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SINOPSE 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paris, 1817, na Real Academia de Medicina. “Nunca vi uma cabeça de um humano tão semelhante à de um macaco”. Diante de um molde do corpo de Saartjie Baartman, o veredicto do anatomista Georges Cuvier é categórico. Um grupo de colegas de renome rebenta em aplausos.  

Sete anos mais cedo, Saartjie deixa a sua terra natal, no sul de África, com o seu dono, Caezar, para expor o seu corpo em espectáculos de aberrações, em Londres. Livre e escravizada ao mesmo tempo, a Vénus Hotentote tornou‐se um ícone das vielas, destinada ao sacrifício na busca por uma trémula visão de prosperidade.  

 

ABDELLATIF KECHICHE 

ENTREVISTA 

Abdellatif Kechiche responde aqui à maior parte das questões sugeridas pelo seu filme. Para cumprir os pressupostos deste exercício, as perguntas são formuladas como uma série de afirmações categóricas. Tal como as pessoas daquela época teriam feito julgamentos sobre a protagonista, Saartjie Baartman. 

 

 

A PSICOLOGIA NÃO É SUFICIENTE PARA EXPLICAR A COMPLEXIDADE DE UM SER HUMANO 

A Psicologia limita o nosso entendimento do ser humano. A aparência de uma só pessoa pode revelar mais subtilezas sobre a natureza humana do que todas as tentativas de explicações psicológicas. Quando o cinema consegue ser tão subtil quanto a vida real, é maravilhoso. A representação tem muito a ver com isso… É preciso ter sempre em conta que as técnicas cinematográficas podem ter um efeito negativo na representação e torná‐la completamente inanimada…  

E, por vezes, sem qualquer motivo em particular, há uma parte que permanece um mistério. Saartjie é uma pessoa muito misteriosa… foi isso que me atraiu nela em primeiro lugar… No final não sabemos muito bem o que a motivava, temos apenas alguns acontecimentos‐chave: a viagem da África do Sul para Inglaterra, os espectáculos, o caso no tribunal de Londres, o seu baptismo e o tempo junto dos cientistas franceses. Tudo o resto é informação fragmentada.  

São esses espaços intermédios que me interessam. Ao preservar o sentido de mistério à volta dela, nós, público, somos constantemente forçados a olhar para o nosso interior em busca de respostas. 

Li tudo o que foi escrito sobre ela e apercebi‐me que, frequentemente, existe uma tendência para analisar em excesso. Ou era apresentada meramente como uma escrava, algo que considero difícil de acreditar já que ela poderia ter aproveitado a oportunidade cedida pelo tribunal londrino e reclamado a sua liberdade. Mas ela não fez essa escolha. Para além disso, nas mais recentes descobertas históricas, ficámos a saber que ela também actuava na Cidade do Cabo… Ou então as histórias sobre a sua vida eram demasiado 

fantasiadas e ficcionadas, extraindo o mistério que a rodeia, o que pessoalmente considero desrespeitoso.  

E o respeito foi uma das primeiras coisas que Saartjie Baartman recebeu da minha parte. Este respeito não surgiu daquilo que estava escrito sobre ela, mas sim de toda a sua identidade.  

Uma imagem, por vezes, revela‐nos muito mais do que as palavras. Foi isso que senti quando descobri os retratos de Saartjie pelos ilustradores do Museu. E mais ainda quando vi o molde original do corpo dela que ainda se encontra em França. Fiquei incrivelmente emocionado pela sua face. Diz‐nos muito mais sobre ela do que qualquer coisa que tenha lido. É claro o seu sofrimento, o rosto dela está inchado da bebida e da doença, mas para lá disso ela parece ter (quer nos desenhos quer no molde) uma qualidade etérea, uma distância quase mística… 

O seu sofrimento interminável está muito relacionado com isto… o desapontamento também… Foi isso que me comoveu acima de tudo. Quando penso nela penso em desprendimento, numa abnegação completa, e em inteligência. Ela deve ter sabido muito sobre a natureza humana… Quando a vi, senti‐me impelido a contar a sua história. 

 

SER UM ARTISTA, COMO SAARRTJIE TENTOU SER, É ENTREGAR­SE POR COMPLETO AO PÚBLICO, SEM ESCONDER NADA 

Saartjie nunca se entregou por completo ao público mesmo que tenha sido constantemente violada. O que as pessoas viram não era o seu verdadeiro eu, mas sim uma caricatura: era aquilo que eles queriam ver. 

Aceitar a opinião de qualquer pessoa sobre nós, quando essa opinião é degradante, é muito doloroso e complicado, e nesse sentido ela era verdadeiramente uma escrava. Saartjie era uma artista, e isso era frequentemente escrito sobre ela: ela tocava um instrumento musical, tinha uma boa voz e dançava bem. Como uma verdadeira artista, o aspecto mais triste talvez tenha sido o facto de ela não ter sido capaz de expressar o seu verdadeiro eu porque não era isso que as pessoas esperavam da parte dela.  

Ela estava lá para ilustrar uma série de crenças e para consolidar o raciocínio daquela época; era uma prisioneira das crenças de outras pessoas. Em última análise, talvez este seja o principal tema do filme, a opressão das convicções.  

Identifiquei‐me verdadeiramente com este aspecto da personagem. Foi assim que me senti enquanto actor quando comecei. Sofri com aquilo que as pessoas esperavam de mim, não como actor mas como homem árabe. Senti‐me como numa prisão. Os papéis atribuídos aos árabes nessa altura eram muito limitados. 

O PRINCIPAL PAPEL DE UM REALIZADOR É CRIAR UMA FORTE DINÂMICA DE GRUPO ENTRE AS PESSOAS COM QUEM VAI TRABALHAR. 

Conseguir que uma equipa trabalhe toda na mesma direcção num projecto específico beneficia o processo de trabalho. Em cinema, tentei sempre instalar a mesma ética de trabalho rigorosa que aprendi no teatro. Isso significa, basicamente, não começar os ensaios no primeiro dia de filmagens mas começar a ensaiar muito tempo antes. 

Os actores começam a conhecer‐se, criam laços e, consequentemente, sou capaz de perceber melhor o potencial de cada um deles. Este conceito de formar uma trupe tem sido uma obsessão minha desde há anos. Por mais estranho que pareça, com este filme senti‐me muito mais relaxado em relação a isto, mais confiante acerca da interacção que poderia acontecer entre Yahima, Olivier, Andre, Elina, Michel, etc. Parecia instintivo.  

Um exemplo disso é o Andre Jacobs. Quando vi a foto dele, foi muito claro que ele seria o Caesar. Nunca o tinha visto a representar e nem sequer fiz uma audição. 

 

A ESCOLHA DE UM ACTOR NÃO­PROFISSIONAL, COMO YAHIMA TORRÈS, CONFERE AUTENTICIDADE AO PAPEL 

Mesmo sem experiência como actor, é possível interpretar de forma exagerada. Escolhi‐a porque não encontrei uma actriz negra com um corpo semelhante ao de Saartjie Baartman. 

Vi a Yahima pela primeira vez em 2005, estava a caminhar numa rua perto da minha casa. Fui apanhado de surpresa pela sua aura e pelas características físicas, que me fizeram imediatamente lembrar de Saartjie. Quando a contactei uns anos mais tardes para uma audição, foi a sua abordagem despreocupada à vida que me fez ter a certeza de ter feito a escolha certa. Percebi que seria capaz de puxar por ela emocionalmente sem a magoar. 

Parti então à procura de um grupo de actores que a conseguissem apoiar; a “trupe” que, na minha visão, é tão importante. Todos os seus colegas, actores com bastante experiência, não só foram fantásticos mas também naturalmente protectores e amáveis com Yahima. 

A ideia de que é possível pegar em actores não profissionais e alcançar uma interpretação espontânea é um mito. É muito mais fácil trabalhar com actores profissionais, se forem talentosos, do que com actores não profissionais, que têm de ser ensinados e aos quais é preciso explicar tudo em detalhe. 

No início podem ter um dom natural, isto é muito comum, mas a partir daí é preciso muito trabalho para que eles atinjam um patamar profissional. Uma verdadeira interpretação só se consegue com imenso trabalho. 

OS DETALHES DE ÉPOCA NO CINEMA ARRUÍNAM QUER A GRANDE QUER A PEQUENA HISTÓRIA 

A adaptação de um argumento de época ao cinema facilita o risco de nos focarmos unicamente em obter os detalhes visuais correctos e de sermos absorvidos por isso. Tenho a certeza de que deve ser muito agradável recriar o passado nos mais minuciosos detalhes, e fazê‐lo bem, como numa pintura. Mas isso coloca em risco as razões pelos quais o estás a fazer, ao colocares demasiada energia nas coisas erradas.  

Da minha parte os riscos eram limitados, porque o orçamento era limitado. A estimativa original dos custos para o filme era o dobro daquela que acabou por ser. A primeira coisa em que tive de cortar foi nos cenários de época. De qualquer foram, os cenários exageradamente recheados usados normalmente para ilustrar o passado nunca me interessaram realmente. Sempre me interessou mais filmar um rosto com a menor quantidade possível de maquilhagem do que cenários e guarda‐roupa. Assim, libertei‐me dos constrangimentos financeiros e de tempo habituais no cinema, tais como as horas gastas na maquilhagem, iluminação, etc. 

De qualquer forma, o meu interesse principal na vida de Saartjie Baartman excedeu sempre o aspecto histórico. Sempre me fascinaram as complexas lutas de poder que se estabelecem nas relações construídas sob dominação e os problemas com que se deparam as pessoas no mundo do espectáculo. E a posição que as pessoas ocupam. 

PARA AS MULHERES, TODOS OS HOMENS SÃO LOBOS 

Isso é um pouco duro para os pobres lobos… Os seres humanos são como são, capazes do melhor e do pior. É verdade que os homens oprimiram frequentemente as mulheres ao longo da história… 

Agora imaginem como seria para uma mulher negra com características físicas bem diferentes! Ela por si só é a incarnação de todos os motivos de opressão. 

Para ser sincero, tentei não colocar as culpas em cima dos homens… Estava mais interessado em filmar o que tinha sido noticiado, de forma a tentar perceber como esta opressão é concebível. Tentei ao máximo não fazer julgamentos sobre ninguém mas por 

vezes não foi fácil. Por exemplo, no caso dos cientistas eu apenas transpus para o filme aquilo que eles tinham escrito ou feito, e isso foi suficiente. 

Às vezes o que encontrei era tão violento que tive de diluir os factos. Quando descobri que o comité científico que estudou Saartjie – procedimento que à lupa dos comentários registados deve ter sido muito humilhante para ela – tiraram partido da sua morte para descobrir o que não tinham sido capazes de fazer em vida, fiquei horrorizado. Não se pode, em nome da ciência, ser tão desumano. 

Não consigo acreditar que cavalheiros tão inteligentes conseguiram esquartejar o cadáver de uma mulher em total impunidade e depois colocá‐lo em recipientes, passeando com eles, dando palestras, como se fosse um troféu… 

Sim, claro que podemos dizer que eles a consideravam um animal, mas isto não é totalmente verdadeiro. Eles estavam a tentar provar que ela estava mais próxima de um animal do que de um humano, mas tudo aquilo que se lê nos seus apontamentos nos levam a acreditar que tinham dúvidas… 

Para começar, um animal nunca se teria imposto e recusado um exame completo. Talvez seja isto que mais me enfurece sobre eles: a desonestidade intelectual. Eles não estavam cegos pelas suas ideias, estavam cegos pela ambição desmedida. A competição no mundo científico estava ao rubro, para concluir quem seria o primeiro a apresentar a prova que justificaria a exploração de África que sucedia naquele tempo. Eles tinham de extrair qualquer traço de humanidade dos africanos para lhes conferir o direito de os oprimir. 

 

A CULTURA AFRICANA E O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO SÃO OPOSTOS 

Este é o tipo de afirmação que ilustra a crueldade com que o movimento pseudo‐intelectual tenta menorizar o povo africano. Recuso‐me a entrar num debate desse tipo. Era o pensamente de Cuvier. Ele acreditava que, ainda que os Egípcios tivessem pele escura, pertenciam à raça branca. Deixo esse tema para os intelectuais africanos, que farão um melhor trabalho do que eu, defendendo o seu papel na história da Humanidade.  

É essencial para qualquer sociedade saber a sua história. Acho que é doentio ignorar o passado. Ao dar vida a Saartjie Baartman, espero ter iluminado à minha maneira uma zona sombria da história francesa, e contribuído para o debate entre as pessoas. 

SAARTJIE NÃO É O SÍMBOLO DA OPRESSÃO DOS NEGROS, COMO FOI CELEBRADA NA ÁFRICA DO SUL EM 2002 

Dependendo da forma como a história é contada, Saartjie tanto é retratada como uma escrava no sentido mais básico do termo, como uma mulher numa jaula, explorada e maltratada. Ou então como uma mulher que agiu completamente de acordo com a sua própria vontade. De qualquer das formas, ela foi maltratada. Acho que esse não é ponto determinante. 

O facto de ela talvez ter actuado de livre vontade não diminui o seu poder como símbolo da opressão sobre a população negra. Na verdade, até lhe acrescenta mais força. Porque a violência psicológica inflingida sobre Saartjie é, de longe, mais intolerável do que qualquer acto de violência física. Mas também porque ao detalharmos a natureza complexa da opressão de que foi vítima estamos a relacioná‐la com todas as formas de opressão que continuam a existir. Desta forma, caricaturas de minorias e comentários racistas e mesquinhos são outra forma de opressão que reforça a dominação de qualquer homem, mulher ou grupo por outro. E isto ainda acontece nos nossos dias. 

O PROCESSO DE REALIZAR UM FILME É UMA LUTA PERMANENTE, MESMO CONSIGO MESMO, PELA PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE ARTÍSTICA 

A integridade artística é um ideal. Lutamos para o alcançar. Primeiro lutamos conta os outros, porque cada um imagina o filme de certa forma. Conseguir que todos trabalhem de 

acordo com o mesmo conceito é muito difícil. São precisos nervos de aço para não abdicarmos da nossa visão e conseguirmos reflectir as escolhas que fizemos. E, claro, lutamos connosco próprios, porque somos facilmente influenciados pelos outros e porque conhecemos bem todas as convenções cinematográficas. Pormos tudo em causa não é algo fácil. As convenções existem para nos tranquilizarem. Enfrentá‐las põe em risco o nosso trabalho ao mesmo tempo que o expõe a interpretações erradas. 

Filmar VÉNUS NEGRA nem sempre foi fácil para todos, principalmente para a equipa técnica… Filmar o sofrimento de alguém, principalmente em cenas que tinham lugar em salões libertinos, ensaiando cada take de forma a fazer sobressair a verdade das personagens, não deixou ninguém indiferente. Entre escrever “ele bate‐lhe” ou “ela deita‐se no chão em frente ao seu público” e vê‐lo existe uma grande diferença que pode tornar as coisas muito desconfortáveis… Não é possível abordar um filme destes como quem trata um assunto terno e romântico. Quando se põe em causa a humanidade, isso tem um efeito inquestionável junto dos envolvidos no processo. 

A cena no salão libertino é o exemplo mais flagrante. No argumento, a cena era muito crua e bem mais explícita. Toda a gente olhava para mim para perceber como ia realizar a cena. Baseei‐me em testemunhos e interpretei‐os à minha maneira. Por exemplo, quando “salvei” os libertinos que terminam a actuação quando são confrontados com as lágrimas de Saartjie. Gostei da ideia de, após ter sido violentada pelos cientistas, Saartjie ser confrontada com um grupo de pessoas, libertinos, que a vêem como um objecto de beleza e desejo e que a acabam por respeitar. Quis também pôr em causa o poder do grupo, onde o indivíduo se sente menos exposto já que a sua responsabilidade é partilhada com os outros. 

Ainda que tenha filmado aquilo que é insuportável do ponto de vista humano, nunca perdi de vista as regras de respeito em relação à minha equipa. Deixei‐me guiar por toda a preparação que fiz bem como por aquilo que surgiu espontaneamente. É o actor (a sua emoção, a sua violência e o seu ritmo) que nos dá o sentido, enquanto realizador, de que devemos seguir este ou aquele caminho… Tal como nos meus filmes anteriores, quis que o set fosse um espaço de criação e não apenas de uma interpretação pré‐concebida. 

A OPINIÃO DO REALIZADOR DITA E INFLUENCIA A OPINIÃO DO ESPECTADOR 

Nunca me senti tão pressionado pela opinião como ao fazer este filme. Para criar a personagem de Saartjie o mais fiel possível, dei início a uma investigação para reunir os factos da sua vida. E foram esses detalhes que usei para construir a sua história. Como, por exemplo, o momento em que uma mulher, em Londres, espeta um guarda‐chuva no rabo de Saartjie. Foi desta forma que a história foi contada por uma testemunha da época. As pessoas foram realmente observar a Vénus Hotentote para lhe tocar no traseiro, mesmo que tivessem medo de serem mordidas. 

A violência do filme surge, em primeiro lugar, da forma como as pessoas vêem Saartjie. O filme faz‐nos pensar, enquanto espectadores, como vemos os outros. Faz‐nos pensar também no cinema em geral: o que espera o público? Como realizadores, o que lhe devemos dar? Como devemos entregá‐lo? A questão acerca daquilo que é responsabilidade do director parte daqui. A minha abordagem foi entrar no interior de cada uma destas personagens. Caezar poderá ter pensado em enriquecer, mais ainda assim tinha certas 

exigências artísticas. Réaux é um homem do espectáculo disposto a fazer qualquer coisa para satisfazer as expectativas do público. Até Cuvier, para além das suas ambições científicas, mostra sinais de uma consideração estética. Quis dar a cada uma destas personagens um conjunto de convicções.  

 

Qualquer pessoa confrontada com uma história destas tem de estar alerta. Antes de mais, eu mesmo, já que não tenho todos os dados necessários para explicar ou entender a personagem de Saartjie, apesar da empatia que sinto por ela. Nunca a vi como um símbolo ou como uma santa, mas sim como alguém que me pode ensinar a falar de algumas coisas. Reparem na aura que ela tem ainda hoje. Apesar de tudo aquilo que já lhe foi extraído, acredito que Saartjie ainda tem muito para dar, algo mais para nos dizer. Depois dos dez anos que passámos “juntos” talvez me tenha tornado o seu instrumento (risos). 

Entrevista por Philippe Paumier 

 

YAHIMA TORRÈS (SAARTJIE)  

ENTREVISTA 

 

QUANDO OUVIU FALAR, PELA PRIMEIRA VEZ, DA “VÉNUS HOTENTOTE”? 

Não conhecia muita coisa até o Abdellatif me ter falado dela pela primeira vez. Conhecemo‐nos por acaso em Belleville, em 2005, quando ele estava a preparar “O Segredo de um Cuscuz” e depois, três anos mais tarde, quando ele estava a escolher o elenco para VÉNUS NEGRA, fiquei muito emocionada e também honrada por ele me ter 

escolhido para o papel. 

Comecei a reunir toda a informação que consegui encontrar sobre ela na Internet. Ela sofreu imenso. Muitas vezes, sentia‐se extremamente vulnerável e sozinha mesmo quando era “protegida” por Caezar ou quando estava rodeado de outras “amigas” no bordel. 

Aquilo de que mais gostei no retrato de Saartjie por Abdellatif foi a multiplicidade de facetas da sua personalidade. Ela desejava profundamente ser uma artista numa época em que as pessoas eram incapazes de ver para além do aspecto físico. Saartjie era uma criatura exótica, alguém física e culturalmente diferente. Esta história precisava de ser contada, a bem da Humanidade.  

COMO CONSEGUIU IMERGIR POR COMPLETO NUMA PERSONAGEM SOBRE A QUAL AINDA SE SABE TÃO POUCO? 

A caracterização de Saartjie foi construída a pouco e pouco. O papel está repleto de emoções intensas e muita tristeza, mas existe também a sua mais pura determinação e a sua capacidade para lidar com as suas diferenças. Tive de aprender o básico de Afrikaans, a sua forma particular de dançar, e ainda de tocar um instrumento e de cantar. Tive de ser suficientemente boa nestas áreas para ser multi‐talentosa como ela era. 

Consigo perceber quão solitária ela se deve ter sentido ao deixar a terra natal. Antes de viver em França, eu vivi em Cuba – onde vivi uma estranha sensação de descoberta, aprendizagem e saudades do meu país ao mesmo tempo. Qualquer imigrante precisa de permanecer ligado às suas raízes seja conhecendo outras pessoas, ouvindo determinada música ou mantendo vivas as memórias. Tive sorte em ter tudo isso; Saartjie não teve nenhuma ligação com as suas raízes. 

 

PARA ALÉM DE SER A SUA ESTREIA NO CINEMA, ESTE É TAMBÉM UM DESAFIO MULTIFACETADO PARA UMA ACTRIZ… 

Sim, ela é uma personagem muito física. Como preparação para o papel tive aulas de canto e de danças africanas, apesar de ter tido um bom ponto de partida por ter vivido em Cuba! É um estilo de dança muito elementar, tribal, quase trance, como se a energia estivesse a sair da terra… Mesmo durante as filmagens continuei a treinar para conseguir manter a energia de Saartjie. Tive um treinador pessoal e fiz bastantes exercícios de respiração para dar vida a esta personagem. 

 

COMO MULHER, CONSEGUE ENTENDER A ESCOLHA DE OUTRA MULHER DE EXIBIR O SEU CORPO EM TROCA DE RECONHECIMENTO? 

O sonho de Saartjie era vir para a Europa para se tornar uma artista. Na África do Sul ela trabalhava para Caezar em troca de um salário mínimo: na teoria, a escravatura tinha sido abolida, mas a família de Saartjie tinha sempre trabalhado para colonialistas brancos. Para além disso ela era a companheira de Caezar, muito provavelmente porque ele lhe ofereceu protecção numa terra estranha. 

No que se refere ao seu corpo, hoje em dia ninguém imagina que uma mulher não possa ter o direito de dizer “não”. Quando Saartjie se exibe, não significa que está a autorizar a violação do seu corpo. Caso contrário é apenas abuso, uma forma de dominação sub‐humana. 

Na cena em que Saartjie está a desempenhar o papel de escrava sexual num salão parisiense, os libertinos estão excitados. Vêem‐na como um objecto de prazer mas a expressão facial de Saartjie mostra que ela sabe que é uma mulher, um ser humano, e ela olha‐os como se eles fossem animais. 

 

OLHA PARA SAARTJIE COMO UMA ARTISTA? 

Sim. Ela era capaz de fazer espectáculos lindos em palco e de passar as suas emoções para uma plateia. Mesmo que os espectáculos que ela tenha dado não tenham sido os originalmente prometidos por Caezar, ela manteve a sua integridade artística. Por exemplo, quando começou a cantar canções sobre a sua herança africana, com a sua voz magnífica, ninguém a ridicularizou. Pelo contrário, o público calou‐se enquanto ela os conquistava. 

Podia ter sido uma porta‐voz fantástica para a Cultura Africana caso as pessoas tivessem visto para além das diferenças físicas. Saartjie não falava muito mas ela observava e reflectia profundamente. 

O QUE SENTE EM RELAÇÃO AOS DOIS HOMENS, CAEZAR E DEPOIS RÉAUX, QUE DOMINARAM SAARTJIE? 

Caezar foi o responsável pelos espectáculos em Londres: ele entendeu que ao colocá‐la a desempenhar o papel de “Vénus Hotentote” ele faria mais dinheiro do que simplesmente 

exibindo os invulgares atributos físicos de Saartjie. Ele manipulou‐a para os seus próprios fins e ultrapassou os limites que provam como ele não podia ter muito respeito por ela. 

Por outro lado, ele tomou conta dela à sua maneira. Eles tinham um relacionamento. Ela bebeu durante alguns anos mas quando ele a deixou o álcool tornou‐se a sua única companhia. Não estou a dizer que Saartjie queria morrer, mas a verdade é que ela não tinha vontade de viver.  

Réaux era completamente diferente de Caezar; a única coisa que ambos tinham em comum era o facto de lhe terem prometido a lua. Do meu ponto de vista ele era bem pior e não tinha qualquer compaixão por Saartjie – ele era um homem do circo cujo único interesse era ganhar dinheiro. Ele chegou a prostitui‐la e inclusivamente a sua própria namorada Jeanne. 

Georges Cuvier, em nome da ciência, foi aquele que mais violentamente debilitou a dignidade de Saartjie… Ele e o seu painel cientifico decidiram ignorar que ela era um ser humano e preferiram observá‐la como um animal, um objecto de curiosidade. Cuvier catalogou o físico invulgar de Saartjie, ao serviço da sua própria ambição. Ela entendeu isto perfeitamente e diferenciou os seus espectáculos de palco onde mostrou as suas partes íntimas dos dias que passou junto do grupo de cientistas. Ela recusou que os seus órgãos genitais fossem examinados porque sabia que eles se encontravam a violar o seu corpo e a sua integridade. 

 

A única pessoa que teve um olhar honesto sobre a sua dignidade e a respeitou foi o artista Jean‐Baptista Berré. Ele criou esboços simpáticos de Saartjie, devolvendo‐lhe a sua humanidade como se lhe agradecesse por ela ser quem era. Essa é uma cena muito 

comovente no filme; um momento no qual o filme respira e os espectadores podem fazer um balanço. 

ABDELLATIF KECHICHE TRATA SAARTJIE COM HONESTIDAE E RESPEITO, O MESMO ACONTECE CONSIGO ENQUANTO MULHER E ACTRIZ… 

Sim, e a opinião dele é tanto a de um artista como a de qualquer outro ser humano. Nunca se permitiu julgar Saartjie ou qualquer outra das personagens. O que se traduz, nas filmagens, num respeito total pelos actores. E foi por isso que nunca me senti desconfortável ao filmar as cenas de nudez ou as cenas de subjugação sexual nos salões libertinos. Para além dos ensaios e da minha interpretação, o Abdellatif foi muito cuidadoso para garantir que eu não ficava nem ferida nem traumatizada ao interpretar cenas tão violentas. Também os outros actores deram‐me sempre todo o apoio. Senti‐me completamente segura.   

QUAIS SÃO OS ECOS, NOS NOSSOS DIAS, DE UMA VIDA COMO A DE SAARTJIE?  

Foi extremamente importante que os restos mortais de Saartjie tenham regressado à África do Sul porque todos têm direito a um funeral. Na África do Sul existe agora uma organização chamada Saartjie, que ajuda mulheres vítimas de abusos. Por motivos óbvios ela tornou‐se um símbolo. 

Ela é finalmente considerada uma pessoa por direito próprio. O filme transporta uma mensagem simples mas universal que todos temos de aprender com os outros. E, para conseguirmos isto, temos de aprender a respeitar aquilo que é diferente, quer sejam diferenças físicas, culturais ou linguísticas. Ser humano tem tudo a ver com isso. 

 

CRONOLOGIA 

1770 (data provável) 

Nascimento de Saartjie Baartman no seio de uma família Khoisan (no território da actual África do Sul e que, na época, se encontrava sob domínio Boer).     

 

1770–1795 

Através da sua família, trabalha (como escrava) para colonialistas brancos na quinta de Hillegert Muller. É vendida posteriormente a Pieter Caezar, um mercador da Cidade do Cabo. Ao longo dos anos refugia‐se no álcool. Na adolescência sofre de Esteatopigia (crescimento das nádegas) e de Macronymphia (lábios genital invulgarmente grandes). Estas doenças estimulam a curiosidade e as fantasias sexuais da sociedade ocidental. 

 

1803 

Saartjie torna‐se escrava do irmão de Pieter, Hendrick Caezar, e através dele conhece um europeu pobre, Hendrick Van Jong, que se torna seu amante. Têm um filho juntos que morre, assim como os dois filhos que Saartjie tem com outros dois que permanecem anónimos. Hendrick Van Jong deixa‐a em 1906 e regressa à Holanda. 

 

1808 

Hendrick Caezar, ciente do potencial exótico de Saartjie, convence‐a de que ela poderá reunir uma grande fortuna devido aos seus atributos físicos. Caezar cria uma associação com Alexander Dunlop, um cirurgião escocês, que organiza os documentos que os permitem sair da África do Sul. 

1810 

Saartjie chega a Inglaterra, como escrava de Dunlop e Caezar. Conquista o público londrino num espectáculo de aberrações, desempenhando o papel de “Vénus Hotentote”. 

 

28 de Novembro de 1810 

Após uma queixa feita pela Associação Africana, acusando Caezar de escravatura, o caso chega ao Alto Tribunal de Justiça. Ao ser interrogada, Saartjie declara: “Não tenho qualquer queixa a fazer sobre o meu mestre ou aqueles que me exibem. Sou perfeitamente feliz na minha situação actual e não tenho nenhum desejo de regressar ao meu país natal”. 

1811 

Por insistência de Dunlop, Saartjie é baptizada na Catedral de Manchester. 

1814 

Saartjie deixa Londres em direcção a Paris, acompanhada por um homem, provavelmente Caezar, que nessa altura tinha mudado de identidade. Fica alojada perto do Palais Royal, um local famoso pela depravação moral. A “Vénus Hotentote” conquista novos públicos e até inspira a criação de uma Opereta com o seu nome. 

1815 

Saartjie é tomada por Réaux, um enigmático comerciante e director de um circo de animais selvagens. Rapidamente ela torna‐se a “estrela” da alta sociedade parisiense. 

Março de 1815 

A “Vénus Hotentote” atrai a atenção da comunidade científica e, em particular, a de um bem conhecido anatomista do século XIX, Georges Cuvier. Réaux autoriza o médico a examinar Saartjie durante três dias no Departamento de Anatomia. Saartjie recusa‐se a mostrar os genitais apesar da insistência dos cientistas. 

29 de Dezembro de 1815 

Saartjie começa a perder popularidade. Ao mesmo tempo que começa a estar cada vez menos presente nos music halls, Saartjie passa a prostituir‐se cada vez mais frequentemente. Após um Inverno parisiense particularmente duro, ela adoece e morre. A sua morte deve‐se provavelmente a uma combinação de pneumonia e doenças venéreas. 

1817 

Dois anos depois, o anatomista Georges Cuvier apresenta à Academia de Medicina um relatório detalhado com o resultado da sua análise do cádaver de Saartjie. Depois da sua morte, Cuvier dissecou o corpo e fez moldes de plástico. Concluiu: “As raças cujos crânios se apresentam comprimidos e com reentrâncias estão condenadas a uma existência perpetuamente inferior. 

1817 – 1994 

Moldes de plástico, o seu esqueleto e recipientes contendo o cérebro de Saartjie e ainda os seus orgãos genitais são exibidos no Museu do Homem, em Paris, até 1976, quanto são retirados da exposição e consignados ao depósito.  

1994 

Após o fim do Apartheid, na África do Sul, os líderes da etnia Khoisan fazem uma petição a Nelson Mandela para pedir a François Mitterand o regresso dos restos mortais de Saartjie ao seu país de nascimento. O pedido é recusado quer pelas autoridades francesas quer pelos cientistas. A razão invocada prendia‐se com o desejo de manter a colecção do Museu do Homem intacta, em nome da ciência. 

29 de Janeiro de 2002 

O Primeiro Ministro francês Nicolas About propõe um projecto de lei para assegurar o regresso dos restos mortais da Vénus Hotentote ao seu país. A proposta é votada por 

unanimidade no Parlamento. O relatório publicado a 30 de Janeiro menciona especificamente: “O nosso país deve cumprir o seu dever de lembrar o passado e em particular a colonização. Ainda que seja difícil, devemos reconhecer os erros que foram feitos e que mancharam este período e, em particular, a escravatura que foi um crime contra a Humanidade. 

9 de Agosto de 2002 

Integrando as celebrações do Dia da Mulher na África do Sul, os restos mortais de Saartjie Baartman são enterrados na Província do Cabo, onde nasceu. O Presidente sul‐africano, Thabo Mbeki, marca presença, bem como um grupo de Líderes estrangeiros, padres e poetas. 

 

  

ABDELLATIF KECHICHE 

 

Abdellatif Kechiche nasceu em 1960. Começou como actor no Teatro e no Cinema antes de se iniciar na realização. Em 1984, protagonizou a primeira longa‐metragem de Abdelkrim Bahloul, “Le thé à la menthe”, tendo também integrado o elenco de “A Culpa dos Inocentes”, de André Téchiné. 

Em 2000, Kechiche passou para trás da câmara pela primeira vez para dirigir e escrever “La Faute à Voltaire”. O filme conta a história de um imigrante idealista a tentar fazer pela sua vida nas ruas de Paris. 

Três anos mais tarde, Kechiche reuniu a linguagem de Marivaux com os desgostos de amor adolescente em “A Esquiva”. 

Escreveu e realizou então “O Segredo de um Cuscuz”, a história de um pai exausto e da sua família, sob a bela luz do porto de Sète como cenário para o drama. Coroado com o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, o filme de Kechiche conquistou ainda os principais Prémios César desse ano, entre eles Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento, e ainda o prestigiado Prémio Louis Delluc. 

Para VÉNUS NEGRA, Kechiche inspirou‐se na extraordinária mas verídica história de Saartjie Baartman, conhecida no início do século XIX como “Vénus Hotentote”. 

Através desta obra singular, Kechiche continua a interrogar o espectador e a explorar a nossa relação com a diferença e a humanidade. 

 

FILMOGRAFIA 

VÉNUS NEGRA (2010) 

‐ Festival de Cinema de Veneza – Selecção Oficial – Competição 

‐ New York Film Festival – Selecção Oficial 

O SEGREDO DE UM CUSCUZ (2007) 

‐ Prémios César – Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Actriz Revelação 

‐ Festival de Cinema de Veneza – Prémio Especial do Júri e Prémio Actriz Revelação, Prémio da Crítica Internacional 

‐ Prémio Louis Delluc 2007 

‐ Prémios Lumiere – Melhor Realizador, Melhor Actriz Revelação 

A ESQUIVA (2003) 

‐ Prémios César – Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Actriz Revelação 

‐ Prémios Lumiere – Melhor Argumento 

‐ Festival de Cinema de Turim – Melhor Realizador, Melhor Argumento, Prémio ‘CinemAvvenire’ 

LA FAUTE À VOLTAIRE (2001) 

‐ Festival de Cinema de Veneza – Leão de Ouro para Melhor Primeiro Filme 

‐ Festival Internacional de Namur – Prémio Especial do Júri 

‐ Festival de Cinema de Estugarda – Prémio do Júri, Melhor Actor 

 

 

 

VÉNUS NEGRA, UM FILME ESCURO E INCANDESCENTE ­ J.B. Morain 

O terrível destino de uma jovem sul­africana exposta como um animal de feira. Kechiche assina um filme escuro e violento. 

 

VÉNUS NEGRA é o filme mais impressionante e mais ambicioso já realizado por Abdellatif Kechiche (“La Faute à Voltaire”, “A Esquiva” e “O Segredo de um Cuscuz”). 

Porquê? Porque o cineasta francês arrisca de forma inédita no cinema contemporâneo ao escolher consagrar mais de duas horas e meia a um tema e a uma personagem ingrata para o nosso cinema: uma jovem negra com um destino terrível. 

Saartjie Baartman, sul‐africana, foi trazida para a Europa no início do século XIX para ser exibida em feiras como uma selvagem e se tornou celebra sob o nome de Vénus Hotentote. 

A ciência debruçou‐se sobre o seu caso, concluindo por algumas das suas hipertrofias que ela pertencia a uma raça inferior (justificando a escravatura). Ela morreu de alcoolismo aos 26 anos, após se ter iniciado na prostituição. De seguida, foram‐lhe retirados os seus órgãos genitais, e colocados em frascos. Fizeram‐se moldes da totalidade do seu corpo e os 

resultados estiveram em exposição no Museu do Homem até 1980. Nada de muito agradável. 

Kechiche evita todos os facilitismos: longe de se prender a uma hagiografia desta jovem negra explorada, não procurando provocar lágrimas, ele coloca o seu filme num ângulo singular, o desespero, e não se desvia. 

Pior, ele mantém a sua protagonista à distância, recusa penetrar na sua psique e mantém‐na na opacidade. Que pensa Saartjie? Que sente? Não o saberemos – mas que sabemos nós de Lola Montès no final do filme de Ophüls?  

VÉNUS NEGRA é um filme de uma escuridão total mas incandescente, radical no seio de um género mainstream (o filme biográfico puramente narrativo) que não tinha resultados tão bons desde “Van Gogh” de [Maurice] Pialat. Era necessária esta inconsciência e esta fé na sua arte por parte de um cineasta francês para ousar realizar um filme como este na paisagem cinematográfica industrial do presente. 

Alguns dirão que o filme é repetitivo. Sim, Kechiche filma demoradamente, até ao limite da exaustão do espectador, as cenas horríveis de espectáculo de feira, mundanos ou científicos onde Saartjie, que queria ser dançarina, tem de simular o que não é: uma selvagem, um monstro. 

Mas o desespero está lá, na repetição, nas reformulações, na impossibilidade de escapar ao seu destino. Os humanistas ingleses procuram libertá‐la através da lei? São derrotados, quer pela justiça quer pela mise en scène: Saartjie é prisioneira da sua imagem e da sua monstruosidade – como era o “O Homem que Ri”, romance sublime de Victor Hugo do qual nos lembramos frequentemente. 

Como pode ela escapar ao seu destino? Deseja‐o verdadeiramente? Que se pode fazer contra uma sociedade inteira quando se está sozinho? 

São os outros, as maiorias, que decidem por ela, esse objecto de desejo, de espectáculo, renegada sem cessar para o seu estatuto de escrava sem civilização. Um cliché. Que tarefa mais nobre pode um cineasta ter do que lutar contra os clichés? 

Podemos julgar que Kechiche utiliza ferramentas desproporcionais, desafiantes para um espectador já rendido à sua causa. Mas elas não fazem mais do que reflectir a vontade de convencer e a cólera que o habitam. E o espectador advertido não pode senão deixar‐se levar, desde os primeiros segundos, pelo poder e precisão desta mise en scène, mas também pela sua instabilidade. 

O mundo que nos mostra este artista, com um olhar aterrorizado e aterrador, sem dúvida paranóico (e com razões para o ser), onde apenas um pintor sabe ver Saartjie como ela é, uma mulher tímida, não pode deleitar‐se com a rigidez, linhas de força, ou perspectiva. 

O nosso mundo é móvel, instável, angustiante, repleto de mentiras, de tramas falsas e verdadeiras, de pseudo‐ciências que nos tendem a ditar. Mostrar outro seria mentir. 

 

 

 

 

ABDELLATIF KECHICHE FILMA UM DESTINO DE MULHER – Jorge Mourinha (em Veneza) 

O cineasta do "Cuscus" assina uma obra notável sobre a sociedade do espectáculo e a dignidade humana ­ mas Veneza não gostou. 

 

 Há um momento em “Vénus Noire” (competição) que nos remete directamente para o anterior filme de Abdellatif Kechiche: o paroxismo de angústia e catarse que era a dança do ventre de Hafsia Herzi em “O Segredo de um Cuscus” (Prémio Especial do Júri em Veneza 2007). 

Só que, aqui, esse momento surge a meio do filme, quando Saartjie Baartman se deixa levar pela sensualidade do ritmo e da dança e abre a porta à tragédia que se seguirá. Como quem diz que a tensão ainda só começou a subir. 

E se a angústia que sentíamos por saber se o restaurante do sr. Slimane ia ou não ser um sucesso já era insustentável, a espiral de vertigem para que o sr. Kechiche nos arrasta em “Vénus Noire” é ainda menos recomendada a cardíacos e almas sensíveis. Porque Saartjie Baartman, a “Vénus hotentote” que foi atracção de feira na Europa do século XIX, ao contrário do sr. Slimane, não tem família a que se agarrar. Está sozinha e sozinha morrerá. 

E não estamos a revelar nenhum segredo porque “Vénus Noire” baseia‐se numa história verdadeira de uma doméstica sul‐africana que veio para a Europa fazer fortuna (e encontrou o infortúnio).  

Não é, escusado será dizer, outro “Segredo de um Cuscus”. Sente‐se, até, que Abdellatif Kechiche terá procurado um projecto deliberadamente nos antípodas, muito embora reconheçamos nele o seu tema‐fétiche da dignidade humana confrontada com a violência psicológica, com o olhar dos outros. Mas quem viesse à espera de outro “Cuscus” terá saído, num primeiro embate, abananado – explicando a reacção fria na primeira projecção de imprensa, com direito até a algumas vaias. 

Não é por acaso: “Vénus Noire” é uma extraordinária meditação sobre a sociedade do espectáculo, o modo como ela se alimenta da novidade, do escândalo, o modo como o olhar que se lança sobre alguém define a percepção de quem vê e de quem é visto.  

Saartjie, interpretada com uma dignidade incontestável por Yahima Torrès (uma vizinha de Kechiche sem experiência profissional de actriz), era uma mulher livre para os padrões da sua época – só que ninguém acreditava nisso. Nem as actrizes que achavam que o seu espectáculo de selvagem domesticada era indigno de ser considerado representação, nem os moralistas que a queriam salvar da “escravatura” em nome da moral e dos bons costumes vigentes, nem sequer os naturalistas que queriam estudar a anatomia peculiar de Saartjie e não a consideravam capaz de vontade própria.  

Ninguém é inocente nesta triste história verdadeira – nem sequer a própria Saartjie, cúmplice do seu próprio destino trágico: por trás das boas intenções ou das indignações, escondem‐se preconceitos aos quais ninguém escapa. O liberalismo e o fundamentalismo têm mais em comum do que parece, afinal. 

O estilo naturalista de Kechiche, que estrutura o filme de novo por quadros longos em tempo real (outros tantos actos na tragédia da Vénus negra), é perfeito para contar esta história. É graças a ele, e à entrega espantosa dos seus actores (Andre Jacobs, Olivier Gourmet, Elina Löwensohn), que somos arrastados nesta descida aos infernos, dos teatros rascas de Londres aos salões elegantes de Paris, revelando como não há assim tanta diferença entre a “plebe” e a “nobreza” quando é a natureza humana que está em jogo.  

A odisseia de Saartjie raia a espaços o desconfortável, o chocante, o humilhante. Ocasionalmente Kechiche carrega em demasia no traço grosso – mas tire‐se‐lhe o chapéu por não ter feito de “Vénus Noire” nem o dramalhão de faca e alguidar que espreitava a cada canto, nem o panfleto de denúncia contra a exploração do homem pelo homem. Kechiche não julga, mostra. E conta‐nos uma história exemplar de uma mulher a quem nunca ninguém deu o devido valor. Talvez seja precisamente por isso que Veneza reagiu tão friamente: porque nos força a confrontar‐nos com o nosso próprio olhar. 

Algo nos diz que “Vénus Noire” se vai tornar num grande filme maldito.   

 

 FICHA ARTÍSTICA  Saartjie – Yahima Torres Hendrick Caezar – Andre Jacobs Réaux  ‐ Olivier Gourmet Jeanne – Elina Löwensohn Georges Cuvier – François Marthouret Jean‐Baptiste Berré – Michel Gionti Charles Mercailler – Jean‐Christophe Bouvet  

 FICHA TÉCNICA  Argumento original – Abdellatif Kechiche Adaptação e diálogos – Abdellatif Kechiche e Ghalya Lacroix Direcção de Fotografia – Lubomir Bakchev e Sofia El Fani Montagem – Camille Toubkis, Ghalya Lacroix, Laurent Rouan e Albertine Lastera Som – Nicolas Waschkowski e Jean‐Paul Hurier Décors – Florian Sanson e Mathieu Menut Guarda‐Roupa – Fabio Perrone Música Original – Slaheddine Kechiche Realização – Abdellatif Kechiche  Uma produção MK2 Em colaboração com France 2 Cinéma Com a participação de Canal+, France Télévisions, Centre National de la Cinématographie et de l’image animée, Cinécinéma Em associação com So!cinéma 5, Artémis Productions/Patrick Quinet   França – 2010 ‐ Cor ‐ 1.85 ‐ Dolby SRD – Inglês, Francês, Afrikaans e Neerlandês ‐ 2h39