versiani - autoetnografia - uma alternativa conceitual

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tBTR AS 06 HOJ B LETRAS DE HOJE tTRAS DB l IOJB LBTRAS DB HOJ LETRAS U HOJ Autoetnografia: uma alternativa conceitua! Daniela Beccaccia Vcrsiani• Re1umo: Neste trabalho discuto a possível fundamentaço do conceito de "autoetnografla" como altorn:itlva útil a pesqulsodorcs du cultura preocupd m enfatizar, na aproximação de algumas formas de escrita de construção de sels, o caráter processual e itcrsubjetivo destas construçs discursivas com o p ro p ó sito de evitar estratégias de leitura e+sencialluidoms e cristallta· doras de subjetividades e Identidades. Abstrall WIUi nn eye to nvoiding essenllallzlng rcudlngs of subjcclivy and tdentlty, this chapter discusscs thc p<lS1ble bases for "auloelhttogrophy" ª" nn allcatlve for rcscarchers of cullltrc concoed with the intersubjccL!vc pro• ces+ through which subjectivlty is writtcn l nlo autoconstructlve tcxt�. Pn Heidr1111 Krie g er Ol1to, Mnrnin Rotllicr Cardoso e Vnltr Si+der. P arlindo do pressuposto de que o discurso literrio subjetivizan- te se pauta em matizes autobiográficas e memorialísticas, urge perguntar se o modelo tradicional de autobfografia cunhado no século XVlll iluminista ainda erá cíicnz para conferir visibilidade a sujeitos históricos (não essendalizados) que compartilham he- ranças socioculturais em cotantc circulação. Podemos percebei· que, face à mobilidade e complcxldade de sujeitos inseridos em contextos multlculturnls, o teórico/crítico Htorário contemporâneo lntercssado em discursos de constniç�o de selves deverá problema- tizar o modelo tradicional de autobiografias. Tal modelo, sustenta- do na rença da plena "representação" de subjetividades, cristali- zava discursivamente o Sujeito unívoco e estvel. Es t e cnsio reflete nlgumM lnd�que lorloancntc dc+cnvolvl na le do iOl�torndo "At1Lꝏtnogrníins. Conitos nl t cm H vo cm con s truo", orlcntnda pl+ ro 1 Dr• ckll'lt n Krl o g cr Ollnlo e dcfenôkhl l'tn 12 do abrll de 2002 rio Ocpartn• en ' O do l.et d.1 l'U C- Rl o. Letra1 de HoJe. Porto Alegre. v. 37, nº 4, p, 57·72, dezembro, 22

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Autoetnografia - Uma Alternativa Conceitual

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Page 1: VERSIANI - Autoetnografia - Uma Alternativa Conceitual

t.BTRAS 06 HOJB LETRAS DE HOJE t.llTRAS DB l IOJB LBTRAS DB HOJI! LETRAS UI! HOJI!

Autoetnografia: uma alternativa conceitua!

Daniela Beccaccia Vcrsiani•

Re1umo: Neste trabalho discuto a possível fundamentaçi\o do conceito de "autoetnografla" como altorn:itlva útil a pesqulsodorcs du cultura preocupo· dos t>m enfatizar, na aproximação de algumas formas de escrita de construção de selves, o caráter processual e iJ'tcrsubjetivo destas construções discursivas com o propósito de evitar estratégias de leitura e11sencialluidoms e cristallta· doras de subjetividades e Identidades. Abstrac:ll WIUi nn eye to nvoiding essenllallzlng rcudlngs of subjcclivily and tdentlty, this chapter discusscs thc p<lS1ilble bases for "auloelhttogrophy" ª" nn allcrnatlve for rcscarchers of cullltrc concorned with the intersubjccL!vc pro• ces11 through which subjectivlty is writtcn lnlo autoconstructlve tcxt�.

Pnrn Heidr1111 Krieger Olil1to, Mnrnin Rotllicr Cardoso e VnltL'r Si11der.

P arlindo do pressuposto de que o discurso liter.Srio subjetivizan­te se pauta em matizes autobiográficas e memorialísticas, urge perguntar se o modelo tradicional de autobfografia cunhado no século XVlll iluminista ainda :;erá cíicnz para conferir visibilidade a sujeitos históricos (não essendalizados) que compartilham he­ranças socioculturais em coru>tantc circulação. Podemos percebei· que, face à mobilidade e complcxldade de sujeitos inseridos em contextos multlculturnls, o teórico/crítico Htorário contemporâneo lntercssado em discursos de constniç�o de selves deverá problema­tizar o modelo tradicional de autobiografias. Tal modelo, sustenta­do na �rença da plena "representação" de subjetividades, cristali­zava discursivamente o Sujeito unívoco e est<\vel.

• Este cnsillo reflete nlgumM lnd�j;il�ll que p<islorloancntc dc11cnvolvl na leso do iOl�torndo "At1Lootnogrníins. Conceitos nlt cml\H voii cm construc;tlo" , orlcntnda pc>l11

ro •1 Dr• 1-tckll'ltn Krlogcr Ollnlo e dcfenôkhl l'tn 12 do abrll de 2002 rio Ocpartn• ll'len ' O do l.etrns d.1 l'UC- Rlo. Letra1 de HoJe. Porto Alegre. v. 37, nº 4, p, 57·72, dezembro, 2002

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A busca por estratégias alternativas de leitura de textos de construção de selves se toma mais urgente na medida em que se amplia o interesse teórico/crítico em atribuir ao discurso autobio­gráfico um valor político na visibilidade de subjetividades de al­guma forma associadas a grupos minoritários. Nesse sentido, ao tentar resgatar nos discursos de matizes autobiográficas a constru­ção de subjetividades margmais (djstlntas do sujeito hegemõnico branco, masculino e europeu, que se sobrepôs ao próprio conceito de Sujeito), teóricos e críticos literários evitariam as antigas estra­tégias de leitura que, afinal, construíram a noção de Sujeito unívo­co e estável que ora pretendem desconstruir. Essa tareia parecer demandar a elaboraçlio de estratfgias de leitura de discursos de �nstrução de sdves que, ao invés de estabelecer novas hegemo­nias. procurem se ancorar em alternativas conceituais que visibW­zem uma noção allernnllva de subjetMdade, que j:S se percebe como complexa e processual, em contínua interação com outras subjetividades em contextos específicos.

• Pesquisando subjetividades contemporâneas, pude notar

uma interessante aproximaç�o de perspectivas atuais nos campos da Teoria Literária e da Antropologia cm relação n processos de construção d e autobiografias e etnografias. A teórica da literatura Julia Watson e o historiador da antropologia James Clifford. embo­ra pertencendo a campos de conhecimento considerados distintos. fazem uma crítica radicJI 1'l noção de �ubjetividade (.'!.lavei, essen­cializada e metafísica. Seu empenho teórico está cm enfatizar al­ternativas discursivas nns quais a subjctivid•de é compreen&da como construção &alógica em processos interpesso.�is que ocor­rem em contextos multiculturais.

. No ca�po dos es�dos de literatura, a busca por novas estra­tégias de leitura para discursos de construção de sl'IVtS é consen­sual entre os teóricos e críticos literários que atribuem a tais dis­cursos determinada importância na conquista de visibilidade de sujeitos ligados a grupos minoritários. Contudo, alguns deles le­vam suas reflexões adiante, preocupando-se em não repetir os processos mentais de conslruçlio das antigas hegemonias. Essa perspectiva se verifica, por exemplo, nas reflexões de Watson. No ensaio To11){/rd n11 m1ti-melnpliysics of a11tobiogrnpl1y, a autora propõe a ruptura da concepção de sujeito metnfísico. unívoco e estável, intrínseca ao modelo iluminista de autobiografia, cunhado no sé­culo XVIU.

58 lei/ai dl Hoje t Danlala Boccaccia Vo"'6N

pa,rtindo do pressuposto de que discursos que exprimem no­vas subjetividades continuam sendo aqueles de matizes autobiográ­ficas e n1emorialistas - discursos de construção de selves -. Watson busca ultrapassar a crflica ao modelo tra&cional de autobiografia que construiu o Sujeito Metafísico. estabelecendo um modelo .•l�e�­nativo de autobiografia que possa dar conta de uma outra subietiv1-dade construída de modo dialógico (Watson, p. 62).

julia Watson propõe uma mudança de paradigma n a constru­ção de "'odeios de autobiografias, sugerindo o abalo do sujeito me­tafísico e unívoco. da Identidade estável e do propósito de se repro­duzir a •verdade dos fatos" e da "vida" de uma grande p eioonalida­de (p. 58). Para tanl.o, elabora uma estratégia de leitura que enfatiza 05 aspectos dialógicos da construç3o discursiva dessas autobiogra­fias por ela consideradas alternativas. Essa mudança. no meu en­tender, depende dos pressupostos político- teóricos valorizados pelo crítico-leitor, um aspecto até certo ponto reconhecido pela própria Julia Watson:

'The aitical tradJtlon of reading autobíography as lhe locus ol monu­mental Westem ""lfhood may be dcslabiliud rf"" rmd lhe oller egos o( lls canonical texlS, those equally canonical au1obiographles thl:lt are too problematic to be insertcd caslly into lhe senre ª' modcls but lhat enjoy lhe status oi "great books" dcspite their t'C5istance 10 g�Mric norrns. As troublingly self-reflexwe naaaüvcs, lhe outobiographlcal wnti.ngs of Montalgne. Do Quincey, anel Rilke trin bt nod as transgres-6ive boundary texts thnt dlsrupt lhe gcnre's bio.H>1ased sell-definition and reveal lhe shiltlng instability inscribed wilh.in the representation of nny Westem sell, lncluding lhclr own. Th4' dlsruption of that self• dcílnltion wiU alford us lhe opportunity to look •I one "other" of lhe autobiographkal tradition. namcly women's autobiographi<ls. and to O)Qmine cunent cLtims lhal thcy offer an oltem.1tive modc in which bloe is reinterpreled and lhe monumenl to stJbl" selfhood is� in lhe llght of olterity and dialogue" (Watson, p. 61: grifos meus}.'

·A tradiçik> aitica M atr 1 autobiografiai como o lonu dcl O'IOl'l\inwmtal $Ubje-dvkt•df OddenuJ pode--"""-"' olbu-<p d<--,_,_ � •utobiogn!W 1gua-.--que são por demais prol>� para -lnk'ridas com lac.tklodc dentro do sm.to """" n>Od•to.. mas que drsfnium do 1.t.tttv1 de "grandes bvros· apesar dfe -.ua rdistmcta às ttgru desse gb'lero. Como lncOmodõu narratlv.ts de auto--rcflexão. OIS ftiC'l'ito.s autobiosr.tfloos de Mont.,Jsric:. De Qu.l�y e RiU.:e po.t._.,., 1-tf' lidM como texto11 tr�nsgrt!lt60rtt de lronteiras, que rom-. � • deflni('ao de ttll orntr;1da sobre a bécJ do _gênero e rtve-�m a c2rmbi"'1llC l�abi4 - Wcrito no Uih<tlor de qwlque< 0<lf Ocidmtal. Incluindo o cleles pl\lprloo. A "'PI"'" c!.tqU<!a d<l'uú<1o noo d.!ri • opottl'rudade de olho>r r-ra um ·ouuo· ci. O'•· daclo •uklb1ogr.tiJka. ou <Jit)I. as aulObiogt•fbs de m� to de examinar as atuars aflnnauvas de� e:LllJ oft.'fftrm um c.amlnho al�tavo no qlli.ll a HclJ é rt"lnt�rc­:1' e o monumento p.1r• estabilizar• 8Alb�11vkiade f ViJIO à hu da :i.hcrid-'dt e do �logo .. (\Vatson, 1093. r· 61; grifos mcui;).

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Assim. no lugar do sujcito metaJfsico, unívoco e estável pressuposto nas autobiogmfias escritas à ln Rousseau (p. 69), Wat­son trabalha com uma noção de sujeito histórico constru(do de modo diaJógíco a padit das relações que estabelece com outras subjetividades. Para ela, essa perspectiva não é apenas possível, mas efetivamente desejável, considerando que aquele Sujeito Metafísico - que é afinal o homem ocidental. branco e europeu (p. 58) - foi construído pelo apagamento de toda e qualquer sub­jetividade estranha à sua.

É a partir desses pressupostos que Watson propõe a leitura de escritas autobiográficas, alte.rnolivas discursivas de construção de subjetividades antimetafisicas. Desse modo ela conduz as aná­lis<!s de textos autobiogTáficos de Montaignc. De Quincey e Ril­ke.' que 'revelam a escorregadia instabilidade inscrita na repre­sentação de qualquer sei/ ocidental, inclusive o deles próprios· (p. 61).

Ao longo de sua argumentaç.\o, Watson mostra que, através de estratégias narrativas tais como o uso da metáfora, a não li­nearidade temporal, construções em abismo, espelhamento, escri­ta cm labirinto, colagem, fragmento etc. (p. 65-66), Montaigne, De Qulncey e Rílke "articulam estruturas de auto-reflexão" que aca­bam por abalar, pelo constante confronto com ·seu irredutível outro", o eu coerente e estável do Sujeito metafísico e• represen­tação de uma suposta •verdade" sobre suas vidas (p. 62).

Segundo a teórica, esses recursos dJscursivos resultam em um tipo de escrita construída a partir de urna "subjetividade dia­lógica • que, enfatizando a presença do Outro na escrita do Eu. acaba por incluir no discurso autobiográfico, através da memória e das condições históricas em que se deu o processo de subjetiva­ç�o. a� vozes de outros se/IJt!S. A auto-referência fragmentária e d1al óg1ca permite que outras vozes culturais perpassem sua escri­ta. Assim, Montaigne, Do Qtúncey e Rilke podem ser considera­dos criadores de um modelo alternativo de autobiografúi que desafia a noç3o de subjetividade coeren.te e estável característica de autobiografias concebidas segundo as tradicionais regras do gênero (p. 62-67).

Se o modelo de autobiografia cunhado no século XVIII servi.ra para construir de forma discursiva aquele sujcito unívoco, autobio­grafias que adotem estratégias discu.rsivas alternativas ao modelo

60 Letras do Hoje • Oanlola Bec::caoota V0<1fan1

tradicional construiriam discursivamente identidades multifaceta­das e subjetividades plurais. Nesse sentido, nos modelos alternatl­vos de autobiografias apontados por Watson, a escrita autobiográ­

fica torna-se reveladora das diferentes vozes culturais interioriza­das pelo self ao longo de sua trajetória pessoal e advindas das rela­çõeS por ele estabelecidas com outros se/tJeS em contextos especifi­co&. Isto também ocorre nas autobiografias de mulheres que, por meio de uma escrita que aponta constantemente para a relação do

�f com outros sdlJf!S (em uma perspectiva dialógica), acabam por construir discursivamente urna concepçllo de subjetividade niio­metafísica' (p. 61). Em suma, Watson parte de urna concepção de subjetividade histórica, que se constrói pela constante interação e dUlogo' com outras subjetividades. Esse processo intersubjetivo e contextualizado revela-se no próprio processo da escrita.

Quanto aos estudos literários do gênero autobiográfico, Wat-900 chama a atenção para o fato de que os poucos teóricos que se dedicam a trabalhar com textos autobiográficos de minorias o cos­tumam fazer ainda a partir da perspectiva de um sujeito metafísi­co, buscando, por exemplo, construir cxemplary figurei; for t110me11 (figuras exemplares para mulheres] (p. 60). Ou seja, embora ques· tionem a perspectiva da "representação da vida (bias)". esses teóri­ros mantêm a intenção de conferir status a vidas cm particular. Nesse sentido, respondem à necessidade polttica de conferir visibi­lidade a essas subjetividades, sem questionar o sujcito metafísico, ao qual aderem (p. 61 ).

Seguindo o raciocínio da teórica, eu diria que tais teóricos adotam estratégias de leitura preocupadas em enfatizar a função polftica dos discursos autobiográficos. que contribuem para tomar vlsfveis outras subjetividades que não aquela do homem ocidental. branco e europeu, mas sem, no entanto, questionar os pressupos­tm subjacentes à noção de s11jeito construída através desse discurso. "-sim, tais subjetividades ainda procurariam a auto-representação política a partir dos paradigmas de autoconstrução discursiva do Mesmo.

No referido ensaio. Watson destaca as posições de algumas teóricas contemporâneas preocupadas em enfatizar a perspectiva

Con-. ""' --... alinNri.> que .... � .... � de"""'"'. de leltu­.. � � .-........,,., pO< mu1hotts." que podo .... ..-..ooMia. qualq­IUb;dividMlt - lttdepend�te de gfflero - Mo dom1n1n1t e. principalmente", nao

• •'1kN'ftárl;t. !",bo� he:!ltt: ensaio nJof(i rrdlra Mi..kNel 8'1khtin em ntnhum mom�n10, os d&itoa u1,. w • ._ iJ.::: com o -..O ""'°�,,.. vt<ili<'adco em Sldc>nk Smilb, •

JuU.. Wat!llon ( OWll, nitio:ez.,w\y. tlttory A "*"- t-Udbon. WitCOtllin: lhe Ufti.. '-'ly oi Wlo<onsln Pnss. 1 ). 61

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relacional e o papel da alteridade na construção do �f em autobio­grafias de mulheres. é esse aspecto que Julia Watson aponta no pensamento d e Mary G. Mason:

Mason argues that """'""' wrirers dtlmmlt idrn11ty rtlatimutlly. through conm'CflOtl to •lgnifimnJ othm, lhat "thr �lf-dl�ry of fmwl• idenlity attrns to ncknoiuledge. lht rml prcse,,ce nrrd ncog,,Ufon o/ nftol11er con· scio11s11ess, a11d lhe disc/os11re of femnlt s..•lf is /inlá!d lo ""' idtnlifit»tion of som11 •olhtr". ( ... ] Ma$on posítions lhis alterity ln contras! to lhe self­dramatizing "8" of lhe white male autobiogr.apher ã la Rousseau. who. Mason argues. sc<>S others as • kind of backdrop or screcn for hls solit•ry performances, and not as relational posslbiJltles ln a dia­logue. By poslting other voíe)es as asp«ls of the relational autobio­gr.iphlcal ·r, Mason destabilize$ clalms for the separateness of Uves implied by lhe concepl oi individuality. and lherefore queslions lhe authority oi blos ltself (p. 69; grifo meu).' Aproximando-se da perspectiva de Mary G. Mason, julia

Watson destaca, na leitura de Pattm1s of childllood. da socilllista alemã Christa Wolf. uma narrativa autobiográfica contemporânea que, a seu ver, constrói a subjetividade de modo transpessoal. com ênfase sobre a constante relação que se estabelece entre memória pessoal t memória coltliw, um típo de escrita que acaba por construir uma �ubjetividade histoódzada e contextualizada:

Wolf's reflectlon on the historical ond transpcrsonal chorocter of subjectlvity revises lhe met.lphyslcal sclí of aulobiography. question lhe authentidty of bios, ond propoHS a dlaledical inquiry between culture and sei! (p. 73).' Além disso. segundo Watson, ao insistir em localizar n SLtbje­

tividade. conectando-a a coorderuidas históricas, Christa Wolf também abala a noção de que a autobiografia se remete exclusiva­mente à questão do privado, ampliando as possibilidades do gêne­roe reinscrevendo-o enquanto "gênero coletivo":

62 loltu de Hofo • Oafli91a Boocaccla Vortlo.nl

Jnsisting on locating subjectivity at a nexus �í histori"'.'I �rdina tes, Wolf signal!l n resL.rancc 10 auloblography s nuthonz.allon of pri· vale, bios-orlented subjcctivity and reinscrlbes it as a collectwc geme (p. 75).' Por fim. ao utilizar o recurso retórico de l!mpregar diferentes

pessoas do discurso para se referir a diferentes momentos de sua trajet ória pessoal e a seus múltiplos �lves -primeira pessoa para se referir à infância, segunda pessoa para se referir à criança que per· tencero à Juventude Hitleriana e, por fim, a objetividade de um Eu distanciado tornado possível pelo uso da terceira pessoa - o narra· dor de Christa Wolf abala definitivamente o estatuto do Eu coeren· te do género autobiogr-áfico em sua concepção canônica:

ln remcmberlng. lhe Mrrator disrovers hcrself objeclllylng her younger selí and adopling a vorlcty of delensive postures toward this ol:her. This emphusis on the othemcss of tl'le olher. partlcularly when it is Iler recent self, suggests Wolfs resistance to the fictlon of coherenl ,..1fhood anel biograpltlcal continully thal has long been considere<! C<.'ntral lo Westem autobioi,'l'aphy (p. 76).' As reflexõeS de Julia Watson sugerem que, enquanto teóricos

tradicionais - ou conservadores - privilegiariam autobiografias ronstnúdas de modo monológico, outros l!Stariam prrocupados em c:rlar estratégias de leitura de visibilidade para outros lipos de subjetividade (que niío o modelo dominante de homem. branco e europeu), privilegiando o produç3o outobiogrMica ctialóg1ca.

Contudo, a partir de uma perspectiva construtivista,' que subscrevo, a percepção quanto ao grau de monologismo ou dialo­glSmo de um texto é est.1bclecida pelo próprio teórico ou crítico. a partir da ênfase sobre os elementos que considera produtivos P"r• este propósito. Isso nos teva a reconhecer as escolhas de sustenta· ção de estratégias de leitura como polflicas de ltit11ra.

' •Ao lnsistir ftn loc1Jl%ar , 1objetividade, totieet.a.ndo-• a coordm:ldas tustóric:at. WoU 'inalit. uma mdstinc:Y A 5Ubjetiridadt Orientàel.a $Obre • ruc. � à ilUlor'idd

, do l\•!d>logra/l.J ...,.., 0 pnvodo. rd� corno um sê""" colttlvo" (p. 75� .. M rm'liemorar, • narradora db(ob� obfetivAndo seu telf ma.is jovem e �ota.n· do wn.a vilrif!dad.e de poflçO\lti deícnstvas � relaçAo a t$fe oi1tro. �ti.l �t\l»t' sobr'1 • •11.c'ridade do outro. partk\aJ11rmcnte quando se ttilla de um rt:émtC' $Clf d.a escrito.. ra. IUF"' a � dei Wolf A Ro;.ao d.a 1ubjethoidoi'de coeRnte e à c:ontinuidadll "'-'�ka. que (or.un du.rlntt unto ttmpo �central$.\ au�fl.a �(76� Vtt pr�te SCHMlDT, Siegfried. "Sobre a e5Cf'lta de histórias dA lueramra Obférv� � 1,.un ponto de vi..'lta con&tn1tivl:sta". ln, OLINTO. licldnln Krlegcr (otg,). Hi$t6ria; de. llt�r4h1n.. 5.\o Paulo: ÁllC'll, l� e SCHMIDT. Sit!glrk>d. "Oo texto ao� 1Jta.1r'°. Esboço de umil cimda <b literatun emp(rk$ (()f\'l.trubvíst.a- ln Ot.wro, li<..tNn Kriegff (O<g � � • l•ttm""' ....,irn. IOO d• jont=: Tempo BrilOll.uo. 19')4.

Autootnoarall•· uma aJl.OfnBtlva conceituai 63

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Desta forma, se o ensafo de Julia Watson aponta para uma mudança de paradigma na construção de autobiografias condizen­te com o abalo dos paradigmas do sujeito metafisico e unívoco e da identidade estável, eu acrescentaria que o início dessa mudança se dá no momento mesmo e m que a própria Watson, teórica e mu­lher, constrói modelos alternativos de autobiografias que conferem visibilidade a outras subjetivídades e possibilita outra percepção dos processos que as constituem. Ou seja, a mudança de paradig· ma é impulsionada pela alteração de consensos e interesses dos próprios crfticos e teóricos literários, facilmente associada à chega­da às academias e departamentos universitários (como centros produtores de conhecimento) de sujeitos que, de algum modo, se identificam com grupos mi noritários. � nesse sentido que acredito que o movimento de subversão de modelos de escrita de constru­ção de sel'O<'S não pode se limitar apenas à constituição de novos objetos e à elaboraç3o de estratégias de leitura correspondentes. nern apenas à defesa de uma diferente percepção dos processos de subjetivação, ma.s precisa também incluir um constante exercfcio auto-reflexivo através do qual o teórico e/ou critico literário possa esclarecer sua própria posição em relação a seu objeto, seus méto­dos e pressupostos. Mesmo subscrevendo a importância de se aba· lar a noção de subjetividade metafísica, propondo em seu lugar estratégias de leitura de ênfase à noção de que subjetividades são construídas de modo dialógico, e partilhando com Watson da im­portância de constituirmos novos objetos e novas estratégias para sua leitura, não creio que este movimento seja suficiente em si. é nccessdrlo que a poslçilo do próprio teórico ou c.rítico em relaçllo a esses objetos seja explicitada com clareza.

Embora não oonsidere suficientemente ampla a propostll de leitura di?lógica feita por Watson, uma vez que, na constituição de novos ob1etos, a autora evita a discussào de seu próprio papel de pesquisadora lare aos •modelos alternativos de oonstruç�o de sub­jetividade não-metafísica•, seu ensaio se abre em pelo menos duas interessantes perspectivas:

1) aponta para a adoção de uma noç/lo de self complexo, subs­c:e_vendo processos dlalógicos e interativos na construção de subje­tividades, o que oos remete a questões relacionadas à própria complexidade, historicidade e singularidade dos sdws;

. 2) o texto percebido como construção dialógica - como a aut� biografia - ao tomar presentes outras subjetividades, toma-se texto coletivo. reunifto de subjetividades em cUálogo.

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Por ora limitar-me-ei a discutir um possível caminho aberto pela segunda perspectiva. que nos remete a recentes reflexões so· bro a construção do texto etnográfico no campo da Antropologia.

Em uma passagem de seu ensaio, Julia WatS?n _afirma que C()f\Sidera Tlús bridge calltd iny back" uma das maJS rmportantes

ublicações dentro do g�ero a�tobi_<>gráfico , por_ ab�i�r de�it:i­�amente a concepção de Vlda (b1os� ligada a. uma md1Vldual1dad e exemplar. associando-a a uma concU ção coletiva:

Perhops no work of women's autoblography has tuld more impor·

tant implicatlon for theori;cing bios outside a -physical tradition than This bridge callcd my back. a ro/ltct1on of bricl autob iographJ·

cal wrlHngs ln many genres by radical womcn oi color ln the Unitc<I States. ln a sense, Bridge enunciares ali lhiat dominant autobiogr�· phy is not creative and polemical, !t redefines autoblography as lhe first·person utteranccs oi woinen whose ldentities had bcen con· stru� as contradictory and invisiblc withln both mainsllum theory and ocadt?l\'llC while women's writlng, [ ... ] The pcrsonal hislori<?S oi ethnic prtjudic;e narraled ln Bridge coll«tiviu and historiche fir;/ ,,.,.. son stalonalls in uvrys tluzt blos, undtrstaod u mdWídw'1izttJ asserlion of a lifr's sígnifi<nna, amnot a unnol admít (p. 71·72; grilos meus)." A idéia de coleç3o, de reunião de escritos autobiográficos

como encontro de subjetívldades que partilham uma identidade coletiva comum, presente nestn passagem do ensaio de Julia Wat· aon, merece atenç3o porque, curiosamente, aproxima-se, sob certos aspectos. de uma tendência em recentes experiências textuais no campo dn etnografia, notadamente no contexto americano. Essa tendência consiste na busca de novas formas de apresentação de ll!xlos etnográficos que respondam à tentativa de incluir diferentes vozes culturais em obras escritas em co-autoria entre etnógrafo e eàlografados. Subjacente a essas experiências textuais há uma dis·

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cussão maior, de alcance epistemológico, associada à perspectiva de uma antropologia pós-moderna", iniciada nos anos oitenta com a publicação de Wrllí11g culturr. The poelú:s a11d polil ics of ellmogra· phy, coletânea edítada por James Oifford. professor do Programa de História da Consciência da Universidade da Califómln, Santa Cruz, e por George E. Marcus, professor do Departamento de An­tropologia da Rice Unlversity, em l::louston, Texas. O eixo desse debate, que vem se estendendo com interessantes desdobramentos e implicações para a disciplina, gira em tomo das intrincadas rela· çôcs entre o processo de construção de textos etnográficos e a pro­dução de conhecimento sobre os "outros• a partir da crítica ao as­sim chamado "realismo etnográfico•. Essa crítica se articula com a crítica literária p6s-estruturalista ao realismo e à representação, e ainda com as teorias bakhtiníanas sobre o diaJogismo e o romance polifônico. No ensaio '"Sobre a autoridade etnográfica", à semelhança da questão levantada por Watson em relação à busca de um novo paradigma para a autobiografia, James Oillord enfatiza o em� nho de alguns antropólogos contemporâneos em buscar alterna­tivas ao modelo de etnografia cunhado por Malinowski cm Os argo11nulns do pacífico ocidental (1922). Essa obra, tida como modelo de texto elnográfico condizente com os tradicionais preceitos da antropologia moderna, é fundamentada no paradoxo d a ida a campo, na observação participante, nas inúmeras anotações no diário de campo, em toda uma experiência pessoal que, contudo, quand.o �posta par� a r�açlo da etnografia, deve adequar-se a� c:iténos do texto Cientifico. A partir desse momento, a expe· r1enc1a pessoal do antropólogo é obliter.,da pelo uso do tempo presente e da terceira pessoa. impessoal e distanciada do objeto, de modo tal que •a realidade das situações discursivas e dos in· terla:cut�res in�viduais é filtrada" e ·os aspectos diaJógicos, si­tuac1ona1s, da interpretação etnográfica tendem a ser banidos do texto _representativo final" (CIJfford, 1998, p. 42). � a partir do ques ti�namento desta metodologia que Clifford aponta para a necessidade de uma mudança de paradigma na produção de et· nografias:

Toma-$<! n«essário ronceber a etnografia não como a exp1<rimda e a tnterpretação de uma "'outn .. realidad� cil"C't.it\SCrita, mas sim como ""'ª 11tfgoclnção constnlliva enoo/t)(!udo Jlf/O 1neuos dois, e 11111ítns Vt.'US

mais, sujeit<JS consdtutts e politicommte s1'grttfica1ivos. P�racligmas. de cxperi�ncln e interpretação e$t�o dando lugar a .Pª'°�' gmas discur­sivos de dü!logo e polifonia ( ..• ]. Um modelo dJSCur.;,vo de pr�b<:a etnogri.flc• traz. para o centro da rena a lnteTSubjetMdade de toda fala. juntamente com seu contexto perfonnativo imediato (p. 43: gri· fomeu).

[)essa forma, a mudança de paradigma que Clillord aponta nas etnografias "p6s-modemas" �� exatamente à. �o nega· ção da experiência pessoal e, pnnCJp almente, à cxplicttação da intersubjetividade estabelecida entre etnóg rn .fo e etnogr�ad o como

uposto básico da cons�çlo da própria etnografia. Entre. as =lências de escrita etnografi cas coerentes com esta perspectiva dialóglca e polifônica, Clifford aponta algumas tentativas - com seus erros e acertos - de elaboração de textos coletivos. assinados poc etnógrafo e etnografados que, longe de pretender ser a repre­sentação de um Outro essendalizado, buscam ser alegorias da própria relaç�o que entre eles se estabelece. ou seja, como negocia· ção de uma visão compartilhada da realidade (p. 45).

Assim, como alternativa à denominada etnografia realista, esses teóricos se voltam para experiências de escrita que têm por pre$Supostos a alegoria. o dialogismo e a polifonia, e que, ao in­cluir no texto etnográfico a voz do etnogralado, desestabilizam a autoridade (no duplo sentido de autoridade e autoria) do etnó­grafo em sua tarefa de represe11tar o Outro, bem como um dos tradicionais pressupostos metodológicos da pesquisa de campo: a possibilidade de um real distanciamento do antropólogo em sua condição de sujeito produtor de conhecimento em relação ao seu objeto, isto é, o grupo estudado.

Ao abalar o tradicional modelo de etnografia, estas � rlêndas textuais apontam para um novo papel a ser desempe­nhado pelo antropólogo que. destituído da autoridade de "repre· eentar o outro". passa a desempenhar função distinta do papel tradicional do antropólogo. Ou seja, ao invés de falar sobn o Ou­tro. ou pelo Outro, o antropólogo passa a falar com o outro, atra­vã da elaboração etnográfica de uma escrita dialógka e/ou poli· fõnlca que busca ser uma "alegoria" do encontro entre subjetivi· dades de diferentes culturas: a dos etnografados e a sua própria.

t através da aproximação entre estas reflexões teóricas sobre a construção de autobiografias e etnografias, e da implícita alte· raçio do papel do teórico/ crítico literário e do antropólogo dian­te destas formas discursivas que acredito ser possível fundamen·

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tar o conceito de nutoel11ografin." um• alternativa conceituai útil a pesquisadores da cultura preocupados em supera.r uma série de dJcotomias predominantes na reflexão teórica dedicada tanto às autobiografias quanto às etnografias, aqui denominadas escritas de construção d e sdtlfS: o Mesmo oers11s o Outro. subjetividade vers11s alteridade, indiv;dual fN'rs11s coletivo. Su jeito vers11s Objeto etc.

Em primeir o lugar. o conce ito de a11wro1ograjia pode servir com� ponto de p�r tida. para ll leitura de textos autobiogrMicos reunidos sob tuna 1dentidade coletíva. A presença do prefixo auto, �o grego n11/ós, �e de a!er�a coni:a a supressão das dlferenças intra-grupo, enfatizando as s".'gulandades de cada sujeito/autor, enquanto � .termo tino localiza. parcial e pontualmente, esses mesmos su1e1tos em detrrminado grupo cultural. Nesse sentido partindo-se da hipótese de que a ailnltnm, obra coletrva ou cti1eçifu são exemplos de produtos culturais onde ocorre um encontro de s.ubjetividades, que promovem a ligação entre o subjetivo e o cole­tivo através de uma identificação porr:ia/ e ponlWll de sujeitos com um� .identidade de grupo específica, esse produto cultural parece Jus hf1

.car-se como merecedor de uma análise mais aprofundada. Enfatizo, co�tudo, qu� a i�entlficaçAo proposta deve ser pnrcial e po11t11nl na singular tro1etó�1a. de cada sujeitó, ou seja. como ponto

comum a diferentes sub1et1v1d ade.1: caso contrário, eslarfamos, de um lad�, recalcando, com nossas Jeíturas, as diferenças e singula­ridades intrínsecas a todo grupo identitário e que se constroem ao longo d� p� �e subjebvação: e, de outro, reiterando pres­supostos mcompa. tiveis com uma visão complexa sobre identida­des e subjetiv;dades.

Em �do tuga;. o conceito de autOl'hzografia também pare­ce produtivo para• . leitu.ra de eSO'i�s de sujeitos/autores que re­fletem sobre sua propna inserção socml, histórica, identitária e, em esp ecial no caso d.e subjetividades ligadas a grupos minoritários, também como um possível modo de conquistar visibilídade polltl­ca. �im, o conceito de aul0<!l11ografia parece bastante produtivo em le1tu!"s de .º?ras coletivas ou em co-autoria, e também em for­mas mais. trad1aonais d� escritas de autoconstrução de subjetivi­dades, llus como autobiografias e memórias, mormente quando seus autores estão de alguma fonna ligados a grupos minoritários.

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Em terceiro lugar, as possibilidade s abertas tanto por Watson quanto pelos antropólogos aóma mencionados, na busca por mo­delos alternativos de autobiografias e etnografias - construídos oâO mais a partir do pressuposto do sujeito unívoco, estável e me­tafísico, ou da autoridade do etnógrafo e de seu distanciamento em relação ao seu •objeto de estudo". mas sim a partir de uma noção de subj etividade construída de modo relacional, ou dialógica -taJnbém permitem pensar que textos de autoconstrução de subjeti­vidades {coletllneas de autobiografias, as próprias autobiografias e memórias. cartas. e-mails etc.) podem ser lidos como textos com valor de etnografia e vice-versa, havendo entre as duas formas de escrita (auto e etno-g:rafias) aspectos intercambiáveis.

Em seu aspecto metateórico. a elaboração de wn conceito co­m o o de nilloet11ografia insere-se em uma reflexão maior que, atri­buindo ao produtor de conhecimento a responsabilidade pela construçãO da própria episteme {Schmldt. 1996. p. 102). está empe­nhada em elaborar um instrumental teórico capaz de lidar com questões de subjetividade e identidade de modo a não reduzir sua complexidade às simplistas dicotomias estrn11gdro X n11t6ct,,11r, per­tença X rxc/11sifo, íde11tidnde X difere11ça. o Mesmo e o Outro (a gran­de e homogênea entidade que abarca toda e qualquer subjetivida­de díférente do modelo imposto pelo Mc!Smo). Como objetos -construções que refletem escolhas teóriro-polític�s do pesquisador -todos esses tipos de produções culturais surgem a partir da cons­trução de um instrumental teórico que procura lidar com subjeti­vidades e identidades de modo complexo e processual, enfatizan­do a importànda do próprio pesquisador da cultura como partici­pante ativo na construção de modos alternativos mais complexos de percepç�o dos processos de construçlo de sdves e de conheci ­mento, bem como na percepção e construção de uma episteme multkultu.ral.

Explico melhor: penso que estratégias de leitura centradas llClbte modelos dicotómicos como os acima mencionados acabam por 6xar-se sobre um momento pontual da trajetória de indivíduos ieolados, enfatizando e perpetuando diferenças, dificultando a construção de um.a vis.!o mais complexa e dinâmica que permita penei,,,, os processos que envolvem a construção de identificações. e impedindo, em última análise, a própria construção de uma vi­'!'<> não essencialista das subjetividades e identidades. Nesse sen­� · o COnccito de a11toetnograjin. mais do que refletir a ·descober­:eli d� um objeto anterior e exterior ao pesquisador , surge como

mitação do objeto construido pelo pesquisador, preocupado em estabelecer estratégias de leitura das produções culturais que

Autoelnogt"sfla: uma dlternatlva conoetlual 69

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telll<'tizem processos de identificação e subjetivação" coerentes com as alternativas conceituais ético-políticas de construção de uma episterne não dualista.

Como afirma Edgard de Assis Carvalho em Estrmrgefras fo1a­gerrs, "implodir essas dualidades, o que implica romper o "Grande Paradigma do Ocidente", não vem sendo nada fácil" (p. 28). Ao criticar o sistema dicotômico de pensamento na elaboração de teo­rias e estratégias de leitura, quero ressaltar sua dimensão discrimi­natória, que se opõe aos pressupostos de multipHcidade, na tenta­tiva de dar conta da diversidade e da particulari dade, do singular e do coletivo.

A lógica dicotômica do pertencer versus não-pertencer, da identidade versus diferença, ou. como nas etnografias construídas a partir do modelo tradicional de etnografia, etnógra.fo versus etno­grafado, suíeito versus objeto, o Mesmo versus o Outro, visualiza apenas o momento da diferença, não os processos intersubjetivos através dos quais ocorrem interações e identificações culturais. No entanto, se ao invés de focalizarmos momentos pc11h11Jis na trajetória de indivíduos procurarmos focalizar, em nossas estratégias de leitura, as trnjetórins dos indivíduos e as sucessivas interações cul­turais que se estabelecem entre eles, talvez seja possível criar con­diçÕl!S par.1 a visua.l.ização de dif erentes subjetividades, idmtida­des e concepções de mundo, abrindo possibilidades de negociação entre elas.

l!sse desafio requer do pesquisador da cultura contemporã· neo o instrumental teórico que lhe permita abrir-se para as dife­renças internas às identidades de grupo. Isso irá exigir uma revisão do conceito de ideii tidade, dependendo de um olhar pousado, de um lado, sobre o sujeito em trânsito, móbil e singular, herdeiro de culturas específicas, interagindo com diferentes grupos sociais; e de outro, sobre a intersubjetividade. motor da contínua alteração de fronteiras identitárias e da própria formação de subjetividades. que deixam de ser entendidas como estáveis e passam a ser perce­bidas como processos em andamento. Nesse sentido, teóricos e pensadores da cultura deveriam se empenhar em microanálises, atua.ndo sobre uma episteme percebida como mais e mais movedi­ça. mas não dicotômica.

u Paca o ro.nceitos de "·idenliricaçoes·, ver MAFFESOU, Mkhcl. (1.997). .A Tn,,1sfr.�r11· r.to do PoUUco: a tribl11iraçifo do mu11do. Pol'tO Alegrt': Sulina (Mpt?cialmente p. 126). Pll• ra D.'> ronceit0$ de •i,ndividu"'.lidQde", ·Singularidade· e ·subjeri .. •at:to•, ver GUAT• TARJ, Mbc e ROLNIK. SueJy (1986) Mtô'opol11iar. Carlogrofw do deujo. Petrópolis: Vozes.

70 Letras <te HoJo • OanieJa 6eccaccia Verslanl

AsSim, nossas elaborações teóricas deveriam se concentrnr na percepção dos processos de intcrnçlio entre sujeitos, e não apenas em um momento pontual da trajetória de indivíduos. Sem nos limi­iannos à fotografia, tentaríamos incorporar às nossas teorias a imagem em movimento. Mas para que isso ocorra, é preciso mu­dar os pressupostos que constroem nossas elaborações teóricas, substihtlndo os modelos dko tômicos por modelos sistêmicos, sin· crõnicos e diacrônicos, prontos a lídar com a mobilidade e a com· plexidade, empenhados em elaborar conceitos promotores de arti· culaçil:o entre opostos. Não se trata de um "novo' gênero proposto para contornar a dificuldade de delimitação das fronteiras entre o relato, o testemunho, a autobiografia, o ensaio auto-reflexivo e a etnografia.

A elaboração alternativa de estratégias de leitura e da própria produção de conhecimento parte do pressuposto de que, em suas atividades de pesquisadores da cultura, críticos e teóricos Hterários estão subsumindo políticas de leitura a partir das quais produzirão textos e conhecimento. Para tal, pesquisadores culturais devem manter, tanto quanto possível, uma postura auto-reflexiva (autoet­nogt'áfica)." atenta à construção intersubjetiva de sua própria sub­jetividade, circunstanciada por trajetórias intelectuais e pessoais singulares, através de sua inserção em difêi'e!ltes grupos Sõdócul­turais, do imbricamento de curiosidades teóricas e escolhas racio­nal�. afetivas e até mesmo casuais e contingenciais." elementos esses presentes na construção de seus objetos de estudo. Ultrápas­sar nossa condição de sujeitos complexos, reconhecer as possibili­dades constantes de criar diferentes vínculos de identificação atra­vés da ênfase na compreensão da construção da subjetividade e do próprio conhecimento como processos relacionais, intersubjetivos e dinâmicos, pode ter valor de ação política. Pois se os pesquisado­res da cultura perderam sua "autoridade" na descrição dos outros, adquiriram hoje. acredjto eu, o papel social de contribuir para a produção de saberes plurais, na construção de uma episteme de �gociação de diferentes visões de mundo. Isso sem dúvida exige disposição para substituir construções teóricas dicotômicas e ex· eludentes por construções teóricas mais complexas, que n�o repi­tam os processos mentais que construíram as antigas hegemonias.

• -. Em nl1nha t� de�voh10 uma reOelCãO sobre a 0Jdodnogr11fia como métodQ. ElCtmplQ d.isso ê .a conling,éncia de ter mantido em um m�nlo scmesh'e, j.\1'\eiro .. _ag:9510 d<: 1999, diátngos com os lrés prof�re:s 3' que1n dl'<lico este Ci'1$1\10. que do-. �er.ta ser li.do como resull"do J'Nlrcinl do •processo ditilógk:o" que ront Cl('s l'Shl�lcci � então em tomo dê su.i.!I rcS:pt.'eliv;,s pctqui:!ll.'ls.

Au1oato0g-1atla: uma alternativa conceitua) 71

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