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Velhice e caridade: relações de alteridade em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos JESSICA GLEYCE DOS REIS FELIX O presente trabalho tem como objetivo primordial discutir as relações entre velhice e caridade estabelecidas entre sujeitos inseridos em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos situada na cidade de João Pessoa, a partir dos relatos orais dos mesmos. Para tal, dialogaremos com as concepções e perspectivas teóricas de autores essenciais às nossas reflexões, sendo assim recorreremos ao conceito de representações proposto por Chartier (1990), memória por Halbwachs (1990) e Bosi (1994), no que se refere às questões relativas ao processo envelhecimento e a velhice nos apoiaremos em Debert (2004), e por fim, no que tange a postura metodológica, apresenta-se como elemento indispensável a utilização da história oral; para tanto, faremos uso das contribuições de Alberti (2005) Meihy e Holanda (2007). Palavras-chave: Velhice, Caridade, História Oral. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo essencial apresentar algumas discussões referentes à pesquisa de mestrado ainda em andamento, enriquecidas a partir das leituras que se desenvolveram no transcorrer das disciplinas durante o segundo semestre de 2016 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba; e embora esteja inserida primordialmente no campo da história cultural, o diálogo com referenciais de outras modalidades historiográficas configurou-se como profícua Mestranda - PPGH-UFPB

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Velhice e caridade: relações de alteridade em uma Instituição de Longa

Permanência para Idosos

JESSICA GLEYCE DOS REIS FELIX

O presente trabalho tem como objetivo primordial discutir as relações entre velhice e

caridade estabelecidas entre sujeitos inseridos em uma Instituição de Longa

Permanência para Idosos situada na cidade de João Pessoa, a partir dos relatos orais dos

mesmos. Para tal, dialogaremos com as concepções e perspectivas teóricas de autores

essenciais às nossas reflexões, sendo assim recorreremos ao conceito de representações

proposto por Chartier (1990), memória por Halbwachs (1990) e Bosi (1994), no que se

refere às questões relativas ao processo envelhecimento e a velhice nos apoiaremos em

Debert (2004), e por fim, no que tange a postura metodológica, apresenta-se como

elemento indispensável a utilização da história oral; para tanto, faremos uso das

contribuições de Alberti (2005) Meihy e Holanda (2007).

Palavras-chave: Velhice, Caridade, História Oral.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo essencial apresentar algumas discussões

referentes à pesquisa de mestrado ainda em andamento, enriquecidas a partir das leituras

que se desenvolveram no transcorrer das disciplinas durante o segundo semestre de

2016 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba; e

embora esteja inserida primordialmente no campo da história cultural, o diálogo com

referenciais de outras modalidades historiográficas configurou-se como profícua

Mestranda - PPGH-UFPB

2

contribuição e apresentou novas possibilidades de análise ao objeto, com especial ênfase

para as “noções operatórias” de Pierre Bourdieu, nesse caso específico com o “habitus”.

Isto posto, considerando a abordagem de Benjamin, o que se propõe neste

trabalho é uma história a contrapelo1, onde cabe ao historiador o desafio de ouvir, e dar

vazão a outras vozes, as vozes dos silenciados, daqueles que foram submetidos,

reduzidos ao estigma de marginais, excluídos do espaço social e por consequência

levados a um estado de exceção.

Neste sentido, o autor também dialoga com Bourdieu, quando conclama os

historiadores para o que ele chama de um exercício de des-historicização2, onde é

preciso identificar as representações, as imagens e os mitos construídos em torno dos

indivíduos e/ou grupos. Exercício este, aqui realizado quando nos referimos às imagens

dadas a ler acerca da velhice e dos sujeitos senescentes.

Em consonância com tais pressupostos, é importante pontuar que o campo

histórico outrora voltado exclusivamente à narrativa dos caminhos trilhados pelas

civilizações ocidentais, cujo protagonista essencial é o homem, branco, católico,

europeu, continuamente vem solapando as frestas por onde os sujeitos ditos “marginais”

adentraram. Sendo assim, torna-se impossível ao historiador (re) silenciá-los; a mulher,

a criança, o homossexual, o pobre, o negro, o louco e o idoso reivindicam seu lugar de

direito na história e na historiografia.

A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com

quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A

resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado

dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o

vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.(...)Todos os que até

agora venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje

conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão.

(BENJAMIN, 1987: p. 244 -245)

Analisar historicamente o conceito de velhice possibilita pensá-la a partir dos

variados contextos de sua inserção, pois assim como pondera Philippe Ariés (1978) em

1 Ver: BENJAMIN, 1987: p.225. 2 Ver: BOURDIEU, 2012: p. 122.

3

sua famosa obra sobre a infância, as idades da vida correspondem às funções sociais e

não apenas às etapas e determinantes biológicos. Neste sentido a invenção de grupos

etários e a consequentemente as divisões as quais eles correspondem estão diretamente

relacionadas a instituições como a família, a escola e igreja. Como elucida Gusmão

(2003, p. 16) tanto a infância quanto a velhice são alvos de olhares tortuosos, pois

situam-se no liame entre o passado e o futuro que tornam o seu presente em certa

medida enigmático, suas imagens inspiram o estabelecimento de relações de alteridade,

a percepção do outro, do diferente, que paradoxalmente o pensamento ocidental tenta

absolutizar, negligenciando o fato de que diferentes indivíduos e culturas constroem

diferentes universos para e da velhice.

Não existe uma velhice, mas maneiras singulares de envelhecer. Cada

velhice é consequência de uma história de vida que à medida que o tempo

passa, vai acrescentando processos de desenvolvimento individual e da

socialização, junto ao grupo em que se insere: internalizando normas,

regras, valores, cultura (PEIXOTO apud GUSMÃO, 2003: p.18)

Em harmonia com o panorama delineado, nas últimas décadas presenciamos a

transformação da velhice, do processo de envelhecimento e dos sujeitos envelhecidos

em assuntos de interesse e relevância para os mais diversos segmentos da sociedade,

ocasionada por fatores variados que perpassam tanto às significativas mudanças no

caráter demográfico do país, quanto sua percepção enquanto mercado consumidor, e

conseqüentemente como alvo de políticas públicas específicas. Em síntese, o que se

verifica é uma espécie de ruptura na atmosfera de silêncio que circunda a velhice,

apontada por Simone de Beauvoir em sua obra “A velhice: a Realidade Incômoda”

ainda na década de 70. Todavia, como sugere Guita Grin Debert (2004, p. 12), expoente

fundamental nos estudos sobre a velhice no Brasil, analisar a velhice e suas novas

formas de gestão apenas a partir de tais questões é deixar à revelia a oportunidade de

uma reflexão pormenorizada acerca de uma série de processos que conferem

legitimidade e expressividade aos sujeitos senescentes.

Segundo a autora, tal movimento de ressignificação do ser velho acenando para

uma “terceira” ou “melhor” idade não são suficientes para englobar as variadas formas

4

de experienciação da velhice, e delata tais discursos como elementos que desfavorecem

a instrumentalização para o defrontamento por parte destes indivíduos e dos que os

cercam, para com as perdas sofridas em seus diversos âmbitos de vida. Por conseguinte,

a extinção do “problema”, ocorre apenas no que se refere ao discurso, distanciando as

rugosidades e reelaborando a ideia de envelhecimento sob uma perspectiva positiva.

A dissolução desses problemas nas representações gratificantes da terceira

idade é um elemento ativo na reprivatização do envelhecimento, na medida

em que a visibilidade conquistada pelas experiências inovadoras e bem

sucedidas fecha o espaço para as situações de abandono e dependência.

(DEBERT, 2004: p. 15)

Em acordo, Almeida (2013, p. 15) reflete como no avançar nos anos 1990

ocorreu um boom de estudos relacionados aos direitos humanos que evidentemente

incluiu as temáticas relacionadas à velhice e ao envelhecimento, assegurando a

institucionalização de eufemismos no que se refere ao tratamento dos velhos, que

passam agora a ser chamados oficialmente de idosos. Nesse sentido pensar o ser idoso

enquanto categoria e/ou público homogêneo é negligenciar tal multiplicidade, formas de

ver, sentir e dizer a velhice, objeto da caridade e do abandono, do silêncio e de

discursividades, intervenções e disciplina.

SOBRE O ESPAÇO DA PESQUISA

A ILPI Vila Vicentina Julia Freire surgiu em 1943 em decorrência da doação de

glebas de terra a Sociedade São Vicente de Paula – SSVP3, pela família da Senhora

Julia Freire, em cumprimento a manifestação expressa em testamento de sua vontade,

destinadas a construção de residências para famílias carentes, que tomaram posse das

3 A sociedade São Vicente de Paulo foi criada em 1833, na França por um grupo de jovens universitários

católicos e um senhor que pretendiam minimizar o sofrimento das pessoas em condição de

vulnerabilidade e fortalecer a fé de seus membros. Uma organização civil de homens e mulheres leigos

dedicados ao trabalho cristão de caridade que está presente em cerca de 150 países. Fundada no Brasil em

1872, conta com aproximadamente 153 mil confrades e consocias que mantêm escolas, creches, projetos

sociais, lares de idosos e famílias necessitadas. Internacionalmente é membro das Nações Unidas

participando também do Conselho Econômico e Social (Ecosoc).

5

áreas externas sob o sistema de comodato4, já o centro do terreno com o passar do

tempo ficou reservado ao público específico dos idosos, antes destinado aos moradores

de rua. No ano seguinte foi lançada a pedra fundamental para a construção de um

casarão abrigo que incorporou a Capela de Nossa Senhora da Conceição hoje

administrada pela Paróquia São Judas Tadeu. Localizada na Rua Etelvina Macedo de

Mendonça no bairro da Torre em João Pessoa-PB, ocupando uma área de 2000 m2, a

instituição abriga cerca de 64 idosos dos sexos masculino e feminino, sendo alguns

deles independentes e outros com variados graus de dependência física e psicológica.

Obra unida a SSVP, a instituição é beneficente, filantrópica5 e sem fins

lucrativos, sua direção e administração é composta por membros voluntários, todos

vicentinos: presidente, cargo eletivo cujo mandato tem duração mínima de dois anos,

podendo haver uma reeleição, responsável por designar os demais membros que

compõem a direção em geral formada por vice-presidente, tesoureiros e secretários. A

VVJF conta ainda com cerca de 25 funcionários remunerados das áreas administrativa,

de saúde e serviços gerais, além de profissionais voluntários de variadas instituições

parceiras que desenvolvem atividades diárias com os idosos. Dentre tais instituições,

merece ênfase aqui as atividades que foram e são realizadas através de projetos de

extensão6 por estudantes do bacharelado em Arquivologia da Universidade Estadual da

Paraíba sob coordenação da Profª Suerde de Brito cujo objetivo primordial é a seleção,

conservação e organização, do acervo iconográfico da Vila Vicentina contribuindo para

preservação da memória institucional, e que já resultou em alguns trabalhos acadêmicos

que também são tomados como referenciais em nossa pesquisa. O mesmo é igualmente

responsável pelo acondicionamento de outros documentos institucionais e pelo registro

atual das celebrações e atividades diárias e também serão utilizados como fontes.

A fonte primordial de recursos da casa são as aposentadorias, que se constitui de

cerca de 70% do salário do idoso residente, insuficientes para cobrir todas as despesas

4 O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Onde o comodatário tem por obrigação

conservar a coisa emprestada não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou natureza dela. 5 Para obtenção do certificado de filantropia a direção não pode ser remunerada. 6 Respectivamente: “ Memória da Vila: preservação do acervo fotográfico de uma instituição de Longa

Permanência para Idosos” e “Preservação da Memória Institucional: o caso do arquivo iconográfico da

Vila Vicentina Julia Freire” Ver: BRITO & QUEIROZ, 2015: p. 156.

6

diárias, sendo muito comum a prática de doações em dinheiro, roupas, bens materiais,

alimentação e produtos de higiene. Em 1999 a Vila Vicentina Julia Freire adquiriu

personalidade jurídica para fins legais, e foi declarada de utilidade pública através de

leis municipal, estadual e portaria federal7.

HABITUS: OS VICENTINOS E UMA REDE DE CARIDADE

Segundo Elias (2001, p.10) a morte é um problema pertinente aos vivos, e a

forma como a mesma é encarada diz muito acerca das práticas e visão de mundo de

determinadas sociedades, seja ela mitologizada ou não, com as ideias de passagem para

uma vida reservada à eternidade no inferno ou no paraíso, ou ainda de transformação e

ascendência espiritual; o fato é que a velhice comumente é associada aos estigmas da

inatividade, doença, e por consequência proximidade iminente com a morte, “A

fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos

vivos”. (ELIAS, 2001, p. 8).

Lidar com a morte e outros aspectos aparentemente inerentes quando se trata da

velhice, no espaço da instituição parece requerer uma série de códigos de conduta que

embora não estejam circunscritos em algum manual, fazem parte do cotidiano desses

sujeitos que a tratam e vivenciam. Neste sentido, consideramos substancial pensar a

dimensão sociológica da noção de habitus e sua instrumentação de extrema relevância,

por conseguinte e no caso específico desta pesquisa utilizamo-lo para compreender

como se constrói uma rede de discursos, valores e práticas que parecem em certa

medida uniformes e são compartilhados entre os vicentinos que se mantêm em

constante formação através de reuniões e conferências da SSVP, bem como por meio dE

diversas atividades religiosas. Tais práticas visam não apenas a manutenção da rede de

caridade através do serviço ao outro, geralmente sujeito dito carente e necessitado, que é

mantida pelos vicentinos, mas também busca, sobretudo avigorar a fé cristã de seus

membros. Tal percepção/condição pode ser identificada também nas falas dos sujeitos

que transitam no espaço da ILPI pesquisada:

7 Respectivamente leis de nº: 9.487/2001; 7.106/2002; 3.940/2009 Ver: BRITO & QUEIROZ, 2015: p.

158.

7

Olha, toda vez que você pergunta isso dá uma travada, viu, por que os

nossos idosos, a gente tem tanta afinidade com cada um deles, que eles

passam a ser nossa família, eu to aqui, segunda, terça, quarta, quinta, sexta,

sábado, domingo, feriado e dia santo, eu to aqui, todo dia o dia todo. Então

assim, a nossa lista de idosos pra entrar na Vila Vicentina ela tá inserida

mais ou menos em 480 pessoas, na fila pra entrar aqui, então a minha maior

tristeza é quando abre uma vaga porque essa vaga só reacende quando

infelizmente a gente perde um idoso, mas por outro lado a gente fica feliz por

que foi um dever cumprido 8

Reconhecidamente um dos maiores intelectuais do século XX o sociólogo Pierre

Bourdieu possui uma vasta obra, cuja contribuição teórico-metodológica ainda

reverbera em inúmeros estudos nas ciências humanas e sociais, e é em varias destas que

ele, dedica-se a discussão/conceituação do habitus. Como esclarece o próprio Bourdieu

a noção de habitus já foi utilizada em diversos contextos por inúmeros intelectuais9 com

intenções teóricas semelhantes entre si, todavia “[...]é possível compreender o recurso a

noção de habitus, um velho conceito aristotélico-temista que repensei completamente

como uma maneira de escapar dessa alternativa do estruturalismo sem sujeito e da

filosofia do sujeito” (BOURDIEU, 2004: p.22) . Em consonância, segundo Setton

(2002) o habitus emerge como um conceito apto para conciliar a suposta contraposição

entre o mundo exterior e a realidade subjetiva individual dos sujeitos.

Habitus é então concebido como um sistema de esquemas individuais,

socialmente constituído de disposições estruturadas no social e estruturantes

nas mentes, adquirido nas e pelas experiências práticas e condições sociais

específicas de existência constantemente orientado para funções e ações do

agir cotidiano (SETTON, 2002: p. 63)

Vale salientar que além de desfazer com a concepção dualista10 que opõe

indivíduo e sociedade, Bourdieu (2004, p. 98) sublinha que embora o habitus enquanto

um “sistema de disposições para a prática” em certa medida ofereça elementos ou uma

base para a tentativa de “prever” condutas em circunstâncias específicas, não pode ser

tomado como mecanismo garantidor da regularidade destas condutas, afinal “o habitus

está intimamente ligado com o fluido e o vago. Espontaneidade geradora que se afirma

8 Entrevista concedida por W.N.C. - presidente da VVJF, a pesquisadora Jessica Gleyce dos Reis Felix

em 26 de abril de 2017. João Pessoa. 1 arquivo gravado - Entrevista transcrita em processo de análise. 9O autor cita, por exemplo, Hegel, Husserl, Weber, Durkheim e Mauss. Ver: BOURDIEU, 1990: p. 24.

Em artigo intitulado “Esclarecer o habitus” o Professor Loic Wacquant também elabora uma

reconstituição da gênese da noção de habitus a partir dos trabalhos do autor. 10 Ver: WACQUANT, 2007: p. 67.

8

no confronto improvisado com situações constantemente renovadas, ele obedece a uma

lógica pratica, a lógica do fluido [...] que define a relação cotidiana com o mundo”

DELINEANDO OUTROS CONCEITOS E APONTANDO A METODOLOGIA

A formulação do conceito de representações proposto por Chartier, o qual

também nos apropriaremos, perpassa pelo diálogo e confronto com diversos autores no

contexto de suas reflexões sobre a história da história enquanto disciplina, com especial

ênfase em Pierre Bourdieu. Representações apreendidas aqui como classificações,

categorias que tornam inteligíveis as percepções do espaço pelo sujeito, constroem

sentidos e significados ao real, não obstante, são arraigadas de intencionalidades e

pretensões de universalização dos grupos que as constroem onde por consequência a

neutralidade é um valor inexistente; nas palavras do autor:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:

produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a

impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezadas, a legitimar

um projeto reformador ou a justificar os próprios indivíduos, as suas

escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações

supõem-nas como sempre colocadas num campo de concorrências e de

competição cujos desafios enunciam em termos de poder e dominação.

(CHARTIER, 1990: p. 17).

Assim é imprescindível um constante exercício de reflexão por parte do

historiador acerca dos embates no seio das relações entre as diversas representações

existentes mundo, sem, contudo arrefecer o interesse por outras esferas como social,

política ou econômica.

As relações dos indivíduos com o passado se estabelecem de múltiplas maneiras,

dentre elas está à produção do conhecimento histórico, destarte, a memória, seja ela

individual ou coletiva desempenha um papel considerável nessa construção. Contudo,

acionar o trabalho com a memória no campo da histografia embora ofereça-nos

inúmeras possibilidades requer do historiador uma postura diligente, para que não se

corra o risco de tomá-las enquanto retrato fiel de acontecimentos experienciados em

outras temporalidades, numa perspectiva homogeneizante, afinal “A construção de uma

9

memória segue muitas trilhas, algumas vezes, obedecendo às margens que o tempo lhe

ofereceu, outras vezes rompendo os limites e ocupando vastos territórios”

(MONTENEGRO, 2010: p.101).

Sendo assim recorreremos às concepções propostas por alguns autores, tendo em

vista que estaremos em constante diálogo com a memória através de depoimentos orais

e narrativas dos sujeitos inseridos na Vila Vicentina Julia Freire.

Em prefácio feito a edição da obra de Maurice Halbwachs (1990, p. 14) A

Memória Coletiva, Jean Duvignaud assinala como o autor demonstra a impossibilidade

de pensar o problema da localização da lembrança se não a partir de quadros reais,

referenciais para os exercícios da memória, pontuando que a evocação do depoimento

apresenta sentido apenas quando relacionada ao grupo do qual faz parte; neste sentido, a

memória individual, rememoração pessoal está entrelaçada as diversas “malhas de

solidariedade” com as quais o sujeito interage, o sujeito individual não foge a existência

social, e é a reunião de tais elementos que se manifesta em forma de lembrança e que

por sua vez exprime-se em linguagem.

Por consequência, para Halbwachs a memória se configura como um artifício

que demarca os elementos constituintes das identidades de uma comunidade. “Nossas

lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros mesmo que se

trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só

nós vimos. É porque na realidade nunca estamos sós” (HALBWACHS, 1990: p. 26).

Sendo assim, ainda segundo Halbwachs as afinidades, laços e as trajetórias comuns,

marcada pelas vivências cotidianas com as alegrias e intempéries de um grupo são os

princípios que formulam a memória comunitária, nesse sentido no âmbito da história

oral esses grupos tornam-se portadores de uma “comunidade de destino”11, de uma

coletividade afetiva de pertencimento mútuo.

Ao pensar sobre as relações entre a memória e a identidade social Michael

Pollak (1992) ressalta que as formas como as memórias se estruturam irão ser balizadas

pelas preocupações do momento, tanto individual quanto coletivamente. Em

11 Ver: MEIHY & HOLANDA, 2015: p. 52

10

complemento, para o autor, as identidades coletivas são construídas pelos grupos ao

longo do tempo, pautadas nos exercícios da memória, de modo a produzir em seus

integrantes noções de pertencimento e continuidade. Assim sendo, o exercício do

lembrar/rememorar coletivamente reitera sua importância, já que por meio desta

unidade os grupos elaboram narrativas sobre si, como afirma a seguir:

Em todos os níveis a memória é um fenômeno construído social e

individualmente, quando se trata de memória herdada podemos também

dizer que há uma ligação muito estreita entre a memória e o sentimento de

identidade [...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de

identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também

um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de

coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.

(POLLAK, 1992: p. 204).

Inserido em um contexto, de mudanças de percepção histórica e de revisionismo

da prática historiográfica o francês Pierre Nora (1993, p. 9), indica a vivência de um

processo de aceleração da história, e ao sistematizar suas reflexões acerca das diferenças

entre a história e a memória, define a história como o ato de reconstruir sempre em

incompletude aquilo que já não é; a memória por sua vez, “é a vida” e está em um

movimento constante de transformação, é dinâmica, na medida em que suscetível a

diversos usos e manipulações, caminhando sobre a linha tênue da lembrança e do

esquecimento.

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a

história uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a

memória não se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta de

lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou

simbólicas, sensível a todas as transferências, cena censuras ou projeções. A

história porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso

crítico. (NORA, 1993: p. 9)

Vale ressaltar que o autor também dialoga com Halbwachs tendo em vista que

aponta o caráter seletivo, individual, coletivo e plural da memória, atrelando sua

emergência aos grupos que ela une e as identidades que ajuda a construir.

Para Roger Chartier as contribuições da obra A memória, a história e o

esquecimento do filósofo Paul Ricoeur no que concernem as representações sobre o

11

passado histórico e as distinções entre memória e história são de extrema relevância,

pois fornecem os elementos necessários para questionar e categorizá-las no seio do

debate historiográfico, [...] o testemunho da memória é fiador da existência de um

passado que foi e não é mais. O discurso histórico encontra ali a certificação imediata e

evidente da referencialidade de seu objeto” (CHARTIER, 2015: p. 23)

Subdividindo este trabalho em três partes de acordo com o tema e o método,

como esclarece em advertência inicial, Ricoeur (2007, p 17) dedica à memória espaço

primordial em suas análises sob a égide de uma perspectiva da fenomenologia,

discutindo-a a partir dos diversos elementos que compõem a lembrança. Como aponta

Ivano (2015) ao analisar sua obra, a diversidade de sentidos atribuídos a memória e ao

esquecimento extingue a possibilidade de estabelecer relações mecânicas entre os

exercícios de lembrar e esquecer. A percepção do contexto e condições históricas em

que a memória está inserida é essencial para pensar as múltiplas questões que a

orientam e envolvem “Para Ricoeur, a fundamentação dessas condições passa pelo

entendimento do tempo, isso quer dizer, do modo como os sujeitos compreendem a si

como históricos com suas posturas diante do passado e do futuro” (IVANO, 2015: p.

09).

Outro importante referencial teórico e metodológico para este trabalho é a densa

obra de Ecléa Bosi Memória e sociedade: lembranças de velhos, que editado pela

primeira vez em 1979, confere visibilidade a velhice a partir das memórias e histórias de

vida e trabalho de oito idosos com mais de 70 anos, tendo como pano de fundo a cidade

de São Paulo, dialogando com as perspectivas de autores como Halbwachs, Bartlett,

Stern e Bergson acerca da memória, a autora discute questões como o lugar do idoso nas

sociedades contemporâneas, e como salienta a seguir transita de forma consciente entre

os dois temas de extrema complexidade “[...] não pretendi escrever uma obra sobre

memória, tampouco sobre velhice. Fiquei na intersecção dessas realidades: colhi

memórias de velhos. (BOSI, 1994: p. 39)

Entre os conceitos que também pretendemos tomar por empréstimo está a noção

de disciplina formulada em Foucault (2005). O autor assinala que embora os processos

12

de controle das operações sobre o corpo já existissem inclusive em diversas instituições

como os conventos e exércitos, é no transcorrer dos séculos XVII e XVIII que as

disciplinas se transformam em “fórmulas gerais de dominação”.

“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte

do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,

nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que

no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e

inversamente [...]A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,

corpos ‘dóceis’ (FOUCAULT, 2005: p. 119)

Exercício inequívoco de alteridade, a metodologia principal desta pesquisa é a

história oral, e para uma operacionalização adequada dos seus pressupostos nos

apropriaremos das concepções indicadas por historiadores e profissionais de outros

campos com experiência no tema.

“Memórias, percursos, reflexões” este é o título da entrevista realizada com o

professor, historiador, especialista em relatos orais Antônio Torres Montenegro, no ano

de 2008 que inaugurava a sessão de entrevistas da Revista Saeculum vinculada ao

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde

discorre sobre questões intrínsecas ao fazer historiográfico, como a memória, a pesquisa

e o ensino de história. Entre os problemas que envolvem o uso do termo história oral

Montenegro é enfático ao pontuar:

“[...] a história oral não existe enquanto área do conhecimento- eu pelo

menos estou alinhado com pesquisadores e historiadores que vêem no uso

das fontes orais apenas uma forma de produzir uma fonte para o trabalho do

historiador- e nisso continuo discordando frontalmente daqueles que dizem

que publicar entrevista é fazer um tipo diferente de história chamado história

oral. Para mim, publicar um documento [...] é um trabalho técnico, mas a

pesquisa, o cruzamento de fontes, enfim tudo que enseja a complexa

operação historiográfica, só ocorre na hora em que se faz uma análise,

quando se constrói uma narrativa histórica. (MONTENEGRO, 2008: p. 194)

Como aponta Lozano (2006), aplicada em pesquisas nas diversas áreas do

conhecimento, a prática da história oral, também se utiliza dos instrumentos teóricos de

várias disciplinas das ciências humanas e assim como outros procedimentos

metodológicos contempla com rigor as mesmas fases da análise histórica exigindo do

13

historiador-pesquisador uma postura ética e reflexiva para o desenvolvimento da

entrevista “O historiador oral é mais que um gravador que registra os indivíduos sem

voz, pois procura fazer com que o depoimento não desloque nem substitua a pesquisa e

conseqüentemente a análise histórica” (LOZANO, 2006: p. 17).

Para Verena Alberti (2008: p. 155) a história oral permite o acesso à história

dentro da história estendendo possibilidades de interpretação do passado; já Meihy &

Holanda (2015: p, 17) entre algumas das perspectivas apresentadas em profícuo

trabalho, pontuam que a História Oral é sempre uma história do tempo presente, na

medida em que seu produto é sempre elaborado por colaboradores vivos em seus

exercícios de rememoração, com a mediação do pesquisador que por sua vez segue um

conjunto de regras e procedimentos específicos, de todo modo como sugere a autora,

entrar em contato com o cotidiano de sujeitos comuns através das entrevistas possibilita

agregar uma dimensão de vida ao trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em resumo, embora os estudos acerca da velhice e das múltiplas questões que a

envolvem ainda sejam escassos nas ciências humanas e sociais em geral, refletir sobre

os amplos e profícuos caminhos e possibilidades que o tema nos oferece tornou-se uma

operação de grande importância, tendo em vista inclusive a oportunidade de dialogar

com outras áreas do conhecimento, modalidades historiográficas, e com seus

respectivos conceitos e métodos.

Nesse sentido, pautada nos pressupostos acima mencionados, o presente trabalho

buscou apresentar de forma sucinta algumas das principais discussões que

acompanharão o desenvolvimento da pesquisa, cujo principal objetivo é analisar quais

as práticas e representações sobre e para a velhice elaboradas/construídas pelos sujeitos

inseridos na Instituição de Longa Permanência para Idosos Vila Vicentina Julia Freire,

com ênfase especial aos voluntários vicentinos que a dirigem e coordenam e relações de

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