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No’ mais, Musa, no’ mais, que a

Lira tenho Destemperada é a voz

enrouquecida, E não do canto, mas de ver que

venho. Camões, Os Lusíadas.

O mercado editorial direciona a

leitura do público. Muitas vezes lemos por impulso de modismos, os grandes campeões de vendas não necessariamente são os melhores escritos. Acreditamos que a busca pelo lucro influencia na qualidade/diversidade. É nesse cenário, pouco heterogêneo, que surge a Tessa- books.

Nossas publicações visam apresentar escritos que não figuram entre os mais conhecidos, grandes nomes esquecidos ou pouco divulgados e conteúdos didático-pedagógicos

aplicados à aprendizagem.

Tessa - books.

Velhos conceitos que inovam.

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Alexandre de Freitas

O Distrito

1ª edição.

São José do Rio Preto Alexandre de Freitas

2012

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Tessa - books

Velhos conceitos que inovam

Romance

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Catalogação feita pelo próprio autor. FREITAS, Alexandre de. O Distrito. São José do Rio Preto: Tessa, 2012. CDD 869.935 I-Romance. II Romance histórico. III-Literatura. Regional, São José do Rio Preto. IV- Monte Belo. Esta obra não passou por correções gramaticais profissionais. Está registrada na Biblioteca Nacional, se partes dela forem usadas deverá, necessariamente, fazer referência ao autor.

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À memória de meu avô, Armindo de Freitas. Pelos inesquecíveis momentos que passamos juntos.

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Sumário

Apresentação. ................................................................ 8

Capítulo I. Em Nome do pai, do filho, do neto e do bisneto. .................................................................... 11

Capítulo II. De volta para Monte Belo. ................... 15

Capítulo III. Mário Sanches. ...................................... 21

Capítulo IV. A festa junina. ........................................ 30

Capítulo VI. Outras histórias do velho Juan. ..... 40

Capítulo VII. Em fim Monte Belo. ........................ 43

Capítulo VIII. Um mês de grandes reflexões. ...... 50

Capítulo IX. Feliz natal e próspero ano novo. ......... 56

Capítulo X. O surgimento de Monte Belo. .............. 60

Capítulo XI. Ascensão e decadência de Monte Belo.............................................. ................. 66

Capítulo XII. Estreitando laços. ................................ 72

Capítulo XIII. O segundo presente. .......................... 77

Capítulo XIV. A última viagem a Monte Belo. ........ 80

Sobre o autor. ............................................................... 89

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Apresentação.

...uma história de vínculos sentimentais, com pessoas comuns, uma história de lugares, de gente que viveu e sentiu a vida. “O Distrito” é um romance com discreta fundamentação histórica. Tem como enfoque principal histórias de pessoas, de lugares, de vínculos afetivos e percepções. Desde 1995, quando surgiu a idéia de escrever algo sobre Monte Belo, pensei em escrever com fundamentação histórica. O tempo passou e muitas coisas mudaram. O estudo superior, que a princípio facilitaria a conclusão de tal empreitada só complicou os intentos. Percebi que o rigor científico, pelo menos como é entendido por parte considerável dos acadêmicos, rouba-nos, em parte, os dons do raciocínio próprio, dificulta e limita uma pesquisa para quem nunca possuiu muito dinheiro e tempo.

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Outro fator relevante é o fato de não se achar relatos históricos (documentos, registros etc.) com facilidade, pois se trata de localidade pouco conhecida. E que não figura entre os principais objetos de estudos dos pesquisadores.

Diante das dificuldades de fundamentação científica “O Distrito” foi sendo gestado ouvindo relatos orais de quem conheceu tal localidade. Pessoa de suma importância e que muito me influenciou foi meu avô, Armindo de Freitas (in memoriam), morador das redondezas de Monte Belo lá pelo final da década de 1920. Lá estive com ele várias vezes quando criança, quando adolescente e quando adulto, ouvi muitos relatos. Voltei mais vezes aquele local, sempre instigando e às vezes fotografando (algumas dessas fotos estão no livro). Esses foram os recursos para escrever tal livro. Lembro o paciente leitor de que apesar da discreta fundamentação história trata-se de um romance. São personagens fictícios e as histórias são inventadas. Algumas datas coincidem, existem os lugares, ainda que não se apresentem como no livro, porém tudo não passa de um romance.

O livro é carregado de diálogos e reflexões onde são questionados alguns padrões. A vida dos personagens é aquela semelhante à de milhões de pessoas pelo mundo afora. Pessoas de verdade, que muitas vezes perdemos o contato com elas e ficamos meio que hipnotizados com um mundo de faz-de-conta onde todos têm que ser bem sucedidos, todos tem que ser felizes; em síntese: quem sabe o mérito dessas páginas esteja justamente em lidar com o normal e não com super-heróis, vencedores e bem sucedidos. Os lugares são enriquecidos com paisagens que muitas vezes, com a correria da vida, deixamos de percebê-las, às vezes não percebemos o que está ao nosso redor e ficamos procurando beleza no impossível, no distante. Em “O Distrito” essas sutilezas da

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percepção surgem para nos lembrar de que devemos prestar mais atenção em tudo que nos cerca.

Alexandre de Freitas

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Capítulo I. Em Nome do pai, do filho, do neto e do bisneto.

Os golpes de machado arrancam lascas da

aroeira centenária, os músculos daquele imigrante português se contraiam e, novamente, outro golpe. Cavacos de madeira batiam no rosto, o suor dos trópicos caia nos olhos e provocava uma sensação de ardume. Outro golpe...cai a aroeira! Outros, mais espalhados já estavam concluindo o cercado de madeira que fechava o quadrilátero de 100 X 50 metros, em meio a uma área onde as árvores grandes estavam cedendo lugar para uma vegetação mais baixa, a vegetação já não era exclusivamente

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arbórea, agora era arbustiva com transição para gramínea. O dia 15 de fevereiro do ano de 1820, seria a data da finalização daquela obra. O cemitério! Ergue-se um cruzeiro. Pensam em rezar uma missa. Olham o cair da tarde e concluem silenciosamente: está pronto. Francisco Cândido da Silva com seus 67 anos guardava nos traços lusitanos uma robustez que impressionava, com seu machado nas costas foi o último a sair daquele quadrilátero que formava o cemitério ainda sem corpos. Juntamente com ele desciam daquela colina, que ficava distante um quilômetro da comunidade chamada Monte Belo, uns 20 homens, exaustos, mas contentes por concluírem o tal feito. Outro grupo, de mais ou menos 15 homens, subiram a colina, em direção a Itapyrema, essa um pouco mais distante.

Quando o grupo de Francisco chegou a Monte Belo havia uma recepção para eles. Água ardente, porco e frangos assados numa barraca improvisada no fundo de uma das casas de pau-a-pique próxima da bifurcação que levava ao recém construído cemitério. Ali se iniciou uma festa.

O motivo da festa foi a construção do cemitério, que nada mais era do que um roçado de 100 X 50 metros em cima de uma colina, cercada por lascas de madeira extraídas dali mesmo e com uma porteira, finalizando o cenário, um cruzeiro de aroeira no limite norte no quadrilátero.

Único motivo de alegria de um povo que vivia no extremo sertão do noroeste da província de São Paulo, povo espalhado, rodeado de matas, tendo como meios de comunicação os rios da região e uma picada quase intransitável que poucos se arriscavam a ir até seus lugares de destino.

Dentre eles poucos tinham notícia do que ocorria no Brasil, uns não entendiam nada do sistema político, suas vidas se resumiam numa sobrevivência do dia a dia, caçando, pescando e plantando para

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subsistência, outros, esses em número tão resumido que ficavam famosos, tiveram contado direto com pessoas vindas lá dos lados de São Paulo, onde havia a câmara municipal, responsável por governar na época. Sabiam pelos comentários que se subissem o Tietê até suas cabeceiras chegariam a São Paulo, se entrassem pela picada em direção leste passariam por algumas casas próximas aos rios Turvo, Preto e dos Macacos, onde se iniciava outra comunidade, e dali, seguindo o sentido sul passariam por Araracoara, dali em diante, diziam as notícias, havia mais progresso e ficaria mais fácil ir até São Paulo.

Se, nesta mesma picada, partindo de Monte Belo rumo noroeste, o sertão ia ficando mais bravo. Passariam por Sant’Anna do Paranaíba, e se insistissem mato à dentro chegariam a Cuiabá, se fossem um pouco mais para o norte chegaria a Goiás.

Tinham notícias que alguns que partiram para esses caminhos nem voltaram, poderiam ter sido mortos por índios ou morridos de algum mal da floresta. Os que voltavam, eram recebidos com louvores, pois traziam informações e novidades.

Era essa a forma de viver no início do século XIX, naquela região da província de São Paulo. Gente espalhadas próximas aos rios vivendo de uma criação e uma agricultura de subsistência, profundas desconhecedoras de tudo que se passava no cenário político do Brasil. Dentre eles, uma grande maioria eram mineiros em busca de terras, pois a decadência da mineração espalhou pessoas por vastas regiões da província de São Paulo, muitos desses mineiros foram responsáveis pelo surgimento de bairros que se transformaram em distritos e depois tornaram municípios.

Mas a festa continuava! Regada à água ardente e muita carne, entoada ao som de viola de fabricação caseira numa cantoria noite a fora. Um pouco isolado da roda da cantoria, um grupo em torno de Francisco parecia mais ébrio e saudoso por terem construído o

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cemitério, deste grupo faziam parte: Manoel Cândido da Silva, filho mais velho de Francisco então com 40 anos; Sebastião Porfílio, João Bernardino Rocha, dentre outros numa média etária elevada e, em contraste aos mais velhos, estava entre eles José Cândido da Silva, filho de Manoel e neto de Francisco, garoto de olhos esbugalhados que contava com 5 anos de idade e prestava muita a atenção em tudo que falavam os adultos.

Amanheceu o dia. Próximo ao rio onde se iniciava a subida que leva ao cemitério, num canto da rua com um pouco de formiga na boca e um facão encravado nas costas jazia Francisco Cândido da Silva. Estava morto aquele português forte e falador.

Ao cair da tarde do mesmo dia Francisco Cândido da Silva entrou carregado numa mortalha no portão do cemitério que ele havia fechado por último no dia anterior. Os músculos fortes que derrubaram muitas aroeiras agora estavam enrijecidos e frios. Um dos que mais contribuiu para a construção do cemitério foi o primeiro a ser enterrado ali.

Seu filho, Manoel, fez questão de cavar a cova do pai. E por força do destino, ou das circunstâncias, cavou muitas outras. Foi o primeiro coveiro do cemitério. Oficio que deixou depois de morto e enterrado ali , quando seu filho, e neto de Francisco, assumiu o cargo, que também só deixou depois de morto e enterrado no mesmo cemitério, e seu filho e bisneto de Francisco, esse com o mesmo nome do bisavô, assumiu o cargo lá por volta de 1875.

Estava ali a primeira cruz que sinalizava o primeiro sepultamento. Quantas outras viriam!

A pequena multidão que descia a rua da colina vinha quieta e pensativa sobre o ocorrido, enquanto o sol ameaçava esconder-se no horizonte às costas deles e aquecia um anum que piava em cima da cruz do túmulo do velho português.

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Capítulo II. De volta para Monte Belo.

Mário Sanches havia se cansado

definitivamente. Aquele sexagenário não via mais perspectivas naquela imensa cidade, o que mais lhe amedrontava era o fato de não estar aposentado. Muitos homens na idade dele já não dependiam da força física para sobreviver. Ele dependia. Durante aqueles quarenta e cinco anos até que ele ganhou muito dinheiro, ou melhor, dinheiro suficiente para comprar uma casa, um carro e manter uma família. O erro que mais lhe pesava na consciência era o fato de não ter contribuído para previdência. O preço desse erro era esperar cinco longos anos para receber do governo um salário mínimo de fome.

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Porém, Mário tinha uma forma interessante de pensar. E apesar do peso na consciência ele não se martirizava.

Depois que ele se separou da esposa, isso quando tinha 33 anos, a vida mostrou-lhe a verdadeira face das pessoas. Daquela data em diante, gradativamente, ele foi entrando numa decadência econômica. Percebeu que, para um relacionamento ser estável, haveria de ter dinheiro suficiente para agradar a companheira.

Quarenta e cinco anos pintando letreiros. A maioria dos anos por conta, como autônomo. Fez letreiros em oficina mecânica, açougue, padaria, em milhares de estabelecimentos. Pintou letreiros em placas, faixas, cartazes; fez logotipos, banners e decorações. Bom profissional. Um artista, como dizia seus amigos mais próximos. Foi exercendo essa profissão que Mário se casou e teve um casal de filhos. Comprou terreno, construiu uma casa com três dormitórios e durante quase toda sua vida até ali teve carros, o mais novo chegou a ter apenas cinco anos de uso. Foi a década de 1990 que deu o tiro de misericórdia na profissão de Mário. A computação gráfica, as plotagens, os adesivos feitos por computador e toda essa tecnologia advinda da terceira revolução industrial praticamente deram um fim na profissão de pintor de letreiro. Nesta década o mundo se tornara amplamente globalizado, velhas profissões saíram de cena para dar lugar as outras que exigem requisitos dos quais Mário e boa parte da população não tinham. Quando um espanhol que Mário conheceu em 1991 lhe falou que na Europa não havia mais pintor de letreiros, o velho pintor duvidou. Quatro anos mais tarde ele já não duvidava mais. Raramente fazia algum serviço que lhe rendia um bom dinheiro, a maioria dos seus letreiros eram para clientes antigos que exerciam resistência às mudanças e preferiam aquela letra feita à mão, com um toque de ser humano, com pequenos

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defeitos e características que a tornam singular a todas as outras. Assim aconteceu com inúmeras profissões em todas as épocas. É o maravilhoso progresso. Mecanicista, academicista e redutor de habilidades. Tem o lado bom, que é sempre ressaltado, o lado ruim é esquecido. O que Mário ganhava por volta dos seus 34 anos era o suficiente para pagar o aluguel de um quarto com um banheiro compartilhado por duas pessoas, duas refeições por dia e nos finais de semana algumas bebidas alcoólicas para fazer suas reflexões se alterarem. Poucos amigos. Pois amigos e situação financeira equilibrada são sinônimos, quando não temos muito o que oferecer e não possuímos uma posição social que pode servir para alguém, normalmente os amigos são poucos. Antes de partir Mário resolveu falar com os filhos. Tarefa difícil, pois ele fora criado sem muitas referências sentimentais com seus pais, pouca conversa e relações extremamente básicas para ter uma convivência suportável. O próprio Mário havia visto seus pais pouco depois de se separar, ou seja, há vinte sete anos. Na época arrumou dinheiro e fora para São José do Rio Preto onde encontrou dois velhos vivendo separados. O pai parecia um homem largado, barba sempre por fazer, casa mal arrumada que, a primeira vista, parecia abandonada. A mãe amigada com um velho italiano numa chácara completamente afastada da cidade. Por aquela época ele até pensou em ir até Monte Belo, mas Sabrina o impedia. Ao chegar ao portão da casa da filha foi recebido pelo seu neto, logo o moleque falou: mãe é aquele vô. Ao entrar se deparou com a filha que fez os cumprimentos formais e falou: ─ Por que o senhor está aqui? Ele com o olhar meio cabisbaixo respondeu: ─ Vou para...

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─ Precisa de dinheiro é isso? A filha de Mário argumentou. ─ Qualquer pessoa no mundo precisa de dinheiro, de um simples tolo ao maior empresário, quando essa necessidade aparece sabemos muito bem a quem recorrer. Respondeu Mário e continuou: ─ Vou e não volto mais. Morrerei por lá. ─ Você não está ficando louco, não é velho? Sabe que aquilo já deve ter acabado. E no mais, vai viver do que lá? ─ Viver é contingência. E tem mais, o que é viver? Pagar contas, fazer empréstimos, ter bens e aparentar ser feliz? Viverei melhor lá do que aqui. ─ Manda-me recados na hora que se estabelecer por lá. Disse sua filha. Após algumas conversas e um breve café Mário se despediu e rumou para a casa do filho. ─ E aí moleque. Disse quando viu o filho sentado na varanda. ─ Ô pai, entra aí. Respondeu o filho. Vicente Sanches era um homem de trinta e nove anos que na sua genética herdara aspectos físicos da mãe e do pai. Homem de estatura forte e bem aparentado. Queixo proeminente e de pouca conversa. Logo, um diálogo mais longo do que com a filha se iniciou. Os netos se aproximaram e sua nora preparou um jantar diferenciado. Naquela noite Mário dormiu ali, no outro dia bem cedo, Mário explicou os últimos detalhes que lhe haviam impelido a partir. E encerrou dizendo: ─ Há muito tempo penso em Monte Belo lá será melhor para passar o resto da vida. Desde quando sai de lá nunca mais voltei. Quando me separei de sua mãe estive perto e não cheguei até lá. Além do mais, meu filho, o que eu faço aqui? Que vida medíocre! E, mediocridade por mediocridade, prefiro passar o resto de minha em Monte Belo a morrer por aqui. Ao terminar a explicação o filho de Mário deu-lhe um envelope com uma razoável quantia e disse:

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─ Não é empréstimo é dado. Mário não abriu na hora. Apenas abraçou seu filho e se despediu da nora e dos netos. Ele tinha certeza de que para o filho não fazia falta aquele dinheiro. Com um emprego garantido no departamento de venda de uma empresa que comercializava produtos veterinários, no mínimo aquela quantia era insignificante para um representante de vendas como seu filho que atendia todo Mato Grosso do Sul e interior de São Paulo. No dia seguinte Mário estava na rodoviária com uma passagem com destino a São José do Rio Preto, que ficava a 65 quilômetros de Monte Belo. Depois de ter verificado a quantia que seu filho havia lhe dado, constatou que era dinheiro suficiente para a passagem e para ficar um mês sem pegar nenhum serviço. Após isso, pensava, pego uns letreiros para fazer e vou levando a vida. Durante a viagem ele pensava nos motivos que o impediram de no mínimo visitar Monte Belo, já que pensava tanto o que custava ter se esforçado um pouco e ido até lá. Lembrou de quando era criança, mais ou menos sete anos que ia brincar na praça com os amigos. Eles rodeavam a praça inteira pelas copas das árvores. Será que as árvores ainda existem? Imaginava. Como pode! As árvores não eram altas, na verdade eram arbustos que atingiam no máximo uns três metros de altura, suas copas eram densas e por terem sido plantadas próximas encostavam uma nas outras permitindo tal feito. Perdido em pensamentos que o levavam a refletir sobre seus primeiros quinze anos de vida adormeceu no ônibus e começou a sonhar. No sonho via uma cidadezinha bem limpa onde as pessoas falavam bom dia umas para as outras. Com uma pequena padaria na esquina onde à tarde alguns velhos iam tomar cerveja e contar casos, uma igrejinha bucólica completava aquele quadro onírico e no horizonte, no final da cidade, aquele aspecto típico do cerrado com árvores pequenas e retorcidas que formavam uma

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paisagem perfeita quando o sol se punha atrás delas. Era assim que Mário Sanches imaginava encontrar Monte Belo.

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Capítulo III. Mário Sanches.

Mário Sanches veio ao mundo no dia 1º de janeiro de 1940. E a localidade na qual havia nascido já padecia de uma estagnação evidente.

Havia três estabelecimentos comerciais, uma mercearia que possuía uma boa variedade de mercadoria, uma máquina de arroz e outra mercearia que vendia basicamente bebidas e petiscos. O que mantinha esses comércios não eram apenas as pessoas da localidade, eles atendiam a demanda de transeuntes que possuíam ranchos de veraneio nos rios da região ou simplesmente passavam por ali para pescar.

Uma pequena capela no centro de um quadrilátero com um coreto ao lado, um campo de

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futebol e um campo de bocha completavam aquele cenário. Nas ruas que formavam o quadrilátero se notava salões comerciais desativados em estado precário, uns até parcialmente destruídos, outros ocupados por famílias. Além das quatro ruas que cercavam o quadrilátero havia outra paralela a uma delas, que era a primeira rua que se encontrava quando se chegava à localidade. Outras ruas, paralelas às outras, cresciam os matos e tinham várias casas parcialmente demolidas. No total contava-se 60 casas em estado considerável e habitadas por 250 almas, o restante estava em processo de se tornar ruínas. A população do povoado contando com os habitantes dos sítios e fazendas circunvizinhos somava umas 600 pessoas.

Mário nasceu numa casa em que, na frente desta, havia um salão comercial desativado. O salão era anexado à casa, porém não se fazia uso dele. Antigamente abrigava uma farmácia que fazia às vezes de consultório médico e, segundo diziam, ali foram feitas muitas cirurgias. O fundo da casa era uma chácara onde se criavam galinhas, porcos e até algumas vacas para leite.

A primeira lembrança da existência que Mário tinha era de estar no colo se sua mãe, na escadaria da varanda no fundo da casa, olhando o sol se por no horizonte. Realmente era uma bela e inesquecível lembrança. O céu ficava de um azul que ia se transformando num violeta para depois ficar alaranjado e terminava num vermelho que exercia uma fascinação inexplicável em Mário. Aquelas árvores com tronco retorcidos de uma vegetação que transitava entre mata e cerrado fazia o pano de fundo ao longe, próximo, algumas mangueiras espaçadas com umas vacas deitadas em baixo, bem mais próximo um pé de macaúba muito velho e envergado, cujos espinhos tinham caído nas partes mais baixas e, quase encostado na varanda, um pé de pinha onde Mário aprendeu a andar segurando no seu tronco.

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Com 5 anos de idade, Mário e seus irmão mais velhos, Avelino Sanches e Clemente Sanches, acompanhavam o pai no pequeno comércio que este tinha em Nova Itapirema. Avelino e Clemente ajudavam o pai a atender alguns clientes, repunham algumas mercadorias e cuidavam da limpeza. Mário ficava brincando na pracinha da cidade, que era rodeada por árvores que possuíam as copas juntas, onde Mário e mais alguns garotos rodeavam a praça inteira pelas copas das árvores.

Até seus 10 anos a vida de Mário tinha essa rotina. Talvez a melhor época de sua vida! Daquele lugar ele guardava muitas lembranças. Na verdade as árvores que ele imagina sendo em Monte Belo estavam ali em Nova Itapirema e era ali que ele passava o dia. Conforme ia crescendo aumentava a responsabilidade no comércio do pai, a ponto de quando completou 10 anos quase não havia mais tempo para brincar com seus amigos.

Quando Clemente foi contratado para trabalhar como cobrador numa empresa de ônibus que fazia a linha Rio Preto - Potirendaba, passando por Bady Bassitt, Nova Aliança, Nova Itapirema, Monte Belo, Guajuvira, Venda Nova e Coqueiral até chegar a Potirendaba; para depois rumar para Rio Preto com uma parada na Vila Azul. Mário ficou desanimado. Pois seu irmão mais velho, que já tinha 19 anos, estava trabalhando em Rio Preto, agora Clemente deixara-o sozinho com um pai difícil de se conviver. Sua irmã, Josefa, era impedida pelo pai de permanecer naquele estabelecimento. Ali não era lugar para mulher. Dizia o velho José.

A alegria de Mário se voltou para Monte Belo. Ficava esperando o dia passar para voltar para sua casa e ir brincar na rua. Com um grupo de amigos logo depois do jantar, pouco antes de anoitecer, jogavam bola e brincavam de bolinha de gude, quando anoitecia, brincavam de esconde - esconde pelas ruínas das casas, valia esconder na cidade inteira, menos no cemitério.

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Quando cansavam de brincar e faltava pouco tempo para as mães daqueles garotos reivindicarem suas presenças em suas casas, iam escutar a conversa dos velhos na mercearia.

As tardes de outono, aquelas que no finalzinho esfria um pouco nessa latitude próxima aos trópicos, exerciam um encanto singular em Mário. Às vezes ele na frente de sua casa observava o crepúsculo surgindo, as luzes da rua acendendo e evidenciando as partículas de poeira no ar, o trilar das codornas cessando, alguns curiangos já ensaiavam rasantes próximos às lâmpadas da praça para pegar insetos, uma coruja, mais ao longe, começava a crocitar, e seus amigos chegando para convidá-lo para o início das brincadeiras.

Cada rua, cada esconderijo, a poeira avermelhada de uma tarde quando passava algum carro por ali, as galinhas e os porcos que ficavam soltos pelas ruas, os rios, os pés de frutas; tudo isso tinha um significado especial para Mário. Esse conjunto interagia com a percepção de Mário e despertava sensações que ele guardaria para o resto da vida.

Das conversas dos velhos na mercearia Mário teria lembranças que durariam a vida inteira. O avô de Mário, Juan Armando Sanches, com 75 anos, chamava atenção pela lucidez. A luz de fora da mercearia iluminava pouco e ali ficava uma aglomeração de homens, alguns no banco de madeira que acompanhava a parede externa do estabelecimento, outros sentados ao contrário em cadeiras, de modo que o encosto ficava no peito, tomavam pinga e contavam as histórias antigas. Os garotos ficavam sentados próximos, perto de uns cachorros que dormiam e outros se incomodavam com besouros e mosquitos, que só eram contidos quando aparecia um sapo para devorá-los.

O outro lado da praça via-se as luzes das casas e mais adiante, lá no alto da colina outras luzes esparsas das fazendas e sítios da região. Muitas vezes as mães dos garotos tinham que buscá-los, pois a conversa de estendia até altas horas. Não raro, os garotos saiam

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para verificar localidades como o cemitério, a antiga oficina, entre outros lugares citados nas histórias dos adultos. Uma verdadeira disputa para ver quem tinha mais coragem.

Às vezes aqueles garotos custavam acreditar que aquela localidade no passado era como aqueles velhos falavam. E não raro, teciam considerações a respeito daqueles casos.

Foi numa dessas noites, onde a lua iluminava mais que o normal, que uma história, que já havia sido contada várias vezes, ganhou enfoque e chamou por demais a atenção dos meninos. Depois de várias conversas um expectador que chegasse ali no exato momento ouviria o seguinte da boca do velho espanhol:

─ Todos meus antepassados estão naquele cemitério. Meus irmãos, meus pais e mais um monte de amigos. Foi a maldita malária que acabou com isso aqui. Se não fosse pela malária Monte Belo seria Rio Preto, foi por Deus que eu sobrevivi.

Depois de uma pequena pausa os mais velhos consentiram com a cabeça e ilustraram o fato com algumas passagens curtas que envolviam seus familiares. Mas, Juan Armando prosseguia:

─ Quando meu filho José nasceu, em 1910, Monte Belo atraia gente de todos os lados. A terra era boa e barata, o café produzia em abundância e a cidade não parava de crescer. As máquinas de beneficiar não paravam, as oficinas mecânicas estavam cheias de serviço e a igreja velha estava sendo construída. Melhorou ainda mais quando os trilhos chegaram a Rio Preto em 1912. Aqui era um posto de passagem para o café chegar lá. Muitos compradores de Rio Preto se hospedavam aqui para fechar seus negócios, que não eram poucos.

De repente, uma interrupção! E o Dr. Benito? Já estava aqui? O velho espanhol explicou:

─ Dr. Benito chegou aqui em 1910 e se mandou em 1925, quando a coisa ficou feia mesmo. Nesta hora ele pensou em se mandar como muitos outros, pois todo

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dia tinha gente morrendo. A população alarmada escolhia ou Nova Itapirema ou Nova Aliança para se mudar, muitos deixaram as propriedades porque estava demorando a vender. Olha, é só ir ao cemitério e ver o tanto de cruz que tem lá.

No meio da turma uma pessoa quis saber mais sobre o tal doutor e questionou o velho que relatava as histórias:

─ Já ouvi falar que o Dr. Benito não era doutor coisa nenhuma.

Juan corrigiu: ─ Era sim. Formou-se lá na Itália, médico

diplomado. Veio para cá para fugir de uma tal guerra. Verdade que muita gente morreu nas mãos dele, mas muitas foram curadas. Lembro de um cara que chegou aqui com a marca de um coice de cavalo no peito que assustava, Dr. Benito, com um sistema de ventana, curou o homem.

O velho Juan Armando, deu um suspiro, como quem se lembrasse de algo muito triste e falou:

─ Uma vez vi algo que me impressionou. A maldita malária não perdoava nem criança, o filho de um português que tinha uma fazenda lá pelos lados da Guajuvira padeceu a noite inteira de febre, de manhã o farmacêutico foi lá e aplicou-lhe uma injeção, quando foi na hora do almoço o menino de 9 anos morreu. Passamos a noite bebendo o guri, pela manhã enrolaram o menino numa mortalha e rumamos para o cemitério. No meio do caminho o tempo foi fechando, fechando com nuvens tão carregadas e escuras que o dia virou noite, a subida do cemitério parecia intransponível. Barro e mais barro, quando vimos, a turma que carregava o menino escorregou e o defuntinho caiu no barro. Cena chocante! Uns viraram a cara, as mulheres choraram. Até que limparam o corpo do menino tornaram a enrolá-lo na mortalha e continuaram o trajeto no meio da chuva. Escutei quando a mãe do menino pediu a São Francisco de Assis, santo de sua devoção, para que parece de chover. Poucos minutos

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depois a tempo começou a abrir. Quando chegaram ao cemitério a cova ainda tinha um pouco d’água no fundo, o coveiro improvisou uma cobertura e não foi suficiente. Praticamente o anjinho foi enterrado na lama. Sua mãe, aos choros prometeu comprar uma imagem de São Francisco de Assis e colocar na cova do mortinho e assim o fez algumas semanas depois. Porém, passado alguns meses roubaram a imagem do santo e conforme contam choveu tanto que o Borá quase chegou na fazenda do Dionízio. Depois ouvi comentários que os ladrões acabaram se afogando lá pelos lados da antiga Itapyrema, no fartura. Até pouco tempo eu sabia onde estava o túmulo do menino, agora já não sei mais. Acho que está do lado daquele túmulo grande de mármore, por muito tempo uma pessoa manteve o túmulo arrumadinho, agora faz muitos anos que abandonaram de vez. Ficou como todos os outros do cemitério.

Quando os garotos ouviram a história do falecimento do menino logo pensaram. Nossa! Tinha mais ou menos a nossa idade. Quem topa ir lá agora procurar o túmulo dele? O mais velho deles propôs. A turma de garotos ficou meio dividida, mas quando os corajosos partiram rumo ao campo santo os outros toparam na hora.

Ao todo eram sete garotos, Mário estava entre eles. Subiram a colina um quilômetro acima e avistaram alguns túmulos rodeados de mato e carcomidos pelo tempo. Pararam, analisando o reflexo da luz nos mármores que já estavam se soltando das sepulturas. Faltava coragem para passar a cerca de arame e procurar a cova do garoto. Logo um disse:

─ E se não for verdade? Mário de pronto defendeu o avô: ─ Meu avô não mente! Então entra você primeiro. O garoto

questionador falou. Mário, na maior demonstração de coragem de

toda sua vida vazou a cerca e rumou para o túmulo que mais se destacava naquele cenário sombrio e

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aterrorizante. Só depois que Mário estava no meio do cemitério é que os demais garotos entraram, apenas dois ficaram do lado de fora.

Ao andarem no meio do cemitério tropeçavam nas cruzes de ferro que demarcam locais de sepultamento, o mato estava na altura dos joelhos, a visão era facilitada pelo luar excepcional daquela noite. Chegaram próximo a única referência que o avô de Mário havia dado ─ o túmulo grande de mármore. O coração de Mário estava acelerado. Não era diferente com outros garotos. É aqui, um falava. Vamos embora, outro dizia. Por fim, um clima de tensão tomou conta de todo mundo. O máximo que podia acontecer era eles saírem correndo e se machucar em uma das cruzes fincadas no chão. Um garoto tropeçou numa das cruzes e deu um grito que quase pôs todos a correr, porém mantiveram a calma. Mário se abaixou para ver um reflexo da lua e resolveu tocar no objeto que refletia o luar. Meio trêmulo, tateou com as mãos e verificou através do tato que se tratava de algo com formato meio arredondado que cabia em sua mão direita. Os outros observavam apreensivos. Mário foi se erguendo e levantando a mão que segurava o objeto, quando a lua o iluminou plenamente, houve a confirmação! Tratava-se de uma cabeça de santo.

Olharam um para o outro e não tiveram dúvidas. Era o túmulo do garoto. Mário tacou o resto de imagem longe. Contiveram o tumulto e conseguiram caminhar rápido, mas não correndo, até a cerca. Quando estavam atravessando a cerca, os dois garotos que ficaram para fora começaram a interrogá-los, eles, naquele cuidado acrobático para atravessar a cerca sem se machucarem, estavam em pleno silêncio. O pescoço de um deles se voltou para o céu, perceberam que a lua se escondia atrás de uma imensa nuvem. A noite agora estava escura! No meio da turma um falou:

─ Meu Deus! Vai chover. Mal deu tempo de dizer a frase e dispararam numa corrida alucinada rumo a Monte Belo. Na baixada, próximo ao rio, começaram a

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sentir os primeiros pingos e quando avistaram as luzes das casas a água desabou em forma de tempestade.

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Capítulo IV. A festa junina.

Quando José Sanches vendeu o pequeno comércio em Nova Itapirema, Mário teve um sentimento estranho. Parecia mais com alegria do que com tristeza. Ficaria longe dos amigos que fizera ali, mas teria mais tempo para se divertir em Monte Belo. Por essas datas, Mário tinha 11 anos. Seu pai, um homem sisudo, achou que aquilo ali não daria mais nada. Pensava: vou para Rio Preto e monto alguma coisa por lá. Foi assim que na primeira oferta vendeu aquele armazém que tinha desde tabaco até varas de pescar e gelo. Era um homem que achava que os filhos tinham que ajudar, Mário sabia disso e quando o seu pai falou que iria ficar um ano intero sem fazer nada a alegria do garoto foi reforçada.

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Aquele homem de 41 anos nunca tivera férias na vida. Sua trajetória era marcada por trabalhos excessivos. Quando seu pai, Juan Armando, dividiu o sítio entre os irmãos, logo ele adquiriu aquele prédio em Nova Itapirema e dali nunca mais saíra. Agora José Sanches estava enjoado daquela vida. Sua obsessão era montar algo em Rio Preto, maior e mais promissora. No ano que se seguiu, Mário conheceu o verdadeiro sentido da palavra liberdade. Acordava cedo, chamava um ou dois amigos e iam caçar passarinhos pela redondeza de Monte Belo, às vezes voltavam só ao cair da noite. Quando estavam cansados de caçar iam pescar, quando se cansavam de pescar faziam pipas e se alegravam ao vê-las no ar. Nas redondezas de Monte Belo possuía bons rios onde eles nadavam, sítios e fazendas onde as pessoas não se incomodavam de ver algumas crianças andando por ali, quase sempre atrás de frutas ou armando algumas armadinhas para pegar pequenos animais e pássaros. As noites continuavam as brincadeiras, ora de esconde-esconde, ora de rela-rela, outras vezes de salva-pega. E após gastar tanta energia se aproximavam do bar para ouvir as histórias. Um dia quando Mário acordou notou que sua mãe conversava com a dona Cida preta. Era a festa junina que estava prestes a acontecer. E a dona Cida vinha pedir ajuda em gêneros alimentícios como desde há muito tempo acontecia. A festa seria daqui a cinco dias, num sábado. Mário se propôs a ajudar e fazer alguma coisa, dona Cida consentiu e falou que ele poderia ajudar seus filhos a construírem a barraca de bambu que sempre era coberta por uma imensa lona. No outro dia, Mário e alguns de seus amigos estavam completamente envolvidos nos preparativos para a estrutura da festa. A arrecadação de prendas, milho, amendoim, fubá; entre outros, acontecia em ritmo acelerado. Todos queriam ajudar para poder participar com ar de quem contribuiu. Mário foi buscar bambu com os filhos de dona Cida lá no bambuzal do outro lado do Borá. Os filhos de

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dona Cida eram mais ou menos dez anos mais velhos que Mário. Por isso acabavam fazendo o trabalho mais pesado de cortar e transportar, a Mário cabia mais carregar algumas ferramentas e alguns pedaços menores que iam caindo pelo caminho onde se arrastavam os bambus. Praticamente foram os filhos da dona Cida que construíram a barraca, como faziam todos os anos. Algumas vezes Mário até atrapalhava ao invés de ajudar, mas sua presença ali era querida. Sempre precisavam de um moleque para buscar alguma ferramenta no vizinho ou para se divertirem vendo o garoto meio atrapalhado com uma cavadeira na mão tentando furar um buraco no chão batido. No sábado de manhã estava tudo pronto para a festa. A barraca construída, mulheres envolvidas com as comidas e bebidas e a companhia de violeiros já estava afinando os instrumentos. À tarde o vilarejo começou a ficar mais movimentado, aparecia gente de todo lado, até de Rio Preto. Devia ser parente de alguém ali e foram convidados. Depois de Mário ter passado o dia envolvido com aquele evento, foi tomar banho. Vestiu uma roupa que ele achava bonita e foi para a festa. Logo começaram a chegar seus amigos e eles presenciaram quando Mauro, filho da dona Cida, foi acender a famosa fogueira de São João. Mauro era um rapaz de uns vinte dois anos, meio atrapalhado e gozador. Apareceu com três litros de gasolina perguntando se algum moleque queria acender fogueira para ele. Quando um amigo de Mário se candidatou para realizar tal feito, Mauro explicou que era brincadeira. Pois se tratava de tarefa para adulto. O rapaz despejou os três litros de gasolina sobre a madeira de forma bem homogênea, olhou para os garotos que estavam ansiosos, deu um breve sorriso e riscou o fósforo. Os garotos se afastaram um pouco com receio do que poderia acontecer. Quando Mauro jogou o fósforo na madeira uma explosão se fez ouvida lá onde

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estavam se preparando para rezar o terço. Mauro saiu batendo as mãos nas sobrancelhas queimadas e se afastado rapidamente de costas, a ponto de atropelar e cair em cima de alguns garotos. E a festa seguia cada vez mais animada. O momento de respeito era a hora de rezar o terço, normalmente eram as mulheres que de posse de bandeiras e imagens de santos se empolgavam numa cantoria repetitiva. Para os garotos que estavam com Mário aquilo não fazia muito sentido. Até que finalmente acabaram as rezas. Iria começar a comilança. Era moleque com paçoquinha, pipoca, milho assado, bolo de fubá, chocolate quente e, de vez em quando, um conseguia um pouco de quentão que era dividido com a turma. Normalmente ficavam próximos à fogueira. Depois da apresentação da quadrilha, onde os adolescentes participavam em maioria, acontecia a famosa queima de fogos. Na verdade aquele povo era meio sem juízo, os homens faziam um alinhamento, um do lado do outro, acendiam os rojões e era bomba para todo lado. As crianças ficavam próximas para pegar os rojões depois de disparados. Chegavam a formar fila atrás dos soltadores de rojão para conseguir um deflagrado. Depois que eles conseguiam esses rojões, colocavam uma bombinha de menor intensidade dentro e imitavam os adultos.

Desde criancinha Mário acompanhava aquelas festas tradicionais que dona Cida promovia. Mas aquela tinha um sentido mais especial, pois, em sua cabeça ele havia contribuído. Ouviam-se casos de muitos rojões que explodiam antes de sair ou a poucos metros da mão de quem os soltavam. Porém, ele nunca havia presenciado algo assim.

Mário era o segundo da fila para adquirir um rojão deflagrado. Na sua frente havia uma jovem de mais ou menos treze anos, esperando para ganhar o seu objeto de diversão. De repente, uma explosão ensurdecedora. A bomba do rojão saiu para trás e

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acertou a mão da adolescente. Cheiro de pólvora e fumaça tomaram conta do lugar. Logo, ouviram-se gritos. A moça com alguns dedos pendurados escorrendo sangue corria de encontro a sua mãe.

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CAPÍTULO V. DR. BENITO

ZANCHETTA

A Itália do ano de 1908, vivia o clima de

inconformismo por não ter participado à altura do Reino Unido, França e Bélgica no neocolonialismo. A política de alianças havia começado e gradativamente as nações europeias se armavam esperando o pior. Eram eventos que anunciavam a grande primeira guerra mundial.

Na cidade de Nápoles o jovem Benito comemora sua formatura. Agora ele era doutor cirurgião. No meio de uma festa, onde se bebiam e cantavam com parentes e amigos, Benito estava meio isolado. Apenas seu pai comparecera na ocasião de sua formatura.

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O jovem Benito era filho bastardo. Um alto oficial do exército italiano se aventurou com sua jovem empregada de apenas 15 anos e a menina engravidou.

Coronel Amedeu Zanchetta não era homem mau. Prometeu a garota que daria toda a assistência, mas que não havia possibilidades de ficarem juntos. Ele era casado e tinha mais três filhos. A moça pobre também não insistiu e nem forçou nada. E, da forma mais sutil e capciosa possível, deu um jeito de despedir a moça. Após isso, arrumou um lugar numa pequena cidade próxima a foz do rio Pó e a servia de tudo. Para a moça a situação só melhorou. Às vezes ele a visitava semanalmente, quando não dava para vê-la mandava dinheiro para que alguém entregasse.

Em outubro de 1886, a moça começou a se sentir mal e pediu ajuda ao seu vizinho. Um italiano de 20 anos que trabalhava como ferreiro próximo a casa dela. Logo esse rapaz pediu a parteira da região que comparecesse à pequena casa onde a moça morava. O rapaz ficou apreensivo sentado do lado de fora da casa. Parecia até o pai.

Bem que eu podia ser o pai. Ele Pensava! Entendia a situação da moça e que ela estava gestando um filho de um figurão importante. Quem era ele para ter uma moça daquela! Sem dinheiro nunca conseguiria se aproximar.

A proximidade dos dois jovens fez com que eles se conhecessem de forma meio perigosa. Ela tinha medo do coronel, mantinha a fidelidade exigida por ele. Mas como seria o seu futuro? Ele era um homem bem mais velho. Será que ele a queria como uma amante depois que o filho nascesse? Essas eram as indagações de Risoleta Mingle. Por outro lado, o jovem Vito sempre lhe prestava alguns favores de modo muito especial. Não era raro os dois se olharem de forma denunciadora, com interesses carnais. Porém, a aproximação dos dois nunca aconteceu.

Vito começou a escutar gritos mais alto que o normal. Ficou mais apreensivo. Pensava em entrar no

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quarto, mas tinha medo de atrapalhar, a parteira sabia o que fazer. Logo percebeu que o clima não era dos bons. Uma auxiliar da parteira saiu do quarto com aspecto assustador, pegou uma vasilha de água e quando ia entrando de volta ao quarto Vito lhe perguntou:

─ O que está havendo? ─ A menina não está conseguindo! Cinco minutos depois Vito ouviu choros de

criança. Ficou aliviado. Alivio que se acabou quando a parteira saiu chorando e lhe falou:

─ Ela era muito nova meu rapaz! Uma semana depois coronel Amedeu ficou

sabendo do ocorrido, rumou para lá e encontrou um garotinho aos cuidados da família do ferreiro Vito. O que fazer. Pensava o coronel. E, num ímpeto, resolveu abrir o jogo com aquela família simples e propôs para que eles criassem o garoto. Daria uma boa quantia de dinheiro e o visitaria constantemente.

Foi assim que o Dr. Benito foi criado. Num pequeno vilarejo, entre vinhedos e plantações de trigo, vendo aquelas pessoas trabalharem o ferro com habilidade. O garoto achava que o coronel Amedeu, seu pai, fosse um padrinho. E sabia que esse padrinho, pelo menos três vezes por ano ia lá visitá-lo.

Quando Benito completou 10 anos uma visita de seu “padrinho” mudaria aquela vida bucólica. Coronel Amedeu contou tudo! Nos pormenores. A família do ferreiro não aprovou, porém não interferiu. Benito não se assustou muito para uma criança de 10 anos. Neste dia Coronel Amedeu levou-o para Nápoles, a despedida foi triste, mas todos sabiam que seria melhor para o garoto.

Em Nápoles coronel Amedeu providenciou um emprego de fachada, só para o garoto ter onde ficar, e patrocinou todos os estudos necessários para que ele progredisse. O garoto o surpreendeu tanto que estudou mais que todos os seus filhos do casamento e agora, em 1908, coronel Amedeu contemplava seu filho se formando e se lembrava de tudo que se passava até ali.

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Coronel Amedeu se aproximou de Benito e disse:

─ Filho. Errei demais na minha vida. Porém, sinto-me feliz com seu sucesso.

─ Não tenho mágoa nenhuma de você pai, se não fosse por ti eu não seria doutor.

Um doutor naquela época se assemelhava a um semideus. Com certeza dinheiro nunca lhe faltaria.

Três meses após sua formatura, Dr. Benito clinicava na própria cidade de Nápoles. Quando recebeu recado em sua clínica que uma mulher de um homem muito importante estava passando mal. Correu até lá. Constatou que algo estava errado. Pois a suposta paciente não estava aparentando problema algum.

Meia hora de conversa e ele percebeu qual o problema daquela jovem mulher. Era um problema afetivo. Casada com um homem mais velho por encomenda, há tempo não se sentia como mulher, e, sem que Dr. Benito percebesse, ela já o cobiçava há tempo.

O amor aconteceu na própria cama da falsa paciente. Talvez foi o maior descuido de Dr. Benito. De repente, a porta do quarto se abriu bruscamente e Dr. Benito se deparou com um velho meio truculento armado com um revólver.

─ Vou matar os dois, o velho disse! Dr. Benito conhecia o velho. Era comerciante da

alta elite napolitana. Pensou que seria o seu fim. ─ O velho atirou e o projétil se alojou no crânio

da infeliz que ele estava possuindo. Gotas de sangue respingaram no seu rosto do Dr. Benito e, enquanto o velho recarregava o revólver, Dr. Benito se atracou com o marido traído numa brava e trágica luta que acabou com o velho caindo da janela do sobrado e espatifando a cabeça no chão napolitano.

No final de 1909, Dr. Benito estava numa localidade que seria impossível alguma autoridade italiana descobri-lo. Era São José do Rio Preto, sertão de Araraquara. Havia passado por Santos, São Paulo,

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Araraquara e Ribeirãozinho. Em Ribeirãozinho ficou sabendo que a ferrovia estava parada no meio do caminho para Rio Preto, fazendo com que ele terminasse a viagem no lombo de um cavalo.

Alojou-se no Términus hotel, com pouca roupa e seus documentos que comprovavam sua habilitação. Dois meses na cidade foram suficientes para perceber que ali existiam muitos fazendeiros italianos. Temeu pelo pior. Afinal de contas era um criminoso e aquele sertão estava muito movimentando para se esconder.

Quando ficou sabendo que a ferrovia estava a caminho de Rio Preto, resolveu se aprofundar mais. Depois de tirar algumas informações, que para consegui-las tomou o cuidado necessário, descobriu que um lugar isolado, mas com possibilidades de clinicar devido ao desenvolvimento cafeeiro. Era uma tal de Monte Belo. E assim, em 1910, Dr. Benito alugava uma sala em Monte Belo e anunciava que agora a localidade possuía médico.

Só saiu dali em 1925. Desta vez não fugia de nenhuma autoridade, mas sim de protozoários do gênero plasmodium, que transmitiu a malária para milhares de pessoas na região matando um bom número delas. Para fugir da malária Dr. Benito não fez nenhuma viagem transcontinental. Rumou para Rio Preto, lá constatou que estava com a maldita malária. Três meses depois o filho bastardo do coronel Amedeu era enterrado no mais novo cemitério de Rio Preto. Lá em cima na avenida Saudade, acompanhando seu corpo meia dúzia de amigos que fizera em Monte Belo.

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Capítulo VI. Outras histórias do velho Juan.

Numa daquelas noites em Monte Belo, na

mesma mercearia, com os mesmos garotos rodeando os adultos, uns no banco de madeira lá fora e outros sentados nas cadeiras lá dentro. Bom quase tudo igual, a não ser por uma excessiva quantidade de aleluias que estavam em uma revoada como nunca antes vista. Essa enorme quantidade de insetos atraía os sapos com os olhos mais esbugalhados e os curiangos acompanhados dos morcegos voavam tão baixo que às vezes parecia que iam acertar a cabeça de alguém.

O velho Juan foi questionado sobre a história de quem teria fundado Monte Belo, era meio que consenso entre a maioria da população a velha história que Monte Belo surgiu com um cemitério. Mas como? O velho Juan com seus 75 anos era então o morador mais velho de memória mais lúcida. Havia nascido do dia 6 de janeiro de 1875 e, se hoje ele era o contador de histórias oficial

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da localidade, outrora quando criança e jovem, fora um dos que mais ouvia as histórias. Assim, numa tradição oral, aquilo que ele ouvia começou a contar depois de velho.

E o velho espanhol começou: - A verdade é que isso aqui era um bando de

gente espalhada e foi somente quando resolveram fazer o cemitério, o mesmo que está aí até hoje, é que houve uma aglomeração de casas. Isso aqui era o fim do mundo. Lembro que ficamos sabendo da proclamação da república no ano de 1895, ou seja, seis anos depois.

No meio da turma a pergunta sobre os coveiros. - Como é essa história de que quem fez o

cemitério foi enterrado nele e todos seus descendentes a partir daí se tornaram coveiros?

O velho não hesitou. -Verdade! Quando eu nasci foi a ano que

Francisco Cândido da Silva, bisneto de quem fez o cemitério, e tinha o mesmo nome do bisavô, assumiu como coveiro, dizem que assumiu com 15 anos de idade, quando seu pai morreu. Bom, os mais velhos daqui se lembram dele. Morreu em 1930... uma interrupção brusca... e um questionamento dos mais estranhos.

-Já ouvi uma conversa, seu Juan; olha, não se ofenda não, pois também já me disseram que o senhor não gosta de falar sobre isso, mas dizem que o Chicão (apelido do último coveiro, Francisco Cândido da Silva) disse para o senhor quem matou o bisavô dele.

O velho Juan coçou a cabeça branca meio careca e disse:

-Isso é um verdadeiro mistério. Na verdade o que se sabe é que depois de uma festa lá pelos anos de 1820, já pensou quando tempo faz, o velho português apareceu morto lá perto do rio com uma faca fincada nas costas e nunca, nunca mesmo, ninguém soube quem foi. A história que me irrita, às vezes, é que nos últimos tempos o Chicão vinha bebendo muito, veja que ele não pegou malária e morreu novo, tinha uns 60 anos, quer dizer, a cachaça o matou. Bom, mas quando ele bebia

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me pegava para cristo e me contava um monte de coisa, certa vez me falou de um livro, não sei, tipo... diário... os escritos que contam a vida da pessoa, e esses papéis falavam da vida do bisavô dele, mas era o próprio Chicão que tinha escrito, veja só, ele nem tinha muita leitura como ia escrever...outra interrupção brusca:

-Mas o senhor chegou a ver o tal livro? -Vi uma vez, o Chicão dizia que entregou para

um povo lá de Rio Preto, acho que eram os donos lá da fazenda onde ele morava, acharam os papeis antigos e com histórias legais e prometeram escrever mais certinho e entregar para ele de volta. Pelo que sei nunca devolveram.

Outra pergunta pertinente: -Ô Juan, sua nora é meio parente do Chicão não

é? -Ela é neta do Chicão! É! Claro! Continuou o

velho espanhol. Acontece é que ela é filha do filho que o Chicão teve fora do casamento. O Tião galinha, pai da minha nora, nasceu... acho lá por volta de 1881, a mãe dele morreu no parto e o Chicão deixou o moleque ser criado pela avó da moça. Se for ver não é fora do casamento, não chegaram nem a casar.

Entre a turma, uma voz: -Meu Deus que rolo! Então esse moleque aí, o

Mário né, é bisneto do último coveiro que Monte Belo teve e que era bisneto do primeiro homem que foi enterrado no cemitério?!

-É isso mesmo. Confirmou o velho espanhol. E continuou de uma forma até didática:

-Vejam, o Mário é bisneto de Francisco Cândido da Silva que era bisneto de Francisco Cândido da Silva.

Sorrisos e despedidas. Era chegada a hora de ir embora.

Pena que neste dia Mário não ouviu essa história e sua mãe não gostava muito de falar sobre isso.

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Capítulo VII. Em fim Monte Belo.

Mário despertou do seu sono quando o dia

amanheceu em Catanduva, a 60 quilômetros de São José do Rio Preto. Na ansiedade para chegar ao seu destino puxou a cortina de lado ficou admirando a paisagem e imaginando como poderia estar Monte Belo.

Aquele homem criara uma Monte Belo para ele, parece que padecia de um mal que assolou Monte Belo no início do século XX. A falta de informações coerentes, sistematizadas e atualizadas. Tinha tanta certeza que aquele lugar havia progredido que nas três vezes que esteve em Rio Preto, depois de adulto, nunca questionou sobre um possível fracasso daquela cidadezinha imaginária que ele havia criado.

Normalmente as pessoas têm um mundo mental próprio, uns os criam e incorporam no seu dia a dia, achando que tudo vai bem, que é amado e que ama, que tem um bom emprego ou que seus amigos realmente se preocupam com ele. Outros, como Mário, criam um

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mundo mais afastado e colocam nele elementos necessários para sua satisfação. Dessa forma, criamos coragem para viver.

Monte Belo era esse mundo para Mário. Era ali, naquela bela cidadezinha, onde havia passado os primeiros anos de vida que haveria de morrer.

Meia hora depois de Catanduva começaram a aparecer os primeiros bairros de Rio Preto. Engenheiro Schmitt, um distrito, formava uma mancha urbana contígua ligando-se com os primeiros bairros que se avistavam ao chegar a Rio Preto, Vila Toninho, Cristo Rei, São Marcos. Vários salões comerciais se localizavam na beira da Washington Luís. Ao passar o viaduto da BR 153, o ônibus entrou pela avenida Murchid Honsi e seguiu pela marginal até a avenida Alberto Andaló. Quando o ônibus entrou por essa avenida com destino à rodoviária, Mário estava deslumbrado com o progresso. Estava chegando a São José do Rio Preto pela quinta vez, a última há 20 anos. Aquele progresso o animava em encontrar Monte Belo com significativo desenvolvimento.

O ônibus chegou à rodoviária de São José do Rio Preto às 6h e 45m do dia 1º de dezembro do ano de 2000. No meio daquele monte de gente, Mário subiu a plataforma central, numa escadaria que fazia curvas e abrigava uma galeria de artes chamada Alcides Rozani, nos guichês começou a se informar de horários de ônibus para Monte Belo.

Para sua surpresa ninguém conhecia Monte Belo. Como!? Ele pensava. Até que num guichê ele viu um nome que conhecia, Nova Itapirema. Aproximou-se e perguntou ao jovem que atendia:

─ Esse ônibus de Nova Itapirema passa por Monte Belo?

─ Monte Belo? Estranhou o rapaz fazendo um gesto de desconhecimento.

─ É! Mário respondeu e continuou: ─ Fica ali perto de Nova Itapirema.

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─ Eu não conheço não meu senhor. O jovem respondeu.

Nisso, um funcionário que estava no fundo do guichê veio socorrer Mário.

─ O senhor quer ir a Monte Belo? Não tem ônibus para lá. Disse o funcionário mais velho.

─ Como? Insistia Mário. ─ Que empresa vai colocar ônibus para lá!

Completou o funcionário e prosseguiu: ─ O senhor pode ir até Nova Itapirema e pegar

uma carona até lá. Mário aceitou a sugestão sem questionar

verbalmente, mas na consciência ele ficou atormentado. Pegou sua mala, que muito estava incomodando, desceu a plataforma e ficou esperando o circular para Nova Itapirema.

Quando entrou no circular parecia que Mário estava em transe. Foi só aí que ele começou a questionar tudo aquilo que havia criado em sua mente para Monte Belo. Lembrou-se das histórias dos velhos da mercearia, começou a pensar naqueles casos sobre a malária. Será que a malária acabou outra vez com a cidade, o que pode ter acontecido? Não se atreveu a perguntar para ninguém e seguiu viagem. Quando o ônibus passou por Bady Bassitt Mário notou o grande crescimento daquela cidade, estava quase emendada com Rio Preto, passou por Nova Aliança e às 10h estava descendo em Nova Itapirema.

Ao descer no pequeno terminal a primeira coisa que Mário avistou foi as árvores onde ele brincava. Foi só aí que ele reconheceu que na verdade as lembranças daquelas árvores eram de Nova Itapirema e não de Monte Belo. Ficou uns quinze minutos olhando aquele lugar e quando começou a escorrer lágrimas de seus olhos, enxugou-as com as costas das mãos e rumou para uma mercearia na esquina. Ao entrar percebeu que as pessoas já estavam olhando para ele há algum tempo, cumprimentou-os e perguntou o horário de ônibus para

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Monte Belo. Ouviu do dono do estabelecimento que estava no balcão:

─ Faz trinta anos que não corre ônibus para lá. Silenciosamente Mário estremeceu. Criou forças

e começou a questionar: ─ O que aconteceu com aquela cidade? O comerciante e mais umas pessoas de idade

entre 40 e 60 anos começaram a ficar curiosos. Um velho, mais ou menos da idade de Mário foi o primeiro a perguntar:

─ O senhor não é da região? ─ Morei em Monte Belo até meus 15 anos. ─ Ah!...O velho balançou a cabeça e continuou

numa explanação mais longa: ─ Até 1960 ainda tinha algum movimento por

ali, depois as pessoas que restaram foram se mudando para Rio Preto. Agora tem por lá um boteco que só vende pinga e só fica movimentado nos finais de semana que tem jogo no campo lá na praça. Acho que moram umas 50 pessoas por aqueles lados.

Mário ouvia em silêncio. Quando um homem de uns cinquenta anos começou dizendo:

─ Meu avô e meu pai nasceram lá. Eles sempre me diziam que aquilo era para ser Rio Preto, mas veio a malária e acabou com tudo. Agora quem quiser ir lá ou vai de carro ou pega carona com o ônibus da escola.

Mário teve que optar pela segunda opção. Perguntou:

─ A que horas passa esse ônibus da escola? ─ Ele sai daqui ao meio dia para buscar a

molecada e levar para escola de Nova Aliança. Respondeu o comerciante.

Mário questionou se poderia deixar a mala ali e depois pegava. O comerciante consentiu. Enquanto esperava o ônibus comeu alguns salgados, tomou refrigerante e contou algumas partes da história de sua vida. Por incrível que parece não conheceu ninguém por ali. O comerciante fez alusão a umas pessoas que eles conheceram em comum, mas que

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agora estavam em Rio Preto. Aquilo parecia outro mundo para Mário. Um dos frequentadores daquela mercearia lembrou-se de um velho que morava ali havia muito tempo e que talvez podia conhecer alguém que Mário também conhecia. Porém, Mário teve que pegar o ônibus.

Meio sem graça perguntou para o motorista quanto era, esse respondeu que não era nada, que aquilo era um procedimento comum na localidade, muitos faziam isso. O motorista, após algumas conversas alertou Mário que o último ônibus de Nova Aliança para Rio Preto era às 20h. Depois só no outro dia.

O decorrer do percurso Mário percebeu que haviam asfaltado a estrada de acesso a Monte Belo. Quanto mais o ônibus se aproximava mais Mário se sentia mal. A ponto de o motorista perceber suor excessivo no pobre homem e perguntar se estava tudo bem. Mário consentiu com a cabeça.

A paisagem estava muito mudada, as matas diminuíram muito, restavam alguns capões isolados. Quando o ônibus iniciou a curva depois de um capão de mata à direita Mário teve a primeira visão de Monte Belo depois de 45 anos. O ônibus se aproximava. Mário percebeu poucas casas. Algumas crianças estavam no canto da praça. O motorista percebeu o silêncio e disse:

─ Chegamos. Estarei aqui às 18 horas para trazer a molecada. Se o senhor não conseguir carona eu te levo de volta.

Mário desceu ficou imóvel durante uns dez minutos olhando a pequena capelinha da praça com o correto ao lado. Aquele quadrilátero pouco mudara. A mesma capela, o mesmo coreto, o campo de futebol e o campo de bocha. Tudo até bem conservado. Porém, ao redor da praça o quadro era deprimente para Mário. Dos três salões comerciais que estavam de pé em um funcionava um bar e os outros dois havia famílias morando neles, contou umas seis casas nas ruas que formavam o quadrilátero. Logo seus olhos se voltaram para a casa onde nasceu. Não achou nada. No lugar

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apenas alguns arbustos, muito mato e uns cavalos pastando.

Começou a andar e o povo ficava lhe olhando. Não foi possível conter as lágrimas. Deu uma volta no quadrilátero e não conseguiu contar mais que dez casas. Nem as ruínas, nem os alicerces das casas apareciam. Alguns cachorros latiam olhando para aquele homem cabisbaixo. Aproximou-se do único bar. Entrou e não viu ninguém. Parecia bem grande, mas com pouca mercadoria, não reconhecia bem o lugar, estava muito abalado. Saiu, começou a olhar a fachada. Notou melhor e relembrou o passado. Era a mercearia onde ele escutava os casos dos velhos! Parte havia sido demolida e reconstruída, mas aquele banco de aroeira, aquele degrau onde ele tanto se sentou, aquele balcão. Não havia dúvidas. Levou um susto quando uma menina de uns 8 anos, que estava lhe notando a algum tempo, gritou:

─ Mãe! Tem um homem aqui. Como se estivesse acordado de um sonho Mário

olhou para menina e logo atrás dela viu uma jovem que aparentava uns 25 anos, jovem de traços bonitos, um moreno bem brasileiro, cabelos encaracolados e vestida bem simplesmente. A jovem olhou para aquele velho e disse:

─ Olá! O senhor deseja alguma coisa? Por algumas frações de segundo Mário não disse

nada. A moça insistiu: ─ Está tudo bem com o senhor? O senhor

precisa de alguma coisa? Mário retornou ao estado normal e disse: ─ Sim...sim...é...estou bem. A senhora tem

refrigerante? ─ Tenho sim senhor. Mário entrou no estabelecimento e lentamente

começou a tomar um guaraná tubaína fabricada na região. Reparava em tudo. Lembrava-se do passado, analisava o madeiramento do imóvel. Percebeu que

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havia sido modificado. A moça, analisando aquele velho, tornou a questioná-lo:

─ O senhor conhece a região? ─ A senhora não faz ideia de como era isso

daqui! Falou o velho morador de Monte Belo e prosseguiu num monólogo de uns 10 minutos onde a jovem mãe e sua filha escutaram atenciosamente. Após Mário contar boa parte da história que ele conhecia de Monte Belo imperou um silêncio de alguns segundos que foi quebrado pela menina:

─ É verdade mãe? ─ Os antigos dizem que sim minha filha. Depois, Mário conversou com alguns

moradores, perguntou por conhecidos e constatou que aquela gente morava ali há no máximo 20 anos. Os mais velhos tinham mudado dali. Percebeu, em suas conversas, que alguns moradores estavam ali porque ocuparam casas que estavam vazias. Outros porque não tinham onde morar e um grupo, bem reduzido, havia comprado terras ali porque ficava próximo aos rios e faziam de suas casas lugar de veraneio. Perguntou pelo cemitério e teve a notícia que estava abandonado a mais de 60 anos. Essa foi a única notícia que não foi novidade para Mário, pois realmente antes dele nascer já não enterravam mais pessoas naquele lugar.

Sentado num banco de madeira da praça analisando o cair da tarde, com as mesmas árvores de troncos retorcidos de 50 anos atrás, Mário percebeu quando o ônibus escolar chegou. Tornou a pegar carona e rumou para Nova Itapirema, onde pegaria o circular para Rio Preto às 20h, para procurar um lugar e dormir naquela cidade com mais recursos e menos referências sentimentais que Monte Belo.

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Capítulo VIII. Um mês de grandes reflexões.

Mário se alojou numa pequena pensão no

centro de São José do Rio Preto e durante a primeira semana andava pelo centro analisando o contexto daquela cidade.

Nas suas andanças às vezes sentava-se em um banco de praça e começava a relembrar o passado. Seu olhar fixo no movimento comum do centro da cidade buscava lembranças dos seus 11 anos, quando ia à escola com sua irmã.

Mário frequentou pouco a escola, dos 11 aos 14 anos, quando concluiu a quarta série. Por incentivo de seu pai e de seu irmão mais velho, parou de estudar e começou a arrumar um jeito de sobreviver trabalhando. Quando fez quinze anos sua família se mudou para São

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José de Rio Preto. Mário via nessa mudança um fato tão trágico que parecia ter bloqueado da sua mente. Deixar Monte Belo para trás era a pior coisa e apesar de seus irmãos e seus pais, tentarem convencê-lo de que não havia futuro em Monte Belo, para ele importava mais o lugar do que o futuro. Partiu para Rio Preto contrariado.

Tão contrariado que viu em Rio Preto toda a culpa pela mudança. Aí ele, tipo que em revolta, ou represália, ficou apenas uma semana na cidade. Seguiu com seu irmão mais velho com destino a cidade grande, São Paulo, se era para procurar progresso, como vocês falam, lembrava Mário de dizer aos seus pais, eu vou procurar esse progresso em São Paulo.

Ficou para trás seus pais, sua irmã e seu irmão Clemente.

E durante quarenta e cinco anos de sua vida Mário apareceu na cidade de seus familiares apenas três vezes. Uma para visitar sua família logo quando largou de sua esposa, outra quando seu pai morreu e a última quando sua mãe morreu. Mantinha algum contato por cartas e telefones. Por outro lado, ele contabilizava seis visitas de seus familiares na cidade onde ele estava. Uma quando seu irmão Avelino desapareceu. Nesta ocasião o pai de Mário e seu irmão Clemente estiveram por lá no ano de 1967. Apesar de terem avisado a polícia do desaparecimento, conformaram-se com a suspeita de Mário, o qual dizia ter visto o irmão algumas vezes com a mulher de um militar. E numa época daquelas, em pleno militarismo, era fácil dar sumiço numa pessoa sem deixar suspeitas. Sua irmã passou na casa dele duas vezes, ambas a caminho do litoral, uma ainda quando era casado e outra há uns quinze anos quando Mário já morava sozinho numa pequena casa de dois cômodos. As outras três visitas foram feitas pelo seu irmão Clemente, que parecia ter maior afinidade com ele.

Pobre Clemente. Pensava Mário. Morreu novo e eu nem vim no seu enterro. Pensava também na irmã, a última notícia que teve dela foi que havia se mudado para Mato Grosso do Sul com seu marido e seus filhos.

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Se estivesse viva era a única pessoa familiar que compartilhou um passado em comum com Mário.

Mário analisava o quanto sua família era desunida, desunião que fora transmitida para a família que ele constituiu. Por que tudo não aconteceu diferente? Teria uma resposta para aquela forma de se relacionar com os familiares? E seus dois filhos, com seus seis netos? Esteve tanto tempo próximo deles e pouco desenvolveram vínculos.

Na verdade Mário estava construindo seu passado. Por um momento Mário achou que foi a separação que fez com que a família que havia constituído se desmantelasse. A separação ocorreu quando ele tinha 33 anos. O relacionamento se desgastou. Estava ficando monótono para ambos, sua esposa exigia um retorno financeiro que sufocava Mário. Tinham casa própria e um carro usado, mas não estava bom. Ela queria mais. Mário pensava diferente, era um homem que valorizava momentos de paz, ter um tempo para não fazer nada era tudo para ele. Um ócio que fazia muito bem. Esse era o principal contraste entre Mário e sua esposa. Para ele aquela vida era suficiente, para ela não.

Na tentativa de manter um padrão de vida impróprio para eles sua esposa quase sempre entrava em dívida. Como resultado, para saldá-las, Mário era obrigado a trabalhar mais do que queria. Assim o fez por muitos anos. Apesar dos contrastes a separação ocorreu de forma pacífica. Mário entendeu que Lia não via nele o futuro que ela imaginava, como seus dois filhos eram pequenos, deixou a casa com ela e partiu para uma vida solitária, de poucas aventuras, de poucos momentos felizes, mas com muito aprendizado.

Seis meses depois da separação Lia havia arrumado um namorado no padrão que ela reivindicava. Homem bem sucedido que falava o que as mulheres queriam ouvir, ficava quieto no momento certo e através de inúmeros agrados conquistou para sempre o coração da ex-mulher de Mário. Agora aquela jovem que ele

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havia conhecido quando ele tinha 18 anos e ela 14, nunca mais seria dele novamente. Foi bom! Pensava Mário. Apesar de tudo foi bom.

Um dos momentos mais felizes de Mário foi quando ele tinha 34 anos. Aquelas coisas que parecem impossíveis acontecer aconteceu. Mário trabalhava pintando letreiros em uma grande empresa de publicidade, estava ali há uns três anos e já conhecia uma quantidade razoável de funcionários. Dentre estes, uma linda jovem chamada Sabrina. Ela entrou naquela firma quando então tinha 13 anos, e, apesar da pouca idade, percebia-se naquela adolescente traços de beleza que incomodava qualquer adulto. Naquelas circunstâncias que não dá muito para explicar, Mário desenvolveu uma certa amizade com Sabrina, porém, apesar de achá-la linda, nunca disse algo indevido para ela. Chegou, por algum tempo imaginá-la com uma filha.

Meses antes de Mário ser demitido sua amizade com Sabrina se estreitou. Ela adorava tudo que se relacionava com artes e Mário, apesar do pouco estudo, além de ter habilidades com pintura, conhecia muito de história da arte, e chegaram a conversar muito sobre os grandes mestres da pintura e como havia sido a vida deles. A jovem se empolgava tanto que estava decidida a estudar artes. Mário sempre a incentivava.

Em uma dessas conversas, Mário olhou diferente para Sabrina. Foi apenas neste dia que ele notou que não tinha amizade com uma menina como ele imaginava. Aqueles três anos de convivência com aquela jovem fez com que Mário a analisasse de uma forma não sexual. Isso acontece muito com os pais que não notam que suas filhas se tornaram mulheres.

Diante de Mário havia uma jovem de pele morena que brilhava, olhos extremamente negros, com um sutil estrabismo convergente que lhe conferia um detalhe especial e único, cabelos ondulados no meio das costas e uma voz meio rouquinha. O rosto tinha contornos simétricos, formando um queixinho um

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pouco proeminente, o corpo com características perturbadoras, seios e nádegas perceptíveis e bem distribuídos, encerava aquele contexto de mulher um jeitinho meio estabanado de garota com movimentos rápidos e decididos, sempre se referindo a ele com um sorrisinho malicioso.

Depois de prestar atenção em todos esses detalhes Mário ficou vislumbrado com a jovem. Pensava. Como pôde ter ficado tão bonita! Quando Sabrina fez dezessete anos Mário, despretensiosamente, presenteou-a com uma caixa de bombom e a avisou que cumpria aviso-prévio e dentro de um mês sairia da empresa. Notou algo estranho naquela jovem. A alegria do bombom não foi suficiente para esconder um rostinho que conotava uma certa tristeza com o recado que Mário havia lhe dado. Mário achou que era por causa das conversas, da amizade e do gosto em comum pelas artes que havia provocado aquela sensação na moça.

No último dia de serviço Mário se despediu de todos e deixou Sabrina por último. Esta, meio cabisbaixa, deu-lhe um beijinho no rosto e entregou-lhe um bilhete pedindo para que lesse depois. Quando chegou a sua casa, Mário começou a ler o bilhete e quase não acreditou. Tratava-se de uma declaração de amor. Mário leu dezenas de vezes. Pensou e repensou. Com eu não notei.

As pessoas deixam de se relacionar por dois motivos básicos. Um quando uma pessoa não nos chama a atenção, óbvio, não nos aproximamos. O outro acontece quando achamos uma pessoa tão maravilhosa que desenvolvemos um senso de inferioridade e adquirimos medo de se aproximar. Foi esse segundo caso que agiu nas circunstâncias que Mário estava vivendo.

No outro dia Mário ligou para ela e marcaram um encontro. Nesse encontro surgiu um relacionamento que se tornou o maior presente da vida de Mário. Ninguém entendia. Ninguém explicava. E durante três

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maravilhosos anos teve uma mulher jovem e linda nos seus braços de homem pobre. Viveram maravilhas de causar inveja em qualquer milionário.

Aquela adolescente se fez presente na sua memória cotidiana. Vivia Sabrina! Um colorido diferente era percebido por ele nas paisagens, o fator Sabrina! Tardes e noites singulares. Nos momentos de amor, um envolvimento mútuo, de pureza original, de prazer compartilhado. Noites de amor que finalizavam com os dois abraçadinhos nas madrugadas frias, ambos se acariciando meio descobertos, suas respirações próximas e ofegantes e o que era finalização tornava-se início.

Quantas vezes cenas assim se repetiram! O fim desse relacionamento aconteceu sem

mágoas para ambos. Um beijo numa linda jovem daquela teria sido uma maravilha de momento mágico, eu a tive por três anos, a amei e dei milhares de beijos naquela boquinha. Só tinha que agradecer a Deus e não reclamar. No mais, ela tinha que seguir sua trajetória e não era direito dele forçar um futuro que não agradaria aquela que lhe deu orgulho e prazer que valeriam para toda uma existência em três anos.

Quando Mário voltou em si de suas reflexões notou que o comércio ao redor da praça central de São José do Rio Preto estava fechando. Era hora de ir embora e assim fez.

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Capítulo IX. Feliz natal e próspero ano novo.

Cessada as reflexões as coisas para Mário

pareciam caminhar bem. Conseguiu uns bares para decorar com propaganda de firma de refrigerantes através de uma pessoa que conheceu na pensão, restava um pouco do dinheiro que seu filho havia lhe dado e as perspectivas de trabalho para o ano vindouro eram bem satisfatórias.

Faltando menos de uma semana para o natal conseguiu alugar dois cômodos no fundo de um bar, seu filho foi seu fiador. Comprou cama, geladeira e fogão usados e se sentia muito feliz com essas conquistas. A Boa Vista, bairro onde ele havia conseguido alugar os

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dois cômodos, era próxima ao centro, o que facilitava para Mário ir até ao comércio central ver o movimento, costume que se tornou rotineiro para aquele senhor prestes a completar 61 anos.

Mário estava animado! Apesar da idade avançada para executar um serviço que tinha que subir escadas e enfrentar sol quente ele apresentava boa disposição, gostava de chegar à tardizinha do serviço, tomar uma ou duas cervejas no bar, que era em frente a sua casa e ir para a cidade que ficava, nesta época, aberta até às 22h.

Chovia muito nos últimos dias do século XX, isso não desanimava aquele senhor, com um guarda chuva percorria todas as ruas do calçadão, mais olhava que comprava, como boa parte das pessoas. Às vezes entrava numa loja que vendia produtos de 1,99 e comprava umas bugigangas que não somavam dez reais no conjunto. Mário achava interessantes as marquises das lojas, em alguns quarteirões ele fechava o guarda-chuva e ia seguindo as marquises sem se molhar, apesar de chover relativamente forte.

Gostava de olhar as mercadorias dos camelôs que ficava na praça de baixo, onde as barracas azuis emendavam umas às outras formando um complexo labirinto onde inúmeras pessoas se aglomeravam com duas intenções, comprar e se proteger da chuva.

Quando a chuva passava ele estendia um papel no banco do calçadão da rua Jorge Tibiriçá e ficava notando o movimento. A luz dos postinhos de iluminação e dos enfeites de natal refletiam nas águas que ficam escorrendo ou empoçadas, pessoas apressadas, crianças rindo, crianças chorando, presentes, papai Noel distribuindo balas pela rua. Tudo vivo e animado naquela cidade que Mário só estava começando a conhecer.

Essa foi a rotina daquele homem até na ante-véspera de natal. Na véspera de natal Mário ligou para o seu filho para desejar boas festas como de costume da população brasileira. Após os cumprimentos formais

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Mário percebeu que passaria o natal e o ano novo sozinho. E não por opção. Pela primeira vez em sua vida queria uma companhia ou um lugar onde pudesse conversar e trocar ideias com pessoas, não foi possível.

Não era a primeira vez que Mário passaria o natal e o ano novo sozinho. Na verdade, essas datas foram mais animadas para ele lá nos idos anos de Monte Belo e depois quando se casou. Nos anos de casado, nestas datas, Mário passava com a família da esposa. Bebidas, comidas, casa cheia, muita diversão e conversas animavam as simbólicas datas. Depois que se separou algumas vezes foi convidado pelos amigos de profissão a passar essas datas nas casas deles. Aceitou muitas vezes, mas depois percebeu que era algo muito familiar, aí preferiu não aceitar mais e por muito tempo se conformava em alguns bares onde entre desconhecidos se unia na camaradagem da solidão em comum.

Talvez o maior significado dessas datas, excluindo o fator comercial é claro, seja o fato de podermos compartilhar com nossos entes queridos momentos de descontração e divertimento. Quando esses momentos se tornam comum para nós, deixamos de valorizá-los e só sentiremos falta deles quando não temos ninguém para compartilhar nada. Mário já havia percebido isso!

Na véspera de ano novo Mário ouviu falar que na represa da cidade havia uma tradicional queima de fogos. Procurou se informar, disseram-lhe que realmente era muito bonito, mas que após o show pirotécnico seria melhor ele ir embora, pois as pessoas costumavam a se embriagar e saia algumas brigas.

Ele acatou as recomendações e foi à represa. Ficou admirado em ver tanta gente, o trânsito próximo à represa foi interditado e ali havia desde idosos até crianças. Muitas pessoas com família, jovens com suas namoradas, vendedores ambulantes, bandas fazendo shows, um lugar muito movimentado. Foi ali que Mário comemorou a entrada do terceiro milênio e do seu

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aniversário, vislumbrado com as primeiras baterias de morteiros que se explodiam no céu rio-pretense deixando-o vermelho, rosa, amarelo, formando letras no céu, as pessoas de olhar fixo naquele espetáculo que durou aproximadamente 15 minutos.

Mário estava criando vínculos com aquela cidade. Não era o que ele imaginava, sua intenção era passar o resto da vida em Monte Belo, a qual ele imaginava que seria uma cidadezinha agradável e acolhedora, mas que na verdade não passava de um ínfimo aglomerado de pessoas que não somavam mais que umas 150 almas, incluindo as dos sítios e fazendas da região.

Apesar de toda história que Mário ouviu sobre Monte Belo, quando criança, ele não imaginava que aquele lugar chegaria ao estado em que ele reencontrou depois de 45 anos. Até seus 15 anos, Mário não percebia a decadência em que aquele lugar se encontrava, para ele tudo ali estava em processo de desenvolvimento, a malária era coisa do passado e esperava que Monte Belo se tornasse uma cidade num futuro próximo. O que nunca aconteceu.

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Capítulo X. O surgimento de Monte Belo.

Em 1800, grupos de pessoas vindas de Cuiabá,

desiludidos com o ouro, apossaram-se de terras nas proximidades dos rios Borá, Fartura e Tietê.

Em 1820, formavam-se duas pequenas comunidades uma chamaram-na Itapyrema e a outra Monte Belo. Não havia construção ordenada de casas, eram algumas casas de pau-a-pique rodeadas de matas. Até então os mortos dessas comunidades eram enterrados aleatoriamente, quando chega o ex-bandeirante Antônio Brito, de São Paulo, veio com sua família e trouxe várias novidades: informou-os da abertura dos portos e de uma iminente independência de Portugal. Pelas noções básicas, mas ainda muito rude

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de higiene, propôs à comunidade a construção de um cemitério. E foi assim, diferente de outras cidades do interior de São Paulo, que surgiu uma obra que se confundiria com surgimento de Monte Belo. Um cemitério. Durante o século XIX, algumas cidades surgiram de pontos de descanso de tropeiros que levam muares, alimentos, gados. No geral, transportavam mercadorias, há indícios de que algumas surgiram com a dispersão de pessoas desiludidas com o ciclo da mineração, depois veio o café, grande responsável pelo surgimento de inúmeras cidades. O que a maioria dessas localidades, bairros e povoados que iriam se tornar cidades tinham em comum é que elas surgiam, normalmente, de uma doação de terra, feita por alguns proprietários à igreja e começavam a edificar casas ao redor de uma capela ou de um cruzeiro. Monte Belo surgiria de um cemitério! O interessante é que ia chegando cada vez mais pessoas para aquela região e não se sabe por que vias e como, tinham a tendência de enterrar seus mortos no cemitério de Monte Belo. Em 1855, gente de dinheiro vinda lá de Rio Preto, um outro povoado, que ficava a 65 km dali, propuseram troca de terra voltando algumas diferenças. No princípio os moradores de Monte Belo ficaram sem entender. Pois terra ali era o que não faltava. Porém os forasteiros estavam informados da lei de terras de 1850, e sabiam que logo não seria mais tão fácil se apossar de terras, ainda mais aquelas que já estavam desbravadas por posseiros. Uns moradores aceitaram outros não. De todo modo, em 1870, havia em torno de Monte Belo várias propriedades. A maioria nas mãos de espanhóis e portugueses. Foi um português que viu a necessidade de uma manifestação de fé e propôs a construção de uma capela mais o menos no centro de onde estavam as casas de pau-a-pique. E assim fezeram.

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Dez anos depois, em 1880, já havia casas de tijolos, duas mercearias e uma oficina mecânica. O café estava se expandindo por essas épocas e Monte Belo se tornou juntamente com Itapyrema um pólo de atração comercial. As notícias de ferrovias já haviam chegado. Muitas pessoas de São Paulo e até algumas da capital, Rio de Janeiro, adquiriam propriedades ali e sempre tinham um certo contado com as informações. O assunto principal era o fim da guerra do Paraguai. Esta guerra mostrou a necessidade de integrar o território nacional naquela época. E isso seria feito através de ferrovia. Pelas proximidades de grandes rios, com o Tietê, uma das primeiras vias de acesso ao interior do Brasil, com certeza a ferrovia acompanharia o pequeno rasto de povoamentos e cidades que já existiam nas suas redondezas. Assim, Monte Belo seria contemplada com os trilhos em pouco tempo. Na grande região do noroeste paulista, o sertão de Araraquara, por volta da segunda metade do século XIX, pelo menos na visão e na forma de pensar e imaginar das pessoas que moravam em Monte Belo, havia apenas três localidades com possibilidades de receber uma ferrovia; a própria Monte Belo, Itapyrema e Rio Preto. Um fato incomodava os habitantes de Monte Belo. O distrito de São José do Rio Preto chamava mais atenção dos governantes. Seria um descaso político ou geográfico. O povoado de São José do Rio Preto, bairro de Araraquara tornou-se distrito de paz desta mesma cidade em 1855, em 1867, tornou-se distrito de Jaboticabal e em 1894 tornou-se um enorme município maior que a Bélgica. Essa ascensão rápida para os moradores de Monte Belo não poderia se justificar apenas pelo comércio e a localização. Com certeza, São José do Rio Preto teve influência política na capital da província. Uma localidade que produzia café, algodão, toucinho e vários outros gêneros alimentícios, com uma população razoável por que teria que continuar como

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povoado? Tanto Rio Preto como Monte Belo ficavam praticamente isoladas, com estradas em péssimo estado onde passava carros de boi carregando mercadorias. Se não fossem as cachoeiras do Tietê, se esse fosse um rio de planície ao invés de planalto, um vapor facilitaria o acesso à capital. Essas perquirições eram constantes entre os moradores de Monte Belo, as discussões a esse respeito tinham um tom de inveja e indignação. Um morador apareceu com um mapa muito antigo, raridade para a época, estava remendado e continha informações pouco precisas. Com o mapa nas mãos as discussões se inflamaram mais. Parecia mais lógico, analisando o contexto do comércio, as grandes propriedades e a qualidade das terras de Monte Belo que este se tornasse um município e não São José do Rio Preto. Primeiro de janeiro de 1900. Chega a Monte Belo o engenheiro Domênico Romano, um italiano de aspecto rude, mas um pouco falador. Trouxe notícias que não agradariam as pessoas daquela localidade. Era certeza que a ferrovia iria passar por São José do Rio Preto, segundo o engenheiro ela já havia chegado à Ribeirãozinho. O projeto era levar a ferrovia até Cuiabá, promovendo a integração do interior de São Paulo e do Brasil. Além das notícias sobre a ferrovia, o engenheiro também trouxe informações sobre a república, e a política comercial do Brasil. Apontava para a grande importância do café brasileiro no exterior e chegou a se empolgar tomando água-ardente na mercearia Santo Antônio, falando coisas da Europa e dos Estados Unidos. Coisas, até então pouco conhecida daquela gente simples. O desânimo provocado pela passagem do engenheiro por Monte Belo possibilitou novos raciocínios. Como as pessoas tentam adaptar as circunstâncias aos seus objetivos! Logo o povo de Monte Belo viu uma remota possibilidade de ter um ramal da ferrovia ali. Por que não? Seria a oportunidade de

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crescermos. Pois se o café era o grande produto para a época ali tinha por demais. As discussões estavam divididas. O grupo que não se conformava pelo fato da ferrovia passar em São José do Rio Preto e não ali e o grupo que achava que tudo daria certo. Afinal, Rio Preto, como era chamado, ficava à 65 km de distância, e sem dúvida com uma ferrovia passando lá o escoamento das mercadorias seria facilitado.

Monte Belo passou o último ano do século XIX envolvida nessas discussões. Mas outras coisas aconteciam pelas redondezas. Todo domingo tinha algum tipo de festa na capela central. Bingo, quermesse, entre outras. O então povoado de Monte Belo reunia aproximadamente duas mil almas, distribuídas em ruas quadriláteras em torno de uma capelinha e nas fazendas da região. Duas mercearias grandes, uma oficina, uma farmácia, uma máquina de arroz e um pequeno empório, empório do Tião-galinha, que, segundo as más línguas era freqüentado por mulheres de vida fácil.

Os proprietários de terra da região ou iam ali para comercializar ou então iam a Rio Preto, mas a parada ali era obrigatória, tanto na ida como na volta. Porém, era na volta desses proprietários que Monte Belo ficava mais agitada. As mercearias enchiam, alguns fazendeiros de mais posse pagavam pinga para muita gente e diante dos expectadores contavam como estavam as coisas lá pelas bandas de Rio Preto.

Foi na volta de um desses fazendeiros que o povo de Monte Belo ficou informado de que em Rio Preto havia muitos comerciantes turcos, na verdade árabes migrados de países que estavam sob domínio do Império Otomano, e que esses eram hábeis comerciantes, tinham muito dinheiro e influência política. Gente boa! Dizia o fazendeiro. Difícil de negociar, mas depois de fechado eles pagam direitinho. Teriam sido eles que através de contatos políticos estavam fazendo com que a ferrovia passasse ali? Será que o que faltava em Monte Belo não eram

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características geográficas e naturais, mas sim fatores humanos e políticos?

O ser humano tem a capacidade de modificar o ambiente e dar valor às coisas naturais que antes não tinha. Uma região, por mais abençoada por Deus nas graciosidades naturais, precisa de uma ação humana para progredir. O conhecimento sistematizado, as técnicas e o entendimento da situação política fazem mais milagres do que boas terras bem localizadas para cultivar. O paradoxo é que, ao mesmo tempo que o ser humano promove o progresso, colabora para a destruição. Por isso o conceito de progresso carece de análises mais abrangentes.

Esse entendimento faltava ao povo de Monte Belo. A localidade era bem servida de localização geográfica, boas terras, centro de comércio e lugar de bons rios; porém, o isolamento que mais mata e aniquila é o isolamento das idéias, não estar concatenado com os acontecimentos sociais e políticos é algo perigoso. Perigo que Monte Belo desconhecia.

Foi somente em 1903, que o povo daquela comunidade se organizou e pediu a câmara de São José do Rio Preto para que a localidade fosse elevada à categoria de capela. E o lugar passou a se chamar Santo Antônio de Monte Bello. Nome que seria reduzido para simplesmente Monte Belo em 1908.

A vizinha Itapyrema já havia saído na frente e em 1902, já era distrito policial de São José do Rio Preto, com a denominação de São Sebastião da Fartura, conhecido com povoado de Itapyrema.

Neste último ano do século XIX, surgiu, não se sabe bem quem a pronunciou pela primeira vez, a frase que seria usada por todo o século que raiava : “Aqui era para ser Rio Preto” .

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Capítulo XI. Ascensão e decadência de Monte Belo.

Ascensão. A verdade é que se houve uma época em que

Monte Belo realmente teve possibilidades de se tornar uma cidade, essa época foi entre os anos de 1915 e 1925.

Os trilhos da Estrada de Ferro Araraquara pararam em São José do Rio Preto por 10 anos, de 1912 a 1922. Esse fato movimentou toda a região que produzia muito café. Grandes fazendas se localizavam na região onde estava Monte Belo e Itapyrema, outras se estendiam para além dessas localidades e todas elas levavam sua produção para ser escoada por São José do Rio Preto.

Por volta de 1910, estava pronta uma igrejinha que ficava na praça central de Monte Belo. Parecia que o comércio não retroagiria mais. O quadrilátero de ruas que formavam a praça no centro estava quase que

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totalmente ocupado por prédios comerciais e no meio deles algumas casas. A pracinha estava em obras, ali faziam um jardim e colocavam bancos.

Dez anos mais tarde, em 1920, Monte Belo tinha uma população que se somada a do núcleo urbano e área rural percebia-se em torno de 7.500 pessoas. Outras ruas surgiram e agora elas já tinham nomes, no total eram umas 20 ruas bem conservadas. A maioria delas se abriram logo na entrada do povoado, o quadrilátero que representava o centro da povoação ficou um pouco no canto e após ele, estavam ali mais umas três ruas. De quem de frente olhava para a igrejinha, do lado esquerdo mais três ruas bem longas que se estendiam até as ruas da entrada do povoado, do lado direito, descendo a estrada que levava ao cemitério, um descampado com alguns pés de frutas, com aproximadamente uns 200 metros, o qual interrompia a mancha urbana, para mais embaixo encontrar-se uma extensa rua com várias casas, onde no fim dela estava o lendário empório do Tião-galinha.

Agora Monte Belo contava com quatro mercearias grandes e com muita variedade de mercadoria, duas farmácias sendo que uma era um misto de consultório médico, uma oficina geral que consertava tudo que se pensava de uns alemães comandados por um tal de senhor Scheneider, uma borracharia que consertava pneus e câmaras de toda região. Ali, espalhadas pela região, havia umas cinco máquinas que beneficiavam arroz, café, entre outros grãos.

Tudo isso dava uma clima de progresso a Monte Belo, fazendo com que surgissem comentários até lá pelas bandas de Rio Preto, de onde partiam jardineiras regulares levando e trazendo gente para região.

Naquele quadrilátero central inúmeras festas atraiam pessoas de todas as bandas. E o assunto corrente era uma possibilidade de elevar Monte Belo a sede de distrito de paz de Rio Preto, pois a sede do distrito era Itayrema.

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Apesar de todo esse movimento e progresso evidentes, aquele povo era pouco articulado politicamente. Acreditavam que as coisas ocorriam por ocorrer, e devido aos fatores naturais consequentemente o sucesso viria. Ledo engano.

A notícia que mais surpreendeu os habitantes de Monte Belo foi quando, em 1921, ficaram sabendo que a localidade passou a ser sede do distrito de paz de Rio Preto. E isso foi feito por moradores de Itapyrema. Coisa estranha! Moradores de Itapyrema reivindicarem a mudança de sede para Monte Belo, as duas localidades rivalizavam entre elas. Porém a explicação não tardou.

Decadência. Os primeiros casos de malária já estavam

acontecendo em Monte Belo quando chegou a notícia de que uma epidemia de varíola varreu Itapyrema. Num primeiro momento não acharam que seria algo alarmante, mas no ano de 1922, a situação ficou cada vez pior. E uma primeira leva de pessoas resolveu se mudar para o então nascente povoado de Nova Itapirema, localizado na região conhecida como lagoa.

Itapyrema estava agonizando, por isso o pedido de transferência de sede de distrito para Monte Belo, onde muitos moradores de Itapyrema se mudaram após a epidemia de varíola.

Os três anos que se seguiram foram responsáveis por uma tragédia que ficaria na memória dos sobreviventes. O recém criado distrito de paz de Monte Belo assistiu a uma verdadeira catástrofe.

Todo dia morria gente! Os coveiros, comandados por Chicão, não paravam de trabalhar. Apavorados moradores tentavam vender suas terras a qualquer preço para fugir da malária, apareceram alguns inescrupulosos aproveitando das circunstâncias macabras e compram grandes glebas de terra. Aqueles que não conseguiam vender abandonavam suas propriedades, o quadro era aterrador.

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O pequeno cemitério ficou pequeno para tantos mortos. Crianças e velhos foram os que mais padeceram. Não havia um dia sem enterro, o lugar mais movimentado do distrito era o cemitério. Inúmeras cruzes de metal marcavam as sepulturas que datavam dias, meses e anos bem próximos uns do outro, dando o entendimento de que algo ruim estava acontecendo com aquela gente. A análise das covas permitia notar que do dia primeiro ao último dia do mês teve gente enterrada ali, sendo que, em alguns dias houve mais de dois sepultamentos. Uma análise mais detalhada mostrava que entre os anos de 1922 e 1925 foram os anos decisivos para aumentar drasticamente a densidade de corpos naquele cemitério.

Como era um cemitério muito antigo, do início do século XIX, portanto naquela data com cem anos, alguns acontecimentos horripilantes davam um assombro extra para os coveiros e os parentes que enterravam seus mortos. Algumas pessoas foram enterradas ali sem demarcação de cova, ou, a cova já havia sumido, dessa forma, quando se cavava uma nova cova não raro achavam-se, tíbias, clavículas, crânios, rádios, entre outros ossos que dariam para montar uma sala de estudo para ortopedistas.

Foram de cenas como esta que o povo de Monte Belo ficou enjoado e começou a se mudar em massa. O destino principal era os novos povoados de Nova Aliança, formado por um pessoal bom, vindos lá de São Joaquim da Barra; Nova Itapirema, lá na antiga lagoa ou então São José do Rio Preto.

No ano de 1930, o último sepultamento foi feito em Monte Belo. Por ironia do destino o último corpo que aquele cemitério recebeu foi do coveiro mais antigo que se tinha notícia. Francisco Cândido da Silva, nascido ali mesmo em 1860, e coveiro desde 1875, quando então só tinha 15 anos e já ia ao cemitério ajudar seu pai. Depois daquele sepultamento quem morresse na região teria que ser enterrado em Nova Itapirema.

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Para quem olhasse aquele cemitério em 1930, viria alguns túmulos bem ornamentados de pessoas com alguma posse, revestidos de mármore e granitos com estátuas feitas artesanalmente; outros túmulos com sepultura mais simples, porém com certa preocupação estética e religiosa e uma montoeira de cruzes de ferro que só indicavam o local onde haviam sido enterrados.

Uma vez por ano o poder público limpava o cemitério. Muitas pessoas iam ali e cuidavam das sepulturas de seus entes queridos. Por isso, alguns túmulos eram mais bem conservados que outros. O cemitério que Mário conheceu aos 10 anos era basicamente esse de 1930, com alguma deterioração mais acentuada.

Apesar de tanta desgraça para uma localidade, houve uma brava gente que teve como lema a seguinte frase: “morro aqui, não será nenhum mosquito que vai me tirar de onde nasci”. Esses ouviam pessoas falarem: “isso daqui vai acabar, vamos embora”. E mesmo assim ficaram. Entre esses corajosos, estavam os familiares de Mário e mais uma dezena de famílias.

A partir de 1930, aquelas famosas discussões do povo de Monte Belo, ou melhor, do povo que sobrou, tomou rumos que tentavam explicar de forma mística ou sobrenatural a catástrofe que abateu o distrito. Uns diziam que o lugar era amaldiçoado, outros falavam que toda cidade tem que começar com uma igreja e não com um cemitério como aconteceu com Monte Belo, os mais exaltados falavam que aquilo era maldição de índios que viviam ali e foram mortos pelos bandeirantes.

E a verdade é que quando Mário nasceu em 1940, Monte Belo já era bairro de Nova Aliança. Perdeu a condição de distrito de Rio Preto quando Nova Aliança se tornou município. Monte Belo foi um distrito que nasceu em 1921 e praticamente morreu antes de 1930. Uma morte prematura. Nunca chegou a ser cidade. Nunca!

Nessa época de finais dos anos 40 e início dos anos 50, uma relativa estabilidade populacional era

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consequência dos vínculos que aqueles bravos moradores, os quais haviam resistido à malária, tinham. Eram os filhos da geração que enfrentou a malária. Quando foram nascendo novas gerações esses vínculos foram se perdendo na ausência de histórias contadas pelos antigos e a nova geração, sem as histórias mantenedoras dos vínculos, não tinha interesse em ficar ali.

Por isso que quando Mário Sanches chegou a Monte Belo em dezembro de 2000, encontrou ali uma população recente, que havia se mudado para lá em fins de 1970. Conforme morriam os sobreviventes da malária as pessoas iam embora. Até parece que elas ficavam ali para ouvir as histórias dos antigos, como fazia Mário na sua infância e quando não se tinha mais quem contasse histórias não haveria motivos para continuar ali.

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Capítulo XII. Estreitando laços.

Ao completar 61 anos Mário não via muitas

perspectivas em sua vida. Um homem de 61 anos, pagando aluguel e tendo que trabalhar para sobreviver, tem todo em sistema de percepção que o diferencia daqueles que na mesma idade são considerados vencedores, possuindo casa, carro, família, aposentado e todas essas consequências de atitudes e oportunidades que, ou a pessoa batalhou para tê-las, neste caso não importando os meios, ou ainda nasceu na bem-aventurança e, uma terceira hipótese, sofreu a vida inteira para poder curtir um pouco a velhice.

Mário não se encaixava totalmente em nenhuma dessas três justificativas para se ter uma boa velhice,

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também não tentava manipular os fatos do passado para explicar uma situação presente.

Uma coisa é verdade, não foi por falta de trabalhar que Mário estava naquela situação. Trabalhou até demais e continuava trabalhando. Mas, o que haveria para contar do passado profissional-financeiro de um homem como Mário? Ficaria no mínimo estranho. Só se conhece história de vencedores e esse verbo vencer é muito usado para expressar situação financeira estável e satisfatório potencial de consumo. Quase nunca ele expressa mudança intelectual, atitude coerente, aprendizagem, humildade sem submissão e sem mau intenção, entre outros significados que talvez expressaria melhor o que realmente é vencer.

Num sentido mais abrangente do verbo vencer, fica mais fácil contar alguma coisa dos últimos trinta anos da vida de Mário. Não que ele foi um vencedor, mas pelo fato de ele ter se saído um pouco melhor neste sentido do que no fator econômico.

Um outro problema se apresenta quando procuramos contar a história da vida de uma pessoa de forma separada, parece quase impossível. As vicissitudes implicam uma relação econômica. Imaginem que existem milhões de pessoas em situações iguais ou piores que a de Mário, elas só não aparecem porque ninguém pretende usá-las como referência de vida, além do mais, por mais estranho que possa parecer, a felicidade não está totalmente ligada ao fator financeiro, esse pode e facilita muito, porém não é condição única.

Até seus 65 anos, quando Mário se aposentou com um salário mínimo, a sua situação econômica era bem deprimente. Tinha que trabalhar pintando letreiros em paredes, pequenas placas e faixas, o serviço era escasso e ele não possuía boa clientela. Às vezes, aparecia alguma faixa ou uma placa para ele fazer em sua própria casa, mas a maioria das vezes prestava serviços para pessoas que estavam a mais tempo que ele atuando naquela cidade. Depois que se aposentou, pode

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contar com um dinheiro fixo, mas não pode parar de trabalhar imediatamente, continuou com pequenos bicos para completar a renda. Agora pintava pequenos quadros e escrevia frases em pedaços de madeira e os comercializava. Foram poucas as vezes que seus filhos lhe ajudaram com algum dinheiro, quando isso acontecia Mário procurava guardar um pouco para uma emergência.

Nesta vida de privações a diversão de Mário era tomar algumas cervejas nos bares próximos a sua casa. Isso tinha que ser feito com cautela. Sua aposentadoria era usada no aluguel, na luz, na água e na alimentação básica. O dinheiro de seus bicos completava a alimentação e pagava as cervejas que ele tomava.

Mário foi se tornando conhecido naqueles quarteirões do bairro Boa Vista. Gostava de ler, atividade que ficou comprometida quando uma hipermetropia o atrapalhou. O problema só foi resolvido quando Enzo, um jovem professor de História, que tinha lá por volta de uns 29 anos, com quem Mário fez amizade nos botecos, e morava nas redondezas, pagou-lhe uma consulta e comprou-lhe uns óculos. Foi assim que Mário aos 66 anos voltou a ler alguns livros sobre história e arte.

Mário começou a se interessar pela história de São José do Rio Preto e especialmente a história do bairro onde ele haveria de passar o resto de sua vida, a Boa Vista. Foi informado pelo jovem professor de História da existência da biblioteca pública. Agora, além dos botecos, Mário também frequentava a biblioteca da Praça Cívica em São José do Rio Preto.

Foi lá que ele descobriu que a Boa Vista era o bairro mais antigo da cidade e de posse dessa informação, a vez foi dos frequentadores de botecos completar aquilo que nos livros não são escritos por falta de provas, documentos ou rigor científico. Conversando com moradores antigos da região Mário descobriu que o quarteirão onde morava foi parte de muitos lotes adquiridos quase de graça no final do

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século XIX, pois a região, mapeada pelo engenheiro italiano Ugolino Ugolini possuía muitos terrenos devolutos e quase ninguém se interessava em adquiri-los, adquiridos por um velho português esses lotes se tornaram partilha de herança no final do século XX, quando o velho morreu, aquele quarteirão veio a pertencer a um bisneto do antigo dono da propriedade. Esse bisneto resolveu vender uma parte e com o dinheiro fazer várias casas e salões para alugar. Uma dessas casas era onde Mário morava.

O quarteirão onde Mário morava era dotado de três botecos e um mini-mercado. Lugares muito frequentados por aquele velho solitário do qual pouco se tinha notícia da família. Mário fazia muitos cartazes de preços para o mini-mercado, o que lhe garantia algumas frutas e legumes que consumia. Mas seu boteco preferido era o de um baiano velho que ficava na rua oposta da casa de Mário, esse boteco era frequentado por Enzo, o jovem professor de História, que o presenteara com uma consulta e uns óculos. Era com esse professor que aquele velho, caminhando para a última etapa da vida, gostava muito de conversar, e dali surgiu uma afinidade muito interessante.

Talvez por ser professor de História aquele jovem gostava de ouvir as histórias daquele velho. Na verdade os velhos sempre falam muito e as pessoas dão pouco crédito a eles, outras vezes, escutam-nos mais por educação do que por vontade, porém aquele jovem professor gostava realmente de conversar com Mário.

A essas alturas a vida de Mário já era bem conhecida daquele jovem, vida que de uma forma meio inexplicável empolgava aquele dedicado professor. Nas várias vezes que Mário narrava a história de Monte Belo, parecia que se desenhava um quadro mental que prendia os dois de tal forma que muitas vezes passavam duas horas entre narrativas e considerações sobre o destino de tal localidade.

Entre as muitas conversas com esse professor, uma vez Mário pediu para que ele contasse um pouco

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sobre sua vida, já que a vida do velho era bem conhecida do jovem. Enzo, sorriu discretamente e falou:

─Ué... normalmente são os velhos que gostam de falar do passado!

Agora ambos sorriram. E o jovem disse que, também como Mário, não tinha muitas referências familiares. Fora adotado! Sua mãe havia lhe deixado com apenas 3 dias num orfanato, por sorte (ou azar) foi adotado 3 dias depois por uma casal de velhos, os quais tinham filhos biológicos bem mais velhos que ele. E foi com esse casal de velhos, que já tinham filhos moços e adultos, que Enzo foi criado.

Ao ouvir a pequena história Mário perguntou: ─Você nunca teve curiosidade de saber quem

são seus pais biológicos? O jovem pensou um pouco e disse: ─Um pouco na adolescência, depois superei. Mário não se convenceu muito. Insistiu: ─Sua expressão não corresponde com a

resposta! ─Uma vez tive no orfanato. Enzo quase que

sussurrou. E deu prosseguimento: ─Lá peguei o nome de minha mãe. Acho que ela

não tinha condições de me criar... Silêncio entre os dois... Mário rompeu o silêncio: ─Vamos mudar de assunto? Enzo respondeu: ─Sábia decisão! Conversaram mais algumas coisas a cerca de

assuntos menos importantes e o jovem professor falava de como tinha feito sua faculdade, de sua dedicação e do gosto pela história regional. Mário analisava o semblante daquele jovem cheio de vitalidade, com olhos negros como jabuticabas e cabelos meio encaracolados, gesticulava bem e tinha boa entonação na voz.

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Capítulo XIII. O segundo presente.

Um pouco antes do almoço de um sábado

ensolarado o professor Enzo entra no boteco onde Mário estava com um livro nas mãos e esboça um sorriso. Senta ao lado de Mário. Coloca a mão no ombro do velho. E diz: -Ô velho, vou te dar um baita presente. Esse livro é o mais velho que tenho. Não sei se há outro do tipo, o que me chamou a atenção é um conto que fala de um suposto crime lá nessa Monte Belo onde você nasceu, já nem lembrava mais dele, esses dias dando uma olhada mais pormenorizada achei interessante. Deixa-me te explicar uma coisa: isso é uma antologia de contos, o que é isso? Um livro onde tem vários contos de muitos autores. O conto, que eu acho que você vai gostar, é de um filho de fazendeiro que tinham fazenda lá por aquelas bandas de Monte Belo pelos idos anos de 1915, mais ou menos, na pequena biografia desse autor, percebe-se que ele nasceu em Rio Preto em 1920, e mudou-se para São Paulo para estudar quando tinha 18

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anos. O livro data de 1945, então o cara quando o escreveu já tinha 25 anos. Apesar de ser ficção, creio que é interessante. Particularmente dou valor a esse gênero literário. Acredito que todo escrito tem uma conexão, às vezes até sutil, com a realidade. Bom, tá aí velho! É seu. Divirta-se.

Mário estava calado! Abriu o livro, folhou rapidamente olhou o nome da editora e a data da publicação (1945) e disse: -Nossa! Eu tinha 5 anos. Vou me divertir com isso. Muito obrigado. Ao chegar a sua casa Mário olhou no índice e foi direto à página 137. Lá estava uma pequena biografia do autor, nas próximas páginas iniciava-se um extenso conto que ocupou umas duas hora e meia de leitura atenta naquela tarde de sábado. O velho realmente se empolgou com a leitura! Durante a leitura parou algumas vezes para ir ao banheiro, tomar café e comer umas bolachas. Após a leitura deitou em sua cama e começou a imaginar se tudo aquilo fosse verdade mesmo (não que ele achasse que fosse), mas e se fosse? Que aventura seria a vida daquela pessoa, mesmo tendo cometido coisas ilegais. O conto narrava a história de em engenheiro de minas napolitano que veio ao Brasil, assim que se formou, com a intenção de trabalhar para a coroa nas então minas gerais. Detalhadamente, o conto mostra o entusiasmo do jovem bacharel com a riqueza da terra brasileira. Realmente ali era o lugar onde ele poderia enriquecer, não havia lugar no mundo onde se produzia mais ouro. O jovem napolitano se entregou ao amor de uma enigmática mestiça. Filha de uma escrava com um português. A pele morena tinha um brilho que perturbava, cabelos encaracolados e olhos da cor do inferno. O único problema era que o jovem já era casado com uma alva italiana. O que não impediu de se relacionar com a mestiça. E desse relacionamento surge um filho. Inesperado. Mas que vingou a morte do pai.

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Segundo o conto, um português robusto de mais ou menos uns 30 anos tentava sair da região das minas com uma significativa quantidade de ouro adquirida por meios ilícitos. O jovem italiano lhe denunciou. E isso lhe custou a vida, pois o português o matou. O português perseguido rumou para as terras desconhecidas da província de São Paulo. Talvez o lugar mais desconhecido do mundo - Monte Belo. Lugar alcançado por acaso. Isolado. Longe de tudo e de todos. Lugar onde o português só saiu de lá morto e enterrado no cemitério que havia ajudado a fazer. Morte violenta e vingativa. Um facão enterrado em suas costas pelo filho bastardo do jovem napolitano o qual aquele português havia tirado a vida lá pelas bandas de Minas Gerais. Mas, talvez a parte mais interessante do conto é o fato do filho bastardo do jovem napolitano ter rumado para região da Itália partindo do Rio de Janeiro com destino a Nápoles portando um passaporte falso com nome de Paolo Zanchetta. Em Nápoles, de filho bastado e assassino passou a rico comerciante e homem de família, tendo um de seus filhos se formado militar, lutado na unificação da Itália e alcançado o posto de coronel.

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Capítulo XIV. A última viagem a Monte Belo.

Quando Mário completou 70 anos, percebeu

que há dez anos estava ali em São José do Rio Preto e durante esse tempo nunca mais voltou a Monte Belo. Percebeu que seus vínculos com São José do Rio Preto estavam aumentando. Era ali que fazia suas pinturas que frequentava os botecos, que tinha algumas amizades. A referência maior para Mário era o próprio bairro onde morava, ficava analisando algumas construções antigas e sentia pena quando uma era demolida para dar lugar a um moderno prédio de apartamentos. Fora de seu bairro, era o centro da cidade o lugar mais freqüentado. Ficava horas andando pelo calçadão olhando as lojas, os prédios antigos, os prédios

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novos, os veículos, as pessoas; enfim, a vida transcorrendo com mais tempo para se perceber pequenos detalhes que só aparece quando as vistas já estão cansadas e por isso começam a enxergar melhor que as vistas hipnotizadas da juventude.

Nessa primeira década de interior recebeu apenas uma visita, onde em sua pequena casa alugada de dois cômodos, compareceram sua filha e seu filho trazendo notícias do falecimento de sua irmã lá pelas bandas de Mato Grosso do Sul. Agora Mário se tornara o único filho de José Sanches e Amélia Oliveira Sanches a sobreviver na face da terra.

Seus filhos partiram depois de dois dias, deixaram com Mário algum dinheiro e deram uma reformada na mobília, e ainda fizeram mais, custearam os serviços de uma faxineira para limpar aquele casebre uma vez por mês. Na partida, os filhos de Mário deixaram seus telefones com alguns vizinhos. Era previsto que aquele velho não duraria mais uma década.

No dia primeiro de janeiro de janeiro de 2020, Mário cumprimentava seus filhos por telefone e entre as promessas que seus únicos herdeiros faziam uma era de uma iminente visita, o velho pareceu forte aos ouvidos dos filhos. Passado as comilanças corriqueiras de início de ano, Mário recebeu a visita do professor de História, que agora, com 44 anos, era um homem consciente de si, que não se deslumbrava mais com as novidades da vida e continuava com uma sincera amizade com aquele velho que aparentemente era forte e gozava de boa lucidez. Na visita o experiente professor anunciou um presente fantástico: queria levar o velho para Monte Belo! Mário titubeou um pouco para acreditar, mas rapidamente aceitou e perguntou quando isso iria acontecer.

Num sábado de sol do mês de janeiro do ano de 2020, o velho Mário Sanches e o professor de História partiram rumo a Monte Belo. Mário entrou no carro ansioso, a história da localidade era conhecida dos dois,

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porém era o velho que guardava recordações que perduravam desde sua infância.

A empolgação de Mário era tamanha que ele nem percebeu o carro entrando pela avenida Bady Bassitt em Rio Preto, que por aqueles anos estava repleta de enormes prédios, concessionárias de veículos, mercados, e um vasto comércio que se estendia até os condomínios fechados lá no seu final, já próximo a BR 153, que ficaram cercados de vários comércios e casa de diversões.

Quando ganharam BR 153, já próximo à cidade de Bady Bassit, é que Mário percebeu que se tratava de uma área urbana contígua e a essas alturas, eles estavam saindo da cidade de Bady Bassitt e ainda não tinham visto nenhum espaço sem que houvesse alguma marca da urbanização acompanhada de comércios, firmas e condomínios residenciais.

Passaram por Nova Aliança e pararam em Nova Itapirema, que agora era município com cerca de 15.000 habitantes, aquele distrito prosperara e era maior que Nova Aliança. Desceram na praça central e Mário se sentia de alma pura relembrando o tempo de criança onde brincava nas árvores daquela mesma praça. Só que agora sem árvores e com uma igreja bem maior, onde ao seu redor havia arbustos cortados em formas geométricas que denunciavam o talento de um bom jardineiro. Naquele mesmo bar onde Mário parou no ano de 2000, começaram a dialogar com pessoas daquela cidade. Mário externou que não imagina que em 20 anos aquela cidade iria crescer tanto, já o professor, mais atualizado, sabia que grupos políticos locais, através de influências decisivas colaboraram para o sucesso do antigo distrito e fizeram dali um município com boas perspectivas para o futuro.

Diante de tanto desenvolvimento em tão pouco tempo, Mário chegou a pensar que Monte Belo poderia ter se tornado a cidadezinha que sempre imaginou. Sua alegria terminou quando o assunto passou a ser Monte

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Belo. Mário logo percebeu que apenas os mais velhos tinham ouvido falar.

Depois de uma hora de conversa partiram para Monte Belo, a ansiedade de Mário havia passado para o professor e o velho agora estava com o coração apertado. Feita a longa curva, onde no seu final apareciam as primeiras casas da localidade onde Mário nascera, avistaram uma pequena capelinha bem longe. Foram chegando mais perto. Perceberam que havia cercas de arame farpado que cercavam algumas plantações, ora de milho, ora de soja e ora de cana-de-açúcar. Foram chegando mais perto. Pararam pouco antes onde a rodovia parecia fazer uma curva acentuada à esquerda, olharam do lado esquerdo e ali estava uma capelinha bem conservada com um coreto ao lado. Encostaram o carro e desceram, era o único lugar que não tinha cerca. Em volta, percebia-se que as plantações estavam em propriedades de médio e pequeno porte. O silêncio tomava conta dos dois. Escutava-se apenas o vento roçando as plantações e as gramas ao redor da capelinha. Que estava ali. Imóvel e bem conservada. Não havia mais ruas, apenas a rodovia que parecia morrer numa propriedade e defletir à esquerda e depois fazer uma curva acentuada à direita onde se lia uma placa indicando: Mendonça, Potirendaba e Adolfo.

Mário se dirigiu até uma cerca. Debruçou-se nela e apertou os olhos a busca de alguma coisa. Depois de alguns minutos avistou algumas ruínas no meio de uma plantação de milho. Passou pela cerca, com muita dificuldade e foi até lá. Certificou-se de alguns tijolos meio amontoados com uma certa ordenação, parecia as bases de um velho alicerce. Tentou avistar mais alguma coisa. Cinco minutos, sete, dez minutos e sua vista cansada desistiu.

O professor e o velho Mário não tinham trocado uma palavra, de repente, como por telepatia, olharam-se profundamente. Os olhos dos dois estavam meio lacrimejando. Pensam juntos e não abriram a boca. Foram ao cemitério.

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A rua que subia a colina ainda estava sem asfalto, conforme subiam a colina Mário fazia uma retrospectiva impossível de se descrever em palavras. Um quilômetro depois encostaram o carro. Desceram. Ficaram olhando para um cercado onde não estava plantado nada. Era o único lugar que não havia alguma plantação. Logo avistaram um cruzeiro. O professor ajudou o velho a passar a cerca e com uma certa dificuldade em pouco tempo os dois estavam dentro do cemitério de Monte Belo. Nenhum túmulo havia resistido às intempéries, mas se notavam no chão várias cruzes e pedaços de mármores. Pedras amontoadas, tijolos juntos com ramificações de vegetais denunciavam, sem dúvida nenhuma, que aquilo era o resquício de um campo santo.

Andaram por um dez minutos nas ruínas daqueles túmulos, a única coisa inteira era o cruzeiro de madeira, que pelo jeito, havia sido substituído várias vezes. Quando se deram conta, estavam parados próximo às ruínas do que parecia ter sido um túmulo muito imponente, percebia-se a qualidade do mármore que formava um monte de entulho junto com algumas armações de concreto. Com muito esforço Mário se abaixou no meio do capim. Agora, mais próximo, passou a admirar aquelas ruínas. Queria achar uma data em algum pedaço de mármore, tateava com as mãos trêmulas pelo chão. De repente, tocou num objeto. Através do tato percebeu que se tratava de algo com formato meio arredondado que cabia em sua mão direita. E, por incrível que pareça, Mário agarrou pela segunda vez a cabeça de um santo. Aquela mesma cabeça que ele havia achado numa noite de aventura há setenta anos.

Dessa vez ao invés de medo Mário sentiu uma saudade matadora de sua infância, daquelas brincadeiras, de como tudo aquilo exercia sobre ele um encantamento que nenhuma pessoa pode compreender. Existem fatos, muito simples para o mundo inteiro, mas que possui significado muito especial para uma pessoa,

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que desenvolveu sentimentos e referências pessoais com objetos, pessoas, cheiro, música, filme e tantas outras formas de relembrarmos ocorridos. Assim foi com Mário, que não conteve as lágrimas. Sua reação foi analisar aquele pedaço de cerâmica e colocá-lo de volta no chão.

Ao passarem a cerca de volta à rua o tempo começou a mudar, e quando chegaram próximo do lugar onde um dia foi Monte Belo começou a chover.

Mário haveria de se lembrar dessa última visita a Monte Belo no seu leito de morte, no dia primeiro de janeiro de 2030. Pensava: a morte não é tão ruim assim. Olhou para seus filhos, que ausentes por boa parte da vida de Mário, naquele momento derradeiro estavam ao seu lado e contemplavam os últimos minutos daquele velho que tinha acabado de completar 90 anos.

Mário sorriu com os olhos bem arregalados, esforçou-se para dizer alguma coisa que a fibrose pulmonar não queria deixar sair e numa voz bem baixa, mas audível sussurrou:

─ Momento estranho! Não tô com medo... foi bom... acho que na minha vida deu tudo certo.

Depois dessa frase, sentiu o corpo meio pesado, o peso foi aumentando, mesmo estando deitado, parecia que ele estava perdendo o comando do corpo, queria se mexer, tentou com muito esforço abrir os olhos, não conseguia. Agora não sentia mais as pernas, um sono incontrolável, a respiração cessando, um suspiro mais forte provocou lágrimas nos filhos que se afastaram percebendo o que estava acontecendo.

De repente, todo um filme passou pela cabeça de Mário: a primeira cena foi a primeira lembrança da existência, Mário no colo se sua mãe, na escadaria da varanda no fundo da casa, olhando o sol se por no horizonte, depois, muitíssimo rápido, algo sem explicação, pois apesar da rapidez os fatos eram sentidos na íntegra, parecia que revivia tudo aquilo numa velocidade assustadora, lembrou-se dos dias de infância em Monte Belo, do casamento, de Lia, das

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crianças, da separação e a última cena, capaz de arrancar um pequeno esboço de sorriso no lado esquerdo da moribunda boca, foi os olhinhos de Sabrina, com um discreto estrabismo convergente, ela parecia sorrir para ele, estava jovem...pronto! Mário havia morrido. Não existia mais Mário Sanches.

No seu velório contava-se exatamente 15 pessoas: seus filhos e seus seis netos, o amigo professor com a esposa dele, o baiano do boteco, dois amigos lá da Boa Vista, Sabrina e sua ex-mulher.

A presença de Sabrina no velório quase que chamava mais atenção do que o próprio defunto. Quem seria aquela desconhecida? De onde veio? Parecia muito sensibilizada. Dentre os presentes vivos ninguém a conhecia.

Enzo se aproximou daquela senhora de aparentava uns 70 anos, e com muita cautela falou:

─Olá! Tudo bem com a senhora? Ouviu: ─Oi...tudo...tudo bem sim! ─A senhora o conheceu? ─Sim. Conheci-o num tempo muito remoto. ─Ah... O professor se calou por alguns minutos. ─Cheguei tarde. Sabrina sussurrou! Enzo interrogou: ─Como, senhora? O que a senhora disse? ─Quando cheguei a casa dele, hoje cedo, me

falaram que ele tinha morrido, aí eu vim para cá. Ele partiu sem saber...

Sabrina enxugava as lágrimas e parecia pensar em voz alta. Neste momento Enzo a segurou pelos braços e a retirou da sala onde o corpo estava sendo velado, lá fora disse a Sabrina:

─A senhora precisa dizer algo? Se quiser pode falar para mim.

Naquele instante Enzo pensava em ouvir algo do tipo: eu sempre o amei, ele foi o grande amor de minha

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vida e coisas semelhantes. Chegou a sentir um prazer secreto em seu cérebro, e raciocinou: o velho Mário conquistou corações quando novo. Por essas alturas ele não se lembrava que Mário, apesar de pouco comentar, havia lhe falado de Sabrina. Subitamente Sabrina tirou da bolsa uma folha amarelada e meio que dobrada começou a ler mentalmente, leitura que Enzo conseguiu acompanhar apenas as últimas palavras:

“A você, jovem e ilustre companheira! Que em curtos três anos deu contornos especiais e inexplicáveis a minha vida e que durarão por toda existência...

A você, jovem encantadora! Responsável pelas minhas melhores noites de amor.

Quando eu partir, a última coisa que eu quero, é me lembrar desses olhinhos que tanto me encantaram e me fascinaram no contexto de um rostinho paradisíaco e perfeito, esboçando um sorriso perturbador...

Eterna Sabrina! Mário Sanches,

02/10/1977.”

Sabrina estava tão emocionada que não percebeu Enzo lendo a dedicação de um poema que Mário havia feito para ela há 53 anos. Enzo falou baixinho, só para ela ouvir:

─Parece-me que ele foi muito importante para a senhora.

─É... Ela respondeu e continuou: ─Um relacionamento curto, inesquecível e que

deixou marcas para toda vida. Só vivemos alegria. Talvez até porque foi curto, mas isso não anula a prazer que tivemos. Não houve rancor e nem mesmice, foi

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envolvimento mútuo e sincero. Pena que ele nunca ficou sabendo...

Neste momento as insistentes lágrimas tornaram a se fazer presentes nos olhos que Mário tanto gostou... Enzo a afagou, ela encostou a cabeça no ombro daquele desconhecido e quase que sussurrando disse:

─Tivemos um filho! Deixei-o num orfanato com três dias. Depois de quatro dias passados voltei quase morrendo de arrependimento e ele já havia sido adotado...

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Sobre o autor. Alexandre de Freitas nasceu em São José do Rio Preto em 02/10/1972, tornou-se pintor de letreiros aos 15 anos de idade, graduou-se em Geografia pela Faculdade “Dom Bosco” de Monte Aprazível e fez pós-graduação em Cultura e Cidadania pela UNICAMP, depois graduou-se em Pedagogia pela UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei), foi professor de Geografia do estado de São Paulo, atualmente é professor de Geografia do município de São José do Rio Preto e professor universitário da Unilago (União das Faculdades dos Grandes Lagos).

Escreve poesias, contos e crônicas desde os 20 anos, sempre gostou de assuntos que envolvem a memória e as história orais relatadas por pessoas mais velhas. Este livro é produto de histórias que seu avó, Armindo de Freitas (1919-2002), contava ao autor desde quando esse era criança, claro que a imaginação e a fantasia estiveram presentes em toda obra, mas ela é uma homenagem às pessoas comuns, a lugares pouco conhecidos, às circunstâncias e situações vividas e sentidas por pessoas que não couberam nas grandes narrativas escolhidas pela história.