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VENI • VIDI • VICI Tudo o Que Sempre Quis Saber Sobre os Romanos mas Teve Medo de Perguntar Tradução de Manuel Santos Marques

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VENI • VIDI • VICI

Tudo o Que Sempre Quis Saber

Sobre os Romanos

mas Teve Medo de Perguntar

Tradução de Manuel Santos Marques

Índice

Mapas ix – xiii

Introdução 1

I

Perdido nos mitos do tempoDe Eneias a Rómulo, Remo e Roma 7

II 753-509 a. C.

Nem um romano à vista, mas com Roma na miraOs primeiros reis 23

III 509-264 a. C.

O que significava ser romano (I)Do rapto à conquista 45

IV 509-287 a. C.

O que significava ser romano (II)A ascensão da República 69

V 810-146 a. C.

O momento mais fulguranteCartagineses, Aníbal e Império 91

VI 146-78 a. C.

O problema sem soluçãoDos Gracos a Sula 121

VII 81-44 a. C.

O fim de um mundoPompeu e César 145

VIII 44 a. C.-14 d. C.

Renascer das cinzasO primeiro imperador: Augusto 191

IX 14-96

Juntos na camaO imperador e o povo 227

X 96-192

Pão e circoImpério sem fim? 287

XI 193-476Germanos, Hunos e a queda do Império Romano do Ocidente 327

XII 1-430

A revolução crescenteA Igreja e o Estado 359

Bibliografia 383

Índice remissivo 386

Mapas

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INTRODUÇÃO

Este livro corresponde aos 1200 anos de história de Roma, desde a fundação em 753 a. C. até ao fim do seu império no Oci-dente, no ano 476. É uma história que todos deviam conhecer porque, tal como a da Grécia Antiga, determinou o nosso mundo e entranhou-se na nossa imaginação: da língua, literatura, polí-tica, arquitetura, filosofia, império e sistema jurídico aos indiví-duos que fizeram a sua história; de Rómulo e Remo a Cipião e Aníbal; de Lucrécia e Lésbia a Boudica; de Pompeu e Júlio César a Cícero e Augusto; de Pôncio Pilatos a Constantino; de Nero e Adriano a Marco Aurélio e Santo Agostinho; de Catulo a Virgílio e de Tácito a São Jerónimo; do habitante desconhecido de Pom-peia que garatujou na parede: «Vim aqui, dei uma queca e voltei para casa» – o último dos grandes românticos – à pessoa igual-mente desconhecida que inventou o livro ou produziu cimento que se consolidava debaixo de água.

Cada capítulo principia por uma síntese ampla do período que cobre. O resto do capítulo é ocupado por uma sequência de verbetes de cem a quinhentas palavras. Reflete-se nestes a mesma sequência cronológica da síntese e visam aprofundar tópicos apontados nesse texto introdutório (o que ocasiona pequenas repetições) ou exploram outros que estão relacionados. Os ver-betes pretendem ser tão autónomos quanto possível; por vezes, porém, surgirá uma sequência de verbetes sobre um mesmo tópico (por exemplo, gladiadores), nos quais se verificará um certo grau de continuidade. O propósito geral é o de veicular informação exata, concisa e estimulante no âmbito do desenrolar do relato de um período crucial da história europeia.

Este é, sem qualquer vergonha, um livro para o público em geral. Foi concebido para quem deseja ter um panorama geral do tema, mas queira também ser alertado para alguns dos por-menores que lhe subjazem. Há discussões intensas nos bastidores

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de muitas das afirmações aqui feitas. Aqueles que desejam saber mais acerca delas podem consultar a bibliografia proposta no final do livro. Algumas passagens foram adaptadas das minhas obras Vote for Caesar (Orion, 2008) e Classics in Translation (Bloomsbury, 1998).

As fontes que citei são adaptadas de traduções em domínio público, muitas delas das primeiras edições da Loeb Classical Library. Os poemas foram adaptados quando necessário. Estou extremamente grato a Colin Kolbert pela autorização para citar a sua magnífica obra Justinian: The Digest of Roman Law (Allen Lane, 1979). A minha gratidão também para com o Dr. Fede-rico Santangelo, da Universidade de Newcastle, pela ajuda em algumas das questões mais intrincadas da cronologia. E, como sempre, para com Andrew Morley pelos mapas.

Peter JonesNewcastle upon Tyne, novembro de 2012

www.friends-classics.demon.co.uk

Nota sobre

valores financeiros

É impossível determinar o valor relativo da moeda romana face aos preços de hoje. Seguem-se alguns preços em sestércios (ss) no ano 1: um pão com 450g de peso, um prato, uma candeia e uma medida de vinho custavam menos de 0,25 ss; um trabalhador indiferenciado podia ganhar 3 ss por dia; custava 500 ss por ano alimentar uma família camponesa; o salário de um soldado era de 900 ss por ano; um escravo sem habilitações especiais cus-tava 2000 ss; era necessário possuir património no valor de 400 mil ss para se qualificar como um dos homens abastados de Roma, e 1 milhão ss para se ser senador; Plínio, o Moço, doou ao longo da vida 5 milhões ss para obras de beneficência.

Paganismo

Quando falo de «pagãos», não me refiro a homens perversos ou algo do género. Refiro-me àqueles que se dedicam a cultos e rituais civis do mundo romano pré-cristão (ver p. 360). O paga-nismo, neste sentido, organizado por colégios de sacerdotes sancionados pelo estado, extinguiu-se no século v. Dito isto, a cultura literária e a polí-tica romana no seu sentido mais vasto – aquele que remete para a tradição por trás do «esplendor de Roma» – continuou a enformar o pensamento cris-tão durante muitos séculos.

I

Cronologia

1150 a. C. Guerra mítica de Troia entre Gregos e Troianos

1000 a. C. Roma é um pequeno conjunto de cabanas nos cumes

das colinas do Lácio

753 a. C. Data tradicionalmente considerada pelos Romanos

como da fundação de Roma pelo rei Rómulo

Primeiro registo de forma primitiva de latim

700 a. C. Relato por Homero da Guerra de Troia (Ilíada e Odisseia)

400 a. C. Os Gregos consideram que o troiano Eneias fundou

Roma depois da Guerra de Troia

Perdido nos Mitos do Tempo

De Eneias a Rómulo, Remo e Roma

Os Romanos tinham duas histórias a relatar a sua fun-dação. Uma (que nos pode parecer desconcertante) era

puramente grega. Foi extraída do que é talvez o mais famoso epi-sódio do que os Gregos julgavam ser a sua história muito remota e heroica: a Guerra de Troia, a história do cerco grego a Troia (na costa ocidental da Turquia) para resgatar Helena. Os antigos pensavam que teria ocorrido por volta de 1200 a. C.

Foi esse o tema da primeira obra literária ocidental: o épico Ilíada, composto pelo poeta grego Homero, c. 700 a. C., numa altura em que muitos gregos estavam a imigrar para a Sicília e para o sul da Itália. Na história de Homero, um herói troiano secundário, Eneias, estava destinado a sobreviver à guerra e estabelecer posteriormente uma dinas-tia que governaria uma Troia ressuscitada. Porém, prosseguia Homero, Troia foi completamente incinerada pelos gregos e abandonada, e os troianos sobreviventes fugiram do ter-ritório. Para onde foram então eles e Eneias? Como podia Eneias «ressuscitar» Troia? Os Gregos começaram também a interrogar-se acerca disto logo a partir do século vi a. C. Alguns afirmaram que Eneias atravessou para a Itália com outros heróis gregos e troianos dessa guerra. Nos finais do

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século v a. C., o historiador grego Helânico apontou Eneias como fundador de Roma – não sabemos se levado a isso por romanos.

Os Romanos queriam certamente apropriar-se da história de Eneias. E porquê? Porque para os Romanos os Gregos eram uma «lenda viva» e queriam estar ligados a eles. Os Romanos contaram como, após a queda de Troia e muitas aventuras pelo Mediterrâneo, Eneias e os seus seguidores alcançaram as praias italianas e, com a bênção de Júpiter (rei dos deuses), fundaram o povo romano (753 a. C.). Podiam agora gabar-se de que o seu lugar na história estava em pé de igualdade com o dos famosos Gregos. A história da Grã-Bretanha foi reconstruída da mesma maneira pelo historiador do século xii, Godofredo de Mon-mouth. Pretendia ele que o seu primeiro rei era descendente de Eneias: Brutus – Bretanha – Brutain! Portanto, toda a gente que-ria estar ligada aos Gregos e aos Romanos.

Eneias foi, portanto, uma das lendas narradas por romanos quanto à sua fundação. A outra história é muito diferente. Numi-tório, rei da cidade italiana e muito antiga de Alba, foi deposto pelo irmão Amúlio. Contudo, Numitório tinha uma filha, Reia Sílvia, e Amúlio não queria que ela gerasse sucessores vingativos. Por isso fez dela virgem vestal (p. 26). No entanto, Marte, deus da guerra, encontrou-a um dia sozinha e fez o que os deuses antigos habitualmente faziam: violou-a e Reia deu à luz gémeos. Amú-lio mandou de imediato que os gémeos fossem atirados para o rio Tibre, mas o cesto em que os meteram foi arrastado para a margem (o que nos faz recordar a história posterior de Moisés). Foram então amamentados por uma loba até serem encontra-dos por um pastor. Este levou-os para casa, em Alba, onde ele e a mulher os criaram. Quando os gémeos, chamados Rómulo e Remo, cresceram, descobriram a verdade sobre a sua origem. Reuniram então um exército, derrubaram Amúlio e restabelece-ram o reinado de Numitório em Alba.

Fundaram depois uma nova cidade perto de Alba e começa-ram a erguer muralhas em volta dela. Remo, tendo troçado da

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dimensão das muralhas de Rómulo, foi assassinado pelo irmão furioso. A nova cidade recebeu assim o nome de Roma. A data tradicionalmente convencionada de fundação foi 753 a. C., e Rómulo tornou-se o primeiro dos sete reis de Roma.

Este Rómulo lendário tinha um carácter bastante grosseiro: pouco nobre, corajoso ou leal. Contudo, os Romanos adoravam--no – eram filhos de Marte! Tinham a guerra no sangue. Entre-tanto, a vantagem da lenda de Eneias consistia em enfatizar outro aspeto de ser romano: é que Eneias veio a ser retratado como um homem de pietas, não propriamente «compaixão», mas antes «respeito e empenho para com a família, a cidade e os deuses». Assim está melhor! Como poderia o mundo não beneficiar de ser dominado (como viria a ser) por um povo cujo outro fun-dador era um homem civilizado? Havia, contudo, um problema. De que modo se poderia articular a história de Eneias com a de Rómulo? Os Romanos conseguiram-no fazendo de Eneias o fundador do povo romano e, trezentos anos mais tarde, do seu descendente Rómulo, fundador da cidade.

A nossa principal fonte literária para este período inicial é o historiador romano Lívio (59 a. C.-17 d. C.), que se ocupou da redação desta história cerca de mil anos após o início dos eventos que pretendia relatar. Onde foi então que angariou essa informação? E a que ponto era fiável? Não havia roma-nos a escrever história no tempo de Rómulo, muito menos de Eneias.

Até mesmo o intensamente patriótico Lívio duvida da exa-tidão da sua exposição deste período inicial. O que ele afirma, porém, é que, no caso de Roma, tem de ser simplesmente aceite: «É lenda poética e não evidência histórica sólida […], no entanto, se há alguma cidade que deve ser autorizada a rela-cionar as suas origens com os deuses, é certamente Roma. Pois tal é a sua glória militar que, quando afirmam que o próprio Marte foi seu pai, e o pai do seu fundador, as tribos deste mundo podem aceitá-lo com a mesma resignação com que aceitam a sujeição a Roma.»

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Isto é que é falar rijo. Não podia haver cedências na convicção inabalável dos Romanos de que o seu domínio sobre o mundo se justificava por haver sido decretado pelos deuses.

Lívio apoiava-se quase exclusivamente em historiadores gre-gos e romanos mais antigos. Timeu, historiador grego do século iii a. C., escreveu extensivamente acerca dos Romanos. O pri-meiro historiador romano de Roma foi Fábio Pictor (c. 200 a. C.). O romano Varrão (116-27 a. C.) escreveu vastas enciclopédias repletas de informação recolhida em toda a parte. Também não temos uma ideia muito desenvolvida de onde eles obtiveram a sua informação. A tradição oral deve ter desempenhado um papel importante. Contudo, os Romanos conservavam também registos documentais, remontando alguns a tempos bem antigos – listas de cônsules, tratados, concessões de cidadania, legisla-ção, etc.; registos anuais de acontecimentos como vagas de fome, guerras, triunfos, etc.; e listas de detentores de cargos oficiais.

Lívio selecionou então o que desejava desses historiadores e depois «afeiçoou» as histórias deles de modo a enquadrarem-se na sua visão da história de Roma. Como ele é um dos maiores narradores históricos de sempre, o resultado é sensacional. Não há dúvida de que constitui uma leitura extraordinária. Porém, no que toca a rigor, a questão já é outra.

Poderemos verificar algum do material de Lívio? O enci-clopedista Plínio, o Velho (morreu durante a erupção do Vesúvio no ano 79 d. C., p. 273), o ensaísta histórico Plutarco (46-120) e historiadores de Roma, como Dionísio de Hali-carnasso (que escreveu por volta de 10 a. C.) e Cássio Dio (c. 165-230), propõem todos as suas próprias versões destas histórias. O que nos levaria, contudo, a confiar mais neles do que em Lívio? É verdade que também temos a arqueologia, com escavações que nos permitem remontar a 1000 a. C. e antes disso. É concebível que, num mundo perfeito, tais esca-vações pudessem fazer-nos saber se os relatos dos historiadores eram rigorosos. Todavia, a única coisa que a arqueologia con-segue desenterrar são os restos materiais. Não nos fornece as

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histórias (a menos que encontremos os textos). O melhor que consegue é oferecer-nos uma sucessão de instantâneos de ten-dências materiais e estádios de desenvolvimento. Estes podem, por exemplo, informar-nos se as pessoas estavam a ficar mais ricas ou pobres, ou urbanizadas, ou se tinham contacto com outras culturas. Os Romanos nada sabiam desta disciplina.

Fica, portanto, a advertência: qualquer relato relativo a Roma até c. 300 a. C. deve ser recebido cum grano salis (com um grão de sal, com reserva).

Quando Roma Era só Mais Uma Cidade

Estamos habituados a associar Roma à dominação do mundo: o Império Romano, a Igreja Católica Romana, e por aí em diante. É portanto fácil esquecer que, por volta de 1000 a. C., Roma era apenas uma povoação esparsa, constituída por umas poucas cabanas cobertas de colmo e dispersas pelas colinas, incluindo o Palatino. Com o tempo, essas viriam a ser as famosas Sete Colinas de Roma. A capacidade defensiva das colinas de Roma constituía a sua força, além da sua posição no meio de uma planície muito fértil de solo vulcânico e a sua localização relativamente ao Tibre. Este rio proporcionava-lhe o acesso fácil não só ao mar mas tam-bém ao território interior do vale do Tibre e, para lá do rio, ao norte, porque naquele ponto as águas podiam ser passadas a vau.

Por outras palavras, Roma era uma cidade de fronteira. Nin-guém naquela altura podia alguma vez imaginar que aquele povo das colinas viria um dia a dominar e a unificar toda a península italiana, para não falar no mundo conhecido. É como se o mundo fosse agora governado pelo município de Newcastle upon Tyne, no Reino Unido, ou por Buffalo, nos EUA.

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As Sete «Colinas» de Roma

Roma foi erguida em solo vulcânico e as suas sete colinas eram íngremes e rochosas. Muitas delas não eram verdadei-ramente colinas mas antes cristas fendidas por cursos de água que corriam das terras altas para o vale do Tibre. Tradicional-mente, as sete colinas eram o Palatino, o Capitólio, Quirinal, Viminal, Esquilino, Célio e Aventino. No entanto, havia tantas que até os Romanos tinham dificuldade em decidir quais incluir. Havia também elevações e cumeeiras de menor dimensão que partiam daquelas, como o Opiano, Fagutal, Cispiano e Veliano. O monte Janículo ficava do outro lado do rio, e a colina para lá dele era o Vaticano. Lívio diz-nos que aquelas colinas estavam ocupadas por gentes locais que foram posteriormente subjuga-das pelos Romanos e em seguida acolhidas na qualidade de cida-dãos romanos. Todo este complexo acabou por ser muralhado por volta de 386 a. C.

O Nome da Itália

A Itália era nesse tempo uma mescla de tribos distintas e bas-tante independentes, todas com a sua identidade, idioma e níveis culturais próprios. Foram ali identificadas cerca de quarenta línguas, na sua maioria indo-europeias. Roma ficava no Lácio. Flanqueavam-na os Etruscos (da Etrúria) a norte, e os Sabinos e os Samnitas (de Sâmnio) a leste. Como foi então que a península, no seu todo, veio a ser chamada Itália? Itália referia-se original-mente apenas ao quarto mais meridional da península, coloni-zado por gregos. Assim, os Romanos supuseram que o nome fora inventado pelos Gregos. Com efeito, havia uma palavra de um dialeto antigo, vitelia («boi jovem», do latim vitulus). Os Roma-nos pensaram que os Gregos a haviam transformado em Italia, provavelmente para exprimir a muita fertilidade do sul. Gradual-mente, o nome impôs-se. No século iii a. C., a Italia cobria toda a

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Itália moderna, exceto o extremo setentrional. Com o imperador romano Augusto (século i a. C.), passou finalmente a abranger todo o território até aos Alpes.

Porquê «Latim»?

«Latim» vem de Latini, «Latinos». Era este o nome do povo que ocupava a área conhecida por Lácio, onde se situava Roma. Mas porque se chamava Lácio? Os Romanos contavam a história de que o antigo deus romano Saturno fora expulso do poder pelo seu jovem filho Júpiter. Ele fugiu para o Lácio e escondeu-se ali – e o latim para «escondido» é latebat. Os Romanos pensavam então que o Lácio estava ligado a esconderijo. Esta derivação é um perfeito disparate – como quase todas as derivações que os Romanos inventaram –, mas é também histórica, tendo em conta que eles acreditaram nela.

A Difusão do Latim

A mais antiga inscrição em latim está gravada num vaso e data do século viii a. C. Reza: Manios med vhevhaked Numasioi; ou, em latim clássico: Manius me fecit Numerio – «Mânio fez-me para Numério». O número das mais antigas inscrições em latim que chegaram até nós sugere que os Romanos se haviam tornado letrados por volta do século vii a. C. (p. 29, p. 83); e enquanto Roma expande o seu poder, a língua latina acompanha-o, expul-sando lentamente os idiomas locais. Em consequência, o latim tornar-se-ia a lingua franca de toda a Itália por volta do século i a. C., e por fim da metade ocidental do mundo conhecido, à medida que os Romanos a conquistaram lentamente. Francês, espanhol e italiano, entre outros, são todos dialetos do latim. Os Romanos também conquistaram a Grécia, mas nunca iriam substituir essa língua antiga e venerada.

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Pronúncia Latina

Temos bons indícios dos sons individuais das letras no latim. Por exemplo, os historiadores gregos transcreveram os nomes latinos para grego. Partindo do princípio que sabemos como era pronunciado o grego, podemos ter a expectativa de que as transcrições deles nos digam algo acerca do latim. Assim, Cicero era transcrito como Kikerôn, não Siserôn (sendo o -ôn uma terminação grega), ou seja, o «c» latino pronunciava-se «q». Os Gregos também transcreveram Valerius como Ualêrios, dando a entender que o «v» se pronunciava como uma semi-vogal, mais como «w» inglês do que como o «v». Deste modo, o veni, vidi, vici de Júlio César ouvir-se-ia como «uéni, uidi, uiqui». Porém, quando se trata de transliterar para uma língua moderna, seguimos as nossas próprias convenções de pronún-cia e soletração.

21 de abril de 753 a. C.

Para os Romanos era importante determinar com a exatidão possível tudo o que dissesse respeito à fundação de Roma, sobre-tudo a data. A primeira pessoa de que se sabe ter proposto uma data foi o historiador grego Timeu (p. 10). Ele recorreu a méto-dos gregos de datação para a situar em 814 a. C. Isto parece ter levado os romanos seus contemporâneos a refletir sobre uma data real, e foram avançadas 748, 728 e 751. A data tradicional é a adotada pelo antigo historiador romano Varrão: 21 de abril de 753 a. C. Não sabemos como ele a determinou. E também não tem qualquer relação com o que a arqueologia revela acerca do desenvolvimento de Roma. Esta mostra claramente que o Pala-tino já era habitado desde 1000 a. C.