segredos seja levantado agora. Não tenho autorização para isso. — o

professor disse olhando para Fabius de um jeito discreto e cúmplice,

enquanto se apoiava no jovem antes de prosseguir a conversa.

— Venham vamos continuar a caminhada por esse lado do parque,

parece menos movimentado — pede Levi, indicando o caminho com a

bengala.

Taven segue por último, como se estivesse em dúvida se queria ou não

ouvir o que o professor iria contar.

Afastando-se das trilhas mais frequentadas, o grupo atravessa uma

pequena ponte curva e se instala em uma ilha protegida por uma densa

vegetação. Fabius faz uma rápida averiguação e, depois de constatar que

estão sozinhos, o templário faz um sinal para o professor. Levi tira um

Page 44: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

saquinho de veludo de dentro do bolso, o abre e coloca uma pedra preta

redonda e extremamente polida no interior do centro da meia-lua formada

pelos cavaleiros.

— A magnetita vai criar uma barreira de proteção, impedindo que a

nossa conversa seja percebida por curiosos desta e de outras dimensões.

— Que pedra é essa, professor?

— Esta é a pedra-ímã mais magnética de todos os minerais do planeta,

Fabius. Normalmente usada na fabricação de bússolas, ela é conhecida pela

propriedade de estabelecer campos magnéticos. Ganhei este presente de um

amigo alquimista, que vocês vão conhecer em breve. Ele multiplicou a energia

da pedra depois de um processo de transformação e hoje ela funciona como

uma eficiente proteção, que bloqueia vibrações negativas. Apenas mais um

conselho: tudo o que for dito e ouvido deve ficar aqui. Preparados? — Sua

pergunta foi seguida de uma frase em latim e de um brilho suave que

emanava da magnetita. O cintilar da pedra aumenta gradativamente, se

expandindo e cobrindo cada um dos cavaleiros até que a ilha inteira esteja sob

o véu que os deixa invisíveis para humanos e anakins. Assim que o manto da

magnetita se instala, Levi começa a narrativa de uma história que não consta

em nenhum livro ou pergaminho.

— No começo de tudo, o centro do mundo lembrava uma ilha como

essa e as civilizações que dividiam a região eram tão diferentes quanto as

paisagens que ocupavam. Muitas delas haviam alcançado um nível de

desenvolvimento que só encontrou equivalentes séculos depois. Em Amara,

por exemplo, os habitantes dominavam a ciência e cultivavam o espírito em

vidas extremamente longas, muitos chegando a mais de oitocentos anos, o

suficiente para se aventurarem por águas e terras desconhecidas. Mas

algumas dessas viagens foram feitas apenas mentalmente por alguns que

aprenderam a ler a linguagem das estrelas, das plantas e dos animais.

— Professor?

Page 45: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Sim, Fabius?

— Homens com mais de oitocentos anos?! Isso não é um pouco...

exagerado? — pergunta timidamente o cadete dos templários, segurando o

riso.

— Você conhece o Gênesis? — pergunta Levi.

— O primeiro livro da Bíblia — responde Taven, sem esconder que não

aprova a presença do cadete na reunião. Para ela, Fabius era jovem e

perigosamente inexperiente, apesar de ser um policial.

— Os primeiros anciãos, descendentes de Adão, viveram séculos de

acordo com as Escrituras. Set, por exemplo, morreu com novecentos e doze

anos e Matusalém tinha novecentos e sessenta e nove anos quando deixou

este mundo. No idioma local, que originou muitas outras línguas, dentre elas

o sânscrito, Amara significava “imortal”. Posso continuar?

Fabius acena positivamente com a cabeça e o grupo volta a se

concentrar na narrativa de Levi.

— Vizinha à Amara, Akenothia se equilibrava em cima de vastas

montanhas, onde o frio e o gelo levaram a população a desenvolver outros

talentos. Os dons foram sendo aperfeiçoados com o tempo e usados por anos,

em absoluta harmonia, até que a ambição de um deles ultrapassou os limites

do bom-senso e das regras impostas e exigidas pelos sábios da comunidade.

Eknothep tinha menos de quarenta anos quando foi escolhido sumo-

sacerdote de Akenothia e por mais de três décadas ele se dedicou com

devoção ao que considerava a maior evolução mental possível: entrar em

contato com o mundo espiritual. Eknothep se aproximou dos anakins, anjos

condenados a viver como espectros em uma tortura permamente na Terra, e

eles fizeram um acordo. O resultado foi uma disputa sangrenta, que durou

meses. Quando a guerra saiu do controle, a Criação foi ameaçada e os etéreos

foram convocados para uma ação que não tinha nada a ver com as habituais e

rotineiras sugestões, ideias, inspirações e mensagens que transmitiam aos

Page 46: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

humanos por intermédio de sonhos e visões em momentos esporádicos.

Anjos, arcanjos, possessões, virtudes e todas as outras hierarquias se

apresentaram. Eles conheciam o inimigo melhor do que qualquer homem, e

as armas necessárias para vencê-lo, mas para isso precisavam de um

invólucro que permitisse que um ser celeste sobrevivesse na atmosfera

terrestre, mortal para um anjo. E isso foi feito.

— "Um portal entre o mundo terreno e a dimensão celeste foi aberto em um

local que ainda não havia sido tocado por pés humanos e na montanha invertida,

protegida por uma floresta fechada, fria, eterna e inacessível, foram criados os corpos

capazes de receber as poderosas e imortais almas celestes." — relata Taven

lembrando-se do sonho que tivera com um anjo apresentando-a a um

sagrado.

— Obrigado, Taven. Armados e aos milhares eles invadiram Akenothia

e a vizinha Amara. Homens se uniram aos sagrados se tornando os primeiros

templários, e muitas foram as perdas entre os soldados manipulados pelos

anakins. A vitória era uma questão de semanas quando o líder da rebelião

cometeu a última e a pior das transgressões. Formulando as palavras de

poder que aprendeu quando era um Elohin, ele usou Eknothep e o

Encantamento das Revelações foi pronunciado. A catástrofe se abateu sobre a

ilha, fazendo com que akenothians, amarianos e todos os outros povos da

região fossem engolidos por um portal sob a força de um oceano furioso. Foi a

corrupção, e não um cataclismo natural, o responsável pelo naufrágio dessa

primeira civilização. Os sagrados vieram à Terra para salvá-la, mas

infelizmente foi o nosso inimigo quem saiu vitorioso dessa batalha e ele

continua à espreita, apenas esperando uma oportunidade para tentar de novo.

— Por que tem tanta certeza disso, Levi?

— Porque agora ele sabe o que precisa fazer para não cometer os

mesmos erros. Recuperar o objeto que estava em posse de Gilles Sartre foi

apenas uma etapa do plano, Alain. Não sabemos qual é o interesse nos

templários, talvez impedi-los de proteger os canditatos a Eleito, mas também

Page 47: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

não temos a menor ideia de onde eles estão e do que vocês vão encontrar por

lá, mas precisávamos prepará-los para o pior: resistir às tentações dos

anakins. Vocês vão precisar ser fortes e acima de tudo devem obedecer

cegamente as ordens de Lucien. Uma tolice pode lhes custar muito caro.

— O que diz o Encantamento das Revelações? — pergunta Taven.

— Vocês sabem o que precisam saber no momento. Menos não seria

suficiente. Mais poderia confundi-los — responde Levi.

O professor disse mais algumas frases incompreensíveis e guarda a

magnetita dentro do saquinho de veludo.

— Não percamos mais tempo — ordena o professor, dirigindo-se à

saída do parque.

— Eu o levo para casa, professor.

— Obrigado, Fabius.

Os templários se despedem e se dispersam. Ao chegarem no carro,

Levi cumprimenta Fabius pela cena do parque.

— Não sabia que você levava jeito para ator. Fiquei impressionado com

a sua atuação. Realmente uma apresentação convincente. Ninguém percebeu

que você conhece melhor do que ninguém a história que estava contando.

Fabius olha-o com um certo incômodo.

— Por que temos que manter esse segredo? Pensei que os meus

companheiros pudessem finalmente saber a verdade a meu respeito e do que

estava realmente em jogo durante a Guerra dos Imortais.

— Estamos andando em areia movediça. Não sabemos em quem

podemos confiar. Os anakins conseguiram um fato extradordinário matando

Gilles, e ainda não entendemos o que houve com os cavaleiros. Normalmente

os espectros não podem se aproximar de homens de valor. Para nos ajudar a

descobrir o que aconteceu, você precisa continuar sendo quem sempre foi: um

Page 48: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

templário e a Guerra dos Imortais um segredo perdido no tempo, nada além

disso.

Page 49: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 5

Abadia de Silvacane

— Ritual —

— O que está querendo é impossível!

— Não para você, Kali.

Page 50: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que está me pedindo é uma afronta e está completamente fora de

cogitação, Joseph. Fiz um acordo de honra de nunca tocar em livros ou objetos

dedicados à magia negra. Você sabe disso.

Kali continua a andar em círculos em volta da enorme mesa retangular

em pinho, instalada perto de uma janela, esperando que a decisão a ilumine

tão facilmente quanto um dos raios de sol que atravessam o vidro.

Há mais de uma hora ela discute com Joseph a necessidade do ritual

que pode mostrar o caminho para encontrar os cavaleiros, mas a jovem

continua reticente a todos os argumentos do grão-mestre templário.

Nesse momento, um homem negro e atlético, com uma bem cortada

barba de dois dias e vestido com uma elegância despojada, entra na biblioteca

depois de dar algumas batidas leves na porta.

— Você tomou a sua decisão Kali?

— Vou deixá-los à vontade — diz Joseph saindo da sala.

— Marc Yersínia. Tentava explicar a Joseph por que não posso lidar

com o mal. Prometi isso a você, a quem devo muita coisa, inclusive a minha

vida. Você me recebeu sem fazer questionamentos, conseguiu convencer os

membros da Ordem das Magas a me aceitarem e me ensinou a usar o meu

dom. Nunca um sagrado havia formado uma maga antes. E graças a você

pude me tornar mestre para ajudar outras jovens como eu. Mas, apesar de ter

me dado um nome, ter criado um passado convincente e me ajudado no

presente, apenas os sagrados sabem em quais circunstâncias você me

encontrou. Participar de uma cerimônia de magia negra pode abrir um

caminho perigoso e sem volta. A minha resposta é não — afirma Kali com

segurança.

— O que estamos lhe pedindo vai salvar a vida de nossos homens e

quanto mais tempo passamos tentando saber se podemos ou não ajudá-los,

mais difícil vai ser esse resgate — argumenta Marc.

Page 51: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Ele se aproxima e pega a mão da jovem com carinho.

— Apesar de conhecer e entender as suas considerações, tenho certeza

de que você tem toda a capacidade para conseguir a resposta que

procuramos.

— Poderíamos tentar outra cerimônia, Marc. A magia branca também

nos auxilia a encontrar portais dimensionais.

— Dificilmente ela nos ajudaria a entrar em contato com os anakins.

Foram eles que raptaram os cavaleiros.

— Estou com medo, Marc.

— Kali, você foi treinada para que fosse capaz de lidar com qualquer

anakin, inclusive com os redutáveis "72"6. E se isso não é suficiente para

tranquilizá-la, confie no seu discernimento. Você fez uma escolha e nada pode

lhe afastar do seu caminho, a não ser você mesma — responde Marc com

segurança, fazendo os olhos castanhos da maga brilharem com intensidade.

— Mas se os anakins tiveram esse trabalho para levar os templários

para longe, por que nos mostrariam o caminho até eles?

— Também acho que estamos deixando passar algo, mas no momento

a prioridade é salvar os templários, independente de saber qual é a

verdadeira intenção dos anakins com esse rapto em massa. Sem saber qual

portal foi usado, vai ser impossível encontrá-los e você sabe o que acontece

quando humanos atravessam portais sem uma preparação para isso...

— Eu sei, Marc. E se não encontrar a resposta correta?

— Vamos perdê-los.

— Temos quanto tempo?

6 Os "72" são o número relativo aos demônios citados no livro Lemegeton ou a Chave de Salomão.

Page 52: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Se usarmos como base a hora para a qual estava marcada a reunião

em Silvacane, uma e meia da manhã, temos vinte e quatro horas a partir desse

horário.

Kali olha para o relógio. Ele indica onze horas. A jovem se afasta da

mesa e vai até uma poltrona onde está uma elegante bolsa vintage. Kali só se

veste com roupas e acessórios dos anos quarenta e cinquenta encontrados em

brechós. O que combina excepcionalmente bem com o corte e o tom vermelho-

cereja dos cabelos, a maquiagem com delineador e os dois lacinhos tatuados

nos tornozelos que são o "acabamento" de uma longa e delicada linha

desenhada ao longo das pernas dando a impressão que ela usava uma meia

transparente em seda permanentemente. Ela a abre e verifica com cuidado o

calendário lunar, que tem um lugar garantido entre os seus objetos pessoais

desde que Marc a encontrou quando ainda era uma adolescente com cerca de

dezessete anos. Uma idade que Marc e muito menos Kali poderia afirmar com

certeza.

— Estamos na lua nova, o que favorece os rituais de magia negra.

— Talvez por isso os anakins não tenham tido tanta dificuldade

ontem…

— Provavelmente, Marc, mas para ter certeza devo voltar à abadia.

— Vou pedir que Fabius leve você e Joseph, não seria prudente irem

sozinhos. Yves foi ajudar Alain a recuperar o carro. Vai precisar de algo em

especial?

— Tenho o necessário no meu quarto e o mais importante aqui comigo,

obrigada Marc — responde a jovem apontando para o coração.

***

Page 53: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Em pouco mais de uma hora Kali, Fabius e Joseph chegam à Silvacane.

Durante a caminhada, entre o estacionamento e a bilheteria, Kali admira as

formas do monumento histórico, declarado bem nacional durante a

revolução. Situada no território de La Roque d’Anthéron, entre o Luberon e a

margem esquerda do rio Durance, a abadia foi construída em uma zona

rochosa no meio de um manguezal. Com a autorização da família des Baux e

os conhecimentos necessários em drenagem e agricultura, monges vindos da

abadia de Morimond se instalaram no local em 1144.

Fabius e Joseph ajeitam as mochilas que carregam e entram na loja.

Bem organizada, ela coloca à disposição dos turistas e apaixonados pela Idade

Média as mais variadas possibilidades de presentes, desde livros até outros

produtos ligados à história do lugar. O grupo paga as entradas e se afasta do

público. Kali vai até uma árvore solitária e começa a trabalhar.

— Uma pena estarmos no outono. Ela poderia nos ser muito útil se não

estivesse adormecendo. Os seus sentidos não estão mais em alerta há um bom

tempo — comenta Kali observando a árvore com um ar pensativo.

Ela volta a se concentrar e abre a bolsa, de onde tira um rolo em veludo

preto amarrado com tiras em couro, onde brilham pequenos cristais. Kali

desata os nós e desenrola a peça, mostrando os objetos em seu interior presos

por elásticos: um conjunto antigo com espelho, pente e escova em

madrepérola, uma pequena ampulheta em cristal, uma bússola, uma colher

de pau, uma longa corrente com um pingente em forma de estrela, colares

com pedras coloridas, uma varinha em madeira talhada à mão, alguns

saquinhos feitos com tecidos diferentes, uma chave enferrujada com cerca de

dez centímetros de comprimento, uma pequena adaga curva, uma forquilha e

o athame, uma faca com a lâmina curta afiada dos dois lados e cabo em ônix.

— Este é um Roco, Fabius, Rolo de Objetos Consagrados, que toda

maga ganha no começo da formação e que é completado aos poucos de

acordo com a sua evolução e os poderes que desenvolve.

Page 54: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Você deve estar brincando…Vamos obter respostas impossíveis e

lutar contra demônios com… isso? — pergunta Fabius, perplexo.

— Não é a colher que faz o bolo delicioso, Fabius, mas a cozinheira que

a segura. Podemos dizer o mesmo das magas, por isso não menospreze o que

está vendo. Você não tem a menor ideia do que esses objetos simples e

aparentemente inofensivos podem fazer.

— Obrigada, Joseph. Mais um segundo e ele teria sido apresentado a

eles sem a mesma cortesia — responde a maga retirando a forquilha do

elástico que o prendia.

Kali guarda o material na bolsa e entra na abadia pela porta principal.

Empunhando discretamente a forquilha, a maga visita todas as salas do

monastério. Ela observa as rosáceas esculpidas na pedra, os arcos em ogiva,

os vitrais coloridos, os pedaços do passado que jazem adormecidos em um

canto menos iluminado, até chegar ao lugar onde os monges se aqueciam.

Kali espera o casal de turistas sair e desce os degraus para entrar na sala. À

medida que ela se aproxima da lareira, a forquilha passa a vibrar emitindo

uma luz dourada.

— Os rebeldes entraram por aqui. Precisamos afastar o público para

que possa realizar a cerimônia. Alguma sugestão?

— Você não tem nenhum brinquedinho que resolva o problema? —

pergunta Fabius apontando para a bolsa.

— Um deles pode transformar a sua espada em canivete, quer

experimentar?

— Sem agressividade, Kali… Mas acho que essa pode ser uma boa

ideia — responde Fabius abraçando a mochila que sempre está com ele em

qualquer situação ou local. — Cinco minutos, Kali! Venha Joseph, vou

precisar de você.

Page 55: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Kali aguarda enquanto começa a preparar o ritual. Ela tira da bolsa o

Roco e coloca a corrente com o pingente em forma de estrela em torno do

pescoço.

Duas moças entram na sala, olham para Kali, fazem algum comentário

em chinês e pedem para tirar uma foto. A maga recusa gentilmente e elas

voltam a se concentrar no passeio.

Kali olha ansiosa para a entrada da porta, vendo que as pessoas

começam a ficar cada vez mais curiosas com o que ela estava fazendo na

frente da lareira. Faltava muito pouco para que alguém fizesse uma pergunta

quando o barulho de duas espadas se encontrando tira a atenção dos

estrangeiros.

— Um duelo de cavaleiros! Isso não estava previsto no programa —

diz uma moça dando uma rápida olhada em um panfleto.

— Deve ser alguma novidade... — responde outro turista se afastando

da lareira como todas as outras pessoas presentes no local.

Kali sorri diante da solução encontrada por Fabius e se apressa antes

que algum funcionário da abadia interrompa a cena. A maga abre o alfinete

que prendia um saquinho em seda ao rolo de objetos, tira do interior um

cristal vermelho, sopra sobre ele enquanto diz algumas palavras de poder e o

joga violentamente no chão. Com o impacto, a pedra se esfarela em um pó

muito fino. Uma nuvem avermelhada se levanta, se espalhando pelo piso e

em torno da lareira, revelando os traços do desenho, escondido por um ritual

mágico, e dá à Kali o nome do rebelde responsável pela ação contra os

templários. Segurando o amuleto que usava como pingente e a varinha em

madeira, ela diz uma nova conjuração e cria um redemoinho. A informação

gravada na pedra se apaga em segundos, desaparecendo junto com o vento.

Ela guarda os objetos no Roco e sai para procurar Fabius e Joseph, a essa

altura sendo gentilmente encaminhados à porta do monumento, sob uma

salva de palmas.

Page 56: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Os senhores entenderam! Da próxima vez, avisamos a polícia! —

grita o funcionário do monumento.

— O senhor nos desculpe mais uma vez… — responde Joseph,

tentando esconder o sorriso em uma expressão consternada assim que vê Kali

se aproximando.

Os cavaleiros se afastam rapidamente e em silêncio até o carro. Eles se

desfazem dos trajes inadequados enquanto Kali faz algumas anotações em

uma caderneta.

— Você tem a resposta que procuramos?

— Uma parte dela, Joseph. Sei quem foi o anakin que liderou o ataque

contra os cavaleiros: Berith, o duque infernal, que se materializa em um

soldado vestido de vermelho, montado sobre um cavalo da mesma cor,

usando uma coroa na cabeça.

— E é com ele que pretende… conversar?

— Berith não nos daria a informação que procuramos, Joseph. Apesar

de dar respostas sobre o passado, o presente e o futuro, além de transformar

qualquer metal em ouro, ele não é o mais indicado.

— Gostei dele... — responde Fabius rindo. — Tem certeza de que não é

mesmo a melhor opção? Se foi ele quem organizou o sequestro e ainda pode

dar tantas respostas, por que não quer conjurá-lo?

— Porque ele é um mentiroso, Fabius. Ninguém pode confiar nas

respostas de Berith. Tenho outro planos. Vocês conhecem algum local por

perto onde podemos nos esconder por um momento?

— A alguns minutos daqui, se não me engano, existe uma ruína —

responde Fabius lembrando-se de onde eles tinham feito uma parada de

emergência depois da fuga da abadia no dia anterior.

— Vamos procurar uma gruta. É mais seguro.

Page 57: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

***

Fabius liga o carro e acelera. Depois de conduzir por um bom

momento, ele estaciona no encostamento e o grupo desce o barranco com

certa dificuldade até chegar à entrada de uma caverna encravada na rocha.

Kali tira as sandálias e as coloca em um canto, junto com a bolsa. Ela

pega o Roco e, com um gesto brusco, coloca a mão no peito de Fabius para lhe

dar um alerta. O jovem começava a entrar na caverna quando foi

interrompido.

— Vou conjurar um anakin que pode nos ajudar. Phenex é um

demônio que ainda não foi completamente corrompido pelo mal e ainda

sonha com a possibilidade de retornar ao seu lugar na hierarquia celeste. Mas,

antes de responder a qualquer pergunta, ele vai tentar nos distrair cantando

músicas e declamando poemas. Deem-me as suas mãos.

A maga retira a varinha do rolo em veludo preto e faz com ela alguns

movimentos sobre as palmas das mãos de Fabius e Joseph, que acompanham

o ritual com curiosidade e uma certa desconfiança, sem se desfazerem das

suas espadas.

— Assim que Phenex aparecer, coloquem a mão sobre o rosto, isso vai

ajudá-los a não ouvir o encantamento.

— O que pode acontecer se prestarmos atenção ao que ele diz?

— Vão fazer parte do coral de Phenex até que alguém faça uma nova

cerimônia e peça ao demônio que quebre o feitiço, o que pode demorar

algumas décadas. Vocês vão poder abaixar a mão assim que ele assumir a

forma humana.

Page 58: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Como assim? Ele aparece com qual forma? — interroga Fabius

desfazendo o sorriso cínico que enfeitava o seu rosto havia alguns minutos.

A pergunta do templário fica sem resposta. Ele corre atrás de Kali e

Joseph, engolidos pela escuridão da gruta. É o pingente que a feiticeira usa na

longa corrente que o ajuda a localizá-los. A estrela brilha intensamente

mostrando o caminho e o lugar adequado para a realização da cerimônia. Kali

se ajoelha, abre novamente o Roco e usa o pó prateado de um saquinho em

algodão para fazer um círculo em torno dela. Com um pedaço de carvão ela

faz um estranho desenho com setas e curvas, enquanto repete palavras em

várias línguas diferentes. Joseph e Fabius se afastam e passam a observar a

maga a uma certa distância. Usando a varinha, ela escreve algumas letras e

números dentro do círculo antes de colocar a ampulheta e um colar com

cristais alaranjados no centro e repetir inúmeras vezes o mesmo nome.

— Phenex, Phenex, Phenex…

Kali continua dizendo o nome com a mesma intensidade e ritmo

indefinidamente por mais de uma hora, até que ela sente uma mudança

brusca na temperatura. O desenho aparece com todos os detalhes em um

branco brilhante e uma melodia doce e contínua ressoa pelas paredes e

estalagmites da caverna.

— Quem é você e por que está me chamando?

A maga se vira lentamente colocando a varinha sobre o rosto. O

demônio se encontra a alguns passos diante dela e se apresenta exatamente

como Marc havia descrito durante as suas aulas: uma grande ave alaranjada,

praticamente do tamanho de um homem adulto, com a cauda e as asas

flamejantes em um fogo azulado.

— Sou uma maga e preciso que me dê uma resposta.

— Por que lhe daria algo? Não a conheço — responde o demônio com

agressividade.

Page 59: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Disseram-me que você gosta de poemas — intervém Kali tentando

uma aproximação amigável.

— Se quiser, posso declamar algum...

— Seria maravilhoso, Phenex, mas infelimente não temos muito tempo

— responde olhando rapidamente para Fabius e Joseph para verificar se eles

tinham lhe obedecido.

— Eles não se parecem com feiticeiros. Quem são?

— Templários, preocupados com o que aconteceu aos companheiros.

Um grupo com mais de cem homens desapareceu da abadia ontem. Você

saberia nos dizer para onde Berith os teria levado?

— Por que lhe daria essa informação? — responde a ave virando-se na

direção dos cavaleiros, que continuam com a mão sobre o rosto.

Kali se coloca entre a ave e os templários. Fabius começa a baixar a mão

em direção à espada quando vê que Kali faz um sinal negativo com a cabeça.

Ele cobre novamente o rosto e aguarda.

— Por que não assume a sua forma humana? Ficaríamos mais à

vontade para conversar… Não quer ver o presente que lhe trouxe?

Kali faz a sugestão com um belo sorriso ao mesmo tempo que lança um

olhar para os cavaleiros. Fabius e Joseph estão cada vez mais assustados com

a proximidade do demônio. Quando Kali volta a encarar Phenex, ele usa a

aparência de um rapaz muito jovem com longos cabelos ruivos, vestindo

roupas claras e leves.

— Obrigada, Phenex. Não tive muito tempo para me preparar para o

nosso encontro e só posso lhe oferecer isso — diz Kali entregando ao rapaz

uma folha de papel.

Ele desdobra a folha com um olhar curioso e devora o poema com

avidez, agradecendo Kali com um sorriso.

Page 60: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— O que veio buscar aqui hoje?

— Precisamos recuperar os nossos homens, e sem saber para onde

Berith os levou isso não vai ser possível.

— Berith não vai gostar de saber que lhe indiquei o portal. Por que

faria isso?

— Você sonha em recuperar o seu lugar entre os etéreos, não éPhenex?

— Espero por isso há muito tempo. Começo a acreditar que esse

perdão não virá jamais…

— Se conseguirmos trazer os cavaleiros de volta, posso fazer uma

cerimônia de agradecimento. Você sabe o quanto esse tipo de ritual pode lhe

ajudar…

— Berith ficaria sabendo que fui eu quem lhe deu a informação e ele

pode me punir duramente… — responde Phenex andando de um lado para o

outro em dúvida sobre qual caminho seguir.

— De qualquer maneira, você já está sendo punido — insiste Kali.

Phenex olha a maga nos olhos e levanta uma barreira invisível entre ele

e Kali, onde três imagens se sucedem. Na primeira delas, aparecem

quilômetros de dunas de areia muito fina, que flutuam e se desfazem com a

força do vento, para dar lugar a uma região coberta por lagos, pântanos e

lodo em um gigantesco buraco. A terceira imagem mostra um retângulo

cortado por um traço vertical. A barreira desaparece abruptamente

mostrando o demônio em sua verdadeira aparência.

— Isso é o máximo que posso fazer por você — diz com uma voz

grave.

— Assim que recuperar os nossos homens, vou lhe dedicar a mais bela

cerimônia de agradecimento já realizada.

Page 61: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Usando novamente a aparência de uma ave, o anakin responde com

um leve movimento da cabeça, voltando a cantar com a voz melodiosa de

uma criança para desaparecer em seguida sob as ordens da maga.

— Vamos, temos muito trabalho pela frente — diz Kali antes de apagar

todos os vestígios da cerimônia com um movimento da varinha e velhas

palavas de poder.

Page 62: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 6

Mansão Les Anges

— Portal —

Page 63: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Durante o trajeto de volta para a mansão Les Anges, Kali se concentra

na lembrança das imagens mostradas pelo demônio e no que elas poderiam

significar, enquanto Joseph tenta encontrar alguma pista na internet.

— Alguma ideia? — questiona Fabius.

— A mesma que vocês: trata-se de um deserto. Mas qual? Com as

minhas descrições não consegui nada de muito encorajador. Mandei um e-

mail a Marc avisando que vamos precisar de reforço para encontrar a boa

informação — responde Joseph voltando a se concentrar na tela.

— Uma das imagens me diz alguma coisa… — diz Fabius chamando a

atenção de Kali.

— Qual delas?

— O buraco. Acho que vi algo parecido, mas não me lembro onde…

— Isso pode nos ajudar. Estamos chegando?

— Falta pouco — responde o jovem, acelerando.

Assim que atravessam o portão e estacionam o carro, Joseph, Fabius e

Kali correm para dentro da casa onde Marc, Yves e Alain os aguardam com

outras duas moças.

— Nina Ares! Que prazer vê-la aqui — diz Fabius sem disfarçar o

interesse pela jovem loira com mechas cor-de-rosa, expressivos olhos azuis e

piercings em cristais, vestida com roupas extremamente coloridas em uma

combinação extravagante que lembra um personagem de desenho animado.

— Thérèse Lesavant… também estou contente com a sua visita — acrescenta

Fabius com um sorriso enquanto olha para a pequena moça com longos,

encaracolados e brilhantes cabelos escuros e um rosto de uma delicadeza

ímpar onde todos os traços pareciam ter sido esculpidos por um artista

habilidoso. Mais impressionantes ainda, os olhos, grandes como esferas de

vidro em um azul profundo e límpido que refletiam a pureza da alma da

jovem em um olhar especial.

Page 64: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Claro, Fabius, claro… Mas não estamos aqui para tomar chá. O

tempo urge. Nina começou a procurar pelo local com as pistas que nos deram.

Ela verificou alguns livros desde que chegamos há vinte minutos e tocou em

vários objetos que pertencem aos templários raptados, mas não temos nada

de novo.

— Alguma novidade sobre as suas visões, Thérèse? Elas voltaram?

— Como disse ao meu pai, Kali, o que sinto e vejo hoje não tem nada a

ver com as minhas visões tradicionais. Quando recebo uma mensagem, ela

sempre é muito clara e, como você sabe, diz respeito ao que está acontecendo

no presente. Basta que pense na pessoa e o anjo da guarda dela me passa

todas as informações: onde está, o que está fazendo, com quem, etc. Mas,

quando me concentro nos templários, o que sinto é um enorme vazio. Agora,

se não se incomodam, gostaria de tentar de novo — pede Thérèse, segurando

a mão do pai e se levantando com o apoio da bengala branca para ir até a sala

vizinha.

— Vou ajudar Nina, Yves e Marc com a pesquisa. Se encontrarmos

alguma coisa, avisaremos — informa Alain.

— Continuem procurando, enquanto isso gostaria de tentar algo com a

ajuda de Fabius. Posso usar a sua fonte, Marc? — pergunta Kali.

— Você mora aqui há anos, Kali. A casa é sua — responde Marc

pegando um novo livro.

A maga sai, acompanhada de perto por Fabius, que não se conforma de

ter perdido uma excelente oportunidade de "fazer a corte".

— Não poderia ter feito essa cerimônia na sala, por acaso?

— Você vai ter outros momentos com Nina.

— A fonte fica para que lado mesmo? — pergunta Fabius.

Page 65: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Descemos pelo jardim francês, passamos pelo caramanchão coberto

com o jasmim-estrela e atravessamos o campo com as oliveiras. A fonte fica

em frente — responde Kali.

Kali se aproxima da fonte talhada na pedra decorada com três anjinhos

nus e rechonchudos. Ela se coloca em frente ao monumento e desenha

rapidamente no solo um círculo com um pentagrama. Depois de jogar novos

pós na água, ela tira o athame do Roco.

— Vai doer um pouquinho — diz a maga pegando a mão do templário

e a cortando com um movimento preciso antes que ele possa revidar.

— Eiii…

— Espere mais um minuto, estou quase terminando — diz Kali

segurando a mão de Fabius, enquanto mergulha o athame na água e repete

uma conjuração.

A água da fonte começa a borbulhar fazendo Fabius dar um passo para

trás.

— Fique calmo. Se concentre no que Phenex nos mostrou e tente se

lembrar onde viu algo parecido.

Kali volta a observar a água em movimento até perceber as primeiras

imagens. As lembranças de Fabius agora podem ser compartilhadas por

quem olhar a fonte. Confusas em um primeiro instante, elas logo ficam mais

nítidas e Kali identifica sem muita dificuldade as mais recentes: a luta contra

os rebeldes... Nina... a divertida simulação de combate contra Joseph... Nina...

o demônio... Nina. A maga usa o athame para criar um novo movimento na

água, fazendo outras cenas aparecerem. Desta vez, fragmentos de uma tela de

TV mostram as pirâmides e fotos de satélite de um retângulo muito

semelhante ao que eles viram na caverna. Um novo movimento e Kali vê uma

bola rolando.

— Fabius!

Page 66: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Desculpe, me desconcentrei… Podemos continuar?

— Não, quando isso acontece é porque temos a informação que

procuramos.

Kali atravessa o jardim com pressa e entra na sala saltando os degraus

da entrada para continuar subindo no mesmo ritmo até chegar à biblioteca.

— Conseguimos uma pista! — ela diz entusiasmada, abrindo a porta.

— Nós também! — responde Nina com um largo sorriso em direção a

Fabius, que entra logo em seguida.

— Esse deserto fica no Egito ou perto dele…

— Mais precisamente na Líbia e a grande depressão se chama…

— Qattara! — grita Fabius entusiasmado. — Vi um especial sobre os

sinkholes outro dia. Esses buracos, que aparecem do nada e podem engolir um

prédio inteiro, são impressionantes. O maior deles é o de Qattara, com

15.000Km, completamente inabitado.

— Não podia ter lembrado logo? Tínhamos ganhado tempo…

— Não vamos perder mais minutos preciosos com esse tipo de

discussão, Kali. Os nossos irmãos precisam retornar antes do ciclo de vinte e

quatro horas ser completado. E Thérèse continua sem obter nenhuma

mensagem do seu anjo da guarda. Precisamos agir e temos que fazer isso

agora. Prepare a cerimônia, vou avisar os outros. Partimos assim que o portal

estiver aberto — interfere Marc com autoridade.

— Nina, chame Thérèse — pede Kali. — Cavaleiros, vou precisar de

vocês. Imprimam uma imagem do local e vamos até o quarto amarelo, que

ainda está cheirando a tinta.

O grupo deixa a biblioteca guiado por Kali e desce um andar para

entrar em um dos amplos quartos da mansão, recentemente restaurado. Tudo

havia sido refeito de acordo com os desenhos originais da planta do século

Page 67: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

XVII: os detalhes em gesso no teto e nas paredes formando elegantes

molduras, a lareira em pedra e até o piso em hexágonos vermelhos de

cerâmica provençal de um período mais recente havia sido restaurado.

— Vamos usar a lareira para criar o portal, exatamente como fez Berith.

— Quem? — pergunta Nina.

— O demônio que levou os cavaleiros para Qattara — responde Fabius

com uma ponta de orgulho.

— Fabius, não corremos o risco de que ele reapareça, não? — pergunta

Nina demonstrando uma fragilidade estudada.

Kali abstrai-se da conversa entre os jovens e se concentra na cerimônia

desenhando um novo círculo no chão, desta vez com a imagem da depressão

do deserto libiano no interior. Sobre a foto ela traça uma estrela usando os pós

coloridos. Em seguida a maga desenha um pentagrama, onde espalha

palavras de poder e símbolos estranhos. Ela termina de preparar a cerimônia

colocando a velha chave enferrujada no centro da lareira.

— Para que o portal funcione, devo estar em transe e nesse estado fico

vulnerável. Nina, segure esse espelho e, caso algo dê errado, use-o em direção

à lareira.

— O que ele pode fazer, Kali?

— Impedir que os anakins entrem aqui. Thérèse, o seu poder de estar

em contato com os sagrados pode atravessar as dimensões. Avise Nina caso

ela precise usar o espelho, para que eu tenha tempo de fechar o portal.

— Com os nossos homens lá dentro?

— Se for preciso, Nina. Estamos prontos? — pergunta Lucien

Anancara.

Ele entra no quarto acompanhado de Olivier, Marc, Taven, Yves e

muitos outros homens e mulheres.

Page 68: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

— Podemos começar imediatamente — informa Kali.

— Alain, Fabius, Joseph e Taven, vocês vêm conosco. Yves, você fica

para dar cobertura às jovens — explica Olivier, encarregado da estratégia.

— Mas não vamos ter tempo de vestirmos a armadura — argumenta

Fabius.

— Não vai ser necessário — responde Lucien levantando a mão.

Nesse momento, um brilho tão intenso invade o quarto que força Nina

e os outros humanos a fecharem os olhos. No centro do círculo, Kali começa a

repetir a conjuração que faz a chave flutuar. No ritmo da encantação o objeto

passa a dar voltas em torno dele mesmo, cada vez mais rápido, fazendo surgir

uma abertura. Reabrindo os olhos, Nina tem tempo de ver os sagrados

usando armaduras feitas em um inusitado metal transparente e os cavaleiros

do Templo completamente armados desaparecerem na fenda aberta em

direção à Qattara.

Page 69: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Capítulo 7

Depressão de Qattara

— Redenção —

O ar quente e seco, carregado de finos grãos de areia, envolve os

templários em um corredor obscuro e sufocante. A dificuldade para respirar é

Page 70: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

a primeira encontrada pelos cavaleiros, que deixam de lado qualquer

tentativa de locomoção. As malhas e armas pesadas os impedem de fazer o

mínimo movimento sem correr o risco de afundar no lodo movediço ou de se

afogar nos lagos cobertos de sal.

A batalha contra os anakins na abadia de Silvacane parecia tão

longínqua que a maioria deles não se lembra como chegou naquele lugar

inóspito e muito menos o que tinha que fazer para sair dali. O sol parecia cada

vez mais perto, as léguas a percorrer ainda maiores e a situação

completamente fora de controle.

O impossível se fazia presente nas imagens distorcidas que os

cavaleiros começavam a ter das dunas e deles mesmos.

Ao longe, um som imperceptível ganha importância e aos poucos os

templários escutam vozes que falam de riquezas, glória e principalmente de

liberdade.

— Nós podemos tirá-los daqui…

— O que queremos em troca não é muito…

— Nos dizendo “não”, vão abraçar a morte…

Muitos deles reagem furiosamente contra as propostas tentando cortar

as vozes com as espadas ou usando o lodo sobre os elmos para não escutá-las.

Outros veem nelas a única opção. A fé separa os dois grupos e em questão de

horas uma nova querela explode.

A alguns quilômetros, uma brecha luminosa se abre devagar

permitindo que quatro sagrados invadam o céu de Qattara, cada um deles

carregando respectivamente Fabius, Alain, Joseph e Taven. Seguido de perto

por outros seres alados, o grupo não precisa de muito tempo para localizar os

cavaleiros. Os gritos e o som dos metais se chocando são suficentes para levar

os sagrados até o centro da depressão.

Page 71: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Vendo os inimigos nos próprios companheiros, os templários usam

todas as armas que têm na vã tentativa de obter o prometido retorno ao lar.

As vozes são influentes e falam cada vez mais alto. A maioria dos cavaleiros

não resiste e prefere escutá-las, outros continuam se batendo violentamente

para evitar a tentação. O resultado é uma cena devastadora, com homens

gravemente feridos afundando lentamente no lamaçal, esperando por uma

morte dolorosa.

E ela chega, mas não como eles esperam.

Os sagrados pousam e deixam Fabius, Joseph, Alain e Taven a uma

certa distância do conflito. Lucien é o maior deles, um gigante com mais de

dois metros e meio de altura. Ele se aproxima e ordena, sem dar espaço para

dúvidas.

— Fiquem aqui. Olivier, vai protegê-los.

— Nos proteger do quê? Precisamos ajudar os nossos irmãos!

— Não é hora para discussões, Fabius — responde o gigante com um

extraordinário brilho violeta no olhar, que se expande pelas costas se

transformando em longas asas.

O jovem fica exatamente onde está, sem mexer mais nenhum músculo.

Olivier se posiciona em frente ao grupo e levanta o escudo que carrega,

impedindo que as vozes cheguem até os templários.

O líder dos sagrados levanta voo e se aproxima do centro da batalha.

Com uma conjuração, ele cria um vazio entre os cavaleiros e pousa cravando

a espada decorada com ametistas no solo úmido e escorregadio. Uma

descarga poderosa parte da terra e sobe em direção dos templários,

atravessando-os como faria um raio e deixando-os inconscientes.

O silêncio depois da batalha é mais assustador que o barulho causado

por ela. Nem um grito, nem um suspiro, nem um pedido de ajuda, e os olhos

de Fabius se enchem de lágrimas.

Page 72: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Eles chegaram tarde demais.

Olivier evita que o jovem se precipite e o mantém sob o seu escudo.

Voltando a levantar voo, Lucien sobe até uma altura vertiginosa e lança

sobre os cavaleiros uma chuva de luz, que cai tocando as armaduras,

impregnando a pele e os corações dos templários. Quando todos são

atingidos pela graça, o líder dá um sinal e Olivier avisa aos outros que a hora

do resgate havia chegado.

No meio da desolação, os outros seres celestes se dividem para

encontrar todos os cavaleiros, muitos deles afundando cada vez mais no lodo.

Gritos, gemidos e pedidos de socorro se multiplicam. Marc e Alain separam

os homens feridos mais gravemente para que sejam levados primeiro. Usando

uma força sobrenatural, Lucien leva vários cavaleiros através do portal para

recuperar um outro grupo minutos depois.

Os outros sagrados, Joseph, Fabius e Taven recuperam os pedaços das

armaduras e as espadas espalhadas pelo campo de batalha. Uma delas não

pôde ser controlada e brilha de modo estranho no meio da poeira do deserto.

O golpe é certeiro, mas não atinge a perna de Joseph, protegida pelo escudo

de Olivier.

— Não acha que essa tolice já foi longe demais? — pergunta o ser

iluminado.

— Nunca vou desistir de recuperar o que é meu...

— Eu sei, por isso estamos aqui — responde Olivier olhando o que

resta do homem.

O templário é levantado no ar como uma criança e ao ver o rosto que o

encara com piedade sob o elmo transparente, ele chora. O cavaleiro se joga no

chão enlameado, se ajoelha e pede perdão. Uma mão feminina o ajuda a se

levantar e, com o apoio de Fabius, Joseph, Alain e Taven liderando os

pequenos grupos, ele e todos os outros templários atravessam o portal.

Page 73: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Um vento quente sopra, apagando os últimos vestígios da batalha, e o

sol se põe em um entardecer triste, testemunha de que uma marca

imperceptível de corrupção havia sido deixada sob as armaduras de alguns

cavaleiros e que não iria cicatrizar nunca.

Longe dali, um sorriso se desenha. O último detalhe tinha sido

preparado com habilidade e tudo estava pronto. Nenhum sagrado, anjo e

muito menos um humano, ninguém, nem mesmo o tempo poderia

interromper o que havia começado.

Page 74: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Parte I

Lua Nova

"No ano 710 de natividade do Senhor, no sexto dia de dezembro, à noite e

secretamente, sob o reino do piedoso Eudes, rei dos francos, no tempo da carnificina

causada pelos sarracenos, o corpo da amada e venerada santa Maria Madalena foi, por

medo que as relíquias caíssem nas mãos dos inimigos, transferido da sua tumba para

esta em mármore, depois que o corpo de Sidoine foi colocado em outro lugar, por que

assim ela estaria melhor escondida."

Pergaminho escrito em latim encontrado em 1279, durante a descoberta das relíquias

de Maria Madalena na Provence.

Page 75: SagradoS - A Aliança de Maria Madalena

Nos dias de hoje...