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Série Expedições — 1 VIAGEM AO SÃO FRANCISCO Regina Celeste de Almeida Souza Alcides dos Santos Caldas Universidade Salvador Unifacs Salvador 2008

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Série Expedições — 1

VIAGEM AO SÃO FRANCISCO

Regina Celeste de Almeida Souza Alcides dos Santos Caldas

Universidade Salvador — Unifacs

Salvador 2008

Edição de texto

Valdomiro Santana

Projeto gráfico

Da Vinci Computação Gráfica

Ilustrações

Maurice Debeauvais

Normalização bibliográfica

Gismália Marcelino Mendonça

Ficha catalográfica

2008Todos os direitos desta edição reservados à Universidade Salvador — Unifacs — PPDRU

Rua Dr. José Peroba, 251, Stiep - CEP 41770-235 - Salvador, BA Tel.: (71)3271-8150 | Fax: (71) 3273-9500 | e-mail: [email protected]

Souza, Regina Celeste de Almeida,Viagem ao São Francisco / Regina Celeste de Almeida Souza e

Alcides dos Santos Caldas – Salvador : Unifacs, 2009.64 p. : il. ; 21 cm. – (Série Expedições, 1)

ISBN 978-85-87325-11-2

1. São Francisco, Rio – Descrições e viagens. 2. Bahia – Descrições e viagens. I. Caldas, Alcides dos Santos. II. Título. III. Universidade Salvador – UNIFACS.

CDD: 918.142

S719

“Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda”.

GUIMARÃES ROSA

“Uma verdadeira viagem de descoberta não é a de pesquisar novas terras, mas de ter um novo olhar”.

MARCEL PROUST

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................... 5

AGRADECIMENTOS ............................................................................................ 6

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 7

ROTEIROS REALIZADOS

Roteiro 1: Salvador - Juazeiro - Petrolina: o início da jornada ........................ 14

Roteiro 2: Petrolina - Casa Nova - Sobradinho - Ilha do Rodeadouro: possibilidades de desenvolvimento econômico ............................... 24

Roteiro 3: Petrolina - Lagoa Grande - Vermelhos - Fazenda Garziera: Rota da Uva e do Vinho ...................................................................... 36

Roteiro 4: Petrolina - Paulo Afonso - Delmiro Gouveia: a energia que vem do Sertão .............................................................. 40

Roteiro 5: Paulo Afonso - Penedo: patrimônio cultural ................................... 46

Roteiro 6: Penedo - Salvador: o retorno ............................................................. 50

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 55

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 64

5

APRESENTAÇÃO

Esta viagem traduz as impressões obtidas com a “Expedição Juquiá: rumo ao Rio São Francisco”, acrescidas de algumas informações já publicadas.

Trata-se de expedição que teve por principal objetivo estabelecer um paralelo entre dois olhares sobre o Rio São Francisco: o do século XIX, através da leitura de Teodoro Sampaio e da expedição da qual ele fez parte e o do século XXI por meio da leitura dos pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regio-nal e Urbano da Unifacs em parceria com o Projeto B5 Biodiesel, os Companheiros das Américas Comitê Bahia-Pennsylvania e do Albright College (EUA).

Aprofundar-se nos problemas existentes na Bacia do Rio São Francisco é, sem dúvida, um grande desafio. Contudo, esta viagem de caráter eminentemente exploratório, com foco especial no trecho entre Juazeiro/Petrolina e Penedo, deu-nos esta vivência em tão curto prazo; percorremos aproximadamente 3000 km, mas o que foi registrado na mente e no coração está aí, indelével, para ser transformado em ações positivas.

Este livro abre a Série Expedições, a ser lançada através do convênio Unifacs / Albright / Companheiros das Américas Comitê Bahia-Pennsylvania, como resultado parcial das pesquisas realizadas no Vale do São Francisco.

Salvador, primavera de 2008

Os Autores

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AGRADECIMENTOSPela viabilização da viagem gostaríamos de agradecer ao Programa de Desen-

volvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador — Unifacs. Ao Projeto B5 Biodiesel, na pessoa do coordenador geral, Prof. M. Sc. Miguel Andrade Filho (Unifacs), do coordenador técnico, M. Sc. Carlos Vinícius Costa Massa (Petro-bras), do coordenador técnico Dr. Leandro H. Benvenutti (Ford), e do Eng. Sidnei Santos Barreto (Unifacs), bem como dos funcionários Anderson Santos Correia, An-tônio Silva Andrade, Jauro de Sousa Neves, Nelson Ferreira de Moraes Filho, Nilton Santos Rodrigues, Osvaldo Castro Filho e José Robson Santana de Luna, sem a ajuda dos quais seria impossível realizar este contato com a região.

À professora Glória Lanci, à mestre Terezinha de Fátima Perin e ao mestrando Su Sumo, aluno da Universidade de Santiago de Compostela, e os demais integrantes da Expedição Juquiá, pelas observações feitas à versão inicial.

À professora doutora Alba Regina Neves Ramos e à mestre Maria Cândida Mousinho, ex-aluna do PPDRU, que gentilmente leram o texto e contribuíram com muitas e valiosas sugestões.

À professora doutora Ester de Souza Costa, da Universidade Federal da Bahia, pelas críticas, à primeira versão deste livro, as quais nos fizeram refletir e esclarecer determinadas questões.

A Cláudio Rapold Souza, pelo seu cuidado com a programação visual e estética do livro.

À Patrícia Guerra, aluna da FIB e secretária do Comitê Bahia — Pennsylvania que di-gitou o texto, nos finais de semana, e fez as correções, tantas vezes quanto foram necessárias.

Ao editor Valdomiro Santana, pelas suas observações e modificações que bus-caram uma melhor apresentação do texto.

À professora mestre Denise Magalhães, da Universidade Federal da Bahia, pelas discussões sobre a cartografia do estudo como um todo e a Francisco Magalhães, pela exe-cução cuidadosa dos mapas.

Um agradecimento especial a Maurice Debeauvais, pela concepção da capa do livro e pelas ilustrações, feitas com muita sensibilidade.

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INTRODUÇÃOO estudo sobre o Rio São Francisco, que está sendo desevolvido pela Unifacs1 , pelo Albri-

ght College2 e pelo Programa Companheiros das Américas3 , prevê — além de uma abordagem científica da região — algumas ações que envolvem pesquisadores de diversas especialidades, po-dendo congregar todos aqueles que se sentirem motivados a trabalhar sobre o “Velho Chico”.

O Velho Chico é a expressão carinhosa com a qual muitos brasileiros chamam o Rio São Francisco, um dos mais importantes rios do Brasil, pela sua extensão: aproximadamente 2700 km, pela sua abrangência espacial, atravessando 503 municípios, dos quais 117 só no Estado da Bahia. Ele atravessa cinco Estados brasileiros: Minas Gerais, onde ficam as suas nascentes, na Serra da Canastra, continua seu percurso pela Bahia, limitando-a com Pernam-buco e Alagoas com Sergipe, onde desemboca no Oceano Atlântico. Sua bacia, que corres-ponde a 640 mil km2 (7,5% do território nacional), alcança também o Estado de Goiás e o Distrito Federal. Foi chamado no passado Rio da Unidade Nacional pelo seu papel histórico de ligação entre os diversos Estados permitindo uma maior penetração de atividades econô-micas pelo interior, desde o Ciclo da Mineração, quando abastecia de carne bovina toda essa população mineradora. Devido à grande quantidade de currais que aí foi instalada, o Rio São Francisco foi também chamado “Rio dos Currais”. Mas é sobretudo durante as guerras mun-diais, em especial na 2ª Guerra, quando a navegação de cabotagem ficou anulada, devido ao afundamento de navios brasileiros em nossas costas, que o Rio São Francisco, ao transportar passageiros e mercadorias, manteve a integridade nacional. Na sua longa trajetória atravessa três grandes e importantes biomas: o Cerrado, a Caatinga e a Mata Atlântica, sendo que a nos-sa pesquisa se concentrou na área da Caatinga, especificamente no trecho Juazeiro/Petrolina.

Na perspectiva de realizarmos quatro viagens de estudos à bacia do São Francisco, efetuamos uma primeira viagem exploratória, denominada Expedição Juquiá: Rumo ao Rio São Francisco. Ressalte-se que o nome “Juquiá”4 foi usado para relembrar a embarca-ção utilizada pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio na memorável expedição por este 1 Universidade Salvador (Unifacs).2 Instituição de ensino situada na Pennsylvania (EUA). Dentro do Programa Companheiros das Américas é

com o Estado da Pennsylvania que a Bahia mantém intercâmbio.3 Companheiros das Américas — Instituição sem fins lucrativos que mantém intercâmbio cultural e técnico

entre os Estados Unidos e demais países da América Latina e Caribe, através dos respectivos locais.4 Juquiá significava em tupi-guarani, rio sujo e armadilha para pescar peixe. Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Juqui%C3%A1

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rio no final do século XIX, da qual ele fez parte, e denominada Comissão Hidráulica, chefia-da pelo engenheiro americano William Milnor Roberts.

A referida viagem pela bacia do Rio São Francisco, iniciada no mês de agosto de 1879, a partir da foz do rio, adentrou-se em direção a Penedo passando por outras localidades como Paulo Afonso / Juazeiro / Petrolina / Casa Nova / Barra / Xique-Xique / Bom Jesus da Lapa/Pirapora e chegou até as suas nascentes. O objetivo principal desta expedição foi identificar as potencialidades desse rio para o melhoramento da navegação interna assim como descobrir outros usos, os quais ainda não tinham sido explorados de acordo com a capacidade do São Francisco. Nesse sentido, foi feita por Teodoro Sampaio uma ampla descrição, “sob a forma de um diário de viagem”, de toda a área percorrida, “documentada por 31 mapas originais”, pormenorizando aspectos físicos (a topografia, a geologia, os solos, o clima e a vegetação) e sociais como a distribuição da população, seu modo de vida, bem como os aspectos econômicos da região, as principais atividades produtivas ou potenciais.

Evidenciar e relembrar a obra de Teodoro Sampaio, mais de cem anos depois, foi impres-cindível para a nossa viagem e será relevante para o desenvolvimento do futuro projeto que realiza-remos. Constituída por professores e alunos do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU)5 da Universidade Salvador — Unifacs, esta nossa expedição contou com o decisivo apoio do Projeto B5 Biodiesel (Convênio Ford / Petrobras / Unifacs)6, que disponi-bilizou a logística de transporte (06 caminhonetes tipo Ranger, com motoristas e um coordenador), no período de 08 a 14 de outubro de 2007, reduzindo sensivelmente os custos de viagem.

5 Profs. Regina Souza, Alcides Caldas, Glória Lanci. Terezinha Perin, Mestre em Desenvolvimento Regional. Su Sumo, Mestrando da Universidade de Santiago de Compostela, em intercâmbio com a Unifacs.

6 O B5 é uma mistura do diesel comum com adição de 5% de B100 (biodiesel puro). Desde dezembro de 2004 já foi autorizado no Brasil o uso do B2, que contém a proporção máxima de 2% de biodiesel, já o B5 deverá ser autorizado a partir de 2008, e seu uso obrigatório em 2013. O teste, com duração de um ano, vai avaliar os efeitos do uso do biodiesel em veículos Ford Ranger e precisam acumular uma quilometragem mínima de 100 mil quilômetros. Para isso foram adquiridos seis veículos: dois rodando com B5 de mamona, dois com B5 de soja e dois com diesel co-mercial sem adição de biodiesel. Durante este período os veículos estarão sendo avaliados pela performance e dura-bilidade do motor; pela durabilidade do sistema de injeção de combustível, dos filtros, bombas, linhas, reguladores, sensores e tanque de combustível; pela deterioração de emissões; pelo consumo de combustível; pela deterioração do lubrificante do motor e pelo acompanhamento da qualidade do combustível. Os carros vão rodar em comboio, com cargas semelhantes e devem abastecer sempre nos mesmos postos e nas mesmas bombas para garantir a mesma qualidade de combustível usado ao longo do teste. Em todos os abastecimentos serão coletadas amostras do diesel usado pelos veículos de testes para análise e os resultados deverão constar nos relatórios do projeto. Após o período de um ano, o projeto será encerrado e um relatório completo deve ser gerado com a análise para a autori-zação do uso do B5. Este projeto tem patrocínio técnico e financeiro da Petrobras; apoio do Governo da Bahia por meio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb); patrocínio técnico da Ford Motor Company Brasil; coordenação geral da Universidade Salvador — Unifacs. Disponível em: http://www.energia.unifacs.br/noticias/noticiab5_1.htm Acesso em 15/02/2008.

9Figura 1 - Circuito percorrido

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O circuito percorrido foi de aproximadamente 3.000 km, saindo da capital, Salvador, em direção a Juazeiro / Petrolina, atravessando municípios como Casa Nova, Sobradinho, Salgueiro, Paulo Afonso, Delmiro Gouveia, Penedo, Propriá, Conde, retornando então a Salvador (Figura 1). Passamos por rodovias com vá-rios estágios de conservação: com trechos sem sinalização adequada ou com co-bertura asfáltica bastante deteriorada e sem acostamento. Pudemos constatar, de imediato, a boa qualidade da malha rodoviária pernambucana, em contraste com as da Bahia e de Alagoas, que se encontram em péssimo estado de conservação.

A parceria que resultou na operacionalização de nossa expedição trou-xe-nos uma experiência inusitada, que, esperamos, tenha continuidade, visto que nós, pesquisadores, pudemos usufruir do transporte do Projeto B5 Biodie-sel, neste momento testando um novo combustível que está sendo pesquisado pela Unifacs.

Viajamos em comboio de 06 caminhonetes, monitorado por satélite em Salvador e em Brasília, atingindo, em média, uma meta diária de 500 km roda-dos. Como medida de segurança, ficou estabelecido que as paradas obrigatórias para pernoite deveriam acontecer antes do anoitecer. Assim, nos hospedamos em Petrolina (PE), primeira base de onde saímos para vários roteiros; em segui-da, em Delmiro Gouveia e, finalmente, em Penedo (estas duas últimas localida-des no Estado de Alagoas).

Conseguimos interagir mais intensamente com alguns moradores locais, como os de Casa Nova, cidade que, juntamente com Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé, em virtude da implantação da barragem de Sobradinho, foram inunda-das e suas populações deslocadas para outras áreas. Essas interações nos possibi-litaram obter fragmentos da história oral regional, como, por exemplo, o desabafo de uma senhora, de aproximadamente 65 anos, moradora da antiga Casa Nova, que nos concedeu um depoimento marcante:

Este lugar não tem alma. Nós, antigos moradores, que fomos deslocados para aqui, por causa do lago, voltamos quase todos os domingos ao local onde morávamos, para visitar nossos antepassados, que se encontram lá, enterrados. Antes, em períodos de seca severa e quando o nível do lago caía bastante, podíamos ver o antigo cemitério e paredes da Igreja e de nossas casas, mas hoje com o assoreamento do rio, tudo foi coberto com areia fina... Mas, voltamos lá, pois sabemos que nossas famílias estão lá.

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Este depoimento cheio de emoção demonstra a ligação íntima daquela mulher com o “lugar”7 onde nasceu, podendo ser igualmente interpretado como “sentimen-to de pertencimento”, conceitos bastante utilizados na Geografia Humanística e que devem ser retomados para aprofundamento no próximo trabalho de campo. Demos prosseguimento a nossa viagem, com isso ecoando em nossos ouvidos: grandes temas que darão margem a uma pesquisa antropológica sobre essa dimensão de pertenci-mento e de desenraizamento das populações ribeirinhas; a sacralidade do lugar e tan-tos outros conceitos a serem trabalhados.

No que se refere às áreas de irrigação (nova atividade econômica da região), pudemos vislumbrar diversas propriedades ao longo do caminho que exploram a agri-cultura irrigada. Dentre elas, tivemos a oportunidade de visitar a Fazenda Garziera, localizada no distrito de Vermelhos (PE) na Rota da Uva e do Vinho, a qual é espe-cializada no cultivo da uva, produzindo vinhos de mesa e sucos. Toda essa região tem grande potencial para desenvolver o turismo, o qual já vem sendo explorado de forma incipiente, podendo ser enquadrado no segmento rural e/ou cultural. Ao retornar à Petrolina, assistimos, durante o trajeto, a um espetáculo maravilhoso que é o pôr-do-sol na caatinga, produzindo uma extraordinária pintura da natureza. Estas cenas fo-ram captadas pelas câmeras dos pesquisadores que fizeram parte da Expedição Juquiá e constituirão parte do acervo fotográfico a ser exposto em Salvador, em Juazeiro, nos Estados Unidos e em Santiago de Compostela.

Ao longo desta expedição passamos por diversos biomas. Primeiro, um am-biente de Mata Atlântica, largamente antropisado e ocupado durante quatro séculos com atividades agropecuárias, onde se pode ainda destacar a cultura da cana-de-açú-car, que está em evidência. Apenas visualizamos alguns resquícios da vegetação ori-ginal, mas a umidade e o verde caracterizam esta área, resultante de um tipo de clima nitidamente mais chuvoso. A passagem para uma área mais seca começa a ser notada nas imediações de Feira de Santana, no que se chama Zona do Agreste (transição), para finalmente entrarmos no domínio da Caatinga, a partir de Senhor do Bonfim, onde acompanhamos a silhueta da Serra de Itiúba à direita da rodovia; e, à esquerda, víamos, bem distantes, os contrafortes da Serra de Jacobina, até atingirmos o Vale do São Francisco em Juazeiro/Petrolina.

7 O conceito de “lugar” para o geógrafo humanista Yu Fu Tuan (1983) representa diferença; é também o conhecido, experienciado e dotado de valor. O elo efetivo da pessoa pelo lugar é também chamado por Tuan de “topofilia”.

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Outro importante bioma é a Caatinga, domínio em que centramos nosso olhar. A palavra “caatinga”, de origem tupi, significa “mata branca”, aspecto que a caracteriza durante o período sem chuva, o qual, na verdade, é quase o ano todo. A cor predomi-nante da vegetação, nesse momento, é um cinza esbranquiçado; a população é relati-vamente rarefeita e o aspecto desolador em relação à água é a tônica, com quase todos os mananciais parcial ou totalmente secos. Exceção deve ser feita ao Rio Jacuípe, que se apresentava com leito coberto de água, nas proximidades de Riachão do Jacuípe (BA). Também deve ser ressaltado que a Caatinga tem uma capacidade extraordinária de revitalização. Na época das chuvas ela absorve o máximo de água, armazenando-a para o restante do ano. Há uma renovação total e a vida ressurge com todo o seu vigor, durante esse curto período de tempo.

Os principais problemas ambientais da bacia do Rio São Francisco, como a perda de matas ciliares, desbancamento das margens, assoreamento, foram sinais visualizados em diversas partes de nossa viagem. Os grandes contrastes entre o cinza da Caatinga e o azul, quase anil (nas barragens de Sobradinho, Itaparica e Xingó), bem como o verde in-tenso nas novas áreas irrigadas (com o cultivo de uva, melão, manga) chamaram a nossa atenção. Embora sentíssemos a predominância do cinza nesta paisagem, intercalavam-se espécies mais resistentes, verdes, dentre as quais o mandacaru, o xique-xique e outras cactáceas, ou mesmo o umbuzeiro (que Euclides da Cunha chama de “a árvore sagrada do sertão”; seu fruto, o umbu, tem rico valor alimentício e é saboroso; o sumo acidulado de suas folhas, na época de abastança, é cobiçado pelo gado), a imburana e a algaroba, esta uma leguminosa que serve de alimento para animais, sobretudo caprinos e ovinos, ali muito encontrados. Essa pecuária de pequeno porte é bem adaptada às condições climáticas da região e peça de sustentação da gastronomia regional: o “bode assado”, gerando inclusive um Bodódromo (concentração de restaurantes em Petrolina, que ser-vem carnes de bode e carneiro preparados de diversas maneiras). Cumpre sublinhar que a gastronomia é mais um fator diferencial para impulsionar o turismo na região.

O processo de modernização na bacia do São Francisco, verificado em meados do século XIX com a navegação a vapor, através de embarcações conhecidas como “gaiolas” e semelhantes às utilizadas no Rio Mississipi (EUA), está hoje praticamen-te desativado. É evidenciado atualmente pela presença de barragens, construídas no início e em meados do século passado, para a geração de energia elétrica, fornecida a todo o Nordeste do país, ou da agricultura irrigada, principalmente com a manga e a uva, que têm agregado valor com investimentos em produção de vinho e sucos, provo-cando maior concentração da terra e da renda.

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Por outro lado, essa “modernidade” causou impactos negativos, como a expul-são do homem do campo, do ribeirinho, aumento expressivo da população urbana, além do crescimento da violência e da busca de atividades alternativas de sobrevi-vência, como o plantio ilegal da maconha em áreas irrigadas (Cabrobó, Orocó). Não se pode esquecer a modificação do regime fluvial (vazão, qualidade da água, assorea-mento etc.), que vem ocasionando uma ruptura com as atividades tradicionais, como a pesca e a agropecuária, salientando que essa ruptura poderá ser mais agravada com a implantação do projeto de transposição do rio, obra polêmica que está sendo implan-tada na região pelo governo federal.

Atravessamos a imensidão da Caatinga, até atingir a sua plenitude na Estação Ecológica Raso da Catarina, a qual vislumbramos à distância, e depois de passar por uma área de transição ocupada em parte com a pecuária, retomamos a Zona da Mata, em Alagoas, com plantações de cana-de-açúcar e fumo em Arapiraca, passando ra-pidamente em Penedo até chegar à rodovia BA-099, trecho conhecido como Linha Verde, na Bahia. Do roteiro inicial previsto, apenas não visitamos as áreas que esta-vam praticamente inacessíveis, como Remanso, Pilão Arcado, Macururé e Curaçá, que apresentavam estradas em péssimas condições, ou por falta de tempo, razão pela qual não pudemos conhecer a foz do Rio São Francisco.

Este livro procurou destacar alguns aspectos observados no percurso da Expedição Juquiá: rumo ao Rio São Francisco, e que serão aprofundados em fu-turas pesquisas, tendo em vista a Agenda proposta, sistematizando as informações a partir dos roteiros realizados, apresentando impressões pessoais sobre uma área tão singular e complexa quanto esta, com paisagens tão diversificadas e marcantes que merecem maior reflexão.

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ROTEIRO 1Salvador/Juazeiro/Petrolina: o início da jornada

Figura 2: Carranca do São Francisco. Desenho de M. Debeauvais, 2008.

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Saímos de Salvador para realizar esta expedição com uma grande expectativa, pois a considerávamos um desafio e uma novidade. Por sua amplitude física e temática, por sua sistemática de trabalho, em comboio, com metas de quilometragem a serem atingidas, por seu caráter exploratório e, ao mesmo tempo, comparativo com uma ex-pedição de renome, a chamada Comissão Hidráulica, da qual participou o engenheiro e geógrafo baiano Teodoro Sampaio, realizada no final do século XIX. Precisávamos captar o máximo de informações, num período de tempo muito exíguo. Entretanto, como nossas paradas seriam curtas, optamos, prioritariamente, por um grande levan-tamento fotográfico, sob diversos olhares.

Na partida, utilizando o principal eixo rodoviário do Estado, que é a BR-324, fomos em direção a Feira de Santana, pela qual passamos ao largo, seguindo por seu anel de contorno, para evitar o trânsito da cidade. Esse primeiro trecho é por demais conhecido na Região Nordeste, tendo em vista o entroncamento rodoviário da refe-rida cidade. Ressalte-se que esta rodovia, considerada auto-estrada, encontra-se em estado precário de conservação: leito muito irregular, devido, sobretudo, ao longo tre-cho implantado sobre o solo de massapê (que se dilata na época das chuvas e deforma o revestimento asfáltico). Além disso, é pesado o fluxo de veículos, em torno de 40 a 50 mil/dia, entre carros, ônibus e carretas, e há muitas lombadas; o acostamento em várias partes foi tomado pela vegetação, o que dificulta as ultrapassagens. Todos esses fatores são causadores de acidentes e fazem com que esse primeiro trecho se torne um pouco tenso para atravessá-lo.

A paisagem nestes 108 km, entretanto, é diversificada, com a presença do Centro Industrial de Aratu (localizado nos municípios de Simões Filho e Candeias) e do Distrito Industrial de Subaé (este, localizado em Feira de Santana), atividade agropastoril e muita ação antrópica. Cidades e vilas desfilam ao longo de nossos olhos, bem como fazendas com extensas pastagens, canaviais e muitas chácaras, transmitindo vida.

Próximo à localidade de Amélia Rodrigues, pode-se perceber, com certa dificuldade, a outra escarpa da Falha Tectônica que corta Salvador e vai em dire-ção a Tucano (BA). Uma dessas escarpas da Falha passa pelo bairro da Vitória, em Salvador; o outro lado é visível nas proximidades de Amélia Rodrigues e segue em direção a Maragojipe.

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8 Câmara de Dirigentes Lojistas de Feira de Santana (CDL). Disponível em: 7 de junho de 2008. http://www.cdlfs.com.br/feiradesantana.php

Historicamente, essa área, que está bastante ocupada, foi domínio da Mata Atlântica e, hoje, podemos ainda visualizá-la, em pequenos tufos, possivelmente como Mata Secundária. No entanto, percebe-se muito verde, pois o clima é mais chuvoso, com quase 2000 mm anuais. Nota-se, também, vestígios da exploração de petróleo, que foi introduzida na década de 1950 pela Petrobras, com alguns poços ainda em funcionamento.

Esta primeira faixa se estende até proximidades de Feira de Santana, de onde se passa para uma Zona de Transição, o Agreste, bem menos úmida que a primeira. A cidade, também conhecida como “Princesa do Sertão”, é a segunda do Estado da Bahia em população, com um total de aproximadamente 572 mil habi-tantes (IBGE, 2000), e uma relevante participação no PIB regional, que, segundo a Câmara de Dirigentes Lojistas de Feira de Santana (CDL), foi o terceiro maior arrecadador de ICMS da Bahia em 20048. Congrega um diversificado comércio, atividades industriais e um largo setor de serviços, sobretudo educacionais. Várias instituições de ensino particulares e públicas, dentre as quais a Universidade Esta-dual de Feira de Santana (UEFS), a Universidade Salvador (Unifacs) e a Faculdade de Tecnologia e Ciência (FTC).

Feira de Santana se constitui no maior entroncamento rodoviário do Estado, conectando dessa forma o interior com a capital baiana e outras macrorregiões do país. De Feira de Santana continuamos pela BR-324 até a localidade de Capim Grosso; mas, antes, passando por Richão de Jacuípe, onde atravessamos a ponte sobre o Rio Jacuípe, vimos que este se apresentava com água corrente. Daí em diante os rios se apresentavam com leitos completamente secos.

Em Capim Grosso, há outro importante cruzamento rodoviário, de onde se tem acesso para Jacobina. Continuamos, porém, em direção norte, para Juazeiro, utilizando a rodovia BR-407, eixo longitudinal, da rede rodoviária federal, que corta o Estado da Bahia e liga os fluxos de pessoas e mercadorias, no sentido Nordeste/Sudeste do país.

As características climáticas evidenciam-se no ar mais seco e na vegetação com mais cactáceas. Acompanhando-nos, à direita, a Serra de Itiúba e, do lado es-querdo, contrafortes da Serra de Jacobina, a rodovia nos leva até a cidade de Senhor

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do Bonfim, cruzando a Ferrovia Centro Atlântico9, hoje utilizada apenas para carga. Esse era o antigo trecho ferroviário que ligou desde o meado do século XIX as cida-des de Salvador, Alagoinhas e Juazeiro. Ou seja, o caminho mais curto entre o Rio São Francisco e um porto marítimo importante, o de Salvador.

Juazeiro: o impacto da chegadaChegamos a Juazeiro no meio da tarde, o termômetro marcava 33ºC. Prosse-

guimos imediatamente para Petrolina, onde nos alojamos no Hotel Costa Rio (bem localizado e impecavelmente limpo). Esse primeiro dia de viagem foi tranqüilo: os carros, com ótimo desempenho no teste do novo combustível, nos deram segurança e conforto. Ressalte-se igualmente que os motoristas do Projeto Biodiesel são educados e excelentes profissionais, o que também contribuiu para a segurança da viagem.

9 A linha que ligou a estação de São Francisco, em Alagoinhas, ao Rio São Francisco, em Juazeiro, foi aberta entre 1880 e 1896 pelo governo brasileiro. Em 1911, essa linha teve a bitola reduzida e as duas linhas foram unidas sob a concessão dos franceses da Cia. Chemins de Fer Federaux du L’Est Brésilien. Em 1935, tudo virou parte da VFFLB, estatal, e a linha passou a se chamar Linha Centro. Em 1957, foi uma das forma-doras da RFFSA. Em 1975, deixou de existir o nome VFFLB. Ainda circulavam trens de passageiros entre Alagoinhas e Senhor do Bonfim até 1989. Em 1996, passou a ser concessão da Ferrovia Centro-Atlântica. Tem tráfego de cargueiros até hoje (ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS DO BRASIL, 2007). Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/ba_paulistana/senhor.htm Acesso em: 07 de junho de 2008.

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Uma vez instalados, fomos conhecer o Centro Histórico da Cidade, do qual ti-ramos fotos e vimos o pôr-do-sol, cor de ouro avermelhado, nas margens do São Fran-cisco. Ver o Velho Chico passar tranqüilamente, na sua trajetória milenar, separando e, ao mesmo tempo unindo as cidades de Juazeiro e Petrolina, pertencentes a dois Estados diferentes — Bahia e Pernambuco — foi sem dúvida uma emoção à parte.

Atravessamos novamente o rio, desta vez em catamarã, para visitar Juazeiro.

Juazeiro é uma cidade de porte médio, fundada no século XVII10, con-tando com aproximadamente 208 mil habitantes (além do distrito sede, conta também com mais sete distritos). Fica localizada a 508 km de Salvador. De sua orla, vislumbra-se uma bonita vista de Petrolina. A cidade, porém, nos pareceu menos movimentada que Petrolina e um pouco travada em alguns pontos: na ponte, que está em obras, há congestionamento quase o tempo todo, bem como em algumas ruas e avenidas. No entanto, destaca-se sua grande tradição religiosa, sendo sede de bispado, com a Igreja Catedral Nossa Senhora das Grotas, além de muitas manifestações populares, dispondo de teatro e do Museu Regional do São Francisco, com muitas peças da cultu-ra sanfranciscana e da história local. Observamos também algumas construções com tendência à verticalização, sobretudo ao longo da orla e novos condomínios com casas de elevado padrão e bom gosto.

Vimos algumas intervenções urbanísticas, próximas à Central de Abastecimen-to, e que resultaram num espaço bem agradável, com bar/restaurante e um parque infantil com um pequeno lago, que lembra o Dique do Tororó, em Salvador, mas em menor escala. Muitas pessoas conversando, bebericando nos bares da orla, o que dá um aspecto descontraído e alegre à cidade. Esta impressão inicial é também seme-lhante à de Teodoro Sampaio quando ele destaca a alegria e a hospitalidade do povo juazeirense.

10 A cidade de Juazeiro, implantada à margem direita do Velho Chico, situa-se no ponto exato onde ocorria o cruzamento de duas importantes e estratégicas estradas interiores do Brasil. A primeira, fluvial, repre-sentada pelo Rio São Francisco, integrando o Norte ao Sul. A segunda, um caminho das bandeiras, aberto pelos paulistas sob o comando de Domingos do Sertão, pelos baianos sob o comando de Garcia D’Ávila II, pelos pernambucanos sob o comando de Francisco Caldas e pelos portugueses sob o comando de Manoel Nunes.Somente no final do século XVII, à sombra protetora da árvore-mãe do sertão, o juazeiro, começa a surgir o que hoje se constitui num dos mais importantes núcleos urbanos do interior nordestino (HISTORIA) Disponível em: http://www.citybrazil.com.br/ba/juazeiro/historia.htm. Acesso em: 07 de Junho de 2008. Juazeiro foi também conhecido inicialmente como “Passagem do Joazeiro”, segundo informações locais.

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Sentimos falta do Vaporzinho, restaurante que se localizava na orla de Juazeiro e tinha uma cozinha internacional muito boa. Era o antigo “Vapor Saldanha Marinho”, primeiro navio a vapor que fez durante muito tempo o percurso fluvial entre Juazeiro e Pirapora e que em desuso fora transformado durante muitos anos em um restau-rante de excelente padrão. Soubemos que ele foi totalmente restaurado e transferido para outro local, próximo à ponte Presidente Dutra, com a nova função de museu, tornando-se, assim, mais um atrativo turístico da cidade.

Juazeiro tem algumas praças bem arborizadas, que contam com espécies vege-tais nativas, como o juazeiro, árvore que lhe deu nome. Todavia, essas áreas verdes não são suficientes para amenizar o calor excessivo na cidade durante os dias de verão, a qual está localizada na Região Semi-árida e encravada no Vale do São Francisco. No entanto, consideramos que, após a implantação da Barragem de Sobradinho, há uma sensação maior de umidade do ar. Destaca-se também que as noites são amenas e bem ventiladas e com diferenças acentuadas de temperatura, o que é normal, devido ao fator “continentalidade” (Juazeiro fica muito afastada do oceano). É, porém, carente

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de bons meios de hospedagem. Dispõe de apenas três bons hotéis, ao contrário de Petrolina, onde há pelo menos oito hotéis de porte médio a grande. Vários órgãos fede-rais ou estaduais estão presentes na cidade, o que alimenta uma constante competição com Petrolina. Continua, porém, com uma importância comercial muito expressiva, dispondo igualmente de serviços especializados, sendo um dos centros urbanos mais importantes do Estado da Bahia e do Sertão do São Francisco.

Entre os municípios de Juazeiro e Petrolina existem algumas ilhas fluviais, das quais destacamos a Ilha do Fogo, não pelo seu tamanho, que é minúsculo, mas por sua posição geográfica, estratégica, já que fica localizada sob a ponte Presidente Dutra, a qual marca a divisa entre os Estados da Bahia (Juazeiro) e Pernambuco (Petrolina). Também salienta-se a Ilha do Rodeadouro, que será abordada mais adiante.

Comparando-se a situação socioeconômica atual entre Juazeiro e Petrolina com aquela descrita por Teodoro Sampaio, há mais de um século, é evidente que se destacam algumas mudanças. Juazeiro cresceu de 3000 para mais de 200 mil habi-tantes, dispondo hoje de uma gama variada de serviços. O aumento da população se intensificou, sobretudo, em meados do século XX, quando houve a implantação do sistema de barragens pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) (princi-palmente, a de Sobradinho), e dos projetos de irrigação, pois essas obras proporcio-naram o surgimento de grandes correntes migratórias para esta cidade, sendo que os impactos socioambientais para a região foram muito expressivos. Houve também uma chegada maciça de órgãos federais, dentre eles a Universidade Federal do Vale do São

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Francisco, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e a Faculdade de Agronomia, instituições de pesquisas internacionais, en-tre as quais o Centro de Pesquisa Agropecuária Trópico Semi-árido (CPATSA).

Na década de 1950 a Ponte Presidente Dutra, ligando Juazeiro a Petrolina, foi concluída, contando com 810 metros de comprimento, o que facilitou e consolidou o

fluxo rodoviário entre as macrorregiões Nordeste e Sudeste do Brasil, priorizando-se desta forma a rodovia.

A estação ferroviária primitiva, construída no século XIX por engenheiros franceses, com materiais importados da Europa, foi demolida para a construção da ponte, causando uma grande perda ao patrimônio juazeirense. Na década seguinte houve uma desaceleração do transporte ferroviário, reduzindo-se consideravelmente o fluxo de passageiros, só funcionando atualmente o transporte de mercadorias. A pequena estação ferroviária de Piranga, que sobreviveu, é praticamente o único marco do passado ferroviário desta localidade.

A navegação fluvial, que era intensa no trecho Pirapora—Juazeiro, mas sempre enfrentando sérias dificuldades com a irregularidade do regime fluvial, foi aos poucos perdendo a sua importância, dada a concorrência com o transporte rodoviário. Nesse

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sentido, cabe salientar que a função portuária de Juazeiro foi reduzida ao extremo, diminuindo sua área de influência e a sua articulação de porto fluvial com o porto marítimo de Salvador através de ferrovia. Segundo informações locais, os Galpões da Companhia de Navegação do São Francisco (Franave) encontram-se parcialmente de-sativados e as embarcações conhecidas como “chatas” estão sendo serradas e encami-nhadas para o Rio Tocantins.

Essas mudanças dos modos de transporte repercutiram favoravelmente em Pe-trolina, porque, somadas a fatores conjunturais, possibilitaram uma melhor adaptação desta às novas atividades econômicas, dentre as quais a agricultura irrigada. Seu aeró-dromo regional, por exemplo, passou por grandes reformas para poder exportar os pro-dutos cultivados com valores agregados especialmente para a Europa e para os Estados Unidos. Não deve ser esquecido o poder político que a cidade de Petrolina desenvolveu com as oligarquias representadas pelas famílias tradicionais, as quais tiveram grande in-fluência na implantação de serviços essenciais para o seu desenvolvimento.

Juazeiro perdeu a sua liderança regional absoluta para Petrolina, com a qual compartilha atualmente diversas funções urbanas. A expressão “a praça”, usada por Teodoro Sampaio em referência a Juazeiro, exprimindo o seu papel de grande empório e maior cidade de todo o sertão sanfranciscano, talvez não possa ser mais utilizada com exclusividade, mesmo o município dispondo de amplo comércio atacadista e de ser um importante entreposto comercial de frutas. A mobilidade nos centros urba-nos é intrinsecamente ligada às questões políticas, populacionais, infra-estruturais de transporte, de comunicações e tecnológicas, o que faz com que uma cidade em um determinado momento tenha uma posição mais importante e, mais tarde, venha a ser superada por outro centro urbano. Atualmente, dado o processo de globalização da economia, há maior flexibilidade no relacionamento dos centros urbanos entre si e com um nível de articulações cada vez mais complexo, acompanhando de perto o desenvolvimento tecnológico.

Quanto ao transporte intermodal que favoreceria Juazeiro, tem-se discutido e estudado sua implantação para otimizar o escoamento da produção regional, sobre-tudo dos cereais do Oeste baiano à margem esquerda do São Francisco, como a soja, por exemplo. Entretanto, apesar da evidência dos estudos, ainda não foi implantada essa intermodalidade e o que se vê é uma total “irracionalidade” com o escoamento da produção, utilizando-se prioritariamente o sistema rodoviário com estradas precárias, o que seguramente acarreta perdas substanciais para o Estado da Bahia, inclusive com a redução da arrecadação do imposto sobre a circulação das mercadorias.

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Independendo da modalidade do transporte, a carroça continua sendo vista como transporte de carga e passageiro tanto na cidade como no campo, fazendo um contraste com a modernidade. Também pode-se observar o altíssimo número de bicicletas e de motos, com o sistema de mototáxi, o que complica mais ainda o trânsito da cidade, e ao mesmo tempo é um indicativo do aumento do poder aquisitivo da população.

Observamos que Juazeiro continua com uma posição de destaque em todo o Vale do São Francisco, no Estado da Bahia, tanto em população como em serviços, no-vas tecnologias ou mesmo com relação a aspectos culturais e tradicionais que se tenta recuperar. Diriamos que há uma complementaridade de funções, com Petrolina, no Estado de Pernambuco. Por outro lado há uma veia cultural bastante significativa na cidade, especialmente na área da literatura, com vários livros de autores locais, muitos dos quais tematizam o Rio São Francisco, escultores e mesmo habitando em outras cidades produzem arte com temas locais que mesmo na música popular, citando-se entre os internacionalmente conhecidos o cantor João Gilberto, um dos criadores do movimento conhecido como “Bossa Nova”, nos anos 1950, no Rio de Janeiro, ou mais recentemente Ivete Sangalo, que despontou na chamada “Axé Music”, nos anos 1980, e hoje é uma empresária de sucesso, investindo na economia do município.

Figura 3: Perfil da Serra do Mulato, em Sobradinho. Desenho de M. Debeauvais, 2008.

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Roteiro 2Petrolina/Casa Nova/Sobradinho/ Ilha do Rodeadouro:

possibilidades de desenvolvimento econômico

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Petrolina, cidade que no século XIX recebeu esta denominação em homena-gem ao imperador D. Pedro II, foi a nossa base inicial, onde nos instalamos e de onde partimos para vários roteiros.

Trata-se de um centro urbano importante, demonstrando grande dinamismo no comércio, que se apresenta bastante especializado. No seu desenho urbano pos-sui largas avenidas, com trânsito sempre muito intenso; a construção civil em ritmo acelerado, com grande tendência à verticalização; prédios de apartamentos, diversos

condomínios, bons hotéis, bares e restaurantes e uma imponente catedral com vitrais colori-dos e muito bonitos, que lembram a Catedral de Notre Dâme, em Paris. É a principal refe-rência arquitetônica da cidade. Percebe-se que lá todo mundo está sempre tratando de negó-cios. A cidade tem porte de capital, sendo a terceira economia do Estado de Pernambuco e a quinta maior cidade em população, com 268.339 habitantes, segundo estimativa 2007/IBGE. Localiza-se na margem esquerda do Rio São Francisco, o que lhe permite oferecer uma bela paisagem com espelho d’água. Situa-se em frente a Juazeiro, na Bahia, e com esta e mais

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seis municípios 11 constitui a Região Integrada de Desenvolvimento do Pólo Juazeiro e Petrolina (RIDE), que é uma figura institucional semelhante à Região Metropolitana, criada em torno das capitais brasileiras, na década de 1970.

Petrolina lidera essa região, que também é o “core” da agricultura irrigada12

(uva, melão, melancia, manga, dentre outras). Diversos órgãos federais encontram-se aí localizados, como a Chesf, o Ibama, a Codevasf, Embrapa, Banco do Nordeste, Banco do Brasil, Univasf, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre outros. Dispõe de vários estabelecimentos bancários e uma excelente rede rodoviária, que a liga à capital do Estado, da qual dista 700 km, e a outros pontos do país.

Petrolina dispõe de aeroporto regional com linhas regulares diárias para São Paulo e outras capitais brasileiras, bonita arquitetura e bom padrão em equipamento e pista de decolagem/pouso, servindo também para escoar a produção de uvas de mesa e de mangas que são vendidas para o restante do país e, sobretudo, para o exterior (Eu-ropa e Estados Unidos). Em nota da Agência Sebrae de Notícias, “Vale do São Francis-co pode ser a primeira área certificada do Nordeste”, veiculada em 20/09/07, lê-se:

O vale do Submédio São Francisco é o maior pólo brasi-leiro exportador de frutas. As culturas de uvas de mesa e mangas são o principal elemento da economia de Petro-lina (PE) e Juazeiro (BA). A região responde por cerca de 95% das exportações brasileiras de uva de mesa e manga, o que equivale a aproximadamente U$ 300 milhões por ano, gerando mais de 60 mil empregos na região.

Convém ressaltar que, devido à irrigação e aos fatores climáticos, com muito sol durante o ano, há 2,5 colheitas anuais de uva e duas colheitas de manga, o que é um fato único no mundo e justamente no Hemisfério Sul, nos Trópicos. Se por um lado aumenta a produtividade, por outro lado o uso intensivo do solo pode acarretar o seu empobrecimento, a longo prazo.

11 Casa Nova, Sobradinho e Curaçá (Bahia) e Lagoa Branca, Santa Maria da Boa Vista e Orocó (Pernambuco).12 Segundo Carrera-Fernandez (2002), a irrigação corresponde ao chamado uso consuntivo da água, ou

seja, aquele que retira a água de seus mananciais, através de captação ou derivações, e apenas parte dessa água retorna à suas fontes de origem. O referido autor acrescenta que, no uso consuntivo, a água efetivamente retirada torna-se indispensável no manancial. Dentre os usos consuntivos da água, a irri-gação é a modalidade de uso que causa a maior indisponibilidade para os outros usos. Cf. CARRERA-FERNANDEZ (2002, p. 28).

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Outro aspecto relevante a ser ponderado remete à seguinte questão: por que não utilizar com mais intensidade a energia solar como alternativa, dada a excelente disponibilidade de luminosidade nesta região? Aí se verificam muitos investimentos de capital nacional e de multinacionais, em diversos setores da economia, e talvez a utilização de uma outra fonte de energia fosse também salutar, o que certamente con-tribuiria para aumentar a eficiência da produção, além de evidenciar preocupação com o meio ambiente.

No que tange à cadeia produtiva decorrente da atividade de fruticultura irriga-da, esta vem crescendo, pois conta com um verdadeiro boom de fábricas de polpa para suco13. São pequenas agroindústrias, que empregam em torno de oito pessoas e que já concorrem com 17,5% do consumo em relação a refrigerantes (polpas de acerola, graviola, maracujá, manga, mamão, melão e umbu).

O umbu, fruta agridoce típica e muito utilizada pela população local, nos úl-timos meses vem sendo transformada em geléia pelas Cooperativas de Produtores de Canudos, Uauá e Curaçá14 (Copercuc) que a exportam para a França e Holanda. Uma ação importantíssima, já que, diferentemente da uva e da manga, o umbu é fruto pe-culiar da Caatinga.

Por outro lado, a produção de vinho e a produção de uvas de mesa têm tido uma grande importância na economia regional, o que propiciou a abertura de diversas faculdades e cursos ligados ao turismo, como os de enologia, hotelaria ou gastrono-mia, além de vários cursos presenciais e à distância nessas e em outras áreas.

Ainda segundo a Agência Sebrae Notícias15, o distrito de Vermelhos, no mu-nicípio de Lagoa Branca (PE), sediará um grande espaço para a enocultura: salas para degustação e exposição de arte, auditório multifuncional e muitos exemplares de vi-nhos brasileiros e de outras partes do mundo. É a Enoteca, voltada para o enoturismo. Aliás, a rodovia que liga as diversas vinícolas já foi batizada como a Rota da Uva e do Vinho. O Sebrae e o Cetec têm dado muito suporte técnico em forma de cursos e con-sultoria para a formatação do produto turístico.

13 Jornal do Commercio — Vale do São Francisco. Petrolina, 07/10/07, p. 2, O “boom” das fábricas de polpa.14 No município de Curaçá encontra-se a fazenda Mariad, com um imenso vinhedo, que tinha 2.000 empre-

gados com carteira assinada, segundo informações locais. Devido a envolvimento com droga e contrabando, esta propriedade foi confiscada, gerando uma crise de emprego na região, ainda não solucionada.

15 Jornal do Commercio — Vale do São Francisco. Petrolina, 07/10/07, p. 5, Vermelhos ganhará a primeira enoteca pública do mundo.

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Segundo um estudo recente do Banco Mundial, divulgado no Seminário “Olhares sobre a revitalização da Bacia do São Francisco”, organizado pela Secreta-ria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), Superintendência de Recursos Hídricos (SRH) e outros órgãos do governo, nos dias 27 e 28 de setembro de 2007, em Salvador, dos cinco projetos de irrigação que tiveram resultados satisfatórios, três estão no Vale do São Francisco, entre os quais o Curaçá e o Tourão/Bebedouro (na região de Juazeiro/Petrolina).

O Vale do São Francisco, de acordo com o Jornal de Salvador16 , já é responsável por mais de 20% da produção nacional de vinhos e tornou-se o segundo maior produ-tor desta bebida no país.

Petrolina é um exemplo da convergência de diversas atividades econômicas que, aproveitando-se das particularidades do clima Semi-árido, da disponibilidade de terra e toda uma infra-estrutura voltada para os grandes negócios, concentrou a renda e o poder regional. Em pouco mais de um século, mudou completamente sua posição no contexto regional, como podemos comparar com os comentários de Teodoro Sam-paio, ao visitá-la em 1879:

O lugar era então um povoado insignificante, cuja mo-destia a propria categoria de villa decerto prejudicava. Algumas casas de feia construcção ao longo de umas pou-cas ruas estreitas, desalinhadas e areientas, uma egreja de modestissima apparencia, pouco commercio, população escassa, eis o que era a Petrolina, que aliás todos informa-vam ser uma povoação muito nova e destinada a grande futuro, vaticínio decerto muito problematico, attento as condições da localidade e dos sertões de sua mais directa dependencia. (SAMPAIO, 1905, p. 38)

Note-se que o referido autor vislumbrou um cenário muito pessimista com re-lação à possibilidades de desenvolvimento desta localidade, tendo em vista as condi-ções de semi-aridez dos sertões onde ela se encontra situada. O desenho atual desta cidade, no entanto, aparenta uma outra realidade: possui avenidas arrojadas, largas e compridas, dispõe de obeliscos e grandes estátuas que lhes dão um aspecto moderno, dinâmico e uma certa imponência, ou seja, a partir dos anos 1960 foi implantado o

16 Jornal de Salvador, n. 2, jul/ago. 2006.

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seu Plano Diretor, a fim de ordenar a ocupação do solo urbano. Por outro lado, a área mais antiga, portuária, está bem conservada: apresenta ruas estreitas, bem limpas e arrumadas.

Em conjunto com Juazeiro, Petrolina constitui o pólo das “carrancas”, figuras do artesanato regional, metade homem metade animal, que acompanhavam antigas embarcações do São Francisco, visando a protegê-las. Essas “carrancas”, como ficaram conhecidas, são produzidas, sobretudo, neste trecho do rio e expressam a identidade do vale transformando-se em símbolo regional.

Visitamos a Oficina do Artesão, mantida pela Prefeitura Municipal de Petroli-na, onde vários profissionais trabalham, sobretudo, a madeira. Carrancas tipo “vampi-ro”, o modelo dominante, mas não exclusivo, são esculpidas em madeira, especialmen-te a de umburana, ainda encontrada na região. Mas há também esculturas de imagens sacras, como é o caso daquelas produzidas pelo artesão Roque Santeiro.

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Embora existisse um grande número de peças estocadas, os artesãos reclama-vam das vendas que eram baixas. Notamos que, quando de nossa visita à Oficina, um grupo de turistas também havia chegado por lá e eles somente adquiriram peças pe-quenas sob forma de chaveiros e miniaturas de carrancas.

Ainda no que se refere à atividade do artesanato, existem três aspectos a ser res-saltados. O primeiro deles é com relação à produção em massa desses artigos de madeira; eles surgiram como objetos-símbolo da região, feitos em pequena quantidade, passando ao longo do tempo por uma transformação, e vieram a ser produzidos em grande escala, como um atrativo turístico. Outro aspecto está relacionado aos preços: as peças maiores, em geral, têm preços considerados altos (400 reais ou mais) para a realidade brasileira. Por outro lado, há ainda mais um aspecto, relacionado à questão ambiental: será que a fonte de matéria-prima para a confecção desses objetos está sendo utilizada de maneira sustentável? Esta é uma reflexão que fazemos e que gostaríamos de retomá-la futuramente.

Fomos ainda visitar o Memorial de Ana das Carrancas, mulher que se distin-guiu na produção dessas figuras, dando-lhes uma expressão menos agressiva. Traba-lhava exclusivamente com argila e era também chamada de “loiceira” ou “dama de barro”. Lá, no seu memorial, além das peças originais da artesã, encontram-se livros sobre a sua vida e sobre a sua produção.

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Tivemos ainda a oportunidade de visitar o Museu do Sertão, que dispõe de um enorme acervo com objetos regionais, sertanejos, da cultura indígena e outros ligados ao cangaço e aos tropeiros. Este espaço cultural é muito rico e diversificado em infor-mações e condensa a diversidade cultural do Sertão Sanfranciscano.

Casa Nova:a saudade do passado e a esperança no futuroO percurso entre Petrolina e Casa Nova é de 110 km, em rodovia relativamente

bem conservada quanto à sinalização e pavimentação.

Paramos em Casa Nova, cidade que atualmente possui cerca de 62 mil habitan-tes; foi construída na década de 1970 pela Chesf para abrigar a população do antigo núcleo17, que foi inundado posteriormente pelas águas do lago de Sobradinho. A anti-ga Casa Nova foi a quarta das quatro cidades inundadas — as outras foram Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado; muitos de seus habitantes ainda estão ligados às suas memó-rias, como aquela senhora, com quem conversamos e cujo depoimento pode ser lido na Introdução deste relato. A nova cidade, no entanto, demonstra grande dinamismo por estar localizada mais próxima de Juazeiro e Petrolina, por investir em agronegócio e ser uma grande produtora de uva. Seu projeto de agricultura irrigada foi um dos qua-tro considerados pela ONU como empreendimento de sucesso. A cultura irrigada da uva tem sido muito aproveitada para a produção de vinho. Ali está implantada a maior produtora de vinhos do Nordeste, a Miolo, que fabrica o Terranova, o branco Mosca-tel, os tintos Shiraz e Cabernet Sauvignon Shiraz, o espumante Moscatel, na Fazenda Ouro Verde, de 700ha, sendo 200 hectares ocupados por vinhedos.

Nota-se que, nestes 35 anos, o padrão de construção urbana ficou bem diversi-ficado, apresentando nitidamente os desníveis socioeconômicos da região: casas muito boas e outras menores até chegar-se a ocupações espontâneas. Fomos informados que a cidade tem atraído muitas pessoas de outras áreas; isso tem contribuído para uma dinamização da construção civil, o que é evidenciado pelos inúmeros condomínios existentes ou em implantação. Vimos também um acampamento e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)18.

17 Este antigo núcleo era dominado pela família Viana, uma pequena vila que se mantinha com a produção de sal, segundo Teodoro Sampaio.

18 Segundo Terezinha Perin, que vem estudando o tema, há diferença entre acampamento e assentamento: no primeiro caso, as instalações são bastante precárias predominando as barracas de lona; no assentamento, podem existir construções de alvenarias e escolas.

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Os eventos como exposições e feiras são constantes, com apresentação de ban-das regionais e outras conhecidas nacionalmente.

Não foi possível ficarmos mais tempo e obter maiores informações sobre o Canal do Sertão, que abastece a população local. Também não visualizamos as famosas salinas do São Francisco, que lá continuam a ser exploradas. Segundo Teodoro Sampaio, “Santa Anna do Sobradinho, Casa Nova, Pilão Arcado, Taboleiro, Santo Antônio das Salinas e Chique-Chique são os centros da mais considerável produção de sal” (SAMPAIO, 1905, p. 43).

Sobradinho: a cidade e o lagoA cidade de Sobradinho, com 21.411 habitantes (IBGE, 2000), guarda um as-

pecto de “acampamento” da Chesf, que vem desde a sua construção nos anos 1970, durante o regime militar. Consideramos que o seu aspecto urbano se deteriorou no decorrer destes 34 anos (desde nossa primeira viagem em 1974 e posteriormente em 1984): a população cresceu, no entanto a cidade apresenta um semblante nostálgico.

O lago de Sobradinho, que se encontra no seu entorno, é surpreendentemente belo, refletindo o azul intenso de um céu sem nuvens, sendo emoldurado pela Serra do Mulato. Notamos que o nível de suas águas estava baixo, devido à estiagem. É um empreendimento faraônico. A represa ocupa uma área de 4.214 km², sua capacidade é de 34,1 bilhões de metros cúbicos de água, em sua cota nominal de 392,50 m; possui cerca de oito metros de profundidade e tem 370 km de extensão; em certos lugares alcança uma largura superior a 35 km. A pouca profundidade do lago e a sua extensa área inundada formam um imenso espelho d´àgua que provoca uma forte evaporação do ar. Tem potencial hidrelétrico de 1.050,0 MW19. Destaca-se igualmente o fato que diversas áreas estão sendo aproveitadas para pesca da tilápia em cativeiro.

Contemplando essa obra monumental, relembramos os inúmeros impactos por ela provocados na região, como o deslocamento de tantas pessoas para outros “lu-gares” que não eram os seus. Estima-se que setenta mil pessoas, foram desterritoriali-zadas e “reterritorializadas” em outros espaços, novos, vazios de história. A inundação de cidades e vilas e o conseqüente apagamento de suas lembranças, de seu passado, foi traumático e deixou, seguramente, muitas seqüelas nestas populações. Esses poucos minutos de visitação fazem-nos mergulhar no tempo e refletir que a “paisagem” não é só aquilo que ela aparenta. Ela é plena de subjetividade... 19 Dado retirado do Relatório Final da Comissão de Acompanhamento do Projeto de Revitalização do Rio São

Francisco. Senado Federal. Brasília, DF, 2002.

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Também durante essa visita relembramos que a Comissão Hidráulica, da qual Teodoro Sampaio participou, estudou esse trecho do rio, pois antes existiam vários “rápidos” e “corredeiras” que dificultavam a navegação interna. Só um canal possibilitava a passagem e com muitos riscos. Posteriormente, novos estudos foram realizados contando mais uma vez com a participação de Sampaio e possibilitaram o melhoramento dessa modalidade de transporte (navegação a vapor), infelizmente de vida tão efêmera.

Por outro lado, a expectativa de nossa visita a Remanso ficou frustrada, por-que a rodovia que a liga a Sobradinho encontrava-se com o asfalto completamente gasto, e demoraria muito tempo para ir e voltar. Retornamos depois de fazer alguns quilômetros, mas sem deixar de registrar que próximo à localidade chamada Lagedo (BA), onde o Riacho Grande estava com o leito totalmente seco, pudemos observar duas situações: uma delas é a presença de diversas residências com placas para cap-tação de energia solar; a outra foi a dos carros-pipa abastecendo algumas casinhas, fato recorrente na região. Essas duas situações, em áreas tão próximas, fizeram-nos constatar que a política assistencialista da água ainda continua, mas, pontualmente, há pelo menos uma tentativa de mudança, usando a principal fonte energética, o sol, que é abundante o ano inteiro na região e é de graça.

Próximo à barragem de Sobradinho, no local conhecido como Campos dos Cavalos, encontra-se o lixão de Juazeiro, com uma grande quantidade de plástico, material muito resistente ao processo de decomposição. É lastimável esse tipo de destinação para os resíduos sólidos de uma grande aglomeração como esta, que poderia investir mais em outras alternativas. Não sabemos, contudo, se existe al-gum aproveitamento com reciclagem, compostagem, ou reuso desse material, em menor escala. Não só as empresas como o poder público deveriam promover a educação ambiental da população. Esta seria mais uma idéia para o desenvolvi-mento de pesquisas.

Rodeadouro: uma ilha em processo de degradaçãoPassamos pela Serra do Mulato e em seguida fomos visitar a ilha fluvial do Ro-

deadouro, um dos pontos do lazer regional e distante 12 km de Juazeiro. Às margens do São Francisco, ou mesmo nas bordas da ilha, há uma grande quantidade de casas de elevado padrão, algumas das quais com deck e lancha e outras com aproveitamento co-mercial, como é o caso da “Passagem do Juarez”, que faz a travessia com embarcações

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próprias e onde está sendo construído um excelente restaurante para grandes eventos. Nota-se de igual forma, nesse mesmo trecho, alguns desbancamentos provenientes de processos erosivos.

Segundo informações locais, nos fins de semana e feriados há prática de espor-te náutico e um grande fluxo de visitantes, em torno de dois mil, que têm acesso à ilha por meio de embarcações com capacidade aproximada de 50 passageiros. Utilizamos uma dessas barcas, que fazem a travessia em 10 ou 15 minutos, mas que não dispunha de colete salva-vidas em número suficiente para todos os passageiros. Nem do lado do continente, nem do lado da Ilha, existe um píer adequado, notando-se uma grande improvisação nos momentos de embarque e desembarque.

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Na Ilha encontramos muitos bares e restaurantes rústicos (foto), construídos muito próximos às margens do rio, sendo que, no final da tarde, observamos um au-mento do nível da água — vazão liberada pelo lago de Sobradinho; por causa disso, alguns dos equipamentos foram atingidos, ficando em parte submersos, o que explica a pressa dos excurcionistas em retornar para outra margem do rio. A Ilha é ocupada com residências secundárias e outras da população local, que vive em pequenas chácaras, chamando-se a atenção para os problemas ambientais que estão se configurando como a presença do lixo, a ocupação desordenada e os processos de erosão.

Contudo, a Ilha tem realmente uma grande potencialidade para o turismo, sendo o turismo local/regional o mais explorado de forma incipiente e na modalidade de lazer/excursionismo (neste momento com tendência a turismo de massa). Pode-se ressaltar igualmente que o turismo náutico é um segmento emergente, notando-se grande quan-tidade de embarcações ancoradas ou em movimento.

Figura 4: Videira do Sertão Sanfranciscano. Desenho de M. Debeauvais,2008.

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Roteiro 3Petrolina/Vermelhos (Fazenda Garziera):

Rota da Uva e do Vinho

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Ao sair de Petrolina, usamos a rodovia BR-428 (direção Recife) em excelente estado de conservação, com acostamento impecável nos dois sentidos, sendo bem si-nalizada. O percurso alternava paisagens mais verdes, dos projetos de irrigação, algu-mas cidades e sempre a Caatinga.

Logo depois de Petrolina, passamos por Lagoa Grande (PE), uma cidade que se afirma economicamente, devido aos projetos de irrigação, sobretudo os ligados à cul-tura da uva. Justamente naquele período, de 11 a 13 de outubro, iria se realizar a “Vi-nhuva Fest 2007”, 5ª Feira do Vinho e da Uva do Vale do São Francisco, considerado um importante evento da região, sem ter, contudo, a abrangência da Feira Nacional de Agricultura Irrigada (Fenagri), realizada a cada dois anos no eixo Juazeiro—Petrolina e que gera milhões de reais em agronegócios.

A expectativa da “Vinhuva Fest” é a de que fossem também gerados muitos negócios, seminários, exposições, shows, com diversas bandas, como a Calypso, e apresentação de artistas como Daniela Mercury ou Alceu Valença, esperando-se 30 mil visitantes para esse período. O evento, para se avaliar sua dimensão, teve como realizadores a Prefeitura Municipal de Lagoa Grande, a Secretaria de Desenvolvimen-to Econômico do Governo de Pernambuco e os Ministérios da Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, com patrocínio do Sesi, Petrobras, BNDES, Sebrae, Banco do Nordeste, Banco do Brasil, Agência de Desenvolvimen-to Econômico de Pernambuco (ADDiper), Eletrobrás, Chesf e Celpe (Grupo Neoe-nergia), o que demonstra uma ampla rede de financiadores das iniciativas locais. O apoio foi dado por 10 entidades, entre as quais Embrapa, Cefet, Empetur, ABAV-PE. E, ainda, parceria com a Assitur, VBR (Vinho, Ação Brasil), Fun Prime (Produções de Eventos) e Vinho VASF. Encontramos a cidade toda decorada e com uma enorme comercialização de uvas, ao longo da rodovia, embaladas em pequenas caixas de R$ 2,00 e R$ 1,50.

A seguir, passamos pelo local onde o Exército está construindo obras de infra-estrutura para a transposição das águas do rio São Francisco, onde se lê uma pla-ca: Integração de bacias — Reservatório de Tucutu. Sublinhe-se que essa intervenção situa-se à montante do complexo de usinas de Paulo Afonso, Itaparica e Xingó e não sabemos que implicações poderá ter para a vazão do rio, e especialmente para as po-pulações ribeirinhas. Este é outro tema que merece maiores reflexões por causa da polêmica que tem gerado sobre os objetivos da obra e seus custos e benefícios.

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Prosseguimos em direção a Salgueiro (PE), para ajustar a quilometragem do Projeto B5, tendo almoçado no Restaurante do Plaza Hotel, bem à entrada desta ci-dade.

Retornamos ao distrito de Vermelhos, município de Lagoa Grande, onde se localizam várias vinícolas, entre as quais a Fazenda Garziera. Nessa área a paisagem se apresenta totalmente diferenciada, devido ao uso da técnica de irrigação por goteja-mento, causando um grande contraste entre o verde “aparente” e o cinza da Caatinga ali próximo.

Logo após a recepção, fomos encaminhados a uma sala de projeção para assistir a um pequeno documentário sobre a propriedade. Depois estivemos no Mirante, onde se tem uma visão panorâmica da propriedade, com o Rio São Francisco ao fundo; visitamos o processo de produção do vinho, onde poderíamos eventualmente pisar as uvas e depois passamos pelo parreiral onde tiramos muitas fotografias.

A Fazenda Garziera é uma das pioneiras na produção de uvas de mesa e vinhos e seus proprietários, de origem italiana, são provenientes da Serra Gaúcha (RS), de onde vieram há mais de 30 anos. Produz o vinho “Carrancas do São Francisco” (tinto e branco), suco de uva “Sol do Sertão”, geléias e queijos. É uma bela propriedade, com 50 ha de área cultivada. Lá, já se intercala a produção de uva com maracujá e outras frutas para evitar pragas e otimizar a utilização da terra.

Durante a visita fomos informados que no distrito de Vermelhos existe um grande assentamento do MST com escola bem construída, numa parceria entre a Pre-feitura Municipal e os produtores de vinho da região. Informaram-nos também que muitos assentados trabalham nas fazendas produtoras de uvas da região20.

Retornamos a Petrolina, já no final da tarde, apressando-nos para não anoitecer na Rota da Uva e do Vinho, sujeita a muitos assaltos. Essa advertência é constante do Guia Quatro Rodas. Registre-se, porém, que havia por todo o percurso que realizamos barreiras policiais com diversos prepostos motorizados da Companhia de Polícia de Ações em Caatinga (CPAC). É intenso o fluxo de turistas nessas propriedades ligadas à vinicultura, conforme pudemos observar durante a nossa visita, sem constatar qual-quer incidente.

20 Informações obtidas por Terezinha Perin.

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Figura 5: Paisagem típica da Caatinga. Desenho de M. Debeauvais, 2008.

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Roteiro 4Petrolina/Paulo Afonso/Delmiro Gouveia:

a energia que vem do Sertão

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O percurso entre Petrolina e Paulo Afonso é longo, pouco mais de 405 km e não pode ser feito pelo lado da Bahia, devido às condições precárias das rodovias. Segui-mos o Rio São Francisco, indo pelo Estado de Pernambuco. Retomamos um longo tre-cho já percorrido anteriormente, passando por Lagoa Grande, Orocó, Cabrobó, Belém de São Francisco. No sertão de Itacuruba, vimos um filete de água que corria num leito quase seco. Procuramos localizá-lo no mapa e vimos tratar-se do Rio Pajeú.

Como não lembrar da canção Riacho do Navio, um dos sucessos de Luiz Gonzaga, “O rei do baião”? Diz o começo da letra: “Riacho do Navio corre pro Pajeú / O Rio Pajeú vai despejar no São Francisco / O Rio São Francisco vai bater no meio do mar [...]” Visão poética e marcante do autor que retratava um aspecto muito importante da força do rio em direção ao mar. No entanto, parece que estes versos tornaram-se irônicos porque, segundo depoimentos locais, hoje está se ob-servando exatamente o contrário: devido à perda da vazão do rio é o mar que está adentrando na foz, trazendo repercussões negativas para as populações ribeirinhas e para a ictofauna regional.

Esta expedição obriga-nos também a refletir sobre o drama do sertanejo, do ribeiri-nho, do caatingueiro... Que vida dura e sofrida, a dessa população! Os leitos secos dos rios, a esperança da estação das chuvas, do começo de novembro até março/abril, mas tantas vezes a estiagem se prolonga... Não podemos deixar de pensar na novela Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicada em 1938, e ver que a sua temática continua tão atual. Quase 70 anos depois, a vida do povo dessa região, o Semi-árido, ainda é muito difícil. Visualizamos muitos des-locamentos de famílias ao longo das rodovias, que nos faziam pensar nesse grande escritor alagoano e em seu cenário: além do pai, da mãe dos filhos e do (a) cachorrinho (a) as famílias transportavam alguns poucos pertences, geralmente em carroças

Aproximando-nos de Paulo Afonso, continuamos na área da Caatinga, mas pudemos vislumbrar a barragem de Itaparica, um lago artificial de grandes proporções e beleza constru-ído em local onde existe uma barreira natural do rio, a Cachoeira de Itaparica. Essa barragem tem um potencial hidrelétrico de 2.460 MW. Segundo Cappio et al (2000), foram desabrigadas em sete municípios (Petrolândia, Floresta, Itacaruna e Belém do São Francisco no Estado de Pernambuco, e Glória, Rodelas e Chorrochó, no Estado da Bahia). Muitos indígenas da tribo Tuxá e da tribo Truká também foram desalojados, para implantação dessa obra. Chegamos a esse local ao meio-dia, onde não havia no céu uma nuvem sequer. A luminosidade era impres-sionante, de enceguecer. Mais uma vez o contraste entre o azul da barragem e o cinza da Caatin-ga foi gritante. Mais uma vez pensamos na energia solar e nessa cor da água da barragem. Como Teodoro Sampaio acharia tudo isso diferente... As águas do São Francisco, que sempre foram barrentas, agora estão azuis ou esverdeadas devido às barragens, que alteraram sua composição e a dinâmica fluvial. Só a luminosidade e o calor escaldante continuam os mesmos!

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O represamento do Rio São Francisco, nestes pontos encachoeirados, serviu inicialmente para a geração de energia elétrica, como já nos referimos anteriormente, e a responsável por esses barramentos foi a Chesf21, que se faz presente com sua potente rede de transmissão, centenas de quilômetros de fios de alta voltagem, levando a ener-gia produzida para todo o Nordeste brasileiro. O Complexo de Usinas que foi constru-ído, um total de quatro, tem um potencial hidrelétrico de 3.984,0 MW que, somados a UHE de Moxotó, formam um potencial hiro em tornoelétrico. Nas proximidades deste complexo de barragens notam-se áreas ocupadas com culturas irrigadas e muitas casas e também acampamentos do MST.

A paisagem natural descrita por Teodoro Sampaio continua lá, com um relevo apresentando-se “dissecado e com amontoados de blocos de pedras gigantescas afe-tando formas pitorescas, curiosas...” (SAMPAIO, p. 77). No entanto, ao aspecto natu-ral, agreste, mas, bonito, sobrepõe-se toda a aparência tecnológica da rede de fios de alta tensão, montada em pesadas estruturas metálicas pela Chesf. É o sertão da Chesf.

Depois do almoço, prosseguimos até Paulo Afonso. De longe, pudemos perceber a Caatinga em sua plenitude, nas formas tabulares da Estação Ecológica Raso da Catarina, um dos lugares mais secos do mundo. Essa Unidade de Conservação, que tem 10 mil km2, só pode ser visitada por pesquisadores e estudiosos. É o habitat de diversas espécies ani-mais em extinção, como a “ararinha azul”, por exemplo. A impressão que se tem de longe é a de um imenso tapete cinza. A cobertura vegetal aparenta ser homogênea, mas segura-mente ela tem muita diversidade. Está localizada no Estado da Bahia, entre os municípios de Paulo Afonso e Geremoabo e traz um enorme conteúdo de terror no imaginário popu-lar, sobretudo com a lembrança de Lampião e de outros cangaceiros, que lá estiveram.

Enfim, chegamos a Paulo Afonso, que tem esse nome devido ao proprietário da área, que se chamava Paulo Viveiros Afonso. Atravessamos a ponte metálica sobre o canyon do São Francisco, que separa os Estados de Alagoas e Bahia. Esse ponto é considerado um ícone do São Francisco com paredões de 50 metros de altura onde os visitantes passeiam de catamarã e tiram fotos como lembrança dessa paisagem singu-lar. Entramos no município de Paulo Afonso propriamente dito. Fomos até o antigo

21 A Chesf possui 18 mil quilômetros de linhas aliadas a uma capacidade de transformação de quase 30 mil MVA em suas 93 subestações. Uma teia imensa e vigorosa que permite a expansão de negócios, a instalação de novos parques industriais, a ampliação do setor comercial e mais conforto no dia-a-dia de quase 50 milhões de pessoas. A rede de energia da Chesf interliga os Estados do Nordeste e une a região aos sistemas de transmissão das regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Disponível em: http://www.chesf.gov.br/energia_linhasde-transmissao.shtml Acesso em: 17/02/2008.

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Núcleo da Chesf, local muito aprazível, repleto de jardins, fontes e lagos. Esse proje-to urbanístico serviu para, inicialmente, abrigar, em belas e confortáveis residências, todo o pessoal que participou da implantação das usinas da Chesf: engenheiros, técni-cos, médicos, dentistas, assistentes sociais, professores, Para as construções, utilizou-se bastante o material mais encontrado na região: a pedra bruta.

Este núcleo, nos anos 1950, era isolado do entorno, a Vila Poti, que pertencia ao município de Glória. Em 1958 foi anexado territorialmente a essa vila, que, emancipa-da, tornou-se a sede do município de Paulo Afonso. Hoje conta com 96.499 habitantes (IBGE, 2000) e é o centro de uma Região Administrativa do Estado da Bahia. Tem muita articulação com os Estados de Alagoas e Sergipe, por causa da facilidade de acesso, através da rede rodoviária. Pudemos constatar um grande fluxo de visitantes, excursionistas, que vêm de áreas próximas, aproveitando-se dos parques para piqueni-que, passeio de carro ou bicicleta.

Deve-se ressaltar que Paulo Afonso é um pólo turístico regional, muito visitado pelos habitantes das cidades vizinhas, com diversos atrativos, sobretudo para esportes radicais, modalidade esta que tem muitos adeptos e que aqui se exibem, provenientes de outros Estados ou mesmo de outros países, aproveitando-se das potencialidades do relevo e das condições climáticas. As modalidades desse tipo de esporte são princi-palmente: balonismo, mountain bike, trekking, canoagem, mergulho, rapel e tiroleza. Extenso programa de eventos variados realiza-se durante todo o ano. Este município destaca-se igualmente como grande pólo pesqueiro com a introdução de espécies exó-genas como a tilápia, que é largamente criada em cativeiro.

A cachoeira de Paulo Afonso, depois de transformada em geradora de eletri-cidade, perdeu parcialmente o seu encanto. Hoje ela é completamente “regulada” pela Chesf e só em momentos especiais, quando a água é liberada em grande quantidade, apresenta-se com beleza extraordinária, relembrando a impressão que Teodoro Sam-paio, dentre outros, teve ao visitar o lugar:

O espetáculo é, de veras, indescriptivel, tão vario, tão grande, tão estupendo elle se nos offerece, atravéz dos mais bellos effeitos de luz e coroado com o diadema phantastico, fugidio do Íris, tantas vezes apagado quantas renovado ao embate da luz obliqua e dos vapores ascendentes, que não me sinto com forças para pintal-o.

Paulo Afonso vê-se, sente-se, não se descreve (SAMPAIO, 1905, p.21)

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O final desta citação que se tornou um clichê mostra perfeitamente o impacto emocional sentido por Sampaio diante da grandiosidade deste espetáculo e é sempre retomado para expressar a emoção dos visitantes diante do mesmo quadro, quando eventualmente ele ocorre.

Por outro lado, a nossa ida até a cidade alagoana de Delmiro Gouveia, na ou-tra margem do rio, deveu-se à falta de acomodações para o nosso grupo, em Paulo Afonso, que estava com seus hotéis, pousadas e pensões completamente lotados no feriado de 12 de outubro, Dia da Criança e de Nossa Senhora Aparecida (Padroeira do Brasil). Hospedamo-nos na Pousada da Pedra, que havia sido uma indústria de tecelagem implantada por Delmiro Gouveia22, cujas instalações foram adaptadas para transformar-se em hotel.

No dia seguinte, sábado, fomos visitar rapidamente um dos eventos mais tra-dicionais da região: a feira semanal da cidade. Pudemos conferir que ela é bastante sortida em frutas e legumes, provenientes dos projetos de irrigação da Chesf ou de outras áreas irrigadas mais distantes e dispondo ainda de grande variedade de carnes, de cereais, de produtos feitos com farinha de mandioca, contando também com a pre-sença de artesanatos típicos e muita confecção. Em geral os produtos são espalhados pelo chão, mas com distribuição por especialidade. Nota-se que os espaços são tão demarcados e tradicionais, que se poderia falar em miniterritórios ou territorialidades da feira livre. O sertanejo autêntico se faz presente, podendo-se igualmente perceber o sotaque bem típico da região.

22Delmiro Gouveia, cearense (1863-1917), um grande empreendedor nordestino, foi quem primeiro percebeu a importância do potencial hidrelétrico do Rio São Francisco. No início do século XX, montou a usina de An-giquinhos, na cachoeira de Paulo Afonso, na divisa de Alagoas e Bahia. Com a energia produzida pela usina, ele implantou uma tecelagem. De visão moderna, construiu casas para os operários. Foi assassinado, segundo consta, a mando dos ingleses, que haviam tentado comprar sua fábrica. O maquinário foi jogado no rio.

Figura 6: Rede de transmissão de energia elétrica da Chesf. Desenho de M. Debeauvais, 2008.

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Roteiro 5Paulo Afonso/Penedo: patrimônio cultural

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Esse trecho foi igualmente demorado para percorrer, devido ao mau estado da rodovia. Saímos da Bahia para Alagoas e as estradas continuam péssimas, apresentan-do-se parcialmente sem asfalto e em outros momentos cheias de crateras.

Passamos pela Barragem de Xingó23, próxima a Paulo Afonso, e com isso completamos a Zona Turística potencial conhecida como Zona dos Lagos do São Francisco. Um dos maio-res entraves para o desenvolvimento do fluxo turístico nesta região, considerando-se Salvador como área emissora, é a dificuldade de acesso rodoviário, sobretudo a partir de Geremoabo, com rodovias baianas em péssimo estado de conservação, o que nos impede de apreciar tanta diversidade geográfica de nosso Estado, e termos uma alternativa para o tradicional turismo de “sol e praia”. O governo estadual precisa se direcionar para estas novas possibilidades, que são de há muito aproveitadas pelos Estados vizinhos de Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Através de diversos segmentos do turismo.

Depois de atravessar um longo trecho de Caatinga, passamos pela Zona do Agreste, onde a vegetação se assemelha ao Cerrado e finalmente chegamos à Zona da Mata, com grandes canaviais que sobrevivem desde a época do Brasil Colônia. O Rio São Francisco vai acompanhando a estrada, ora serpenteando-a, ora afastando-se.

Ao chegar a Penedo já era noite e fomos diretamente para o hotel, ou melhor, para a “Pousada e Churrascaria o Laçador”, muito confortável e que se localiza logo à entrada da cida-de. Destaca-se como um fato inusitado, pois um meio de hospedagem com aquele padrão nem sempre é encontrado nessa região tão empobrecida, tampouco na entrada de uma cidade.

Depois de instalados, tomamos um táxi e fomos visitar o Centro Histórico. Penedo é uma cidade-monumento de grande importância histórica, tendo carisma e muita personali-dade. Muitos monumentos religiosos — igrejas, conventos e fortes — constituem o seu Centro Histórico, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Penedo era a porta de entrada do Rio São Francisco, cuja foz fica localizada a menos de 40 km aproximadamente, sendo a mais antiga cidade do Vale do São Francis-co, construída, em 1626, por Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco. Ainda no século XVII foi invadida e ocupada por holandeses, tendo Maurício de Nas-sau construído um forte, considerando a posição estratégica da cidade para dominar todo o Nordeste. Só algum tempo depois é que eles foram expulsos pelos portugueses.

23A barragem de Xingó também apagou do mapa pequenos núcleos urbanos, que foram reconstruídos em outros locais. Tem um potencial hidrelétrico de 3.000,0 MW, o que corresponde a 30% do potencial total da bacia do São Francisco.

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Também foi ocupada temporariamente por franceses. Todos esses momentos e tentativas de dominação deixaram traços na cidade, através dos diversos monumentos e sobrados de bela arqui-tetura. Merecem destaque as constru-ções religiosas que se encontram ainda em bom estado de conservação, como a Igreja Nossa Senhora da Corrente, Igre-ja e Convento Nossa Senhora dos An-jos, o Oratório, a Igreja de São Gonçalo Garcia, a Catedral Matriz de Penedo, e outras. Podem ainda se observar tra-ços culturais muito fortes, na religião, nos eventos religiosos, destacando-se aqueles em louvor a São Francisco, na culinária, no artesanato bem variado, sobretudo voltado para os bordados, as tranças de palha e a cerâmica.

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Penedo tem tradição cultural, com um belo teatro, construído no século XIX, que sediou, durante muitos anos, o Festival Nacional de Cinema, perdendo posterior-mente para Gramado, no Rio Grande do Sul. Muito dessa memória está sendo recupe-rada pelo Museu do Homem do Penedo, que possui um grande acervo iconográfico e de peças pertencentes aos barões do açúcar, dentre os quais o Barão do Penedo, bem como uma biblioteca com 28.000 títulos, onde se encontra extensa bibliografia sobre a Bacia do São Francisco.

Durante o café da manhã, ainda na Pousada O Laçador, assistimos, pela tele-visão local, a uma parte do Programa Gazeta Rural, introdutório ao Globo Rural de domingo, e uma informação nos chamou a atenção: dizia-se que em Piranhas, cidade alagoana citada na Expedição de Teodoro Sampaio e produtora de cana-de-açúcar, o padre Cícero (1844-1934), de Juazeiro do Norte (CE), mais conhecido como Padinho Ciço, distribuía na comunhão pedaços de rapadura (sic), ao invés de pão, mostrando a integração da Igreja Católica com a cultura local.

Tanto quanto em Juazeiro, a carroça é também um transporte de carga bastante utilizado em Penedo, e uma imagem constante a se deslocar pela cidade, além da bici-cleta e da moto, que é também utilizada como táxi. O serviço de transporte urbano e interurbano é intenso e eficiente.

Figura 7: Detalhe da arquitetura de Penedo. Desenho de M. Debeauvais, 2008.

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Roteiro 6Penedo/Salvador: o retorno

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A passagem pela cidade de Penedo foi tão rápida quanto bastante movimentada: visitamos o Centro Histórico e a Zona Portuária, vendo-se uma grande quantidade de embarcações, naquele momento ancorada, mas que, segundo informações de habitantes locais, produz um intenso fluxo entre Penedo e a cidade de Neópolis (SE); dentre os vá-rios tipos de embarcações (barcos grandes/pequenos e canoas) há a balsa que transporta passageiros, todo tipo de veículos, inclusive caminhões e vans e mercadorias variadas. Tiramos o máximo de fotografias que pudemos. Em seguida, jantamos num restaurante bem agradável, na Pousada Colonial, dentre as muitas existentes, onde apreciamos, entre outras comidas típicas, carne-de-sol com macaxeira e a deliciosa moqueca de sururu, solicitada pela nossa equipe. Um outro restaurante muito agradável, localizado à beira do Cais é o Oratório, é bem decorado e tem uma excelente cozinha.

Penedo, pelo seu porte de cidade média, com 59.020 (IBGE, 2007) habitantes, é relativamente calma, com vida noturna muito pouco movimentada; fomos informa-dos que lá se obedece a lei do silêncio, após 22h é proibido tocar música. Após o jantar, vimos que tudo já estava praticamente fechado, ao contrário, por exemplo, de Delmiro Gouveia, onde o movimento nos bares e restaurantes aumenta sensivelmente a partir das 22h. No dia seguinte, ao sair, retornamos em comboio ao Centro Histórico, para fazer mais fotos. Eram quase 9h da manhã e tudo permanecia fechado, justificando-se pelo feriadão do Dia da Criança.

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A impressão que dava esse marasmo era de que estávamos diante de um centro urbano em processo de declínio. Bonita arquitetura, mas com pouca vida. Ressalte-se que Penedo foi considerada “porta de entrada do Rio São Francisco”, como já citado, com embarcações que, vindas da Europa, a partir dos séculos XVI, XVII e XVIII, tra-ziam passageiros e mercadorias. No século XIX, já era intenso o seu movimento e ela abrigou levas e levas de migrantes que fugiam da terrível seca que assolou a região, conforme depoimento de Teodoro Sampaio, em 1879, em sua expedição.

Com o crescimento urbano, Penedo passou a dispor de dois tipos de transpor-te: o flúvio-marítimo e o rodoviário, sendo passagem e parada obrigatórias para todo o fluxo de ônibus, caminhões e carros particulares que faziam a rota NE/SE e vice-versa, tendo que atravessar o rio por meio de uma balsa, já que não existia nesse trecho ponte sobre o São Francisco. Esta situação favoreceu por muito tempo a cidade, que contava com um porto movimentado, bares e restaurantes, hotéis médios ou pousadas, feira livre diária e intenso comércio de artesanato. Atualmente só possui um grande hotel, o São Francisco, construído em 1962, com piscinas e localização privilegiada no centro da cidade e voltado para o rio; mas é grande o número de pousadas.

A abertura da rodovia BR-101, no final dos anos 1980, deslocou o eixo das ativi-dades econômicas para mais próximo do litoral, favorecendo as cidades de Estância ou Propriá (Estado de Sergipe) e Penedo ficou como um apêndice, na malha rodoviária. Sem o movimento de outrora, a cidade perdeu aquele brilho natural, praticamente só recebendo visitantes em número reduzido, mas constantes, que são atraídos pelo rico patrimônio histórico-cultural da cidade. São procedentes de várias partes do país e do exterior. Por esse ângulo, vemos que Penedo tem grandes possibilidades para desen-volver o segmento do turismo cultural, se for implantada a infra-estrutura necessária e houver mais investimento em marketing.

Em relação ao transporte flúvio-marítimo, houve igualmente um declínio, uma vez que a cidade se localiza no Baixo Curso do rio, próximo à foz, onde se verifica um acentuado processo de assoreamento, com presença de bancos de areia, tornando difícil a navegação de embarcações de maior calado. Há, porém, um grande movimento de lanchas, pequenos veleiros, canoas e a balsa, que faz a travessia entre Neópolis e Penedo, já mencionada. Segun-do depoimentos de moradores locais, a profundidade do Rio São Francisco, próximo à foz, encontrava-se, naquele momento de grande estiagem, em torno de 50 cm. Também fomos informados que a Universidade Federal da Bahia, juntamente com a Federal de Sergipe, atra-vés de um Grupo de Pesquisa interdisciplinar, está estudando a dinâmica da foz e os impactos socioambientais de todas essas intervenções sofridas pelo São Francisco.

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Os moradores locais queixam-se não só da diminuição do pescado mas também da quase extinção do plantio de arroz nas áreas de várzea, além da dificuldade para a navegação, devido ao assoreamento do rio.

Na zona rural de Penedo, que atravessamos, predomina a cultura da cana-de-açúcar, com algumas áreas em período de colheita e queimada. O esco-amento da produção se dá praticamen-te através do transporte rodoviário, em

grandes carretas, que demonstram ultrapassar o limite de carga. As conseqüências de excesso de peso podem ser observadas nas rodovias, em longos trechos malconserva-dos, com muitas crateras, que se tornam perigosos e provocam acidentes.

confeccionados com material reciclado, enfim, uma diversidade de escolhas bem expressiva e a preços razoáveis. Uma toalha de mesa bordada, redonda (1,50m de diâmetro) poderia ser adquirida por R$ 60,00, utilizando-se a técnica da “pechincha”. Toalhas de mão para cozi-nha, com bonitos bordados, a R$ 5,00, muitas figuras de cerâmica representando pescadores, vaqueiros, meninos, velhos, a R$ 10,00 ou menos. A miniatura do ônibus, feita de material

Saindo do domínio da cana-de-açú-car, vê-se em Sergipe uma área dinâmica com diversas indústrias. Seguimos o curso do São Francisco, depois de atravessá-lo em Propriá, também no Estado de Sergipe.

Paramos por 10 minutos num posto de gasolina próximo a Propriá e, de um peque-no restaurante, visualizamos o Velho Chico, que passava, nos fundos das casas, com mui-ta imponência e tranqüilidade. Um pequeno comércio de artesanato mostrava a variedade dos produtos confeccionados na própria re-gião e em outras áreas mais distantes: borda-dos diversos, cerâmicas e objetos feitos com madeira, miniaturas de ônibus e caminhões

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reciclado, custava R$ 20,00, mas logo em seguida foi oferecida por R$ 15,00. Ou seja, numa primeira abordagem os preços eram sempre mais altos, baixando à medida que fossem rega-teados, parecendo um mercado oriental.

Daí, fomos em direção a Estância, ainda no Estado de Sergipe, chegando final-mente no limite com a Bahia, na localidade chamada Indiaroba, às margens da rodo-

Em torno das 13h, entramos ao município do Conde, onde, na aprazível lo-calidade de Sítio do Conde, fomos almoçar no Restaurante Zeca’s, recomendado pela equipe do Biodiesel. A comida realmente é muito boa, tudo saboroso e o atendimen-to rápido e eficiente. Camarão, peixe, sururu e pitu saíram em diversas modalidades, sendo servidos em porções bastante generosas. Após o almoço retomamos a rodovia BA-099, Linha Verde, com destino a Salvador.

O percurso se desenrolou sem problemas, a rodovia está bem conservada. En-contramos ainda dois acampamentos do MST em terrenos localizados na APA Litoral Norte. O primeiro, próximo ao rio Inhambupe (direção Palame—Baixios), e o segun-do, na bacia do Rio Subaúma, próximo à localidade de igual nome.

O fluxo de veículos retornando do feriadão começou a se avolumar a partir de Praia do Forte / Guarajuba, duas localidades turísticas de grande expressão e situadas na conhecida Zona Turística Costa dos Coqueiros na Bahia, diminuindo bastante a nossa velocidade, possibilitando, porém, a nossa chegada a Salvador às 17h30, no esta-cionamento da Petrobras, de onde tínhamos saído no dia 08/10/07. (Foto) Terminamos em paz a viagem, com saúde e com a bagagem de conhecimentos bem aumentada.

via BA-099, trecho conhecido como Linha Verde. Visualizamos um an-tigo engenho de açúcar, remanes-cente do período colonial conheci-do como Ciclo da Cana-de-açúcar, tendo sido recentemente restaurado e apresentando-se com um bonito aspecto, e outros, quase em ruínas.

Passamos por mais um acam-pamento do Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Terra (MST).

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CONCLUSÃOA experiência extraída da Expedição Juquiá: Rumo ao Rio São Francisco foi

muito positiva, a começar pela interação entre os pesquisadores e a equipe do Projeto B5 Biodiesel e especialmente pela visão geral que a viagem nos proporcionou.

O foco de nossa expedição foi o Rio São Francisco, em seu trecho Submédio e Baixo (das cidades de Juazeiro/Petrolina até Penedo). O péssimo estado de conserva-ção da rede rodoviária baiana também impossibilitou a viagem pela margem direita do rio. Assim não passamos por diversas cidades, como Curaçá, Macururé e outras nas proximidades de Sobradinho, como Remanso e Pilão Arcado.

Centramos a nossa atenção no sertão irrigado que está se modernizando, com uma grande ruptura das culturas tradicionais, ao lado do sertão produtor de energia, com suas barragens e suas paisagens cortadas por redes de alta voltagem: o sertão da Chesf. Neste recorte espacial, onde o Rio São Francisco atravessa os territórios baiano, pernambucano, alagoano e sergipano, configurando o caráter federal desta bacia hi-drográfica, torna-se mais evidente a explicação da presença de tantos órgãos federais nos principais centros urbanos, inclusive o Exército em intervenções de grande porte, como vimos em Tucutu (Eixo Norte do Projeto de Transposição do rio).

A relação espaço-tempo foi mais um desafio nesta viagem, pois um percurso tão longo, a ser realizado em tão pouco tempo, apenas nos permitiu uma percepção muito generalizada da realidade. Uma visão panorâmica do Semi-árido, do domínio da Caatinga, onde as condições climáticas são tão adversas para as populações locais, foram constrangedoras para nós, moradores citadinos da faixa litorânea. Apenas de longe, percebemos situações que evidenciam contrastes socioculturais e econômicos, mas não pudemos interagir com a população local, protagonista deste drama, para aprofundar alguns questionamentos com relação aos diversos “tempos” percebidos.

Um sertão seco e quente, temperaturas superiores a 32ºC, à espera de chu-vas que deveriam chegar a partir de novembro e prosseguir até março/abril de 2008. Quando lá estivemos, a expectativa de chuva já era grande, com um céu que geral-mente amanhecia bem nebuloso e depois ia se dissipando, com o desaparecimento total das nuvens. Era visível o nível relativamente baixo em que se encontravam as barragens, em especial a de Sobradinho, onde se verifica a mais alta evaporação da

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bacia. Neste sertão onde o uso da terra para a atividade agrícola é quase impossível, se não forem utilizadas as técnicas de irrigação (introduzidas recentemente no vale, ou seja, há menos de 30 anos), que, todavia, não são acessíveis a muitas pessoas. Parte substancial dessa população ribeirinha vem sendo excluída, a cada dia, da terra e do trabalho e, em conseqüência, do capital. Esta “modernidade”, a irrigação, só absorve parte da mão-de-obra, precisando de muita capacitação. Antes, essa mão-de-obra era de “vazanteiros”, que praticavam uma agricultura de subsistência de curto ciclo, nas áreas de vazantes, após as cheias do rio. Hoje, sem esta possibilidade, vivem de progra-mas assistencialistas do governo federal, inclusive dependendo da própria água para consumo doméstico, sendo abastecidos por carros-pipa, de forma gratuita ou muitas vezes paga, conforme depoimentos de moradores locais.

Por outro lado, esta agricultura irrigada oriunda de capitais externos à região, sejam eles de outras áreas do Brasil ou de outros países, tem uma grande importância para a economia regional, por causa da cadeia produtiva em torno das culturas da uva e da manga, por exemplo, onde os derivados como sucos, vinhos e polpas têm movi-mentado cidades, famílias, grandes e até mesmo pequenos empresários, aumentando dessa forma o PIB regional.

No âmbito da educação, essa nova atividade tem provocado novas possibili-dades, como cursos especializados de Gastronomia e Enologia, abrindo muito boas perspectivas, por exemplo, para o turismo cultural.

Muitas faculdades, filiais de instituições educacionais do Estado da Bahia e do Sul-Sudeste do Brasil, estão se instalando na região; dentre as públicas destaca-se a Uni-versidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), com vários cursos, inclusive Me-dicina e Direito, podendo ser considerada um marco referencial, dada a importância da educação de nível superior, pelos desdobramentos socioeconômicos que tem possibili-tado. A Universidade Salvador (Unifacs) também está presente em Juazeiro, onde visita-mos suas instalações, consideradas excelentes e espaçosas pela nossa equipe.

Não nos furtamos, porém, de registrar as cenas de muita pobreza em algumas cidades; o fato de vermos crianças e adolescentes nas ruas, fazendo biscates ou men-digando, leva-nos a inferir que, ao lado da euforia e da ostentação, aparece também a indigência, o que é terrivelmente grave. Vimos favelas em áreas periféricas de alguns centros dinâmicos visitados, como Juazeiro, Paulo Afonso e Casa Nova. Também pode estar havendo êxodo rural para outras cidades maiores e para as capitais.

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Vimos inúmeros acampamentos por todo o trajeto e pelo menos quatro assen-tamentos (MST), no sertão Semi-árido em Casa Nova, próximo das áreas irrigadas de Lagoa Grande (PE), de Paulo Afonso (BA), em áreas próximas a Arapiraca (AL) ou ao longo da Linha Verde, na Bahia. Este é mais um tema de estudos a ser desenvolvido, inclusive para se saber a procedência destes grupos. E o que fazem. E como vivem... Haveria muitos questionamentos.

O fato de termos visitado apenas uma propriedade irrigada e bem-sucedida e passado por várias vinícolas também produtivas e organizadas, não significa que um número considerável delas não tivesse resultados negativos, tanto em termos finan-ceiros quanto no que concerne a impactos ambientais, ou mesmo gerando problemas como o tráfico de drogas e o êxodo rural. Aliás, para combater o narcotráfico e assal-tos, foi criada a Companhia de Polícia de Ações em Caatinga (CPAC), com diversos postos ao longo das rodovias.

Critica-se também a técnica de aspersão utilizada na irrigação, com pivô cen-tral, ainda empregada na região e que consome mais água, provoca desperdício e, a longo prazo, a salinização das terras (devido à grande evaporação do ar). No entanto, a técnica de gotejamento, mais econômica no consumo de água, já começa a ser utili-zada e difundida na região.

Sabemos que o acesso à água para essa atividade é feito através de outorga por períodos longos, de até 30 anos. Nesse sentido, trata-se de outro tema importante de pesquisa para se saber qual a quantidade de água outorgada e o que ela representa para a vazão do rio.

Também ficou clara para nós a posição de comando, na região, por estas duas cidades, Petrolina e Juazeiro, sendo a primeira mais dinâmica, com multifunções, infra-estrutura e mais facilidade de acesso, dispondo assim de melhores vantagens competitivas. Constata-se que a distância linear entre Petrolina e Recife é de 700 km e de Petrolina a Salvador, de aproximadamente 500 km; no entanto, o mau estado de conservação das rodovias baianas aumenta os custos, em dinheiro e em tempo, para o escoamento da produção agrícola (altamente perecível), dificultando as articulações comerciais e direcionando mais rapidamente os produtos para o porto de Suape, em Pernambuco.

De acordo com alguns depoimentos de habitantes locais, está se configuran-do o papel de cidade-dormitório para Juazeiro, sobretudo com a agricultura irrigada,

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periurbana, em regime de part time, onde as pessoas residem nesta cidade e vão dia-riamente trabalhar ou estudar em Petrolina. Essas migrações diárias também chama-das de “movimentos pendulares” são observáveis mais nitidamente nas horas de rush, quando a ponte sobre o São Francisco, que faz a ligação entre as duas cidades, fica completamente obstruída pelo pesado fluxo de veículos e pessoas durante minutos, ou mesmo durante horas. Outra alternativa destas populações é a utilização do catamarã, que faz a travessia do rio em torno de 10 minutos, diariamente, até às 23h.

Seria talvez prematuro fazermos algumas afirmações, pois o objetivo da viagem não permitiu um aprofundamento dos problemas constatados; todavia, como reflexão, parece-nos pertinente fazermos algumas considerações.

Observamos nessa viagem o fenômeno das desigualdades socioeconômicas, situações graves do processo de modernização, seja através da favelização nos centros urbanos, nos acampamentos do MST ou na mendicância infanto-juvenil.

Podemos, também, de forma abrangente, inferir que as “modernidades” que vêm sendo introduzidas no São Francisco, como as barragens e a irrigação, têm trazido resul-tados econômicos positivos, o que se traduz na elevação do nível de vida de uma parte da população e em maior concentração de riqueza nas cidades, fato que pode ser consta-tado pelas construções de luxo, monumentos e intervenções urbanísticas de muito bom gosto. As cidades vêm crescendo num ritmo bastante acelerado. Além de Petrolina, Ju-azeiro e Paulo Afonso, sabe-se que Curaçá e Casa Nova estão igualmente num ritmo de crescimento bastante dinâmico devido à agricultura irrigada e a atividades agregadas.

Todavia, essas intervenções não têm privilegiado a população ribeirinha mais pobre que tem as suas culturas calcadas em uma outra lógica, em um outro ritmo. Parte dessa população foi deslocada mais para o interior nas chamadas comunidades de “fundo de pasto”, vivendo em condições precárias

Com a introdução das barragens diminuíram as cheias naturais do rio, mas des-regularizou-se o seu regime fluvial: não se verificam mais as épocas de vazantes, quando o húmus se depositava nas margens e os ribeirinhos faziam a agricultura de subsistência, plantavam arroz e comercializavam o excedente. Antes, as lagoas de vazantes transfor-mavam-se em “berçários” para diversas variedades de peixes que ali se desenvolviam e depois serviam para a pesca artesanal. Hoje, a técnica chamada “pesca-tanque”, que consiste no cercamento para aprisionar os peixes, é visível em alguns pontos, mas é criti-cada por vários pescadores tradicionais. As “cheias”, manipuladas pelas vazões artificiais,

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continuam a existir e prejudicam muito as populações ribeirinhas e a economia regional, como a última que ocorreu em março de 2007 e teve grande cobertura da mídia.

As barragens em geral foram construídas principalmente para a geração de energia elétrica e isso foi atingido. A Chesf é a empresa que produz e distribui energia para o Nordeste e para outra região do país, o Sudeste, o que passou a ocorrer, há pou-co tempo, por determinação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

É fato que as barragens modificaram a dinâmica fluvial, a piracema — e, se-gundo pescadores, provocaram a diminuição da quantidade de peixes, entre os quais o piau, o surubim (peixe grande, semelhante ao bacalhau), endêmico do São Francisco e hoje quase inexistente. Diminuiu também o cardume de piranhas, espécie vorazmente agressiva, que deu seu nome a uma cidade ribeirinha (Piranhas) no Estado de Alagoas, que era o ponto final da navegação fluvial do Baixo Curso, e também primeira estação ferroviária, construída no século XIX. Essa problemática pode ser considerada mais uma desafiante linha de pesquisa.

Nota-se que houve ruptura nos hábitos tradicionais, seculares, das populações ribeirinhas, seja através da pesca ou da agricultura de vazante, o que vai gerando uma série de ações e reações extremamente prejudiciais à bacia, como um todo.

O que, portanto, salta aos olhos é dramático: a maioria dessa população luta para sobreviver; mas é uma população acuada, de um lado, sem possibilidade de tra-balhar a terra, pela adversidade do clima e, em diversos pontos, pela pobreza do solo; sobretudo, pela incapacidade técnica e financeira de utilizar novos instrumentos de trabalho; e de outro, sem acesso à água, que lhe passa sob as vistas e que lhe é vital, au-mentando dessa forma a sua dependência, procurando nesse sentido uma adaptação à nova ordem, o que ainda não conseguiu.

O quadro acima descrito é agravado pela derrubada de matas ciliares e o con-seqüente assoreamento do rio, o aparecimento de bancos de areia e a dificuldade para manter com segurança a navegação interna — especialmente nos trechos considera-dos navegáveis entre Pirapora e Juazeiro (total de 1.371 km) e Piranhas, a sua foz no Oceano Atlântico (total de 208 km). Ressalte-se que o transporte fluvial, tão utilizado em todo o mundo, corresponde apenas a 1/10 do custo do transporte rodoviário; além do mais ele não é tão poluente tanto quanto este último. É triste vermos um patrimô-nio como a diversidade de embarcações típicas desse rio ser dilapidado, ou subapro-veitado, com muita gente desempregada, por não poder fazer o transporte.

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O aparecimento de várias ilhas fluviais, a perda da força da vazão e formação de meandros são processos da dinâmica do rio, que possivelmente foram acelerados pelas diversas intervenções, sejam as realizadas pelo Estado, sobretudo através das barragens, sejam pelos habitantes ribeirinhos, com a derrubada de matas ciliares. As barragens fo-ram as intervenções que mais impactos causaram ao meio ambiente. Daí, uma interven-ção do porte daquela, que se propõe com a transposição do rio, talvez traga impactos irreversíveis, dada a fragilidade ambiental em que se encontra a Bacia do São Francisco. Observamos, em diversos pontos do rio, grandes quantidades de iguapés, plantas aquá-ticas que têm uma tendência à expansão e que se desenvolveram em ritmo intenso, as quais, em última instância, podem sufocar o curso d’água.

Por todos esses motivos, insistimos na necessidade de se buscar um ponto de equilíbrio, visando à sustentabilidade da bacia. A visão sistêmica então se apresenta, tanto nos estudos quanto na implantação de projetos, de maneira imprescindível. O go-verno, o setor privado ou mesmo o chamado terceiro setor, ao fazer intervenções, não devem considerar apenas a dimensão econômica, mas também a social e a ambiental. As comunidades ribeirinhas devem ser ouvidas, pois têm muitos saberes e elas próprias, por outro lado, precisam se ajustar à nova realidade. Há necessidade de se resgatar muitas in-formações, saberes e fazeres que estão sendo perdidos, com a morte das pessoas idosas.

Essa expedição de caráter exploratório fez aflorar ainda mais, de maneira ques-tionadora, toda a problemática que esta região apresenta. Sentimos necessidade de criar, propor novos estudos para a região, como foi evidenciado no nosso objetivo geral. Nesse sentido, diversas reuniões de trabalho estão previstas, inclusive com par-ticipação de representantes do Albright College e do Programa Companheiros da Américas (Comitê Bahia-Pennsylvania), para que, em conjunto, possamos definir ou estabelecer uma proposição geral de estudo.

Nossa expedição, a despeito de ter sido realizada num curto espaço de tempo, atingiu os objetivos propostos: seu caráter exploratório permitiu uma percepção panorâmica da rea-lidade em foco; uma farta documentação fotográfica que será objeto de exposição e produ-ção de um vídeo para exibição pelo convênio Unifacs/Albright/Companheiros das Américas em diversas localidades dentro e fora do Brasil. A identificação de possíveis roteiros turísticos, como o da rota do vinho, ou ainda a criação da rota do artesanato, da rota histórica regional, além, é claro, da rota ecológica, também foram outros objetivos atingidos.

As possibilidades de estudos são diversas como a própria região, como pôde ser ressaltado ao longo do texto. A discussão (que está sendo aprofundada) sobre a visão

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de Teodoro Sampaio e o que ele vislumbrou como potencialidades para aquela bacia, suas propostas e as de outros estudiosos, também fez parte dos objetivos desta expedi-ção. Isso desencadeia uma série de questionamentos como, por exemplo, com relação à navegação interna, que teve uma vida tão efêmera, mal chegando a um século...Quais as razões que a fizeram declinar e quais as possibilidades para a sua recuperação nos dias atuais? Ademais, ver o imponente rio “domado”, como disse a pesquisadora Eliza-beth Kiddy (2007), maltratado, barrado, modificado, sugado, talvez trouxesse nos dias atuais uma grande frustração para Teodoro Sampaio, o pioneiro das pesquisas sobre a região sanfranciscana e nosso inspirador.

São os seguintes os aspectos críticos e carências que identificamos em nossa área de estudo com vistas à reflexão e à adoção de soluções alternativas viáveis e urgentes:

• RevitalizaçãodoRioSãoFrancisco—açõesemergenciaisedelongoprazoaserem realizadas: replantio de matas ciliares, educação ambiental para as popu-lações ribeirinhas.

• Transposição:oquevemaseressaproposta?Precisamosaprofundaressetema,tão polêmico quanto os fins propostos.

• Possibilidade de aproveitamento da energia solar: a luminosidade na área éextraordinária. Essa energia alternativa poderia atender a demanda reprimida que já existe e que, para ser suprida, precisará de novos barramentos no rio.

• Airrigaçãoeatécnicadegotejamentodevemsermaisdifundidas.Incentivoapequenos proprietários

• O problema da população ribeirinha (expressão abstrata): a necessidade deestudá-la em seus diversos segmentos já que é constituída, dentre outros, pelos vazanteiros, pelas comunidades de fundo de pasto, pelas populações indígenas, pelos pescadores, pelos quilombolas, pelo vaqueiro, grupos estes que tinham uma territorialidade e uma identidade, hoje em conflito com a modernidade.

• Odesempregoeotrabalhoinfanto/juvenil.

• OsacampamentosdoMSTeoproblemadedistribuiçãodeterra.

• Ocultivodamaconhaemáreasirrigadas.Eoaumentodaviolêncianaszonasrural e urbana.

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• Oproblemadaacessibilidade,atravésdamalharodoviária,eanecessidadedeimplantação de um sistema intermodal de transporte. O aproveitamento do transporte fluvial nos trechos navegáveis.

• Oartesanato tãopeculiardaregião feitodemadeiraoudeargila, sobretudocom destaque para as carrancas, além dos bordados em tecidos e objetos de palha e de outras manifestações culturais de tanta riqueza hoje praticamente em declínio ou descaracterizadas.

• Odesenvolvimentoderotasturísticasincluindo,porexemplo,modalidadesdetu-rismo ecológico ou de aventura na Região dos Lagos do São Francisco e do Turismo Cultural, na área de Juazeiro/Petrolina, ligado à enocultura, ou em Penedo.

• Alternativasparaoconvíviocomaseca,comoBiomaCaatingaecomascon-dições do Semi-árido, sem as possibilidades de agricultura de vazante e de se-queiro e da pesca artesanal, dada a irreversibilidade deste modus vivendi, tam-bém devido à implantação das barragens ou da irrigação. Ou seja, insistir no paradigma contemporâneo da sustentabilidade: a busca do equilíbrio, como foi amplamente discutido em recente seminário sobre esta região.

Sete dias de viagem. Esse foi o tempo que tivemos e que nos proporcionou esta leitura. Uma análise abrangente feita a partir desta expedição significa perceber o próprio dinamismo social daquela área. Desde o tempo de Teodoro Sampaio, Halfeld e outros estudiosos, muitas coisas mudaram ou até mesmo inverteram seus papéis, especialmente com a introdução de novas tecnologias, mudanças de hábitos e costu-mes, ao longo do século XX e início do século XXI. Todavia, há algo que não mudou. Algo está enraizado ou encravado naquele chão, naquelas paisagens resistentes: a seca, o umbuzeiro, o mandacaru, a Caatinga, as margens de um rio que muita história tem para contar, o São Francisco, mas, sobretudo a coragem e a força do sertanejo, a sua cultura e a sua fé no futuro.

A dualidade de paisagens que reflete de um lado a paisagem natural e do outro a so-ciocultural é tão marcante que nos impressionou imensamente, dando-nos a impressão ou mesmo a certeza de que esse processo de transformações tem se verificado de uma forma muito complexa diante da magnitude, generosidade e “paciência” do São Francisco.

Esta viagem fez também aflorar toda a nossa vivência e todo o nosso conhecimento sobre o Semi-árido, sobre o Sertão, este espaço/lugar tão amado, decantado, querido e odiado por vezes, mas, sobretudo, impregnado em nosso imaginário, através da literatura, que inclui

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muito a dos poetas de cordel, da história oral, que nos foi transmitida por nossos ancestrais, destacando-se a saga de jagunços, cangaceiros, coronéis e beatos, e também através da música, das peças inesquecíveis de cantores populares como Luiz Gonzaga, com a canção já citada no texto e ainda com duas outras consideradas antológicas, Asa Branca e Triste Partida, transmitin-do o drama do sertanejo, ao ter que abandonar o torrão natal, pressionado pela seca, o faz com o coração partido, tão enraizado ele é ao seu “lugar”, ao seu mundo, à sua cultura, símbolos e mi-tos. Mesmo com a expectativa de enfrentar a cidade grande, aventurar-se em trabalhos pesados e ter alguma possibilidade de fazer dinheiro, ele pensa sempre em retornar às suas raízes...

Viajar pelo Sertão desperta em todos nós um misto de sentimentos e de emo-ções, mas nunca a indiferença. Nós, com certeza, depois desta expedição não seremos mais os mesmos. A propósito do São Francisco, eis a reflexão que nos cabe fazer, antiga e sempre renovada, contida em dois fragmentos de Heráclito, filósofo pré-socrático: “Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas”. “Não se pode entrar duas vezes no mesmo. Dispersa-se e reúne-se; avança e se retira”.

Teodoro Sampaio no final do século XIX, ao viajar pelo São Francisco, descreveu paisagens, populações, ocupações várias, costumes; inferiu, mapeou através de croquis bem precisos e contribuiu enormemente com todas estas informações, sobretudo para os trabalhos de modernização que ali seriam introduzidos pelo Governo Imperial.

Nós, pesquisadores contemporâneos, ao fazer esta viagem, procuramos um contraponto com as impressões de Sampaio: também descrevemos, interpretamos e propusemos temas para pesquisa, esperando contribuir com o nosso olhar para o (re) conhecimento daquela área, enfatizando a necessidade de uma visão integrada para o estudo da complexa realidade sanfranciscana, no momento atual passando por gran-des transformações, devido sobretudo ao agronegócio, às novas tecnologias, à infor-mática e à mídia com reflexos diretos sobre as comunidades citadinas ou rurais. Já se fala nos “Novos Sertões”, que exprimem prosperidade, riqueza, pobreza e exclusão, enfim, um grande conflito sociocultural e econômico, nos diversos trechos da bacia sanfranciscana, tanto no Semi-árido como na Zona da Mata, no Baixo Curso do rio.

Este livro é assim uma pequena contribuição aos estudos e pesquisas sobre esta região fascinante, rica e dramática em todos os sentidos a um só tempo. À luz do que vimos, ouvimos e testemunhamos, nela temos a esperança de um futuro melhor para toda a sua população, especialmente a imensa maioria, que empobreceu mais ainda com o progresso e suas modernidades tão acumulativas e excludentes.

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