viagem à índia

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VIAGEM NDIA Ana Maria Magalhes e Isabel Alada Viagens No Tempo - 16 Editorial Caminho Digitalizao e Arranjo Agostinho Costa Este livro foi digitalizado para ser lido por Deficientes Visuais Orlando um cientista que tem uma mquina especial para viajar no tempo. Quando parte para outras pocas, leva consigo os amigos Ana e Joo, de quem gosta como se fossem seus netos. A Ana uma rapariga simptica e sensata. O Joo, alegre e impulsivo, envolve-se nas maiores trapalhadas e por vezes arrasta os outros para situaes difceis. No entanto, como um rapaz criativo, inventa mil estratagemas e ajuda a resolver tudo da melhor maneira. Nesta viagem ndia os trs enfrentaram tempestades, incndios, conflitos, traies, perigos de toda a ordem ao lado dos marinheiros ousados que acompanharam Vasco da Gama. E com eles saborearam tambm o prazer das grandes descobertas. Ttulo: VIAGEM NDIA Autoras: Ana Maria Magalhes e Isabel Alada Ilustraes de Arlindo Fagundes Capa: Arranjo grfico da Editorial Caminho sobre ilustraes de Arlindo Fagundes Editorial Caminho, SA, Lisboa - 2003 Tiragem: 10.000 exemplares

Impresso e acabamento: Grfica Central Mealhadense,

Data de impresso: Setembro de 2003 Internet: www.editorial-caminho.pt Aos queridssimos Matilde, Bernardo e Gonalo E aos descendentes do capito-mor Vasco da Gama Nota: Neste livro a paginao inferior ndice I captulo - Um mergulho com quinhentos anos ... 9 II captulo - Gente curiosa ................... 19 III captulo - Contratos ...................... 27 IV captulo - Tudo a bordo .................... 35 V captulo - A partida ........................ 45 VI captulo - Amizades e amores ............... 55 VII captulo - Aguada em Cabo Verde ........... 63 VIII captulo - O segredo de Janurio ......... 73 IX captulo - Perigo inesperado ............... 81 X captulo - A grande tempestade .............. 91 XI captulo - Por mares nunca dantes navegados 101 XII captulo - Escorbuto junto ao rio dos Bons Sinais .................... 111 XIII captulo - Amigos e inimigos ............ 121 XIV captulo - Finalmente a ndia! ........... 135 XV captulo - Na terra das maravilhas ........ 145 XVI captulo - Sobressaltos .................. 165 XVII captulo - O regresso ................... 177 Aspectos histricos: a viagem ndia ........ 197 I captulo - Um mergulho com quinhentos anos. - Despacha-te, Ana! O Orlando est nossa espera! Joo saltitava ora num p, ora no outro, impaciente porque a irm ainda no estava pronta e ele queria ir o mais depressa possvel para o novo laboratrio de Orlando. O velho cientista tinha mudado h pouco e telefonara na vspera a convid-los para experimentarem o ltimo modelo da mquina de viajar no tempo. Ambos tinham aceitado o convite com entusiasmo mas agora a Ana nunca mais acabava de secar o cabelo! Diante do espelho e de escova em punho, repuxava madeixas hmidas fazendo-as atravessar pelo sopro de ar quente emitido pelo secador. Depois ia-as deixando cair sobre os ombros j fofas e brilhantes com visvel agrado. Aps uma secadela final abanou a cabea como um cavalo a espanejar a crina. - Pronto. Vamos, antes que o Orlando mude de ideias! Radiantes, saram porta fora direitos ao laboratrio secreto mais bem equipado do pas. Orlando recebeu-os de braos abertos. Nos seus olhos azuis danava um

brilho especialssimo de alegria e de expectativa. - Sabem qual o meu plano? - No. Ainda no nos disse. - Pois bem - declarou o velho cientista com uma das suas inconfundveis gargalhadas roucas. - Depois de muito pensar, resolvi experimentar a mquina com um mergulho radical. Vamos atravessar cinco sculos, quinhentos anos, esto a ver? Tenciono aterrar no palcio real a tempo de ouvir o rei D. Manuel a dar ordem de partida aos navios que fizeram a viagem mais fantstica, mais importante e mais decisiva da nossa Histria. - Qual foi? - perguntou o Joo meio baralhado. - Foi a viagem com que muitos reis e muitos navegadores sonharam. Chegou-se a pensar que era uma misso impossvel. Mas quando Vasco da Gama conseguiu chegar ndia por mar, o mundo deu uma cambalhota. - Uma cambalhota? - Estou a falar em sentido figurado. O mundo entrou numa nova etapa. E Portugal tornou-se um dos pases mais ricos e mais importantes daquele tempo. Fantstico, no acham? - Claro! Mas por que que s podemos assistir partida? No podemos ir nos barcos? - Podemos, claro. Mas comeamos por ver o palcio, o rei, os preparativos, a cidade, tudo o que houver para ver em terra. E depois tenciono embarcar com vocs dois. Vamos na nau que se chama So Gabriel porque onde viaja o capito Vasco da Gama. 10 - 11 Orlando fez deslizar uma parede que dava acesso ao laboratrio. Bem ao centro encontrava-se uma mquina de viajar no tempo que se abriu para os receber. Ana e Joo no precisaram que ele os mandasse entrar para se enfiarem l dentro e se instalarem nos assentos de plstico azul que tinham cinto de segurana. Apertaram as fivelas e olharam para o Orlando como quem diz: estamos prontos, vamos a isso. O cientista aproximou-se de um painel de comandos cheio de luzinhas e botes. De expresso muito concentrada e atenta foi carregando no teclado. Ao mesmo tempo ia informando os dois irmos sobre o que estava a fazer: - Vou escolher a data certa. Hum... Dia, 15. Ms, Junho. Ano, 1497. Passou a mo pela testa a fim de enxugar umas gotculas de suor e continuou: - Agora o local. Quero ir para o palcio real que existia no castelo de So Jorge. Preparem-se, que s falta eu dar a ltima instruo preveniu o Orlando. A luz do ecr piscou durante um segundo, a seguir surgiram duas letras garrafais a verde: O.K. Logo a seguir sentiram uma presso nos ouvidos e uma espcie de vento frio a girar a grande velocidade mas que no lhes levantava nem um cabelo. Poucos minutos depois pestanejaram espantados porque atravs das paredes da mquina viam perfeitamente o exterior. Tinham aterrado numa sala pouco iluminada com tapetes grossos no cho e um reposteiro de veludo com enfeites dourados. Orlando sorria-lhes j vestido moda da corte do rei D. Manuel. - Que tal? Fizeram boa viagem? Joo ergueu-se para admirar a sua indumentria, pois tambm ele mudara de roupa sem dar por isso. 12 Tinha meias azuis de seda at ao joelho, um calo tufado s riscas e

casaco de veludo com enfeites nos ombros. - Ests um prncipe perfeito - disse-lhe a irm, essa encantada com o seu vestido de seda amarela at aos ps e com a touca de fitas e prolas a apanhar-lhe o cabelo. - Agora o que que fazemos? - perguntou o Joo. - Os guardas no nos conhecem, podem implicar connosco, no? - No - disse o Orlando. - Para no haver problemas porta que eu disparei directamente para o interior do palcio. Deixamos a mquina invisvel neste canto e seguimos pelos corredores com o ar mais natural deste mundo. Com estas roupas riqussimas toda a gente vai pensar que pertencemos corte ou que somos parentes de algum desses nobres que andam sempre atrs do rei. - Nesse caso, se nos cruzarmos com algum podemos falar e dizer umas tretas, no ? Os olhos do Joo mostravam bem que estava pronto para inventar uma data de fantasias. - Calma. Enquanto no estivermos ambientados, o melhor falar pouco. Se virem pessoas, faam uma vnia e continuem em frente. Finjam que esto cheios de pressa. - E depois? - Depois, logo se v. S lhes peo que no se afastem de mim. Como de costume eu sou o av, vocs os meus netos. Entendido? Nada de precipitaes. - Fique descansado, no vai haver deslizes. Preparavam-se para levantar o reposteiro de veludo e avanar descoberta do palcio, quando ouviram vozes no aposento contguo. - Est ali algum. 13 - Pschiu! Caluda! Orlando afastara o reposteiro com a ponta do dedo para poderem espreitar sem serem vistos. A sala do lado tinha uns janeles enormes com vidros aos losangos. O cho era de pedra, mveis quase que no havia. S uma mesa rectangular coberta por um tapete de l muito colorido e duas banquetas s tiras de madeira. Um dos homens que tinha acabado de entrar, sentara-se. Era alto, magro e bonito. Usava cabelos compridos e os seus olhos esverdeados podiam classificar-se de risonhos. - o rei - sussurrou o Orlando. - Como que sabe? - Conheo a figura. - Mas ele no tem coroa... Orlando abanou a cabea divertido: - Os reis s usam a coroa em ocasies especiais, no andam a passear uma coroa de ouro pesadssima dentro de casa. - Que pena - comentou a Ana. - Assim no parece rei. - E o outro, quem ? - perguntou o Joo. - No sei. Calem-se e ouam. Pela conversa talvez seja possvel descobrir. Muito quietos, de olhos arregalados e no mais completo silncio procuraram captar as palavras que o rei trocava com o visitante em voz baixa. - No me parece boa ideia, Vasco. Tenho medo que no resulte. Dito isto, o rei olhou para a janela e ficou um instante a meditar. O outro no o interrompeu. Manteve-se em p numa atitude de respeito.

14 - O rei chamou-lhe Vasco - ciciou Orlando entre-dentes. - Talvez seja o prprio Vasco da Gama. Prestem ateno, que a gente j descobre se ou no . Os dois irmos pregaram os olhos na figura robusta e morena que envergava um traje quase to rico como o do rei. No era preciso ser um gnio para perceber que se tratava de um homem cheio de personalidade. A cara, o queixo, a barba, a expresso do olhar, a posio do corpo, tudo indicava claramente que sabia o que queria, que era um lutador. Acabava de pedir qualquer coisa, que pelos vistos no agradara muito ao rei. Mas com certeza ia tentar convenc-lo. Aguardaram a continuao da conversa mortos de curiosidade. - O que que achas que ele quer? - perguntou o Joo ao ouvido da irm. - No fao ideia. Nesse momento o rei inclinou-se sobre o tampo da mesa apoiado no brao esquerdo. Continuava com ar pensativo e coou a cabea com a mo direita. Finalmente explicou-se. - Olha, Vasco, eu pensei muito antes de resolver. Tu s o homem indicado para esta misso. Conheo-te bem, sei que s capaz de levar os navios ndia. - Espero que sim, Alteza - respondeu Vasco. - Mas na verdade nunca ningum l foi por mar. - Vais tu. Sers o primeiro. D. Manuel ergueu-se com ar de felicidade estampado no rosto. - O teu nome e o meu nunca mais se apagaro da Histria Universal. Tu, Vasco da Gama, o grande navegador que deste a conhecer ao mundo o caminho que todos queriam encontrar, j pensaste? O caminho martimo para chegar a essa terra fabulosa 15 cheia de riquezas. Ouro, especiarias, prolas, pedras preciosas... A perspectiva encantava-o de tal maneira que encheu o peito de ar e lambeu os lbios como se falasse de petiscos e se preparasse para os comer. Os olhos luziam-lhe de cobia. - Tu, tornas-te famoso como navegador. E eu, como o rei que te l mandou. Vou ficar no s famoso mas tambm riqussimo. E os outros reis a morrer de inveja. Ah, que alegria! - Senhor - atalhou Vasco da Gama com medo de que tanta confiana atrasse azar -, eu ainda no fiz a viagem e h mil perigos espreita. Inimigos, tempestades, incndios a bordo, sei l! - Cala-te, homem. No comeces a chamar desgraas. Vais conseguir, tenho a certeza. Por detrs do reposteiro Ana, Joo e Orlando trocaram uma mirada rpida e contente. Agradava-lhes conhecer o futuro, saber que o rei tinha razo em tudo o que estava a dizer. S uma coisa continuavam sem perceber. Qual seria o pedido de Vasco da Gama? Se o rei precisava tanto dele, por que no lhe fazia todas as vontades? No tiveram que esperar muito para que o assunto se esclarecesse, pois Vasco da Gama voltou carga. Primeiro tossiu, aclarou a voz, pediu desculpa por insistir e l disse alto e bom som o que pretendia. - Senhor, estou muito honrado por ter sido eu o escolhido para esta misso. Tudo farei para que corra bem. Mas gostava de levar comigo o meu irmo Paulo. Ele a pessoa indicada para comandar a nau So Rafael. Mais uma vez o rei torceu o nariz.

16 - Vasco, Vasco! Lembra-te que o teu irmo mais velho do que tu, pode sentir-se humilhado por navegar debaixo das tuas ordens e surgirem conflitos. - Nunca! - interrompeu Vasco da Gama corado de emoo. - Ns damo-nos muito bem. Mesmo quando ramos pequenos raramente brigvamos. Ele mais velho, mas eu sempre fui mais alto e mais forte. O Paulo aceitou isso desde criana, como coisa natural. Somos muito unidos, compreende? Ele est ansioso por navegar ao servio do rei. E para mim era um descanso. Se me acontecer alguma coisa pelo caminho, ele pode substituir-me e assim seria na mesma um Gama a abrir o caminho martimo para a ndia. O rei encolheu os ombros. - Bom, se pes as coisas nesses termos, seja. - Ento posso dizer ao Paulo que Vossa Alteza o escolheu para comandar a nau So Rafael? Nessa altura o rei soltou uma gargalhada. - Escolhi? Quem o escolheu foste tu, que s teimoso que nem uma mula. Mas est bem, diz-lhe que a deciso foi minha para ele partir descansado. Venham c amanh os dois, para conversarmos. Levantou-se e dirigiu-se porta anunciando. - Vou dar uma volta a cavalo que o dia est lindo. Acompanhas-me? Ou preferes ir a casa dar a notcia? Vasco da Gama acenou que sim, que preferia a segunda hiptese. Via-se que estava radiante. Mal saram, Ana e Joo viraram-se para o Orlando. Curiosamente, acharam-no triste. - Que que tem, Orlando? - Nada. - Est triste? 17 - No. - Hum... no me diga que o rei muda de ideias e o Paulo da Gama afinal no vai. isso? O velho cientista abanou a cabea numa negativa firme. - No me faam perguntas. A partir de agora no lhes digo mais nada sobre a viagem. Algumas coisas vocs j sabem... - Eu no sei quase nada - confessou o Joo. Ana fez coro. - Para falar com franqueza eu tambm s sei o essencial. Vasco da Gama partiu, navegou, conseguiu chegar ndia e voltou. A partir da, stop! - Melhor ainda. Assim, tudo ser surpresa, experincias novas. E a primeira comea j, porque temos de atravessar o palcio e sair para a rua sem despertar suspeitas. Temos de atravessar os corredores como se vivssemos aqui, combinado? - Combinadssimo. - Ento v. Toca a andar. Afastou o reposteiro de veludo e avanou a passos largos. Ana e Joo seguiram-no tentando aparentar a mesma calma. 18 II captulo - Gente curiosa.

No palcio no havia corredores, passava-se directamente de uns compartimentos para os outros atravs de porta ou de arco com reposteiro. Aqui e ali janelas em bico, ora com vidros, ora sem vidros, deixavam entrar a luz esplndida do ms de Junho e uma aragem suave que refrescava o ambiente. A vista era deslumbrante. Ana e Joo no resistiram a debruar-se por uns segundos sobre os telhados da cidade, que pareciam encaixados nas colinas e se estendiam at ao rio Tejo que naquele dia estava azul, azulssimo com reflexos prateados. E sobre as guas, tantos navios! Uns ancorados no porto com as velas recolhidas e mastros de vrios tamanhos lembrando dedos finos e longos a apontar para o cu. Outros deslizando com velas brancas desfraldadas, ligeiramente tufadas pelo vento, lindo, lindo! Tambm circulavam pequenos botes a remos entre os navios numa grande azfama. O sentimento que tudo aquilo despertava era alegria, e vontade, muita vontade de navegar. 19 - Venham - chamou o Orlando, tambm ele encantado com a Lisboa antiga. - melhor irmos andando. O cho do palcio, que era feito de tbuas grossas, rangeu e logo ouviram passos. Viraram-se os trs e deram de caras com uma rapariga baixa, gorducha, que vestia roupas grosseiras em tons de castanho e usava por cima um avental verde-seco que lhe cobria a saia at aos ps. Trazia na mo uma vassoura de palha, quase igual vassoura das bruxas. Os seus olhinhos piscos sorriram quando os cumprimentou maneira daquele tempo. - Sade, meus senhores. Que Deus vos d sade. Dobrando os joelhos numa vnia rpida, perguntou amavelmente: - Esto procura da sada? Como no perceberam por que fazia aquela pergunta, no responderam logo. Mas no houve problema porque a rapariga era comunicativa e j tinha opinio formada a respeito deles. - Vieram a acompanhar o senhor Vasco da Gama, no foi? Baixando a voz, confidenciou: - Ele esteve ali fechado a falar com o rei, mas j saiu. - Ah! - disse o Joo, sempre pronto a reagir s situaes com uma inveno da cabea dele. - Ns aqui espera e o tio Vasco foi-se embora. Nunca mais se lembrou que viemos com ele. Antes que disparatasse, Orlando cortou-lhe a palavra: - No importa, vamos procur-lo. Indique-nos a sada, por favor. A rapariga pousou a vassoura, segurou as saias para no tropear e avanou num passinho acelerado que fazia danar as ancas gorduchas. 20 - Por aqui, por aqui. Assim passaram por vrios aposentos, cruzaram-se com pessoas ricamente vestidas e com criados, sem despertarem a menor suspeita. Ela levou-os at junto dos guardas e s ento se despediu. - Obrigada - disse a Ana divertida por pensar que aquela criadinha nunca adivinharia o verdadeiro motivo por que lhe agradeciam. Joo, esse, quis fixar o nome da pessoa que fora a primeira a ajud-los naquela viagem. - Como que te chamas? - perguntou antes de sair. - Leonoreta, meu senhor.

Os olhinhos piscos sorriram de novo, tornou a fazer aquela vnia curta e rpida como se tivesse molas nos joelhos e desandou. Alis, desandaram, ela para dentro do palcio e eles para fora. Caminhando um pouco toa, foram descendo pelas ruas da cidade que eram estreitinhas e cheiravam a campo pois, junto com homens, mulheres e crianas, havia imensos animais solta. Tiveram mesmo que se afastar para dar passagem a um mido pequeno que conduzia um bando de patos com uma vara. Os patos, de asas semiabertas, grasnavam, enchendo a rua com o seu coro um pouco irritante de cu...cu...cu.... Cavalos e burros transitavam sem regras. E num pequeno largo uma carroa com pipas de vinho atravancava o espao junto porta de uma taberna. Um rapaz novo esforava-se para erguer uma pipa e p-la ao ombro sem auxlio de ningum. Mas da taberna saiu uma mulher aos gritos: - Ah, grande estpido! Isso muito peso para ti. Ainda espetas com a pipa no cho! O rapaz, quase roxo por causa daquele peso bruto, respondeu-lhe com voz sumida: 21 - me, saia da frente, no me atrapalhe... Orlando, Ana e Joo detiveram-se com receio de apanhar com a pipa em cima. E a mulher continuou a gritar: - Olha l, malandro! Se o vinho se entorna quem paga sou eu... Os vizinhos, certamente habituados s discusses entre me e filho, vieram janela com cara de quem quer gozar o espectculo. E a taberneira no os desiludiu. Entre insultos, gritaria e falsas ajudas que funcionavam mais como encontres, acabou por provocar o desastre que temia. O rapaz perdeu o equilbrio, a pipa rolou-lhe dos ombros e estatelou-se nas pedras da calada com estrondo. Da janela soaram gritinhos parvos e algumas risadas. A me fez um berreiro e o rapaz, coitado, foi atrs da pipa que rebolava na direco da Ana. Ela recuou para evitar o embate, mas o rapaz, de um salto, chegou a tempo de imobilizar a pipa e segurou-a com as duas mos. - Desculpe, senhora. Desculpe - balbuciou ainda agachado e bastante envergonhado. -No faz mal - disse a Ana. - No se preocupe. Os olhos de ambos cruzaram-se com simpatia. E ele, talvez por encontrar assim de repente entre porcos e galinhas uma menina linda e vestida como as mais ricas da cidade, que ainda por cima lhe sorria docemente, ficou uns segundos imvel, pasmado, a observ-la como se se tratasse de uma viso celestial. A voz estridente da me chamou-o realidade: - Mexe-te, Rui, que te dou uma coa... Ana estranhou que um indivduo daquela idade no reagisse aos maus tratos. Antes de seguir caminho, tanto ela como o irmo lanaram-lhe uma ltima mirada e concluram que j devia ter levado muita pancada porque tinha ndoas negras 22 e at lhe faltava meia sobrancelha, se calhar devido a algum corte profundo. - Precisava de comer qualquer coisa - disse o Orlando. - Mas aqui no. - Claro. Vamos procurar uma hospedaria que tenha bom aspecto. Desceram em direco ao rio espreitando aqui e ali. Perto de um chafariz, onde vrias mulheres enchiam cntaros de gua, viram um stio

que lhes agradou. Era uma espcie de venda onde serviam comidas e bebidas. Estava bastante gente porta a conversar e a comer. Do interior vinha um cheiro a fritos que lhes fez crescer gua na boca. - Entramos? - para j. Ningum lhes prestou grande ateno porque se tinham formado vrios grupos, uns em p, outros sentados volta de mesas compridas. Todos falavam animadamente da grande viagem que se preparava. Orlando encaminhou-os para o fundo do aposento onde havia bancos livres, sentou-se e fez sinal a uma rapariga de tranas que andava a servir. Ela chegou-se e ps-lhes logo na frente um cesto com po, canecas de vinho, queijo e uma faca. Era bonita e despachada. Orlando encomendou almoo, mas nem a Ana nem o Joo o ouviram porque a figura de um homem que s tinha um brao lhes chamara a ateno. E o que dizia, deixou-os assombrados. - Vou partir outra vez. Fui contratado para barbeiro e dentista de bordo. E tinha mesmo que ser, no ? Nem os navios chegavam ndia sem os dois lvaros mais famosos do Barreiro. 23 O meu tio lvaro Velho h-de escrever tudo o que se passar na viagem l maneira dele para ficar uma obra asseada. E c o lvaro Novo... Bateu com a nica mo no peito trs vezes mostrando-se satisfeitssimo. - E eu, lvaro Novo, hei-de arrancar dentes com fartura. E mais. Como a viagem longa, esta mozinha jeitosa que o tubaro no quis comer hde cortar muitas vezes o cabelo e aparar a barba ao capito Vasco da Gama. Ouam o que lhes digo, porque no estou a mentir. Os companheiros riram e curiosamente no pareceram duvidar, nem sequer achar estranho que tivesse sido escolhido para barbeiro e dentista aquele homem a quem faltava um brao. A criadinha percebeu o espanto da Ana e do Joo quando lhes ps na frente uma travessa com costeletas de borrego brilhantes de gordura e ainda a fumegar. E como ambos a fitaram com ar interrogativo, perguntou: - Os senhores no conhecem o lvaro Novo? um pndego, est sempre na brincadeira. - Ah! Quer dizer que no dentista, nem barbeiro? - , sim. Dantes era marinheiro, e andou embarcado uma data de anos nos navios que vo para a frica. Um dia aconteceu-lhe aquilo... Fez um trejeito de tristeza e eles aguardaram em silncio que contasse o resto, mas era evidente que aquilo se referia perda do brao. - Foi horrvel - comentou abanando a cabea. - No merecia, coitado. Um homem to trabalhador. Como voltou a calar-se, o Joo no resistiu a fazer a pergunta que lhe queimava a lngua. - Foi mesmo um tubaro que lhe comeu o brao? 24 - Sim - disse a rapariga. - Numa viagem l para as bandas da Guin. Houve um incndio no barco onde ele ia, no meio da aflio caiu ao mar e um tubaro comeu-lhe o brao esquerdo at acima do cotovelo. - E como conseguiu ele escapar? A rapariga encolheu os ombros e riu: - Isso no sei, porque j o ouvi contar a histria de muitas maneiras. Umas vezes diz que se agarrou a uma tbua e conseguiu nadar at praia. Outras vezes diz que foi um companheiro que o salvou. Enfim, o

que lhe vem cabea. Mas salvou-se. E sabem uma coisa? Pouco tempo depois de a ferida sarar, j fazia quase tudo como dantes s com o brao direito. Mas como para marinheiro agora no d, aprendeu o ofcio de barbeiro-dentista. - Fantstico! - Pois . Tem muita coragem e muita alegria natural. Ele anima sempre a mesa onde se senta. Inventa cada uma... Suspendeu a frase para olhar lvaro Novo, que continuava a falar agora ao p da porta fazendo gestos largos com o brao que lhe restava. Dali no ouviam o que ele estava a dizer mas devia ser divertido pois arrancava gargalhadas sonoras aos que o rodeavam. - uma famlia especial - disse a rapariga. - Vivem aqui perto? - No. So gente do Barreiro mas aparecem muito por c. A este chamamlhe lvaro Novo para o distinguirem do tio que o lvaro Velho. Esse escreve que uma maravilha. s vezes fica connosco at tarde e, quando os clientes saem, l para mim. Gosto tanto que ele at j tentou ensinar-me as letras, mas assim a correr no d. S aprendi a ler e a escrever as primeiras cinco letras. Abriu a mo e contou pelos dedos com visvel agrado: 25 - A, B, C, D, E... cinco letras. Ainda tenho esperana de aprender as outras e saber junt-las. Deve ser to bom poder ler sozinha o que me apetecer e escrever cartas sem ter de pedir a ningum... - Inocncia! - gritou algum da cozinha. - O que que ests a a fazer? Mexe-te, que o servio no falta! - Tenho que ir. Isto uma vida de trabalho... - Que engraado! - murmurou Orlando com um sorriso em que se misturava a ternura pela rapariga que sonhava com o alfabeto, e a gordura das costeletas de borrego que lhe inundava os lbios. - Se conseguirmos ir para a ndia no mesmo navio em que for o lvaro Novo, hei-de pedir-lhe que me conte tudo a respeito da luta com os tubares - disse o Joo. Ana franziu-se, horrorizada: - Para qu? - Quero saber pormenores. Achas que lhe doeu muito? Ou o susto foi tanto que nem sentiu a dentada? - No sei, nem quero saber - declarou a Ana engolindo em seco. - Pois eu quero. E garanto-te que acabo por tirar a histria a limpo. Se me contar e tornar a contar, acaba por dizer a verdade. Estou curioso... 26 III captulo - Contratos. Depois daquele almoo inesquecvel na venda dos comes e bebes, tiveram a sensao de que o tempo passava cada vez mais depressa. Aproximava-se o dia da partida, em Lisboa toda a gente falava da grande viagem, foi necessrio tratarem dos preparativos e pensarem na melhor maneira de serem aceites a bordo. Orlando decidira apresentar-se como mdico e oferecer-se para embarcar na nau do capito Vasco da Gama. - Estou convencido de que me aceitam - explicara. - Quem costuma tratar

dos doentes o barbeiro. lvaro Novo parece um homem despachado, em todo o caso deve dar jeito poderem contar com mais uma pessoa... - E ns? - Para vocs s h uma hiptese. - Qual? - Serem contratados como grumetes, porque no tm idade para marinheiros. 27 - O que que fazem os grumetes? - Tudo o que for preciso. Os grumetes so adolescentes que vo aprender a profisso de marinheiro trabalhando no duro. H um mestre encarregue de distribuir tarefas e nunca facilita. Pode, por exemplo, mand-los lavar as tbuas do convs com gua, sabo e uma escova de plos rijos para ficarem bem limpas. Ou subir aos mastros para ajudarem os marinheiros a recolherem as velas. Pensem bem se querem ou no querem ir, para depois no se queixarem. - Eu j pensei. Quero ir e estou pronto para deslumbrar o mestre com a minha energia. Prometo que no me queixo, nem que fique com os dedos em sangue de tanto puxar cordas e carregar baldes - disse o Joo com os olhos brilhantes de entusiasmo. - E tu, Ana? A irm no fraquejou: - Eu tambm quero ir. S h um problema em que no tinha pensado. Aceitam raparigas? - Claro que no. absolutamente proibido levar mulheres a bordo. Se ests realmente interessada em vir connosco, tens de te disfarar de rapaz. E a primeira coisa a fazer cortar o cabelo. - Ah... pois... Ana levara a mo nuca para afagar a bela cabeleira que tanto gostava de sentir danar sobre os ombros. - Pacincia. Corta-se. - Bom, ento s falta arranjar fatos apropriados. No podemos aparecer com estas roupas luxuosas porque no h mdicos ricos e os filhos dos nobres no se candidatam nem a grumetes, nem a marinheiros. Temos de empobrecer. O empobrecimento foi fcil. Quando desceram at Ribeira das Naus para se oferecerem pessoa que estava a contratar a tripulao, 28 j iam vestidos moda do povo, com roupas de pano grosso. Para melhor se disfarar, Ana enfiara at s orelhas o barretinho vermelho que fazia parte do traje. beira-rio o movimento era estonteante. Pessoas, animais, carroas, pipas, sacas, tudo a circular na maior balbrdia. Vendedores ambulantes apregoavam em altos berros o que tinham para vender. - Fruta fresca! - Quem quer figos secos do Algarve? O burburinho em volta crescia porque, como todos gritavam, quem desejasse ser ouvido tinha que gritar ainda mais alto. Aqui e alm ladravam ces enervados com a agitao e as rodas das carroas faziam um rudo irritante. O homem que procuravam estava a afiar penas de pato, que ia mergulhando num tinteiro para poder tomar nota dos nomes dos candidatos a marinheiros e grumetes. A todos os que se aproximavam prevenia: - Eu fao a lista, mas quem escolhe os marinheiros e os grumetes que

vo na viagem o mestre Julio. Mesmo ao lado, uma mulherzinha repetia com voz esganiada. - Comprem pedras da sorte... no vo para o mar sem pedras da sorte. As ditas pedras encontravam-se alinhadas em cima de um pano preto, arrumadas por tamanhos e cores, muito bem lavadinhas. Orlando, Ana e Joo encaminharam-se para ali mas, antes de chegarem perto, o homem das penas de pato acenou a um rapaz que descarregara um bote cheio de legumes frescos e acabava de os empilhar numa carroa: - Rui! Rui! 29 O rapaz parou, virou-se e saudou o velho amigo: - Ol, tio Jeremias! - Anda c, anda c. Preciso de falar contigo. Ele hesitou apenas um instante. Depois abandonou a carroa e chegou-se muito sorridente. Ana e Joo reconheceram-no quando viram que lhe faltava meia sobrancelha. Era aquele Rui da taberna que tinha uma me chatssima. O contratador falou-lhe como a um velho amigo: - J inscrevi muita gente mas falta-me um rapaz de confiana para despenseiro. Tu que vinhas mesmo a calhar. Ests habituado a organizar a despensa da taberna da tua me e ela toda exigente... - Se . Est cada vez pior. Os meus irmos foram todos para o mar s para no a aturarem mais. - Pois ento chegou a tua vez. No queres ir, Rui? Como tenho toda a confiana em ti, digo ao mestre que encontrei a pessoa indicada para tratar dos mantimentos e da gua da nau So Gabriel, que onde vai o capito Vasco da Gama. - Eu, por mim, gostava - disse o Rui. - Mas quem que cala a minha me? - Quem ficar em terra a ouvi-la, porque tu, se estiveres no mar no a ouves. Rui desatou gargalhada: - O tio Jeremias! Com essa quase me convenceu. - Ento? - Ento, olhe! Vou levar a carroa e logo noite apareo para lhe dizer se sim ou no. Tio Jeremias sacou de uma pena de pato novinha em folha, afiou-lhe a ponta, mergulhou-a no tinteiro e escreveu em letras gordas o nome do rapaz seguido do cargo: Rui de Alfama - despenseiro. 30 - Pronto. J te registei. Agora v l se falhas. O rapaz foi-se embora risonho mas sem dar mostras de ter decidido. Nessa altura Orlando empurrou o Joo e a Ana na direco do tio Jeremias e perguntou: - Ainda h vaga para dois grumetes? - H, sim senhor. - Ento inscreva-os para a nau So Gabriel. - Aqui no h escolhas - disse o tio Jeremias. - Os grumetes tm de ir para onde o mestre os mandar. - Pois, eu sei - disse o Orlando. - Mas eu fui contratado para fsico do capito Vasco da Gama. Estes dois rapazes costumam trabalhar comigo. Se for preciso fazer alguma operao ou preparar remdios e poes, eles fazem-me falta. Se no for preciso, ocupam-se s dos servios de grumete.

Tio Jeremias considerou o argumento vlido. - Bom, se para benefcio do capito-mor, seja. No entanto convinha irem amanh logo de manh falar ao mestre, que est na praia do Restelo a preparar o embarque. - Est bem. Fique descansado que l iremos. Orlando cumpriu a promessa. No dia seguinte, bem cedo, meteram-se ao caminho. Como no havia transportes, seguiram para Belm a p. O dia estava lindo, beira-rio corria uma aragem fresca, havia hortas bem regadas e rebanhos a pastar pelas colinas. Apesar de ser longe, gostaram do passeio. Quando avistaram a praia do Restelo, avistaram tambm as trs grandes naus ancoradas no Tejo, e ao lado um navio mais pequeno para onde se dirigiam vrios botes carregados de mantimentos. - Ali tm a armada que nos h-de levar ndia. - disse o Orlando. 31 Ana no prestou ateno porque se fixara num grupo de rapazes que conversavam e riam animadamente. Eram todos loiros, de um loiro quase branco. No meio da algazarra, atiraram ao ar um mido pequeno, to loiro como eles e que devia estar habituado brincadeira, pois no parecia assustado. - Ei! Ei! Ei! - gritaram em coro, mido inclusive. - Viva a unio, irmo nunca deixa irmo! Joo tambm lhes achara graa e foi o primeiro a meter conversa. Pouco depois estavam ntimos. Os rapazes eram sete e to parecidos que bastava olhar para eles para se perceber que s podiam ser irmos. Alm do cabelo louro, quase branco, tinham grandes olhos verdes muito pestanudos. O nariz arrebitado e largo dava-lhes um ar alegre e at um pouco cmico. Tinham vindo de Vila Nova de Gaia para se inscreverem. Pertenciam a uma famlia de pescadores e os mais velhos, como andavam h anos no mar, foram logo aceites. Quanto aos mais novos, conseguiram ser admitidos como grumetes. O mestre devia ter engraado com aquele grupo pois acedera ao pedido de se manterem juntos na mesma nau. - Vo na So Gabriel - decidira. O motivo da alegre gritaria era o irmo mais novo. - Estvamos com medo que no o aceitassem por causa da idade explicara um deles. - Mas o mestre diz que quanto mais cedo se comea a aprender a arte de marinharia, melhor. E que nos navios que vo para frica andam muitos como ele. - Vamos ser companheiros de viagem - disse o Joo. E virando-se para a irm: - No , A... 32 Felizmente conseguiu travar a lngua a tempo. - Safa! Por pouco no lhe chamava Ana - pensou numa aflio. - Isto vai ser difcil. Preciso de treinar, seno ainda descobrem que rapariga. Orlando, que percebera tudo, fez uma pergunta para disfarar: - Ainda embarcamos hoje? - Sim. Ao fim da tarde quero tudo a bordo para se irem acomodando e para receberem ordens - disse o mestre. - Ordens do capito Vasco da Gama? - No. Ordens minhas. O capito Vasco da Gama s embarca no dia da partida. Mas vocs estejam aqui hoje tarde sem falta e com tudo o que quiserem levar porque no voltam a terra.

- Est bem. At logo! - At logo! - responderam os sete irmos de Gaia em coro. 34 IV captulo - Tudo a bordo. tarde a praia do Restelo ficou apinhada de gente. Homens que iam embarcar, mulheres e crianas para se despedir, famlias completas a ajudar no transporte das sacas de pano onde cada um levava a sua roupa e os objectos pessoais. Ana e Joo, sabendo que a viagem demoraria dois anos, espantavam-se por verem to pouca bagagem. Mas Orlando fez-lhes notar que os costumes eram outros, que as pessoas viviam com pouco mesmo em terra e que os hbitos de higiene se reduziam ao mnimo. - A ideia de banho e roupa lavada moderna. A maior parte desta gente nunca tomou banho. - Nem de mar? - No. Quase ningum sabe nadar. - Que horror! Os marinheiros pelo menos deviam aprender... - Pois . Mas no aprenderam - disse Orlando com certa tristeza na voz. 35 Ana e Joo no ouviram a resposta porque os chamaram para um dos botes a remos. Avanaram com o Orlando e, como no tinham de quem se despedir, foram dos primeiros a instalar-se. No areal as pessoas abraavam-se, alguns choravam e voltavam a abraar quem partia. Tambm havia crianas que se agarravam aos pais e berravam como possessas quando tentavam arranc-los do colo. Um velho animava os vizinhos com palavras de encorajamento: - Pena tenho eu de no poder ir. Andei no mar tantos anos e sempre me dei bem. Agora que h esperana de chegar ndia, fico em casa. Mas outro velho, rabugento e maldisposto, vociferava: - Ests-te a esquecer do perigo. Dos navios que se perdem, dos homens que no voltam. J vem tanta riqueza de frica, para qu ir ndia? Cobia! s cobia! A discusso estalou, mas ele no se deu por vencido: - Muitos destes rapazes, que vo partir com a cabea cheia de sonhos, no voltam nunca mais! Ho-de morrer de doena, ho-de morrer afogados... Mestre Julio aproximou-se dele furibundo: - Pra com isso, ave agoirenta. Se continuas a desanimar, mando a guarda expulsar-te daqui para fora. No foi preciso repetir a ameaa, nem chamar a guarda. O velho afastouse cabisbaixo e ficou a resmungar de parte. A pouco e pouco os botes foram-se enchendo. ltimos acenos, braos no ar, barretinhos vermelhos agitados freneticamente pela rapaziada que sentia vibrar o desejo de aventura. - Adeus, at ao meu regresso! - Hei-de voltar rico! 36

Ana e Joo tambm acenaram toa. Depois voltaram-se para as naus. Vistas de baixo para cima, metiam respeito. Os cascos de madeira escura erguiam-se abaulados, slidos, imponentes. As aberturas por onde espreitavam bocas de canho faziam pensar em batalhas navais e ataques de piratas. Os mastros provocavam arrepios. Eram altssimos, com escadas de corda penduradas e um cesto redondo l em cima, o cesto da gvea. Quem fosse encarregue de soltar ou prender as velas, teria de subir e descer muitas vezes aquelas escadas balanantes. E quem fosse mandado para o cesto da gvea a fim de gritar terra vista, tambm. Ana sentiu um formigueiro de medo. Se a mandassem a ela, seria capaz de trepar sem cair? Preferiu pensar que talvez s os marinheiros experientes fossem autorizados a circular nas cordas e nos mastros. - Qual a nossa nau? - perguntou para desanuviar. Foi um remador que lhe respondeu: - a que tem a bandeira branca com a cruz vermelha, a cruz de Cristo. Ests a ver ali? Aquela a So Gabriel. - E as outras tambm tm nome? - Sim, claro. Adiante est a So Rafael. E aquela era para ser So Miguel mas acabou por ficar com o nome do primeiro dono, chama-se Brrio. - Mas so quatro. - Pois. A mais pequena no me lembro como se chama. E no importa, porque no uma nau, uma naveta para levar mantimentos. O bote que transportava os sete irmos de Gaia ultrapassou-os naquele momento. - Ei! - berraram em unssono. - Ol! Vamos chegar primeiro! 37 - Isso o que vocs julgam - ripostou o remador esforando-se por acelerar o ritmo. - Macacos me mordam se me passam frente. E v de dar aos braos, tchap... tchap... com toda a fora. Os outros remadores seguiram-lhe o exemplo. Cada grupo gritava a incentivar os do seu bote, o embarque transformara-se numa corrida de botes. - Estamos quase! - Fora, tio T... - Ns primeiro... ei! Os homens que j se encontravam a bordo debruaram-se na amurada, tomaram partido e puseram-se a gritar tambm. - Hei... Hei... - Fora, fora! O despique foi renhido porque os botes estavam muito prximos e ora se destacava um ora se destacava outro. Mas a vitria coube mesmo aos remadores que transportavam os sete irmos de Gaia. E eles faziam tal chinfrim de alegria que o mais pequeno deixou cair o barrete gua e ia caindo atrs ao tentar recuper-lo. - Cuidado! - Ainda cedo para naufrgios! O irmo mais velho pescou-o pela roupa utilizando apenas a mo direita. E como o bote da Ana e do Joo estava ali ao lado, puderam ver o que ele segurava entre os dedos da mo esquerda. - Compraste uma pedra da sorte? - Comprei. E pelos vistos vale a pena, j nos deu sorte na corrida. Amavelmente acrescentou: - H-de dar sorte a todos os que viajarem perto de mim. O efeito no s para mim, para a nau So Gabriel.

38 Foi portanto num ambiente de galhofa e camaradagem que subiram para o convs. Mal puseram o p nas tbuas, Ana e Joo arregalaram-se de espanto porque ouviram b. - Olha! Uma cabra! A cabra era branquinha com pintas castanhas. Presa por um cordel, balia de pescoo esticado como se quisesse protestar por a terem levado dos campos para um local onde no havia o menor sinal de pastagem: B... Ao lado grunhia uma porca enorme com uma data de leitezinhos pequeninos ainda de pele cor-de-rosa. E atrs, dentro de gaiolas de cana, amontoavam-se galinhas, patos, coelhos e pombos. - Isto parece a arca de No! - exclamou o Joo. - Para que tanta bicharada? - Para se comer carne fresca - disse-lhe o Orlando em voz baixa. -Lembra-te que no h frigorficos... - Ah! Claro... Ana chegara-se ao p do mastro e, de cabea erguida, fitava o cesto da gvea. Joo apercebeu-se de que devia estar com receio de ser obrigada a subir at l acima e resolveu brincar com ela. - A... Felizmente tornou a dobrar a lngua a tempo. sua maneira expedita, emendou o som. - A... anda c! Chega aqui! A irm lanou-lhe olhares lancinantes que significavam tem cuidado, no me denuncies. E como lhe pareceu que um dos sete rapazes de Gaia franzira as sobrancelhas como se tivesse captado a hesitao do Joo, resolveu afastar-se dali. 40 - Vamos para baixo - disse. - melhor irmos pr as nossas coisas no poro. No interior do casco do navio havia vrios andares, ou melhor, vrios pores ligados entre si por escadas de madeira. As nicas aberturas para o exterior eram buracos onde se enfiavam canhes. Por isso, medida que desciam, o ambiente tornava-se mais escuro e o cheiro mais intenso e enjoativo. - Que cheiro esquisito. - De que ser? - uma mistura - explicou Orlando -, leo, resina, cordas, azeite, comidas... - E vinho do bom - disse uma voz que lhes soou familiar. Voltando-se, deram de caras com o Rui. Apesar da obscuridade, reconheceram-no de imediato porque vrios fios de luz vindos do convs lhe iluminaram a cara e eles viram perfeitamente a meia sobrancelha. Estava agachado entre pipas, e os seus olhos cruzaram-se com os de Ana numa mirada rpida, como da primeira vez que se tinham encontrado porta da taberna. Ele sorriu e Ana sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Se o rapaz percebesse quem era, estava perdida porque no a deixavam seguir viagem. E com certeza expulsavam o Orlando e o Joo por a terem encoberto. Expulsavam-nos e provavelmente castigavam-nos. - Tenho que ter cuidado, muito cuidado - pensou, com o corao em alvoroo. Rui ergueu-se, sacudiu as mos uma na outra e perguntou:

- J nos conhecemos? - No - responderam Joo e Orlando prontamente. 41 - No? Que engraado, ia jurar que nos vimos em algum stio. - Talvez na Ribeira das Naus, de passagem - disse Orlando. - Estava muita gente a inscrever-se. Rui ainda voltou a olhar para a Ana mas distraiu-se porque vinham l os sete irmos de Gaia. Desceram em fila com os sacos de roupa s costas e avanaram para as prateleiras de madeira que serviam de cama a marinheiros e grumetes. Conforme seria de esperar, queriam ficar juntos. Encontraram um canto disponvel, lanaram mantas sobre a palha que ali fazia as vezes de colcho e experimentaram logo a ver se era confortvel. - Ficamos perfeitamente. - Perfeitamente, se chegares para l os ps que eu no consigo dormir com o pivete! O mais pequeno reagiu atirando o saco da roupa cabea do irmo que riu e lhe atirou por sua vez uma mo cheia de palha cara. Aparentemente Rui achara piada ao mido e deu-lhe um figo seco: - Toma l um presente do despenseiro. E trata de ficar meu amigo desde j, porque quem guarda as comidas sou eu. Vai tudo ali naquela despensa fechada chave. E a chave tenho-a ao pescoo. Mostrou-lhe uma chave de ferro to grossa que parecia de porto e perguntou: - Como que te chamas? - Gaspar Jos - disse o mido j a chupar o figo seco. - Sou irmo deles. - Isso v-se lgua. - Pois v. Samos todos loiros de olhos verdes como o pai 42 - acrescentou um -, por isso ficmos todos com o nome dele. Somos todos Jos. - Que trapalhada! - Trapalhada nenhuma porque cada um tem o seu nome. Jos vem em segundo lugar. Eu sou Abel Jos, o mais velho. - Ento ajuda-me a guardar as pipas do lquido mais precioso que levamos a bordo. - o tal vinho muito bom? - perguntou o Joo. - No. gua. Vinho temos pouco, s servimos ao capito, ao piloto e a gente importante. Mas se faltar no vem mal ao mundo. Agora gua, se nos falta, morremos de sede... - No h-de faltar - declarou Abel Jos, fazendo rebolar a pedra da sorte na palma da mo. - Eu preveni-me com um talism. Vai correr tudo bem. Estou ansioso por partir. - Ns tambm. 43 V captulo - A partida. No dia seguinte, dia 8 de Julho de 1497, a praia do Restelo encheu-se ainda mais do que na vspera. Tinham montado na areia uma espcie de

palco, um palanque para o rei D. Manuel assistir largada dos navios. E com o rei tinha vindo gente da corte ricamente vestida com roupas de seda, chapus, capas ao vento. Os guardas alinharam-se de modo a impedir que os homens e as mulheres do povo se chegassem demasiado ao palanque real. Muitos padres e monges faziam oraes pedindo a Deus e a Nossa Senhora do Restelo que abenoassem os navegadores. Quando o capito Vasco da Gama fez uma vnia diante do rei e avanou para um bote que estava enfeitado com bandeirinhas encarnadas e brancas, a multido calou-se. Chegara o momento que todos desejavam e temiam. Seria desta vez que os portugueses conseguiam finalmente descobrir o caminho por mar at ndia? Havia quem achasse que sim e quem receasse que no. 45 Vasco da Gama, muito srio e compenetrado do seu papel, no deixou que os sentimentos lhe viessem cara. S quando o irmo Paulo da Gama se meteu no bote que o ia levar nau So Rafael que sorriu, um sorriso breve de cumplicidade. Depois fez um aceno de cabea ao capito da terceira nau, a Brrio. E murmurou em voz baixa - Que Deus te acompanhe tambm a ti, Nicolau Coelho! Antes de alar a perna para dentro do bote, ergueu o brao direito num gesto largo de despedida. Em resposta ouviu-se um burburinho amistoso e comovido, logo abafado pelos acordes das trombetas e pelo rufar dos tambores que anunciaram solenemente o incio da grande viagem. Um frmito de emoo percorreu a assistncia. Todos os que j se encontravam a bordo estremeceram orgulhosos por serem as figuras principais daquela fantstica aventura e ao mesmo tempo saudosos de tudo o que deixavam para trs. Debruados na amurada ou pendurados nos mastros viam ao fundo o casario de Lisboa, em frente as colinas do Restelo com a sua capelinha caiada de branco, ao longe o recorte da fresca serra de Sintra e interrogavam-se. Quando tornariam a pr os olhos naquela paisagem? Muita gente decidira assistir ao levantar das ncoras e dizer adeus de perto aos navegadores. Para isso tinham tomado pequenos barcos vela ou a remos e giravam em torno das naus a esbracejar e a acenar para as caras conhecidas. Vasco da Gama j estava na So Gabriel e todos o olhavam com respeito. Quando mandou recolher as ncoras ressoaram tiros de canho, salvas acompanhadas de fumo branco. Estava dado o sinal de partida. As naus deslizaram suavemente em direco ao mar. 46 E o vento que soprava de norte pronto a enfunar as velas espalhou pensamentos, sonhos e desejos pelas duas margens do rio. Rui, para quem a largada representava uma libertao, resolveu brincar: - Esto a ver aquele barquinho minsculo com trs pessoas? Aposto que a do meio a minha me. - Porqu? - Porque esbraceja, esbraceja. Com certeza est furiosa por eu me ter posto a andar. Desta vez troquei-lhe as voltas. Tirou o barrete da cabea e agitou-o enquanto gritava: - Adeus, me! Quando precisar que lhe levem pipas, lembre-se de pagar o servio e de pedir por favor! A brincadeira foi interrompida pelo mestre, que chamou para distribuir tarefas. Nessa altura, marinheiros e grumetes alinharam-se no convs e,

enquanto esperavam, as ideias dispararam. Ideias vagas, dispersas, variando conforme a maneira de ser de cada um. Rui, que nunca navegara no mar alto e nunca tinha tido namoradas, acalentava a esperana de avistar uma daquelas mulheres com rabo de peixe de que falavam os velhos marinheiros. - Sei que aparecem pouco, mas numa viagem to longa h-de aparecer pelo menos uma sereia... a cantar para mim. Joo, ansioso por aventuras, deitava olhares lancinantes ao cesto da gvea. Enquanto no aconteciam coisas extraordinrias, podiam pelo menos mand-lo subir s escadas de corda. Adorava amarinhar por ali acima e balanar. Devia ser possvel manter-se firme enfiando apenas um brao e uma perna nas cordas e deixando o resto do corpo livre para equilibrismo. 47 Quando o mestre comeou a falar, foi necessrio esquecer essas e outras fantasias e concentrarem-se no que lhes dizia. - Todos sabem quais so as regras a bordo, no sabem? Os marinheiros responderam sim e os grumetes balbuciaram qualquer coisa porque no se atreveram a dizer no. Orlando assistia a tudo mas de parte. Ana fitou-o de sobrancelhas erguidas. Valeria a pena confessar que nada sabia de regras a bordo? Se confessasse, evitava com certeza muita trapalhada. No entanto, tomar a palavra no meio de tantos homens talvez fosse perigoso, a voz fininha podia denunci-la. Orlando percebeu a dvida e com um sinal discreto deu-lhe a entender que era melhor ficar calada. O mestre continuava a dar ordens. A certa altura, por trs de um monte de cordas apareceu uma mo empunhando uma tesoura que abria e fechava repetidamente com seu rudo prprio de tchec.tchec. Depois, atrs da mo, surgiu a figura inconfundvel de lvaro Novo a fazer caretas. Impossvel no rir. S no houve problema porque o mestre achava graa quele homem com quem j viajara e admirava-lhe a coragem. Aceitou a interrupo sem se zangar. Quando terminou, ordenou que se mantivessem juntos no convs porque o capito-mor vinha saud-los. A perspectiva aguou-lhes a curiosidade. Vasco da Gama acenara-lhes no momento do embarque mas ainda no chegara perto nem falara com eles. Que tipo de pessoa seria? Por ordem do mestre, viraram-se para o castelo da popa e aguardaram em sentido. Poucos segundos depois, Vasco da Gama saiu dos seus aposentos privativos e avanou at ao corrimo do varandim de madeira. 48 Daquele stio mais alto podia abarcar de uma s vez todos os homens que se encontravam no convs. E foi isso que fez. Curiosamente parecia olh-los no conjunto e a cada um em particular. Falou-lhes e impressionou-os no s pelas palavras que disse mas sobretudo pelo ar sereno e firme de um verdadeiro chefe. Irradiava autoridade, a sua expresso era a de um homem recto e bondoso, a sua presena transmitia segurana. Ficaram todos a ador-lo. A armada seguiu para o mar alto. De incio a So Gabriel ia frente, a So Rafael e a Brrio quase lado a lado, atrs a naveta de mantimentos. Rumo ndia. Durante os primeiros dias de viagem no houve novidade de maior, s viam mar e cu, cu e mar. Mas como para os grumetes era tudo novidade,

at se divertiam com as tarefas mais difceis e cansativas. Joo tornara-se um dolo para Gaspar Jos, o mais novo dos irmos de Vila Nova de Gaia. E protegia-o como se pertencesse famlia. Ana esforava-se ao mximo por evitar o convvio com Rui porque ele lhe lanava olhares de mocho, directos e duvidosos como se perguntasse a toda a hora de onde que eu conheo esta cara? Ao largo das ilhas Canrias abateu-se sobre os navios um nevoeiro to espesso que no se via um palmo diante do nariz. - Se no fosse a bssola, perdamo-nos - explicava Joo ao pequeno Gaspar Jos. - Mas assim no h problema. O piloto orienta-se na mesma, no te assustes. - Eu no me assusto - mentia o rapaz para no dar parte de fraco. Estou a tremer por causa do frio. 49 - No est muito frio. - Mas est hmido. Debruados na amurada procuravam insistentemente sinais dos outros navios. Aquela nvoa porm deixara-os to isolados como se navegassem sozinhos no mundo. - No se preocupem - dizia lvaro Novo. - Isto faz parte de qualquer viagem. O meu tio lvaro Velho at deve estar contente porque at aqui no deve ter tido grande coisa para registar no dirio que adora fazer. Mas a esta hora deve estar a escrever assim: nevoeiro ao largo das Canrias, to forte que o dia parecia noite. - Como que sabe? - Sei porque o conheo a ele e lhe conheo o estilo. E mais. O capito Vasco da Gama j tinha previsto que nos pudssemos perder uns dos outros e combinou encontrar-mo-nos todos em Cabo Verde. - Tem a certeza? - Absoluta. Acreditem em mim. Eu sei tudo! Joo mantinha conversas do gnero com lvaro Novo desde o incio da viagem e sentia por ele aquilo a que se poderia chamar um fascnio temperado de antipatia. Irritava-se porque ele tinha sempre resposta para tudo, ficava sempre com a ltima palavra e ria de uma forma que lhe complicava com os nervos. Mas no podia deixar de o admirar porque, usando um s brao, fazia exactamente o mesmo que os outros sem dar sinais de fraqueza ou inferioridade. - um tipo estranho, um tipo especial... Nessa noite, quando desceram aos pores para se deitarem, lvaro Novo chamou para um canto o Joo, o Rui e o Gaspar Jos e props jogarem aos dados. Joo aceitou, pensando que seria s para passar o tempo. Mas no, lvaro Novo quis fazer apostas a srio. 50 - Se no apostarmos no tem graa. Vamos jogar a rao de amanh. - Assim no quero - disse Gaspar Jos. - Porque se perder fico cheio de fome. - Est bem, mido, vai-te l deitar, isto coisa de homens. Lanou os dados e em poucas rodadas ganhou as raes dos parceiros. Com o seu risinho enervante ainda lhes perguntou em voz baixa: - Querem pedir desforra? De sbito, porm, fez desaparecer os dados e, sem dizer palavra, atirou-se para debaixo das mantas e ps-se a ressonar como se estivesse a dormir h imenso tempo. Os rapazes entreolharam-se admirados. Mas no

tardaram a perceber o motivo daquela teatrada. O mestre tinha descido ao poro com pezinhos de l para inspeccionar, ouvira o rolar dos dados sobre a madeira e aproximou-se deles com ar severssimo. - Vocs no sabem que proibido jogar a bordo? - Na-o - responderam os dois em coro. - Pois ficam a saber. Quem que trouxe os dados? No querendo denunciar lvaro Novo, baixaram os olhos. - No lhes serve de nada fechar a boca - continuou o mestre sem desmanchar a expresso de zanga. - Aqui todos tm que obedecer cegamente s regras e s minhas ordens. Levantem-se. Eles puseram-se em p, o mestre revistou-os e, para espanto dos dois rapazes, encontrou os dados no bolso do Joo. - Como vs, depressa se apanha um mentiroso. Joo abriu e fechou a boca sem saber o que dizer. 52 A atrapalhao fazia-o parecer culpado. E a atitude aparvalhada do Rui tambm no ajudava muito. - Os dados ficam confiscados at ao fim da viagem. E tu amanh vais ter comigo ao romper da aurora para saberes qual o castigo que te reservei. Agora deitem-se. Assim que o mestre desapareceu escada acima, Joo teve ganas de arrancar lvaro Novo da cama e dar-lhe uma tareia. Mas Rui deteve-o. - No te enterres mais. Ele o barbeiro do capito, mais velho do que tu, o mestre gosta dele. Se o agrides, tramas-te. Joo reconheceu que assim era, mas custou-lhe a engolir aquela partida. - Ele que teve a ideia, os dados eram dele, no nos disse nada sobre a proibio de jogar e ainda teve a lata de me enfiar os dados no bolso? Que estupor! lvaro Novo, se ouvia, fazia que no ouvia. Virou-se na palha e ressonou mais forte. Ento Rui, vendo Joo transtornado e incapaz de dormir, sugeriu-lhe que subissem ao convs para respirar ar puro. Ele aceitou. Quando puseram a cabea de fora, tiveram a grata surpresa de ver estrelas. O nevoeiro dissipara. Ao fim de seis dias de atmosfera pesada e hmida, o cu voltava a estar descoberto. No dia seguinte o sol brilharia de novo, que bom! Joo encostou-se amurada um pouco mais calmo. Rui debruou-se ao seu lado e desatou a falar sobre a estranha personagem que era lvaro Novo. - Eu conheo-o h muitos anos. Ele passa a vida na taberna da minha me e nas vendas ali volta. um homem estranho, sabes? Encanta as pessoas com as histrias que conta e toda a gente lhe admira a coragem. No qualquer um que experimenta na carne os dentes de um tubaro, 53 fica sem um brao e continua a fazer a sua vida normal. Coragem no lhe falta. - Faltou-lhe - resmungou o Joo. - Faltou-lhe para confessar a verdade ao mestre. E sobrou-lhe para meter os dados no meu bolso. - Isso falta de carcter - atalhou o Rui. - E ele, carcter posso garantir-te que no tem. Aldraba tudo e todos. At estou convencido de que faz batota quando joga s cartas e aos dados e no tem pena nenhuma de depenar um desgraado por muito pobre e infeliz que seja. Ri-se, com aquele riso parvo. - No percebo como que me deixei iludir - lamentou-se o Joo.

- Deixaste-te tu, como deixam os outros. A coragem que ele tem como uma espcie de farol. uma qualidade que brilha e lana sombra nos defeitos. Mesmo eu, que o conheo de gingeira, s vezes admiro-o. Mas temos que ter cuidado. - Cuidado e no s - declarou o Joo. - Eu ainda no sei como mas heide vingar-me. Ele paga-mas. 54 VI captulo - Amizades e amores. A primeira vingana do Joo foi contar aos amigos a patifaria de que tinha sido vtima. Nem esperou pelo nascer do Sol. Procurou a irm, depois os rapazes de Vila Nova de Gaia e relatou o caso em pormenor deixando-os boquiabertos e indignados. Assim, quando lvaro Novo se levantou, s viu expresses negativas volta dele. Calculando que j sabiam a histria do jogo, tomou a deciso que sempre tomava quando algum lhe virava as costas: - Vou deixar correr o tempo. Com tempo tudo se resolve... A inconfidncia teve ainda outro efeito. Quando Joo se apresentou ao mestre para ser castigado, consolou-se por se sentir rodeado de olhares solidrios. Mas o castigo afinal acabou por ser bizarro. - Vais matar uma galinha com as tuas prprias mos - ordenara o mestre muito srio. - E depois tens de a depenar e preparar 55 para o cozinheiro fazer uma canja para o almoo do capito. Ana ouviu e deitou mos cabea. Nenhum deles sabia matar galinhas e muito menos depen-las e prepar-las para serem cozinhadas. Se pudesse ia ajud-lo, mas no podia porque se tratava de um castigo. No entanto o Joo no se mostrou particularmente aflito. Ou se estava, disfarou bem. Dirigiu-se s gaiolas de cana com tal descontraco que parecia estar habituadssimo quele gnero de servios. Abriu a portinhola, meteu a mo l dentro e agarrou uma galinha pelas asas sem se importar com as bicadas que as outras lhe davam. Depois apresentou a escolhida perguntando quase num desafio: - Esta serve? O mestre aproximou-se e soprou ns penas para ver se estava bem gordinha. - Serve, sim. Podes mat-la. Estendeu-lhe um facalho bem afiado e ficou a ver. Joo torceu o nariz, indeciso. Qual seria a zona do corpo mais adequada para uma morte instantnea? Fazia-lhe impresso ouvi-la cacarejar e sentir o calor da carne por baixo das penas. - Talvez o pescoo - pensou. - Se lhe cortar o pescoo com uma nica facada, nem sente a dor. Pousou-lhe ento a cabea num tronco e zs! Com uma facada certeira decapitou-a. A cabea caiu nas tbuas do convs, o sangue espirrou num esguicho que lhe atingiu a cara. Joo largou as asas imediatamente e ficou atnito porque a galinha, sem cabea, desatou a correr em volta! Aquilo fez-lhe tal aflio que s lhe apeteceu pegar no bicho e atirlo ao mar. Mas como os marinheiros e os grumetes que assistiam desataram a rir, dominou-se. 56

A galinha acabou por tombar; s que, quando lhe pegou, ainda estremeceu. Tocando-lhe, sentiu um vmito. E raiva contra lvaro Novo, o grande culpado daquela situao. De qualquer forma, com ou sem nojo, teve que concluir o trabalho. Por sorte o mestre desapareceu e ento os amigos puderam ajud-lo. Rui, habituadssimo s lidas da cozinha, explicou-lhe que um golpe seco no pescoo s vezes produz aquela dana macabra. - O bicho j est morto e no sente nada. Os msculos que mexem sozinhos. - Safa! Que impresso! Parece coisa do outro mundo. Via-se perfeitamente que lhe estava a custar imenso arrancar as penas. Ana chegou-se, os sete irmos tambm e, mesmo sem combinarem, fizeram uma roda para ningum perceber que em vez do Joo, era Rui que depenava e preparava a galinha. O resto do dia correu normalmente. Cada um ocupou-se das tarefas que lhe competiam, mas era bvio que conta do castigo e da maldita galinha, a amizade entre o grupo crescera. Sempre que se cruzavam sorriam, piscavam o olho, entreajudavam-se no que pudessem. Orlando de nada sabia porque tinha sido chamado presena do capito e os dois conversaram longamente. Vasco da Gama ficara encantadssimo com a inteligncia e a sabedoria daquele mdico velho e experiente. E como Orlando tomou a iniciativa de se oferecer para ir s outras naus sempre que fosse preciso tratar doentes, Vasco da Gama exultou: - bom poder contar consigo, sabe? O meu irmo Paulo da Gama tem uma sade mais fraca do que a minha. s vezes passa dias seguidos com febres altas. 57 Orlando desviou os olhos e limitou-se a responder: - Eu farei tudo o que estiver ao meu alcance, mas no posso fazer milagres. - Claro, claro. No entanto bom poder contar consigo. Para falar com franqueza, este lvaro Novo para barbas e cabelos vai servindo. O que j extraordinrio porque s tem um brao. Mas para tratar doenas, no me convence. Parece-me pouco sabedor. Fala muito, ri muito, um verdadeiro mdico tem outra postura. Continuaram juntos at hora do almoo, partilharam a canja e ambos foram de opinio que no estava grande coisa. - Este cozinheiro fraco artista. Mas enfim, foi o que apareceu. Terminada a refeio, Vasco da Gama ordenou que acomodassem Orlando num compartimento do castelo da popa para ir bem instalado. Orlando agradeceu, foi buscar as coisas e ficou satisfeito por ver a Ana e o Joo a conversar to animadamente com outros grumetes que nem lhe deram ateno. - Integraram-se, ainda bem. Realmente estavam integradssimos. Quando noite desceram para o poro at tinham combinado dar uma desanda colectiva no lvaro Novo e obriglo a pedir desculpa. S que ele no apareceu. Devia ter ficado l por cima, espera que adormecessem para no ter de os enfrentar. Rui tambm no fez sero com eles porque teve de se ocupar com o seu trabalho de despenseiro. Era preciso separar as raes para o dia seguinte, ver se havia ratos espreita e ca-los para impedir que se enfiassem nas pipas onde ia o biscoito de que tanto gostavam e o queijo que adoravam. Resolvera tambm fazer

58 uma escolha nos cestos da fruta para deitar fora as peas podres e evitar que apodrecesse o resto. Ana e Joo instalaram-se na prateleira que servia de cama colectiva aos sete irmos de Vila Nova de Gaia. Apesar do cansao, nenhum deles tinha sono. Puseram-se a falar de coisas vrias e os rapazes, talvez por sentirem saudades, lembraram a me - uma mulher de armas - disse Abel Jos com orgulho. - L em casa acaba por se fazer sempre aquilo que ela quer. - Porqu? Grita e berra com vocs? - No! - responderam as sete vozes em coro. - Ela leva-nos com falinhas mansas. E tambm leva o meu pai com estratagemas variados. Esta histria dos nossos nomes, por exemplo, muito engraada. Comeou por lhe dizer que todos os rapazes que nascessem haviam de ter Jos como segundo nome, em honra dele. Assim ele ficou todo contente e no se discutiu mais. - E ento? - Ento acabou por nos chamar como queria. Nas sete caras bailava o mesmo sorriso terno e divertido. O irmo seguinte tomou a palavra. - L no bairro onde a gente mora, a minha me a nica pessoa que sabe ler. - Ela diz que aprendeu sozinha - explicou o outro -, mas ns achamos que foi com a ajuda do padre que padrinho dela, l muito bem e tem muitos livros. - E o que que isso tem a ver com os vossos nomes? - Ideias cmicas da nossa me, que brincalhona. Resolveu que havia de dar aos filhos nomes da Bblia seguindo as letras do alfabeto do princpio para o fim. 59 A, Abel que sou eu. B, Baltazar e Belchior, os gmeos que vm a seguir a mim. - Que engraado - interrompeu o Joo -, esses so os nomes dos reis magos! - So. Por isso que quando chegou ao G, ps Gaspar. Gaspar Jos. - E os outros? - Os outros so David, Eli, Filipe. Todos Jos, em honra do meu pai. E por ordem alfabtica... - Em honra do alfabeto! Ah! Ah! Ah! Riram em coro. O riso soou forte mas comovido, porque a conversa trouxera at ali a presena da me, que estava to longe. - Esperem l - interrompeu o Joo. - A vossa me esqueceu-se da letra C. Nenhum dos vossos nomes comea por C. Aquela observao causou um profundo mal-estar. Fez-se silncio, houve uma troca de olhares discretos, Abel remexeu na palha, tomou balano e depois esclareceu o assunto. - No h, mas houve. Tnhamos um irmo chamado Cristvo. - Morreu? - perguntou o Joo com voz sumida. - Sim. Foi assassinado. Mas se no te importas, preferimos no falar nisso. - Claro que no me importo. E compreendo muito bem - respondeu logo o Joo atrapalhadssimo. - Tambm j so boas horas para dormir - respondeu o David Jos com a sua voz particularmente agradvel. - Amanh temos de levantar cedo e

trabalhar no duro. Ana sentiu o corao disparar quando ele falou. No confessara a ningum, nem tencionava faz-lo, 60 mas desde o primeiro contacto com os sete irmos sentira uma atraco fortssima pelo nmero quatro, aquele David Jos, que era parecidssimo com os outros mas que ela achava muito mais bonito. Observando bem e luz do Sol, conclura ser ele o mais loiro. E os olhos? Os maiores, sem dvida. E talvez mais verdes. A boca, sempre risonha, encantava-a. E a pele, que tinha um aspecto macio, tambm. Mas ali em baixo, noite, no podendo v-lo com clareza, era a voz dele que lhe fazia saltar o corao. - No sei se estou apaixonada mas penso que sim - concluiu estendendose ao comprido na palha. - Pena ser obrigada a fazer a viagem disfarada de rapaz. Se pudesse vestir-me de rapariga, divertia-me bastante mais, porque de certeza arranjava namoro! Se Ana soubesse que durante a viagem havia de ter namoros a dobrar, adormecia satisfeita. Mas como no sabia, adormeceu rabugenta. Ao seu lado, Joo revolvia-se entre as mantas sem conseguir conciliar o sono devido sua eterna curiosidade. Depois da histria dos dados desistira de fazer perguntas a lvaro Novo sobre a luta com o tubaro. Mas na sua cabea pairava agora outro mistrio que gostaria de desvendar. Quem teria assassinado o irmo nmero quatro de Vila Nova de Gaia? E porqu? - Com jeito hei-de descobrir mais coisas a respeito do tal Cristvo. 61 VII captulo - Aguada em Cabo Verde. Eram dez da manh de uma quarta-feira luminosa quando o marinheiro que viajava no cesto da gvea gritou: - Naus vista! Toda a gente correu para a amurada numa excitao. Desde que se tinham perdido por causa do nevoeiro no faziam a mnima ideia do que acontecera s outras naus. Agora ali estavam, navegando de velas desfraldadas. O encontro alegrou igualmente as tripulaes dos vrios navios que se saudaram com gritos, acenos, toque frentico de trombetas e tiros para o ar. Vasco da Gama tambm se mostrava contentssimo. Nunca manifestara receios ou pensamentos negativos mas, ao ver a armada reunida, que alvio! De brao esticado mostrou ao Orlando uma figura alta e esguia que se encontrava na proa da So Rafael. - o meu irmo Paulo. Est com um aspecto esplndido. A alegria redobrou na manh seguinte quando avistaram a ilha de Santiago, em Cabo Verde. Fim da primeira etapa. 63 Iam sair em terra, comer legumes e frutos, beber gua da fonte e no a das pipas que j sabia to mal. O mestre escolheu um grupo precisamente para isso, ir buscar gua e mantimentos frescos. Rui, como despenseiro, encabeava o grupo e pediu para levar com ele dois grumetes que j o tinham ajudado em vrias tarefas, a Ana e o Joo. Como o mestre aceitou, partiram delirantes no

mesmo bote em que ia o David Jos, esse encarregue de arranjar lenha para a cozinha de bordo. Joo enfiou as mos na gua e suspirou. - Que maravilha! Est morna! O bote deslizava em direco a uma pequena praia onde se tinha juntado bastante gente para os receber. David olhava para terra ansioso por pr os ps na areia. Ana olhava para o David com vontade de lhe dar um beijo. Rui olhava as pipas com medo de as ver escorregar borda fora. Joo olhava o mar, louco por se atirar de mergulho. E quando j estavam perto no resistiu, saltou vestido e tudo! Por um momento os outros recearam que estivesse aflito. Mas ele emergiu sorrindo de satisfao. - Caste? - perguntou o Rui. - No. Foi de propsito. Eu sei nadar, estou cheio de calor, a roupa depois seca. E assim ajudo a puxar o bote para a praia. Com gua pela cintura, foi empurrando a irm e os amigos na direco do areal. Nenhum deles reparou num rapaz gorducho, com pouco cabelo, sem um dente da frente e com a barba por fazer que, ao dar com os olhos neles, se escondeu atrs de uns caixotes como se desejasse no ser reconhecido. 64 As pessoas da ilha de Santiago estavam habituadas s visitas de navegadores porque Cabo Verde era ponto de passagem obrigatrio nas rotas do Atlntico. Quando os navios vinham de Portugal geralmente traziam a bordo cartas e encomendas para entregar. Assim, quando algum via ao longe uma vela branca, dava logo sinal e ficava tudo alerta e em nsias. - Oxal tragam notcias da minha mulher e dos meus filhos - suspirou Diogo de Alcochete. - Estou cheio de saudades deles! Diogo de Alcochete tinha sido enviado para Cabo Verde dois anos antes e era uma espcie de chefe da povoao. Queixava-se de saudades da famlia mas j tinha arranjado outra mulher, a linda Zulmira, natural da ilha e muito mais nova do que ele. Viviam numa das casinhas de pedra com telhado de palha que fazia parte da povoao e tinham um filho de meses. Descalos na areia, esperavam ansiosamente o desembarque, ele porque queria carta da primeira mulher, ela porque os navegadores costumavam trazer lembranas para a esposa do chefe. - Oxal me ofeream um pente. E uns metros de tecido para eu fazer roupa nova. Olhando para o bote onde viajavam a Ana e o Joo, no se detinha nas caras, fixava-se nos volumes. - Parece que estes s transportam pipas - concluiu desiludida. - Tenho de esperar. No perdeu pela espera. Nessa tarde foi uma animao de botes a ir e a vir. Os marinheiros e os grumetes desembarcaram por turnos, felizes por sentirem o cho firme debaixo dos ps. Traziam ainda mais presentes e mais notcias do que era costume. Zulmira recebeu no s o pente e tecidos de vrias cores, mas tambm um colar de contas de vidro azuis 66 que ela adorou e ps imediatamente ao pescoo. Quanto a Diogo de Alcochete, recebeu uma visita com que no contava. - O meu sobrinho Manuel! rapaz, d c um abrao! Pancadas nas costas, grande estardalhao, notcias ao vivo, tudo muito amigvel. O rapaz era esperto, no fez comentrios ao facto de

encontrar o tio com uma segunda mulher, quando a primeira estava viva e de boa sade. Mas lanou olhares de soslaio para a Zulmira. De soslaio e de inveja. Que bonita! A nica maneira de se aproximar dela sem despertar suspeitas era fazer festas ao filho que ela tinha ao colo. Foi isso que fez. - Ol! Que lindo menino! Como que te chamas? Como a criana no podia responder devido pouca idade, respondeu a me toda risonha, mostrando uns dentes brancos e brilhantes que dava gosto v-los. - Manuel, como o rei de Portugal. - Tambm eu, que coincidncia. Agora em Alcochete h muitos Manueis! Diogo no assistiu conversa porque recebera recado de que o capitomor Vasco da Gama e os outros capites vinham a terra e queriam tomar uma refeio. Para os receber convenientemente, mandou matar cabritos bem tenros para assar num braseiro aceso de propsito na areia. E chamou o rapaz desdentado e barbudo para se ocupar dos temperos e dos grelhados. Ele no teve outro remdio seno obedecer, mas espiava pelo rabo do olho todos os movimentos dos irmos de Vila Nova de Gaia. Se eles por acaso se aproximavam, virava-lhes as costas. Quando o pequeno Gaspar Jos resolveu ir cheirar a carne assada, 67 o barbudo ps um chapu de palha na cabea e enterrou-o at s orelhas. E quando lvaro Novo se aproximou de navalha em punho oferecendo-se para lhe rapar a barba, respondeu torto e afastou-se. Ningum lhe ligou muita importncia porque j l vinha o capito-mor. Um grupo comeou a tocar pequenos tambores e pfaros, msica simples mas to boa para danar! Zulmira no resistiu e ensaiou alguns passos sempre com o filho ao colo. E o primo Manuel coca, cobioso: - Que linda mulher! E que bem que ela se mexe! Isto de viver nas ilhas no nada mau... De sbito, ao lado dela, surgiu outra rapariga igualmente bonita, igualmente gil, s que um pouco mais alta e mais nova. Manuel esfregou os olhos julgando sonhar, mas o mistrio depressa se esclareceu. Era uma irm de Zulmira, a lindssima e solteirssima Zuleida! Manuel foise chegando. Acabou a danar com ela trocando os ps com a atrapalhao. Ana assistiu ao baile, desesperada. Estava farta de andar vestida de rapaz, de fingir que pertencia ao sexo oposto. Apetecia-lhe gritar a verdade aos quatro ventos, ir em busca do David Jos, convid-lo para um passinho de dana. Muito abraados haviam de seguir o ritmo daquela msica fantstica. E merecer palmas at do capito-mor! De olhos tristes, viu desembarcar Vasco da Gama, acompanhado pelo irmo Paulo da Gama e por Orlando. Atrs, Nicolau Coelho, todos esfregando as mos e afinando a dentua para os belos nacos de carne assada que cheiravam divinalmente. A festa ao ar livre prolongou-se toda a tarde, toda a noite e continuou nos dias em que ali permaneceram. Vasco da Gama ia dormir a bordo mas voltava sempre para comer em terra 68 porque adorou os cozinhados que lhe ofereciam. O rapaz barbudo no tinha mos a medir. Trabalhava imenso, mas continuava a no conviver com ningum. De roda das fogueiras, sempre com o chapu de palha enfiado na cabea, respondia por monosslabos se algum dos marinheiros ou dos grumetes lhe dirigia a palavra. Quando se

aproximava o dia da partida, Vasco da Gama chamou-o para lhe gabar os petiscos. Ele continuou to cabisbaixo que o capito-mor estranhou: - Olha l, tu ests aqui na ilha de Santiago de livre vontade? Ele olhou em volta antes de responder. Vendo Abel Jos nas proximidades, falou baixinho: - Vim degredado por causa de um crime. O juiz condenou-me morte mas o rei mudou a pena para dez anos de servio aqui em Cabo Verde, na ilha de Santiago. Com um suspiro profundo acrescentou: - Se calhar mais valia ter morrido. Vasco da Gama e Paulo da Gama trocaram um olhar de entendimento. - Quer dizer que no gostas de estar aqui. O homem ergueu ligeiramente a cabea, deu um pontap na areia e confessou: - Odeio. Dava a vida inteira para voltar um dia que fosse minha terra. - Qual a tua terra? - Gaia. Vila Nova de Gaia - disse num sussurro. - A minha casa fica beirinha do rio Douro. Conhece o rio Douro, capito? Para mim o mais bonito do mundo inteiro. 69 As saudades que a voz transmitia entraram pelos ouvidos do capito-mor e foram-se juntar ao sabor delicioso dos cozinhados que aquele homem confeccionava como ningum. A mistura fez nascer uma ideia que Vasco da Gama ps imediatamente em prtica como era seu hbito. - Se assim , vens connosco para a ndia. E se prestares bons servios a bordo, peo ao rei que te perdoe a pena e te deixe voltar a Gaia. O homem arregalou-se com uma expresso estranhssima: - No te agrada? - A... agrada sim, meu senhor. Fiquei atarantado... a... em que nau que vou... - Na nau capitaina - disse Paulo da Gama risonho. - Tenho pena que no vs comigo. Mas o capito-mor quer-te para cozinheiro de bordo na So Gabriel. Ainda no percebeste? Ele limitou-se a acenar que sim. - Vai buscar as tuas coisas - ordenou Vasco da Gama. - E segue no primeiro bote. O homem recuou uns passos sem se atrever a virar as costas, fez uma vnia e ia a rodar nos calcanhares quando o capito lhe perguntou: - Como que te chamas? No estando ali mais ningum naquele momento, respondeu num tom audvel: - Janurio, meu senhor. Depois desandou para o casinhoto onde vivia a fim de juntar os seus poucos haveres. A notcia de que o capito ia levar um homem de Santiago para cozinheiro espalhou-se com a rapidez do vento. Orlando, que tinha ido recolher umas plantas para fazer chs 70 destinados a dores de barriga, exultou. Tambm ele odiava as comidas de bordo, passariam a alimentar-se melhor. Quanto a Manuel de Alcochete, entrou em transe. Se ia mais um homem, talvez ele pudesse ficar em terra a viver com a bela Zuleida. Tinha gostado tanto da ilha, da praia, da vida simples ao ar livre e sobretudo tinha gostado tanto da rapariga! E ela dele. Namoravam desde

o primeiro dia, ambos apaixonadssimos. Apesar disso no tinha coragem para pedir ao capito que o deixasse ali. Circulando de um lado para o outro entre as casinhas de pedra, no encontrava palavras para expor o caso. Naquelas andanas viu o pequeno grumete Gaspar Jos a sair de uma cabana com ar furtivo. Trazia qualquer coisa escondida numa saca. - mido, que isso? Roubaste alguma coisa? Gaspar Jos indignou-se - No senhor. Nunca roubei nada na minha vida. - Ento o que levas na saca? - Um presente que me deu a Zulmira, a mulher do chefe. - Nesse caso por que que o escondes? - Porque se o mostro no mo deixam levar. A saca tinha um formato esquisito e pareceu a Manuel que remexia sozinha, mas depois pensou que tinha sido iluso. Com certeza tratavase de um brinquedo qualquer feito de cana ou assim. - No seria melhor pedires autorizao? - Nem pensar. Afastando-se pela praia, acrescentou: - Quando virem a minha saca, j havemos de estar no mar alto e no h remdio... Aquela frase funcionou como um clique na cabea do Manuel. 71 - isso! - exclamou deslumbrado. - Ah grande mido que me ensinaste a soluo! Decidira de imediato esconder-se e no embarcar. Quando dessem pela falta dele j haviam de ir longe e com certeza no voltavam atrs para o buscar. Delirante da vida, correu para a ltima casinha de pedra a gritar: - Zuleida! Zuleiiiiida! Ela apareceu porta admiradssima e ele ento abraou-a com fora e disse-lhe ao ouvido: - Fico c na ilha a viver contigo. Esconde-me. Ou melhor, escondemo-nos os dois. Anda! 72 VIII captulo - O segredo de Janurio. Os planos de Manuel de Alcochete resultaram em cheio e at se viram facilitados porque na altura do ltimo embarque houve uma srie de trocas resolvidas pressa. Paulo da Gama sentiu-se maldisposto do estmago e o irmo resolveu dispensar-lhe Orlando. Paulo no queria, mas Vasco da Gama insistiu: - Agora faz-te mais falta a ti do que a mim. Quando te sentires melhor, manda-o de volta num batel. Orlando no ficou l muito satisfeito por se separar da Ana e do Joo mas teve de obedecer. - No se rale, Orlando. Ns estamos ptimos e damo-nos bem com toda a gente - disse o Joo, contentssimo porque acabava de saber que lvaro Novo tambm mudava, o barbeiro ia para a Brrio a pedido de Nicolau Coelho. - Os meus marinheiros foram atacados por uma verdadeira praga de piolhos e no param de coar-se - explicara.

73 - Quero que o lvaro Novo lhes rape o cabelo e a barba para ver se aquilo passa. - Ainda bem - remoera o Joo entredentes. - Assim no torna a pregarnos partidas! Por troca, lvaro Velho foi convidado a instalar-se no quarto do Orlando. - Vocs vo gostar dele - garantiu o Rui. - muito calmo, simptico e passa a vida a escrever. J me disse que anda a fazer dois dirios. Um, sobre tudo o que acontece na viagem para depois mostrar. Outro, com notas pessoais e histrias inventadas, que no mostra a ningum. Talvez nos deixe ler a ns. As histrias dele so muito giras. Durante os primeiros dias da segunda etapa no houve novidade de maior. Corria o ms de Agosto, no fazia calor nem frio, os nicos entretenimentos foram uma baleia que passou ao largo lanando repuxos do seu corpanzil, aves com penas brancas voando em bando e outros espectculos do gnero. Marinheiros e grumetes cantavam em coro e confraternizavam alegremente. A nica excepo era o novo cozinheiro que se mantinha de parte, evitava conversas e s tirava o chapu de palha para dormir. Em todo o caso contribua para o bem-estar geral pois transformava feijo, favas secas, toucinho e azeite ou qualquer outro produto que o despenseiro lhe entregasse em pratos de comer e chorar por mais. Vrios marinheiros tentaram falar com ele, gab-lo, perguntar-lhe onde tinha aprendido a cozinhar assim, mas ele no dava troco. - Deixem-no - aconselhava a Ana, convencida de que o pobre Janurio talvez estivesse ali a pagar um crime que no cometera. Ou talvez transportasse no corao um grande desgosto de amor. - No o macem. Ele quer estar sozinho, deixem-no sozinho. 74 A verdade que, quanto mais Janurio se isolava, mais curiosidade despertava. Sem percalos, vendo s mar e cu, a vida a bordo foi-se tornando montona. No podendo entreter-se a jogar s cartas, nem s damas, nem aos dados porque era proibido, vrios marinheiros tinham resolvido apostar a dinheiro quem descobria o segredo que atormentava o esprito de Janurio. Um dia, depois de se deliciarem com uma feijoada particularmente saborosa, decidiram que chegara a altura de agir. E um tal Ferno Veloso, sempre pronto para o disparate, props que o agarrassem de surpresa para o levarem em ombros para o convs como heri, o heri dos petiscos. A ideia agradou. Rui foi despensa buscar ramos de louro para fazer uma coroa. - Tiramos-lhe o chapu de palha e enfiamos-lhe a coroa na cabea. - Boa - disse Abel Jos. - Eu preparo um pau para lhe pr nas mos como se fosse um ceptro. - Alm de heri, vamos chamar-lhe rei dos cozinheiros. Ana no quis ser desmancha-prazeres mas pareceu-lhe que a brincadeira ia dar pssimo resultado. Aproveitou para se chegar ao David Jos e falou-lhe em privado: - Talvez fosse melhor desistirem da brincadeira. O Janurio anda to macambzio que no vai achar graa. - Pacincia - respondeu o David com um encolher de ombros. - Se ele no se divertir, divertimo-nos ns.

Ela ficou um pouco desiludida com aquela falta de sensibilidade e afastou-se decidida a no participar. Janurio acabava de arrumar os paneles quando se sentiu agarrado e levantado no ar. Aflitssimo, ps-se aos berros tentando segurar o chapu com as duas mos: 75 - Larguem-me! Soltem-me! Escusado ser dizer que em vez de o largarem, carregaram-no em ombros gritando: - s o nosso heri! - O prncipe da feijoada! - Rei da comida! Vamos coroar-te! Rui e Abel aguardavam com a coroa e o ceptro. Quando os outros sentaram o pobre do Janurio em cima de um rolo de cordas, David arrancou-lhe o chapu. Vendo-o de cara destapada arregalou-se de espanto, e logo a seguir atirou-se a ele ao murro e ao pontap. - Malandro! Malandro! Os irmos seguiram-lhe o exemplo e rebolaram todos pelo convs em grande pancadaria. Sozinho contra sete, Janurio no se podia defender. - O que que vos deu? - perguntava o Rui atnito. Ferno Veloso, que tivera a triste ideia de provocar o cozinheiro, achou-se na obrigao de tentar apart-los, mas bastou aproximar-se para apanhar tambm. Ento a Ana correu a chamar o mestre. Assim que ele apareceu e berrou Parem j com isso cessou a luta. Janurio ficou prostrado, com a roupa em desalinho, a cara amassada de tanto murro, um olho prestes a inchar. O pequeno Gaspar chorava copiosamente. David, ainda a espumar de raiva, cuspiu para o lado plos da barba que lhe tinha arrancado com os dentes. - O que vem a ser isto? - perguntou o mestre com uma voz fininha e cortante como metal. - Quero explicaes e j! Abel, assumindo o seu papel de irmo mais velho, adiantou-se. Tremiamlhe as mos. Via-se que estava transtornado. 76 Antes de falar passou a lngua pelos lbios e recolheu uma gota de sangue que rebentara na pele crestada do sol. Um silncio pesado tomara conta da assistncia. - Este homem um assassino. Matou o nosso irmo Cristvo numa rixa na feira. No o reconhecemos at hoje porque est diferente e andava com a cara tapada por aquele chapu de abas. Mas foi ele quem matou o nosso irmo. Janurio ergueu-se visivelmente dorido. Sacudiu a roupa. Endireitou-se. Depois apresentou a sua verso dos factos. - Foi uma briga. Ele podia-me ter morto a mim, fui eu que o matei a ele. Uma briga de morte porque o Cristvo roubou-me a noiva nas vsperas do casamento. Estragou a minha vida, que no tem conserto. Talvez a presena do mestre no chegasse para impedir que voltassem a envolver-se pancada. Mas Vasco da Gama, alertado pelo burburinho, subira ao castelo da proa com lvaro Velho a tempo de ouvir a conversa. E diante do capito-mor nenhum se atreveria a levantar um dedo para agredir fosse quem fosse. - Questo de saias - comentou Vasco da Gama. - Era s o que me faltava aqui. Ainda bem que no permitido trazer mulheres a bordo. Ana corou violentamente. Ningum notou porque se encontravam suspensos

espera de uma deciso. Todos sabiam que brigas a bordo geralmente valiam castigos terrveis. Mas o motivo para se envolverem era forte. Que iria o capito decidir? Ele falou como um juiz: - Este homem cometeu um crime e est a cumprir a pena. Compreendo o sofrimento de quem perde um irmo, 78 mas no podem fazer justia pelas prprias mos em lado nenhum e muito menos aqui, estamos entendidos? Os homens baixaram a cabea. Vasco da Gama no se contentou com isso. Chamou o padre capelo, mandou-o erguer a cruz e ordenou que todos se ajoelhassem incluindo o criminoso. - Quero que jurem perante Deus que no se tornam a envolver em brigas. Nesta viagem precisamos de todos para chegar a bom fim. Embora lhe obedecessem, percebia-se que a agressividade continuava no ar. Ento, porque era inteligente e tinha verdadeiro talento para comandar homens, Vasco da Gama entendeu por bem despachar o cozinheiro para a nau So Rafael. - Evito barafundas e o Paulo passa a comer melhor - comentou depois com lvaro Velho, que j se encontrava de pena de pato a jeito para registar o incidente no seu caderninho de notas pessoais. O mestre mandara dispersar. Havia tarefas urgentes que deviam realizar sem demora e, para os que estavam em perodo de descanso, inventou logo uma ocupao capaz de os deixar exaustos, de msculos doridos, sem vontade de arranjar trapalhadas. - Quero que esfreguem o convs de uma ponta outra com as escovas mais duras. S param quando as tbuas ficarem sem o menor vestgio de sujidade. Joo escapou ao martrio porque segundos antes se escapulira com o pequeno Gaspar para o poro onde dormiam. Tinha ficado cheio de pena dele e queria distra-lo. Era um dos poucos a bordo que partilhava o segredo da misteriosa saca trazida da ilha de Santiago. L dentro viajara uma cadela pachorrenta e gordssima com plo sedoso cor de areia 79 e duas manchinhas castanhas, uma no focinho e outra na pata. Quase nunca ladrava, comia bastante e dormia imenso. - Vamos ver como est a Salpica - propusera em voz baixa. - Anda, Gaspar. Temos de lhe dar gua. O rapaz seguira pela escada abaixo sempre a limpar os olhos. As lgrimas continuavam a escorrer-lhe pela cara num desgosto sem fim. Aproveitando encontrar-se a ss com o Joo, falou do Cristvo e do dia terrvel em que o vira cado no cho a sangrar por causa de uma mulher estpida e m. Depois falou-lhe do pai, da me, do melro que deixara aos seus cuidados numa gaiola de arame e que to bem cantava logo de manh. - Eu no devia ter vindo - soluou. - No gosto de andar embarcado. Quando voltar para Gaia digo logo ao meu pai que quero ser pastor. Quero andar no campo atrs das ovelhas! As lgrimas escorriam agora a quatro e quatro. Joo no sabia o que havia de fazer, mas um latido suave veio ajud-lo. - Olha a Salpica. Est a chamar-nos! Quando se agacharam para a retirar do esconderijo que lhe tinham

arranjado entre sacas e trapos debaixo da prateleira que lhes servia de cama, tiveram uma surpresa. Salpica encontrava-se rodeada por uma ninhada de cachorrinhos. Tinha tido filhotes nessa manh! - Por isso que estava to gorda. - E comia tanto. Gaspar pegou num cachorrinho, todo castanho. Joo pegou noutro, de plo malhado. - Que macios! - Temos que ter cuidado para ningum os descobrir. 80 Esquecido do choro, Gaspar alargou o esconderijo com gestos carinhosos. - Ficam bem aqui. No h-de haver problema. Este mais gordo vai-se chamar Bolota. - E este? Malhadinho! Os cachorros gemiam ao de leve e mordiscavam os dedos do Joo. - So to engraados. Mesmo que os descubram, no acredito que algum tenha coragem de os deitar ao mar. 81 IX captulo - Perigo inesperado. Claro que descobriram os cachorros e claro que ningum os deitou ao mar. Toda a gente lhes fez a maior festa e at serviram para ajudar a distrair a tripulao porque durante muito tempo continuou a no acontecer nada de especial. Os marinheiros que subiam ao cesto da gvea bem se arregalavam com esperana de avistarem sinais de terra. Mas coitados, s viam de novo mar e cu, cu e mar, que monotonia. Joo andava aborrecidssimo. - Que dia hoje? Que horas so? - perguntava constantemente aos homens encarregues de medir o tempo com um relgio de areia, uma ampulheta. Eles respondiam-lhe com enfado: - No te serve de nada andares nesse desino, havemos de chegar quando for a altura e ainda falta muito. - Mas que dia hoje? - insistiu. - Estamos a 4 de Novembro, que dia do Santo l da minha terra. 83 Se eu fosse a ti, pedia a um santo que me desse pacincia. Joo encolheu os ombros e em vez disso foi pedir ao mestre que o deixasse subir ao cesto da gvea. O mestre hesitou. - s muito novo e nunca fizeste esse servio. L em cima abana que se farta. - No me importo. Eu preciso mesmo de abanes, que estou a ficar uma lesma de tanto pensar. O mestre riu-se. - Bom, nesse caso sobe. Mas cuidado nas cordas, h? No quero acidentes. Satisfeitssimo, esfregou as mos uma na outra e atirou-se s cordas. - Afinal no nada fcil - pensou, procurando no mostrar que subir por aquela espcie de rede suspensa arrepiava qualquer um. - Tem cuidado! - gritou-lhe a irm c de baixo. Ele acenou-lhe como se estivesse totalmente vontade e continuou a iar-se at ao posto de

observao mais alto do navio, enfiando as mos e os ps descalos nos quadrados da rede. Quando chegou l acima entrou no cesto de cambalhota, endireitou-se, sacudiu a roupa, e passou a mo direita pela testa que pingava suor. Depois debruou-se para ver o efeito da sua escalada. L em baixo no era s a irm que lhe seguia os movimentos, era um magote de grumetes. Ainda nunca tinham sido autorizados a tentar aquela proeza, observavam-no com admirao, sobretudo os amigos. Gaspar Jos, com um cachorrinho ao colo, incentivava-o: - Fora, Joo! Fora! s o melhor! Joo ergueu os dois braos em sinal de vitria e logo a seguir berrou a plenos pulmes: 84 - Terra vista! Terra vista! A irm e os amigos ficaram passados porque pensaram que estivesse a gozar. O prprio mestre fez cara de caso porque a bordo no se brinca com coisas srias. Mas no minuto seguinte o mesmo grito soava nos cestos da gvea das trs naus: - Terra vista! Vasco da Gama saiu dos aposentos e correu para a proa rpido que nem uma flecha. Os homens e a rapaziada acorreram tambm a debruar-se do lado em que se avistava agora nitidamente um risco branco debruado de verdura que s podia significar terra. Onde estariam? Ningum sabia, nem os pilotos. A nica coisa certa era tratar-se de uma qualquer zona em frica. Paulo da Gama tomou a iniciativa de festejar o acontecimento com tiros. As outras naus imitaram-no. E mesmo sem combinarem, iaram bandeiras e todos foram vestir a melhor roupa que tinham para celebrar o facto de porem o p numa linda baa desconhecida. Naturalmente ansiavam por desembarcar. Vasco da Gama porm no os deixou. - Calma. Nada de precipitaes. Temos de escolher o melhor stio para lanar as ncoras. Conforme era costume, chamou o piloto e enviou um bote para verificar a profundidade da gua e as condies de segurana. Orlando assistiu operao com o interesse prprio dos cientistas. De vez em quando procurava a Ana e o Joo com os olhos e fazia acenos para a So Gabriel. - Tem que se dar um nome a esta terra - lembrou lvaro Velho. - Precisa de um nome para se inscrever no mapa. - Fica Santa Helena - decidiu Vasco da Gama. - Baa de Santa Helena. 85 As palavras do capito-mor foram abafadas por um burburinho exaltado. A terra era habitada! Na praia circulavam homens e mulheres escuros de pele e vestidos