velórios inusitados - mário marinho - sá editora 2010

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VELÓRIOS INUSITADOS MÁRIO MARINHO

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A morte também provoca o riso e o espanto no livro divertido de Mario Marinho Um operário é surpreendido com o anúncio de sua própria morte publicada em um jornal. Estabelece-se o caos até que ele percebe que há ali um desejo de vingança. Mas vingança de quem? De quê? Do outro lado do mundo, um homem gasta milhares de dólares para enterrar um cão. Enquanto isso, nos Estados Unidos, outro guarda na sala da casa, em caixão de vidro, o corpo da mulher amada. O candidato a político encontra uma forma diferente de se lançar candidato. Terá sucesso? E a loura que ataca às portas do cemitério em plena meia-noite? São histórias que nascem do segundo evento mais importante do homem: a morte. Estes e muitos outros casos e causos são contadas neste livro, em textos leves, fáceis e saborosos que trazem realidade, ficção, imaginação – num coquetel nada tétrico. O jornalista Mário Marinho trabalhou no Jornal da Tarde durante 21 anos, aonde chegou em 1968. Em 1984/85, comandou um programa na rádio Gazeta, de São Paulo, chamado “No Pique do Esporte”. Trabalhou ainda nas rádios Eldorado, Atual, 9 de Julho, Record, Capital e, atualmente, está novamente na rádio Eldorado, comentando futebol. Na tevê, comandou um programa chamado “Sábado Esporte”, na Gazeta. Na mesma emissora, trabalhou durante muitos anos na sua tradicionalíssima Mesa Redonda (muitas vezes comandando o programa), ao lado de Roberto Avallone, Milton Neves, Vanderlei Nogueira e outros. Ainda na tevê, trabalhou na Record, Cultura e Bandeirantes. Foi presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo durante 10 anos, em dois períodos distintos. É diretor de redação da revista “O Mundo do Futebol”, da editora On Line, especializada em edições especiais sobre times de futebol. Mantém um blog onde escreve quase que diariamente sobre futebol: http://blogdomariomarinho.blogspot.com.

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Page 1: Velórios inusitados - Mário Marinho - Sá Editora 2010

VELÓRIOS INUSITADOS

MÁRIO MARINHO

Page 2: Velórios inusitados - Mário Marinho - Sá Editora 2010

CapaMateus Reis

PreparaçãoMargô Negro

RevisãoMilfolhas Produção Editorial Ltda.

Projeto Gráfico (miolo)Eveline Albuquerque

ImpressãoBartira Gráfica e Editora Ltda.

© by Mário Marinho, 2010

Todos os direitos reservados.Direitos mundiais em língua portuguesa

para o Brasil cedidos àSÁ EDITORA

Tel./Fax: (11) 5051-9085 / 5052-9112E-mail: [email protected]

www.saeditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marinho, MárioVelórios Inusitados / Mário Marinho. – Barueri :

Sá Editora, 2010.

ISBN 978-85-88193-54-3

1. Contos brasileiros I. Título.10-02156 CDD - 869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Contos : Lieteratura brasileira 869.93

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À Vera Sofia Marinho,Primeira-dama, primeira revisora – sempre primeira.

À Verênia, Cássio, Larissa e Vinicius – filha, filho,neta, neto.

À minha mãe, Celina, e à memória de meu pai,Paulo Marinho.

Aos inesquecíveis: Lester Moreira e GuilhermeDuncan de Miranda.

Meus agradecimentos a:Arlete Scatamburlo, Ary Pereira Júnior,

Guilherme Duncan de Miranda, José Maria de Aquino,Reinaldo Costa e Sérgio Belisário

pelas boas histórias que me mandaram.

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Índice

Prefácio – A graça da morbidez ....... 8

Por que não? ..................................... 13

1. A vingança .................................... 17

2. A verdadeira Amélia ..................... 27

3. A herança ...................................... 31

4. A morte do bebum ...................... 35

5. Dois velórios ................................. 37

6. A morte anunciada ....................... 39

7. Funeral dá demissão .................... 45

8. O milionário enterro do cão ....... 47

9. A tabuinha milagrosa ................... 49

10. O malcheiroso .............................. 51

11. Nome difícil .................................. 55

12. Joia! ................................................ 57

13. Enter .............................................. 59

14. Jeová enterra Matusalém ............. 61

15. Defundo ao sol ............................. 63

16. Amém ............................................ 65

17. Eta paixão! .................................... 69

18. A promoter ..................................... 71

19. O marketing do adeus .................. 73

20. O boato ......................................... 77

21. Salvo pelo sino ............................. 81

22. Certeza da morte ......................... 85

23. Cartão de Natal do falecido ........ 87

24. Começo de namoro ..................... 91

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25. Morte e ressurreição .................... 95

26. Morto é julgado e condenado .... 97

27. O morto assassino ........................ 99

28. Turismo macabro ....................... 101

29. Galôôôô ....................................... 105

30. Os três bêbados .......................... 109

31. Empresa-mãe .............................. 111

32. A vovó e a cordinha de cipó ...... 113

33. A morte do gringo ....................... 115

34. Os toco ......................................... 117

35. A dentadura ................................. 121

36. O boi da manta ........................... 123

37. Panela cheia ................................. 125

38. Marketing? .................................. 127

39. O embalsamado ......................... 129

40. Vontade de morto ....................... 131

41. Traz o Rogério! ............................. 133

42. Inconsolável ................................ 135

43. O ronco do bebum ..................... 139

44. Enterro em Cruzeiro ................... 143

45. A amante do Sô Mendes ............. 147

46. Os precavidos ............................. 151

47. Amor estranho amor .................. 153

48. Animador de velórios ................. 155

49. Caixão mobília ............................ 157

50. Confusão no velório .................... 159

51. Turismo do defunto .................... 161

52. Enterro na neutra Suíça ............. 163

53. O excêntrico funeral japonês ..... 165

54. Morto não, vivo e bêbado .......... 167

55. O cigarrinho ................................ 169

56. A loura do Bonfim ....................... 171

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Morbidez está longe de combinar com graça,com bom humor. Concorda? E também não combi-na necessariamente com suspense, embora neste casoexistam exceções, como, por exemplo, no inesquecível“O Corpo que cai”, ou algo assim, filme que vi aindacriança e tinha a assinatura do mestre Alfred Hitchco-ck, usando a bela Kim Novak, como pivô de uma his-tória mórbida e recheada de mistérios.

E eis que encontro, em saboroso texto, um autorque consegue fazer da morbidez uma fonte de intri-gantes histórias, ou de “causos” – como mineiro deboa cepa que é – e dotada esta fonte, de nuances bem--humoradas. Entre os casos deste livro Velórios inusi-

tados, destaco em especial um em que o suspense émantido até o final, qual Hitchcock das Alterosas, e,se comentado fosse num botequim, entre uma cerveji-

Prefácio

A GRAÇA DA MORBIDEZ

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nha e outra, a conclusão inevitável seria de que... “ti-

nha mulher no meio, sô”.

Bem, do livro não vou falar mais nada para que oleitor o descubra aos poucos, brincando às vezes deSherlock Holmes, curtindo, em outras histórias conta-das com o texto leve e fluente do autor. Entre meusdefeitos, creio, não está o de desmancha-prazeres.

O autor, ah, o autor. É gratificante falar dele. Tra-ta-se de Mário Lúcio Marinho, profissional competen-te, com quem trabalhei por décadas e que sempre con-siderei, ao longo dos tempos, um dos melhores amigosque já tive na vida. Eu o conheci ainda mocinho, decabelo e bigode pretos, gabando-se de ser mais alto doque eu, o que era, no mínimo, uma injustiça — ouprenúncios de que histórias ou mórbidas ou engraça-das estariam para acontecer um dia.

Tocamos juntos o esporte do Jornal da Tarde, elecomo o editor e eu como chefe de reportagem, vibran-do, sempre, com juvenil entusiasmo na conquista doPrêmio Esso de 1986, pela cobertura na Copa do Mun-do do México, ou na escolha da comovente foto deReginaldo Manente (Copa do Mundo de 1982, na Es-panha), aquela do garoto contendo o choro, parecen-do soluçar depois da derrota da Seleção Brasileira dian-te da Itália, naqueles malditos três gols de Paolo Rossi.Foi de Mário Marinho, o nosso Mário Lúcio Marinho,a palavra final, a escolha definitiva.

Falar sobre Marinho daria outro livro ou, no mí-nimo, a suspeição de quem fala muito de um amigo.Pois entre suas múltiplas façanhas está a de ter sidogrande presidente da ACEESP (Associação dos Cro-

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nistas Esportivos do Estado de São Paulo), fazendo,com amor, tudo a que se dedicou na vida.

Por falar em vida, pode ser até que ela tenha nosdistanciado bastante, bem mais do que deveria, porum motivo ou outro, creio sempre que involuntário.Só que não conseguiu esta mesma vida, ou distância,a mórbida façanha de apagar os bons momentos. Oorgulho de ter se tentado fazer o melhor. E, tempopassado, não dá para esquecer o bom-caráter do ami-go, neste caso o do autor, quando arriscou o seu pesco-ço – eu estava nessa jogada também – ao defender umrepórter que estava para ser demitido por reportagemmal-sucedida. Se houve gratidão? Ora, isso seria pe-dir demais e que se virem os mais sensíveis, ou huma-nos, como Mário Lúcio num mundo em que, até porsobrevivência, os belos gestos são esquecidos diante dequalquer ameaça dos mais poderosos. Paciência.

O importante é que Mário Lúcio Marinho, o ca-belo e o bigode já grisalhos, distante da altura quepensava ter em 1968 – quando chegou de Minas – ah,o importante é que ele foi em frente, sem perder a ter-nura e até o sorriso que era constante. E, como exem-plo, faz um golaço, gol de placa, ao transformar veló-rio em “causo” engraçado. Ou misterioso.

Só me resta, agora, convidar o leitor a entrar decabeça nestas páginas de Velórios inusitados. E semter que dizer “cruz-credo”, nem precisar bater na ma-deira três vezes.

Divirta-se.

Roberto Avallone

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Daí me perguntaram: por que escrever sobre amorte? E eu respondi perguntando: por que não?

A morte é um dos dois mais importantes eventospara um ser humano. O primeiro, claro, é nascer.

Falamos baixo, nos persignamos, nos benzemos,batemos três vezes na madeira, mudamos de assuntoquando se fala da inevitável morte. Ela é representadapor uma figura horrenda, encapuzada, de feições in-definidas, difusas – uma caveira de contornos indefi-nidos. Apavorante, horripilante.

Mas desde quando o homem se preocupou com amorte, com os enterros, sepultamentos etc.?

A história registra apenas hipóteses.Segundo essas hipóteses, no início da civilização

os mortos eram simplesmente abandonados e consu-midos por animais carniceiros. Os primeiros enterros

POR QUE NÃO?

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teriam ocorrido para evitar o mau cheiro dos corposem decomposição, a visão de animais devorando osdefuntos ou até mesmo a presença próxima dessesanimais selvagens e carniceiros.

São hipóteses.O professor, jornalista e filólogo Deonisio da Silva

levanta a possibilidade de que foram as mulheres asautoras dos primeiros enterros. “Comovidas com amorte dos filhos ou maridos, trataram de manter oscorpos perto de casa, às vezes no interior das residên-cias, para cuidar dos familiares também depois demortos.”

É o mesmo professor que explica a origem de mau-soléu: “O mausoléu tem esse nome porque ArtemisaII, irmã e esposa do rei Mausolo, da Turquia, mandouconstruir o maior e mais suntuoso túmulo de toda aantiguidade. A construção empregou trinta mil traba-lhadores durante dez anos. Tinha quarenta metros decomprimento, trinta de largura e vinte de altura”.

As enciclopédias ensinam que a palavra cemitérioveio do grego koimetérion, significando dormitório, echegou até nós através do latim.

Embora sem citar a palavra cemitério, a situaçãoé descrita na Bíblia: “Abraão lamentava e chorava amorte de Sara, sua mulher, e mesmo assim teve dedeixá-la para providenciar onde sepultá-la (Gn 23-2-20). Dirigindo-se aos filhos de Hete, pediu-lhes inter-ceder em seu nome junto a Efrom para adquirir o lo-cal de sua escolha: Macpela, no extremo de seu campo,insistindo no pagamento do devido preço. Efrom res-pondeu a Abraão ser de quatrocentos siclos de prata o

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preço do campo e da caverna nele existente. Abraãopesa-lhe a prata e vê confirmado o seu direito de possede Macpela, em Hebrom. Ali, então, sepulta Sara. Como tempo, à Sara veio juntar-se o próprio Abraão”.

O sepultamento consiste no ato de colocar o corpodo falecido em uma sepultura. Por isso, é um ato dis-tinto do enterro, onde o cadáver é enterrado numacova, sob a terra. No caso bíblico, acima, é provávelque tenha havido um sepultamento na caverna exis-tente no terreno comprado por Abraão.

Na Europa, os sepultamentos faziam-se dentro dasigrejas até o momento da peste negra, no século XIV,que matou entre 50 e 75 milhões de pessoas, segundoos historiadores, acabando com os espaços nas igrejas.

No Brasil também os sepultamentos aconteciamnas igrejas até o ano de 1820, quando foram proibidose deram origem aos primeiros cemitérios. Até então,somente negros escravos e indigentes eram enterrados.

Estima-se que existam atualmente no país pelo me-nos seis mil cemitérios. A região metropolitana de SãoPaulo tem quarenta unidades, das quais 22 são muni-cipais e 18 particulares.

O momento triste da morte pode também trazeralegrias. A começar por um herdeiro que chorará – defelicidade. Os velórios, outrora tão sisudos, hoje já sãomais abertos. Naqueles tempos em que o defunto eravelado em casa, passava-se a noite em vigília, em re-zas, em conversas baixinhas. Mas lá pelas tantas danoite eram servidos cafezinhos quentes e estimulantes,biscoitos fritos e, sorrateiramente, até uma garrafa decachaça corria de mão em mão – com todo o respeito.

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São inúmeras as histórias que envolvem os velórios.Com toda certeza você já ouviu histórias sobre defun-tos que levantam em pleno velório; de enganos cons-trangedores; de defuntos trocados. Aqui você tem al-gumas delas. Todas verdadeiras – segundo a própriafonte que é capaz de jurar e apontar testemunhos.Como a velhinha morta que fica balançando, a denta-dura trocada, a tabuinha da sala...

São histórias de tristes alegrias ou de alegres tris-tezas. Todas elas, com muito respeito. É bom que nãose esqueça nunca de um ditado grego: “De mortuisnil nisi bonum”. Ou seja: Dos mortos só se fala bem.

Mário Marinho

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Passava pouco das nove horas da manhã quandoTeco foi chamado ao telefone. Preocupou-se imediata-mente. Naquela metade dos anos 1960, na então pacataBelo Horizonte, telefonemas não eram dados assim tãofacilmente. Ainda mais no trabalho, naquela metalúrgi-ca de médio porte onde Teco trabalhava. Lá as ordenseram duras: telefonemas para funcionários só se fossemurgentes. E o único aparelho disponível ficava na porta-ria ao alcance do olhar atento e vigilante do patrão.

Chegou quase correndo à portaria e pulou para oaparelho.

– Alô! – gritou com o coração na mão.– Bem, é você? É você?Reconheceu a voz da esposa, entre soluços aflitivos.– Claro que sou eu, Clarinha. Pelo amor de Deus,

o que aconteceu?

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A VINGANÇA

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– Mô, Você está bem?– Tô, Clarinha, já disse. O que aconteceu?– Mô, é que o jornal aqui está falando que você

está morto.– O quê?– O jornal está dizendo que você morreu. O rádio

também falou.– Clarinha, para de chorar, eu não estou enten-

dendo.Clarinha, chorosa, apavorada, repetia e implorava.– Então vem pra casa.– Clarinha, isso é bobagem. Se eu estou falando

com você é porque não estou morto. É um engano,um nome parecido com o meu.

– Num é não. Tá aqui o seu nome Tecondes Maria-no da Silva, o meu nome, das crianças. É convite parao seu velório.

Não havia dúvida: aquele maldito nome.– Fica calma, tô indo pra casa.Pediu licença ao chefe, correu até o outro lado

da rua e comprou o jornal Estado de Minas. Não ti-nha dúvida: lá estava o anúncio fúnebre convidan-do para o velório dele. Nome da mulher, dos doisfilhinhos...

Voltou para o trabalho, abriu o jornal e mostrou oanúncio para o chefe que, distraidamente, comentou:

– Rapaz, nunca pensei que pudessem existir doisTecondes no mundo.

– Claro que não tem – explodiu Teco. – Sou eu!Tem alguém me sacaneando! Olha aqui o nome daminha mulher, dos meus filhinhos, do meu irmão.

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O dedo que apontava cada nome parou em cimado irmão. Tremeu ligeiramente. Uma raiva sem ta-manho percorreu seu corpo .

– Foi ele, foi ele... ah! A hora que eu botar a mãonesse filho da puta...

Correu até o vestiário, trocou o macacão, saiu emdisparada, deixando seus companheiros de trabalhoperplexos – ninguém entendia nada. Na rua, não pen-sou duas vezes: pegou um táxi. A situação justificavao gasto extra. Ao se aproximar de casa, notou umapequena multidão no portão. Desceu do carro, deu umbom dia com poucos modos que nem todos responde-ram. Notou olhares de desconfiança, pessoas abrindocaminho, assim como quem não quer ser tocado, olha-res de alto a baixo e risinhos contidos.

Clarinha apareceu no alpendre.– Teco, graças a Deus! Graças a Deus está tudo

bem.Meio arrastado pela mulher, meio com pressa para

deixar aquela gente lá fora, ele subiu os degraus, atra-vessou o alpendre e entrou na sala.

– Que diabo! O que está acontecendo?A aliviada Clarinha explicou.– A primeira pessoa foi a dona Geralda. Ela tem

mania de ler esses anúncios de defunto, você sabe. Elatocou a campainha aqui em casa, fui lá fora e ela per-guntou por você. Ele foi trabalhar, respondi. Ela falouassim: não quero te assustar, mas você já viu o jornal?Claro que não. Ela me mostrou. Tava lá, seu nome,meu nome.

– Eu sei Clarinha, já vi o anúncio. E daí?

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– Eu fiquei apavorada, comecei a chorar. Fiqueidesesperada. Perguntei pra ela: mas não tinha dadotempo, né? Ela ficou me olhando sem responder. De-pois piorou tudo. Sabe o que ela falou?

– Não, não sei.– Ela falou assim: esses jornalistas sabem tudo, né?– Clarinha, deixa de ser burra! – Teco estava per-

dendo a paciência. – Se eu saí daqui às sete horas, comoé que o jornal poderia colocar um anúncio pra donaGeralda ler às oito horas? Pode isso?

– Não sei, não grita comigo não. Eu nunca traba-lhei em jornal. E tem mais. Mal ela acabou de falar,ligou a sua tia de Betim, aquela que vem sempre noseu aniversário. Ela nem conseguia falar direito: tinhaouvido na rádio Guarani. Queria saber o que tinhaacontecido. Eu nem sabia o que falar. Aí sua mãe li-gou. Coitada! Também não conseguia falar. Foi aí queeu te liguei. Liga lá pra sua mãe, fala com ela.

Teco também começou a entrar em pânico. Puxa,a mãe pode ter um troço! Errou o número e só acertouna terceira tentativa. Atendeu a empregada, que já sa-bia da morte do filho da patroa.

– Eva, aqui é o Teco.– Cruz credo!Foi tudo o que ele ouviu, pois a desesperada Eva

jogou longe o aparelho. Falar com defunto! Tudo me-nos isso! Pior: o telefone ficou preso.

Toca a campainha.– Dona Clarinha – avisa a tímida e confusa em-

pregada, menina recém-chegada do interior –, tão en-tregando umas flores aí. O que eu faço?

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– Deixa que eu resolvo – levanta o resoluto Teco.Lá fora, dois funcionários de uma floricultura car-

regavam uma bela coroa de flores, atenciosos e com aexpressão compungida que o momento exigia.

– Onde podemos colocar a coroa? É homenagempara o falecido senhor Tecon...

– Fora! Aqui não tem nenhum falecido – explodiuTeco, sem deixar que os funcionários entrassem e nemao menos terminassem de pronunciar seu nome.

– Olha moço – tentou se explicar um deles, humil-de porém com firmeza. – não sei quem o senhor é,mas o endereço é esse e nós temos que entregar a co-roa. Não vamos voltar com ela não...

– Eu sou o Tecondes e olha pra mim que eu nãoestou nem um pouquinho morto.

O olho arregalado saiu da coroa onde a faixa roxatrazia em letras amarelas, góticas, a mensagem: “Lem-branças eternas de seu irmão Teodoro”. Teco arran-cou a coroa e jogou no meio da rua, espalhando amultidão que aumentara de tamanho. Os boatos fer-vilhavam no meio do povo:

– Parece que tem um cara aí dentro que morreumas está vivo...

– Acho que é alguém que eles não querem deixarenterrar...

– Sei não, parece que morreu gente aí...As versões nasciam e cresciam – mas não morriam.Depois de muito tempo, Teco conseguiu falar com

a mãe. A rádio Guarani foi avisada para não repetirmais o anúncio fúnebre, mas a notícia já havia se es-palhado. O telefone não parava de tocar.

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– Clarinha, para com esse telefone e arruma algu-ma coisa para eu comer. Estou morto de fome... – e sóentão se deu conta do que havia falado. – Até eu, meuDeus!

O dia da família Tecondes foi assim. Telefone, cam-painha... e ele não podia nem atender. Morto não fala!

Era um tal de chegar gente que Clarinha não tevedúvidas: mandou caprichar nos bules de café, chamoua dona Geralda e pediu que ela fritasse biscoitos. Fezuma mesa farta: queijos, pão de queijo... Parecia mes-mo um velório como se fazia naquela época em que odefunto era velado em casa. Orgulhosa, Clarinha co-chichou com dona Geralda: só falta mesmo o defunto.

Por volta das catorze horas, toca a campainha no-vamente. Era um repórter do Diário da Tarde. Teco con-sentiu em falar e contou toda a confusão.

– Mas por que seu irmão faria isso?– Não posso falar. Mas sei que foi ele.De posse da história, o repórter foi até o Serviço

Funerário da Santa Casa, onde tudo tinha começado.O funcionário se esquivou:

– O problema aconteceu no plantão, não foi co-migo não.

– E onde está o plantão?– Ele chega às quatro e trabalha até a meia-noite.Pontualmente às quatro lá estava o plantonista.

Tomou conhecimento da história, balançou a cabeçae admitiu:

– É, entrei nessa. Mas o cara chorava de soluçar,parecia um artista.

Com um certo sentimento de culpa e de revolta

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por ter sido enganado, o plantonista contou a história.Por volta das dez horas da noite anterior, o monótonoplantão foi interrompido com a chegada de dois jo-vens. Um chorava aos prantos – lágrimas de esgui-cho, como diria o dramaturgo Nelson Rodrigues –; ooutro consolava.

– Não adianta Téo, foi Deus que quis assim.Com os olhos vermelhos, choro convulsivo, o ra-

paz explicou:– Meu irmão acaba de morrer. O corpo dele ain-

da não desceu. Mas eu queria adiantar as coisas: man-dar avisar na rádio, colocar no jornal, mandar flores,o caixão.

Cheio de compulsão, Leopoldo, o plantonista,olhou para o relógio: sabia que estava em cima da horapara colocar o anúncio no jornal. Teria que ligar dire-tamente para a oficina e falar com o secretário gráfi-co, que, felizmente, ele conhecia de outros anúncios.O secretário gráfico era o funcionário encarregado defazer possíveis últimas modificações no jornal, já naoficina. Era uma providência que já havia sido toma-da outras vezes e sempre garantia uma comissão paraajudar o parco salário de Leopoldo. Experiente, mos-trou para os rapazes os tamanhos dos anúncios e ospreços.

– Quero no Estado de Minas, é o jornal mais im-portante – informou o infortunado irmão.

– O Teco merece – deu força o amigo.– É melhor colocar de hora em hora na rádio –

sugeriu o plantonista.– Tá certo, mas na Guarani, que tem mais ouvintes.

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MÁRIO MARINHO22

– Então vai começar a irradiar às sete horas, tábom assim?

– Tá, tá.– E o caixão?– Pode ser coisa mais simples...– Téo! Coisa simples não, o seu irmão merece o

que tiver de melhor. É a última homenagem pra ele.– Tem razão, tem razão.Leopoldo preencheu os formulários, deixou tudo

encaminhado para que os funcionários da manhã man-dassem o texto para a rádio e o pedido para a floricul-tura; o texto para o jornal já fora passado por telefone.À meia-noite terminou o seu plantão e ele foi feliz paracasa, certo de que fizera uma boa ação: ajudou os jo-vens e ganhou um troquinho.

Ao cair da tarde, o repórter estava de volta à casado falecido não morto. Contou tudo o que havia acon-tecido e, em troca, queria saber o motivo da vingança.

– Eu já sabia que era obra dele. Mas o motivo nãodá pra falar.

Insiste daqui, anda dali, toma um cafezinho, umbiscoitinho frito, o repórter vai ficando à vontade. DonaGeralda, que sabia de tudo, faz um sinal para o re-pórter, chamando-o num canto. Mostra-lhe uma fotoonde aparecem dois sorridentes rapazes abraçadoscom duas moças também jovens e bonitas em recata-dos maiôs. Ele reconhece Teco e Clarinha. Dona Ge-ralda ajuda:

– Os outros dois são Téo e Carminha. Dois irmãosque se casaram com duas irmãs no mesmo dia – vaicochichando com ar de cumplicidade. – Até na lua de

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mel viajaram os quatro juntos. Um fim de semana nacasa de um; um fim de semana na casa do outro. Sem-pre assim, carne e unha.

Dona Geralda olha para os lados e se certifica deque ninguém está ouvindo.

– De repente, pararam de se falar. Um não vainem mesmo na casa da mãe, se souber que o outroestá lá. Coisa esquisita.

O dedo de dona Geralda para sobre o rosto sorri-dente de Carminha.

– O motivo é ela. Essa vingança é coisa de cama...