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VALTER DO CARMO CRUZ PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA. Dissertação apresentada ao curso de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental (urbano e regional). Orientador Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA Niterói - RJ 2006

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VALTER DO CARMO CRUZ

PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA.

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental (urbano e regional).

Orientador Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA

Niterói - RJ

2006

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VALTER DO CARMO CRUZ

PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA.

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental (urbano e regional).

Aprovada em maio de 2006

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. ROGÉRIO HAESBAERT DA COSTA - Orientador UFF

Prof. Dr. CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES

Prof.Dr. MARCIO PINÔN DE OLIVEIRA

Prof. Dra. ROSA E. ACEVEDO MARIN

Niterói - RJ 2006

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Dedicatória

Dedico este trabalho a minha família; Ao professor Cincinato Marques e

Às populações rurais e ribeirinhas de Cametá

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Agradecimentos

Para filósofos como Espinosa e Deleuze não existem o bem e o mal, mas bons e

maus encontros. Os maus encontros nos fazem adoecer, secar e sofrer. Já os bons encontros

produzem a criatividade, beleza e a felicidade que possibilitam a realização de toda potência

humana. Quero agradecer aos “bons encontros” que possibilitaram a realização dessa

dissertação, é desses encontros que resultam o presente trabalho.

Ao bom encontro entre meus pais (Samuel e Maria Rita) que deu origem a minha

família. Obrigado pai e mãe por sempre me apoiarem sem medir esforços e sacrifícios para

que eu realizasse os meus sonhos. Aos meus irmãos (Osias, Augusto, Dileuza e Nilma),

obrigado pelos incentivos, pelo afeto e solidariedade mesmo nos momentos difíceis,

continuarem acreditando em mim, transmitindo-me ímpeto para lutar a cada dia.

Ao encontro com o professor Cincinato Marques que me deu apoio e incentivo num

momento muito difícil da minha vida e que, em todos os sentidos, permitiu-me viajar ao

encontro do meu sonho de cursar o mestrado.

Aos Amigos no Pará: Torquato Maia, Edir Augusto, Veridiana Pompeu, Macks

Fonseca, Edgar chagas e Vanda Pantoja com quem venho a alguns anos compartilhando uma

relação de amizade marcada por trocas afetivas e intelectuais nas quais se misturam “piadas”,

teorias e dramas existenciais compartilhados nos bares da vida.

Ao encontro no Rio de Janeiro com novos e bem vindos amigos: Maria de Jesus

(companheira de “saudades amazônicas”), Fernando (parceiro de “conexões de saberes”),

Mônica e Bira, (“minha família” em Santa Tereza) Warley (“mineiro”, companheiro de

sobrevivência diante dos percalços nas terras cariocas), e os companheiros cearenses Flávio e

Manoel Fernandes (com os quais compartilhei agradáveis diálogos que iam desde “os papos

sobre futebol aos rumos da ciência geográfica”) pessoas essas por quem cultivo uma forte

amizade e um enorme carinho.

Ao encontro com Patrícia Feitosa, companheira que me acompanhou e apoiou nos

meus primeiros passos pelas terras cariocas.

Ao encontro com os meus colegas do curso de mestrado sempre muito solidários e

calorosos, em especial a Tatiana, Vanessa e Rafael pela atenção e carinho.

Aos encontros das quintas-feiras no grupo de estudo NUREG, “território” de intensa

reflexão, formulação e confraternização. Aos “nureguianos” obrigado pelo carinho e pela

convivência: Thiago, Vânia, Penha Caetano, Marcelus e especialmente a Denílson (grande

amigo) por nossas infindáveis, mas sempre produtivas e agradáveis conversas “teóricas”.

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Ao encontro com os professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia –

PPG -UFF que sempre se mostram disponíveis, solidários e compreensíveis para com as

minhas inquietações intelectuais: Ruy Moreira, Jailsom Souza, Esther Limond (a realização

das disciplinas desses professores contribuíram muito para as reflexões contidas nesse

trabalho). A Márcio Pinon (pela atenção e incentivo cotidiano e pelas discussões do projeto).

Ao encontro com Ivaldo Lima (pelas importantes, cuidadosas e elegantes observações feitas

acerca do meu trabalho no exame de qualificação) e com Carlos Walter Porto Gonçalves (por

ter acompanhado todas as etapas desse trabalho e ter aberto um democrático, rico e fraterno

canal de diálogo intelectual e também por apresentar-me o “admirável mundo novo” do

pensamento latino americano).

Ao encontro com o professor Rogério Haesbaert pelo rico e produtivo diálogo que

possibilitou a realização deste trabalho e pela possibilidade de construção de uma amizade

que me permitiu conhecer um exemplo de pessoa e de intelectual, que consegue aliar um

profundo rigor acadêmico com uma grande sensibilidade humana. Foi um bom encontro que

me possibilitou um grande aprendizado!

Ao “bom” e “maravilhoso” encontro com o meu amor, Amélia Cristina, minha

companheira, com quem compartilhei alegrias, carinhos, angústias e aprendizados, a sua

companhia deu muito mais sentido e ternura a minha vida.

E ainda diante de meus (des)encontros com o computador, com a gramática, com a

cartografia, com a impossibilidade de viajar e realizar pesquisas, essas pessoas foram de

maneira direta fundamentais para que pudéssemos finalizar essa dissertação. Obrigado!

Amélia Cristina, Edir Augusto, Maria de Jesus, Osias Cruz, Edgar Monteiro, Torquato Maia,

Michele Sena, Regina Vasconcelos, José Domingos Barra, Arthur Brasa e Ivo Martins.

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A fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que o faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como o índio de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um esses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da história.

José se Souza Martins Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem á luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia em no momento em que desaparecem os ruídos da refrega.

Zigmunt Bauman

RESUMO

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O modelo que orientou o processo de ocupação e apropriação da Amazônia nas últimas

décadas esteve pautado na crença na modernização como a única força capaz de

“desenvolver” a região, não importando o seu custo social, cultural e político. Esse projeto

está pautado numa espécie de “fundamentalismo do progresso” que criou um imaginário em

que se atribui a priori uma positividade ao novo, ao moderno e uma negatividade ao velho,

ao passado ao tradicional, justificando um conjunto de práticas e representações marcadas

pela violência e pelo colonialismo que servem para justificar a subalternização das

populações locais. Tais populações e seus modos de vida são concebidas como

“tradicionais”, logo como obstáculos ao “desenvolvimento” e a “modernização”. Na luta

contra esse imaginário moderno/colonial emerge no final dos anos 80 diversos movimentos

sociais que iniciaram um processo de questionamento das representações, discursos e

ideologias hegemônicas construídas sobre as “populações tradicionais”. Esses movimentos

lutam pela afirmação das territorialidades e identidades territoriais como elemento de r-

existência a esse projeto, pois segundo Gonçalves (2001), não só lutam para resistir, mas

também por uma determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de

produção, por diferenciados modos de sentir, agir e pensar.É nesse contexto, podemos

verificar a emergência de diferentes identidades na Amazônia, construídas pelos diferentes

movimentos sociais ligados as populações “tradicionais”, tais como índios, ribeirinhos,

seringueiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.

Essas populações mobilizam estrategicamente e perfomaticamente novos discursos

identitários que apontam para uma valorização e politização dos modos de vida, das

memórias e culturas “tradicionais” que historicamente foram suprimidas, silenciadas e

invisibilizadas. O objetivo deste trabalho é analisar esse processo a partir de um caso

específico, neste sentido queremos entender como vem sendo construída de maneira

relacional e contrastiva uma identidade ribeirinha no município Cametá-PA, através de um

processo de politização da cultura ribeirinha(que tem no rio seu espaço de referência

identitária ) e da construção de uma consciência socioespacial de pertencimento, o que tem

implicado na constituição de novos sujeitos políticos que emergem das lutas contra as formas

de exploração e dominação a nível local e contra os impactos dos processos de

“modernização” a nível regional.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................11

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................23

1. CAPÍTULO: ITINERÁRIOS TEÓRICOS PARA SE PENSAR A RELAÇÃO TERRITÓRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA ......................27

1.1 DIFERENÇA, IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO ....................................................................30

1.2 REPRESENTAÇÃO, PODER E HEGEMONIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE.........33 1.3 IDENTIDADES TERRITORIAIS:UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA DO ENTENDIMENTO DA QUESTÃO DAS IDENTIDADES ....................................................37

1.4 AS EXPERIÊNCIAS ESPAÇO-TEMPORAIS E A QUESTÃO DAS ESCALAS NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES TERRITORIAIS .......................................................45

1.5 NOVAS REPRESENTAÇÕES SOBRE AMAZÔNIA E QUESTÃO DAS IDENTIDADES ....48

1.6 R-EXISTÊNCIA, TERRITORIALIDADE E LUTAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES NA AMAZÔNIA ........................................................................................54

1.7 PRESSUPOSTOS GERAIS PARA PENSARMOS A QUESTÃO DAS IDENTIDADES TERRITORIAIS NA AMAZÔNIA ....................................................................64 2. CAPÍTULO: AMAZÔNIA: DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA A FRONTEIRA DAS IDENTIDADES ................................................................................66

2.1 DA METÁFORA AO CONCEITO OU UM CONCEITO-METÁFORA ......................................68

2.2 TURNER E A FRONTEIRA AMERICANA: A ORIGEM E A CONSAGRAÇÃO DE UM CONCEITO-MITO ............................................................................................................70

2.3 A QUESTÃO DA FRONTEIRA NO BRASIL ...............................................................................76

2.4 A AMAZÔNIA COMO FRONTEIRA ...........................................................................................78

2.4.1 A Amazônia como fronteira: “um espaço não plenamente estruturado” .......................79

2.4.2 A Amazônia como fronteira: “o lugar da alteridade” e “o território do outro” ............85

2.5 DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA A FRONTEIRA DAS IDENTIDADES ........................92

3. CAPÍTULO: OS MÚLTIPLOS TEMPO-ESPAÇOS DA FRONTEIRA: DIVERSIDADE TERRITORIAL, MODO DE VIDA E LUTAS SOCIAIS NO BAIXO TOCANTINS .................................................................................................95

3.1 FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL DO BAIXO TOCANTINS ......................101

3.2 O RIO COMO ESPAÇO DE REFERÊNCIA IDENTITÁRIA: ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL E MODO DE VIDA RIBEIRINHA EM CAMETÁ....................................106

3.3 O PROCESSO DESIGUAL DE REORGANIZAÇÃO ESPAÇO-TEMPORAL PÓS 1970 NO BAIXO TOCANTINS ..................................................................................................................118

3.4 OS “IMPACTOS” DA HIDRELÉTRICA, MOBILIZAÇÃO SOCIAL E CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES ............................................................................................................................128

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4. CAPÍTULO: PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: A CONSTRUÇÃO

DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMETÁ ......................................................136 4.1 CAMETÁ “TERRA DOS NOTÁVEIS”, “CIDADE INVICTA”: FORMAÇÃO HISTÓRICA E FUNDAÇÃO MITOLÓGICA .............................................................................138

4.1.1 Formação histórica ............................................................................................................141

4.1.2 Fundação mitológica ..........................................................................................................148

4.2 LUTAS SOCIAIS, PROTAGONISMO POLÍTICO E A CONSTITUIÇÃO DE NOVOS SUJEITOS : A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMETÁ ..................156 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................185

6. BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................192

APRESENTAÇÃO

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Nossos itinerários de vida se refletem nos caminhos que tomamos no campo da

ciência, e mesmo que muitas vezes não tenhamos consciência, é na relação e tensão entre

biografia e bibliografia que construímos nossos objetos de pesquisa. Assim, a construção de

um objeto de estudo envolve escolhas teóricas, perpassa o posicionamento político-

ideológico, bem como o envolvimento afetivo-emocional do pesquisador.

Neste sentido, nossas reflexões acadêmicas estão literalmente incorporadas e

localizadas, ou seja, existe uma profunda relação entre o que se fala, com quem se fala e de

onde se fala, ou, como argumenta Mignolo (2003), as localizações epistemológicas têm uma

estreita relação com os espaços geográficos. O conhecimento não pode ser pensado fora dos

locais geohistóricos de sua produção. O sujeito que produz conhecimento não é universal e

abstrato, como afirmou a ciência positivista e eurocêntrica, não existe um saber universal,

todo conhecimento está sempre localizado em uma experiência cultural singular e numa

sensibilidade histórica específica.

Partindo dessas premissas, cabe perguntar: por que estudar identidades territoriais na

Amazônia? Responder a essa questão implica em refletir sobre a minha própria identidade,

ou melhor, sobre os múltiplos processos de identificação que venho experimentando ao longo

de minha vida em conseqüência das múltiplas des-territorializações que vivi, da diversidade

de tempo-espaços e culturas que vivenciei. Pois não estamos apenas falando sobre a

Amazônia, mas também a partir da Amazônia.

É na condição de Amazônida que queremos refletir sobre as identidades territoriais

na região. É nesse movimento rico, tenso e delicado de des-locamento do olhar, onde ora sou

“nativo” arraigado nas entranhas, ora estranho, “estrangeiro”, é que construímos nosso objeto

de pesquisa.Foi nessa relação de proximidade e distanciamento que realizamos este trabalho.

Assim, para o entendimento dos seus futuros leitores, cabe aqui reconstruir sinteticamente o

processo de construção do nosso objeto de estudo, onde os itinerários de vidas se entrelaçam

com os caminhos teóricos fecundando a pesquisa.

Itinerários de vida, caminhos teóricos: a construção do objeto de pesquisa.

Sou filho de trabalhadores rurais e até a adolescência vivi num povoado chamado

Porto Grande, pertencente ao município de Cametá, localizado no baixo curso do rio

Tocantins, na porção Nordeste do Pará. Nessa época o povoado contava com menos de mil

habitantes, não tinha telefone ou energia elétrica e ficava praticamente isolado por falta de

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estradas, o que dificultava a ligação com outros lugares, efetuada quase que exclusivamente

através do rio.

Minha família, tal como a maioria que ali residia, vivia da agricultura, mas devido às

dificuldades de acesso aos serviços de educação e saúde resolveu mudar para a zona urbana

para procurar melhores condições de vida. Foi assim que mudamos para a cidade de Cametá

(sede do município).

Assim, no início dos anos 90 comecei a experimentar o modo de vida urbano. É

nesse momento que tive uma experiência marcante: descobri na escola o que era a

“Amazônia”. Até então, tinha apenas uma vaga idéia... Achava que essa palavra significava o

mesmo que o estado do Amazonas. Fiquei surpreso quando soube que morava na Amazônia.

Comecei a estudar as transformações que ocorreram na região, os chamados “grandes

projetos”, mas tudo parecia muito distante; afinal eu nunca tinha saído de Cametá, e não eram

“visíveis” na paisagem do município as “marcas” do processo de modernização, pois apesar

dos grandes impactos da UHT na vida de uma grande parcela da população do município, em

especial as populações ribeirinhas, a percepção desses efeitos negativos não era explícita para

a grande maioria da população.

A mudança nessa forma de olhar a minha realidade ocorreu quando realizamos uma

pesquisa, na 8° serie do ensino fundamental, sobre os impactos sociais e ecológicos da

hidrelétrica de Turucuí sobre as populações ribeirinhas que moravam nas ilhas do município.

Ao ouvir as pessoas relatarem os profundos impactos negativos da Barragem em suas vidas

cotidianas, comecei a relacionar as questões do meu cotidiano imediato com questões e

processos em escalas mais amplas. Porque, naquele exato momento estávamos vivenciando

uma grave crise de energia elétrica no município de Cametá e no Baixo Tocantins como um

todo, visto que o sistema de usinas termoelétricas que alimentava os municípios estava falido.

Era constante a falta de energia, embora, contraditoriamente, tivéssemos ao lado uma das

maiores hidrelétricas do país funcionando há mais de uma década sem que a população do

seu entorno imediato tivesse acesso à energia.

O acesso à energia produzida pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT) só ocorreu

quase quinze anos depois do início de seu funcionamento e só se realizou graças às intensas

lutas dos movimentos sociais da região. Neste momento comecei a ter consciência da lógica

excludente dos processos modernizadores na região e, por ocasião da militância no

movimento estudantil, tive a oportunidade de participar das lutas pelo acesso à energia

elétrica da UHT.

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Em 1998 meu horizonte geográfico se ampliou: com dezoito anos conheci Belém e

pela primeira vez na vida meu olhar foi des-locado significativamente, experimentei uma

nova temporalidade, a vida e o ritmo metropolitano tiveram um impacto profundo sobre

minha vida e minha identidade. No mesmo ano conheci e fui morar em Tucuruí, onde passei

dois anos. Mudei para Tucuruí para cursar a graduação em geografia numa turma ”intervalar”

(curso para formações de professores oferecido no período de férias escolares pela UFPA) e lá

também trabalhei como professor do ensino fundamental, experimentando uma outra face do

Pará e da Amazônia.

A experiência espaço-temporal em Tucuruí foi paradoxal, pois era ao mesmo tempo

muito perto e muito longe! Perto geograficamente de Cametá, mas distante social e

culturalmente, com uma outra temporalidade, um ritmo diferente da Amazônia ribeirinha a

que eu estava acostumado. Senti-me “estrangeiro” na Amazônia, pois em Tucuruí a maioria

da população não é Paraense, as roupas, as músicas, a culinária, tudo era muito diferente do

que eu estava acostumado.

Lembro-me no dia em que, recém-chegado, fui almoçar com um grupo de amigos,

todos acostumados com a cultura e a cozinha ribeirinha, na feira livre de Tucucuí. Solicitamos

o cardápio numa das “barracas” e, para nossa surpresa, não conhecíamos o nome de

praticamente prato algum, pois se tratava de pratos nordestinos, mineiros e sulistas. Assim

como os sabores, os sons, as músicas preferidas e executadas na rádio local também não eram

as músicas populares típicas do Pará.

Escutando a programação da rádio local descobri quadros humorísticos dedicados a

satirizar o “caboclo” cametaense, reforçando uma representação estereotipada do homem

rural-riberinho. Esse estereótipo povoa o imaginário local e muitas vezes fui questionado

sobre determinados “atributos” da minha identidade, sendo comuns frases do tipo: “você não

parece cametaense”, “você não fala como cametaense”. Foi nesse momento que comecei a me

perguntar sobre o que era de fato uma identidade cametaense, sobre o que era uma

“identidade cabocla”. Identidade que começava a descobrir, não como auto-identificação,

mas como estigma, como estereótipo, pois ser cametaense significava naquele contexto estar

atrelado a toda uma imagem-discurso do “caboclo” que representava uma Amazônia anterior

à “modernização”, uma Amazônia “atrasada”.

Mais tarde fui morar em Belém, e o contato com a dinâmica e a vida metropolitana

apontava e reforçava uma questão: como entender tamanha diversidade territorial na

Amazônia? A Amazônia existia como unidade ou como região ou era uma invenção? Como

pensar as identidades e as diferenças nesse contexto? Essas questões se tornaram mais

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urgentes quando saí da região e conheci o Nordeste e o Sudeste brasileiro, pois essas novas

experiências espaço-temporais revelavam com mais contundência o quanto era forte a idéia de

uma Amazônia imaginária, muitas vezes no próprio mundo acadêmico.

Essas inquietações ganharam um eco teórico quando conheci o livro O poder

simbólico de Pierre Bourdieu. O capítulo sobre: identidade e representação, elementos para

uma reflexão crítica sobre a idéia de região me desnorteou, abalou as poucas certezas

acumuladas nos meus dois anos de curso de geografia. Na tentativa de compreender tais

questões, iniciei um percurso de leituras que me levou às herméticas reflexões sobre o

discurso em Foucault; embora essas leituras não tenham se apresentado com muita clareza

para mim, elas me deslocaram de uma geografia de cunho marxista muito popularizada e

vulgarizada nos cursos de geografia Brasil afora.

Nessa busca acabei conhecendo a chamada geografia cultural. Sem condições de

distinguir as várias vertentes que comportam esse rótulo, comecei a ler autores de diversas

perspectivas teóricas e filosóficas, desde a linha culturalista do marxismo como Denis

Coscrove, até uma perspectiva fundamentada na semiótica estruturalista como a de Paul

Claval. Na tentativa de aprofundamento sobre a relação cultura e espaço cheguei à

antropologia interpretativa de Geertz, que se mostrou profundamente rica e sedutora. Mas foi

quando descobri um texto chamado território, poesia e identidade do professor Rogério

Haesbaert que o tema da cultura e da identidade começou a ganhar os contornos de uma

problemática. Mais tarde, ao ler outro artigo do mesmo autor, denominado Identidades

territoriais, surgiu de fato uma problemática, e comecei a formular questões como: Como se

construiu a identidade “caboclo-ribeirinha” em Cametá? A identidade “caboclo-ribeirinha” é

uma identidade territorial? Qual o papel do rio na construção da identidade “caboclo-

ribeirinha”?

Essas questões deram origem à nossa monografia de final de curso de graduação em

Geografia na UFPA (Universidade Federal do Pará), na qual tentei entender o processo de

construção da identidade cametaense através de músicas e poemas de artistas locais. Este

trabalho foi assentado numa visão excessivamente culturalista, influenciada, sobretudo, pela

chamada Geografia cultural francesa. Nossa análise primava pelos significados simbólicos da

identidade, e embora os conflitos de poder estivessem presentes nas nossas reflexões,

apareceram apenas como lutas incorpóreas de significados e representações, limitados à

textualidade e, desse modo, não conseguimos chegar à materialidade dos sujeitos e dos

conflitos concretos. Com base nas reflexões produzidas nesse trabalho de monografia é que

construímos nossa proposta de pesquisa para o curso de mestrado.

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Ao longo do curso de mestrado redefinimos gradativamente o nosso objeto de

estudo, pois as leituras, tanto as relacionadas às disciplinas, como as do grupo de estudo

NUREG (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Globalização e Regionalização), levaram-me a

uma aproximação de autores dos chamados estudos culturais, tais como Stuart Hall e Homi

Babha, bem como de autores latino-americanos a exemplo de Walter Mignolo, Henrique

Dussel, Aníbal Quijano, Aturo Escobar1 e ainda da instigante obra de Boaventura de Souza

Santos. As reflexões desses autores, que enfocam a discussão do chamado pós-colonialismo,

redefiniram minhas perspectivas epistemológicas e teóricas de entendimento da identidade,

pelo fato de apontarem para um entendimento da cultura para além de uma dimensão

simbólica e discursiva, enfatizando a inerente relação entre cultura e poder, levando,

portanto, a um entendimento da cultura como algo indissociável da política.

Essa nova sensibilidade epistemológica e o distanciamento da realidade amazônica

des-locaram o foco do nosso olhar e redefiniram nossa pesquisa, apontando para dois

pressupostos teóricos gerais que orientaram este trabalho:

a) A identidade como uma construção histórica relacional e contrastiva que

envolve ao mesmo tempo uma dimensão material e simbólica;

b) A identidade não como essência, mas com algo estratégico e posicional,

estando em estreitas conexões com relações mais amplas de poder da sociedade, sendo

produto e produtora de lutas sociais.

Compreendendo a identidade a partir desse prisma que assinala a sua natureza

política, verificamos que a questão identitária estava presente como um elemento central na

dinâmica sociocultural e territorial da Amazônia contemporânea. Para formularmos essa

hipótese de trabalho acompanhamos durante um mês o telejornal local na Televisão paraense,

através do qual verificamos que quase todos os dias apareciam manchetes sobre conflitos

sociais envolvendo índios, garimpeiros, pescadores, trabalhadores rurais, madeireiros,

fazendeiros, empresas de mineração etc. Tais conflitos envolviam lutas por questões

redistributivas, por recursos materiais como terra e por questões de reconhecimento, que

envolvem elementos étnicos, culturais e de afirmação identitária como territórios.

Assim, podemos verificar que apesar do nosso foco de análise estar centrado numa

questão singular, em um estudo de caso - a construção de uma identidade ribeirinha no

município de Cametá -, a afirmação das identidades territoriais pelas populações

1 Vale ressaltar a importância da disciplina geografia e movimentos sociais ministrada pelo professor Carlos Walter Porto Gonçalves, pois nesse curso tive a oportunidade de conhecer a riqueza do pensamento social Latino-americano, normalmente ignorado pelas ciências sociais brasileiras e em especial pela geografia.

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“tradicionais” não é uma especificidade exclusiva da dinâmica deste Município, mas está

presente por toda a região amazônica. Assim, cabe perguntar: O que faz com que a questão

identitária tenha tanta visibilidade na Amazônia?

Na tentativa de buscar elementos para compreendermos a particularidade da

Amazônia como formação econômica e social, ou simplesmente formação socioespacial,

percorremos a literatura existente sobre a região e constatamos a existência de uma espécie de

“consenso” interpretativo, em que a maioria dos autores concebe a Amazônia enquanto uma

região de fronteira. Essa noção que ora assume a forma de conceituação é o ponto de partida

para o entendimento da especificidade da região, sobretudo quando se trata de autores de

“fora” da região. Desse modo, resolvemos estabelecer um diálogo com essa tradição, tentando

fazer ao mesmo tempo uma “tradução” desse debate a partir de uma leitura “sob rasura” do

conceito, buscando re-significar sua “carga” etnocêntrica, olhando a fronteira a partir de um

“outro lado”, da “outra margem”, vendo-a através do olhar das “vítimas”, como sugere José

de Souza Martins.

A partir desse olhar, a fronteira, tem dois lados: o lado dos vencedores

(modernidade) e o lado dos vencidos (colonialidade), ou então o lado da “civilização” e o da

“barbárie”. Nesta concepção a fronteira é onde a coexistência, o (des)encontro e o confronto

de temporalidades históricas, apontam de maneira contundente para a questão do conflito, da

identidade e da diferença. A fronteira é o “lugar da alteridade”, é o “território do outro”. É,

pois, pelo avanço da fronteira que de alguma forma se intensifica a representação do

“caboclo” estereotipada em antítese ao “pioneiro”. Todavia, é também pela r-existência a esse

avanço que as identidades das “populações tradicionais” são re-inventadas e re-significadas

politicamente.

Assim, entre uma discussão teórica, geral e abstrata sobre identidade e a

singularidade da construção da identidade ribeirinha no município de Cametá, que constitui

nosso estudo de caso, consideramos como mediação, como particularidade a formação

socioespacial da Amazônia a sua condição de fronteira, como importante elemento para

compreensão da força da questão das identitária na região.

Contextos, escalas, sujeitos e questões: pensando o objeto de pesquisa.

O município de Cametá, referência empírica a partir da qual construímos nosso

objeto de estudo, está localizado a aproximadamente 140 km de Belém, e se situa na

mesoregião do Nordeste paraense. O município tem uma população de 105. 504 habitantes. A

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população residente na área urbana corresponde a 41,42% e o meio rural é habitado por

58,58%.(IBGE, 2000). Deste total da área rural mais de 50%, cerca de 30 mil pessoas,

encontra-se na região das ilhas, o que equivale a um total de 122 localidades com 523

Comunidades Cristãs (Fonte: Prelazia de Cametá).

Figura 1: Localização do Município de Cametá no Estado do Pará

(Fonte: Elaborado pelo autor a partir de http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php)

O município de Cametá foi um dos primeiros núcleos de povoamento resultantes do

processo de colonização da Amazônia. Durante muito tempo foi a segunda cidade na

hierarquia da rede urbana paraense, ocupando até as décadas de 1950 e 1960 uma posição de

destaque na dinâmica econômica e política do estado do Pará. Mas com a expansão da

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fronteira econômica e demográfica a cidade perdeu a sua importância diante da nova dinâmica

econômica e socioespacial.

A economia cametaense esteve historicamente baseada no extrativismo de produtos

tais como: cacau, andiroba, ucuúba, castanha, borracha, açaí, palmito, bem como a pesca e a

agricultura de subsistência. Essas atividades constituíram ao longo da história do município os

meios de sobrevivência para a maioria da população, assim como a fonte de lucros para uma

elite mercantil, que historicamente tem explorado as populações rurais e ribeirinhas por via do

mecanismo de aviamento, o que resultou num contraste social marcante: de um lado a

permanência da maioria da população nas ilhas, povoados e vilas vivendo em precárias

condições; de outro, as famílias de comerciantes normalmente descendentes de estrangeiros

(portugueses, turcos, libaneses, judeus etc) que ostentavam riqueza e viviam na cidade, sede

do município.

Essa lógica econômica e geográfica rural-ribeirinho versus urbano também se

materializava de alguma forma na constituição e configuração do poder político. As famílias

tradicionais de comerciantes normalmente constituíam a elite política. Como só essas

oligarquias tinham acesso à educação e aos meios da cultura institucionalizada representavam

igualmente a elite intelectual do município, sendo comum o fato de as famílias tradicionais

mandarem seus filhos estudar em Belém, no Rio de Janeiro e até na Europa.

Muitos desses cametaenses, filhos da elite mercantil, que formavam a oligarquia

política alcançaram altos postos no clero e na política regional e nacional, tornando-se

“homens notáveis”. Essa acumulação de poder econômico, político e simbólico se

materializou na construção de uma narrativa histórica do município – que é, na verdade, uma

memória dos “notáveis” –, cujos mitos fundadores e símbolos tentam impor todo um “magma

de significações” à configuração da identidade cametaense para transformá-la numa

“identidade dos notáveis” – “Cametá, cidade dos notáveis” – , uma identidade branca, urbana

e rica.

Para forjar essa história e essa identidade hegemônica legitimadora das formas de

exploração e dominação social se silenciou e subalternizou a história, a memória e as

identidades das populações pobres, mestiças, rurais e ribeirinhas que tinham sua identificação

marcada historicamente pelo discurso colonialista fundamentado no estigma e estereótipo do

“caboclo”, estando a alteridade, a diferença, subalternizada e oculta na identidade do

“notável”.

Contudo, essa identidade hegemônica e legitimadora das relações de poder

instituídas e institucionalizadas em Cametá vem sendo questionada, deslocada, fraturada pelo

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protagonismo político das organizações sociais de origem rural e ribeirinha que r-existem

afirmando sua diferença subalternizada, lutando material e simbolicamente para re-significar a

sua identidade ribeirinha.

Esse processo vem acontecendo pela atuação dos movimentos sociais,

fundamentalmente compostos por trabalhadores rurais e ribeirinhos que representam quase

60% da população do município e que historicamente vivem nas centenas de ilhas, nas vilas e

povoados no interior do município. Esse movimento institucionalizou-se via colônia dos

pescadores, no sindicato de trabalhadores rurais, associações de crédito, ONGs, na Igreja

católica, no Partido dos Trabalhadores, bem como em associações e movimentos sociais

articulados em escalas mais amplas .

Esse movimento se forjou pelas forças sociais exploradas e oprimidas

historicamente, mas que começaram a constituir-se como sujeito, como atores protagonistas

na cena política a partir do final dos anos 1970. Esse processo se deu em duas escalas e com /

contra duas dinâmicas opressivas. Primeiramente, na escala do município de Cametá, contra

as formas de dominação e exploração das populações rurais e ribeirinhas pelos “homens

notáveis”. Na escala da região do Baixo Tocantins na luta contra os “impactos” da construção

da hidrelétrica de Tucuruí. É nesse jogo de escalas e confrontos que o protagonismo desses

sujeitos ganhou densidade histórica.

Mas indubitavelmente a construção da UHT (Usina Hidroelétrica de Tucuruí ) foi

um marco decisivo nesse processo. Essa Barragem não barrou só o rio, ela fragmentou a

dinâmica regional diferenciando profundamente a textura e a tessitura do tempo/espaço do

Baixo e Médio Tocantins, mudando a lógica da divisão territorial do trabalho e os modos de

vida. O represamento do rio implicou em profundos impactos ecológicos e sociais, pois a

barragem das águas afetou a qualidade da água o que gerou graves problemas de saúde entre

as populações ribeirinhas, afetando também a produção pesqueira, que apresentou um declínio

de 65% nos anos 1980, bem como a produção extrativa das áreas de várzea.

Assim, ocorre uma drástica queda nas atividades extrativas e um declínio na

produção pesqueira, fazendo com que a pesca perdesse sua posição de destaque na economia

regional, afetando a qualidade de vida de milhares de pessoas que tinham ancorado no rio sua

produção e reprodução social.

É na luta e r-existência contra esse projeto autoritário de uma “modernização

conservadora” (na escala regional) e contra os “homens notáveis” (na escala local) que o

movimento dos ribeirinhos e trabalhadores rurais em Cametá vai ganhando expressão,

legitimidade e identidade. É na luta pela afirmação dos direitos à sua territorialidade, com seu

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modo de vida próprio, que essas populações iniciaram um processo de questionamento das

representações, discursos e ideologias hegemônicas sobre as “populações tradicionais” que

historicamente viviam na região. Esses discursos e representações moderno / colonial se

fundamentavam no estigma e no estereótipo do “caboclo”.

Nesse processo o movimento social começou a redefinir e re-significar todo um

conjunto de práticas discursivas e de representações, buscando construir um novo “magma de

significações” num processo de politização da cultura que valoriza a experiência cultural, o

modo de vida cotidiano das populações ribeirinhas, afirmando suas identidades como

elemento de r-existência ao processo de modernização.

Diante de tais situações formulamos as seguintes questões: Qual o contexto da

emergência do discurso que afirma a identidade ribeirinha em Cametá? Quais as condições

em que esse processo se realiza? Quais são os agentes? Qual o papel do rio como espaço de

referência identitária? O que está em jogo na construção de um discurso identitário ribeirinho?

Diante dessas questões constituiu o objetivo geral deste trabalho entender como vem

sendo construída de maneira relacional e contrastiva uma identidade ribeirinha no município

de Cametá, através de um processo de politização da cultura ribeirinha e da construção de

uma consciência socioespacial de pertencimento, o que tem implicado na constituição de

novos sujeitos políticos que emergem das lutas contra as formas de exploração e dominação a

nível local e contra os impactos dos processos de “modernização” a nível regional.

Para isso realizamos uma ampla pesquisa bibliográfica teórica sobre a questão da

identidade, bem como sobre a dinâmica de transformações da Amazônia pós 1960. Nos

concentramos ainda na literatura sobre a emergência dos movimentos sociais ligados às

“populações tradicionais”, e ainda sobre a cultura e modo de vida ribeirinho. Realizamos

também uma pesquisa documental em relatórios, projetos e material de divulgação ligados a

instituições estatais, ONG’s e movimento sociais; realizamos, enfim, um trabalho de campo

onde trabalhamos com entrevistas semi-estruturadas e entrevistas livres, além de inúmeras

“conversas” e participações em eventos e reuniões acadêmicas, políticas e artísticas com as

populações locais. Utilizamos como recurso nossas próprias experiências e memórias, visto

que grande parte da nossa vida foi compartilhada na realidade estudada.

Desse modo, o presente trabalho compreende uma apresentação, uma introdução,

quatro capítulos e as considerações finais.

Na introdução, tentamos demonstrar nossa escolha epistemológica e política a partir

da qual conduzimos esta pesquisa.

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No primeiro capítulo discutimos o conceito de identidade e a sua relação com o

território. Apontamos para uma concepção de identidade que nega as perspectivas

essencialista e substancialista, mostrando a natureza histórica e relacional das identidades,

bem como a intrínseca relação entre a construção das identidades e as relações de poder,

ressaltando o seu caráter estratégico e posicional. Buscamos ainda definir a especificidade das

identidades territoriais, bem como caracterizar os seus elementos constitutivos: o espaço de

referência identitária e a consciência socioespacial de pertencimento, analisados a partir da

relação dialética entre o “vivido” e o “concebido”. Contextualizamos ainda a emergência da

questão identitária nas lutas sociais na Amazônia contemporânea, apontando para o intenso

processo de politização das culturas “tradicionais” pelos movimentos sociais num processo de

r-existência ao projeto de modernização/colonial implicando na construção das novas

identidades políticas e na constituição de sujeitos protagonistas na história e geografia da

região.

No segundo capítulo discutimos a conceituação da Amazônia como fronteira,

demonstrando como essa conceituação e contextualização pode oferecer elementos para

estudarmos as identidades territoriais. Partimos da premissa de que a especificidade da

formação econômica e social, ou simplesmente formação socioespacial da Amazônia, é a sua

condição de fronteira. É dessa condição histórica que resultam as incomensuráveis

contradições históricas, expressas no (des)encontro de temporalidades e territorialidades que

colocam a questão dos conflitos sociais na região para além da questão de classe,

incorporando também as questões étnicas e culturais. Trata-se de entendermos uma formação

socioespacial na qual as linhas de fraturas ainda não foram sedimentadas e o projeto histórico

de modernização ainda não conseguiu estabelecer sua completa hegemonia. Essa realidade é

marcada pela coexistência de uma temporalidade hegemônica com elementos residuais e

emergentes de outras temporalidades históricas, portadoras de outras cosmologias e de outros

projetos políticos. Isso tudo coloca a questão da diferença, a questão da alteridade e,

conseqüentemente, das identidades na centralidade da dinâmica sociocultural, política e

territorial da Amazônia.

No terceiro capítulo desenvolvemos uma análise mais empírica, apontando para o

processo de formação territorial do Baixo Tocantins, com destaque para o papel do rio como

espaço de referência identitária na construção do modo de vida ribeirinho. Analisamos ainda

como esse padrão de organização espaço-temporal pautado numa espacialidade e

temporalidade baseada no rio é desestruturado a partir da expansão da fronteira, materializada

na construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT) que afetou as condições de produção e

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reprodução social das populações ribeirinhas. Esse processo de mudanças, mas também de

permanências implicou em uma nova postura política das chamadas populações ribeirinhas,

visto que os impactos ecológicos e sociais que afetaram diretamente a capacidade de

sobrevivência e reprodução social acabaram colocando como imperativa a necessidade de

organização, mobilização e luta dessas populações pela garantias dos seus direitos. Isso

implicou em inúmeras formas de antagonismos e de constante reinvenção da capacidade de r-

existência frente à avassaladora modernização conservadora e excludente que sofreu a região.

No quarto capítulo discutimos como se construiu historicamente a afirmação do

poder e da hegemonia das famílias oligárquicas no município de Cametá e como esses grupos

foram responsáveis pela afirmação de um discurso histórico e identitário dos “homens

notáveis” que nega as memórias, a cultura e a identidade do “caboclo-ribeirinho”. Ao longo

do capítulo tratamos de entender como vem sendo construída de maneira relacional e

contrastiva uma identidade ribeirinha em Cametá através de um processo de politização da

cultura ribeirinha e da construção de uma consciência socioespacial de pertencimento, o que

tem implicado na constituição de novos sujeitos políticos que emergem das lutas contra as

formas de exploração e dominação a nível local e contra os processos de “modernização” a

nível regional. Esse processo se materializa através de uma organização política das

populações ribeirinhas, revelando uma grande capacidade de protagonismo das mesmas. Por

fim, discutimos os entrelaçamentos e as ambigüidades do significado de uma identidade

ribeirinha como uma “identidade cabocla” verificando as suas “raízes e rotas”.

E, por fim, apresentamos as considerações finais, onde retomamos questões

desenvolvidas ao longo do trabalho e construímos uma síntese teórica e empírica sobre a

construção da identidade ribeirinha.

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INTRODUÇÃO

Historicamente se sedimentou no imaginário social um conjunto de representações,

imagens e ideologias sobre a Amazônia e, em particular, sobre as populações que

tradicionalmente se territorializaram na região. Essas representações alicerçaram diferentes

“modos de ver” a identidade dessas populações tradicionais. Esses diferentes “olhares” vão de

um extremo ao outro, da construção do estereótipo que conduz a um processo de

estigmatização cultural – ou mesmo à invisibilidade de tais populações – à idealização

romântica e idílica do chamado “caboclo amazônida”. Desse modo, podemos enumerar, pelo

menos hegemonicamente, três “modos de ver” a identidade das populações “tradicionais”

presentes nesse conjunto de representações: em primeiro lugar um “olhar naturalista” que

produz a invisibilidade dessas populações, um segundo modo de “ver”, é o que denominamos

“olhar romântico tradicionalista”, que produz uma idealização idílica do “caboclo” e, por

último, o “olhar moderno/colonial” que produz o estereótipo e a estigmatização cultural de

tais populações. Em contraponto a essas formas hegemônicas percebemos a emergência de

uma outra forma de olhar a identidade das populações “tradicionais” a partir das próprias

populações através dos movimentos sociais como elemento de r- existência nas lutas sociais.

O olhar naturalista: a invisibilidade

As populações rurais e ribeirinhas ou “caboclas” da Amazônia e suas identidades

foram historicamente ignoradas e invisibilizadas por um olhar naturalista e naturalizante que

sempre viu a região somente como natureza, logo sua diversidade é vista apenas como

biodiversidade, sendo conhecida e reconhecida unicamente como um conjunto de

ecossistemas e como fonte de recursos naturais. Essa, sem dúvida é a representação mais

comum sobre o espaço amazônico que se personifica através de idéias e expressões sobre a

região, como: ”espaço vazio”, “vazio demográfico”, “terras sem homens”. Essas construções

ideológicas reforçam historicamente a não-existência política e discursiva dessas populações.

Das drogas do sertão à biodiversidade, da colonização à globalização, a Amazônia é vista

apenas como natureza (recurso).

Essa visão naturalista desconsidera os processos históricos e as identidades culturais

que conformaram a territorialização dos diferentes grupos na sua sociodiversidade e, desse

modo, negligencia a diversidade territorial na sua dimensão humana e histórica, produzindo a

não-existência e a invisibilidade das populações ditas “tradicionais”. Esse olhar produz a

supressão, o silenciamento dessas populações e, desse modo, produz uma geografia das

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ausências e uma história de silêncios. Esse “modo de ver” sempre esteve presente na história

da região, seja nos relatos dos antigos viajantes, seja na mídia atual ou ainda nos planos e

planejamentos do Estado, na ação do grande capital ou ainda na produção científica sobre a

região. Esses dispositivos discursivos do poder-saber sempre deram uma extrema

significância à natureza e uma in-significância ao homem (Dutra, 2003a).

Olhar romântico/ tradicionalista: a idealização idílica

Um outro modo de “olhar” a identidade das populações “tradicionais” é aquele que

está atento para a rica diversidade cultural dessas populações, embora a cultura e a diferença

sejam tratadas como uma particularidade, como algo que se isolou, como algo autônomo do

movimento da história e da dinâmica socioespacial e cultural da região. Essa visão romântica

e idealizadora compreende a identidade de tais populações como aquilo que é o “autêntico”, o

“original”, o “verdadeiro”, a “tradição”. Essa idealização vê o “caboclo” como o “bom

selvagem” que ainda não cometeu “o pecado original da modernidade” – é como se a cultura

e a história pudessem ser congeladas e não houvesse interações multidimensionais e

multiescalares entre as culturas, os sujeitos e os lugares. As diferenças e as identidades são

vistas como algo “natural”, como “essências” a-históricas, e não como fenômenos históricos e

socialmente produzidos. Trata-se de olhar a diferença pela diferença

Esta perspectiva consagra uma visão antropológica ingênua e relativista que ignora

que as identidades e as diferenças são construídas historicamente sempre de maneira

relacional (Hall, 2004) e contrastiva (Oliveira, 1976) dentro dos contextos históricos e

geográficos marcados por lutas de poder, conflitos e contradições, e que não raramente as

diferenças e identidades são demarcadas não só por formas de marcações e classificações

simbólicas, mas também por profundas desigualdades e exclusão social (Woodward, 2004).

Olhar moderno/colonialista: o estereótipo

Ainda temos um terceiro modo de “olhar” a identidade das populações “tradicionais”

da Amazônia, que é aquele pautado no estereótipo do “caboclo”. Essa visão talvez seja a mais

forte e arraigada no imaginário social e está assentada num conjunto de representações

marcadas por preconceitos e estigmas sociais e culturais que justificam uma visão moderna

/colonial e racista dessas populações.

Essa perspectiva de “ver” as populações ribeirinhas está pautada numa monocultura

do tempo linear (Souza Santos, 2004a) que compreende a história como tendo direção e

sentido únicos. Nela o tempo é pensado somente numa perspectiva diacrônica, na qual a

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história é compreendida a partir de estágios e etapas sucessivas (da tradição à modernidade).

Essa maneira de pensar o tempo tem como referência um imaginário e uma ideologia do

progresso que se expressa pelas idéias de desenvolvimento, crescimento, modernização e

globalização entre outras que compõem a cosmovisão da modernidade ocidental.

Segundo Massey (2004), todas essas categorias compartilham de uma imaginação

geográfica que re-arranja as diferenças espaciais em termos de seqüência temporal,

suprimindo desse modo a espacialidade e em conseqüência, a possibilidade da multiplicidade

e da diferença. “A implicação disso é que lugares não são genuinamente diferentes; na

realidade, eles estão simplesmente à frente ou atrás numa mesma história: suas “diferenças”

consistem apenas no lugar que eles ocupam na fila da história” (p.15).

Isso significa que os lugares e as populações são tratados como se estivessem numa

fila histórica que vai do estágio dos mais “selvagens” até os mais “civilizados”, dos mais

“atrasados” aos mais “avançados”, dos mais “subdesenvolvidos” aos mais “desenvolvidos”.

Nessa forma de conceber e classificar as experiências sociais e os lugares e,

conseqüentemente, as identidades, as populações denominadas “tradicionais” são

classificadas como “atrasadas” e “improdutivas” em detrimento dos tempos e espaços que são

“modernos”, “avançados” e “produtivos”.

Assim, essa visão colonialista caracteriza as expressões culturais de tais populações

como “tradicionais” ou “não-modernas”, como estando em processo de transição em direção à

modernidade, e lhes nega toda possibilidade de lógicas culturais ou de cosmovisões próprias.

Ao colocá-las como expressão do passado, nega-se sua contemporaneidade (Lander, 2005).

Esse processo de negação da contemporaneidade é expresso na forma da “invenção

da residualização” (Sousa Santos, 2004a) das chamadas populações “tradicionais”, estas

populações e seus modos de vida, suas temporalidades, suas racionalidades econômicas são

vistos como o resíduo, o anacrônico, um desvio da racionalidade capitalista e do modo de vida

moderno urbano-industrial. Esta visão se personifica nas idéias de que essas populações

representam o primitivo, o tradicional, o pré-moderno, o simples, o obsoleto, o

subdesenvolvido. Isso fica bem claro através da atribuição às populações “tradicionais” do

estereótipo do “caboclo”, indivíduo “ignorante”, “atrasado”, “lento”, “indolente”

“improdutivo”.

Olhar da subalternidade: da “vítima” ao protagonista

No final dos anos 1980 começa a ocorrer um fraturamento, um des-locamento das

formas hegemônicas de “ver” a identidade das populações “tradicionais” por meio dos

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movimentos sociais na luta contra as diferentes formas de subalternização material e

simbólica, contra preconceitos e estigmas e pela afirmação de suas identidades a partir dos

seus próprios modos de vida. As populações “tradicionais” se organizam, ganhando

visibilidade e protagonismo, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta

pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos a partir de suas territorialidades e

identidades territoriais. Essas lutas são lutas por redistribuição e por maior igualdade de

acesso aos recursos materiais (lutas por “territórios da igualdade”), bem como pelo

reconhecimento da legitimidade de diferenças e identidades culturais expressas nos diferentes

modos de produzir e nos diferentes modos de viver e de existir de tais populações (lutas por

“territórios da diferença”)

Essas identidades emergentes na Amazônia, construídas pelos diferentes movimentos

sociais (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros,

populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.), estão orientadas no sentido da

superação de velhas identidades coletivas ligadas a um discurso moderno/colonial que se

fundamentava na invisibilização, na romantização e, em especial, na estigmatização e no

estereótipo do “caboclo” para (des)qualificar as populações como “atrasadas”, “ignorantes”

“indolentes”, “improdutivas”, considerando tais populações como um obstáculo a um projeto

moderno urbano- industrial para Amazônia

É na luta e r-existência contra o projeto autoritário de uma “modernização

conservadora” que esses movimentos vêm ganhando densidade histórica, expressão,

legitimidade e identidade. Na busca pela afirmação dos direitos à sua territorialidade, com seu

modo de vida próprio, essas populações iniciaram um processo de questionamento das

representações, discursos e ideologias hegemônicas. Esses movimentos sociais buscam

redefinir e re-significar todo um conjunto de práticas discursivas e representações, buscando

construir novos “magmas de significação” que valorize suas próprias experiências culturais e

seus diferentes modos de vida na construção de suas identidades.

É nesta perspectiva da subalternidade, partindo dos processos de r-existência e do

protagonismo político das populações ribeirinhas no município de Cametá é que queremos

analisar a construção de uma identidade ribeirinha.

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1. CAPÍTULO: ITINERÁRIOS TEÓRICOS PARA SE PENSAR A RELAÇÃO TERRITÓRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZÔNIA.

As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.

(Boaventura de Sousa Santos)

Nas últimas décadas, a Amazônia vem passando por um profundo processo de

reestruturação sócio-espacial e reordenamento histórico-cultural. Esse processo, que vem

ocorrendo especialmente a partir da década de 1960, e é resultante da tentativa de

“integração” e incorporação da região na divisão territorial do trabalho em escala nacional e

internacional. Nesse período a região torna-se um espaço estratégico para o projeto de nação

que o Estado brasileiro autoritário projetava para o país naquele momento histórico.

Para a realização de tal projeto a prioridade era “modernizar” a Amazônia. Para

tanto, busca-se uma modernização do território por meio de “uma tecnologia espacial” que lhe

impõe uma malha de controle técnico e político, uma “malha programada”, constituída pelo

conjunto de programas e planos governamentais que colocaram a Amazônia na condição de

uma fronteira de recursos naturais a ser violentamente incorporada pelo grande capital

(Becker 1996).

Assim, o modelo que orientou esse processo de ocupação da Amazônia foi a

chamada economia de fronteira, pautada na idéia de progresso e de desenvolvimento como

crescimento econômico e prosperidade infinita com base na exploração de recursos naturais,

também eles percebidos como infinitos, como nos coloca Becker (1996). Além disso, a

premissa organizadora desse modelo de ocupação e apropriação era a crença no papel da

modernização como a única força capaz de destruir as superstições e relações arcaicas, não

importando o seu custo social, cultural e político. A industrialização e a urbanização eram

vistas como inevitáveis e, necessariamente, progressivos caminhos em direção à

modernização (Escobar, 1998).

Junto com o projeto de modernização implantado na Amazônia chegou a cosmovisão

da modernidade pautada em um conjunto de “magmas de significação” que criaram um

imaginário em que se atribui a priori uma positividade ao novo, ao moderno e à inovação e

uma negatividade ao velho, ao passado, ao tradicional. Essa perspectiva de compreensão da

história e da realidade está pautada numa ideologia do progresso e numa espécie de

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“fundamentalismo do novo”2, presentes num conjunto de práticas e representações marcadas

pela violência e pelo colonialismo que serviam e ainda servem para justificar a

subalternização das populações que historicamente viveram na região (índios, ribeirinhos,

pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas,

mulheres quebradeiras de coco etc.). Essas populações passam a ser classificadas como tendo

modos de vida “tradicionais”, por estarem pautadas em outras temporalidades históricas e

configuradas em outras formas de territorialidades e por terem modos de vida estruturados a

partir de racionalidades econômicas e ambientais com saberes e fazeres diferenciados da

racionalidade capitalista.

O projeto de modernização conservadora materializado nos planos e planejamentos

do Estado autoritário e na implementação de “grandes projetos” a partir da década de 1960 via

tais populações e seus modos de vida “tradicionais” como obstáculos ao “desenvolvimento”,

pois nessa visão se assinala um único futuro possível para todas as culturas e todos os povos

(a modernização ocidental capitalista e a sociedade de consumo urbano-industrial). Nessa

perspectiva, aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história

estão destinados a desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de organização da

sociedade, as outras formas de conhecimento são transformadas não só em diferentes, mas em

carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas e, como afirma Lander (2005), são

situadas, num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no

imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade.

Essa história de violência e subalternização que a modernidade/colonial trouxe para a

Amazônia pelo avanço da fronteira demográfica e econômica passa a ser questionada a partir

do final dos anos 1980 pelo crescimento e fortalecimento da organização da sociedade civil,

em especial, pela atuação dos movimentos sociais que através de inúmeras lutas buscam a

afirmação das territorialidades e das identidades das populações “tradicionais”. Esses

movimentos criam inúmeras redes e alianças com a cooperação internacional via

principalmente das ONGs. Isso se dá em várias escalas, do local ao global, redefinindo as

formas de luta e de resistência dos sujeitos subalternizados na região.

A partir de então começa a se esboçar uma nova geo-grafia3 na Amazônia que aponta

para um processo de emergência de diversos movimentos sociais que lutam pela afirmação

2 Gonçalves (2005) usa essa expressão para chamar a atenção para a obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violência cometidas em nome do desenvolvimento e da modernização. 3 Gonçalves (2004) propõe pensar a Geografia não como substantivo, mas como verbo ato/ação de marcar a terra. E desse modo que podemos falar de nova geo-grafia, em que os diferentes movimentos sociais re-

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das territorialidades e identidades territoriais como elemento de r-existência das populações

“tradicionais”, trata-se de movimentos sociais de r-existência, pois que, segundo Gonçalves

(2001), não só lutam para resistir contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas

populações, mas também por uma determinada forma de existência, um determinado modo de

vida e de produção, por diferenciados modos de sentir , agir e pensar

Assim, esses movimentos apontam para o caráter emancipatório das lutas pautadas

numa politização da própria cultura e de modos de vida “tradicionais”, numa politização dos

“costumes em comum”4, que re-significam a construção das identidades dessas populações

que, ancoradas nas diferentes formas de territorialidade, se afirmam num processo que, ao

mesmo tempo, as direciona para o passado, buscando nas tradições e na memória sua força, e

aponta para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de produção, de organização

comunitária e de afirmação e participação política.

Nesse contexto, vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos políticos e

emergência de “novas” identidades territoriais construídas pelas populações “tradicionais nas

lutas sociais pela afirmação material e simbólica dos seus modos de vida. Essas populações

mobilizam estrategicamente e perfomaticamente novos discursos identitários na busca pelo

reconhecimento de sua cultura, memória, e territorialidade que historicamente foram

marginalizadas, suprimidas, silenciadas e invisibilizadas e agora começam tornar visível o que

era invisível, em voz o que foi silenciado, em presenças as ausências e, desse modo, iluminam

a r-existência e o protagonismo dessas populações na construção da história e da geografia da

região.

Para compreendermos melhor essa realidade precisamos aprofundar a discussão

teórica sobre o conceito de identidade e identidade territorial além de contextualizarmos os

processos e as condições de emergência das identidades territoriais hoje na Amazônia, este é o

objetivo desse capítulo.

1.1 . DIFERENÇA, IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO

significam o espaço e, assim, com novos signos grafam a terra, geografam, reinventando a sociedade. 4 A expressão foi cunhada pelo historiador inglês Thompsom (1979) para mostrar o caráter revolucionário das lutas pautadas nos costumes e na tradição no século dezoito na Inglaterra, onde, segundo o autor, emerge uma cultura tradicional rebelde dos plebeus que resistem, em nome do costume, às racionalizações econômicas e inovações (como o cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados ‘livres’ não regulados de grãos) que governantes, comerciantes ou patrões buscavam impor.

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Inicialmente gostaríamos de discutir a relação entre identidade e diferença. Esta

relação é normalmente trabalhada como uma simples oposição, sendo que a diferença é

concebida como alteridade, como um produto derivado da identidade (o diferente, o diverso).

Em outras palavras, a identidade é a referência, o ponto original relativamente ao qual se

define a diferença (Silva, 2004). Contudo, a partir das reflexões do referido autor, estamos nos

propondo a pensar a diferença não só como produto, mas também como processo.

Nessa concepção processual, a diferença não é um estado estático e nem se confunde

com a diversidade (simples constatação do diverso). É relação, um movimento gerativo e

incessante, uma multiplicidade ativa e criadora. Nestes termos, se inverteria a equação e a

diferença passaria a ser o ponto original para se pensar a identidade, como Silva (2004)

afirma. “(...) é preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um

processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença

(compreendida, aqui, como resultado) são produzidas. Na origem estaria a diferença -

compreendida, agora, como ato ou processo de diferenciação” (Silva, 2004:75-6). Nestes

termos, analisar a identidade significa refletir também sobre a diferença, pois, elas são

indissociáveis. Neste sentido, o nosso ponto de partida é o de que a identidade é sempre uma

construção histórica e relacional dos significados sociais e culturais que norteiam o processo

de distinção e identificação de um indivíduo ou de um grupo. “Um processo de construção de

significados com base em um atributo cultural ou, ainda, um conjunto de atributos culturais

inter-relacionados o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significação” (Castells

1999:22).

A partir desse ponto de partida queremos distanciar nossa visão de toda forma de

“substancialismo” e “essencialismo”, pois concordamos com Hall (2004) quando afirma que a

identidade é, e sempre está em processo, ou seja, sempre está em construção. Neste sentido a

identidade é dinâmica, múltipla, aberta e contingente. Essas características nos remetem a

algo em curso, em movimento, sempre se realizando. Neste sentido, para Hall (1997; 2004), a

identidade não se restringe à questão: “quem nós somos”, mas também “quem nós podemos

nos tornar”; desse modo, a construção da identidade tem a ver com “raízes” (ser), mas

também com “rotas” e “rumos” (tornar-se, vi a ser).

Assim, o conceito de identidade não se confunde com as idéias de originalidade ou

de autenticidade, pois os processos de identificação e os vínculos de pertencimento se

constituem tanto pelas tradições (“raízes”, heranças, passado, memórias etc.) como pelas

traduções (estratégias para o futuro, “rotas”, “rumos” projetos etc). As identidades nunca são,

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portanto, completamente determinadas, unificadas, fixadas, elas são “multiplamente

construídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser

antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historizacão radical, estando constantemente

em processo de transformação e mudança” (Hall, 2004:108).

Na verdade, a identidade como processo é identificação, definida pelo referido autor

como:

(...) um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não

uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” - uma

sobredeterminacão ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade.

Como toda prática de significação ela está sujeita ao “jogo” da différance. Ela

obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como processo, a identificação

opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a

marcação de fronteiras simbólicas, a produção dos “efeitos de fronteira”. Para

consolidar o processo, ela requer aquilo de que è deixado de fora – o exterior que a

constitui (Hall, 2004:106).

Em conseqüência, a identidade como construção histórica está sempre sujeita a re-

significações que são construídas dentro e não fora dos discursos (Hall 2004). Neste sentido,

precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos, institucionais

(acrescentaríamos geográficos) específicos a partir dos quais se constroem as práticas e as

representações discursivas dos diferentes sujeitos envolvidos no jogo para definir a

identidade, que é entendida como:

(...) o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as

práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que

assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por

outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como

sujeitos aos quais se pode “falar”, as identidades são, pois, ponto de apego

temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós.

(Hall, 2004:111 grifo nosso).

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Ainda ressaltando o caráter histórico, precisamos compreender que a identidade não

é uma “coisa em si” ou “um estado ou significado fixo”, mas um relação, uma “posição

relacional”, uma posição-de-sujeito construída de forma relacional e contrastiva

(Oliveira,1976), visto que os processos de identificação e, conseqüentemente, as identidades

são construídos na e pela diferença e não fora dela, e que nenhuma identidade é auto-

suficiente, auto-referenciada em sua positividade, tendo seu significado definido no jogo da

différance5. Ou, como nos lembra Hall (2003), cada identidade é radicalmente insuficiente

em relação a seus “outros”. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é

apenas por meio da relação com o outro, da relação com aquilo que não é, precisamente com

aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo (Hall,

2004:110), que a identidade ganha sentido e eficácia.

Identificar, no âmbito humano social, é sempre identificar-se, um processo

reflexivo, portanto, identificar-se é sempre um processo de identificar-se com, ou

seja, é sempre um processo relacional, dialógico, inserido numa relação social

(Haesbaert, 1999a: 174, grifos do autor).

Portanto não é possível estudar a identidade de qualquer grupo social apenas com

base na sua cultura, ou no seu modo de vida, nas suas representações de forma introvertida e

auto-referenciada, pois as identidades e os sentimentos de pertencimento são construídos de

maneira relacional e contrastiva e muitas vezes conflitiva entre uma auto-identidade (auto-

atribuição, auto-reconhecimento) e uma hetero-identidade (atribuição e reconhecimento pelo

“outro”). São nessas teias complexas de valorações e significados de reconhecimento e

alteridade que se estabelece o diálogo e o conflito entre os grupos, forjando as identidades.

É nesse jogo relacional de classificação/distinção/identificação que a identidade é

construída e configurada ao mesmo tempo como inclusão e exclusão: ela identifica o grupo

(membros do grupo que são idênticos) e o distingue dos outros grupos (cujos membros são

5 Jacques Derrida usa este conceito para romper com o binarismo e absolutização dos conceitos, dos significados, das diferenças e diríamos das identidades fixas, pois é só numa cadeia e num jogo deslizante em relação aos outros que o significado, o conceito, a diferença ou a identidade existe. “A différance,é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças , do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao mesmo tempo ativa e passiva (...) dos intervalos sem os quais os termos “plenos” não significariam, funcionariam (...) o jogo das diferenças supõe, de fato, sínteses e remessas que impedem que, em algum momento, em algum sentido, um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta a si mesmo”.(Derrida, 2001:32-3)

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diferentes dos primeiros sob um certo ponto de vista). Nesta perspectiva a identidade aparece

como categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença. (Cuche, 1999).

Um outro cuidado teórico e metodológico importante sobre a questão da identidade é

a superação de posições dualistas como: material/simbólico, objetivo/subjetivo. A identidade

é construída subjetivamente, baseada nas representações, nos discursos, nos sistemas de

classificações simbólicas, embora não seja algo puramente subjetivo e não se restrinja à

“textualidade” e ao “simbólico”. Ela não é uma construção puramente imaginária que

despreza a realidade material e objetiva das experiências e das práticas sociais como muitos

afirmam, e nem tampouco é algo materialmente dado, objetivo, uma essência imutável, fixa e

definitiva.

Se a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito da

representação, isto não significa que ela seja uma ilusão que dependeria da

subjetividade dos agentes sociais. A construção das identidades se faz no interior

dos contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo

orientam suas representações e suas escolhas. (Cuche, 1999:182)

Portanto, na construção da identidade não é possível, pois, pensar de forma

dissociada sua natureza simbólica e subjetiva (representações) e seus referentes mais

“objetivos” e “materiais” (a experiência social em sua materialidade). Desse modo, não cabe

posições deterministas e excludentes que privilegiem a priori o material ou simbólico/textual,

pois “se há sempre ‘algo mais’ além da cultura, algo que não é bem captado pelo

textual/discursivo, há também algo mais além do assim chamado material, algo que sempre é

cultural e textual” (Alvarez; Dagnino; Escobar, 2000: 21). Essa tensão e primazia não podem

ser resolvidas no campo da teoria, só é provisoriamente solucionada na prática concreta.

1.2. REPRESENTAÇÃO, PODER E HEGEMONIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE.

As identidades e as diferenças não podem ser compreendidas fora dos sistemas de

significação nos quais elas são construídas e adquirem sentido. Nesta ótica, as identidades

precisam ser analisadas a partir dos discursos e dos sistemas de representação que constróem

os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem

falar (Woodward, 2004). É reconhecendo a importância das representações que a autora

afirma. ”A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio

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dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos

significados produzidos e pelas representações que damos sentido à nossa experiência e

aquilo que somos”. (Woodward, 2004: 17).

A luta pela afirmação da identidade enquanto forma de reconhecimento social da

diferença significa lutar para manter visível a especificidade do grupo, ou melhor dizendo,

aquela que o grupo toma para si, para marcar projetos e interesses distintos, “isso significa

que sua definição - discursiva e lingüística - está sujeita a vetores de força, a relações de

poder” (Silva, 2004:80). Essa perspectiva de entendimento da identidade aponta para uma

relação entre o “cultural” e o “político”, estando essas duas dimensões imbricadas num laço

constitutivo na construção das mesmas.

Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como concepção de mundo,

como um conjunto de significados que integram práticas sociais, não pode ser

entendida adequadamente sem as considerações das relações de poder embutidas

nessas práticas. Por outro lado, a compreensão das configurações dessas relações

de poder não é possível sem o reconhecimento do seu caráter “cultural” ativo, na

medida em que expressam, produzem e comunicam significados. (Álvares; Dagnino

e Escobar, 2000:17).

Assim, todos os sistemas simbólicos de classificação que organizam e dão sentido e

significado à marcação das diferenças culturais e das desigualdades sociais na construção das

identidades são impregnadas de poder (Woodward, 2004). As identidades “emergem no

interior do jogo de modalidades específicas de poder, e são assim mais o produto da marcação

da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída”

(Hall, 2004:109). É, pois, por essa íntima relação com o poder que a identidade não pode ser

considerada de maneira essencialista, mas estratégica e posicional (Hall 2004).

Devido a seu caráter estratégico, a identidade está sujeita à manipulação dos

indivíduos ou grupos sociais; ela não existe em si mesma, independentemente das estratégias

de afirmação dos atores sociais. Elas são ao mesmo tempo produtos e produtoras das lutas

sociais e políticas. “Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não

convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas”

(Silva, 2004:81).

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Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa por outros recursos

simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da

diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente

situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a

diferença estão em estreita conexão com as relações de poder. O poder de definir a

identidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de

poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes (Silva, 2004:81 grifo

nosso).

A eficácia das estratégias identitárias e o seu poder de legitimação irão depender da

situação de cada grupo no jogo do poder. Irá depender do capital econômico, político e, em

especial, do simbólico (Bourdieu,1999) que cada grupo possui na estrutura assimétrica da

sociedade. É pela “autoridade legitima” do poder simbólico, “esse poder invisível o qual só

pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos

ou mesmo que o exercem” (p.8), é pela força do discurso performático, traduzido no poder

quase mágico das palavras, num jogo de corte e recorte, colagem e repetição de enunciados,

imagens e símbolos, que a identidade produz o consenso, a ação e a mobilização.

Ainda no que se refere às conexões entre as identidades e as relações de poder,

podemos verificar que a construção das identidades pode servir tanto para a manutenção e

legitimação das relações de poder hegemônicas da sociedade, quanto para subvertê-las. Desse

modo, o mesmo processo que serve à reprodução do poder hegemônico, logo das identidades

hegemônicas, pode ser interrompido e reorientado no sentido de produzir novas identidades.

Pois, como afirma (Silva 2004), inspirado em Judith Buttler (1999):

A mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam

as identidades existentes pode significar a possibilidade de interrupção das

identidades hegemônicas. A repetibilidade pode ser interrompida. A repetição pode

ser questionada e contestada. È nessa interrupção que residem às possibilidades de

instauração de identidades que não representam simplesmente a reprodução das

relações de poder existentes (Silva, 2004:95).

Assim, podemos perceber que para além das identidades hegemônicas, normalizadas

e institucionalizadas existem outras subalternizadas, de sujeitos subalternizados no jogo do

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poder, mas que podem contestar a hegemonia, pois como nos fala Hall (2004), toda identidade

tem à sua “margem” um excesso, algo a mais. Silva (2004) afirma que a identidade

hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu “outro”. Nestes termos, “toda

identidade tem necessidade daquilo que lhe "falta” mesmo que esse outro que lhe falta seja

um outro silenciado, inarticulado.” (Hall, 2004:11).

Como as identidades não são nunca completamente unificadas, estáveis, fixas, o

mesmo “discurso performático” que repetidamente tende a fixar e a estabilizar uma

identidade, silenciando outras, pode também subvertê-la e desestabilizá-la, ou seja, o que está

na “margem” pode se tornar o “centro”, pois:

A possibilidade de poder interromper o processo de ‘recorte e colagem’ de efetuar

uma parada no processo de “citacionalidade” que caracteriza os atos performáticos

e que reforçam as diferenças instauradas, é que torna possível pensar na produção

de novas e renovadas identidades (Silva, 2004:95-6)

Deste modo, no jogo de poder pela hegemonia na sociedade os diferentes atores

sociais de acordo com a “posição” que ocupam no espaço social (muitas vezes também

geográfico) e, ainda, pelo acúmulo de ”capitais” que possuem e a intenção em “investir” nos

seus projetos políticos, podem afirmar diferentes identidades em cada momento histórico.

Castells (1999:24), fazendo uma espécie de mapeamento das “posições“ e dos projetos dos

diferentes atores propõe três tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de

resistência e identidade de projeto.

a) A Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade

no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais.

b) Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições e

condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, construindo, assim,

trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que

permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos.

c) Identidade de projeto: Quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de

material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua

posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura social.

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Assim, podemos verificar que conforme a “posição” do ator social a construção das

identidades assume uma configuração específica tanto no sentido da reprodução de uma

ordem hegemônica quanto no de contestação desta ordem, afirmando a diferença

subalternizada e questionando as identidades “normalizadas” e institucionalizadas ou, de

forma mais ampla, a própria sociedade como instituição. Contudo, é importante percebermos

com clareza que cada “posição” é sempre construída de forma relacional em cada contexto de

poder específico, e que qualquer “posição” não é estática, mas dinâmica, o que possibilita a

uma identidade subalternizada ou de resistência tornar-se hegemônica e institucionalizada, do

mesmo modo que o que é o hegemônico em um determinado contexto histórico pode tornar-

se não-hegemônico em outro.

Portanto, podemos concluir que a identidade não é uma essência; não é um dado ou

um fato fixo, estável, permanente e definitivo, nem tampouco é completamente coerente,

unificada, mas sim instável, contraditória, inacabada e contingente. É uma construção, um

processo de produção relacional de significados sociais e culturais de uma determinada

posição-de sujeito, construída historicamente no movimento das relações de poder na

sociedade. A identidade se realiza através das práticas discursivas e narrativas, do imaginário,

da memória coletiva e dos símbolos usados para criar e sustentar performaticamente o

consenso pelo menos temporário de uma posição-de-sujeito.

1.3. IDENTIDADES TERRITORIAIS: UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA PARA O ENTENDIMENTO DA QUESTÃO DAS IDENTIDADES.

Partindo dessa discussão geral podemos dialogar no sentido de definir o que seria um

estudo de identidade a partir de uma perspectiva geográfica. Se a identidade é um conceito

posicional e estratégico, como nos sugere Hall (2004), e se nossas identidades são posições-

de-sujeito estrategicamente construídas a partir de lugares, precisamos valorizar mais a

dimensão espacial para pensarmos as diferenças e as identidades.

No entanto, valorizar a dimensão espacial não significa usá-la somente como

metáfora, como normalmente os discursos teóricos dos chamados estudos culturais ou pós-

modernos o fazem. O caráter relacional que essas metáforas espaciais como “posição” e

“localização” nos oferecem para pensarmos a diferença é muito rico, mas pode esconder o

fato de que a importância do território em suas múltiplas escalas e dimensões vai para além do

seu sentido metafórico (Smith, 2002), já que as identidades não têm somente “localizações”

sociais, culturais e discursivas. Elas são também territoriais, e muitas delas têm no território

seu referencial central.

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Neste sentido, adotamos a proposição de Haesbaert (1999a) de que determinadas

identidades são construídas a partir da relação concreta/simbólica e material/imaginária dos

grupos sociais com o território. Estas seriam identidades territoriais por serem construídas

pelo processo de territorializacão, aqui entendido como “as relações de domínio e apropriação

do espaço, ou seja, nossas mediações espaciais do poder, poder em sentido amplo, que se

estende do mais concreto ao mais simbólico” (Haesbaert, 2004:339).

Assim, parte-se do princípio de que o território como mediação espacial das relações

do poder em suas múltiplas escalas e dimensões se define por um jogo ambivalente e

contraditório entre desigualdades sociais e diferenças culturais, se realizando de maneira

concreta e simbólica, sendo, ao mesmo tempo, vivido, concebido e representado de maneira

funcional e/ou expressiva pelos indivíduos ou grupos. Neste sentido, baseado na distinção de

Lefebvre entre domínio e apropriação do espaço, Haesbaert define:

O território envolve sempre, ao mesmo tempo [...], uma dimensão simbólica,

cultural, por meio de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como

forma de controle simbólico do espaço onde vivem (podendo ser, portanto, uma

forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-

disciplinar: apropriação e ordenamento do espaço como forma de domínio e

disciplinarização dos indivíduos. (2002:120-21) (...) Assim, associar o controle

físico ou a dominação “objetiva” do espaço a uma apropriação simbólica, mais

subjetiva, implica em discutir o território enquanto espaço simultaneamente

dominado e apropriado, ou seja, sobre o qual se constrói não apenas um controle

físico, mas também laços de identidade social (Haesbaert, 2001:121).

Dessa forma, cada território se constrói por uma combinação e imbricação única de

múltiplas relações de poder, do mais material e funcional, ligado a interesses econômicos e

políticos, ao poder mais simbólico e expressivo, ligado às relações de ordem mais

estritamente cultural. Portanto, “o território, enquanto relação de dominação e apropriação

sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-

econômica mais “concreta” e “funcional” à apropriação mais subjetiva e/ou cultural -

simbólica.” (Haesbaert, 2004:95).

Afirmando esse duplo aspecto do território, como “domínio” e “função” e, ao mesmo

tempo, como “apropriação” “significação/valor” Bonnemaison e Cambrezy (1996) declaram

que para além da função que assume, o território é primeiramente um valor (...) “essa relação

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se expressa por uma marcação mais ou menos intensa do espaço, ele transcende a única

"posse" material de uma porção da superfície terrestre. O poder do laço territorial revela que o

espaço é investido de valores não somente materiais, mas também éticos, espirituais,

simbólicos e afetivos”. (Bonnemaison; Cambrezy, 1996:10)

Contudo, o significado e a configuração do território variam muito ao longo do

tempo e dos espaços, pois suas “funções” e suas “significações” dependem de escalas,

contextos históricos, geográficos e culturais específicos, partindo de sujeitos específicos.

Numa proposta de sistematização, Haesbaert (2005) afirma que os objetivos dos processos de

territorialização, ou seja, de dominação e/ou de apropriação do espaço podem ser

simplificadamente agrupados em quatro grandes “fins” ou objetivos da territorialização, que

podem ser acumulados e/ou distintamente valorizados ao longo do tempo:

• Abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de produção;

• identificação ou simbolização de grupos através de referentes espaciais (a começar

pela própria construção de fronteiras);

• controle e/ou disciplinarização através do espaço (fortalecimento da idéia de

indivíduo através de espaços também individualizados, no caso do mundo moderno);

• Construção e controle de conexões e redes (fluxos, principalmente fluxos de pessoas,

mercadorias e informações).

Esses fins e objetivos se imbricam nos processos de teritorialização dos grupos ou

indivíduos, e o território enquanto processo se realiza por um sistema de classificação que é

ao mesmo tempo funcional e simbólico, incluindo e excluindo por suas fronteiras,

(re)forçando as des-igualdades sociais (diferenças de grau ) e as diferenças culturais

(diferença de natureza) entre indivíduos ou grupos. Assim, o processo de territorialização, seja

pela funcionalização (domínio) ou pela simbolização (apropriação), ou pela combinação

simultânea desses dois movimentos constrói diferenças e identidades. Pois, como afirma

Silva:

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as

operações de incluir e excluir. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em

declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre quem está incluído e

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quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteira, significa

fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. (Silva, 2004:82)

Nesta perspectiva, “toda relação de poder espacialmente mediada é também

produtora de identidade, pois controla, distingue, separa e, ao separar, de alguma forma

nomeia e classifica os indivíduos e os grupos. (Haesbaert, 2004:89). Contudo, se podemos

afirmar que em toda territorialização como sistema de classificação funcional-estratégico e/ou

simbólico-expressivo se constroem identidades, não se pode dizer o contrário, pois nem toda

identidade é territorial, nem toda identidade se territorializa, ou seja, constrói territórios, pois

todas estão “localizadas” no espaço e no tempo, mas somente algumas têm como seu

referencial principal, sua “matéria prima”, o território como definido por Haesbaert:

Toda identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente

através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto

no campo das idéias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico

constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social [...]

trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para sua

estruturação está na alusão ou referência a um território, tanto no sentido simbólico

quanto concreto. Assim a identidade social é também uma identidade territorial

quando o referente simbólico central da construção dessa identidade parte ou

perpassa o território (Haesbaert, 1999a: 172-178, grifo do autor).

A construção de uma identidade territorial pressupõe dois elementos fundamentais: o

“espaço de referência identitária6”, que é o referente espacial no sentido concreto e

simbólico onde se ancora a construção de uma determinada identidade social e cultural, e a

consciência socioespacial de pertencimento, que é a construção do sentimento de pertença e

do auto-reconhecimento, o que implica em nós nos reconhecermos como pertencentes a um

grupo e a um território específico. Vale um pouco mais de aprofundamento sobre esses

elementos.

a) O espaço de referência identitária

6 Espaço de referencia identitária é uma expressão cunhada por Poche (1983) para o estudo da região numa perspectiva

culturalista.

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O espaço de referência identitária refere-se ao recorte espaço-temporal (os meios e

os ritmos) onde se realiza a experiência social e cultural, é nele que são forjadas as práticas

materiais (formas de uso, organização e produção do espaço) e as representações espaciais

(formas de significação, simbolização e imaginação do espaço) que constroem o sentimento e

o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em relação a um território. O espaço

geográfico pode ser referência para a construção da identidade em sua dimensão físico-

natural, social e simbólica.

Desse modo, pode-se falar, por exemplo, do papel do rio como “espaço de referência

identitária” na Amazônia, pois o rio como espaço físico-natural (paisagem natural) é

fundamental como meio de transporte, como fonte de recursos naturais e ainda contribui de

maneira fundamental na temporalidade, no ritmo social de parte da região, bem como é matriz

da organização espacial em muitas áreas da Amazônia. O rio como espaço social é o meio e a

mediação das tramas e dos dramas sociais que constituem o modo de vida ribeirinho com seus

saberes, fazeres e sociabilidades cotidianas. Já como espaço simbólico ele é matriz do

imaginário, produto e produtor dos sistemas de crenças, lendas, cosmologias e mitos ligados à

floresta e ao misterioso universo das águas que são elementos fundamentais na construção da

cultura do ribeirinho na Amazônia. Portanto o rio é um espaço referência identitária para uma

parte significativa da população na Amazônia como veremos mais adiante neste trabalho.

b) A Consciência socioespacial de pertencimento:

O sentido de pertença, os laços de solidariedade e de unidade que constituem os

nossos sentimentos de pertencimento e de reconhecimento como indivíduos ou grupo em

relação a uma comunidade, a um lugar, a um território não é algo natural ou essencial, é uma

construção histórica, relacional e contrastiva7, já que consciência de pertencimento e

identidade não são uma “coisa em si” ou “ um estado ou significado fixo”, mas uma relação,

uma “posição relacional”, uma posição-de-sujeito construída na e pela diferença .

No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um território, essa é

construída a partir das práticas e reapresentações espaciais que envolvem ao mesmo tempo o

domínio funcional-estratégico sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropriação

simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades). O domínio do espaço, nos termos

de Lefevbre (1986), está ligado às representações do espaço (espaço concebido), e a

apropriação está mais ligada às práticas espaciais e aos espaços de representação (dimensão

7 Ver Hall (2004) sobre a discussão da identidade como construção relacional na e pela diferença e Oliveira (1976) para ver o natureza constrastiva da identidade.

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de um espaço percebido e vivido). É na relação dialética entre domínio e apropriação, entre

vivido e concebido que é construída a construção socioespacial de pertencimento.

Assim, por exemplo, para compreendermos a identidade das populações

“tradicionais” na Amazônia precisamos conhecer as suas experiências culturais, seus modos

de vida, suas territorialidades, seus saberes e fazeres vividos cotidianamente (o “espaço

vivido” nos termos de Lefebvre). Mas, para além da dimensão do “vivido” precisamos levar

em conta um conjunto de representações e ideologias presentes nas imagens, discursos, planos

e teorias sedimentados historicamente pela mídia, pela visão da classe política, pelas

diferentes frações do capital nacional e internacional e pelos planejamentos do Estado e ainda

nas pesquisas acadêmicas, muitas vezes, pautadas nas “representações do espaço” ou no

“espaço concebido” (Lefebvre, 1986). É a partir dessa relação dialética entre “o espaço

vivido” e o “espaço concebido” que se constroem a consciência socioespacial de

pertencimento e as identidades territoriais.

Consciência socioespacial de pertencimento

“Espaço vivido” (práticas espaciais e espaços de representação): modos de vida,

experiência cultural, habitus

“Espaço concebido” (representações do espaço):

Imagens, planos, projetos, teorias e ideologias geográficas.

Para pensarmos a identidade como produto e produtora do território, precisamos

levar em conta os contextos e as dinâmicas específicas em que se constroem as

territorialidades e as identidades, pois, como nos sugerem as reflexões de Haesbaert (2002), o

território é simultaneamente domínio e apropriação do espaço, não havendo dualidade, mas

sim uma relação dialética na qual pode ocorrer a predominância de um processo sobre o

outro. Assim, podemos verificar que enquanto determinadas territorialidades estão muito mais

ligadas a estratégias-funcionais do que a uma apropriação mais subjetiva do espaço, o mesmo

não acontece com outras.

Isso implica em dizer que também as identidades territoriais podem ser construídas

de formas diferentes, umas mais ligadas ao domínio estratégico-funcional do espaço pelo

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poder econômico e político, sendo construídas com base num espaço concebido, e outras mais

ligadas a uma apropriação simbólica-expressiva, tendo mais como referencial a subjetividade

e a experiência do espaço vivido. Mas isso não significa criar uma dicotomia, pois, como nos

lembra Lefebvre (1983), não há quebras ou rupturas entre domínio (concebido) e apropriação

(vivido), mas sim uma relação dialética. Neste sentido, cabe metodologicamente verificar em

cada processo identitário a contradição entre o domínio das estratégias-funcionais (concebido)

e a apropriação simbólico-expressiva do espaço (vivido). Nessa tensão existem pólos

predominantes e hegemônicos e outros subalternizados em forma de resíduos e resistências.

Assim, ora se impõe o domínio e o espaço concebido, ora a apropriação e o espaço vivido na

construção das identidades.

Estamos propondo, a partir das reflexões de Lefebvre (1986), que determinadas

identidades territoriais que estão predominantemente ligadas ao domínio estratégico-funcional

do espaço são identidades ligadas ao espaço concebido e às representações do espaço,

definidas por Lefebvre (1986) como aquelas representações ligadas às relações de produção

da “ordem” que impõem os conhecimentos, os signos, os códigos espaciais como um produto

do saber, um misto de ideologias e conhecimentos. Elas personificam o espaço da ordem, do

progresso e da razão, isto é, o espaço concebido, aquele dos sábios, dos planificadores e dos

urbanistas, dos tecnocratas “recortadores” e de certos artistas que reduzem o vivido e o

percebido ao concebido.

Assim, determinadas identidades territoriais são construídas deslocadas das

experiências do espaço vívido cotidianamente. Elas são produtos das representações do

espaço, ligadas a uma ordem distante e abstrata, fruto dos discursos ideológicos, políticos e

científicos de atores hegemônicos como o Estado, o grande capital, cientistas, os burocratas,

os políticos, a mídia.

Estas identidades têm sua sustentação num espaço concebido que, para Lefebvre

(1986), é um espaço que prima pela homogeneidade e pela hegemonia, é o espaço dominante

de uma sociedade (um modo de produção) que atualiza e suporta as relações sociais de

produção e de reprodução. Esse espaço concebido tenderia para um sistema de signos e

imagens elaborados intelectualmente. Esse espaço concebido é um espaço abstrato, sem

corpo, sem temporalidade, sem o ritmo da vida, negando as diferenças da natureza e do tempo

(histórico) dos ritmos cotidianos, as diferenças dos corpos, idades, sexos, etnias.

A partir das reflexões de Lefebvre (1986) podemos afirmar que as identidades

fundamentadas no espaço concebido, no espaço abstrato que parece perfeito, coerente e coeso

em sua homogeneidade funcional contêm em si o germe de sua própria negação, o espaço da

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diferença, o espaço diferencial, o vivido, o imediato que se realiza como resíduos irredutíveis,

como as diferenças qualitativas que, mesmo quando negadas pela ordem estatística abstrata,

os discursos, os planos, as imagens da mídia, as ideologias territoriais, não desaparecem,

sobrevivem pela troca nos afetos, no espaço vívido do cotidiano como corpo, valor de uso,

festa e/ou espaço do gozo.

Desse modo, existem identidades que são construídas predominantemente no e pelo

espaço diferencial através da sua apropriação simbólica. Estas estão assentadas nos espaços

da representação, que Lefebvre (1986) define como espaços que se caracterizam pelos

simbolismos complexos, ligados ao subterrâneo, ao labirinto, à clandestinidade da vida social,

ao imaginário. O espaço de representação é o espaço vivido. É o espaço dos “habitantes”, dos

“usuários”, mas também de certos artistas, dos escritores e de alguns filósofos. Para Lefebvre

(1986), o espaço de representação tem uma dimensão afetiva porque ele contém os lugares da

paixão e da ação, e é essencialmente qualitativo, relacional, diferencial. Nele nasce a

diferença, fruto do movimento, da multiplicidade de ritmos que revelam e ocultam tanto a

repetição quanto a criação da vida.

As identidades construídas a partir dos espaços de representação estão arraigadas na

experiência imediata do espaço vivido, na densidade e espessura de um cotidiano

compartilhado localmente, estão ligadas às relações imediatas e à produção e comunhão dos

saberes, da memória e do imaginário coletivo. Estas identidades estão ligadas às resistências

dos grupos subalternizados. Elas demarcam diferenças por um projeto diferente da sociedade

em sua forma hegemônica e buscam romper, transgredir e vencer o homogêneo, o espaço

concebido, forjando no espaço diferencial a possibilidade de transformação da prática social,

da sociedade e da vida.

Assim, podemos verificar que as construções das identidades territoriais assumem

configurações diferenciais, umas assentadas predominantemente no vivido e outras no

concebido. Desse modo, podemos ter dois “tipos ideais” de configurações das identidades

territoriais que só é possível separar analiticamente, considerando que empiricamente estão

imbricadas numa espécie de continuum que vai da identidade que se ancora exclusivamente

no “vivido” até aquela que se pauta exclusivamente no “concebido”.

Essas distintas configurações não implicam no julgamento da autenticidade ou não

das identidades e, portanto, não cabe uma classificação que estabeleça tipologias tais como

identidades falsas ou verdadeiras. Pois o que realmente interessa é a performance e a eficácia

das suas representações, sua capacidade de criar consensos, mobilização e ação. Pois, como

sugere Lefevbre (1983), representações tanto revelam quanto encobrem relações sociais, tanto

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agem por simulação como por dissimulação; neste sentido podem forjar a crença de que algo

existe, mesmo quando é inexistente, assim como podem fazer acreditar que algo não existe,

mesmo existindo, pois as representações não são nem falsas nem verdadeiras, mas, a um só

tempo, falsas e verdadeiras: verdadeiras como respostas a problemas reais e falsas na medida

em que dissimulam objetivos reais. (Lefebvre, 1983).

Nestes termos, portanto, a partir das reflexões de Lefebvre (1986) sobre a produção

social do espaço, podemos verificar que os processos de construção e instituição das

identidades territoriais se dão de maneira específica em cada contexto, sendo imprescindível

analisar como as práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços de representação

se combinam e se tensionam em sua relação dialética, para se buscar entender a contradição

ente o vivido e o concebido, entre apropriação e domínio, entre a reprodução das relações

hegemônicas do exercício do poder e das resistências à subalternização das diferenças e a luta

pela transformação social.

1.4. AS EXPERIÊNCIAS ESPAÇO-TEMPORAIS E AS ESCALAS NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES.

Para analisarmos a construção das identidades precisamos compreender as

experiências espaço-temporais e as escalas de pertencimento, tanto espaciais como temporais,

pois tanto o território como as identidades não são “coisas”, “essências” a-temporais, mas

processos sociais construídos num tempo histórico e espaço específico, ou melhor, pela

combinação de múltiplos tempos específicos em cada lugar e vividos diferentemente por cada

sujeito específico. As experiências tempo-espaço (ritmos) de cada sujeito, as escalas

temporais e espaciais de pertencimento são fundamentais na construção das identidades, pois

“[...] a modelagem e a remodelagem das relações espaço-temporais no interior de diferentes

sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são

localizadas e representadas”. (Hall 1997:71)

Para entendermos a dimensão espaço-temporal dos processos de desterritorialização

e das identificações, é preciso pensar o tempo como sucessão e como simultaneidade dos

eventos, o que implica em pensar o tempo numa perspectiva diacrônica (eixo da sucessão) e

sincrônica (eixo da coexistência) (Santos,1996). A primeira concepção, diacrônica, é

denominada pelo referido autor de tempo histórico ou tempo “abstrato”, o tempo pensado a

partir da relação “antes, agora e depois”. Já a segunda concepção seria o tempo “geográfico”

ou tempo “concreto”, o tempo presente, no qual coexistem e se desenvolvem no espaço,

múltiplos ritmos, durações e velocidades simultaneamente.

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Isto nos coloca o tempo, as temporalidades e os ritmos como uma questão teórico-

metodológica central no estudo das identidades territoriais, tanto numa visão diacrônica da

construção e reconstrução dos territórios e das identidades, ligada à idéia evolutiva e

tradicional de períodos sucessivos (séculos, décadas, anos, dias), quanto numa visão

sincrônica a partir dos múltiplos tempos, dos ritmos e durações no presente, ou seja, da

multiplicidade de temporalidades na contemporaneidade.

Nestes termos, compreender a construção de uma identidade territorial, implica

primeiramente, pensarmos o tempo diacronicamente, pois o corte temporal dado para análise

do processo de construção identitária de um determinado grupo pode ser fundamental na

apreensão do fenômeno, pois décadas ou anos, meses, e até dias podem mudar completamente

as configurações territoriais e identitárias de um determinado grupo, instituição ou classe.

A perspectiva sincrônica se refere à multiplicidade de temporalidades do presente,

pois os lugares e os sujeitos não vivem a mesma combinação de tempos. Nesta perspectiva,

Haesbaert (2004) faz um interessante comentário sobre a concepção de Deleuze e Guattari

(1997) que concebem o território como um “ato”, um produto da territorializaçao dos meios e

dos ritmos. “O território, assim, não é apenas uma “coisa” um conjunto de objetos, mas,

sobretudo, ação, ritmo, movimento que se repete” (p.281)

Neste sentido, são múltiplos os movimentos, as ações, os ritmos e as temporalidades

que formam e configuram os processos de territorializaçao e, conseqüentemente, de

construção identitária. A multiplicidade é aqui entendida pela perspectiva que Haesbaert

(1999), inspirado em Bérgson, propõe que é o jogo entre a des-igualdade (diferenças de grau)

e diferença estricto senso (diferenças de natureza). Assim a multiplicidade de ritmos na

contemporaneidade não pode ser entendida somente como uma variação objetiva e funcional

da circulação e da (i)mobilidade no espaço, pois os ritmos podem ser funcionais e também

expressivos nos termos de Deleuze. Os ritmos não se diferem somente em quantidades: des-

igualdades de velocidades funcionais (diferença de graus e intensidades), mas também em

qualidades: diferenças culturais simbólico-expressivas (diferença de natureza).

O território é hoje, mais do que nunca movimento, ritmo, fluxo, rede, não se trata de

um movimento qualquer, ou de um movimento de feições meramente funcionais: ele

também è dotado de significado, de expressividade, isto é, que tem um significado

determinado para quem o constrói e / ou para quem dele usufrui (Haesbaert,

2004:281).

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Não se trata simplesmente de priorizar o expressivo sobre o funcional, ou vice-versa,

mas de reconhecer sua permanente imbricação. Isto significa dizer, que não se trata de uma

simples questão quantitativa de velocidades, mas também de significados sociais e culturais

das práticas e representações territoriais: os significados do tempo social, do espaço social,

das identidades sociais que se mesclam, diversificam-se afirmando/negando e/ ou negociando

em cada processo de territorialização para cada sujeito específico. É, pois, pelo (des)encontro

e pela imbricação de temporalidades distintas des-iguais/funcionais e diferentes/expressivas

que se cria uma multiplicidade contraditória de formas híbridas de se identificar nos processos

de territorialização.

Essa multiplicidade de experiências de tempo-espaços nos coloca a questão das

escalas nas quais se constróem as identidades como um elemento teórico e metodológico

fundamental para pensarmos as identidades territoriais, visto que, especialmente hoje, os

indivíduos, grupos, classes, “tribos” podem construir territórios do mais micro ao mais macro

ou ainda, podem construir territorialidades com durações de décadas e/ ou de alguns minutos.

Os territórios podem ser construídos em zonas estáveis fixas ou em territórios-rede que se

constroem no/e pelo movimento (Haesbaert, 2004).

É nessa multiplicidade de durações e extensões, ritmos e configurações que temos

que pensar a construção das identidades. Os processos de identificação e os sentimentos de

pertencimento transitam por múltiplas escalas de referência identitária num jogo relacional

de/e entre espaços e tempos, sendo possível falarmos até em “multiterritorialidades e

multipertencimentos” (Haesbaert, 2004).

Compreender o jogo de escalas é fundamental hoje quando ocorre o “desencaixe”

das relações sociais, que são deslocadas dos contextos locais de interação e reestruturadas e

recombinadas através de extensões indefinidas de tempo-espaço. Esse processo de

desenvolvimento dos mecanismos de desencaixe leva a uma separação do tempo-espaço

redefinindo e “alongando” a idéia de contexto. (Giddens, 1991). Assim, contextualizar os

processos sociais e culturais que configuram as identidades significa compreender as

múltiplas escalas de tempo e espaço, pois muitas identidades se constituem a partir do jogo

entre o local e o regional, o nacional e o global, e existem inúmeras escalas que se configuram

a partir de cada perspectiva analítica e cada fenômeno identitário analisado.

Analisando a importância da escalas para se pensar a diferença Smith (2000) propõe

pensarmos as escalas: do corpo, da casa, da comunidade, do espaço urbano, da região, da

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nação, das fronteiras globais, para a construção das identidades. Em cada escala se revelam

diferenças e identidades específicas, processos sociais (desigualdades sociais) e culturais

(raça, etnia, gênero) que conformam as identidades dos diferentes sujeitos nos diferentes

territórios. O autor afirma que mesmo aquelas identidades que não se constroem diretamente a

partir do território acabam assumindo uma escala espacial de referência, por exemplo,

questões de gênero e étnicas acabam se revelando de forma muito mais explícita e

contundente em escalas como a do corpo, da casa e da rua do que na escala da região ou da

nação, assim como, outras identidades só podem ser compreendidas em escalas mais amplas

ou pelo menos no jogo relacional de múltiplas escalas, ou seja, a mudança da escala modifica

a qualidade e as cadeias de causualidade dos fenômenos analisados (Lepetit, 1998).

Como o território é multiescalar, a identidade territorial também é multiescalar,

sendo que a consciência sócioespacial e o sentimento de pertencimento em relação a um

espaço de referência identitária podem se dar da escala do corpo ao globo. A importância da

escala na construção identitária não se resume à constatação da existência da diversidade de

escalas, mas a seu papel ativo, relacional e estratégico na diferença e na diferenciação espacial

(Smith, 2000). Pois, se a identidade é um jogo relacional, tal relação não se resume àquela

entre indivíduos ou grupos, mas também entre lugares e escalas, portanto, uma identidade

local só ganha sentido diante da região, da nação e do mundo e assim por diante. “É a escala

geográfica que define as fronteiras e limita as identidades em torno das quais o controle é

exercido ou contestado” (Smith, 2002:14).

1.5. NOVAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A AMAZÔNIA E A QUESTÃO DAS IDENTIDADES.

Diante de nossa atual dificuldade em definir o que de fato é contexto, visto que cada

vez mais os fenômenos sociais se realizam em múltiplas escalas com diferentes durações e

extensões, estamos propondo pensar as identidades territoriais na Amazônia buscando

proceder nossa análise em conta a influência e os elos de causalidade que extrapolam a escala

regional. Neste sentido começaremos a analisar a questão das identidades na Amazônia a

partir da análise de processos mais gerais que ocorrem na escala global e que incidem sobre a

região, influenciando na construção das identidades na escala regional e local.

Nesta perspectiva, podemos verificar que Amazônia é profundamente influenciada

por processos globais, e vários vetores da atual economia globalizada convergem para esta

região. Neste sentido, vale destacar a centralidade estratégica, geopolítica, econômica e

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midiática que a região assumiu a partir da ascensão da questão ambiental. Essa visibilidade é

tão grande que algumas pesquisas apontam que a palavra “Amazônia”, ou melhor, a marca

“Amazônia” é uma das três mais conhecidas em todo o mundo, estando do lado de marcas

como Coca-Cola. Isto mostra como é forte o imaginário construído sobre a esta porção do

território brasileiro. Além disso, hoje é muito grande a quantidade de empresas, ONGs e

instituições de pesquisa que atuam na região , sem falar que grande parte do capital que

nela circula é de origem externa.

Esse processo de globalização da região vem se intensificando a partir do processo

que Escobar (2005) denominou de uma “irrupção do biológico”. Trata-se da emergência do

discurso da conservação da biodiversidade e do chamado desenvolvimento sustentável no

plano das políticas de desenvolvimento a nível global. Segundo Escobar (2005), o conceito de

biodiversidade tem transformado os parâmetros de avaliação da natureza e as disputas de

acesso aos recursos naturais. A idéia de biodiversidade decorre de uma quantificação do

número de espécies existentes em determinadas áreas. É por isso que zonas ou áreas tropicais

como a Amazônia (que possuem uma grande diversidade genética) adquirem “uma nova

visibilidade e se convertem em objeto de renovado interesse” para inúmeros atores com

interesses e projetos diversos. Desse modo, o discurso da biodiversidade coloca as áreas de

floresta tropical unida numa “posição biopolítica global fundamental” (Escobar, 2005:346).

No que se refere especificamente à Amazônia, a revolução científico-tecnológica, a

crise ambiental e a atuação dos chamados novos movimentos sociais redefiniram a partir de

interesses diferenciados o valor da natureza enquanto recurso (Becker, 1996). A ação conjunta

desses elementos resulta na mudança do paradigma de desenvolvimento na Amazônia

baseado na economia de fronteira para um padrão de desenvolvimento sustentável baseado na

eficiência máxima e no desperdício mínimo no uso de recursos naturais, na valorização da

diversidade e na descentralização (Becker, 1996: 226).

Nessa nova realidade se configura uma nova divisão territorial do trabalho e uma

nova geopolítica, o que implica um novo modo de produzir que valoriza a natureza como

capital de realização atual e/ou futura (Becker, 1996: 226). Diante desse novo quadro, a

Amazônia deixa de ser a fronteira de recursos para o uso imediato para tornar-se uma

fronteira tecno-ecológica ou fronteira sócio-ambiental, cujo desenvolvimento futuro se tornou

uma questão complexa e híbrida que envolve um conflito de valores quanto à natureza.

(Becker, 1996)

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Nesse contexto, segundo Becker (2004), a natureza vem sendo reavaliada e

revalorizada a partir de duas lógicas muito diferentes, mas que convergem para o mesmo

projeto de preservação da Amazônia:

1- A primeira lógica é a civilizatória ou cultural, que se caracteriza por uma

preocupação legítima com a natureza pela questão da vida, dando origem aos movimentos

ambientalistas.

2- A outra lógica é a da acumulação, que vê a natureza como recurso escasso e como

reserva de valor para a realização de capital futuro, fundamentalmente no que tange ao uso da

biodiversidade condicionada ao avanço da tecnologia.

Essas duas grandes lógicas se tornam mais complexas e matizadas quando

verificamos a questão dos discursos sobre a biodiversidade envolvendo os mais diversos

atores e interesses, como nos mostra Arturo Escobar (2005:348-9):

1. Utilização dos recursos: perspectiva “globocêntrica”. A perspectiva

“globocêntria” é visão da biodiversidade produzida pelas instituições dominantes,

nomeadamente o Banco Mundial e as principais ONGs ambientalistas do norte

apoiados pelos paises do G-8. Oferece prescrições para conservação e usos

sustentáveis dos recursos nos níveis internacional, nacional e local, e sugere

mecanismos apropriados para utilização, incluindo investigação cientifica,

conservação in situ e ex situ, planejamento nacional da biodiversidade e

estabelecimento de mecanismos apropriados para compensação e utilização

econômica dos recursos da biodiversidade, principalmente mediante direitos de

propriedade intelectual.

2. Soberania: Perspectivas nacionais do Terceiro Mundo. Apesar de existirem

grandes variações nos posicionamentos adotados pelos governos do Terceiro

Mundo, pode- se afirmar a existência de uma perspectiva nacional do terceiro

mundo que, sem pôr em questão de maneira fundamental o discurso

“globalocêntrico”, procura negociar os termos dos tratados e as estratégias da

biodiversidade. Aspectos ainda não resolvidos, nomeadamente o da conservação in

situ e o acesso a coleções ex situ, o acesso soberano aos recursos genéticos, a divida

ecológica e a transferência de recursos tecnológicos e financeiros para o Terceiro

Mundo são tópicos importantes na agenda dessas negociações.

3. Biodemocracia: perspectivas das ONGs progressistas. Para um número crescente

de ONGs do sul a perspectiva dominante e “globalocêntrica” equivale a uma forma

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de bioimperalismo. Os simpatizantes da biodemocracia enfatizam o controle local

dos recursos naturais, a suspensão de megaprojetos de desenvolvimento, e os

subsídios para as atividades do capital destroem a biodiversidade, o apoio às

práticas baseadas na lógica da diversidade, a redefinição de produtividade e

eficiência e o reconhecimento da base cultural da diversidade biológica.

4. Autonomia cultural: Perspectiva dos movimentos sociais. Os movimentos sociais

que constroem uma estratégia política para defesa do território, da cultura e da

identidade ligada a determinados lugares e territórios geram uma política cultural

mediada por considerações ecológicas. Consciente de que a biodiversidade é uma

construção hegemônica, reconhecem, porém, que esse discurso abre um espaço para

configuração de desenvolvimentos culturalmente apropriados que se podem opor às

tendências mais etnocêntricas. O interesse desses movimentos é a defesa de todo um

projeto de vida, e não apenas a defesa dos recursos ou da biodiversidade.

Paralelo a essa “irrupção do biológico” vem ocorrendo também uma “irrupção do

étnico”, que está ligada a um processo mais amplo de “centralidade da cultura” (Hall, 1997)

na dinâmica do mundo contemporâneo. Segundo o referido autor, vem ocorrendo um

processo onde o “cultural” é cada vez mais relevante para entendemos o “econômico” e o

“político”. Este processo se materializa em duas direções: de um lado, nessa nova fase do

capitalismo, o capital avança rumo às ultimas fronteiras onde a lógica da mercadoria ainda

não tinha se tornado hegemônica - trata-se da transformação da “cultura em recurso” (Yudice,

2004) e meio de acumulação. Numa segunda direção percebemos as transformações nas

formas de sociabilidade, visto que as mudanças de valores vêm afetando de maneira

dramática a construção das subjetividades. Deste modo, as subjetividades são cada vez mais

politizadas e a questão da diferença torna-se o centro de muitas das lutas do mundo atual,

sendo que o direito ao reconhecimento constitui a plataforma de inúmeros movimentos sociais

que lutam pelas chamadas políticas de identidade.

Esses dois processos de “irrupção” se materializam na atual realidade da Amazônia,

pois há uma crescente visibilidade das questões ambientais por conta da questão do

“desenvolvimento sustentável” e da biodiversidade, ao mesmo tempo em que há uma

crescente organização e mobilização das chamadas “populações tradicionais” na luta pelo

reconhecimento dos seus direitos, como vem ocorrendo com as populações indígenas, as

populações quilombolas e as populações extrativistas como a dos seringueiros, entre outras;

isso implica numa espécie de “ambientalização” e “etnização” das lutas socais na região.

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Esses dois processos trazem um conjunto de elementos importantes na construção de novas

“políticas culturais” ou da politização das cultura “tradicionais” e tem influenciado na

construção das identidade territoriais na Amazônia

Assim, podemos verificar que esse novo paradigma do “desenvolvimento

sustentável” traz consigo um novo conjunto de práticas materiais expressas em novas formas

de produzir, uma nova forma de atuação de uma fração capital, bem como uma mudança nas

formas de intervenção estatal através das políticas públicas de ordenamento territorial

expresso nas idéias de preservação e conservação ambiental. Além disso, vem ocorrendo a

emergência de redes internacionais e globais dos movimentos ambientais e sociais que travam

inúmeras lutas pautadas na idéia de uma “consciência ambiental global”.

Mas, para além disso, esse novo modelo de desenvolvimento trouxe consigo um

novo imaginário e um novo regime discursivo que dá uma grande visibilidade ao chamado

“desenvolvimento sustentável” e à biodiversidade. Estas idéias são a base, como vimos, dos

discursos produzidos pelos mais diversos atores com diferentes interesses e projetos. Esse

discurso abrange um amplo leque de atores e interesses e se manifesta tanto no discurso do

grande capital e dos organismos internacionais que normatizam o sistema de acumulação

global – como Banco Mundial, OMC entre outras instituições –, como nos discursos do

Estado, da mídia, dos cientistas e das organizações não governamentais, alcançando os

movimentos sociais. Diante da amplitude e da força desse novo regime discursivo, cria-se um

novo imaginário pautado num conjunto de “representações do espaço” que apresentam uma

“nova” visão da Amazônia e das chamadas “populações tradicionais”, pois com a valorização

da biodiversidade ocorre também uma certa “valorização” das chamadas “culturas

tradicionais”, já que o acesso aos recursos genéticos não raras vezes passa pelos saberes

“tradicionais” acumulados por essas populações na longa convivência com os ecossistemas

amazônicos.

Desse modo, a cultura dessas populações que sempre foram historicamente

invisibilizadas, negadas, suprimidas ou estigmatizadas por um conjunto de discursos,

representações e ideologias marcadas por preconceitos e por uma visão racista e colonialista,

experimentam hoje uma certa (re)valorização e uma (re)significação a partir de dois

movimentos que, embora procedendo de interesses e projetos distintos e caminhando em

direções diferentes se relacionam dialeticamente na construção de uma consciência

socioespacial de pertencimento e na construção da identidades dessas populações.

O primeiro movimento aponta para uma espécie de idealização romântica do

ribeirinho, que tem ganhado força nos dias atuais por via de um ecologismo romântico que

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fortalece a idéia de que essas populações são a redenção para a sociedade urbano-industrial

marcada pelo consumo e pela insustentabilidade. Nesta visão, o modo de vida ribeirinho

aponta para formas alternativas de racionalidade econômica e ambiental sustentáveis. Essa

visão, contudo, ignora a pobreza e as difíceis condições de vida que tais populações

vivenciam.

Essa visão é ainda reforçada pela indústria do turismo que vive da venda do exótico;

neste sentido, vem ocorrendo uma espécie de mercantilização da alteridade e da diferença

(Hall, 1997), com uma conseqüente (re)valorização das singularidades das culturas não-

urbanas, ou “culturas tradicionais”, criando-se assim verdadeiros “mercados étnicos”, a venda

de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de identidades” (Yudice, 2005) .Dessa forma as

populações ribeirinhas, sua cultura e seu modo de vida são estilizados, tornando-se valiosos

produtos para o mercado turístico.

Num segundo movimento e em outra direção, a valorização das “culturas

tradicionais” vem sendo realizada pelas próprias populações “tradicionais” que se organizam,

ganhando visibilidade e caráter protagonista, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos

políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos a partir de suas

territorialidades. Essas lutas são lutas por distribuição e por maior igualdade de acesso aos

recursos materiais, bem como pelo reconhecimento da legitimidade das diferenças e das

identidades culturais expressas nos diferentes modos de produzir e nos diferentes modos de

viver de tais populações.

Assim, nas lutas pela afirmação dos direitos à sua territorialidade e ao seu modo de

vida próprio que são negados pelo projeto de “modernização”, as populações “tradicionais”

iniciaram um processo de questionamento dos discursos e representações hegemônicas sobre

as suas identidades. Representações estas que desconsideram a cultura e o modo de vida, o

“espaço vivido” dessas populações, sendo construídas e pautadas em estereótipos

reducionistas de uma clara fundamentação colonialista.É nesse contexto que emergem novas

identidades a partir de um processo de politização das culturas “tradicionais” na Amazônia

Essas lutas contam com fortes alianças internacionais e globais através da

cooperação internacional e, em especial, pela atuação em rede de ONGs ligadas à questão

ambiental que financiam e ajudam no processo de organização , mobilização e, sobretudo,

no processo de divulgação e midiatização das causas e lutas dos “povos da floresta”.

Esse conjunto de processos atua de maneira ativa na construção das identidades

territoriais na Amazônia: o sentido de lugar, os vínculos de pertencimentos, as relações de

caráter expressivo e afetivo, construídas e arraigadas no cotidiano, nas práticas do “espaço

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vivido” e amalgamadas na memória e na tradição são “suturadas” a esses novos discursos, a

essas novas “representações do espaço” pautadas no “espaço concebido”, produzindo uma

consciência socioespacial de pertencimento e a constituição de novas posições-de-sujeito,

tornando mais complexa a dinâmica política da região, como veremos no restante desse

capítulo.

1.6.R-EXISTÊNCIA, TERRITORIALIDADE E LUTAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES NA AMAZÔNIA.

A partir do final dos anos 1970 emerge na Amazônia um conjunto de movimentos

sociais canalizando e materializando as forças políticas das chamadas “populações

tradicionais” que no processo de r-existência aos processos de exploração econômica,

dominação política e estigmatização cultural começam a se organizar e lutar, constituindo-se,

como novos protagonistas que ganham visibilidade a partir dos inúmeros antagonismos

sociais e lutas por seus direitos sociais e culturais.

Esses novos movimentos sociais, conforme Almeida (2005) vem se consolidando

fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e da política que tinha sua

personificação nos sindicatos de trabalhadores(as) rurais. O autor aponta o ano de 1989 como

um marco, um ponto crítico e de precipitação de inúmeros “encontros” e iniciativas que

deram origem a diversas formas de movimentos socais e associações que lutam por interesses

das populações “tradicionais”.

No momento atual esse processo de emergência de novos sujeitos políticos vem

assumindo novas configurações e ganhando densidade e conteúdo histórico pela afirmação de

múltiplas formas de associação que ultrapassam “o sentido estreito de uma organização

sindical, incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos, de gênero e de autodefinição

coletiva” (Almeida, 2005:163). Esses novo-velhos sujeitos protagonistas apontam para uma

existência coletiva objetivada numa diversidade de movimentos organizados com suas

respectivas redes sociais, redesenhando a sociedade civil da Amazônia e impondo seu

reconhecimento aos centros de poder.

Prosseguindo suas considerações, o referido autor destaca como materialização

desse processo as associações voluntárias e entidades da sociedade civil que estão se tornando

força social, tais como: União das Nações Indígenas – UNI Coordenação Indígena da

Amazônia Brasileira – Coiab e toda a rede de entidades indígenas vinculadas, que alcança

cerca de 60, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu – MIQCB, o

Conselho Nacional dos Seringueiros, o Movimento Nacional dos Pescadores – Monape, o

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Movimento dos Atingidos de Barragens – MAB, a Associação Nacional das Comunidades

Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Maranhão – a

Associação das Comunidades Negras Quilombolas do Maranhão – Aconeruq e no Pará – a

Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná –

ARQMO, a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia entre outras.

Essas novas formas de organização política implicam em novas táticas e

estratégias levando a uma ampliação das pautas reivindicatórias na luta por direitos que vão

dos direitos socais básicos como saúde, educação, terra, crédito, bem como pelo

reconhecimento de direitos culturais, como o direito as formas diferenciais de apropriação e

uso da terra e dos recursos naturais, formas diferentes de cultos e valorização e

reconhecimento dos conhecimentos acumulados por tais populações etc. Segundo Almeida

(2004) a ampliação das pautas de demandas tem sido acompanhadas da multiplicação de

instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos,

sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais.

Esse conjunto de movimentos sociais se articula coletivamente naquilo que

Almeida (1994) denominou de “unidades de mobilização”, um conjunto de movimentos

diferentes e locais que estrategicamente se reúnem para pressionar o Estado na busca soluções

para suas demandas, além disso, essas “unidades de mobilizações” se articulam em redes em

várias escalas transcendendo a escala local e até a nacional , logram generalizar o localismo

das suas reivindicações através de parcerias e alianças a nível internacional criando novas

formas de mediação e interlocução e com essas práticas alteram padrões tradicionais de

relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, inaugurando

novas formas de lutas políticas e resistência.

Essa nova estratégia discursiva e identitária dos movimentos sociais na Amazônia,

ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que, conforme

Almeida (2005), em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês.

No momento histórico atual esses atores políticos apresentam-se através de múltiplas

denominações e apontam para a construção de novas e múltiplas identidades. Essa

multiplicidade de identidades cinde, portanto, com o monopólio político do significado das

expressões camponês e trabalhador rural, que até então eram usadas com prevalência por

partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na Contag (Confederação Nacional

dos Trabalhadores em Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR)

(Almeida, 2005).

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Para Gonçalves (2001) esse novo contexto aponta para a construção de “novas”

identidades coletivas surgidos de velhas condições sociais e étnicas, como é o caso das

populações indígenas e negras, ou remetendo-se a uma determinada relação com a natureza

(seringueiro, castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda expressando

condição derivada da própria ação dos chamados “grande projetos” implantados na região,

como estradas hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros. (“atingidos”, ”assentado”,

“deslocado”). Trata-se de um processo de re-significação político e cultural que esses grupos

sociais vem fazendo da sua experiência cultural e da sua forma de organização política.

Dentro dessas novas estratégias discursivas e das novas táticas de práticas políticas

os “velhos” agentes vem se constituindo em “novos” sujeitos políticos ou novas posições-de-

sujeito (Hall, 2004) este processo se dá pela politização daqueles termos e denominações de

uso local. Trata-se da ”politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se

erigem em sujeitos da ação ao adotar como designação coletiva as denominações pelas quais

se autodefinem e são representados na vida cotidiana” (Almeida, 2004a:166).

Essas novas afirmações identitárias não significam uma destituição do atributo

político das categorias de mobilização como camponês e trabalhador rural. Contudo para

Alfredo Wagner Almeida é a emergências das “novas” denominações que designam os

movimentos e que espelham um conjunto de práticas organizativas que traduzem

transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização desses grupos, em face

do poder do Estado e em defesa de seus territórios.

Em virtude disso, pode-se dizer que, mais do que estratégia de discurso, ocorre o

advento de categorias que se afirmam por meio da existência coletiva, politizando

não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também as práticas rotineiras de

uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de

autodeterminação afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo

organizacional, ou traduzida para o campo das relações políticas, verificando-se

uma ruptura profunda com a atitude colonialista e homogeneizante, que

historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em

classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”,”selvagens” e

ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador (Almeida, 2004:167).

Assim na busca pela afirmação dos direitos à sua territorialidade, com seu modo

de vida próprio negados pela “modernização” essas populações iniciaram um processo de

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questionamento dos discursos e representações hegemônicas sobre as suas identidades

(representações pautadas no espaço concebido que é um misto de conhecimento e ideologias)

representações homogêneas e abstratas materializadas no conjunto de planos, projetos,

estatísticas e teorias usadas pelo Estado e pelo grande capital que ignoram o “espaço vivido” e

a dimensão cotidiana do modo de vida de tais populações com seus múltiplos ritmos,

diferentes formas de sociabilidade, saberes e fazeres.

O questionamento das práticas discursivas e representações do espaço “espaço

concebido” é feito pela politização do “espaço vivido” da dimensão cotidiana dos diferentes

modos de vida e territorialidades. Assim esses movimentos sociais buscam redefinir e re-

significar suas identidades buscando construir um novo “magna de significações” que

valorizem a própria experiência cultural dessas populações apontando para uma nova “política

cultural” aqui entendida:

(...) como processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados

por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflitos

uns com outros. Essa definição supõe que significados e práticas - em particular

aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais e

emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em

relação a uma determinada ordem cultural dominante - podem ser fonte de

processos que devem ser aceitos como políticos. (Álvares, Dagnino e Escobar,

2000:24-5).

Trata-se de um processo onde há um entrelaçamento entre a cultura e a político de

maneira co-constitutiva na construção identitária. A cultura é política porque os significados

são constituídos dos processos que implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder

social. “Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça

economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes,

os movimentos põe em ação uma política cultural” (Álvares; Dagnino e Escobar, 2000:25).

Falamos de formações de política cultural nesse sentido: elas são resultadas de

articulações discursivas que se originam em práticas culturais existentes - nunca

puras, sempre híbridas, mas apesar disso, mostrando contrastes significativos em

relação ás culturas dominantes - e no contexto de determinadas condições

históricas (Álvares; Dagnino e Escobar, 2000:25)

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Essas novas “políticas culturais“ ou a politização da cultura pelos movimentos

sociais ligados as populações ”tradicionais” apontam conforme Almeida (2004), para o

advento, nesta última década e meia, de categorias que se afirmam por meio de uma

existência coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana, tais como seringueiros,

quebradeiras de coco-babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores, extratores de arumã e

quilombolas, entre outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para a realidade

da Amazônia.

As políticas culturais dos movimentos tentam amiúde desafiar ou desestabilizar as

culturas políticas dominantes. Na medida em que os objetivos dos movimentos

sociais contemporâneos às vezes vão para além de ganhos materiais e

institucionais percebidos; na medida em que esses movimentos sociais afetam as

fronteiras da representação política e cultural, bem como a prática social, pondo

em questão até o que pode ou não pode ser considerado político; finalmente, na

medida em que as políticas dos movimentos sociais realizam contestações

culturais ou pressupõe diferenças culturais - então devemos aceitar que o que está

em questão para os movimentos sociais, de um modo profundo, é uma

transformação da cultura política dominante na qual se move e se constitui como

atores sociais com pretensões políticas (Álvares; Dagnino e Escobar, 2000:170).

Esses movimentos sociais tendem a questionar as identidades legitimadoras

(Castells, 1999) deslocando e fraturando os discursos identitários que historicamente

produziram a invisibilidade, a romantização e a estigmatização dessas populações,

reorientando as práticas políticas e discursivas a partir de identidades de resistência que em

muitos casos como dos seringueiros, das mulheres quebradeira de coco de babaçu se esboçam

como identidades de projeto, pois, apontam para um conjunto de práticas e valores que

reforçam e inauguram modos alternativos de produzir, de se relacionar com a natureza,

enfim,diferentes modos de existir.

Trata-se da constituição de novos atores no espaço público e na política, atores

protagonistas afirmando suas identidades, pois como nos fala Touraine (1994) o “ator não é

aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele

que modifica o meio ambiente material e, sobretudo social no qual está colocado,

modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as

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orientações culturais” (p.220-1). Neste mesmo sentido, Gonçalves (2004) destaca que o

movimento (social) é, rigorosamente, mudança de lugar (social) sempre indicando que

aqueles que se movimentam estão recusando o lugar que lhes estava reservado numa

determinada ordem de significações Nesta perspectiva um movimento social é:

Um esforço de um ator coletivo para se apossar dos valores, das orientações

culturais de uma sociedade, opondo-se à ação de um adversário ao qual está

ligado por relações de poder (...) Um movimento social é ao mesmo tempo um

conflito social e um projeto cultural (...) ele visa sempre a realização de valores

culturais, ao mesmo tempo que a vitória sobre um adversário social (Touraine

1994, 253).

O movimento social como “projeto cultural” é portador de uma nova ordem em

potencial não sendo destituído de sentido, busca novos valores, novos “magmas de

significação” (Gonçalves, 2004). Os movimentos sociais na Amazônia parecem apontar para

direção de outros movimentos socais que hoje nas suas lutas apontam para a construção de

“políticas culturais”

Esses movimentos sociais, emergentes hoje na Amazônia forjados pelos mais

diversos antagonismos têm como referencial e diferencial o fato de serem movimentos

pautados em lutas não só contra a desigualdade, pela redistribuição de recursos materiais

como, por exemplo, a terra, crédito, estradas etc., mas também são lutas simbólicas por um

“novos magmas de significação” que permitam o reconhecimento das diferenças culturais,

dos diferentes modos de vidas que expressam em suas diferentes territorialidades. Desse

modo, a constituição desses novos sujeitos se dá nas e pelas lutas de afirmação de suas

identidades culturais e políticas pautadas na territorialidade, logo, são lutas pela afirmação de

suas identidades territoriais. Almeida, (2004) afirma que o sentido coletivo das autodefinições

emergentes na Amazônia impôs uma noção de identidade à qual correspondem

territorialidades específicas.

São os seringueiros que estão construindo o território em que a ação em defesa

dos seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão

defendendo a preservação dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os

castanheiros defendendo os castanhais, as quebradeiras, os babaçuais, os

pescadores, os mananciais e os cursos d’água piscosos, as cooperativas, seus

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métodos de processamento da matéria-prima coletada. De igual modo, os pajés,

curandeiros e benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas medicinais e

dos saberes que as transformam (Almeida, 2004a: 48-9).

Assim, podemos verificar que na luta contra os processos de modernização e

expansão da fronteira econômica e das frentes de expansão demográfica sobre o territórios

tradicionalmente ocupados pelos povos “tradicionais” é que os movimentos sociais afirmam a

identidade e territorialidade dessas populações , ou seja, as novas reivindicações territoriais

dos povos indígenas, dos quilombolas e outras comunidades negras rurais, e das diversas

populações extrativistas, representam uma resposta às novas fronteiras em expansão,

respostas que vão muito além de uma mera reação mecânica para incluir um conjunto de

fatores próprios da nossa época(Litlle ,2002)

Diante da pressão dos violentos processos desterritorializadores frutos do avanço

das Frentes de expansão na Amazônia , os povos tradicionais se sentiram obrigados a

elaborar novas estratégias territoriais para defender suas áreas. Isto, por sua vez, deu lugar à

atual onda de (re)territorializações ( Little, 2002; Almeida, 2005)

O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado brasileiro a admitir a

existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo distintos

regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado, atendendo às

necessidades desses grupos. As novas condutas territoriais por parte dos povos

tradicionais criaram um espaço político próprio, na qual a luta por novas

categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa (Little

2002:13).

Assim, trata-se de lutas pelo direito à territorialidade que é fundamental na

reprodução dos modos de vida tradicionais, pois o território é, para essas populações ao

mesmo tempo: a) os meios de subsistência; b) os meios de trabalho e produção; c) os meios

de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aquelas que compõem a estrutura social 8 .Assim o território se constitui como “abrigo” e como “recurso” abrigo físico, fonte de

8 Ver Diegues (1996) o papel do território na construção dos modos de vida “tradicionais”

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recursos materiais ou meio de produção e ao mesmo elemento fundamental de identificação

ou simbolização de grupos através de referentes espaciais9

Little (2002) afirma que territórios dos povos tradicionais se fundamentam em

décadas, em alguns casos, séculos de ocupação efetiva. A longa duração dessas ocupações

(domínio estratégico-funcional e apropriação simbólico-expressiva) fornece um peso histórico

às suas reivindicações territoriais e afirmações identitárias.

A expressão dessas territorialidades, então, não reside na figura de leis ou títulos,

mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões

simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá

profundidade e consistência temporal ao território (Little,2002:14).

O referido autor destaca três elementos que marcam a razão histórica e que

substancializa a territorialidade das populações tradicionais a) regime de propriedade comum,

b) sentido de pertencimento a um lugar específico c) profundidade histórica da ocupação

guardada na memória coletiva. É por essa importância que a territorialidade é uma dimensão

fundamental da afirmação dos direitos coletivos das “populações tradicionais” na Amazônia,

pois é nela que reside à garantia do reconhecimento de uma identidade coletiva e a defesa da

integridade dos diferentes modos de vida, modos de vida associados matrizes de

racionalidades pautas nas diferentes formas uso-significado do espaço e da natureza.

É na luta pelo reconhecimento da territorialidade das populações “tradicionais”

que vem se (con)formando as identidades coletivas na Amazônia, identidades essas

associadas a estas diferentes formas de luta, são o resultado emergente das próprias lutas,

mesmo quando assentam em condições ou em coletivos que pré-existem a elas. Elas podem

assentar, seja em comunidades locais, baseadas em relações face a face, seja em comunidades

imaginadas (Sousa Santos, 2003b). Assim, o conflito se constitui, como um momento

privilegiado dessa conformação de identidades, de configuração de “comunidades de destino”

(Gonçalves, 2004)

É quando cada um começa a perceber que o seu destino individual está num outro

com/contra o qual tem que se ligar/se contrapor. (...) Podemos, pois, afirmar que 9 Ver uma proposta de sistematização feita Haesbaert (2005) sobre “fins” ou objetivos do processo

territorializaçao

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são nas circunstâncias dos encontros/das relações/das lutas que se desenham

concretamente essas diferenças e que toda classe se constitui, se classifica, se

diferencia, constrói um Nós em relação a um Eles (Gonçalves, 2004).

Assim, a identidade dos movimentos sociais na Amazônia vem se constituindo a

partir da construção de uma consciência socioespacial de pertencimento pautados em uma

politização da territorialidade e do “espaço vivido”, do modo de vida cotidiana e na luta

contra o projeto de “modernização autoritária“ trata-se de transformar“comunidades de vida”

em “comunidades de destino” para usar a expressão de Bauman ( 2005). Esse processo é

explicitado por Martin quando afirma que:

A função do discurso identitário é de orientar estas escolhas, de tornar normal,

lógico, necessário, inevitável, o sentimento de pertencer, com uma forte

intensidade, a um grupo. Ele se dirige à emotividade, se esforça por impressionar,

por emocionar, a fim de que este sentimento de pertencimento impulsione, caso a

situação o exija, a agir: impelido pelo sentimento de pertencimento, torna

insuportável a recusa de defesa. A fim de criar as condições desta adesão, o

discurso identitário tem por tarefa definir o grupo, fazer passar do estado latente

àquele de ’comunidade’ em que os membros são persuadidos a ter interesses

comuns, a ter alguma coisa a defender juntos (Martin apud Claval,1999 :23).

Essa politização do “vivido” é colocada para o plano do “concebido” e do

“representado” ocorrendo uma passagem de “comunidades de vida” para “comunidades de

destino” uma metamorfose da identidade que deixa de ser vivida como “necessidade” de

forma latente para ser vivida e representada de forma manifesta e performática como

“projeto”, isso é muito bem demonstrado por Gonçalves (1999:70) no que se refere à

constituição da identidade dos movimentos dos seringueiros.

Claro que os seringueiros existiam naquele lugar/naquele momento, tanto no

sentido geográfico como social. No entanto, sabemos, a existência de uma

determinada condição socio-geográfica seringueira, ou outra qualquer, não

implica necessariamente que venha a se constituir numa identidade político-

cultural assumida pelos próprios protagonistas como tal (....)Deste modo, emerge

um movimento dos seringueiros que emana da compreensão interessada do que é

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comum, o que implica uma comunidade territorial que vá além do espaço vivido,

pressupondo-o; que vá além do lugar/dos lugares, contendo-os. É isso que diz a

expressão união, tão invocada na conformação de identidades coletivas: o que se

une é o igual e esse igual se constitui na percepção interessada do que é igual e

do que é diferente.

Assim, podemos verificar que construção de uma identidade coletiva é possível

não só devido às condições sociais de vida semelhantes, mas, também, por serem percebidas

como interessantes e, por isso, é uma construção e não uma inevitabilidade histórica ou

natural. Como a identidade é estratégica e posicional na afirmação de identidades coletivas

“há uma luta intensa por afirmar os “modos de percepção legítima” (Bourdieu), da (di)visão

social, da (di)visão do espaço, da (di)visão do tempo, da (di)visão da natureza”.(Gonçalves

1999:70)

Portanto longe de uma perspectiva essencialista e substancialista que concebe a

identidade como uma “coisa” natural, podemos verificar que trata-se de uma construção

exposta ao movimento da história e ao jogo de relações de poder onde a política e

subjetividade estão imbricadas bem como as práticas matérias e representações discursivas

se entrelaçam na afirmação das novas posição-de-sujeito que implicam na construção de

identidades alternativas que deslocam e fraturam as identidades hegemônicas. As identidades

construídas pelos movimentos sociais são forjadas na e pela luta para a afirmação da

diferença subalternizada e como r- existência a formas dominantes de poder econômico,

político e cultural instalados historicamente na Amazônia .

Mas sabemos que o processo de construção das identidades é marcado por

ambivalências e ambigüidades e que muitas vezes se apresentam de maneira contraditória

tendo ao mesmo tempo perspectivas progressistas e conservadoras, além disso não há

dicotomias e dualismos radicais entre os discursos dos dominantes e dos dominados mas

diálogos, tensões, conflitos e retroalimentações, contudo é inegável que esses novos

movimentos sociais hoje na Amazônia sinalizam importantes horizontes de emancipação

social para as populações “tradicionais”

1.7. PRESSUPOSTOS GERAIS PARA PENSARMOS AS IDENTIDADES TERRITORIAIS NA AMAZÔNIA

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Para concluirmos nossas reflexões queremos retomar alguns elementos que

entendemos serem imprescindíveis para a compreensão da emergência das identidades

territoriais das populações “tradicionais”, hoje, na Amazônia:

a) A identidade não é uma essência, nem é naturalmente construída, ela é, sim, uma

construção histórica e social. A identidade é relacional e contrastiva e seu significado social e

cultural é determinado na e pela diferença. As identidades são construídas tanto pelas

diferenças culturais e por sistemas simbólicos de classificação (diferença de natureza) quanto

pela desigualdade e exclusão social (diferenças de grau), ou melhor, pelos dois processos

concomitantemente. Neste sentido, as identidades territoriais das populações “tradicionais” na

Amazônia são historicamente construídas a partir da imbricação dos processos de produção

das desigualdades sociais e exclusão social, bem como da marcação das diferenças culturais,

sendo que o significado de cada identidade só pode ser compreendido num contexto relacional

específico.

b) As construções das identidades são estratégicas e posicionais, pois estão

estreitamente ligadas às relações de poder. O jogo de poder para a definição de uma

determinada identidade está em conexão com as modalidades mais amplas do exercício do

poder na sociedade, e isso implica em compreender as identidades como produtos e

produtoras das lutas e conflitos sociais, políticos e culturais. Desse modo, as identidades

territoriais das populações “tradicionais” na Amazônia são produtos e produtoras das relações

de poder e são construídas e instituídas na e pelas lutas e conflitos dos diferentes sujeitos pela

sua afirmação material (luta por distribuição de bens materiais) e simbólica (luta por

reconhecimento das diferenças culturais).

c) A construção das identidades e seu poder de eficácia e performance vão depender

da posição de cada sujeito na estrutura assimétrica de poder da sociedade (econômico, político

e simbólico). As identidades podem tanto legitimar e reproduzir as relações de poder e as

instituições hegemônicas da sociedade quanto podem contestá-las e propor novos projetos

alternativos. Assim, determinadas identidades territoriais na Amazônia reproduzem e

legitimam a ordem hegemônica do poder econômico, político e simbólico estabelecido e

outras, como as identidades das populações “tradicionais”, r-existem a tal hegemonia,

afirmando a diferença subalternizada e apresentando-se como “identidade de projeto”,

apontando para alternativas de sociedade a partir de diferentes modos de produzir e de modos

de vida, como é o caso dos movimentos dos seringueiros e das mulheres quebradeiras de coco

de babaçu.

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d) Todo processo de territorialização funciona como sistema de classificação

funcional e simbólico, o que implica na definição de fronteiras e na construção de identidades.

Contudo, se em todo processo de territorialização se produz identidades, nem toda identidade

é uma identidade territorial. Isso significa que nem todas as identidades construídas na

Amazônia são territoriais, mas que nas construção das diversas territorialidades das

populações “tradicionais” se produzem identidades territoriais.

e) As identidades territoriais são construídas a partir do jogo das múltiplas escalas de

pertencimento. A consciência socioespacial de pertencimento dependem da experiência

espaço-temporal (espaço de referência identitária) e do contexto específico nos quais as

identidades são construídas. Na Amazônia, as identidades são construídas a partir da

multiplicidade de temporalidades históricas desiguais e diferentes que se (des)encontram na

contemporaneidade. Portanto, as identidades são resultantes do conflito entre as diferenças do

significado social e cultural da experiência espaço-temporal expressa nos diferentes “modos

de viver” dos diferentes sujeitos sociais.

f) As identidades territoriais mobilizadas pelos movimentos sociais das chamadas

populações “tradicionais” na suas lutas sociais na Amazônia são construídas a partir de um

duplo movimento: primeiramente estão pautadas numa politização da cultura ou de “política

cultural”, dando visibibilidade e significância às territorialidades e aos modos de vida

“tradicionais” com suas histórias, memórias e saberes de longa duração (raízes) sedimentada

num conjunto de práticas e de representações que têm densidade e espessura no cotidiano de

um espaço vivido. Em um segundo e simultâneo movimento tais identidades se voltam não

para o passado (tradição), mas para o futuro, para rotas, rumos e projetos pautados em

estratégias políticas e organizacionais articulados em escalas mais amplas e ligados a outras

formas de saber (saber científico) e ao conjunto de discursos, ideologias e representações

pautadas num espaço concebido.

2 CAPITULO: AMAZÔNIA: DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA À FRONTEIRA DAS IDENTIDADES

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A fronteira não é o ponto onde algo termina, mas como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.

(Martin Heidegger)

O conceito de fronteira se tornou comum na literatura acadêmica brasileira que

aborda a Amazônia, sobretudo a partir da década de 70. A formulação de tal conceito aparece

como um esforço de explicação e de interpretação para o intenso processo de transformação

que a região sofreu a partir da década 1960. Esta discussão da Amazônia como fronteira

buscava explicar o intenso processo de “modernização” e de integração da região ao resto do

território nacional, a definitiva incorporação desta à divisão nacional/internacional do trabalho

e o avanço da sociedade nacional sobre as populações indígenas e as populações tradicionais

não indígenas territorializadas na região.

Pesquisadores de diversos campos disciplinares (antropólogos, sociólogos,

geógrafos, entre outros) buscaram captar a especificidade desta realidade a partir de uma

perspectiva teórica que convergia para a idéia (conceito) da Amazônia como fronteira. A

partir desse instrumento analítico é que se buscou explicar a dinâmica econômica, política,

social, territorial e cultural da região. Mas as concepções sobre o que seria a “substância

específica”, que daria particularidade à fronteira como realidade histórica, como uma

formação econômica e social específica, eram diversas e antagônicas. As situações, os atores,

as dimensões e as relações privilegiadas nestas definições são múltiplas.

Esta multiplicidade de interpretações da Amazônia como fronteira, de certo modo,

dilatou a abrangência de tal conceito. Isto além de vulgarizá-lo, fez com que ele perdesse em

alguns momentos seu poder explicativo, a ponto de alguns autores, como Nogueira (2001),

afirmarem categoricamente a sua inadequação para analisar a região. Este autor ressalta que a

ambiguidade dos diversos significados atribuídos a este termo (fronteira) mais obscurecem do

que explicam a realidade amazônica e que por ser um conceito construído de fora da região

ele não permite a leitura do espaço pelos atores sociais internos, o que implica numa visão

etnocêntrica do espaço geográfico que produz um olhar preconceituoso e estigmatizador de

pesquisadores de fora da região sobre a região.

Entendemos que os problemas levantados por este autor são parcialmente

pertinentes. Mas se por um lado a ambiguidade do conceito reflete sua imprecisão, por outro

ela pode representar uma virtude já que a multiplicidade pode apontar para um diálogo

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fecundo de múltiplas possibilidades. O fato de o conceito trazer uma carga etnocêntrica não

significa que devamos descartá-lo. Na verdade, este fato nos coloca uma importante questão

para problematizarmos que é a relação entre espaços geográficos e localizações

epistemológicas (Mignolo, 2003) a fim de enfatizar a relevância do local geo-histórico de

onde se olha e se teoriza sobre determinados conceitos, o que pode induzir a um interessante

exercício de des-locamento do olhar dos de “dentro” e de “fora” de um lado e de “outro” da

fronteira10. Por meio deste exercício pode-se revelar uma tensão entre perspectivas tanto

epistemológicas quanto políticas da produção do conhecimento e assim reforçar que a questão

identitária está no centro do debate sobre Amazônia e, talvez, sobre a produção do

conhecimento a respeito da Amazônia.

Apesar das limitações e do legado negativo do conceito Fronteira, precisamos

enfatizar que muito das formulações que analisaram a Amazônia a partir deste prisma

conceitual nos oferecem importantes elementos para pensarmos as particularidades da região,

tanto no que se refere a sua organização interna quanto a sua situação em relação à escala do

território nacional como destaca Trindade (2002). Este autor aponta que o entendimento da

Amazônia como fronteira indica: Uma preocupação econômica dos processos que modelam o

espaço regional; o impacto do modo de produção capitalista e de suas formas recentes de

reprodução nas organizações espaciais anteriores e a necessidade de explicar o

desenvolvimento desigual e combinado no interior do território nacional.

Além dessas questões citadas, a concepção da Amazônia como fronteira revela as

particularidades e as especificidades de uma formação socioespacial marcada por

incomensuráveis contradições resultantes do (des)encontro de uma multiplicidades de

temporalidades históricas que são, ao mesmo tempo, diferentes e desiguais e que coexistem

na contemporaneidade num intenso diálogo e conflito. Esse processo resulta em diferenças

radicais de sensibilidades políticas e subjetividades culturais materializadas em distintos

projetos históricos dos diferentes grupos sociais que buscam afirmar suas territorialidades e

identidades negando e/ou negociando a diferença.

Por causa disso, preferimos dar o mesmo peso tanto à inadequação quanto à

indispensabilidade do conceito de fronteira para pensarmos a questão das identidades na

Amazônia. Assim, preferimos trabalhá-lo dentro de sua precariedade e de sua incompletude

do que simplesmente descartá-lo.

10 Trata-se de pensar a fronteira não só pelas lentes da modernidade, mas também pelos olhos da colonialidade, pois elas são indissociáveis, contudo a modernidade ocultou a sua face sombria, a colonialidade do saber e do poder que subalternizou saberes, culturas e sujeitos como evidencia Mignolo( 2003); Quijano ( 2005)

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Assim, cabe interrogar tal conceito, rever a sua historia social, analisar o contexto

histórico, político e ideológico no qual ele foi construído e sobre qual referencial

epistemológico ele foi formulado e, desse modo, verificar sua validade, seus limites e seu

alcance para pensarmos a questão das identidades socio-culturais e territoriais na atual

realidade Amazônica.

2. 1 DA METÁFORA AO CONCEITO OU UM CONCEITO-METÁFORA

Fronteira é um conceito extremamente ambíguo porque carrega consigo um grande

potencial metafórico, o que resulta numa enorme ambivalência semântica e numa

multiplicidade de formas de uso nos diversos campos científicos, na arte e no senso comum.

No atual momento histórico o seu uso está em alta, seja por conta de uma nova geografia

política que busca entender o processo de globalização e seus efeitos sobre o padrão de

organização político-territorial dos Estados-nação, seja nos chamados estudos culturais,

presentes tanto na vertente pós-moderna quanto na versão pós-colonial, que tratam de

questões como diásporas, hibridismos, identidades e subjetividades híbridas, “sujeitos

traduzidos”, “entre-lugares” etc.

Nestas discussões a fronteira ora aparece como conceito, ora como metáfora e, às

vezes, como uma espécie de conceito-metáfora. Nestes termos, é usado para definir uma nova

realidade emergente “ontologicamente híbrida” que nega a pureza da realidade e do

conhecimento como nos fala Bruno Latour (2002). Nesta nova realidade, emergem novas

configurações identitárias marcadas pelo hibridismo, o que questiona a idéia da autenticidade

fundacional e de uma pureza cultural das identidades como nos apontam os trabalhos de

Canclini (2000), Babha (2003) e Hall (2003). Na mesma direção destes trabalhos que apontam

para uma especificidade das novas identidades emergentes, Guta e Ferguson (2000) define as

fronteiras como lugares de “contradições incomensuráveis”.

O termo não indica um local topográfico fixo entre outros locais fixos (nações,

sociedades, culturas), mas uma zona intersticial de deslocamento e

desterritorialização, que conforma a identidade do sujeito hibridizado. Em vez de

descartá-la como insignificante, zona marginal, estreita faixa de terra entre lugares

estáveis, queremos sustentar que a noção de fronteira é uma forma de conceituação

mais adequada do sujeito pós-moderno (Guta; Ferguson, 2000:45).

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Mas o uso do termo fronteira não define somente a emergência das novas

identidades híbridas. Ele é também é uma das referências para se pensar as novas epistemes

que questionam a pretensão universalista da “epistemologia monotópica” da cultura ocidental

e que apontam para a idéia de uma nova forma de pensamento, um “pensamento liminar” que

implica em “uma epistemologia fronteiriça” como propõe Mignolo (2003). Esta nova

epistemologia opera no intervalo e na tensão entre as diferentes formas de saberes locais.

Desta forma, constrói-se um diálogo tenso entre os legados coloniais, metropolitanos e os

saberes subalternizados e se redefine a geopolítica do conhecimento a fim de superar a

colonialidade do poder e do saber, fonte da subalternização de saberes, de povos e de

territórios.

A noção de fronteira é também usada como metáfora da emergência de uma nova

subjetividade e sensibilidade política capaz de reconstruir a utopia da emancipação humana

como sugere Boaventura de Souza Santos (2002). Segundo o referido autor, esta nova utopia

apresenta a metáfora da fronteira como a realidade paradigmática emergente. Esta nova

realidade implica em inventar novas formas de sociabilidade que primem pelo uso seletivo

das tradições, por uma fraca hierarquia, pela pluralidade de poderes e ordens jurídicas e pela

fluidez nas relações sociais.

Esta imensa produtividade semântica nos leva a ter uma grande dificuldade para

operarmos com o termo fronteira em termos conceituais, pois tal tarefa exige um grande

esforço de contextualização para se especificar qual o sentido que se está atribuindo a este

termo, pois, como já nos referimos anteriormente, seu uso é transdisciplinar e de grande

fertilidade metafórica. Por causa disto, vamos partir de um recorte arbitrário que prima pelo

debate sobre o conceito de fronteira no perímetro do campo disciplinar da geografia.

No Campo disciplinar da geografia, Zusmam (2000) afirma que o uso do conceito de

fronteira está assentado em duas grandes perspectivas. A primeira está historicamente ligada à

geografia política e à geopolítica. Ela tem como tema referencial a definição das fronteiras

entre estados nacionais e como conseqüência a afirmação dos limites internacionais. É nesta

direção que foram formulados os grandes debates da geografia política clássica e mais

recentemente esta temática vem ganhando um renovado fôlego, sobretudo pelo impacto das

novas dinâmicas territoriais da globalização que implicam em metamorfoses nas chamadas

zonas fronteiriças como é demonstrado nos trabalhos de Machado (1998; 2000).

Uma segunda perspectiva analítica, que tem uma considerável tradição, é o uso do

conceito de fronteira em estudos que estão na interface entre a geografia política, a geopolítica

e a geografia agrária. Nesta perspectiva o conceito expressa a idéia da fronteira em

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movimento, muito caro a noção de frente pioneira, e sinaliza para o processo de avanço,

ocupação, colonização e incorporação de novos territórios à economia capitalista.

Estas perspectivas se diferenciam, mas em muitos casos interagem e se entrecruzam.

São expressões de um mesmo processo. A fronteira interna do território é definida pelo

avanço da economia capitalista e da sociedade nacional sobre novos territórios. Tal

movimento acaba sendo decisivo na (re)definição dos limites internacionais.

Neste trabalho, que tem por objetivo pensar a questão da construção das identidades

territoriais na Amazônia, contextualizando-a como uma região de fronteira, restringiremos

nosso debate em torno da segunda concepção, ou seja, na qual a fronteira é entendida como

movimento de expansão territorial da economia capitalista e também como expansão da

civilização ocidental e da sociedade nacional sobre os territórios de populações indígenas e/ou

populações tradicionais que não tinham como referência o modo de produção e o modo de

vida capitalista, que não estavam definitivamente incorporados e integrados ao território

nacional nem ao Estado-nação.

2.2 TURNER E A FRONTEIRA AMERICANA: A ORIGEM E A CONSAGRAÇÃO DE UM CONCEITO-MITO

O conceito de fronteira com a conotação de fronteira em movimento que implica em

colonizar e incorporar novos territórios à economia capitalista e em um avanço da civilização

ocidental se consagrou a partir das formulações do historiador americano Frederick Turner

cuja obra tem uma profunda importância teórica e ideológica na interpretação da história

americana. O objetivo principal de Turner era explicar a excepcionalidade da história

americana a partir das raízes da formação territorial. Por este viés de interpretação, ele tentou

demonstrar que a constituição da identidade da sociedade e da democracia americana e de

suas instituições tinham seus fundamentos no movimento de expansão da fronteira de

ocupação e colonização do oeste americano.

Ao analisar a obra de Turner, Knauss (2004), salienta que o mesmo torna a fronteira

uma noção instrumental e explicativa aplicada à historia dos Estados Unidos, o que permitiu

“certa leitura da historia americana, que valoriza o papel do pioneiro e a progressão

geográfica em direção ao oeste a partir da ocupação de terras livres” (p.13). Na verdade, a

importância da obra de Turner extrapola o debate historiográfico. Segundo Oliveira (2000), a

fronteira tornou-se um verdadeiro mito (criado entre os séculos XVII até XX) na história e na

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cultura nacional americana. Este mito narra a idéia de chegada à terra prometida, um novo

mundo, e a crença de ser o povo escolhido parece povoar o imaginário norte-americano.

Nesta narrativa da nação, a fronteira é idealizada de forma idílica e a história deste

povo é representada como a história de sucessos do homem branco, anglo-saxão e protestante.

Nesta história é produzida a não-existência de alguns sujeitos subalternizados. “Os excluídos

desta ‘história oficial’, durante muito tempo foram os índios e os negros já que não se

encaixavam em nenhum dos papeis honrosos dessa trama” (Oliveira, 2000:128).

A idéia de fronteira significou o espaço onde o homem ocidental se encontrou, se

defrontou com uma realidade, com um outro que ele não conhecia, não sabia

classificar. Saber se o índio pertencia ao gênero humano ou partilhava das

condições atribuídas aos animais é uma das questões advindas com a chegada de um

novo mundo. Se estes seres têm uma natureza inferior ao europeu podem ser

escravizados; se estão atrasados podem ser convertidos. Por outro lado, podiam ser

vistos como um ramo diferente do homem europeu, com existência contígua á

européia, o que justificaria a política de guerra e de extermínio. (Oliveira,

2000:128).

É no seio deste imaginário que Turner formula a tese de que a fronteira era o espaço

da inovação, onde o meio geográfico molda e inaugura uma nova sociedade com novas

instituições democráticas. Deste modo, para Turner “o avanço da fronteira significou um

movimento contínuo de afastamento da influência européia, um permanente crescimento de

independência com traços americanos”. (Turner, 2004:27)

A historia de nossas instituições políticas, de nossa democracia não é uma historia

de imitação, ou de simples tomadas de empréstimos; é uma historia da evolução e

adaptação de órgãos em reação a um meio ambiente transformado, é a historia da

origem de novas espécies políticas (Turner, 2004:55).

A fronteira é para Turner uma espécie de mito fundador da identidade nacional

americana e de sua democracia como instituição política. Enquanto mito e uma ideologia, a

descrição da fronteira funcionava como uma estrutura discursiva baseada em binarismos e

classificações que buscavam instituir a identidade e autenticidade da sociedade americana,

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afastando-se da influência da “velha e decadente” sociedade e cultura européia. Para

(Oliveira, 2000) a fronteira é um tipo de junção de espaço simbólico, ideológico e material.

Ideologicamente, a fronteira passa a representar o local onde se encontra, onde se

desenvolve o mais típico, o mais primitivo da identidade nacional, já que os seus

habitantes não tiveram ainda contato com outros povos. Nesse sentido, a fronteira e

o oeste possuem um poder mitológico fundamental (Oliveira, 2000:117).

A trajetória da sociedade americana rumo à exploração da fronteira levou ao

distanciamento do homem do oeste em relação à costa, assim como, seu meio produziu um

novo homem americano, um homem livre dos antecedentes e das forças européias. “Ele

olhava as coisas de modo independente e com pouca atenção ou mostrando pouco apreço pela

melhor experiência do velho mundo”. (Turner, 2004:60) Turner idealizou o homem da

fronteira e, através de certo determinismo geográfico, definiu este como produto do meio. O

caráter e as características intelectuais deste homem seriam resultantes da sua experiência de

fronteira. Portanto, para o autor, o intelecto americano devia à fronteira suas características

notáveis.

Essa aspereza e essa força, combinadas com argúcia e a curiosidade; aquela

flexibilidade mental prática e inventiva, ligeira para encontrar expediente; essa

compreensão magistral das coisas materiais, falha no artístico, mas poderosa na

realização de grandes fins; essa energia incansável e agitada; esse individualismo

dominante funciona para o bem e para o mal; e, além disso, esse balizamento e

exuberância que vem com a liberdade - essas são as características que afloram em

qualquer lugar por causa da existência da fronteira (Turner, 2004:53-4).

Nestes termos, o homem da fronteira tinha como o seu ideal “conservar e

desenvolver o que era original e valioso nesse novo país. O ingresso de uma velha sociedade

em terras livres significava para ele a oportunidade para um novo tipo de democracia e novos

ideais populares” (Turner, 2004:60). Nesta ótica a fronteira é o elemento definidor da

originalidade e da excepcionalidade da sociedade americana, o que implica na tese que pode

ser resumida da seguinte forma:

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A América, ao criar um novo tipo de república democrática, estaria livre das

doenças do velho continente. A quantidade e qualidade das “terras livres”

preservam o caráter democrático da estrutura agrária e das instituições. A história

do país seria, assim, a progressiva realização da vontade de Deus e das virtudes

originais: o individualismo, a democracia e o autogoverno. (...) se movendo sempre

para o oeste, os americanos poderiam escapar da decadência e renovar sua virtude.

Eles poderiam se desenvolver no espaço mais do que no tempo. (Oliveira, 2000:129

grifo nosso).

Esta perspectiva de ver a fronteira como elemento definidor da identidade e da

democracia americana é aprofundada quando Tuner caracteriza e define o oeste mais como

uma forma de sociedade do que uma área ou mais como ainda um estagio da sociedade do

que um lugar.

O oeste era uma região migratória, um estágio da sociedade mais do que um lugar.

Cada região atingida pelo processo de expansão, a partir da costa experimentava

sua própria experiência de fronteira, e era, por algum tempo, “O oeste”, e enquanto

a fronteira passava para as novas regiões, deixava para trás nas áreas mais antigas

memórias, tradições e a herança de uma atitude de encarar a vida que persistia

muito depois de a fronteira se haver deslocado outra vez. (Turner, 2004: 94 grifos

nosso).

O oeste, na origem, é uma forma de sociedade, mas do que uma área. É o termo

aplicado a uma região cujas condições sociais resultaram da combinação de

instituições e idéias antigas com a influência transformadora das terras livres. A

partir dessa combinação, um novo ambiente se instalou repentinamente, a liberdade

de oportunidades se abriu, a massa de costumes foi abalada, e novas atividades,

novas linhas de crescimento, novas instituições e novos ideais ganharam existência.

(Turner, 2004:55 grifo nosso).

Esta marcha da sociedade americana sobre novos territórios assume temporalidades

diversas e ritmos distintos de acordo com a trajetória de cada sujeito enfocado e com a

atividade econômica, pois, como nos fala Turner (2004:33) “O ritmo desigual do avanço nos

obriga a distinguir a fronteira em: a fronteira do mercador, a fronteira dos rancheiros, a

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fronteira dos mineiros e a fronteira dos lavradores”. Contudo, ao interpretar esse movimento,

Turner, contraditoriamente, via o avanço da sociedade sob a luz de uma concepção linear e

evolutiva do tempo e da história sintetizada no ideal de progresso, e no avanço da civilização.

Para Turner, a fronteira “começa com o índio e o caçador; (...) continua a desintegração do

estado selvagem com a chegada do mercador, o desbravador da civilização”. Nestes termos

“a fronteira é o pico da crista de uma onda - o ponto de contato entre o mundo selvagem e a

civilização” (Turner, 2004:24).

Uma outra tese importante na obra de Turner é a relação que é estabelecida entre

democracia e fronteira. Ele chega a afirmar categoricamente que “o crescimento do

nacionalismo e a evolução das instituições políticas americanas dependem do avanço da

fronteira” (p 43).

(...) o efeito mais importante da fronteira foi fomentar a democracia aqui e na

Europa. Conforme já ficou indicado a fronteira é geradora de individualismo. Essa

região remota que constitui o wilderness impele a sociedade complexa para um tipo

de organização primitiva baseada na família. A tendência é anti-social. Engendra a

antipatia ao controle e particularmente ao controle direto... O individualismo de

fronteira fomentou desde o começo, a democracia. (Turner, 2004:48 grifo nosso)

Assim a fronteira era o elemento de sustentação da sociedade democrática e de

resolução dos conflitos, das tensões sociais. Era, pois, a existência de “espaços vazios” e

“terras livres” que serviam como “válvula de escape” que garantia a liberdade contra a

opressão e a exploração.

Sempre que as condições sociais tendiam a se cristalizar no leste, sempre que o

capital tendia a pressionar por restrições trabalhistas ou políticas, a fim de impedir

a liberdade das massas, havia essa válvula de escape para as condições livres da

fronteira. Essas terras livres promoveram o individualismo, a igualdade econômica,

a afirmação da liberdade, a democracia. (Turner, 2004, p.84).

A existência de “terras livres” era o elemento essencial na resolução dos conflitos

sociais. Este era o elemento definidor e que diferenciava a democracia americana das outras

que a precederam, pois, “os homens não se dispunham a aceitar salários inferiores nem uma

posição permanente de subordinação social enquanto essa terra prometida de liberdade e

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igualdade estivesse a seu alcance” (p.84). Segundo Tuner (2004), com um pequeno esforço, o

trabalhador americano podia chegar a terra e torna-se livre para construção de sua própria

vida e de sua obra. Em resumo, para tuner, terras livres significam oportunidades livres. “O

oeste era sinônimo de oportunidade. Ali havia minas para serem tomados, férteis vales para

serem logo apropriados todos os recursos naturais abertos para o mais astuto e para o mais

valente” (Turner, 2004:61)

Muitas são as críticas às formulações a Turner. Para Kanuss (2004), na abordagem de

Turner aparece o reconhecimento das tensões sociais, contudo, tal análise carece de uma

problematizarão dos conflitos internos da sociedade já que eles só são enfocados quando se

refere as rivalidades regionais, afirmando a fronteira e as seções como unidades homogêneas

e não contraditórias. Já a crítica Martins (1996) ao pensamento de Turner é mais contundente.

Para ele, a obra do historiador tem sido usada muito mais como ideologia da fronteira do que

como uma teoria da fronteira. Esta ideologia da fronteira, presente nas reflexões de Turner,

consagra o pioneiro como uma figura mitológica, omite a luta e os conflitos pela terra e a

invasão de territórios indígenas; linchamentos de milhares de pessoas que demonstram a

violência com a qual a história da fronteira e da sociedade americana foi marcada.

Martins (1996) afirma que a obra de Turner não é a melhor referência para

pensarmos a complicada conflitividade da fronteira já que ela se nutre de um imaginário que

consagra uma “idílica suposição de que a fronteira é o lugar de concepções e práticas

democráticas de autogestão e liberdade, na medida em que o homem da fronteira estaria

menos sujeito aos constrangimentos da lei e do estado, e mais sujeito à própria iniciativa na

defesa de sua pessoa, de sua família e de seus bens” (p.39).

Mas mesmo com as diversas críticas às teses de Turner, as influências explícitas ou

implícitas delas estão presentes nas discussões sobre fronteira e, não raramente, tais estudos

discussões partem de estudos comparativos que têm como ponto de referencia a fronteira

norte-americana e a obra de Turner.

No Brasil, temos os trabalhos de Velho (1980) e Oliveira (2000) como referências de

estudos que traçam paralelos entre a fronteira norte-americana e a fronteira brasileira,

apontando para as convergências e divergências entre estes processos históricos. Portanto, não

há como negar que as teses de Turner influenciaram e influenciam as formulações mais

recentes sobre a fronteira. Idéias como: a fronteira como espaço da inovação; a fronteira

como uma espécie de sociedade particular; a fronteira como o encontro da civilização com

barbárie e a fronteira como “válvula de escape” das tensões sociais, estão presentes , ainda

hoje, nas formulações do conceito de fronteira.

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2.3 A QUESTÃO DA FRONTEIRA NO BRASIL

O debate sobre a fronteira não teve a mesma importância e significância na América

latina e no Brasil como teve nos Estados Unidos. Para Silva (2000) a idéia de que a

experiência de fronteira foi decisiva na formação destas sociedades não penetrou com a

mesma força entre os historiadores e cientistas sociais latino-americanos tal como no

pensamento social norte-americano. E mesmo quando este debate ganhou certo fôlego, ele

não tinha a mesma perspectiva da visão de Turner. A questão da identidade nacional e da

democracia não era o ponto essencial da discussão.

Aliás, Silva (2000) afirma que o mito da fronteira como elemento fundador da

identidade nacional teve um efeito contrário em países como a Argentina. Este mito assumiu

uma conotação negativa, contrária à visão otimista sobre a fronteira como fonte de liberdade

,democracia, de regeneração social e instauradora da nova sociabilidade, de onde nasce uma

nova sociedade e um novo homem como expressa Turner. A fronteira assumiu na cultura

popular e na literatura acadêmica um imaginário negativo. É como se a utopia tivesse seu

sinal invertido e a fronteira representasse a decadência e a degeneração social, a corrosão do

caráter e da liberdade, a violência e o autoritarismo, ou seja , a fronteira é vista como o lugar

da barbárie.

Especificamente no Brasil este debate esteve presente desde o início do século XX,

mas ganhou maior força e visibilidade na década de 70 a partir de estudos sobre os processos

de transformação da Amazônia como já nos referimos anteriormente. Segundo Martins

(1996), o debate sobre a fronteira no Brasil se construiu assentado nas noções de frente

pioneiras e frente de expansão. A primeira ligada à tradição geográfica, derivada da noção de

zona ou frente pioneira e a segunda mais circunscrita às análises dos antropólogos.

O autor argumenta que há uma diferença básica entre frente ou zona pioneira e

frente de expansão. Frente de expansão é uma concepção de ocupação do espaço que tem

como referência as populações indígenas e que valoriza a dimensão cultural, nestes termos o

avanço da fronteira representava a fronteira da civilização, enquanto o conceito de frente ou

zona pioneira tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno

agricultor moderno e empreendedor, e que valoriza a dimensão econômica, seu avanço indica

a fronteira da economia de mercado.

Assim, enquanto a frente pioneira, que privilegia como sujeito histórico somente a

figura do pioneiro, do migrante comerciante e do agricultor empreendedor, buscando

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compreender a fronteira a partir da urbanização e da modernização do território como

expressão da afirmação da economia de mercado, a frente de expansão “inclui nessa definição

também as populações pobres, rotineiras, não-idígineas ou mestiças, como garimpeiros, os

vaqueiros, os seringueiros, castanheiros, pequenos agricultores que praticam uma agricultura

de roça antiquada e no limite do mercado”. (Martins, 1996:152-3).

A frente pioneira é uma noção cara aos geógrafos estrangeiros que na primeira

metade do século XX procuraram compreender o processo de formação territorial brasileiro,

merecendo destaque a obra do Francês Pierre Monbeig e do Alemão Leo Waibel.

Para Martins (1996), em suas análises da frente pioneira, os geógrafos ignoravam as

populações indígenas e outros sujeitos subalternizados porque davam uma ênfase original em

suas análises à figura do pioneiro e ao “ reconhecimento das mudanças radicais na paisagem

pela construção das ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande

escala, como café e algodão”. (p.153). A paisagem é o elemento fundamental para a

construção do conceito de frentes ou zonas pioneiras porque “nos movimentos pioneiros a

paisagem se transforma em ritmo acelerado, os trabalhos de destruição e construção são

simultâneos e visíveis ao observador” (Machado, 1995:191).

A concepção de frente pioneira compreende implicitamente a idéia de que na

fronteira se cria o novo, uma nova sociabilidade fundada no mercado e na contratualidade das

relações sociais e nos valores da sociedade moderna urbano-industrial.

A frente pioneira é também a situação espacial e social que convida ou induz à

modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. Ela

constitui o ambiente oposto aos das regiões antigas, esvaziadas de populações,

rotineiras, tradicionalistas e mortas. (Martins, 1996: 153 grifos nosso).

Esta perspectiva de compreensão da fronteira valoriza a idéia de um espaço de

inovação em oposição às regiões “antigas”. Tal concepção está muito presente na discussão

sobre a fronteira desde as formulações de Turner e permanece nos estudos geográficos

desenvolvidos no Brasil. Analisando alguns elementos que sintetizam a concepção de frente

pioneira, Machado (1995) enfatiza que uma idéia central presente na história desse conceito é

que a “fronteira agrícola” seria um lugar onde é possível a criação do “novo”. O novo pode

ser entendido como a introdução de novos de conceitos de vida de uma civilização técnico-

mercantil (p.190).

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Portanto, podemos verificar que o modo de analisar a fronteira pelos geógrafos e

antropólogos é divergente ou, no mínimo, diferente, pois se dedicaram a aspectos, dimensões

e sujeitos completamente distintos. Para Martins (1996) o desencontro de olhares entre o

geógrafo e o antropólogo, antes de tudo, é produto de observações feitas em desiguais lugares

sociais. Entretanto, estes lugares sociais correspondem a própria realidade da fronteira. Estas

perspectivas desencontradas são “modos de ver a fronteira, diferentes entre si porque são

diferentes nos dois casos, os lugares sociais a partir dos quais a realidade é observada: o do

chamado pioneiro empreendedor e do antropólogo preocupado com o impacto da expansão

branca sobre as populações indígenas” (Martins, 1996:152).

O desencontro de perspectivas é, nesse caso, essencialmente expressão da

contraditória diversidade da fronteira, mais do que o produto da diversidade de

pontos de vista sobre a fronteira. Diversidade que é, sobretudo, diversidade de

relações sociais marcadas por tempos históricos diversos e, ao mesmo tempo,

contemporâneos. (Martins, 1996:156 grifo do autor ).

Entendemos que a divergência de olhares é fruto dos lugares geohistóricos de onde

se olha a fronteira, de sua diversidade de temporalidades na contemporaneidade, mas para

além disso, tal divergência é também fruto das diferentes tradições disciplinares e campos

científicos, nos quais o olhar é “treinado”, e da base epistêmica e ideológica sobre qual se

analisa a fronteira.

A base epistemológica e política implica em privilegiar ou não determinadas

temporalidades (ritmos), sujeitos sociais e escalas de análises, bem como reconhecer ou não,

naturalizar ou questionar classificações sociais que (des)qualificam culturas, sujeitos, saberes

e territórios. Essas escolhas é que tornam visíveis ou invisíveis, presentes ou ausentes

determinados aspectos da realidade histórica.

2.4 PENSANDO A AMAZÔNIA COMO FRONTEIRA

Nesta direção, para entendermos a Amazônia como fronteira estamos propondo um

diálogo entre as diferentes formas de interpretação. Neste campo temos três matrizes

seminais: Velho (1973, 1979), Martins (1976; 1996) Becker (1981; 1988; 1990; 1996; 2004).

Para objetivo desse trabalho estabelecemos um diálogo mais efetivo com duas dessas

interpretações, uma alinhada à tradição geográfica formulada especialmente a partir do final

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da década de 70 e início dos anos 80 do século XX pela geógrafa Bertha Becker, e outra que

está presente na obra do sociólogo José de Souza Martins (1976; 1996) formulada a partir de

um intenso diálogo entre sociologia e antropologia.

Estas perspectivas, que ora se contradizem, ora se complementam, nos oferecem

importantes elementos para pensarmos a questão das identidades territoriais na Amazônia.

Mas não se pode esquecer que elas apresentam limites seja pela posição política ideológica

dos autores, seja pelo local geohistórico de onde se teorizou ou pelos referenciais empíricos

que nortearam tais teorizações. O que estamos propondo é um diálogo crítico com tais

formulações para entendemos a especificidade da condição de fronteira da Amazônia e no que

isso implica na construção das identidades territoriais.

2.4.1 A Amazônica como Fronteira: “um espaço não plenamente estruturado”.

A partir de uma abordagem geopolítica que privilegia a relação Estado-espaço,

Becker (1990) afirma que só é possível pensar a Amazônia como fronteira se esta for

entendida como parte integrante da sociedade nacional que participa do modelo de

crescimento tecnológico intensivo de capital com intensa mediação do estado. Desse modo,

entender a fronteira passa por compreender o papel do Estado no (des)ordenamento do

território a partir do modelo do desenvolvimento que primou por uma modernização

conservadora implantada na Amazônia, região que era considerada prioridade para estabelecer

o equilíbrio geopolítico interno e externo pelo Estado brasileiro no período militar.

Essa perspectiva de compreensão da fronteira difere do clássico significado desta, o

qual se desenvolveu em torno da idéia da participação de pequenos produtores e das

conseqüências da participação desses produtores e dos grandes empreendimentos capitalistas

no processo de ocupação de novas terras. Para Becker (1990) a fronteira amazônica se

diferenciaria dos casos paradigmáticos como a fronteira norte americana teorizada por Turner

ou mesmo a fronteira do oeste brasileiro, pois a fronteira na Amazônia tem características

muito próprias: a) Já nasce heterogênea, constituída pela superposição de frentes de variadas

atividades, e o povoamento e a produção são relativamente modestos b) já nasce urbana e tem

ritmo acelerado de urbanização; c) O governo federal tem papel fundamental no planejamento

e no volume de investimentos estruturais.

Diante dessas especificidades é que Becker entende a fronteira não como sinônimo

de terras devolutas, cuja apropriação econômica é franqueada a pioneiros. Nem a restringe a

um processo de colonização agrícola. A autora coloca a necessidade de uma nova definição

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de fronteira mais abrangente capaz de captar a especificidade de um “espaço

excepcionalmente dinâmico e contraditório” cuja condição de singularidade é o fato de ser

um espaço não plenamente “estruturado”, marcado pelo conflito e por uma grande

“virtualidade histórica”.

O distintivo da situação de fronteira não é o espaço físico que se dá, mas o espaço

social, político e valorativo que engendra (...) a fronteira constitui um espaço em

incorporação ao espaço global fragmentado (...) contém assim os elementos

essenciais do modo de produção dominante e da formação econômico social em que

se situa, mas é um espaço não plenamente estruturado, dinâmico, onde as relações e

as práticas não assumem o grau de cristalização comum em outras circunstâncias, e,

portanto gerador de realidades novas e dotadas de elevado potencial político. O

dado crucial da fronteira é, pois, a virtualidade histórica que contém: dependendo

da forma de apropriação do espaço, das relações sociais e tipo de interesses dos

agentes sociais ai constituído, ter-se-á a formação de projetos políticos distintos.

Pode ela ser definida como espaço de manobra das forças sociais, e como o espaço

de projeção para o futuro, potencialmente gerador de alternativas (Becker, 1988:

67).

Um elemento importante nesta definição de Becker é o caráter intensamente

dinâmico deste espaço, já que por não ter uma ordem social espaço-temporal plenamente

consolidada, a fronteira acaba sendo produto e palco de conflitos de diferentes projetos

políticos. Ela contém uma grande diversidade e potencialidade de perspectivas históricas que

a diferencia de um espaço estruturado, portanto, sua potencialidade alternativa é circunscrita a

limites impostos pela formação social que se situa.

Nesta concepção a autora ainda aponta outros elementos importantes. Entre eles,

vale destacar o caráter estrutural já que a fronteira não pode ser pensada fora da relação com a

totalidade. Isto implica em que para se compreender a fronteira como um espaço de caráter

estratégico, não se pode buscar o seu significado somente na escala regional, mas sim a partir

dos processos que se realizam em escalas mais amplas do que sua formação econômica e

social. Nesta perspectiva, a expansão da fronteira amazônica só pode, portanto, ser

compreendida a partir da inserção do Brasil, no final do século XX, no sistema capitalista

global articulado aos interesses do capital industrial e financeiro com mediação do Estado.

Nestes termos:

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A fronteira torna-se o espaço estratégico por excelência do Estado que se empenha

em sua rápida estruturação e controle para integrá-la no espaço global, ao mesmo

tempo em que na dimensão ideológica, manipulam a preservação da imagem do

espaço alternativo. Para a nação, a via de desenvolvimento trilhada pela fronteira é

símbolo e fato político de primeira grandeza. (Becker, 1988:68 grifo nosso).

Como espaço estratégico buscou-se modernizar o território por meio de “uma

tecnologia espacial” impondo sobre o território um malha de duplo controle, técnico e político

“a malha programada”, constituídas do conjunto de programas e planos governamentais.

(Becker, 1996: 225). Deste modo, o estado impõe uma nova (des) ordem espacial, uma nova

lógica configurada por novas redes de integração espacial tais como: rede rodoviária, rede de

telecomunicações, rede urbana e rede de energia (hidroelétricas), o que constrói um novo

espaço-tempo, uma nova geopolítica e uma cronopolítica que criam uma disciplina, uma

nova temporalidade que entra em conflito com os resquícios da ordem espacial anterior e

com o espaço vivído na suas múltiplas temporalidades.

Esta nova ordem espaço-temporal criada pelas novas redes espaciais e infra-

estruturais são normatizadas por novos arranjos de poder que modificam a gestão do território

através da superposição de territórios federais sobre os estaduais. E ainda o Estado subsidiou

os fluxos de capital para região e induziu os fluxos migratórios para formar um mercado de

trabalho regional. Esta nova realidade colocou a Amazônia como a fronteira de recursos

naturais a ser violentamente incorporadas pelo grande capital à uma nova divisão nacional e

internacional do trabalho.

Reserva mundial de recursos, a fronteira é justamente o espaço em incorporação ao

espaço global/ fragmentado. Devido ao seu vasto território e á ausência de

organizações regionais capazes de resistir à nova apropriação, a fronteira

amazônica oferece amplas possibilidades á expansão territorial do capital. Tem ela

como especificidade a magnitude da escala e do ritmo de sua transformação

expressa numa organização capitalista inacabada, de caráter indefinido. Formas de

produção e relações sociais híbridas aí se configuram, formas fluidas, sensíveis aos

efeitos conjunturais da mundialização e ás contradições do estado. (Becker, 1990:16

grifo nosso).

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Segundo Becker a especificidade da Amazônia como fronteira de recursos naturais é

o ritmo e a escala de apropriação e de redefinição dos territórios, é o tempo da produtividade,

o tempo do capital que se torna ainda mais intenso na “destruição criativa e na criativa

destruição” devido a ausência de organizações socais capazes de resistir a esta nova

temporalidade hegemônica da “modernização” a fronteira tem “um tempo diferente em

relação ao resto do território nacional um tempo mais acelerado, nele se sucedendo

rapidamente as inovações” (Becker, 1990:8). Contudo, este intenso processo de

transformações territoriais não ocorre de forma homogênea nem linear. Os espaços e sujeitos

sociais vivenciam este processo de forma diferenciada. A fronteira é o lugar onde as formas

de produção e as relações sociais assumem configurações híbridas.

Mas a condição da Amazônia como fronteira e seu conteúdo sócio-espacial e seu

valor estratégico vêm se redefinindo, re-significando historicamente. Becker (1996), em suas

análises mais recentes, afirma que o significado e a especificidade da fronteira têm sido

reconfigurados pela definição de um novo paradigma de desenvolvimento emergente em

substituição ao paradigma que se generalizou com o industrialismo e com a economia de

fronteira.

Segundo a autora, a chamada economia de fronteira foi o modelo que orientou o

processo de ocupação da Amazônia a partir dos anos 60. A idéia de progresso e de

desenvolvimento neste modelo é entendida como crescimento econômico e prosperidade

infinita baseados na exploração de recursos naturais percebidos igualmente como infinitos

(Becker 1966). Este modelo de desenvolvimento tem sido modificado por uma nova realidade

que tem sido esboçada em múltiplas escalas, fruto, sobretudo, da chamada revolução

científico-tecnológica, da crise ambiental e dos novos movimentos sociais que redefinem, a

partir de interesses diferenciados, o valor da natureza enquanto recurso.

A ação conjunta desses elementos resulta na mudança do paradigma de

desenvolvimento baseado na economia de fronteira para um padrão de

desenvolvimento sustentável baseado na eficiência máxima e desperdício mínimo no

uso de recursos naturais na valorização na diversidade e na descentralização

(Becker, 1996: 226).

Nesta nova realidade, se configura uma nova divisão territorial do trabalho e uma

nova geopolítica, o que implica em um novo modo de produzir que valoriza a natureza como

capital de realização atual e /ou futura (Becker, 1996: 226). Diante desse novo quadro a

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Amazônia deixa de ser a fronteira de recursos para o uso imediato para tornar-se uma

fronteira tecno-ecológica ou fronteira sócio-ambiental, cujo desenvolvimento futuro se tornou

uma questão complexa e híbrida que envolve um conflito de valores quanto à natureza.

Para o novo modo de produzir, a natureza se valoriza como capital de realização

futura; para as populações nativas e movimentos ambientalistas ela tem fonte e meio

de vida, enquanto é ainda base essencial de recursos para segmentos produtores e

para a sociedade brasileira em geral (Becker, 1996: 226).

Assim, o que há em tela é um novo cenário no qual temos distintos projetos

econômicos, políticos e sociais que expressam diferentes identidades territoriais e

territorialidades que se tencionam material e simbolicamente, pois, o que está em jogo não é

só diferentes formas de produzir, mas também modos de vida distintos.

Mesmo diante de novas variáveis, deste novo contexto histórico para Becker (2004)

o conceito da Amazônia como fronteira permanece válido, embora seu conteúdo socioespacial

e sua dinâmica geográfica sejam bastante distintos do que eram na década de 80. Existem

diferenças significativas em conseqüência da complexidade do novo momento histórico,

sobretudo pela emergência e fortalecimento de novas motivações e novos atores sociais que

hoje impulsionam a dinâmica territorial na Amazônia.

Não se trata mais dos domínios das instituições governamentais, nem tanto da

expansão territorial da economia e da população nacionais, mas sim de forças que,

embora anteriormente presentes, têm hoje uma forte e diferente atuação nas escalas

global, nacional e regional/local, configurando verdadeiras fronteiras nesses níveis,

pois que geradoras de realidades novas. Dentre estas forças destacam-se as

populações ditas “tradicionais”, os governos estaduais e cooperação internacional.

(Becker, 2004, p.20).

A Amazônia como fronteira, agora socioambiental, ainda é um espaço não

plenamente estruturado com grande virtualidade histórica e um elevado potencial político

marcado por intensos conflitos. Contudo, segundo Becker (2004) o significado da Amazônia

como fronteira muda de acordo com escala. De uma forma dominante, na escala global a

Amazônia é uma fronteira percebida como espaço a ser preservado para a sobrevivência do

planeta. A nível nacional a percepção dominante é ainda de ver a Amazônia como fronteira de

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recursos, isto é, área de expansão do povoamento e da economia nacionais.Na escala regional,

a fronteira é o espaço de projeção do futuro.

Mas, se a Amazônia continua sendo vista como espaço de fronteira a ser explorada a

nível nacional. No entanto, há mudanças significativas na escala local que implicam em uma

nova dinâmica. Antes a fronteira (demográfica e econômica) se expandia em ritmo veloz pela

ausência de organizações regionais capazes de contestar e resistir a estas formas de

apropriação e/ou expropriação dos territórios. Agora este quadro mudou sensivelmente devido

ao intenso crescimento e fortalecimento da Organização da sociedade civil, dos movimentos

socais, da afirmação das territorialidades e das identidades das populações tradicionais, e

ainda pela força e participação dos governos estaduais além da cooperação internacional via,

principalmente, ONGs que criam inúmeras redes e alianças em várias escalas, do local ao

global, o que redefine as formas de luta e de resistência dos sujeitos subalternizados na

região.

Entendemos que este processo analisado por Becker é imprescindível para a

compreensão das identidades territoriais na Amazônia, pois mostra a ruptura com estrutura

espaço-temporal existente na região, um espaço (des)estruturado pela força dos atores

hegemônicos: o estado e grande capital que impuseram uma nova temporalidade, um novo

modo de vida, que negava as identidades e as territorialidade das populações tradicionais.

Contudo hoje ocorre um fortalecimento da organização política dessas populações na luta pela

afirmação de suas identidades e de seus direitos.

A autora mostra que esse novo cenário é produto dos novos processos econômicos,

socioculturais e políticos que se realizam em várias escalas e vêm redefinindo o conteúdo

geohistórico e político da fronteira. Na escala local, o crescente fortalecimento dos

movimentos sociais e da sociedade civil organizada; na escala nacional, o processo de

redefinição do papel do estado brasileiro; na escala global, um novo de modelo de

acumulação e produção capitalista e uma nova geopolítica dos recursos naturais, bem como a

tomada de uma consciência ecológica e política que inaugura uma nova forma de fazer

política por meio das redes dos movimentos sociais que redefinem as formas clássicas de

resistência e solidariedade.

Assim pensar a questão das identidades territoriais na Amazônia pressupõe entender

este processo de transformação histórica a partir das práticas espaciais e das representações

espaciais em suas múltiplas escalas geográficas. Não dá para entender a identidade das

populações tradicionais a partir de visão exclusivamente endógena, somente ancorada na

escala local. É preciso compreender as identidades a partir do jogo relacional de tempos e

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espaços em suas múltiplas escalas, a partir dos múltiplos sujeitos. Para isto Becker nos aponta

alguns elementos importantes, embora questões de ordem cultural sejam negligenciadas em

sua análise, a qual privilegia a dimensão geopolítica e econômica e que tem como referência o

Estado. Becker privilegia na sua teorização os sujeitos hegemônicos em especial a relação

espaço-estado e sua análise parte dos tempos hegemônicos (o tempo da modernização , o

tempo do capital, o tempo da inovação) contudo recentemente aponta para importância dos

sujeitos não-hegemônicos que aparece na perspectiva da emergência de uma sociedade civil

local

2.4.2 A Amazônica como Fronteira: “o lugar da alteridade” e o “território do Outro”

Uma outra perspectiva de compreensão do conceito de fronteira pra se pensar a

Amazônia é aquela que privilegia a dimensão do conflito e da tensão inerente a essa realidade

e a dimensão cultural entendida como cultura política, analisada material e simbolicamente.

Nesta direção é a proposta teórica de Martins (1996) que define a especificidade da fronteira

como sendo o “lugar da alteridade”. Alteridade que se constitui pela diversidade e pelo

conflito de temporalidades históricas que coexistem contemporaneamente. Partindo destes

elementos a fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica: “Ela é a

fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que

nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteiras de etnias,

fronteira da historia e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano”.

(Martins, 1996:13).

Portanto, a fronteira é o ponto limite de territórios que se redefinem continuamente e

que são disputados de diferentes modos por diferentes grupos sociais e étnicos. Ela contém

múltiplas visões de mundo e definições do outro, o que expressa uma rica e difícil diversidade

de concepções do gênero humano (Martins, 1996:16). A fronteira é um lugar de contradições

incomensuráveis e é nela que se pode observar melhor como as sociedades se formam, se

desorganizam ou se reproduzem.

É na fronteira que encontramos o humano no seu limite histórico. É nela que nos

defrontamos mais claramente com as dificuldades antropológicas do que é o fazer

histórias, a história das ações que superam necessidades sociais, transformam as

relações sociais e desse modo fundam e criam a humanidade do homem (Martins,

1996:13).

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Contudo, para Martins (1996) os estudos sociológicos, antropológicos, históricos e

geográficos sobre o problema da fronteira e sua expansão interna em diferentes paises,

especialmente no Brasil, não conseguem captar esta riqueza e tragédia, pois tais concepções

dão ênfase e privilégio epistemológico à ideologia do pioneiro. Este sujeito, com sua

temporalidade, seu ritmo, seu espaço e sua identidade é que norteiam tais estudos, ignorando-

se outros sujeitos, seus tempos-espaços e seus modos de vidas. Segundo o autor, mesmos os

que tentaram formular uma teorização diferente estavam tão impregnados por essa cegueira

epistemológica e ideológica que apenas.

(...) substituíram a figura mítica do pioneiro pela suposição equivalente de que na

fronteira está a ponta da História e sua dimensão modernizadora e transformadora

da sociedade, sua realidade mais dinâmica, trabalham, no fundo, com uma versão

que desloca para o social uma história até então centrada na personalidade do

pioneiro, do suposto herói da conquista das terras novas. Só que agora as

qualidades do demiurgo, de herói criador, se transferem para concepção de

fronteira, feitichizada (Martins, 1996:15).

Esta perspectiva epistemológica e analítica e diríamos política de dar visibilidade a

um só sujeito e a uma só temporalidade produz a não-existência de outros sujeitos e tempos

forjando uma geografia da ausência11 da fronteira, negando o que é essencial: “o

aparentemente novo da fronteira é, na verdade, expressão de complicada combinação de

tempos históricos em processos sociais que recriam formas arcaicas de dominação e formas

arcaicas de reprodução ampliada do capital, inclusive a escravidão, bases da violência que a

caracteriza”. . (Martins, 1996:15 grifo nosso).

Para se compreender essa complexidade da fronteira é necessário um deslocamento

epistemológico e metodológico da figura do pioneiro como sujeito privilegiado para explicar

a realidade de fronteira, pois para Martins a figura central para revelar a realidade social da

fronteira e a sua importância histórica não é o pioneiro e sim a vítima, pois é a partir deste

sujeito e de sua condição que se pode pensar a questão do conflito, da alteridade e da

liminaridade; traços essencias que dão a particularidade à fronteira como realidade histórica.

11 Esta geografia da ausência da fronteira parece claramente nas formas de representação cartográfica por exemplo, os mapas da fronteira Amazônica sistematicamente produzem a não-existência de regiões como o chamado Baixo Tocantins-PA, área estudada por nós, que simplesmente não existe na cartografia da fronteira.

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É na categoria e na condição de vítima que podem ser encontradas duas

características essenciais na constituição do humano, sua fragilidades e

dificuldades, numa sociabilidade que parece nova, aparentemente destituída dos

automatismos da reprodução social, característicos das regiões de ocupações mais

antigas. Refiro-me à alteridade é à particular visibilidade do outro, daquele que

ainda não se confunde conosco nem é reconhecido pelos diferentes grupos sociais

como constitutivo do nós .Refiro-me, também, à liminaridade própria dessa situação,

um modo de viver no limite, na fronteira, e às ambigüidades que dela decorrem

(Martins, 1996:12).

Essa perspectiva epistemológica e metodológica focada na vitima, no conflito e na

alteridade torna presente e visível o que era ausente e invisível12. Revela o lado dramático e

trágico da fronteira. Esta nova forma de olhar destaca o “caráter litúrgico e sacrificial, porque

nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga

e explora” (Martins, 1996:13).

Assim, “olhar” a fronteira a partir das “vitimas” significa revelar o seu lado oculto,

uma outra face (a colonialidade), seu lado mítico que esconde a violência e a irracionalidade

da modernidade/colonial onde o ego cogito oculta o ego conquiro (eu conquisto), isso está

expresso nas concepções da fronteira vista pela visão do “pioneiro moderno”. Esse lado

mítico da modernidade/colonial está presente nestas teorias e ideologias da fronteira. Na

verdade, esse lado mítico sintetiza o próprio projeto “civilizatório” que fundamenta o projeto

de modernização colonial do qual a fronteira é expressão. Esse mito pode ser descrito segundo

Dussel (2005:64-65) da seguinte forma:

1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que

significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica).

2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como

exigência moral.

3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido

pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina,

novamente de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”).

12 Temos que pensar na superação da epistemologia da ausência, como nos fala Boaventura de Souza Santos (2002; 2004), fazendo uma geografia das ausências tornar-se uma geografia das presenças, uma concepção alargada da realidade que inclua as realidades suprimidas, silenciadas e marginalizadas visando tornar visível o que é invisível, em voz o que foi silenciado e em presenças as ausências.

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4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer

em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa

modernização (a guerra justa colonial).

5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é

interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o

herói civilizador reveste as suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos

de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a

destruição ecológica, etcetera).

6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo

civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente,

mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas.

7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se

como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos

outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo

por ser frágil.

Nessa visão, a fronteira é vista pelas lentes da modernidade, a “outra-face” negada e

vitimada da “modernidade” é invisibilizada. Segundo Dussel (2005) para superação da visão

da “modernidade” a “vitima” deve primeiramente descobrir-se “inocente”: é a “vítima

inocente” do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a “modernidade” como

culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial.

Ao negar a inocência da “modernidade” e ao afirmar a alteridade do “Outro”,

negado antes como vítima culpada, permite “des-cobrir” pela primeira vez a

“outra-face” oculta e essencial à “modernidade”: o mundo periférico colonial, o

índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura

popular alienadas, etc. (as “vítimas” da “Modernidade”) como vítimas de um ato

irracional (como contradição do ideal racional da própria “Modernidade”)

(Dussel, 2005:65).

Apenas quando se nega o mito civilizatório e a inocência da violência moderna se

reconhece à injustiça da práxis sacrificial desse projeto violento e desenvolvimentista,

materializado no avanço da fronteira.

Olhando a partir desse enfoque epistêmico e político é possível perceber a existência

de dois lados da fronteira: o “lado civilizado” e o lado “selvagem”; o lado vencedor e o lado

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vencido (Martins 1996). As histórias dos que venceram (modernidade) é razoavelmente

conhecida por meio de um conhecimento, muitas vezes, severamente mutilado por

pressupostos ideológicos facilmente identificáveis: os do senso comum, relativos à “mitologia

heróica” do chamado pioneiro; os dos etnocentrismos dos brancos ao qual não são imunes

(especialmente) sociólogos com os conhecimentos pseudocientíficos, relativos à suposta

fecundidade histórica do capitalismo transitório (Martins, 1996).

Contudo, o lado dos vencidos, dos sujeitos subjugados e subalternizados é ignorado,

é a face oculta e sombria da modernidade (colonialidade). A História das populações

indígenas, acrescentaríamos as populações ribeirinhas, pequenos agricultores, castanheiros,

seringueiros, posseiros e migrantes pobres são praticamente desconhecidos pelos cientistas,

em particular, pelos sociólogos, historiadores e geógrafos. “Se entendermos que a fronteira

tem dois lados e não um lado só, o suposto lado da civilização; se entendermos que ela tem o

lado de cá e o lado de lá, fica mais fácil e mais abrangente estudar a fronteira como concepção

de fronteira do humano” (Martins, 1996: 162-3).

Neste trabalho estamos dispostos a olhar a Amazônia como fronteira, mas a partir do

lado das “vítimas” dos sujeitos subalternizados, contudo não estamos nos focando nas

populações indígenas, nas crianças e, especificamente, nas mulheres e nem nos espaços mais

críticos e dramáticos como Martins (1996), mas sim nas populações que tradicionalmente

viveram na região Amazônica e que sofreram intensamente com a expansão tanto da frente de

expansão quanto da frente pioneira. Refiro-me especialmente às populações “caboclas”:

ribeirinhas, os pequenos agricultores, os seringueiros e castanheiros que, embora muitas vezes

não estivessem nos espaços mais sensíveis e destrutivos da fronteira, não ficaram isentos a

esta dinâmica redefinindo suas vidas e suas identidades a partir do seu movimento.

Nem todos os lugares e sujeitos vivenciaram a fronteira de um mesmo modo, com

uma mesma temporalidade, num mesmo ritmo e intensidade. Pois a fronteira na Amazônia se

constitui estruturalmente pelo desenvolvimento desigual e combinado da expansão territorial

dos atores hegemônicos da economia de mercado que imprimiram uma nova temporalidade e

espacialidade, a partir o ritmo da modernização e do tempo do capital. Contudo, isso não

significa um processo de homogeneização e transformação total das relações sociais

anteriores, mas sim uma “diversidade histórica nas determinações do processo do capital, uma

certa combinação de ritmos e tempos históricos desencontrados na definição da realidade

social desse processo. (Martins, 1996: 162-3).

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Isso quer dizer ela se caracteriza, também, por uma grande diversidade de relações

sociais e por certa variedade de culturas dos grupos locais e regionais. A expansão

do capital e da sociabilidade de que ele é agente não implica necessariamente a

supressão súbita das diferenças que tornam peculiares os diferentes grupos

envolvidos na situação de fronteira (Martins, 1996: 162-3).

Para Martins a dinâmica deste processo de desenvolvimento desigual e simultâneo é

mal conhecida e desfigurada por juízos de valor comprometidos com os pressupostos do

“progresso, da razão, da liberdade e do desenvolvimento inexorável”. Essa visão linear e

evolucionista ignora que a experiência espaço-temporal da fronteira é caracterizada por uma

situação social complexa que envolve uma multiplicidade de combinações, encontros e

desencontros de temporalidades e direções históricas “próprios de uma coletânea diversidade

de tempos históricos cuja peculiaridade está em que é vivida pelas mesmas pessoas. As

mesmas pessoas têm os diferentes momentos de sua vida atravessados, ás vezes num único

dia, por diferentes temporalidades da história” (Martins, 1996:32).

Apontando para a essa diversidade, multiplicidade de temporalidades históricas na

contemporaneidade Martins define:

A fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que o faz dela uma realidade

singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes

entre si, como o índio de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários

de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a

fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de

desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de

vida e visões de mundo de cada um esses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o

desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado

diversamente no tempo da história (Martins, 1996:150-1 grifos do autor).

Nesta situação de fronteira a questão da alteridade, o jogo relacional entre

identidades e diferenças é central nas definições culturais e políticas dos diferentes grupos

sociais e étnicos que a fronteira põe em confronto. Trata-se, pois, de uma situação singular na

qual se revelam expressões do encontro no desencontro das temporalidades históricas.

Temporalidades que aparentemente se combinam, mas que de fato também se desencontram

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na prática dos que foram lançados pelas circunstancias da vida numa situação social de

conflito, essa dinâmica é que caracteriza a existência da fronteira.

A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se

fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando

o outro se torna a parte antagônica do nós. Quando a História passa a ser a nossa

História, a História da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós

mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos e nos

devorou (Martins, 1996:151, grifo do autor).

Nesta perspectiva na fronteira os conflitos que se travam por questões materiais e

simbólicas, pelas desigualdades e pelas diferenças são (des)encontros e confrontos que

representam, na verdade, conflitos por distintas concepções de destino. “(...) conflitos por

distintos projetos históricos ou, ao menos, por distintas versões e possibilidades do projeto

histórico que possa existir na mediação da referida situação de fronteira”. (Martins, 1996:

182, grifo nosso).

Na perspectiva teórica de Martins (1996) a situação de fronteira é uma realidade de

grande riqueza de possibilidades históricas muito maiores do que outras situações sociais. Isto

se deve em grande parte porque, como já afirmamos anteriormente, mais do que o confronto

entre grupos sociais com interesses conflitivos (luta de classes, étnicas), na fronteira está

agregado a esses conflitos também o conflito entre historicidades desencontradas. O

“encontro de relações sociais, de mentalidades e de orientações historicamente

descompassadas, até propriamente no limite da história”. (p.182).

Cada uma dessas realidades tem seu tempo histórico se for considerar que a

referência à inserção ou não na fronteira econômica indica também diferentes níveis

de desenvolvimento econômico associados a níveis e a modalidades de

desenvolvimento do modo de vida. Por causa disto, surgem datas históricas distintas

e desencontradas no desenvolvimento da sociedade, ainda que contemporâneas. E

não me refiro apenas à inserção em diferentes etapas coexistentes do

desenvolvimento econômico. Refiro-me, sobretudo às mentalidades, aos vários

arcaísmos de pensamento e conduta que igualmente coexistem com o que é atual. E

não estou falando de atraso social e econômico. Estou falando da

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contemporaneidade da diversidade. Estou falando das diferenças que definem seja

a individualidade das pessoas seja a identidades dos grupos (Martins, 1996:158-9.

grifo nosso).

Esta concepção destaca a situação de cada grupo social na fronteira a partir de uma

espacialidade e temporalidade própria e permite estudar a “diversidade histórica não só como

diversidade estrutural de categorias sociais, mas também como diversidade social relativa aos

diferentes modos e tempos de sua participação na história” (Martins, 1996:160).

Mas no processo de avanço da fronteira, as temporalidades hegemônicas ou mais

avançadas das relações mais desenvolvidas e poderosas são as referências indutoras na

definição do sentido das relações mais “atrasadas” e frágeis, ou melhor, das relações

diferentes, com outras datas e outros tempos históricos. Contudo a mediação das relações

mais desenvolvidas faz com que o atraso apareça, na verdade, como diferença.

As relações mais avançadas, mais caracteristicamente capitalistas, por exemplo, não

corroem nem destroem necessariamente as relações que carregam consigo a

legitimidade de outras épocas. Portanto, nesses casos, a diferença não tem sentido

como passado, mas como contradição e nela como um dos componentes do possível,

o possível histórico de uma sociedade diversificada, que ganha sua unidade na

coexistência das diferenças sociais e étnicas. (Martins, 1996: 182 grifos nosso).

2.5 DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA A FRONTEIRA DAS IDENTIDADES

Esta perspectiva de conceber a fronteira a partir da multiplicidade de temporalidades

na contemporaneidade como “lugar alteridade” rompe com as concepções predominantes de

pensar Amazônia que estão assentadas na monocultura do tempo linear (Santos, 2004). Essas

concepções compreendem a história como tendo direção e sentido únicos. Nelas o tempo é

pensado somente numa perspectiva diacrônica na qual a história é compreendida a partir de

estágios e etapas sucessivas. Essa maneira de pensar o tempo têm com referência uma

ideologia do progresso expressas pelas idéias de: desenvolvimento, crescimento,

modernização, globalização, entre outras que compõe a cosmovisão da modernidade/colonial

ocidental.

Essas concepções de entender a Amazônia a partir na monocultura do tempo linear,

partem de um espaço-tempo que segundo Santos (2004:787) produz a não-contemporaneidade

do contemporâneo, criando uma hierarquia e uma superioridade de quem estabelece a

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contemporaneidade, e desse modo, declarando atrasado tudo o que, segundo norma temporal,

é assimétrico em relação ao que é declarado avançado. Esse processo é expresso na forma de

residualizaçao, o resíduo, o anacrônico que se personifica nas idéias de: primitivo, tradicional,

o pré-moderno, o simples, o obsoleto, o subdesenvolvido.

Essa monocultura do tempo linear acaba por se constituir numa lógica da

classificação social, que assenta na naturalização das diferenças, afirmando uma visão

etnocêntrica que estabelece distinções entre povos, saberes e territórios através de categorias

como cultura, sexo e raça, que classificam e (des)qualificam como avançados/atrasados

civilizados/ bárbaros os diferentes povos e suas experiências histórias locais, hierarquizando

as diferenças que acabam transformando-se em desigualdades. Isso fica claro na Amazônia

onde as “populações tradicionais” são estigmatizadas pelo estereotipo do “caboclo”

“atrasado”, “lento”, “indolente” e “improdutivo”.

A concepção de fronteira de Martins (1996) nos aponta interessantes elementos para

entendermos a Amazônia para além da monocultura do tempo linear e das classificações

sociais etnocêntricas, contudo dimensão espacial essa muito implícita na obra do referido

autor, na sua proposta de reconhecimento da coexistência e da multiplicidade de

temporalidades históricas precisamos acrescentar um reconhecimento mais explícito da

dimensão espacial, pois:

A verdadeira possibilidade de qualquer reconhecimento sério da multiplicidade e da

diferença depende ele próprio de um reconhecimento da espacialidade. Com muita

freqüência este reconhecimento está implícito (algumas vezes de forma inofensiva,

em outras com efeitos seriamente prejudiciais); outras vezes, particularmente

quando a própria espacialidade é uma das dimensões da construção da diferença,

ele será - na realidade, deve ser explícito (Massey, 2004, p.10).

A autora afirma que a multiplicidade de temporalidades só possível no espaço, para

existir coexistência tem que existir espaço, assim o reconhecimento explícito da espacialidade

permite pensarmos na existência de múltiplas vozes, múltiplas temporalidades, múltiplas

histórias na contemporaneidade, descentrando uma perspectiva etnocêntrica de entendimento

da fronteira que classifica lugares, regiões e populações como “avançadas” “atrasadas”. Tais

classificações, na verdade, analisam as diferenças espaciais em termos temporais. Diferenças

geográficas em termos de seqüência histórica (Massey, 2004):

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Essa concepção de espaço em termos temporais é um modo de conceber a diferença

que é típico de muitas das grandes leituras modernistas do mundo. As estórias de

progresso (da tradição à modernidade), de desenvolvimento, de modernização, a

fábula marxista da evolução através do modo de produção (feudal, capitalista,

socialista, comunista) muitas de nossa histórias de globalização (...) todas elas

compartilham de uma imaginação geográfica que re-arranja as diferenças espaciais

em termos de seqüência temporal.A implicação disso é que lugares não são

genuinamente diferentes; na realidade, eles estão simplesmente estão à frente ou

atrás numa mesma história: suas “diferenças” consistem apenas no lugar que eles

ocupam na fila da história. (Massey, 2004, p.15)

Um verdadeiro reconhecimento “político” da diferença deve entendê-la como algo

mais do que um lugar numa seqüência; de que um reconhecimento mais completo da

diferença deveria reconhecer que os “outros” realmente existentes podem não estar apenas no

seguindo, mas ter suas próprias histórias para nos contar. Neste sentido seria concedido ao

outro, ao diferente, pelo menos um determinado grau de autonomia. Seria concedida pelo

menos a possibilidade de trajetórias relativamente autônomas. Em outras as palavras, isto

levaria em consideração a possibilidade da co-existência de uma multiplicidade de histórias.

(Massey, 2004, p.15).

A contextualização da Amazônia como fronteira é aqui é o caminho escolhido para

pensar a relação espaço/tempo diferença/identidade. Entender a radical diferença de

experiências espaços-temporais na constituição de incomensuráveis sensibilidades e

subjetividade históricas e políticas dos diferentes sujeitos é fundamental para entendermos as

identidades territoriais emergentes hoje na região

3. CAPITULO: OS MÚLTIPLOS TEMPO-ESPAÇOS DA FRONTEIRA: DIVERSIDADE TERRITORIAL, MODO DE VIDA E LUTAS SOCIAIS NO BAIXO TOCANTINS.

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Toca Tocantins Tuas águas para o mar Os meios não são os fins Por que vão te matar? Por que te transformar Em águas assassinas E nelas afogar a vida? Toca Tocantins Tuas águas para o mar É lá o teu destino Aqui não é teu lugar Que viva o açaizeiro Arara e Taumatá Não matem o mato inteiro Não morra o rio Guamá Toca Tocantins tuas águas para o mar ....... (Toca Tocantins, música de Nilson Chaves eJamil Damous)

Partindo de Belém rumo ao rio Tocantins, encontraremos no percurso centenas de

ilhas que formam labirintos de floresta e água, bem como dezenas de povoados e vilas que

brotam ao longo das margens do rio. No horizonte geográfico da paisagem ainda podemos ver

cidades tipicamente ribeirinhas, com a sua igrejinha e a praça da matriz quase que mergulhada

nas águas, com muitos portos, pontes e trapiches, barcos partindo e chegando num vai e vem

erótico de remos, quilhas, proas, rumos e vidas que deslizam e se ligam pelo rio.

Num olhar apressado de quem passa por essa paisagem, a vida das populações que

ali vivem parecem estar paradas na moldura do tempo, as pequenas palafitas de “poucas

paredes”, o colorido das pequenas canoas que teimam em lutar contra a força e gigantismo

das águas, tudo expressa um ritmo lento e cíclico, onde a pressa parece não existir e o tempo

do relógio parece concorrer com o tempo da natureza, pois a maré é o relógio que regula os

horários e é no movimento das águas que pulsa a vida (figuras 1 e 2)

O tempo pode ser aquele da espera ou da procura: a espera da enchente ou da

vazante, do inverno ou do verão ou o tempo da procura dos cardumes de peixes, a hora de

revistar as malhadeiras, os matapis, na busca do alimento, como bem sugere o poeta João de

Jesus de Paes Loureiro (2001): “A linha da maré enforca a vida/ O homem pesca a lida / e

seus milagres/Aqui fundou-se o tempo./Aqui fundou-se a idade” .

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Foto 1: Localidade de Itaiúna, Município de Cametá (Autor: Osias Cruz, nov./2005)

Foto 2: Localidade Guajará no município de Cametá (Autor: Osias Cruz, nov. 2005)

Em contraste com essa paisagem e dinâmica ribeirinha encontraremos ao longo do

rio “grandes objetos geográficos”, como diria Milton Santos. Ao lado de pequenas

comunidades ribeirinhas encontramos fumaça, luzes, máquinas, pressa,_ é o complexo da

ALBRÁS/ALUNORTE de produção de alumínio. À noite, as luzes diante da opacidade da

paisagem fazem com que a metáfora utilizada por Milton Santos para expressar a densidade

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técnica dos lugares ganhe força, concretude e contundência, pois estamos diante de uma “zona

luminosa”: imensos navios, instalações gigantes, a força da técnica se expressa num sistema

de objetos e “ações alienígenas”, não identificados, ou pelos menos sem identificação para as

populações que tradicionalmente ali vivem. (Ver fotos 3 e 4)

Foto 3: Complexo da Albrás no Município Barcarena.(Fonte:site www.albras.com.br)

Ainda nesse percurso pelo rio Tocantins encontraremos a segunda maior hidrelétrica

do Brasil, a usina de Tucuruí, uma obra de engenharia monumental, plantada no meio do rio

barrando as águas e a dinâmica da região – seu tamanho extraordinário é proporcional ao seu

impacto ecológico e social.

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Foto 4: A Hidrelétrica de Tucuruí (Fonte: site www.tucuruioline.com.br)

Essa realidade híbrida marcada pelo (des)encontro de temporalidades históricas, em

que o novo e o velho, o lento e o rápido, o moderno e o tradicional contraditoriamente e de

maneira ambivalente se combinam, revelando uma diversidade de temporalidades na

contemporaneidade que atravessam a vida cotidiana dos diferentes sujeitos, é resultante do

processo de transformação que incidiu a partir do final dos anos 1970 na região do Baixo

Tocantins, onde vetores de modernização e a expansão da fronteira transformaram e

reestruturaram profundamente a estrutura espaço-temporal e socioespacial da região. Esse

(des)encontro de historicidades torna visível e contundente a questão da alteridade e do jogo

pela afirmação das diferentes identidades territoriais.

É nesse processo que a fronteira se impõe como um espaço produzido

estruturalmente pelo desenvolvimento desigual e combinado do processo de expansão

territorial da economia de mercado e dos atores hegemônicos da economia, da política e da

cultura que imprimem uma nova temporalidade e espacialidade na Amazônia. Desse modo,

impõe-se um novo ritmo, o ritmo da produtividade, o tempo da modernização que incide de

forma desigual e diferenciada em densidade e em intensidade nos diferentes lugares. Contudo,

esse processo hegemônico não suprime outras temporalidades e espacialidades, aquelas dos

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sujeitos não-hegemônicos ou subalternizados onde as diferenças culturais, dos modos de vida

e dos ritmos vividos cotidianamente se destacam de forma singular em cada lugar.

Isso parece claro quando analisamos o processo de transformação que incidiu na

região do chamado Baixo Tocantins, no Estado do Pará (referência empírica de nossa

pesquisa), onde os vetores de modernização transformaram, reestruturaram profundamente a

estrutura espaço-temporal e socioespacial da região, sendo que isso se deu de forma

diferenciada e seletiva, pois a expansão da economia de mercado e da modernização foi

concentrada em alguns “pólos”, lugares onde ocorreu a implantação de grandes projetos,

como é o caso de Tucuruí, onde foi construída a grande usina hidrelétrica, e de Barcarena,

onde foi implantado o grande complexo de produção de alumínio.

Nesses espaços as conseqüências do processo de modernização e do avanço da

fronteira são mais sensíveis, pois a “destruição criativa e a criativa destruição” são mais

radicais. Esses espaços são o front do capital na Amazônia, os efeitos e os impactos desse

processo na forma de organização do espaço-tempo e das identidades das populações que

tradicionalmente estiveram territorializadas nesses lugares foram dramáticos e profundos.

Contudo, outros lugares da região do Baixo Tocantins, como Mocajuba, Igarepé-

Miri, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajuru e Cametá não sofreram a inserção imediata nos

processos de modernização, permanecendo num outro ritmo, com outras temporalidades, pois

“um lugar pode, a um dado momento, ou por uma mais ou menos longa extensão de tempo,

ficar a salvo da influência, em quantidade e qualidade diversas, de variáveis correspondentes a

uma nova fase histórica” (Santos, 2004:258). Mas isso não significa que estão isentos dos

efeitos da expansão da modernização, nem as identidades territoriais construídas nesses

lugares podem ser entendidas sem levar em conta o desenvolvimento desigual e combinado na

região.

Esses lugares possuem uma dinâmica própria que não é um mero reflexo dos

processos modernizadores de expansão da fronteira, pois essa dinâmica do capital e do Estado

não esgota a fronteira, e não explica por si só a construção das identidades territoriais, é

também preciso olhar a fronteira a partir de outros tempos e espaços, talvez tempos mais

“lentos”, o tempo do modo de vida dos sujeitos subalternizados, em suas histórias locais com

saberes locais, que mesmo estando territorializados em espaços mais latentes da fronteira,

como é o caso de Cametá, que não está inserida diretamente no front da modernização,

mesmo assim não está isenta de sua dinâmica, do seu avanço, tanto no que se refere à vida

material, quanto a elementos culturais mais subjetivos que redefiniram e redefinem a própria

identidade do lugar e diferentes grupos sociais envolvidos nesse processo histórico.

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Nesse sentido, analisar a diversidade territorial da Amazônia implica em reconhecer

que as diferenciações dos lugares hoje na região se dão tanto a partir de sua inserção desigual

em movimentos mais globalizados, ligados a uma nova lógica de divisão territorial do

trabalho mais extrovertida, frutos da chamada “modernização” dos grandes projetos

implantados a partir da década de 60 (diferenças de grau), quanto a partir da re-criação de

singularidades culturais próprias de cada lugar (diferenças de natureza). A diversidade

territorial é, pois, resultado da imbricação entre duas grandes tendências ou lógicas sócio-

espaciais, uma decorrente mais dos processos de diferenciação/singularização, outra dos

processos de des-igualização, padronizadores (Haesbaert, 1999b ).

Assim, precisamos compreender a diversidade territorial do Baixo Tocantins como

sendo ao mesmo tempo uma construção “sistêmica” das desigualdades, principalmente aquela

promovida pela (des)ordem econômica, bem como a produção diferenciadora das

singularidades, da vivência do espaço e da nossa identificação com ele. (Haesbaert,1999b).

Desse modo escaparemos do binarismo que se afirma a partir de dualidades entre o

particular/geral, singular/universal, desigualdade/diferença, pois como afirmar Haesbaert

(1999:23) em nossas análises geográficas existe a

(...) possibilidade - e necessidade - de se trabalhar sempre, em qualquer análise

geográfica, tanto com elementos singulares/especifícos, e universais, quanto com

elementos particulares (parte de um todo) e gerais. Isto sem dicotomizá-los, já que

não há nenhum limite claro entre eles - muitos fenômenos são produzidos

concomitantemente como singulares/universais e como particulares/gerais.

Nessa ótica, queremos entender a diversidade territorial/temporal/cultural do baixo

Tocantins como proposto por Haesbaert (1999) que, inspirado em Bérgson, define como uma

imbricação entre a des-igualdade (diferenças de grau) e diferença estricto senso (diferenças de

natureza). É nesse entrelaçamento entre o desigual e o diferente entre o particular e o singular

que podemos captar as diversas experiências do tempo-espaço da fronteira. É, pois, pelo

(des)encontro de temporalidades e espacialidades distintas (des-iguais e diferentes) que se

cria uma multiplicidade contraditória de formas híbridas de produzir, circular, pensar,

representar e se identificar com o território. Essa é a especificidade da fronteira e tem sua

expressão num intenso jogo/conflito identitário, para definir ações, percepções e concepções

dos diversos grupos sociais.

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É nesse processo que se impõe a necessidade de compreendermos a reestruturação

das relações espaço-tempo da região do chamado Baixo Tocantins, que resultou na

constituição dessa multiplicidade de temporalidades e territorialidades, bem como os impactos

desse processo na organização dos modos de vida das populações rural-ribeirinha no

município de Cametá, sendo este o objetivo deste capítulo.

3.1 FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL DO BAIXO TOCANTINS

A Amazônia como formação sócio-espacial13 se constitui como uma região de

fronteira marcada pelo acúmulo de temporalidades, desiguais e combinadas, uma verdadeira

diversidade de temporalidades na contemporaneidade14. Na região podemos identificar, de

maneira genérica dois grandes padrões de organização do espaço-tempo. O primeiro, que

predomina até a década de 1960, denominado rio-várzea -floresta; o segundo, o padrão

estrada -terra-firme-subsolo que vai se constituir a partir do processo de “integração e

modernização” da região depois da década de 70 (Gonçalves, 2001).

O primeiro padrão rio-várzea-floresta foi se constituindo desde a gênese do processo

de formação territorial da Amazônia, que se deu no contexto de expansão da colonização

portuguesa. A constituição dos territórios coloniais e a colonização foram, sobretudo, uma

afirmação militar, uma imposição bélica; neste sentido, o processo de colonização na

Amazônia implicou na consolidação do domínio territorial, na apropriação de terras, na

submissão das populações defrontadas e também na exploração dos recursos presentes no

território colonial. 15

O fato de ter sido um território colonial deixou muitas marcas na formação e na

organização do espaço da Amazônia. Esse modelo de organização territorial se realizou,

segundo Becker (), pautado num padrão econômico voltado para a exportação que, desde o

13 “A noção de FES é indissociável do concreto representado por uma sociedade historicamente determinada. Defini-la é produzir uma definição sintética da natureza exata da diversidade e da natureza específica das relações econômicas e sociais que caracterizam uma sociedade numa época determinada” (M.Godelier, apud Santos, 2005:27) 14 Essa noção já carrega consigo, na descoberta de Lefebvre, o intuito de datação das relações sociais, a indicação de que as relações sociais não são uniformes nem têm a mesma idade. Na realidade coexistem relações sociais que têm datas diferentes e que estão, portanto, numa relação de descompasso e desencontro. Nem todas as relações sociais têm a mesma origem. Todas sobrevivem de diferentes momentos e circunstâncias históricas mas se encontram na contemporaneidade. (Martins, 1996: 15) 15 Moraes (2002) sintetiza a lógica territorial do processo de colonização como a conquista de terras.

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início da colonização até hoje, é a motivação dominante na ocupação regional. Esse modelo

de ocupação se forjou dentro do paradigma sociedade-natureza denominado economia de

fronteira, em que o progresso é entendido como crescimento econômico e prosperidade

infinitos, baseados na exploração de recursos naturais percebidos como igualmente infinitos

(Becker, 1996).

Devido a essa dependência de uma lógica econômica externa, a ocupação da

Amazônia se fez em surtos devassadores ligados à valorização momentânea de produtos no

mercado internacional, seguidos de longos períodos de estagnação. A esse padrão associam-se

duas características básicas da ocupação regional.

Primeira, a ocupação se fez invariavelmente e ainda hoje se faz a partir de

iniciativas externas. Segunda, a importância da Geopolítica, que explica o controle

de tão extenso território com tão poucos recursos. A Geopolítica esteve sempre

associada a interesses econômicos, mas estes foram via de regra mal sucedidos na

sua implementação, não conseguindo estabelecer uma base econômica e

populacional estável, capaz de assegurar a soberania sobre a área. O controle do

território foi mantido por estratégias de intervenção em locais estratégicos, de posse

gradativa da terra (uti possidetis) e da criação de unidades administrativas

diretamente vinculadas ao governo central. (Becker, 2004:151)

Essa lógica de organização econômica e geopolítica implicou em um modelo de

organização espacial muito particular que, segundo Becker (2004), está pautado no padrão das

relações externas, exógeno, e cujo o modelo básico utilizado é o das redes de articulação

externa, constituídas por vias de circulação e seus nós, núcleos que asseguram a produção e

sua concentração para exportação. Já o padrão endógeno é necessariamente baseado em áreas

relativamente extensas e isoladas, dependentes que são de populações que vivem de produtos

naturais locais.

Essas características de colonização estão presentes na formação territorial da

Amazônia e se materializam no Baixo Tocantins, onde o modelo de ocupação do território

sempre esteve dependente do mercado externo, foi marcado por surtos de valorização

econômica no mercado internacional de produtos como as drogas do sertão, o cacau, a

borracha, a castanha e, mais recentemente, a pimenta-do-reino. Uma outra característica

resultante do passado colonial é a o padrão de ocupação que obedece à lógica geopolítica,

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pois a configuração do território foi moldada por estratégias geopolíticas de domínio e

controle militar.

É dentro dessa lógica que se inicia o processo de povoamento do rio Tocantins nos

séculos XVII e XVIII, efetuado pelos portugueses sob uma lógica geopolítica de defesa do

território, bem como por interesses mercantilistas das drogas do sertão. A ocupação do

território colonial estruturou-se de fora para dentro, isto é, a apropriação de espaços obedeceu

a um itinerário que exprime o sentido prioritário dos fluxos (centrípetos do ponto de vista da

colônia, e centrífugos na óptica da metrópole)16 . O desenho espacial básico observado se

confunde com a configuração da bacia hidrográfica: a disposição geográfica do povoamento

na região que formou a rede de núcleos populacionais e, mais tarde, a própria rede urbana

está intimamente ligada aos traçados dos rios.

Nessa perspectiva, o rio torna-se o principal elemento da circulação do espaço

regional e ainda um fator essencial na geopolítica de defesa do território dos colonizadores

portugueses. A respeito dessa peculiaridade da geografia colonial na Amazônia, Machado

comenta:

Durante séculos, mesmo na época pré-colombiana, a disposição geográfica do

povoamento na região amazônica obedeceu ao traçado da rede fluvial, por onde se

fazia a circulação. No início do século XVII, quando os ibéricos instalaram-se no

vale com o objetivo de controlar o território formado pela grande bacia

hidrográfica, escolheram os sítios com maior densidade de população indígena,

quase todos localizados na extensa planície de inundação (várzea) que caracteriza

grande parte do vale do rio Amazonas e de seus principais afluentes. (Machado.

1999:110)

É nesse contexto que a ocupação do território se inicia no início do século XVI,

particularmente em 1616, com a fundação de Belém. Posteriormente outros fortes foram

sendo construídos, sempre ao longo dos rios, em posições estratégicas no sentido geopolítico

do controle dos vales. Um desses rios, que se constituía como verdadeiro portal de acesso à

região, ligando-a ao território nacional, era o rio Tocantins. É na margem esquerda desse rio

que, após a fundação de Belém, os colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem

posteriormente ao que é hoje o Município de Cametá.

16 MORAES, A. “A formação colonial e conquista de espaços”, in: Território e História no Brasil, São Paulo: HUCITEC, 2002.

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Além de Cametá foram sendo progressivamente instalados outros núcleos de

povoamento, configurando um padrão que está intimamente ligado ao rio, que se materializou

com a formação dos aldeamentos e vilas desde o período colonial e que se amplia e se

consolida em função da expansão do povoamento regional com a economia da borracha em

fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Assim, ao longo das várzeas do rio

Tocantins emerge um sistema que combina o extrativismo da floresta, a pesca e a agricultura,

articulado por meio dos regatões com as vilas e cidades e que, na verdade, foi típico de toda a

Amazônia, como nos afirma Gonçalves (2001).

Foi com base na economia extrativa e no capital comercial que se forjou a divisão

territorial do trabalho moldando o padrão de organização do espaço regional, definindo a

formação e configuração das cidades ribeirinhas. “As interações entre vilarejos, vilas e

cidades eram inteiramente dependentes da cadeia de exportação/importação, que mobilizava

os excedentes de valor produzidos pela economia da borracha” (Machado,1999: 111).

Essa cadeia funcionava com base na compra e venda a crédito das mercadorias

(aviamento), sistema usado tanto pelo pequeno como pelo alto comércio que, na

prática, substituía a circulação de dinheiro pelo fluxo de mercadorias, e era esse

fluxo de crédito-em-mercadorias que articulava entre si as aglomerações. Se, de um

lado, esse sistema facilitava a expansão da atividade comercial, pois bastava ter

crédito para o comerciante se estabelecer, por outro, dificultava a captação do

excedente em cada lugar, o que, por sua vez, inibia a diversificação das atividades

produtivas e o processo de diferenciação funcional das aglomerações. .(Machado.

1999:111)

Assim, o espaço regional do Baixo Tocantins é produto no primeiro momento do

processo de ocupação do território a partir das vias de circulação fluvial definidas pelos rios.

A constituição das cidades, a organização do espaço e toda a dinâmica econômica estão

centradas no extrativismo, nas várzeas e nos rios. Nessa dinâmica geográfica, o transporte

fluvial teve uma importância fundamental, por desempenhar um papel de elo e realizar o

intercâmbio comercial, tecnológico e cultural ao longo da constituição histórico-territorial da

região.

Com a crise da economia da borracha a infra-estrutura e a logística foram

inteiramente deslocadas para a economia extrativa da castanha que se concentrava na região

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do médio Tocantins. Já o Baixo Tocantins era uma espécie de corredor no circuito de

circulação da produção da castanha e, nesse processo, municípios como Baião, Mocajuba e

Cametá serviam de entreposto comercial e pautavam sua economias locais numa lógica

endógena ligada à produção extrativa menos valorizada (ocoúba, andiroba, açaí etc) e à

agricultura de subsistência, sobretudo a produção de mandioca.

Desse modo, o Baixo Tocantins viveu um longo período de estagnação econômica,

que resultou num baixo dinamismo histórico e geográfico.

Nessa região a maior parte das aglomerações, o equipamento urbano e portuário

era precário, e o título de cidade, um eufemismo: a área urbanizada se limitava a

duas ou três ruas paralelas ao rio, margeada por modestas casas, raramente de

alvenaria, localizada nas partes mais elevadas da planície sazonalmente inundada

pela enchente dos rios. A falta de equipamento, mesmo nas maiores aglomerações,

não estimulava o desenvolvimento do modo de vida urbano, enquanto o ritmo de

vida nas aglomerações menores era lento e intermitente, acompanhando a

sazonalidade da coleta da borracha e o movimento de entrada e saída de

embarcações no porto. (Machado, 1999:110).

Esse padrão espaço-temporal se molda a partir de uma forte dependência da natureza,

num ritmo lento plasmado num modo de vida e numa sociabilidade pautadas no rio-várzea-

floresta. A vida se tece pelas relações estabelecidas com e através do rio: “O homem e o rio

são dois mais ativos agentes da geografia humana na Amazônia. O rio enchendo a vida do

homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências,

criando tipos característicos na vida regional”. (Tocantins, 1988:233). Ainda a respeito dessa

importância do rio, Loureiro afirma:

Os rios na Amazônia consistem em uma realidade labiríntica e assumem uma

importância fisiográfica e humana excepcional. O rio é o fator dominante nessa

estrutura fisiográfica e humana, conferindo um ethos e um ritmo à vida regional.

Dele dependem a vida e a morte, a fertilidade e a carência, a formação e a

destruição de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e de bens

simbólicos, a política e a economia, o comércio e a sociabilidade. O rio está em tudo

(Loureiro 1995:121).

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Essa importância do rio é fundamental na construção de um modo vida muito

particular na Amazônia, que se configurou e maturou a partir de uma relação de longa

duração do homem com a natureza, pois o rio durante muito tempo foi e continua sendo, em

muitas áreas da Amazônia o referencial e o diferencial na organização espaço-temporal e

cultural das populações. O rio é referência de múltiplas vivências, experiências e relações

cotidianas que se manifestam e se reproduzem nas práticas espaciais e no imaginário social.

Esse imaginário torna o rio, além de principal “acidente hidrográfico”, o principal “referente

geográfico” do modo vida ribeirinho (Pereira, 2005).

Nessas áreas onde predomina um certo “tempo lento”, o rio continua tendo uma

importância primordial para a vida das populações que lá vivem, sendo o referencial central

da “geograficidade” (organização espacial, modo de vida), além de matriz da temporalidade

(ritmo social) e do imaginário (lendas, mitos, crenças, cosmogonias) (Cruz,2004).

No Baixo Tocantins, e em especial em Cametá, a temporalidade e a espacialidade

continuam marcadamente simbolizadas pelo rio, com uma vida dinamizada pelas interações

materiais, simbólicas e imaginárias diferenciadas com ele. Desse modo, o rio se apresenta

tanto como meio de subsistência, comunicação e transporte, quanto “como mediação entre o

fantástico e o real, dos significados e representações do imaginário social geográfico”

(Pereira, 2005). O rio é o espaço de referência identitária para essas populações .

Para análise mais detalhada da construção desse modo de vida construído através das

relações tecidas no/com e pelo rio é que iremos trabalhar o papel deste como espaço de

referência identitária.

3.2. O RIO COMO ESPAÇO DE REFERÊNCIA IDENTITÁRIA: ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL E MODO DE VIDA RIBEIRINHO EM CAMETÁ.

A população ribeirinha representa uma significativa parcela da população em

Cametá, pois segundo dados do IBGE o município possui 105.504 habitantes, sendo que a

população residente na área urbana corresponde a 41,42% e o meio rural é habitado por

58,58% (IBGE, 2000). Deste total da área rural mais de 50% encontra-se na região das ilhas,

o que equivale a cerca de 30 mil pessoas residindo em 122 localidades. Nestas, estão situadas

523 comunidades cristãs (Fonte: Prelazia de Cametá).

O município de Cametá pode ser subdividido em duas porções distintas: região das

ilhas e a região da terra firme. As populações ribeirinhas localizam-se na região insular do rio

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Tocantins, onde dezenas de ilhas formam um verdadeiro labirinto de floresta e água onde se

forja um modo de vida muito particular.

Figura 2

Imagem de satélite da área do Município de Cametá

(Fonte: http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br)

A maioria dessas populações rurais e ribeirinhas de Cametá apresenta um conjunto

de características que se distingue do modo de vida urbano. Essas características se

aproximam do que é caracterizado como culturas ou como modo de vida “tradicional”,

caracterizados, segundo Diegues (1996: 87-8):

a) pela dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos

naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida;

b) pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na

elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse

conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração;

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c) pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e

socialmente;

d) pela moradia e ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns

membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado

para a terra de seus antepassados;

e) pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de

mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relação

com o mercado;

f) pela reduzida acumulação de capital;

g) pela importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações

de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e

culturais;

h) pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca e

atividades extrativistas;

i) pela tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de impacto limitado sobre o

meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo

o artesanal, cujo produtor e sua família dominam todo o processo até o produto

final;

j) pelo fraco poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos centros

urbanos; e

l) pela auto-identificação ou identificação por outros de pertencer a uma cultura

distinta.

Num diálogo com a definição de Diegues sobre culturas tradicionais, pautado no

conjunto de etnografias produzidas sobre as populações ribeirinhas e ainda tomando como

referência nossa vivência e convivência naquela realidade, propomos trabalhar a cultura e

modo de vida das “populações tradicionais”, em especial as populações ribeirinhas em

Cametá, a partir de quatro eixos estruturantes e imbricadas. Ressalta-se que essa separação

somente é possível para fins analíticos, (trata-se de um “tipo ideal”), pois, como sabemos, na

realidade empírica dificilmente todas estas características se realizam de maneira coerente.

Estes eixos são: a territorialidade, a temporalidade, a racionalidade econômica, ambiental.

Esse conjunto de características aponta para importantes elementos na compreensão

do rio como espaço de referência identitária. Trata-se de buscar apreender a dimensão do

“vivido” pelas práticas espaciais materiais (formas de uso, organização, produção, percepção

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do rio) bem como pelos espaços de representação ( significação, simbolização imaginação do

rio) como importantes elementos para compreensão da construção de uma consciência

socioespacial de pertencimento ribeirinha, e, conseqüente da emergência de uma identidade

ribeirinha em Cametá.

a) A territorialidade

Para essas populações, o território é ao mesmo tempo: o meio de subsistência, de

trabalho e produção; o meio de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aquelas

que compõem a estrutura social17. Assim o território se constitui como “recurso” e como

“abrigo”18. Recurso, pois é do rio e da floresta que as populações camponesas e ribeirinhas

retiram o seu sustento, e abrigo porque o território é um elemento fundamental de

identificação ou simbolização de grupos através de referentes espaciais19 - isso se expressa,

por exemplo, no papel do rio e da floresta na construção do imaginário, das crenças e lendas

que compõe uma cosmologia que explica e dá e sentido ao mundo do ribeirinho

Desse modo, para essas populações, o território tem um duplo sentido, tem uma

“função” e, ao mesmo tempo e indissociavelmente é “valor/significação” . Essa relação se

expressa por uma marcação mais ou menos intensa do espaço, que transcende apenas "posse"

material de uma porção da superfície terrestre. O poder do laço territorial revela que o espaço

é investido de valores não somente materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e

afetivos. (Bonnemaison; Cambrezy, 1996:10), logo, o território não pode ser percebido apenas

como uma posse ou como uma entidade externa à sociedade que o habita. A terra, assim

como rio, é uma parcela da identidade, “fonte de uma relação de essência afetiva e até mesmo

amorosa dessas populações com o espaço. Em suma, o território não faz parte simplesmente

da função ou do ter, mas do ser”. (Bonnemaison e Cambrezy, 1996:13)

A territorialidade ribeirinha também possui uma configuração muito particular, pois

se trata de uma “territorialidade anfíbia” entre a terra e a água ou de uma terra-água que são as

várzeas; além disso, a territorialidade se constitui de enraizamento e de viagens, ela engloba

17Diegues (1996), pautado nas reflexões de Godelier, define território para as populações “tradicionais” como “uma porção da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou a uma parte de seus membros, direitos estáveis de acesso, controle ou uso de sobre a totalidade ou parte dos recursos naturais aí existentes que ele deseja ou é capaz de utilizar”. 18 Ver Milton Santos (2004) sobre a idéia do território como “abrigo” e como “recurso”. 19 Ver uma proposta de sistematização feita por Haesbaert (2005b) sobre “fins” ou objetivos do processo de territorialização.

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simultaneamente aquilo que é fixação e aquilo que é mobilidade, ou seja, os itinerários e os

lugares20.Assim, o território do ribeirinho é, sobretudo, um conjunto de lugares

hierarquizados, conectados por uma rede de itinerários. Neste, sentido Furtado (2004) fala da

territorialidade ribeirinha envolvendo o local de moradia, os locais de pescas denominados

variavelmente de pesqueiros ou pontos de pesca, mais os trajetos entre a moradia e esses

locais (rios furos e igarapés) Assim, compreender o modo de vida das populações ribeirinhas

implica em compreendermos suas territorialidades.

b) A temporalidade

A temporalidade ribeirinha tem sua particularidade definida essencialmente por dois

elementos fundamentais: a tradição e a dinâmica da natureza. É no entrelaçamento entre esses

dois elementos que a experiência espaço-temporal, o ritmo social das populações ribeirinhas

pode ser compreendido.

Nas populações ou culturas “tradicionais” como as populações ribeirinhas da

Amazônia, segundo Giddens (1991) o passado é honrado e os símbolos valorizados porque

contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a

monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Assim a tradição “é

uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência

particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez

estruturados por práticas recorrentes” (Giddens, 1991:44) Isso, contudo não significa, de

forma nenhuma, que tais populações estejam completamente congeladas no tempo e

estacionadas no movimento da história, pois “a tradição não é completamente estática, porque

ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural

dos precedentes” (Giddens, 1991:44). Ou ainda:

A tradição (...) não se refere a nenhum corpo particular de crenças e práticas, mas à

maneira pelas quais estas crenças e práticas são organizadas, especialmente em

relação ao tempo. A tradição reflete um modo distinto de estruturação da

temporalidade (que também tem implicações diretas para a ação no espaço). A

noção de Levi-Strauss de “tempo reversível” é central no entendimento das

temporalidades das crenças e atividades tradicionais.O tempo reversível é a

20 Esta definição esta baseada nas reflexões de Bonemaisom (2003) sobre a territorialidade

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temporalidade da repetição e é governada pela lógica da repetição - o passado é um

meio de organizar o futur. (Giddens, 1991:44).

Além desse papel da tradição, a temporalidade do modo de vida das populações

ribeirinhas está numa estreita relação com o ritmo /o tempo da natureza. Como já vimos a

ligação dessas populações com o meio ambiente é profunda, sendo que os movimentos

cíclicos da natureza (estações do ano, marés etc) orientam e, de muitas maneiras, determinam

os fenômenos sociais; as ações concretas do cotidiano do ribeirinho se repetem ciclicamente

no pulsar das águas – os movimentos das marés de algum modo regulam os horários e os

comportamentos. É no vaivém das águas (enchentes e vazantes) que se dá a reprodução da

vida social e da experiência cultural num cotidiano que se realiza de maneira plural.

Assim, a temporalidade ribeirinha é marcada por certa lentidão e permanência, sendo

um tempo de alguma forma estacionário, rotineiro, sem grandes rupturas, marcado por certo

equilíbrio e repetição, contudo portador de diferenças, um tempo que não está fundado na

inovação e nas transformações, mas que é fértil de surpresa. É esse tempo cíclico, repetitivo,

reiterativo e rotineiro, orientado pela tradição e pela dinâmica da natureza, que cria sentidos e

significação para o modo de vida ribeirinho.

c) A Racionalidade ambiental21

Essas populações têm uma intensa relação com os ecossistemas que se relacionam,

mostrando uma relação de simbiose com a natureza, os seus ciclos e os recursos naturais

renováveis com os quais constrói um modo de vida. É desse modo que as populações

ribeirinhas constroem todo o seu modo de vida ou, numa linguagem geográfica, seu gênero de

vida a partir da relação com os ecossistemas da várzea, tendo o habitat o rio e a floresta, papel

decisivo na sobrevivência e no conjunto de habitus que compõem o modo de vida ribeirinho.

Essa intensa relação com a natureza pressupõe um conhecimento aprofundado da sua

dinâmica, de seus ciclos, que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos

recursos naturais. Esse imenso acervo de conhecimento é transferido por oralidade de geração

em geração, através do senso prático que compõe um ethos ribeirinho que, junto com um

conjunto de simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca e atividades extrativistas,

21 Esta categoria é desenvolvida de maneira aprofundada por Leff (2000) e Gonçalves (2004)

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compõe uma matriz de racionalidade ambiental muito particular de uso-significado da

natureza.

d) A racionalidade econômica

As populações ribeirinhas também se distinguem por uma forma de racionalidade

econômica específica que está pautada em atividades de subsistência, sobretudo a pesca

artesanal (peixe e mariscos), a coleta extrativa de produtos (açaí, cacau, borracha, cupuaçu,

andiroba, ocúba), além de uma agricultura de subsistência, sobretudo a produção de roças de

mandioca. Essas atividades são realizadas no âmbito da unidade familiar, doméstica ou

comunal ou ainda a partir de redes de relações de parentesco ou compadrio. A tecnologia

utilizada nessas atividades é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio

ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, em

que o produtor e sua família dominam todo o processo até o produto final. A natureza e a

escala da produção implicam numa prática econômica fundamentalmente voltada para a

subsistência; contudo, a venda do excedente e o acesso a redes de consumo em escalas mais

amplas implicam numa relação com o mercado, embora isso não signifique que a

racionalidade econômica dessas populações esteja voltada para o mercado, ou que seja

dominada pela lógica da produção capitalista.

Esse modo de vida, esse padrão de organização espaço-tempo fundamentado numa

temporalidade e espacialidade ribeirinha que foi dominante na geografia do vale do Tocantins

começa a se alterar a partir do final dos anos 1970. A partir desse período começa a emergir o

um novo padrão espaço-temporal que Gonçalves (2001) denomina: estrada-terra-firme-

subsolo e que se conforma com as cidades e os embriões urbanos que surgiram recentemente

ou foram reestruturados a partir e ao longo dos grandes eixos rodoviários que rasgaram o

espaço regional. Com esse processo se esboça uma nova temporalidade, ligada a um tempo

mais “rápido” da nova dinâmica dos atores hegemônicos que,a partir de aí, protagonizam

uma nova divisão nacional e internacional do trabalho resultante da nova fase de acumulação

do capital na Amazônia caracterizada pelo deslocamento do capital comercial para o capital

industrial e financeiro.

Esse processo ocorre a partir dos anos 1960 e, de maneira mais sistemática e

contundente, com a chegada dos militares ao poder - o Estado autoritário brasileiro, segundo

Becker (1990), tomou para si a iniciativa de um novo e ordenado ciclo de devassamento

amazônico pautado num projeto geopolítico para modernizar de maneira acelerada a

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sociedade e o território nacional. Para Becker (1990a), a ocupação da Amazônia assumiu

prioridade nesse projeto por varias razões. Primeiramente foi percebida como solução para as

tensões sociais internas decorrentes da expulsão de pequenos produtores do Nordeste e do

Sudeste em decorrência da modernização da agricultura. Sua ocupação também foi percebida

como prioritária em face da possibilidade de nela se desenvolverem focos revolucionários. No

nível continental, duas preocupações se apresentavam: a) a migração nos países vizinhos para

suas respectivas Amazônias que, pela dimensão desses países, localizam-se muito mais

próximo dos seus centros vitais; e, b) a construção da Carretera Bolivariana Marginal de la

Selva, artéria longitudinal que se estende pela face do Pacífico na América do Sul,

significando a possibilidade de vir a capturar a Amazônia continental para a órbita do Caribe e

do Pacífico, reduzindo a influência do Brasil no coração do continente. Finalmente, no nível

internacional, vale lembrar a proposta do Instituto Hudson, de transformar a Amazônia num

grande lago para facilitar a circulação e a exploração de recursos, o que certamente não

interessava ao projeto nacional (Becker, 1982, 1990a).

A Amazônia torna-se, portanto, uma prioridade no projeto econômico e geopolítico

de modernização do Estado autoritário brasileiro. Para a realização de tal projeto a

modernização do território foi essencial. Neste sentido construiu-se uma malha tecno-política

de controle sobre esse território, e foi através dela que o Estado adotou um conjunto de

planos, projetos e estratégias para a realização do projeto de modernização de controle

geopolítico. Becker (1990a) sistematiza as principais estratégias:

Implantação de redes de integração espacial. Trata-se de todos os tipos de rede,

destacando-se quatro no investimento público. Primeiro, a rede rodoviária,

ampliada com a implantação de grandes eixos transversais como Transamazônica e

Perimetral Norte, e intra-regionais como Cuiabá–Santarém e Porto Velho–Manaus.

Segundo, a rede de telecomunicações comandada por satélite, que difunde os valores

modernos ela TV e estreita os contatos por uma rede telefônica muito eficiente.

Cerca de 12000 km de estradas foram construídos em menos de cinco anos, e um

sistema de comunicação em microondas de 5 110 km em menos de três anos.

Terceiro, a rede urbana, sede das redes de instituições estatais e organizações

privadas. Finalmente, a rede hidroelétrica, que se implantou para fornecer energia,

o insumo básico à nova fase industrial.

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Subsídios ao fluxo de capital e indução dos fluxos migratórios. A partir de 1968,

mecanismos fiscais e creditícios subsidiaram o fluxo de capital do Sudeste e do

exterior para a região através de bancos oficiais, particularmente o Banco da

Amazônia S. A. (Basa). Por outro lado, induziu-se a migração através de múltiplos

mecanismos, inclusive projetos de colonização visando o povoamento e a formação

de um mercado de mão-de-obra local.

Superposição de territórios federais sobre os estaduais. A manipulação do

território pela apropriação de terras dos Estados foi um elemento fundamental da

estratégia do governo federal, que criou por decreto territórios sobre os quais

exercia jurisdição absoluta e/ou direito de propriedade. O primeiro grande território

criado foi a Amazônia Legal, superposta à região Norte. Em 1966, a Sudam

demarcou os limites da atuação governamental, somando 1400 000 km2 aos 3500

000 km2 da região Norte, construindo dessa forma a Amazônia Legal. Em seguida,

em 1970-1971, o governo determinou que uma faixa de 100 km de ambos os lados de

toda estrada federal pertencia à esfera pública, com a justificativa de sua

distribuição para camponeses em projeto de colonização. Só para o Estado do Pará

isto significou a perda de 83 000 000 ha (66,5% desse Estado) que passaram para as

mãos federais. Através dessa estratégia o governo federal passou a controlar a

distribuição de terras, adquirindo grande poder de barganha.

Esse conjunto de elementos foram localizados e distribuídos em densidades distintas

pela região sendo que a Amazônia oriental e, em especial, o sul e o sudeste do estado do Pará

foi onde esse projeto se materializou com mais força. Nessa área os investimentos federais

foram responsáveis pela alteração da disposição espacial do povoamento nas décadas

seguintes. Segundo Machado (1999), o elemento primordial na dinâmica de organização

espacial da região deixou de ser a rede fluvial e passando ser as estradas pioneiras, tanto para

os fluxos imigratórios dirigidos como para as correntes imigratórias espontâneas. À medida

que os grandes eixos de estradas pioneiras eram construídos na terra firme, ou seja, nas áreas

não inundadas, as frentes de povoamento invadiam a selva e novas aglomerações apareciam,

muitas delas já sob a forma de cidade.

Neste sentido, a região do chamado médio Tocantins compreendida entre Tucuruí e

Marabá vai sofrer profundas mudanças, reestruturando radicalmente a dinâmica do vale do

Tocantins como um todo. Assim, com o processo de integração regional, a partir da década de

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1970, as vias rodoviárias passaram a desempenhar um papel predominante na ocupação e

configuração do espaço; deste modo, a maior parte das antigas aglomerações situadas nas

margens das vias fluviais passa a ser marginalizada pelas ondas imigratórias, com exceção das

cortadas pelos novos eixos de circulação terrestre (Machado, 1999). Contudo, os rios

continuaram em muitas áreas e de várias maneiras constituindo um elo de articulação e uma

referência central na definição dos lugares que se localizam em suas margens.

No vale do rio Tocantins esse processo de reestruturação regional tem como fator

decisivo o processo de construção da usina hidrelétrica de Tucuruí. Essa usina alterou

profundamente a estrutura espacial e demográfica local, modificando profundamente as

relações e cadeias que se estabeleciam entre homens e natureza, redefinindo completamente

os gêneros de vida e os ambientes espaciais locais (Rocha e Gomes, 2002):

A UHT (Usina Hidroelétrica de Tucuruí) atuou como pólo de atração e de

reorganização espacial, através de geração e distribuição de energia, valorizando a

montante do reservatório hidráulico. A valorização do espaço do entorno do

reservatório aumentou os fluxos migratórios e estimulou a formação de um novo

padrão de ocupação territorial, reconfigurando o espaço microrregional. As novas

relações sociais e espaciais engendradas afastaram o curso natural da evolução do

espaço local e microrregional e impuseram novos recortes espaciais, uma nova

regionalização. (Gomes e Rocha, 2002:33-4)

Na verdade a UHT não só barrou o rio, como fragmentou a dinâmica regional

diferenciando profundamente a textura e tessitura do tempo-espaço do Baixo e Médio

Tocantins. À montante, municípios como Breu Branco, Goianésia, Jacundá, Novo

Repartimento, Itupiranga e Nova Ipixuna tiveram suas áreas alagadas. O impacto ecológico,

demográfico e sociocultural, foi intenso – novas atividades produtivas e os circuitos de

produção e acumulação reestruturam o espaço microrregional a partir do empreendimento;

também o intenso processo de migração e urbanização do território e da sociedade redefiniu

em grande parte os modos de vida “tradicionais”. Por outro lado, a jusante os municípios de

Baião, Mocajuba, Cametá, Limoeiro do Ajurú e Igarapé Miri, entre outros, permaneceram

com uma dinâmica sócio-espacial e sociocultural marcada por fortes características rurais e

ribeirinhas, uma área de mais de dez mil quilômetros quadrados de florestas de terra firme,

várzea e ilhas que mantiveram suas características tradicionais (como caracterizamos

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anteriormente); contudo, sofreram os graves efeitos negativos (ecológicos e sociais) da

construção da hidrelétrica.

Assim, esse processo de reestruturação regional produziu de maneira nítida no vale

do rio Tocantins as duas matrizes espaço-temporais: denominados por Gonçalves (2001) rio-

várzea-floresta; estrada-terra-firme-subsolo, estes ritmos se conjugam na constituição das

diferentes configurações dos lugares. Temos assim duas grandes matrizes espaço-temporais

que representam duas lógicas de divisão do trabalho distintas, como modos de vida distintos

que se cortam, recortam, sucessiva e simultaneamente, se fragmentando e rearticulando-se, e

desse modo, criando as particularidades e singularidades dos lugares, pois “em cada lugar, em

cada subespaço novas divisões do trabalho chegam e se implantam, mas sem a exclusão da

presença dos restos das divisões do trabalho anteriores. Isso, aliás, distingue cada lugar dos

demais, essa combinação específica de temporalidades diversas”. (Santos, 2002: 136).

No vale do rio Tocantins esse processo se materializa em uma multiplicidade de

combinações, mas de uma forma simplificada, tendo como exemplo dois extremos: os lugares

do “tempo rápido”, ligados aos novos capitais, e uma nova divisão territorial do trabalho, com

nexos e eixos econômicos, políticos e culturais que se estabelecem em lógicas mais

extrovertidas e exógenas no espaço regional; por outro lado temos os lugares ligados a um

“tempo lento” com modos de produzir e modos de vida tradicionais que pouco se alteraram.

Essas duas matrizes espaço -temporais em grande parte se materializam na divisão das áreas:

a montante e a jusante da hidrelétrica respectivamente.

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Mapa 1

O Vale do TRio Tocantins após a construção da Hidrelétrica em ucuruí.

&\

&\

&\

&\

&\

&\

&\&\&\

&\

&\

&\

&\

&\

MARABA

NOVO REPARTIMENTO

ITUPIRANGA

BAIAO

CAMETA

GOIANESIA DO PAR

BREU BRANCO

JACUNDA

IGARAPE-MIRI

ABAETETUBA

NOVA IPIXUNA

MOCAJUBA

LIMOEIRO DO AJURU

TUCURUI

-51

-51

-50

-50

-49

-49

-6

-6

-5

-5

-4

-4

-3

-3

-2

-2

VA PLE DO TOCANTINS - ARÁN

EW

S

Km30 0 30 60

ESCALA GRÁFICA

Malha MunicipalVale do Rio TocantinsJusante da UHE - Tucuruí Montante da UHE- TucuruíCametáRio Rio TocantinsRodovias

&\ Sede Municipal

CONVENÇÕES E LEGENDA LOCALIZAÇÃO NO ESTADO

FONTE: Base Digital SIGIEP, 2001.ELABORAÇÃO: Valter Cruz. EXECUÇÃO: Michelle Sena. Data: 16/03/2006.

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3.3 O PROCESSO DESIGUAL DE REORGANIZAÇÃO ESPAÇO-TEMPORAL PÓS 1970

NO BAIXO TOCANTINS.

Os impactos da UHT foram de várias naturezas e afetaram em diferentes graus de

intensidade o vale do rio Tocantins; todavia, nos deteremos mais no espaço localizado a

jusante que é a área de nossa pesquisa e, em especial, no município de Cametá. Um desses

impactos diz respeito à questão ambiental, pois a barragem do rio acarretou a não ocorrência

de enchentes periódicas na região do Baixo Tocantins, localizada a jusante, prejudicando a

fertilização natural dos solos adjacentes ao rio e que eram utilizados para o plantio. A barreira

física imposta pela barragem retém a matéria orgânica rica em nutrientes. Este processo tem

produzido duas grandes conseqüências:

A primeira relaciona-se ao empobrecimento progressivo dos solos de várzea devido

à falta de reposição de nutrientes carreados pelo rio. A segunda é o declínio da

pesca a jusante em função da redução na disponibilidade de alimento para a cadeia

trófica. Além disso, a própria barreira física imposta pelo barramento intervém

diretamente na migração de peixes, ou a regularização das vazões contribui para

esse declínio, já que para muitos organismos o início das cheias serve de estímulo

para o começo do período de procriação (CMB, 2000:71).

Apesar das controvérsias e especulações sobre o real impacto da hidrelétrica de

Tucuruí na dinâmica do rio Tocantins é possível afirmar, segundo os dados do relatório da

CMB (Comissão Mundial de Barragens), que houve de fato uma diminuição no número de

espécies capturadas nas pescarias experimentais, de 164 para 133, equivalente a 18,8%, e

também uma alteração na participação relativa das espécies mais freqüentes, pois com a

diminuição da vazão da água e a conseqüente diminuição da área alagada, as áreas de várzeas,

que antes eram submersas periodicamente, ficaram permanentemente fora d’água, diminuindo

a oferta de alimento. Além disso, as áreas marginais alagáveis, locais de concentração de

peixes jovens conhecidas como “berçários”, ficaram indisponíveis; tais áreas são importantes

para o recrutamento, cujo insucesso ocasiona diminuição das populações de peixes. Estas

áreas são também fontes de alimentação para os peixes, pois a floresta inundada (igapó)

fornece frutos, sementes, insetos e outros invertebrados consumidos pelos peixes; com a sua

diminuição ou desaparecimento a oferta de alimento para os peixes declinou sensivelmente.

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No município de Cametá, especificamente, ocorreu uma drástica diminuição das

capturas pela pesca comercial na região: a evolução das captura das pesca comercial,

demonstrou que houve uma diminuição constante da produção pesqueira, que caiu de 900

t/ano em 1981 para 492 t/ano; em 1998, com uma queda de 83% É possível que essa queda

nas capturas seja resultado das alterações no regime hidrológico do rio após a construção da

barragem, dado que o ritmo de enchente e vazante passou a ser regulado pelas atividades de

operação da UHE. Isso pode ter desorientado e modificado o comportamento migratório dos

cardumes de algumas das principais espécies de peixes comerciais da região, contribuindo

para a diminuição nas capturas (CMB, 2000:79).

O relatório da Comissão Mundial de Barragens22 (CMB, 2000) indica ainda que

houve uma redução no tamanho das populações das espécies migratórias que possuíam valor

comercial. Isto ocorreu logo após o segundo ano de fechamento do rio provocado pela

construção da barragem, conforme constatado nas pesca experimental. Este fato está, em

parte, sendo creditado à interrupção das rotas migratórias de espécies que subiam o rio

passando pelas corredeiras e indo desovar no Alto Tocantins e/ou rio Araguaia, como a

ubarana (Anodus elongatus) e a curimatã (Prochilodus nigricans).

Os dados da época de pré-barragem na região de Cametá indicavam uma

participação relativa do mapará (Hypophthalmus marginatus) equivalente a 37% dos

desembarques do pescado que chegavam a Cametá (Carvalho & Merona, 1986). Contudo,

entre 1988 e 1998 este percentual caiu de 38% para 16,7%. A curimatã, que na fase de

preenchimento era responsável por cerca de 35% dos desembarques, neste período apresentou

uma queda acentuada, chegando a um mínimo de 4,4% em 1989. A ubarana (A. elongatus) foi

a espécie que sofreu o maior impacto, praticamente desaparecendo desta região; isto pode ser

explicado porque esta espécie migra para os cursos superiores dos rio Tocantins e Araguaia

para reprodução, de modo que a construção da barragem impede que a região a jusante receba

novo recrutamento a cada ano.

Isso pode ser constatado pela presença significativa desta espécie nas pescarias

experimentais na região a montante, e pela sua presença nas capturas comerciais naquele

trecho. É importante salientar que a participação relativa das espécies na produção pesqueira

mudou: em 1988 o mapará era a espécie dominante com mais de 35% da produção seguida de

longe pela curimatã com cerca de 13%, e bagres, jatuarana, pescada e tucunaré com menos de

10% cada. Em 1998 a participação do mapará caiu para cerca de 17%, a curimatã subiu para

22 O conjunto de dados e informações aqui usado está referenciado no relatório da comissão mundial de barragens

sobre a hidrelétrica de Tucuruí (CMB, 2000).

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cerca de 14%, a jatuarana subiu para cerca de 13%, o mesmo ocorrendo com a pescada. Estes

dados evidenciam a ausência de uma espécie dominante destacada, com participações

relativas que ficam entre 16% e 13% entre as quatro principais espécies (CMB, 2000:56).

Essa conseqüência negativa, longe de ser simplesmente ecológica, tem um profundo

impacto social e cultural na região do baixo Tocantins, em especial na região de Cametá, pois

o rio tem um papel fundamental na construção do modo de vida dessas populações.

No que se refere à economia da região é possível afirmar que a construção da UHT-

Tucuruí provocou uma transformação radical na estrutura produtiva que antes tinha uma base

agro-extrativa e passa abruptamente para monoprodução de energia. Essa transformação

representa forte limitação para gerar condições de desenvolvimento no nível local. O exame

da estrutura fundiária, espacial e demográfica revela a incidência dessa mudança. Os

processos desencadeados pela instalação do empreendimento energético funcionam de

maneira cíclica, provocando fluxos de trabalhadores nas fases de construção da hidrelétrica e

da infra-estrutura de base, como estradas e novas cidades (CMB, 2000).

A construção da barragem desencadeou processos de transformação econômica que

incidem, de um modo geral, na estrutura produtiva local. A economia predominantemente

agrária e extrativa foi sendo alterada com a interferência direta e indireta do empreendimento

em áreas de uso coletivo, tradicionalmente destinadas ao extrativismo, à pesca, ao cultivo, nas

várzeas e na terra firme. Assim esse processo afeta de maneira dramática os usos e os sistemas

de apropriação tradicionais do território praticados por diferentes grupos sociais: indígenas,

colonos, ribeirinhos, madeireiros, pecuaristas e empresas agropecuárias. Neste sentido:

O empreendimento tem a capacidade de impor novos recortes, além da sua área

física. A instalação do empreendimento hidrelétrico superpõe à estrutura fundiária

existente uma série de novos problemas - concentração, compra e venda ilegal de

terras e benfeitorias, atos de força contra ocupantes ou ‘posseiros’ - que estão na

base dos conflitos fundiários. As áreas indígenas não demarcadas passaram a ser

objeto de intrusão; as pequenas posses, não registradas, tornam-se invisíveis, não

sendo, consequentemente, indenizadas quando do processo de reassentamento. Os

processos de concentração, exploração de recursos, usurpação de posse cartorial e

grilagem acentuaram-se com o avanço do projeto (CMB, 2000:79).

As progressivas transformações da estrutura fundiária representam uma ruptura na

dinâmica local de apropriação da terra. O empreendimento tem a capacidade de provocar uma

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elevação do preço da terra e aumento da procura. Trata-se de novos recortes impostos,

inclusive para além da sua área física. Exemplo disso é a área do reservatório que foi ocupada

- as chamadas ilhas – e que, atualmente, suscita problemas de disputa e definição jurídicas.

Dessa forma, é necessário compreender o impacto do empreendimento sobre a terra, tanto a

montante quanto a jusante (CMB, 2000).

No que se refere especificamente à jusante, até a década de 1970 a extração vegetal

tinha uma participação crescente em todos os municípios da região. O açaí ocupava o

primeiro lugar, seguido da madeira e da borracha. Em alguns municípios eram também

extraídos produtos como malva e castanha. Também era expressiva a produção de arroz,

mandioca, milho e feijão. Em algumas áreas destacava-se o cacau, a banana, a pimenta-do-

reino e a pesca artesanal - peixe, camarão -, esta última predominante em toda a região do

Baixo Tocantins. A pesca artesanal era utilizada não apenas para o consumo familiar, mas

também para a comercialização nos mercados das cidades ribeirinhas. Desse modo, apesar de

uma leitura insistente classificando essa agricultura como de subsistência, com diminuta

participação no mercado:

os números do IBGE contabilizam valores significativos na produção dos

municípios. O empreendimento energético incide de forma desarticuladora sobre

essas atividades produtivas, sobretudo no que diz respeito às desenvolvidas por

grupos camponeses, ocasionando um processo crescente de empobrecimento e êxodo

para as médias e pequenas cidades (CMB, 2000:81).

No que se refere ao município de Cametá, a economia continua dependente da

agricultura de subsistência e comercial, com ênfase no cultivo da mandioca, do cacau e da

pimenta-do-reino e no extrativismo vegetal, no qual se destaca o açaí e a madeira para corte.

A atividade industrial é ainda incipiente, restringindo-se às serrarias localizadas no interior do

município e na sede municipal, que operam com motor próprio, e às diversas marcenarias

(CMB, 2000).

Contudo, como já registramos anteriormente, a mudança do regime hidrológico

alterou a produção, sobretudo nas culturas das áreas de várzea; sendo assim, houve uma queda

da produção de açaí e de cacau na área a jusante com reflexos importantes na economia local.

Mas hoje o açaí continua sendo um alimento de significativa importância para a população

ribeirinha, sendo a base essencial da dieta regional bem como um importante produto para a

economia extrativa de toda a região.

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Na área a montante, a velha economia fundada no extrativismo é substituída pela

geração de energia, pela nova produção agrícola, pecuária, de carvoejamento e pela atividade

industrial (metalurgia e serraria). O resultado é que o dinamismo econômico e o ritmo de

crescimento são profundamente diferentes. A região a jusante da UHT perdeu a vantagem que

detinha frente ao aglomerado de municípios situados a montante da hidrelétrica. Como

resultado do dinamismo econômico diferente, a região a montante alcançou o PIB dos

municípios a jusante, historicamente com maior base produtiva. Esses municípios têm

apresentado uma estagnação econômica nas últimas décadas.

Essas mudanças foram tamanhas na estrutura produtiva e na dinâmica econômica

que em 1980 o PIB da região a montante não chegava a 10%, se comparado ao PIB da região

a jusante, enquanto que hoje, decorridos 30 anos, os PIBs das duas regiões praticamente se

equivalem. Vale notar que em 1970 a renda per capita a montante equivalia a cerca de 50% da

área a jusante; porém, ao longo desse mesmo tempo, mesmo com todo o crescimento

populacional da área a montante a renda per capita a montante é da ordem de 80% da

estimada para a jusante23.

No que se refere à dinâmica populacional, se for analisada a partir de uma escala

temporal de três décadas, duração que coincide com o início do processo de construção da

UHT, veremos uma metamorfose intensa. Em trinta anos (1970-2000) a região a jusante da

UHT registrou um crescimento moderado da população, apesar de ter tido um aumento de

70% no total de habitantes. De acordo com os Censos Demográficos do IBGE a população

passa de 124 mil habitantes em 1970 para mais de 211 mil habitantes no ano 2000, o que

representa uma taxa média de crescimento demográfico de 1,8% ao ano, bem inferior à

registrada pela área a montante, que foi de cerca de 10% ao ano no mesmo período.

Nesse sentido, percebemos diferentes ritmos de crescimento, pois a região a jusante

do rio, sem o dinamismo do grande empreendimento, cresceu a partir de uma lógica

endógena, fundamentada no crescimento vegetativo. Já a região afetada diretamente pelo

vetor de modernização cresceu a partir de uma lógica exógena ligada a intensos fluxos

migratórios oriundos de fora da região. Em termos populacionais, as duas regiões trocam de

lugar. Em 1970, a população dos municípios a montante correspondia a apenas 25% da

população a jusante. Em 2000, a população a montante (de formação recente, portanto) é

superior em 17% à da região a jusante.

23 Os dados estatísticos usados neste trabalho estão baseados no PPDS-Jus (Plano Popular de Desenvolvimento Sustentável da região a jusante da UHT-Tucuruí. (ELETRONORTE, 2003)

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A evolução demográfica da região do Baixo Tocantins a jusante da UHT apresenta-

se também abaixo da média histórica do estado do Pará, que é de 3,3%. Ainda que na década

de setenta tenha registrado uma média anual de 2,65%, durante os anos oitenta o aumento da

população foi muito baixo, cerca de 1,21% ao ano - muito próximo da taxa mínima de

reposição.

Tabela 1

Evolução Populacional dos municípios localizados a jusante

ANO MUNICÍPIO

1970 1980 1991 2000

Cametá 59.754 79.320 85.187 97.624

Igarapé Miri 31.228 39.270 41.843 52.604

Mocajuba 9.087 17.709 25.709 30.355

Baião 12.134 16.258 20.072 21.119

Limoeiro do Ajurú 10.074 8.848 9.262 9.751

Total 124.247 161.405 182.073 211.453

Taxa crescimento anual - 2,65% 1,10% 1,7%

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991 e 2000)

Esse processo demonstra uma temporalidade própria que também se reflete no

processo de urbanização, pois a região possui uma das menores taxas de urbanização do país,

com menos de 45% da população residindo no espaço urbano (precisamente 44,74%), como

mostra a tabela 2, bem abaixo da média da Região Norte, estimada em 69,7% em 2000, e do

país calculadas em 81,2%. De outro lado da hidrelétrica a microrregião de Tucuruí (a

montante) tem um perfil mais urbano, com cerca de 56% dos seus habitantes residindo na

zona urbana, demonstrando que o avanço da fronteira se faz por intenso processo de

urbanização, como sugeriu Becker (1990)e Machado(1999)

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Tabela 2

Taxa de Urbanização da Região a jusante da UHT %

ANO

MUNICÍPIO 1970 1980 1991 2000

Cametá 18.38 26.82 35.54 41.40

Igarapé Miri 23.24 36.17 47.31 47.49

Mocajuba 26.79 31.18 45.73 47.97

Baião 23.00 25.13 39.24 51.45

Limoeiro do Ajurú 8.84 17.72 27.23 38.66

Total 19.60 28.90 39.67 44.74

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991 e 2000)

A despeito da pequena taxa de urbanização atual, bem abaixo da média nacional e

regional, verificamos que a população rural vem perdendo participação em relação à

população urbana. Entre 1970 e 2000, a população urbana cresceu cerca de 288%, enquanto

que a população rural cresceu apenas 17%. O fato relevante neste processo é que nas décadas

de oitenta e noventa a população rural cresceu menos que a taxa mínima de reposição (1,2%

ao ano). Estes dados revelam um forte êxodo rural na direção dos principais núcleos urbanos

desta e de outras microrregiões (PPDS-Jus, 2003). (ver tabela 3)

O desempenho demográfico da região indica a provável ocorrência de forte

emigração, na medida em que o crescimento vegetativo deve se situar acima dos 2% ao ano,

superior ao crescimento líquido registrado nas últimas décadas. Muitas famílias migraram

para a região do lago de Tucuruí, forçadas pela queda na qualidade vida resultante da

diminuição de peixes e da qualidade da água na área a jusante, causadas pela barragem do rio.

Na década de oitenta ocorreu uma perda de dinamismo da agricultura e da pecuária

nos municípios a jusante. Com exceção de Mocajuba e Baião, todos os municípios

apresentam forte redução, em termos absolutos, nos estoques de população, com destaque

para Limoeiro do Ajuru, que perdeu população rural em todas as décadas. Na década de

noventa, além de Limoeiro, Baião também teve a sua população reduzida.

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Tabela 3

Variação nos estoques de população urbana e rural dos municípios a jusante da UHT

(Em hab.)

DÉCADA DE 1970 DÉCADA DE 1980 DÉCADA DE 1990 MUNICÍPIO

URB. RUR. URB. RUR. URB. RUR.

Cametá 10.291 9.275 9.002 -3.135 10.141 2.296

Igarapé Miri 6.947 1.095 5.592 -3.019 5.186 5.575

Mocajuba 3.087 5.535 6.235 1.765 2.805 1.841

Baião 1.295 2.829 3.791 23 2.989 -1.942

Limoeiro do Ajurú 677 -1.903 954 -540 1.248 -759

Total 22.294 14.864 25.582 -4.914 22.376 7.004

(Fonte: IBGE, Censos Demográficos: 1970, 1980, 1991 e 2000).

Assim, o que podemos verificar é que, se por um lado a região a montante da

hidrelétrica (área de influência direta) sofreu profundas mudanças, a região a jusante,

tradicionalmente ribeirinha, não sofreu uma inserção direta e imediata nos processos de

modernização, sendo afetada apenas indiretamente pelas frentes de expansão econômica,

experimentando efeitos de natureza em graus distintos da região a montante. De um lado,

permanece sem grandes mudanças econômicas, socioespaciais e socioculturais, apesar de

estar localizada entre os dois grandes “pólos de desenvolvimento”: a Usina Hidrelétrica de

Tucuruí (produção de energia elétrica) e o Complexo Albrás/Alunorte (produção de alumina e

alumínio).Por outro lado, os efeitos ecológicos, econômicos e sociais desestrutaradores

tornaram ainda mais difícil as condições de produção e reprodução social da maioria das

populações dessa região e, de maneira mais dramática , das populações ribeirinhas

Para entendermos a dinâmica sócio-espacial e sociocultural desses espaços devemos

operar analiticamente a partir de uma relação dialética de um tempo externo e um tempo

interno, pois a dinâmica do capital e do Estado (tempo externo) influencia a dinâmica desses

lugares; essas temporalidades não são, contudo, um mero reflexo do avanço da fronteira, para

compreendê-las é preciso levar em conta outros tempos e espaços, talvez tempos mais

“lentos”, especialmente tempo do modo de vida cotidiano dos sujeitos em suas histórias locais

(tempo interno) que são diferencialmente afetados pelas novas temporalidades hegemônicas e,

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como já ressaltamos é dessa combinação que resulta o tempo espacial próprio de cada lugar

(Santos, 2004:257).

Assim, o Baixo Tocantins tem o seu próprio tempo, seu tempo interno em relação

aos tempos externos (a Amazônia, o Brasil, o mundo). Seu tempo é o tempo da fronteira,

percebida aqui como a coexistência e o (des)encontro de temporalidades na

contemporaneidade (Martins, 1996). No Baixo Tocantins o tempo é múltiplo, plural – ele tem

seus próprios ritmos –, sofrendo acelerações ou transformações mais intensas e extensas pela

introdução de outras temporalidades, através do ritmo da produtividade, do tempo da

modernização, que vem reestruturando o espaço regional, bem como também os tempos dos

atores não hegemônicos (subalternizados) nos seus ritmos cotidianos. Tal processo se dá em

intensidades e densidades distintas que historicamente produzem uma imbricação e uma

combinação sempre diversa nos diferentes lugares.

Assim, num mesmo espaço podemos encontrar o ritmo social, a temporalidade

hegemônica do capital, marcada pela maior velocidade, em contraste com uma Amazônia que

tem no rio sua referência quase exclusiva de ritmo social. Os lugares de incidência direta dos

vetores de modernização, tanto do sistema de objetos (materialidade: paisagem cada vez mais

artificial, tecnificada, cientificizada) quanto do sistema de ações (novas temporalidades e

dinâmicas sociais mais velozes), aos quais acrescentaríamos os sistemas de valores (o modo

de vida urbano e um novo imaginário), caracterizam-se por um grau cada vez maior de

racionalidade, pela intencionalidade, pela artificialidade e pela fluidez capitalista. Esses

lugares e suas sociedades experimentam de uma forma hegemônica aquilo que Santos (1993)

denomina “tempos rápidos”. Essa rapidez, velocidade, vertigem, personifica o processo de

“aceleração contemporânea que impôs novos ritmos aos deslocamentos dos corpos e o

transporte das idéias” (Santos, 1993:30).

A partir das reflexões de Santos (1993), poderíamos afirmar que no vale do Rio

Tocantins existem diferentes tempos, ou melhor, temporalidades (ritmos) desiguais: os

tempos ”rápidos” (hegemônicos) nos espaços “luminosos” e os tempos “lentos”

(hegemonizados ou subalternos) nos espaços “opacos”. Esses diferentes tempos se tornam

empiricizados através dos diferentes sistemas técnicos imprimidos no espaço a partir das

diferentes lógicas da divisão territorial do trabalho, bem como através dos diferentes modos

de vida.

Mas é importante destacar que a desigualdade de tempos (ritmos sociais) que se

traduz em tempos “lentos” e “rápidos” precisa ser vista como uma relação dialética e não

como dualidade, pois esses tempos não têm um valor absoluto, seus significados só podem ser

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revelados na relação de um com o outro e pelo uso concreto dos diferentes atores sociais. É

assim que, a partir de cada agente, de cada classe ou grupo social, se estabelecem as

temporalidades (...) que são a matriz das especialidades vividas no lugar (Santos, 2002:133).

A noção de tempo rápido se antepõe a um tempo lento. Aqui estamos falando de

quantidades relativas. De um lado, o que chamamos de tempo lento somente o é em

relação ao tempo rápido; e vice-versa, tais denominações não sendo absolutas. Essa

contabilidade do tempo vivido pelos homens, empresas e instituições será diferente

em cada lugar. Não há, pois, tempos absolutos. E, na verdade, o “tempo

intermediário” tempera o rigor das expressões tempo lento e tempo rápido (Santos

2002, p.267).

Portanto, esse processo tem diferentes ressonâncias. A instalação dessa nova

dinâmica na região criou de um lado os lugares onde predomina um tempo “rápido”, ligado

aos processos modernizadores da economia capitalista e a um modo de vida urbano e, de

outro lado, lugares com um “tempo lento” fora da órbita das novas formas de apropriação e

ocupação regional que continuam com modos de produzir e modos de vida tradicionais que

pouco se alteraram na medida em que experimentaram com menor intensidade os efeitos dos

processos de “modernização”. Nesses lugares permanece uma espécie de “tempo lento”, onde

predomina uma dinâmica econômica ligada à lógica mais introvertida e endógena da divisão

do trabalho e que tem como base o extrativismo e a pequena agricultura. Nessas áreas onde

predomina o “tempo lento”, o rio continua tendo uma importância fundamental para a vida

das populações que lá vivem, sendo o referencial central da “geograficidade” (organização

espacial, modo de vida), além de matriz da temporalidade (ritmo social) e do imaginário

(lendas, mitos, crenças, cosmogonias)

Essas diferentes experiências espaço-temporais produzidas pela dinâmica de

“modernização da região” resultaram em transformações e permanências que afetam o

significado social e cultural das práticas e representações de tempo e espaço, o que implica

em mudanças do significado das identidades socioculturais que nesse processo se alteraram,

se mesclaram e se diversificaram a partir de uma combinação específica de temporalidades,

concepções e vivências nos diferentes lugares

Portanto, entendemos que as diferenciações dos lugares do Baixo Tocantins é ao

mesmo tempo um produto de uma construção “sistêmica” das desigualdades _ principalmente

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aquela promovida pela (des)ordem econômica resultante da inserção desigual dos lugares

numa nova lógica de divisão territorial do trabalho, com elos e nexos mais extrovertidos e

globalizados, resultante da “modernização” dos grandes projetos, o que implica novas

espacialidades e temporalidades – e da re-criação de singularidades culturais próprias de cada

lugar através da diferentes experiências, vivências e identificações com o espaço.

3.4.OS “IMPACTOS” DA HIDRELÉTRICA, MOBILIZAÇÃO SOCIAL E A CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES.

A construção da hidrelétrica de Tucuruí acarretou intensos processos de

mobilizações forçadas e compulsórias, o que implicou em dramáticas des-territorializações.

Além desses problemas sociais, provocou ainda grandes impactos sobre os ecossistemas

locais, resultando em graves conseqüências ambientais. Ao perceberem a ameaça

representada pela expropriação de seus bens – terras, benfeitorias –, as populações rurais,

ribeirinhas e também urbanas empreenderam uma ação de r-existência como forma de

afirmação de sua sobrevivência física, social e política. E, desse modo, construíram a

identidade de “atingidos pela barragem” e a condição de sujeitos em luta por direitos e na

defesa de seus modos de vida.

Sob a orientação da Prelazia de Cametá e pela ação da Pastoral da Terra e dos

sindicatos dos trabalhadores rurais, além de outras instituições que atuavam nas assessorias,

essas populações travaram inúmeras lutas contra a ação autoritária da ELETRONORTE, que

ignorou as suas territorialidades e os seus modos de vida.

Assim, esse processo de luta derivou das profundas negligências da empresa em

relação aos impactos ecológicos e sociais causados pela hidrelétrica. Isso fica claro no que se

refere à postura da empresa em relação à área a jusante da Barragem. Segundo as informações

da CMB (2000), a ELETRONORTE considerou os impactos previstos para o trecho a jusante

de natureza “temporal e circunstancial”. Diante dessa perspectiva, as medidas tomadas pela

estatal foram no sentido de garantir a sobrevivência das populações ribeirinhas durante os dois

meses de interrupção do curso do rio através da implantação de “medidas transitórias

minimizadoras de impactos localizados”.

O relatório da CMB (2000), mostra ainda que a análise da documentação da época

revelava que dois objetivos orientaram as intervenções a jusante. O primeiro foi concebido

para evitar os efeitos diretos da redução do nível de água e garantir a sobrevivência das

populações ribeirinhas através do planejamento de medidas que assegurariam o suprimento de

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água, a assistência médica e o abastecimento alimentar. O segundo objetivo visava atenuar o

clima de tensão resultante dos boatos que circulavam entre a população sobre as

conseqüências do represamento do rio. No sentido de restabelecer a tranqüilidade, estabelecer

a confiança da população e acalmar os ânimos, a ELETRONORTE buscou recrutar lideranças

simpáticas ao projeto que pudessem ser aliadas na disseminação de informações

“tranqüilizadoras”.

Essa estratégia adotada pela empresa funcionou num primeiro momento no sentido

de produzir uma desmobilização das populações ribeirinhas. Além dessa ação intencional da

empresa, existia inicialmente entre as populações localizadas a jusante da hidrelétrica uma

grande receptividade à idéia da construção da hidrelétrica de Tucuruí, pois não se tinha

clareza das conseqüências ecológicas e sociais negativas que tal empreendimento implicaria,

visto que não se tinha feito qualquer discussão com a população no sentido de esclarecer

essas possíveis conseqüências negativas.

Concorriam ainda para este entusiasmo as notícias veiculadas pela mídia local e

nacional que anunciavam a construção da UHT como a chegada do progresso e do

desenvolvimento para a região, afirmando que a energia elétrica viabilizaria a implantação de

fábricas, de indústrias, criando novos postos de trabalho e melhorando assim as possibilidades

de geração de renda. Este imaginário baseado no “fundamentalismo do progresso” impediu de

início a capacidade de mobilização das populações a jusante.

Se diante das fortes pressões exercidas pela população atingida a montante

identificou-se uma mudança no comportamento da ELETRONORTE no que concerne à

implementação de política compensatória, o mesmo não ocorreu em relação à população a

jusante, com a qual nada foi negociado. A área a jusante foi praticamente ignorada por estas

políticas, mesmo quando foram comprovados os impactos de forma direta ou indireta que

provocaram importantes alterações nas formas de vida e nos meios de sobrevivência das

populações locais.

Diferentemente da previsão feita pela ELETRONORTE, segundo a qual os impactos

da UHT que incidiriam na área a jusante seriam de baixa intensidade e de natureza

circunstancial, o relato dos moradores demonstra que após o fechamento da barragem e a

formação do lago ocorreu uma alteração na dinâmica das várzeas, o que se refletiu na

produção existente, a exemplo do cacau nativo da região do Baixo Tocantins. Essa atividade

empregava muita gente no período da entressafra da pesca, mas a partir das alterações na

dinâmica das várzeas baixou o nível de produção e algumas áreas praticamente

desapareceram.

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Esse mesmo processo pode ser verificado também em outras culturas, como a do açaí

e da andiroba, entre outras, além da pesca, como já foi ressaltado anteriormente. Além disso,

diversos estudos sobre a qualidade da água desenvolvidos na área, especificamente entre 1986

e 1988, revelaram problemas graves para o abastecimento da população, em conseqüência das

alterações na característica físico-química da água e da contaminação biológica em todo o

trecho a jusante de Tucuruí, à exceção da vila residencial dos funcionários da

ELETRONORTE. A poluição provocou ainda doenças como meningite no Município de

Baião, gastrite, diarréia, infecção intestinal e problemas uterinos (muitos casos de aborto) em

outros municípios (CMB, 2000).

Ainda podemos verificar que para além de uma dimensão mais ecológica que afetou

os ecossistemas e a saúde das populações ribeirinhas, a construção da hidrelétrica de Tucuruí

atingiu em várias dimensões o trabalho e o modo de vida de tais populações, pois:

(...) ao alterar as esferas da produção altera profundamente a vida material e

cultural. Sua privação corresponde à negação desse modo de vida, de suas relações

sociais que estruturam e dão sentido às concepções sobre o uso da terra, sobre a

apropriação da natureza, sobre sua concepção de mundo (Castro: 1989: 54)

No início, todavia, a maioria da população local não associava os seus problemas ao

fechamento do rio. Enfrentando situações de dificuldades de toda ordem, muitos pescadores

deixaram a família e migraram para outros lugares em busca de trabalho, o que gerou

conflitos entre os pescadores desses lugares. Contudo, aos poucos, houve um fortalecimento

da conscientização dos impactos negativos da barragem do rio, e essa crescente

conscientização levou as populações “atingidas” a começarem a se organizar para

reivindicarem os seus direitos.

Contrapondo-se à política de relocação e de indenização da ELETRONORTE e

percebendo-se esvaziadas em direitos considerados por elas como legítimos, as populações

rurais e ribeirinhas que sofreram com a construção da barragem do rio Tocantins começam a

tomar consciência da necessidade de se expressar através de uma outra linguagem, e assim

proclamam sua insatisfação, rompendo o silêncio e a passividade (Castro, 1989):

A experiência de se sentir excluído de decisões que envolviam novos usos de suas

terras – agravadas ainda pelas formas autoritárias e violentas que revestiam as

atitudes daquela empresa -, foi fundamental no entendimento de estarem numa

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situação limite. O que estava sob ameaça não era apenas a reprodução do seu

sistema de vida, mas a própria dignidade. Percepção que lentamente ganhou sentido

e amplitude política via processo de organização, contando com o apoio decisivo

das estruturas sociais realimentadas pelas CEBs. Os trabalhadores interiorizaram

um discurso critico que veio a desempenhar um papel importante na apreensão de

sua experiência concreta (Castro, 1989:53).

Contudo, assim como os impactos foram diferenciados na área a montante e a

jusante, a mobilização também foi diferenciada e desigual. Conforme Castro (1989), nos anos

de 1987 e 1988 os espaços de luta foram constituídos separadamente a montante e a jusante,

embora incorporassem um elemento comum, que era a poluição das águas. Somente em fins

de 1988 foram tomadas decisões concretas de unificação do movimento. A CUT teve um

papel importante nesse processo, apesar de certas fragilidades. Assim, o encontro das nações

indígenas em Altamira (fevereiro de 1989) foi um momento estratégico em que ficou

consolidada a intenção de encontros mais amplos para a construção de uma estratégia comum

na Amazônia, tendo em vista a ação da ELETRONORTE em toda região.

No que tange aos trabalhadores rurais a jusante, estes foram “atingidos” não pela

apropriação direta e imediata da terra, mas pela impossibilidade de reproduzirem seu modo de

vida e de trabalho. Contudo, gradativamente, a consciência de que eram também afetados

pelos “impactos” da barragem contribuiu para que essas categorias de trabalhadores da região

a jusante se reconhecessem na trajetória de “atingidos por barragens”, mobilizando-se na

defesa de sua identidade (Castro, 1989).

Foi a partir dessa politização da condição de “atingidos” e da aliança com as pessoas

afetadas a montante, que já estavam num nível de organização e politização mais elevado, que

o movimento a jusante da barragem começou a fazer reivindicações e participar de várias

manifestações e protestos contra a execução da obra que estava prejudicando as suas vidas

cotidianas.

Apesar de certa demora e lentidão na organização e mobilização, o movimento a

jusante revela aos poucos significativos avanços, já que no processo de luta os pescadores e as

populações locais tomaram consciência e começaram a perceber que o desaparecimento do

peixe e as alterações no regime do rio e no ciclo de produção de frutas nativas não eram

decorrentes do castigo de Deus, de uma ordem natural, mas resultante dos efeitos da

construção da barragem do rio Tocantins. A partir daí têm início a politização da sua condição

de ribeirinho e a afirmação de uma identidade de “atingidos”.

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Assim, sob a liderança dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e das CEBs,

em meados da década de 1980 as populações ribeirinhas a jusante começam a manifestar suas

inquietações sobre os “impactos” da barragem. Isso levou a um intenso processo de

problematização de suas condições sociais e à constituição de um campo de politização sobre

a condição de ribeirinhos e de “atingidos”. Esse processo ocorre:

Através de inúmeras formas de ação e de reflexão (reuniões, trabalho de comissões,

elaboração de documentos, debates, assembléias gerais, passeatas, acampamentos

etc), emerge o movimento de politização, quando eles elaboram e constroem um

discurso a partir de suas condições reais de vida enquanto pequenos produtores

rurais atingidos pela barragem. Incorporam a linguagem da prática política que ao

mesmo tempo afirma sua identidade e nega o discurso instituído do Estado.

Diferentemente deste, o discurso dos atingidos é percebido como legitimador da

busca de cidadania e valorização de iniciativas coletivas (Castro: 1989: 54).

Atentos a esses processos, as STRs, as ações comunitárias e a Prelazia de Cametá

articularam formas de pressão, trabalhando politicamente a identidade “de atingidos por

barragem” a jusante (Castro,1989). Trata-se, na nossa compreensão, de um processo de

construção de uma consciência sócio-espacial de pertencimento, tendo o rio como espaço de

referência identitária e a condição de “atingidos” como motivação fundamental na

constituição dessas populações como sujeitos políticos que emergem na cena pública.

Esse processo de mobilização a jusante teve como marco a realização do I Congresso

de Pescadores do Baixo Tocantins, ocorrido em Cametá em agosto de 1992, que teve como

objetivo principal despertar a consciência da população local, especialmente a dos pescadores,

para os problemas que estava enfrentando. Além desse encontro, outros ciclos de protestos

ocorreram, seja em Belém, em Tucuruí ou em outros municípios, em especial os chamados

“grito da terra” organizados por um conjunto de entidades ligadas ao sindicalismo rural e os

“encontros de anilzinho” promovidos pela prelazia de Cametá durante toda a década de 1980

eo início da década de 1990. Esse conjunto de mobilização buscou sensibilizar a opinião

pública e o fortalecimento da identidade do próprio movimento, a identidade de “atingidos”.

Nesse contexto, segundo Castro (1989), foi fundamental o trabalho da CPT que,

tomando como base organizativa a comunidade, reforçou as atividades de conscientização

política sobre os problemas concretos enfrentados pelas comunidades no seu cotidiano. Nesse

processo se dava um complexo processo de organização política e de afirmação identitária

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envolvendo “um misto de simbolismo religioso e reflexão sobre o real” que se tornaram

traços fortes na constituição do movimento camponês nessa região da Amazônia. Na

construção da consciência e da identidade política “mesclam-se aos rituais religiosos

(procissões, missas...), os cânticos de luta pela terra e pela conquista da cidadania afirmando

com veemência o desejo de ‘libertação dos povos’” (p.67).

Com essas vivências o movimento dos expropriados formulou propostas inicialmente

de caráter geral sobre a legalidade de seus direitos, aprendendo a analisar

politicamente suas condições concretas com base em categorias estruturadas em

princípios doutrinários da “igreja dos pobres”, tais como: povo, solidariedade,

comunidades, justiça, igualdade etc e que, inegavelmente, contribuíram com a

recriação do nós, da união que iria constituir a força e a arma do movimento. Essas

práticas estão presentes nas comunidades dos municípios abrangidos pela Prelazia

de Cametá, a montante e a jusante da barragem. Esse processo de politização

enriqueceu-se com as experiências dos municípios próximos, no sul/sudeste do Pará,

região marcada há mais tempo por intensos conflitos (camponeses, posseiros,

garimpeiros, extratores, índios) e em decorrência, com um grau considerável de

experiências nos confrontos políticos (Castro,1989: 67).

O processo de formação da identidade dessas populações envolve mobilização

política, investimento emocional e crença religiosa numa ampla rede de sociabilidades densa

de interações, de trocas emocionais e afetivas que articulavam o movimento tanto a montante

quanto a jusante É neste contexto que o movimento ganhou mais legitimidade social nas

bases, sobretudo a partir do momento em que a população constatou que os benefícios

prometidos não se concretizaram com a formação do lago e o funcionamento da hidrelétrica.

Nesse sentido, Castro acrescenta que:

A construção da identidade “atingidos por barragem” no Tocantins traduz um longo

exercício na aprendizagem da prática política, não poucas vezes pela pedagogia do

ensaio e erro, descobrindo as ações coletivas, os elementos unificadores nas

situações concretas de conflito. Os direitos à terra que ocupam – ou de que são

proprietários - e ao trabalho nela incorporado, encerra os elementos-chave mais

imediatos que reforçam os traços políticos culturais identificadores e mobilizadores,

sobretudo no reconhecimento de que as conquistas dependem de como serão

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encaminhada as ações coletivas. Processo que traduz a própria constituição dos

sujeitos políticos agindo sobre condições determinadas interna e externamente ao

seu meio (Castro, 1989: 68).

Nesse processo de construção de uma capacidade organizativa e de uma identidade

política, a mediação política de atores sociais externos foi fundamental. Estes mediadores

eram entidades governamentais e não governamentais: Igreja (religiosa), dirigentes sindicais

(sindical), intelectuais locais (com ou sem vinculação partidária). Essa rede foi decisiva para o

fortalecimento do movimento. Desse conjunto destaca-se:

A Comissão Pastoral da Terra que manteve um serviço constante de apoio, a

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG que permitiu

o intercâmbio de experiências com outros movimentos de atingidos, como, por

exemplo, o movimento de Itaparica e Itaipu. Essas instituições mediadoras deram

sustentação à organização e à constituição do Movimento de Resistência,

inicialmente manifestado através da Comissão dos Expropriados, depois da

Comissão dos Atingidos pela Barragem (CMB, 2000).

Nesse processo de lutas uma das maiores conquistas foi a construção da linha de

transmissão que permitiu o fornecimento da energia elétrica produzida pela barragem do rio

para os municípios do Baixo Tocantins a jusante como Baião, Mocajuba, Cametá, e Oeiras do

Pará, entre outros, pois apesar dos danosos impactos produzidos pela construção da

hidrelétrica estes municípios ficaram mais de uma década após o funcionamento da

hidrelétrica sem ter acesso à energia, enfrentando graves problemas de fornecimento de

energia devido ao colapso do sistema termoelétrico que os abastecia. A conquista do acesso à

energia envolveu uma intensa luta dos movimentos sociais que atuaram através de protestos,

mobilizações e ocupações, bem como pela pressão ao governo através de parlamentares e

lideranças religiosas etc.

Mais recentemente os movimentos sociais adquirem uma outra conquista

significativa, pois a ELETRONORTE, depois de quase duas décadas, admitiu os impactos

causados pela barragem do rio, abrindo a partir de 2002 um amplo processo de negociação e

construção de um plano de recompensas para os municípios a jusante, o chamado PPDS-Jus

(Plano Popular de Desenvolvimento Sustentável da Região A Jusante da UHT). Nele A

ELETRONORTE assume sua responsabilidade social pensando, construindo e conduzindo o

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desenvolvimento regional juntamente com as populações da região a jusante da UHE Tucuruí

(PPDS-Jus, 2003). Na redação final do documento é definido que:

O PPDS-Jus se apresenta como um plano viável para o desenvolvimento sustentável

da região a jusante da barragem de Tucuruí, se estendendo num horizonte de 20

anos. Implica em conhecer os dados, índices, valores, condições sócio-econômico-

políticas do momento atual, que sob a ação dos agentes de transformação apontadas

pelo Plano sofrerão modificações capazes de instaurar um novo cenário ao longo

dos projetados 20 anos. Esse futuro novo cenário será atingido por etapas

sucessivas, com mensuração e acompanhamento técnico que garantam a correta

condução e direcionamento deste plano popular (PPDS-Jus, 2003:11).

Trata-se de um “amplo pacto social, assinado entre prefeitos municipais, vereadores,

movimentos sociais organizados, instituições de pesquisas, religiosas, órgãos públicos e

privados, ONG´s, comunidades indígenas e quilombolas etc” (PPDS-Jus, 2003:7). Contudo,

apesar do avanço na participação democrática, na construção participativa das demandas,

efetivamente ainda não se pode ver resultados significativos desse plano.

Mas, para além dessas conquistas mais visíveis, um aspecto positivo fundamental

nesse processo foi, indubitavelmente, o grande acúmulo de experiências e um grande

aprendizado político proporcionado aos movimentos sociais. Isso implicou na construção de

uma densidade histórica e de legitimidade política desses movimentos, proporcionando a

emergência de uma nova cultura política, fruto da construção de “políticas culturais” que

afetaram as tradicionais formas de fazer política, bem como o deslocamento e a fratura das

velhas representações e dos discursos sobre a identidade dessas populações, pautados numa

visão racista e colonialista que se personifica no estereótipo do “caboclo”; nesse processo

emergem novas representações e discursos que apontam para horizontes emancipatórios a

partir da produção de novas identidades políticas.

Esse processo vai influenciar de maneira decisiva a construção de uma identidade

“caboclo-ribeirinha” em Cametá, visto que esse processo de politização da condição

ribeirinha vem contribuindo na afirmação de uma consciência sócio-espacial de

pertencimento, como veremos de maneira mais aprofundada no próximo capítulo.

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4. CAPITULO: PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMETÁ

Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem á luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia em no momento em que desaparecem os ruídos da refrega.

(Zigmunt Bauman)

No capítulo anterior indicamos a importância do rio como espaço de referência

identitária e o seu papel histórico na construção do modo de vida ribeirinho com seus saberes,

fazeres e sociabilidades próprias pautados em uma temporalidade, uma territorialidade e numa

matriz de racionalidade econômica e ambiental muito própria de uso-significado da natureza.

Contudo, esse modo de vida passou por profundas mudanças e reestruturações a partir do

avanço da fronteira demográfica e econômica materializada na construção da hidrelétrica de

Tucuruí que “explodiu” a estrutura espaço-tempo da região do Baixo Tocantins, diferenciando

as temporalidades e as territorialidades.

Esse processo de mudanças, mas também de permanências implicou em uma nova

postura política das chamadas populações ribeirinhas, visto que os impactos ecológicos e

sociais que afetaram diretamente a capacidade de sobrevivência e reprodução social dessas

populações que acabaram colocando como imperativa a necessidade de organização,

mobilização e luta dessas populações pela garantias dos seus direitos. Isso implicou em

inúmeras formas de antagonismos e de constante reinvenção da capacidade de r-existência

frente à avassaladora modernização conservadora e excludente que sofreu a região.

Nesse processo de luta e r-existência vem se construindo uma consciência

socioespacial de pertencimento através de uma progressiva politização do modo de vida

ribeirinho, o que implica na afirmação de um discurso identitário que valoriza a condição de

ribeirinho. Contudo, isso não significa que a construção da identidade ribeirinha em Cametá

seja fruto de uma reação automática ao processo de transformação da região do Baixo

Tocantins e pela construção da UHT. O processo de construção do discurso identitário

ribeirinho é muito mais complexo.

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Entender as condições de emergência de uma identidade ribeirinha em Cametá

pressupõe entendermos a dimensão do vivido (experiências culturais, seus modos de vida,

seus saberes e fazeres vividos cotidianamente) além da dimensão do concebido

(representações e ideologias presentes nas imagens, discursos, planos e teorias sedimentados

historicamente pela mídia, pela visão da classe política, pelas diferentes frações do capital

nacional e internacional e pelos planejamentos do Estado e pela ciência), isso implica em

analisarmos processos históricos específicos numa escala local, bem como aqueles de caráter

mais geral que se realizam em escalas mais amplas, pois se trata de processos com extensões e

durações distintas, que se entrelaçam na produção de uma consciência socioespacial de

pertencimento da condição ribeirinha.

Na tentativa de compreender essa complexa relação entre escalas (do local ao global)

e dimensões (vivido e concebido) no primeiro capítulo analisamos numa escala mais ampla

processos mais gerais da construção das identidades territoriais na Amazônia, já no terceiro

capítulo focamos nos processos e nas condições para a emergência de uma identidade

ribeirinha a partir das transformações na escala da região do Baixo Tocantins. Nesse último

capítulo nos concentraremos na escala local, tendo como propósito entender como vem se

dando a construção de uma identidade “caboclo-ribeirinho” no município de Cametá. Para

realizamos tal empreitada, dividiremos em três partes esse capítulo: Inicialmente discutiremos

como se construiu historicamente a afirmação do poder e da hegemonia das famílias

oligarquias no município de Cametá e como esses grupos foram responsáveis pela afirmação

de um discurso histórico e identitário dos “homens notáveis”, que nega as memórias, a cultura

e a identidade do “caboclo-ribeirinho”.

No segundo momento do capítulo trataremos de entender como vem sendo

construída de maneira relacional e contrastiva uma identidade ribeirinha em Cametá, através

de um processo de politização da cultura ribeirinha e da construção de uma consciência

socioespacial de pertencimento, o que tem implicado na constituição de novos sujeitos

políticos que emergem das lutas contra as formas de exploração e dominação a nível local e

contra os processos de “modernização” a nível regional. Esse processo se materializa através

de uma intensa organização política das populações ribeirinhas, revelando uma grande

capacidade de protagonismo das mesmas. Por fim discutiremos os entrelaçamentos e as

ambigüidades do significado da uma identidade ribeirinha como uma “identidade cabocla”

verificando as suas raízes e rotas.

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4.1. CAMETÁ “TERRA DOS NOTÁVEIS”, “CIDADE INVICTA”: FORMAÇÃO HISTÓRICA E FUNDAÇÃO MITOLÓGICA.

A história do município de Cametá tem sido a narrativa de uma elite mercantil, uma

oligarquia composta por famílias “tradicionais” (Parijós, Mendonça, Peres, Valente, Gaia,

Pereira, Francês, entre outras) que historicamente dominaram a economia, a política local e a

produção do discurso histórico oficial e, como conseqüência, a produção e o “enquadramento

da memória coletiva” (Pollak, 1989). Os políticos, os artistas e os intelectuais desta elite têm

sido os “guardiões” da memória e da tradição cametaense.

Este processo de enquadramento e disciplinamento da memória coletiva ocorrem por

meio de uma dialética de ditos e não-ditos, falas e silêncios. Nele se dá voz e visibilidade para

a trajetória de um determinado grupo social (elite, oligarquia) e, ao mesmo tempo, se dá a

produção da não-existência e da invisibilidade de outros (“caboclos”, população pobre,

mestiça, rural e ribeirinha). Assim, ocorre a valorização de determinadas datas, fatos e

personagens históricos; a construção de monumentos e paisagens simbólicas que afirmam

significados e valores de um determinado grupo social, cuja importância é incessantemente

relembrada pela ”invenção de tradições” que procuram delimitar uma determinada

configuração da “identidade cametaense”. Ao afirmarem a memória coletiva de seu grupo,

estruturada com suas hierarquias e classificações que definem o que é comum a este grupo e o

que o diferencia dos outros, fundamentam e reforçam os sentimentos de pertencimento e as

fronteiras sócio-culturais e, consequentemente, as identidades (Pollak, 1989).

Neste sentido, a (re)construção da identidade hegemônica em Cametá envolve

escolher dentre os múltiplos eventos e lugares do passado aqueles capazes de fazerem sentido

na atualidade. Assim, a memória é um elemento fundamental para reforçar a coesão social,

não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, formando “comunidades imaginadas”,

"comunidades afetivas" (Pollak, 1989). É o que está expresso, por exemplo, nas idéias de

“Cametá cidade invicta”, “terra dos Romualdos” “Cametá terra dos notáveis”.24

Estas expressões ultrapassam muito sua literalidade referencial, pois na verdade são

sínteses de uma complexa relação entre história e mito, ou como bem coloca Chauí (2004),

entre a formação histórica e a fundação mitológica. Tais processos se entrelaçam na narrativa

24 Trata-se da exaltação de homens cametaenses que conseguiram prestígio e poder na política e no clero. São os “filhos ilustres”, “os notáveis”. Esses homens são fortemente evidenciados na memória coletiva, impregnando o imaginário social a ponto de se forjar expressões do tipo “Cidade dos Notáveis”, ou ainda “Terra dos Romualdos”; neste último caso, estamos nos referindo aos dois mais venerados “notáveis”: D Romualdo de Seixas e D. Romualdo Coelho, que foram expoentes na política e no clero durante o século XIX.

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e na construção da identidade legitimadora que durante muito tempo foi hegemônica em

Cametá e que dava visibilidade a trajetória histórica das famílias oligárquicas deste município.

Para compreendemos a complexidade desse processo vale uma rápida incursão

teórica sobre o papel do mito fundador na construção do discurso identitário. Segundo Silva

(2000), dois movimentos acompanham todo discurso identitário: de um lado, este discurso

procura ser fixo e estável, institucionalizado e naturalizado, duradouro e perene. Por outro

lado, este mesmo discurso é instável, cambiante e deslizante, sujeito a des-locamentos,

desestabilizações e re-significações. Os mecanismos pelo quais estes dois movimentos se

materializam no discurso identitário são variados. No que se refere à tentativa de se estabilizar

e, não raras vezes, de “essencializar” uma identidade vale destacar a construção dos chamados

mitos fundadores.

Fundamentalmente um mito fundador remete a um momento crucial do passado em

que algum gesto, algum acontecimento, em geral heróico, épico, monumental, em

geral iniciado ou executado por uma figura “providencial”, inaugurou as bases de

uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os fatos são “verdadeiros” ou

não; o que importa é que a narrativa fundadora funciona para dar à identidade a

liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as

quais ela não teria a mesma e necessária eficácia (Silva, 2004:85).

Os mitos fundadores são fundamentais na construção das identidades, em especial de

identidades hegemônicas e legitimadoras das relações de poder sedimentadas e

institucionalizadas, pois eles têm a capacidade de construir os símbolos, personagens e

estruturas de sentimentos que produzem o consenso, a ação e a mobilização, como é o caso de

Cametá.

Para compreendermos o que é e, sobretudo, como funciona o mito fundador, vale

destacar a sua natureza e estrutura como uma modalidade discursiva específica, fruto de uma

temporalidade específica. Neste sentido, Marilena Chauí (2004) constrói uma conceituação

entrelaçando os sentidos etimológico, antropológico e psicanalítico do mito. Para a autora, o

etimológico seria a narração pública de feitos lendários da comunidade, já o antropológico

remeteria à capacidade desta narrativa em ser a solução imaginária para tensões, conflitos e

contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade, e na

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acepção psicanalítica, o mito implicaria num impulso à repetição de algo imaginário, que cria

um bloqueio à percepção da realidade e impede de lidar com ela (Chauí 2004:9).

A partir deste complexo entrecruzamento de sentidos, o mito fundador segundo,

Chauí (2004:9) “impõe um vinculo interno com o passado como origem, isto é, com um

passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não

permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente como tal”:

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-

se, novas linguagens, novos valores e novas idéias de tal modo que, quanto mais

parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. (Chauí, 2004:9).

Para explicitar melhor a natureza e a estrutura do mito fundador Chauí (2004) propõe

a fecunda e elucidativa distinção entre formação e fundação. Para a autora, quando os

historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações econômicas, sociais e

políticas que produzem um acontecimento histórico, mas à transformação e, portanto, à

continuidade ou à descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos

temporais. Neste sentido, complementa: “Numa palavra, o registro da formação é a história

propriamente dita, ai incluídas suas representações, sejam aquelas que concebem o processo

histórico, sejam as que ocultam (isto é, ideologias)”(Chauí, 2004:9).

Diferentemente da formação, a fundação se refere a um momento passado

imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo;

isto é, a fundação visa algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso

temporal que lhe dá sentido (Chauí, 2004):

A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num presente que

não cessa nunca sob a multiplicidade de formas e aspectos que pode tomar. Não é só

isso. A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a

imanência do momento fundador: a fundação aparece como emanando da sociedade

e, simultaneamente, como engendrando essa própria sociedade da qual ela emana

(Chauí, 2004:9).

Assim, podemos concluir que a fundação mitológica tem uma natureza

transcendental e metafísica, uma temporalidade marcada por um caráter trans-histotórico, e se

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manifesta de maneira cíclica e, segundo Hall (2003), têm uma estrutura de uma dupla

inscrição:

Seu poder redentor se encontra no futuro, que ainda esta por vir. Mas funciona

atribuindo o que predizem a sua descrição do que já aconteceu, do que era no

princípio. Entretanto, a história, como flecha do tempo é sucessiva, senão linear. A

estrutura narrativa dos mitos é cíclica (p.30).

É a partir desta complexa relação entre formação histórica e fundação mitologia que

muitas vezes são construídas, configuradas e instituídas as identidades. E é a partir desta

relação dialética que queremos entender a construção da “identidade dos notáveis” em

Cametá.

Assim, precisamos mergulhar na formação histórica do município de Cametá para

descobrir e revelar as contradições da fundação mitológica. No que se refere à formação

histórica, mesmo que de maneira breve, queremos entender as “marcas” do processo de

colonização, as formas de exploração econômica, as relações de dominação política e

dominação cultural e ideológica na construção da configuração da identidade dos “notáveis”.

Já no que se refere à fundação mitológica, que sustenta a configuração da “identidade dos

notáveis”, queremos verificar a “invenção de tradições”, o mito de origem e o mito do povo

puro, a invenção de símbolos e heróis25.

4.1.1 Formação histórica.

O município de Cametá é oriundo do processo de povoamento da Amazônia efetuado

pelos portugueses, nos séculos XVII e XVIII, sob uma lógica geopolítica de defesa do

território contra outros povos invasores. Como a região Amazônica não se inseriu de forma

imediata e decisiva na lógica mercantilista do Estado português, o qual privilegiava outras

parcelas do território brasileiro – que tinham recursos mais estratégicos para aquele momento

da emergente economia capitalista – a vasta região ficou secundarizada nos interesses da

Coroa Portuguesa.

25 Esses elementos são inspirados na proposta de Hall (1997) para entender a construção na idéia de nação como dispositivo discursivo que envolve um conjunto de elementos como mito fundador, a invenção de tradições, a idéia de um povo puro ....etc.

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A região despertou interesses de outras empresas colonizadoras: os franceses, os

espanhóis, os ingleses, entre outros. Havendo a possibilidade de perda deste território, o

governo lusitano optou pela colonização a partir de uma visão estratégica de defesa, criando

fortes e fortalezas, sobretudo no vale amazônico, definindo e controlando o acesso dos fluxos

de entrada e saída pelos rios.

Assim, a estruturação e a configuração da rede de núcleos populacionais e, mais

tarde, da rede urbana na região, está intimamente ligada aos rios, e é o padrão de drenagem da

rede hidrográfica o principal elemento norteador das relações entre os lugares. Nessa

perspectiva, o rio torna-se o principal elemento da circulação do espaço regional e um fator

essencial na geopolítica de defesa do território dos colonizadores portugueses.

Um desses rios, que se constituía como verdadeiro portal de aceso à região, ligando-a

ao território nacional, era o rio Tocantins. É na margem esquerda deste rio que, após a

fundação de Belém, os colonizadores estabeleceram um núcleo que daria origem à cidade e ao

Município de Cametá.

Segundo Moura (1986), esse processo de colonização que se dá pela “força da

espada, da pólvora e da cruz”, e os interesses mercantilistas e cristãos chegam juntos ao solo

da Amazônia. Em 1617, Frei Cristóvão de São José se estabelece às margens do Tocantins e

ergue o maior símbolo de uma ordem sóciocultural e territorial: uma ermida (igreja), grafando

na paisagem as marcas da força do colonizador, e por meio da catequese imprimindo o

“processo civilizatório” nos índios da tribo Camutá. Isso se materializa no domínio dos

gentios e na estruturação do núcleo populacional.

Segundo Pompeu (2002) a donataria de Cametá foi concedida em 14 de dezembro de

1633 a Feliciano Coelho de Carvalho por ato de doação de seu pai Francisco Coelho de

Carvalho, então Governador do Maranhão e do Grão-Pará. A sua extensão territorial foi

marcada por Carta Régia de 26 de outubro de 1637. Desta maneira o povoado é elevado à

categoria de vila, com o nome de Vila Viçosa de Santa Cruz de Cametá, cuja instalação

aconteceu em 24 de dezembro de 1635.

Moura (1986) afirma que a vila permaneceu sem grandes mudanças, como era típico

da região na época. As atividades do comércio, do extrativismo, da pequena agricultura, da

administração e da catequese constituíam-se como principais funções do núcleo populacional.

Já no século XIX, a 24 de outubro de 1848, a vila é elevada à categoria de cidade e

experimenta um relativo “desenvolvimento urbano”, marcado pela transformação do espaço

por obras de infra-estrutura que demonstravam uma certa modernização, o que implica em

um grande destaque da cidade na região Amazônica.

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As mudanças da condição de Colônia para Império e deste para Republica pouco

alteraram as relações sociais e a vida cotidiana da maioria da população na Amazônia, e mais

especificamente de Cametá. Ocorre que, de uma forma mais geral, a Amazônia ficou fora do

circuito de influência do centro do poder nacional, estruturando-se a partir de uma lógica

própria ou sendo influenciada mais decisivamente por suas relações internacionais, em

especial com a Metrópole portuguesa.

Esta situação, de um cotidiano de “inércia”, é assim descrita por Moura apud

Pompeu (2002, p.27):

Daí em diante, em cerca de quase dois séculos, a história da Vila de Santa Cruz

passou quase ignorada num remanso da paz doméstica, por entre o labor dos

lavradores de mandioca, milho, arroz, café dos plantadores de cacau e algodão, de

que o distrito começou a se mostrar sáfaro e dos extratores de óleo de copaíba e

azeite de andiroba, que tanto abundavam nas matas vizinhas.

A economia cametaense historicamente esteve baseada no extrativismo de produtos

tais como: cacau, andiroba, ucuúba, castanha, borracha, açaí, palmito, na pesca e na

agricultura de subsistência. Estas atividades constituíram, ao longo da história do município,

os meios de sobrevivência para a maioria da população, assim como a fonte de lucros para

uma elite mercantil, que historicamente tem explorado as populações rurais e ribeirinhas via o

mecanismo de aviamento, o que resultou num contraste social marcante: de um lado, a

permanência da maioria da população nas ilhas, povoados e vilas vivendo em precárias

condições. De outro, as famílias de comerciantes que viviam na cidade e ostentavam riqueza.

A lógica de funcionamento da economia extrativa em Cametá estava pautada no

sistema de aviamento, o qual era mantido por comerciantes e empresários quase sempre

descendentes de estrangeiros (portugueses, turcos, libaneses, judeus etc), e, muito raramente,

por nativos da região tocantina egressos do extrativismo. Segundo Souza (2002):

(...) era comum a ação integrada de uma família ou de um grupo de estrangeiros,

compatrícios, comerciantes que estabeleciam a cadeia de aviamento entre as ilhas, a

cidade de Cametá, a região de terra firme e a cidade de Belém. Esses grupos eram

responsáveis, em Cametá, pela cadeia de circulação dos produtos extrativos e pelo

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abastecimento dos seringais com os produtos necessários à reprodução social dos

camponeses ribeirinhos extratores de borracha (Souza, 2002:55).

Segundo Souza (2002), esse sistema de exploração e circulação dos recursos naturais

em Cametá possibilitou a reprodução social dos camponeses ribeirinhos e a formação de uma

elite mercantil que sustentou o aviamento, em torno do qual se tornou possível a aquisição de

outros bens, além de terras para o extrativismo vegetal. O referido autor descreve o

funcionamento desse sistema em sua dinâmica sócio-geográfica.

Os produtos importados, trazidos das casas aviadoras de Belém para Cametá e que

se destinavam ao abastecimento das populações das ilhas, eram fornecidos por um

irmão, um parente, ou compatrício, comerciante que estabelecia residência nas

ilhas, às margens de um rio, nas proximidades da área coletora de borracha e de

outros produtos comercializáveis. Ali eram construídos verdadeiros casarões, que

funcionavam como residências e pontos comerciais no mesmo espaço físico. Por se

tratar de área sob a incidência da maré, eram construídas casas elevadas do solo

sobre os pilares de madeira e ligadas ao rio por um grande trapiche, onde

atracavam as embarcações com mercadorias para o abastecimento dos camponeses

extratores e com produtos da floresta trazidos para o comerciante. Esses grandes

comércios eram pontos de abastecimento das famílias de camponeses, ribeirinhos e

extratores, e ponto de coleta dos produtos de interesse de comerciantes (Souza,

2002:63).

O sistema de aviamento possibilitava a agregação de valor não na esfera da

produção, mas, sobretudo, na esfera da circulação de produtos, na qual o valor agregado

ficava com o comerciante, pois ele era o agente que controlava a cadeia de circulação de tais

produtos. Assim, de um lado o sistema de aviamento possibilitou a criação de uma elite

comercial afortunada em Cametá, de outro este sistema resultou na formação de amplas

camadas de camponeses pauperizados, tanto na região das ilhas quanto na região de terra

firme (Souza, 2002:63).

Esta lógica de exploração econômica das populações rurais e ribeirinhas em Cametá

também se materializava na constituição e na configuração das formas de dominação

expressas no poder político local, pois as famílias tradicionais de comerciantes normalmente,

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também compunham a elite política. Aliás, a própria lógica do aviamento forjava relações de

compadrio e lealdade política, visto que neste sistema de trabalho e troca em torno do qual

estruturava a relação patrão-cliente, a ausência do dinheiro sob o controle do camponês

funcionava como uma forma de atribuição de poder ao comerciante-aviado-patrão, pois

gerava uma total dependência do camponês/extrator em relação ao comerciante:

Embora cotidianamente o ribeirinho não precisasse de dinheiro para sobreviver,

porém em situação de desespero (doença ou morte) o dinheiro era indispensável. E,

nesse caso, somente o comerciante poderia ajudá-lo. O estreitamento das relações

entre o camponês ribeirinho e o comerciante criava em ambos uma sensação de

segurança: para o comerciante gerava expectativa de ter um trabalhador e cliente

leal; para o extrator gerava a expectativa de poder dispor de uma “ ajuda” – como

retribuição de lealdade- em dinheiro ou em forma de serviço. (Souza, 2002:59-60).

A relação baseada na lealdade, no compromisso e na troca que ocorria no nível

econômico era sacramentada, sobretudo no âmbito religioso, por meio das relações de

compadrio que geravam o compromisso e a lealdade entre o afilhado e o padrinho. Esse

compromisso era também transposto para o domínio do político, o que gerava a expectativa

de reciprocidade entre o eleitor e o candidato a um cargo de poder na esfera publica. Era

muito comum os casos de comerciantes, grandes proprietários, aviadores e políticos

convidados para serem padrinhos de batismo, crisma ou casamentos de filhos e parentes

ribeirinhos (Souza, 2002).

Como somente estas oligarquias tinham acesso à educação e aos meios da cultura

institucionalizada, elas também constituíam a elite intelectual do município. Era comum as

famílias tradicionais mandarem seus filhos estudarem em Belém, no Rio de Janeiro e até na

Europa. Muitos destes cametaenses, filhos da elite mercantil, que formavam a oligarquia

política, alcançaram altos postos no clero e na política regional e nacional, e se tornaram

“homens notáveis”. Este acúmulo de poder econômico, político e simbólico se materializou

na construção de uma narrativa histórica do município que é a memória dos “notáveis”, com

os seus mitos fundadores e seus símbolos que tentam impor toda um “magma de

significações” na configuração da identidade cametaense como a “identidade dos notáveis”.

Uma identidade branca, urbana e rica.

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Essa história e essa identidade hegemônica, legitimadora das formas de exploração e

dominação social, forjar-se pelo silenciamento e pela subalternização da história, da memória

e da identidade das populações pobres, mestiças, rurais e ribeirinhas que tinham sua

identificação marcada historicamente pelo discurso colonialista, fundamentado no estigma e

no estereótipo do “caboclo”; a alteridade, a diferença subalternizada e subsumida na

identidade do “notável”

Este processo de exercício de enquadramento e disciplina da memória na construção

da identidade e da hegemonia de um determinado grupo social, no caso de Cametá as

oligarquias familiares (os “notáveis”), se dá pelo processo que Williams (2002) denominou de

tradição seletiva que, segundo os princípios de uma cultura dominante eficaz, é sempre tratada

como “a tradição”, “o passado significativo”:

Contudo a seletividade é sempre o ponto central; meio através do qual, de todo um

possível passado e presente, certos significados e práticas são enfatizados, ao passo

que outros significados e práticas são negados e excluídos. Ainda mais

decisivamente, alguns destes significados e práticas são reinterpretados, diluídos ou

reconfigurados, de modo a apoiar ou, pelo menos, a não se opor a outros elementos

dentro de uma cultura dominante eficaz (Williams,2002: 13).

É nesta estrutura de poder-saber de enquadramento da memória e de uso de uma

tradição seletiva que se sedimentou, ao longo dos anos, um conjunto de representações,

discursos, imagens e silêncios que forjam uma narrativa da história que procura dar

estabilidade e visibilidade ao discurso identitário hegemônico em Cametá. Além de uma

“tradição seletiva”, esta narrativa tem sido marcada pela construção de mitos e pela “invenção

de tradições”, tudo condensado na construção de idéias como: Cametá “Terra dos Notáveis”,

“Terra dos Romualdos” e “Cidade Invicta”.

Trata-se de tradições inventadas, pois o conjunto de representações que compõe esta

visão e versão da história e da identidade em Cametá é algo recente. Tal conjunto assumiu um

caráter sistemático de enquadramento da memória e do discurso histórico a partir do final dos

anos 70. E embora seja algo recente, é reafirmado como atemporal, como se sempre existisse,

como se sempre fosse assim. Como muito bem coloca Hobsbawm & Ranger (1997), trata-se

de uma “tradição inventada”, o que, segundo os autores, significa:

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um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente

aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores

e normas de comportamentos através da repetição, o que implica, automaticamente;

uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se

estabelecer uma continuidade com um passado histórico adequado (Hobsbawm &

Ranger, 1997:9).

É deste modo que a trajetória e memória da elite oligárquica em Cametá é usada

como se fosse a história universal e assume historicamente a hegemonia social, cultural e

discursiva que afirma a identidade cametaense como “identidade de notáveis”. Quando

falamos de hegemonia das oligarquias familiares e mercantis em Cametá, nos referimos à

maneira como Williams (2002) interpreta o conceito gramsciano. No seu entendimento, o

conceito de hegemonia é um sistema dominante eficaz e central de significados e valores, que

não são meramente abstratos, mas organizados e vividos. É por essa razão que o autor adverte

que a hegemonia não deve ser entendida no nível da mera opinião e manipulação.

Trata-se de um conjunto de práticas e expectativas que envolvem a vida toda: nossos

significados, as consignações de energia, nossas percepções formadoras da

subjetividade e da visão do mundo. É um sistema de significados e valores vividos-

constituídos e constituintes- os quais ao serem vivenciados como práticas parecem

confirmar uns aos outros. Constituindo-se então em um sentido de realidade para

muitas pessoas em uma sociedade, um sentido de realidade absoluta porque

vivenciada, e é muito difícil para a maioria das pessoas ir além disso, nos aspectos

mais variados de suas vidas . Trata-se em outras palavras, de uma “cultura” em seu

sentido mais forte, mas uma cultura que também deve ser vista como dominação

vivenciada e a subordinação de uma determinada classe (Williams apud Cevasco,

2001:149).

E neste sentido que durante muito tempo foi construído em Cametá um conjunto de

práticas sociais e valores culturais nos mais diversos campos da sociedade, na economia, na

política, na religião e na arte que apontavam para “um sentido absoluto de realidade”, na

direção de legitimação do domínio hegemônico das elites oligárquicas que impuseram sua

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cultura, sua memória e sua identidade como sistemas de valores e significados incontestáveis,

arraigados cotidianamente nos espaços mais capilares da sociedade cametaense.

4.1.2 Fundação mitológica

Esta história de hegemonia, aparentemente calma e silenciosa ou silenciada, é

conturbada por um capitulo especial da historia regional: o movimento da Cabanagem, que

talvez tenha sido o fato mais relevante da história da Amazônia e, indubitavelmente é um dos

fatos mais significativos da historia cametaense. A Cabanagem é de extrema relevância para

entendermos o processo de construção de uma identidade política e social/cultural/territorial

de toda a Amazônia e, de forma mais contundente, de Cametá, pois o território cametaense foi

palco de acontecimentos significativos na história deste movimento libertário de origem

popular.

É a partir do imaginário da Cabanagem que se constrói o mito fundador que sustenta

o discurso da “identidade dos notáveis” em Cametá, pois é na condição de “Cidade Invicta”

que se inaugura a afirmação da narrativa histórica que privilegia a memória e a identidade das

oligarquias.

Apesar de recentemente a memória da cabanagem em Cametá apresentar-se como

um campo de disputa, o que resulta em posições teóricas, políticas e interpretativas

contraditórias e controvertidas, e implica em visões muito distintas da participação da

população e do território cametaense, neste importante capítulo da história da Amazônia, a

visão que ainda permanece hegemônica é aquela forjada por historiadores e intelectuais

cametaenses de postura conservadora. Nesta visão, é enaltecida a condição de Cametá como

centro da legalidade contra a revolta popular da Cabanagem, por ter sido o único território não

conquistado pelos cabanos, tornando-se sede da resistência legalista. E é nesta condição que

Cametá foi a capital da Província por alguns dias. Para Temer (1998: 26) trata-se “de uma

epopéia vivida pelos Cametaenses na defesa da lei ultrajada, constitui-se a resistência à

invasão dos Cabanos em Cametá”.

Devido a Cametá não ter tido o seu território “ultrajado”, recebeu a denominação de

“Cidade Invicta”, o que, para muitos, é motivo de orgulho e, para outros, de incômodo. E,

como em toda epopéia, a historia oficial elegeu seus heróis, como o Padre Prudêncio, líder da

resistência legalista. Também se estabeleceram símbolos, como uma samaumeira (Barbosa,

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2001) que foi a árvore que serviu como estaca para a construção de uma cerca que delimitava

a fronteira do “território da legalidade” e o “território da anarquia cabana”.

Esse episódio histórico resultou na construção de um monumento na praça central da

cidade, uma espécie de painel onde estão esculpidas as cenas da vitória contra os cabanos.

Trata-se de uma interpretação da história que valoriza uma versão dos “grandes homens”, a

“história dos notáveis” em detrimento da “história dos cabanos”.

Outra lembrança histórica que está presente na narrativa oficial, sempre acionada na

memória coletiva cametaense, é a “epopéia e heróica” viagem de Pedro Teixeira que partiu de

Cametá para a conquista de considerável parte do território da Amazônia até então

“desconhecido” e “inexplorado”. Trata-se de uma viagem que resultou na quase dizimação

dos índios Camutá, pois quase todos os homens das aldeias foram tomados como tripulantes e

escravos dessa viajem, o que deixou seriamente comprometida a reprodução social das

populações indígenas da região de Cametá.

Estes elementos compõem a narrativa histórica e identitária cametaense, como bem

expressa o poema de Mocbel (1987, n/p):

Terra dos homens notáveis

Berço dos Camutas

Dos Parijós denotados

Dos soberbos Pacajás

Terra Mãe de um povo bravo

Que aos Cabanos enfrentou

Dominando seus excessos

Com coragem e com ardor.

(Mocbel, 1987s/n)

Analisando esse poema, verificamos que, na busca por definir o orgulho e o

sentimento de ser cametaense, valorizam-se alguns elementos que estrategicamente são

acionados para a construção desta identidade. Como sabemos, a identidade é fruto em grande

parte de dispositivo discursivo que, por meio da linguagem, do poder simbólico, do símbolo,

tenta estabelecer o consenso da visão e (di)visão de um grupo.

A fundação mitológica busca apresentar o “povo cametaense” como o povo puro.

Esta versão está presente de diversos modos na história, nas artes, na educação como bem

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demonstra o poema acima citado. Nele índios, caboclos e “notáveis” aparecem como uma

coisa só, um povo “único”, “puro”, sem contradições e conflitos, quando, na verdade, trata-se

de oprimidos e de opressores. Trata-se de uma representação homogênea do ”ser”

cametaense, da identidade que busca uma resolução imaginária para as contradições e

conflitos sociais reais, aliás segundo Chauí(2004), esta é uma das características do mito

fundador. Ele tenta ocultar a formação histórica que revela os antagonismos entre “notáveis”

exploradores, dominadores (brancos, urbanos, comerciantes, patrões, “chefes” políticos) e

“caboclos” explorados e dominados (mestiços, negros e índios pobres, trabalhadores rurais e

ribeirinhos).

Assim, nesta história elegem-se heróis, estabelecem-se símbolos, valorizam-se as

origens, enaltecendo o povo indígena como povo original e também “os notáveis”. Pela

invenção de tradições, busca-se forjar uma identidade baseada nos valores de um grupo

específico com uma história específica e que tenta se impor como universal pela força do

poder simbólico, que serve como base de uma dominação ideológica que em grande medida

se presta à dominação do poder político por oligarquias familiares.

Neste sentido, tal conjunto de memórias e significados estabelecidos e incorporados

ao imaginário social por meio dos símbolos e do poder simbólico dos grupos sociais. Poder

este que, segundo Bourdieu (1999:8), é um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a

cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o

exercem”, pela força do discurso performático que se traduz no poder quase mágico das

palavras, num jogo de corte e recorte, colagem e repetição de enunciados, imagens e

símbolos, que a identidade produz o consenso, a ação e a mobilização. A respeito desse

processo Bourdieu (1999: 14) afirma:

O poder simbólico como poder de construir o dado pela enunciação de fazer ver e

fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação

sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter

equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito

especifico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado

como arbitrário.

A chave nessa luta por impor a visão e (di)visão de um grupo, segundo Bourdieu

(1998), está no capital simbólico que cada grupo possui de acordo com a sua posição no jogo

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de forças da estrutura social, pois somente os que dispõem de autoridade legítima, ou seja, de

autoridade conferida pelo poder, podem impor suas próprias definições de si mesmos e dos

outros. O conjunto de definições de identidades funciona como sistema de classificação que

fixa as respectivas posições de cada grupo.

Nesta perspectiva, durante muito tempo, foi um grupo específico que deteve

exclusivamente o poder simbólico e a “autoridade legítima” para construir o discurso

identitário em Cametá. Foram intelectuais, artistas e políticos ligados à elite oligárquica (os

detentores do capital simbólico) e, em grande parte, ao poder econômico e político; estes vêm

impondo sua visão e (di)visão, por meio de uma narrativa da identidade cametaense que,

baseada em um certo “romantismo”, ou “saudosismo histórico”, busca um “passado glorioso”,

incorporando-o ao imaginário social e criando “significações imaginárias” que são a base para

a construção da “comunidade imaginada” cametaense como “terra dos notáveis” ou “cidade

invicta”. Ser cametaense neste sentido é fruto, em grande parte, da visão e (di)visão deste

grupo que tem a “autoridade legítima” pelo seu capital simbólico de afirmar o discurso

identitário em Cametá

Neste processo, é imprescindível o papel da memória coletiva, pois esta é constituída

pelo acúmulo de temporalidades vividas e coloca a necessidade de se pensar a história para

reafirmar o presente. Por meio do seu imaginário e de suas referências simbólicas, busca-se

uma supervalorização do passado para afirmar interesses, percepções, concepções e ações no

presente. Trata-se de uma “reapropriação dos acontecimentos passados, um novo regime de

historicidade, projetando-o em direção ao futuro. Em outros termos, a comemoração das datas

demonstra que os acontecimentos tidos por inaugurais exercem ainda uma função

eminentemente simbólica no presente” ( Silva, 2002:436).

Assim o uso da memória para construção da identidade cametaense se materializa de

diversos modos entre as diversas formas de utilizações sociais da memória: as comemorações

públicas de datas, fatos, heróis são essenciais, pois são nessas comemorações que se

constroem rituais que buscam consagrar o universalismo dos valores de uma comunidade.

As comemorações buscam, nessa “rememoração” de acontecimentos passados,

significações diversas para uso do presente (...) Comemorar significa, então, reviver

de forma coletiva a memória de um acontecimento considerado como ato fundador,

a sacralização dos grandes valores e ideais de uma comunidade constituindo-se no

objetivo principal (Silva, 2002: 432).

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Assim, a forma de (re)inventar a identidade dos “notáveis” em Cametá perpassa o

resgate do passado, eos mitos da história que são re-apropriados e re-significados, ganhando

concretude e faz parte da vida cotidiana das pessoas por meio de comemorações, de rituais, de

livros, de poemas, de canções e de paisagens que traçam uma geografia imaginária e concreta,

que busca criar um “território da memória” em grande medida pautada na “memória do

território” .

Este último, por meio de um grande conteúdo simbólico, evidencia valores,

interesses e trajetórias de um grupo específico, representados como se fossem algo universal,

como algo comum a todos os cametaenses que nascem no território e que dele compartilham

Neste sentido, o território comum é o elemento de coesão, do orgulho cametaense, pois se

ignora e silencia os conflitos e as contradições de classes e interesses em nome de uma

identidade homogênea que tem como referencial essencial a terra natal, a base territorial.

Esta geografia da memória que enaltece “os notáveis”, que tenta mostrar o

cametaense bravo e inteligente e, sobretudo, afirmar os valores e o poder, especialmente das

oligarquias familiares – que sempre dominaram o poder político e econômico – está expressa

por toda a cidade, como bem expressa a poesia de Mocbel (1987:s/n):

Terra que inspira o seu povo.

Amor e felicidade

Cada rua uma esperança

Cada esquina uma saudade.

A paisagem que se descortina é um legado do passado, cuja continuidade e

permanência são asseguradas pela construção de elementos com formas e conteúdos

simbólicos da velha ordem oligárquica, definindo Cametá como a “terra dos notáveis”, ou

“terra dos Romualdos”, afirmando uma identidade de uma elite branca, urbana, rica, e

poderosa. O espaço concreto e simbólico da cidade “é concebido como mágico pela

capacidade dessa recorrência do passado e trazer dele uma imagem de cotidiano sem conflito,

um emolduramento da vida social, fixando os valores e os sujeitos capazes de exercer o

poder” (Felipe, 2001:43).

Esta geografia está presente na construção de um monumento e uma praça em

homenagem aos homens cametaenses “notáveis” em frente à catedral de São João Batista. O

monumento foi construído nos anos 1940 por Nelson Parijós, um dos mais influente membros

das oligarquias na história do município. A intenção era imortalizar os bustos dos

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cametaenses mais “importantes” da história do município: Deodoro de Mendonça, Dom

Romualdo Coelho, Dom Romualdo de Seixas, Dom Milton, Frei Cristóvão de Lisboa, Cônego

Manuel J.Siqueira Mendes, Padre Prudêncio J. das MercêsTavares, Gentil Bitencourt, Enéas

Martins, Ângelo Corrêa, Augusto Corrêa, Joaquim Freitas e Inácio Moura. Por homenagem

de outro cacique político, Gerson Peres, foi incorporado ao monumento o busto do próprio

criador do monumento, Nelson Parijós (Ver foto abaixo).

Foto 5: Igreja de São João Batista e o monumento em homenagem aos homens “notáveis” da história de Cametá (Autor: Jurandir Viana, 2003)

Esta geografia se revela na paisagem que traz marcas da cultura dominante, com seus

monumentos simbólicos que tentam reafirmar valores de um grupo, uma faceta da identidade.

Esta paisagem é portadora de um grande valor simbólico na afirmação da identidade de

Cametá, a terra dos “notáveis”. É um monumento no qual estão expostos os bustos dos

homens “notáveis” em frente à catedral de São João batista, o padroeiro da cidade. É como se

esses homens fossem os guardiões da cidade, as referências do passado glorioso, e com uma

proximidade com o sagrado. A religião e a política se entrelaçam na paisagem e, não raras

vezes, nas práticas sociais, na afirmação de uma visão da história dominante que tenta impor

sua hegemonia pela criação de uma história e uma geografia dos “notáveis”.

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Temos na Foto 6 um colégio, o mais velho e por algum tempo o exclusivo centro do

saber formal em Cametá, simbolizado a força do conhecimento da poderosa elite cametaense.

Foto 6: Colégio que recebeu nome de D. Romulado de Seixas (Autor: Jurandir Viana, 2003).

Foto 7: Residência da família Parijós (Autor: Jurandir Viana, 2003)

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Nesta mesma perspectiva da afirmação desta versão da história e da identidade do

cametaense como notável, temos a foto 7 que mostra a ostentação de uma das famílias que,

historicamente, estivera no topo do poder oligárquico, a família Parijós. Assim, a paisagem é

um instrumento para a afirmação identitária, em especial, da identidade das classes

dominantes.

Este conjunto de paisagens-símbolos carrega a marca e as matrizes (Berque) do

poder desta oligarquia. Segundo Corrêa (2005:5), as formas simbólicas espaciais são

intencionalmente dotadas de um sentido político, são concebidas segundo os seus

idealizadores para realizar uma ou mais funções abaixo indicadas:

1. Glorificar o passado, acentuando alguns aspectos julgados relevantes para o

presente e o futuro;

2. Reconstruir o passado, conferindo-lhe novos significados. Neste caso, como no

anterior, tradições podem ser inventadas;

3. Transmitir valores de um grupo como se fosse de todos. Nesse caso estão

envolvidas fortes relações de poder;

4. Afirmar a identidade de um grupo religioso, étnico, racial ou social. A identidade

nacional tem sido objeto de inúmeras formas simbólicas;

5. Sugerir que o futuro já chegou, sendo portador de características julgadas

positivas;

6. Criar “lugares de memória”, cuja função é a de estabelecer ou manter a coesão

social em torno de um passado comum.

Assim, as formas simbólicas espaciais constituem importantes elementos no processo

de criação e manutenção da identidade dos “notáveis” em Cametá. Além de uma dimensão

paisagística, o domínio da história e da geografia dos “notáveis” aparece na toponínia, nome

dos lugares. Segundo Corrêa (2005), a toponímia constitui uma forma simbólica que

identifica um logradouro público, bairro, cidade, país ou forma da natureza, atribuindo-lhes

um significado que pode valorizar ou estigmatizar o próprio objeto. Nomear um dado local

constitui uma forma de apropriação do espaço, impregnando-o de significado (associado ao

nome) e de poder. Neste Sentido, o espaço urbano de Cametá é apropriado material e

simbolicamente e memória das elites que buscam afirma Cametá como “terra de notáveis”.

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4.2 LUTAS SOCIAIS, PROTAGONISMO POLÍTICO E A CONSTITUIÇÃO DE NOVOS SUJEITOS: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMETÁ.

A construção das identidades está em estreita conexão com as relações de poder; os

significados das identidades não são transcendentais, eles são construídos, contestados,

negociados a partir das relações assimétricas de poder na sociedade. Neste sentido, a luta pela

afirmação de uma determinada forma de representação e o estabelecimento de um

determinado significado de uma identidade é uma luta pela afirmação ou contestação da

hegemonia, um campo de batalha, pois como afirma Bauman (2005:83-4):

Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de está

havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela só

vem á luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que

desaparecem os ruídos da refrega (...) A identidade é uma luta simultânea contra

a dissolução e fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma

recusa resoluta a ser devorado.

Assim, no jogo de poder assimétrico da sociedade a construção das identidades pode

servir tanto para a manutenção e legitimação das relações de poder hegemônicas, quanto para

subvertê-las. Deste modo, no jogo de poder pela hegemonia na sociedade os diferentes atores

sociais, de acordo com a “posição” que ocupam no espaço social (muitas vezes também

geográfico) e, ainda, pelo acúmulo de “capitais” que possuem e a intenção em “investir” nos

seus projetos políticos, podem afirmar diferentes identidades em cada momento histórico.

Castells (1999:24), fazendo uma espécie de mapeamento das “posições“ e dos projetos dos

diferentes atores propõe três tipos de identidades:

a) A Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito

de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais.

b) Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições e condições

desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, construindo, assim, trincheiras

de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as

instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos.

c) Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material

cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na

sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura social.

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Essas posições não são estáticas, mas sempre relacionais, o que possibilita uma

identidade subalternizada ou de resistência tornar-se hegemônica e institucionalizada, do mesmo

modo em que, o que é o hegemônico em um determinado contexto histórico pode tornar-se não-

hegemônico em outro. Assim, essas posições-de-sujeito estão expostas ao movimento da história e

as dinâmicas específicas das relações de poder em cada contexto. Desse modo, o mesmo processo

que serve à reprodução do poder hegemônico, logo, das identidades hegemônicas, pode ser

interrompido e reorientado no sentido de produzir novas identidades.

A mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam

as identidades existentes pode significar a possibilidade de interrupção das

identidades hegemônicas. A repetibilidade pode ser interrompida. A repetição pode

ser questionada e contestada. É nessa interrupção que residem as possibilidades de

instauração de identidades que não representam simplesmente a reprodução das

relações de poder existentes (Silva, 2004:95).

Neste sentido, podemos perceber que vem sendo interrompido, deslocado, fraturado

o discurso identitário hegemônico em Cametá e, desse modo, verificamos que, para além da

identidade legitimadora, normalizada e institucionalizada “dos notáveis”, existem outras

identidades subalternizadas de sujeitos subalternizados no jogo do poder e que gradativamente

começam a assumir a condição de protagonistas. A alteridade marginalizada do “notável”

começa a emergir no espaço público como identidades de resistência, ou melhor, r-existência,

através da qual a ausência, a invisibilidade e o silêncio começa a se transformar em presença ,

visibilidade e voz. As populações rurais e ribeirinhas começam a tornar-se figuras do discurso

e seres da linguagem que ganham vida pela enunciação de um “outro” discurso, presentes na

política, na arte, na educação, enfim, nos diversos domínios da experiência social onde

nascem as resistências à hegemonia dos “homens notáveis”.

Qual o contexto de emergência desse novo discurso identitário? Quais as condições

em que esse processo se realiza? Quais são os agentes? A partir de que elementos se constrói

tal discurso? Com qual finalidade esse discurso é construído? São essas questões que

tentaremos responder a partir de agora.

No município de Cametá as relações políticas e o exercício do poder estiveram

historicamente marcados por uma forma de dominação, pautada em práticas paternalistas e

assistencialistas que têm nas relações de compadrio o seu alicerce. Essa cultura política

baseada no autoritarismo e na dominação da maioria da população e, em especial, das

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populações rurais e ribeirinhas, manteve-se e nutriu-se durante muito tempo nas práticas

econômicas, sedimentadas no sistema de aviamento e no campo cultural pelo domínio das

relações religiosas, ligadas às chamadas irmandades de Santo e pela afirmação da memória e

identidade dos homens “notáveis”.

Esse sistema de exploração econômica e dominação política resultava no

fortalecimento de uma elite mercantil e, ao mesmo tempo, de uma cena política sob o domínio

das oligarquias familiares. Essa configuração do poder local vai permanecer absolutamente

hegemônica e estável até o final dos anos 1960, quando surge um movimento que começa a

esboçar os primeiros contornos de resistências ao exercício do poder econômico, político e

religioso em Cametá.

O marco desse processo é a reorientação da forma de atuação da prelazia de Cametá

na região do baixo Tocantins. Até por volta de 1952 a ação pastoral em Cametá era orientada

a partir da arquidiocese de Belém, não havendo envolvimento direto da ação pastoral nas

práticas de organização comunitária de caráter mais político. Mas a partir do início da década

de 50 a Prelazia ganha autonomia e passa a controlar um vasto território que envolvia diversos

municípios. Contudo, até 1969, essa atuação da Prelazia de Cametá era alinhada com as elites

comerciais e políticos locais, não apresentando nenhuma resistência institucional ao poder das

oligarquias, nem no que se refere à prática de um catolicismo popular centrado na devoção de

santos padroeiros – e não questionando o modelo de irmandades organizadas por leigos.

Contudo, no final da década de 1960, uma nova direção assumiu a prelazia de

Cametá e procedeu a uma avaliação da ação pastoral, juntamente com um estudo da realidade

econômica e social da Prelazia. A partir desse estudo e avaliação considerou-se como

problemas a serem enfrentados pela ação da Igreja em Cametá duas questões:

A ausência de atividades produtivas que garantisse a sobrevivência dos camponeses

e a falta de participação dos fiéis. Para enfrentar os dois problemas diagnosticados,

a Prelazia de Cametá estabeleceu um plano de pastoral das comunidades, onde

foram definidas duas frentes de atuação como prioridades a serem assumidas pela

ação pastoral: a criação das CCs (Comunidades Cristãs) e a linha de crédito

destinada a incentivo de atividades produtivas (Souza: 2002: 106).

Essa nova linha de orientação e atuação pastoral estabeleceu como prioridade a

organização de comunidades cristãs e o apoio às atividades produtivas e de comercialização

comunitária, colocando a Igreja Católica como uma instituição em posição de confronto com

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a hegemonia da elite local e com a atuação dos leigos dirigentes das Irmandades responsáveis

pelo catolicismo popular centrado nas festas de santos padroeiros, visto que:

Com o novo plano pastoral das comunidades estabelecido pela hierarquia da Igreja

católica, que objetivava a organização de comunidades cristãs sobre o controle da

hierarquia eclesiástica, essa instituição entrou em rota de colisão com os dois

sustentáculos básicos do modo de organizar a vida social em Cametá, os santos

padroeiros e os comerciantes patrões, duas personagens que representavam a

expectativa de segurança dos devotos e clientes (Souza, 2002:77).

Assim, o novo plano de pastoral das comunidades implementado pela Prelazia re-

significa o papel da religião Católica em Cametá e a Igreja deixa de exercer o seu papel de

instituição legitimadora da lógica do compromisso, da lealdade e da reciprocidade, que

fundamentava as relações patrão-cliente, santo-devoto, candidato-eleitor, dissimulando o

sistema de exploração que ocorria no domínio econômico e perpassava os demais domínios da

vida social (Souza, 2002) para se tornar uma instituição com papel decisivo na fermentação de

outra cultura política em Cametá - uma cultura política fundamentada na participação e na

organização comunitária popular.

É nesta perspectiva que a formação das chamadas comunidades eclesiásticas de base

ou simplesmente comunidades cristãs tornaram-se o alicerce fundamental dessa nova cultura

política, pois é neste processo de organização comunitária que vão se forjar as lideranças que

mais tarde vão se tornar protagonistas na formação de entidades associativas e de organização

política, que vêm sendo decisivas na vida política do município nos últimos anos.

Houve também outros importantes agentes nesse processo. É o caso da Federação

dos Órgãos de Assistência Social e Educacional - FASE -, que no final dos anos 1970 teve um

papel muito importante no processo de politização dos trabalhadores rurais em Cametá. Mas a

influência da Igreja foi tão forte e decisiva na redefinição da dinâmica política do município

que podemos verificar que hoje todas as entidades e organizações, e quase a totalidade das

lideranças no município de Cametá, são tributárias do intenso processo de formação política

na Igreja e pela Igreja, em especial, a partir dos anos setenta e até o inicio dos anos 1990;

quando esta assumiu uma linha de atuação progressista baseada no princípio da “fé e

política”, sendo decisiva na formação de uma nova cultura política, que primava pela

participação política e o protagonismo das populações trabalhadoras em Cametá. Como

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legado desse processo de atuação da Igreja Católica, é possível destacar: a) As Comunidades

Cristãs; b) O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cametá - STR; c) A Colônia de

Pescadores - Z 16; d) A Organizações Não-Governamentais (como o Centro Miriti e o

IDEAS); e) Os partidos políticos (em especial o Partido dos Trabalhadores - PT).

Assim, o trabalho de formação comunitária da Igreja construiu um legado que se

materializou num fortalecimento da sociedade civil com maior capacidade de organização e

mobilização popular. A atuação da Igreja e o conseqüente fortalecimento da capacidade de

organização comunitária e política foram construídas na base, sobretudo, com as comunidades

rurais e ribeirinhas do município. Essa força da sociedade organizada está expressa numa

pesquisa feita pelo Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, onde foram

levantadas as cidades mais politizadas do Brasil:

Da Amazônia, excluindo-se as capitais, apenas a cidade de Cametá está entre as 100

mais politizadas. A pesquisa indicou que os municípios de Santa Maria e Pelotas,

ambas no Rio Grande do Sul, apresentam a população com maior interesse pela

política do País. Cametá está em septuagésimo lugar. Na pesquisa entre as capitais,

Belém ficou na vigésima colocação (Jornal O Liberal, 2003).

Como já afirmamos, os movimentos sociais e a sociedade civil organizada em

Cametá têm a base de sua composição nas organizações de entidades ligadas às populações

rurais e ribeirinhas. Assim, a Colônia dos Pescadores Z-16, o Sindicato dos Trabalhadores

Rurais - STR, um conjunto de associações de créditos, associações de mulheres, grupos

ligados a dinâmica pastoral da Igreja, as comunidades cristãs, a base do Partido dos

Trabalhadores, a base de atuação das organizações não-governamentais estão localizadas fora

do núcleo urbano de Cametá, concentradas na zona rural e, em especial, nas ilhas. Daí o

destaque nesse conjunto, do papel da colônia dos pescadores como protagonista nas

mobilizações e lutas sociais e políticas no município e na região.

Esse conjunto de movimentos de trabalhadores rurais e ribeirinhos em Cametá vem

lutando pela garantias de melhores condições de produção e reprodução social, o que se

expressa especialmente na luta por créditos e financiamentos para a agricultura familiar, para

as atividades extrativistas e para a pesca artesanal. Essas organizações sociais buscam superar

as condições históricas de miséria e exploração que essas populações vivenciaram, em

especial pela lógica e legado do aviamento, que foi o principal mecanismo de enriquecimento

da elite mercantil no município.

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No caso específico dos ribeirinhos, o nível de dificuldade para sua reprodução social

foi fortemente agravado por conta dos profundos impactos negativos que a construção da

UHT provocou na dinâmica ecológica e econômica das áreas de várzeas, o que afetou de

maneira dramática os recursos pesqueiros e o extrativismo, base essencial na lógica produtiva

e reprodutiva do modo de vida dessas populações.

A luta desses movimentos sociais é também pela superação das formas de dominação

política que se consolidaram historicamente no município, a partir do fortalecimento do

sistema político oligárquico com base no domínio de algumas famílias (Mendonça, Parijós,

Peres, entre outras) que se revezavam no exercício do poder municipal. Essa cultura política

tem se sustentado através de práticas políticas autoritárias, assistencialistas e populistas,

pautadas, sobretudo nas relações de compadrio e mandonismo político que se sustentam pela

extrema miséria da grande maioria da população, em especial das populações rurais e

ribeirinhas que se tornam extremamente vulneráveis a essas práticas políticas, pois, num

quadro social onde a grande maioria fica à margem de políticas públicas que garantam os

direitos básicos como educação e saúde, florescem as políticas assistencialistas com fins

eleitorais.

Neste sentido, os movimentos sociais vêm nas últimas duas décadas tentando

romper com essa cultura política autoritária, assistencialista e populista, buscando novos

valores que garantam o protagonismo dessas populações como atores importantes no espaço

público e como sujeitos de direitos. Desse modo, procuram construir uma nova cultura

política pautada em valores como a organização popular, a participação democrática e a

autonomia política. No plano mais institucional o resultado mais significativo tem sido a

eleição de vereadores ligados aos movimentos, sobretudo a Colônia de Pescadores e o

Sindicato de Trabalhadores Rurais, bem como a eleição em 2000 de um prefeito do partido

dos trabalhadores ligado a esse movimento, rompendo um ciclo histórico de domínio das

oligarquias familiares.

Mas, para além desse quadro institucional que é algo significativo, é importante

enfatizarmos que essa nova cultura política permitiu um processo de politização da cultura ou

construção de “políticas culturais” que implicaram na produção de uma consciência da

condição ribeirinha, o que parece ser um dos mais significativos produtos desse processo.

Pois essas lutas são por demandas políticas e econômicas de caráter mais redistribuitivo,

embora, esses movimentos também lutem pelo reconhecimento de suas condições socais e

culturais a partir da afirmação de suas identidades. Esse processo vem se dando através da

“politização de sua cultura” e do seu modo de vida, lutando contra um conjunto de estigmas e

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preconceitos personificados no estereótipo do trabalhador rural e do ribeirinho como

“caboclo”. (Mais adiante voltaremos a enfatizar esse processo de politização da cultura na

construção de uma identidade ribeirinha).

Nesse quadro se destaca o papel da Colônia de Pescadores de Cametá Z-16, por sua

intensa atuação na organização dos pescadores e na luta pela qualidade de vida das

populações ribeirinhas. Contudo, apesar de existir desde 1923, só recentemente esta entidade

assume uma postura política voltada para a defesa dos interesses dos pecadores, visto que na

sua origem as colônias foram criadas como órgãos diretamente ligados aos interesses do

Estado, como nos fala o atual presidente da colônia:

O movimento dos pescadores, ele surgiu mesmo aqui na nossa região a partir da

década de 80, organizado pela igreja, pela Pastoral dos Pescadores, né? E nós

começamos a nos organizar nas comunidades de base e uma das diretrizes da Igreja

era a organização social e os pescadores precisavam e precisam ainda muito de se

organizar. Nesse período a colônia já existia, a colônia de Cametá ela foi fundada

em 23 de junho de 1924, mas ela não tinha assim um desempenho em favor mesmo

da categoria, a história nos dias que ela estava atrelada ao sistema que comandava.

Até quando foi fundada as colônias ela não tinha a prioridade principal organizar os

pescadores para exercer os seus direitos de cidadania (Iracy de Freitas Nunes ,

presidente da colônia dos pecadores de Cametá -Z16, entrevista: junho de 2005).

Criadas a partir de 1919 por interesse da Marinha de Guerra do Brasil, as Colônias de

Pesca, segundo Mello (1995:26), deveriam cumprir dois objetivos principais: a) a utilização

militar dos pescadores e suas embarcações no controle da costa brasileira e rios interiores (tal

qual se sucedia em outros países, como a Inglaterra) e b) seu aproveitamento enquanto

trabalhadores livres em empreendimentos de interesse do capital urbano-industrial que,

sobretudo, a partir dos anos 1920/30 despontava como fração hegemônica da burguesia

nacional.

Teoricamente representando os pescadores, as colônias na realidade foram criadas e

geridas pelo Estado e desempenharam papel de órgãos reguladores, mais do que de

representação, visto que foram criadas de cima para baixo, sem o aspecto participativo e

decisivo dos pescadores (Leitão, 1996). É nesse quadro que a colônia de pescadores de

Cametá foi criada e foi mantida durante décadas na mão de pessoas que não tinham nada a ver

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como as populações ribeirinhas e não tinham afinidade alguma com os interesses dos

pescadores.

Esse quadro em Cametá era generalizado por toda a Amazônia e só começa a se

modificar, segundo Mello (1995), com a abertura política, com o fim do regime militar e a

rearticulação do movimento sindical em todo o país, pela influência das principais lideranças

do sindicalismo rural no Pará e o apoio de entidades ligadas, sobretudo à Igreja (em especial a

Comissão Pastoral da Terra, FASE, e ainda a recém criada Comissão Pastoral Pesqueira, que

tem sua origem no final dos anos 1980). Algumas tentativas de reversão desse quadro foram

tentadas na região, a começar pelas eleições de 1982, em Santarém (PA), que conduziram pela

primeira vez pecadores à direção de uma Colônia na historia do país.

Ainda de acordo com Mello (1995) foi a partir daí, e particularmente em função

destes movimentos de base da sociedade civil, que surgiram no Brasil em meados dos anos, o

Movimento pela constituinte da Pesca, influenciado pelo apoio da Comissão Pastoral

Pesqueira Nacional/CNBB (e suas ramificações regionais), Sindicatos de Trabalhadores

Rurais, Partido dos Trabalhadores e outras lideranças político-partidárias. Esse movimento

tinha como objetivo convocar todos os pescadores do país para discussão e elaboração dos

novos princípios regulamentadores para as Colônias de Pesca, a serem defendidos junto aos

parlamentares constituintes.

Desse movimento resultou, conforme Leitão (1996), a mudança na constituição,

apontando para o direito à liberdade organizativa, a autonomia e não-interferência do poder

público na organização sindical, assim como a equiparação das colônias de pescadores aos

sindicatos. Esse novo quadro jurídico e político possibilitatou a ascensão dos pescadores às

diretorias das colônias. Contudo, esse processo tem se dado de maneira lenta e desigual e

muitas vezes conturbado.

Em Cametá já havia uma forte organização sindical ligada ao Sindicato dos

Trabalhadores Rurais existente desde o final dos anos 1970 e com uma diretoria progressista a

partir do início dos anos 1980, muitos dos sócios e líderes do movimento sindical na verdade

eram pessoas da região das ilhas e tinham como atividade fundamental a pesca, mas devido à

Colônia dos Pescadores ser uma entidade que não primava pelos seus interesses, os

pescadores vivenciavam sua militância junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

Mas a partir de 1982 a prelazia de Cametá passou a fazer um intenso trabalho de

conscientização dos pecadores através de visitas às comunidades ribeirinhas, encontros,

cursos etc. Este trabalho proporcionou a constituição de uma base de organização que começa

a se projetar na direção de assumir o controle da colônia de pescadores. Contudo, isto só

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ocorre a partir da reformulação da constituição e dos novos marcos jurídicos que permitiram a

liberdade e autonomia de organização. É somente nesse novo contexto que os pescadores

conseguiram alterar o Estatuto e criar condições de eleições que permitissem a ascensão dessa

categoria ao controle efetivo da sua entidade de representação. Depois de um conturbado

processo, onde representantes da oligarquia local que dominavam historicamente a colônia

impediram de forma autoritária o controle de fato e de direito dos pescadores, esse processo

teve como desfecho a tomada plena do controle da entidade pelos pescadores. A fala do

presidente da colônia demonstra bem esse processo:

A partir dos anos 80 começamos travar a essa luta e conseguimos ganhar a colônia

de Abaetetuba para mãos dos pescadores, depois a colônia de Santarém já através

do movimento estadual e já tinha o movimento nacional (...) e já em 1990 nós

conseguimos ganhar aqui a colônia de Cametá (...) Na época a colônia tinha 30

fichas, trinta sócios. A partir daí (...) começamos a fazer um trabalho mais diferente,

apesar de nós sofrer assim, uma certa pressão dos associados para querer aquela

situação do assistencialismo, aquele modelo (....) de lá então a gente passou a fazer

um trabalho de base, a organizar os pescadores na base, mas estava muito

desorganizado, a maioria dos pescadores não estavam matriculados por que eles

não tinham documento,não sabiam dos direitos que podiam ter né, com isso muitas

pessoas não tinham condição de se aposentar, de requerer um benefício, então nós

fizemos o seguinte, nós descentralizamos o trabalho aqui da colônia e formamos as

coordenações de base (....) hoje nós temos 7.500 associados, mulheres e homens.

(Iracy de Freitas Nunes, presidente da Colônia dos Pescadores de Cametá –Z16,

entrevista: junho de 2005).

Até esse momento histórico, apesar de uma experiência nas lutas contra os impactos

da hidrelétrica sob a liderança do sindicato e da prelazia, os ribeirinhos, os pescadores, ainda

apresentavam um baixo nível de organização pela ausência de uma entidade capaz de

representar de fato seus interesses, isso estava expresso numa baixa auto-estima, numa

invisibilidade política revelada pelo vereador José Fernandes, ex-presidente das colônias dos

pescadores:

Quando nós assumimos a colônia, a situação era muito complicada, os pescadores

nem eles se identificavam, a gente chegava nas comunidades eles tinham título, mas

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não tinha certidão, quer dizer foi um grande trabalho para documentar, pois nem se

identificar como pescador se identificavam, na verdade (...) naquele momento nós

analisávamos que os políticos usam como trampolim, sabe, na verdade não tinha

interesse em organizar, em mostrar os direitos deles, inclusive nessa época quem

dava a declaração para aposentadoria era o sindicato dos trabalhadores, davam

pros pescadores (...) Ai aos poucos com dificuldade nós fomos aos poucos

organizando, primeiro a questão da documentação(..) para que a colônia de fato se

tornasse representatividade e graças a Deus aos poucos nós fomos construindo isso,

fomos construindo. Ai nós já começamos a declarar o pescador até porque em

órgãos como INSS a Colônia era desacreditada (...) assim nós fomos dando passos

devagar, assim conseguimos organizar os direitos previdenciários que são direitos

já legais e garantidos (...) depois nós fomos compreendendo que não bastava só isso,

que nós tinha que lutar por outros objetivos, lutar pelo financiamento, melhorar a

condição de vida desse pessoal, porque os direitos constitucionais já eram

garantidos(...) mais que tínhamos que avançar por exemplo as políticas públicas,

qual é a intervenção de nossa entidade em relação a isso? E esse é um debate que

nós começamos fazer, como é que nós vamos agir para fazer para melhorar a

qualidade de vida dessas pessoas, haja visto que só do ponto de vista assistencialista

não vai resolver? (...) (José Fernandes, vereador e ex-presidente da colônia de

pescadores, entrevista concedida ao autor: junho de 2005, grifo nosso).

Isso mostra que apesar dos pescadores compartilharem um conjunto de elementos

semelhantes no “espaço vivido”, na “comunidade de vida” (o modo de vida, a cultura

ribeirinha com seus saberes, fazeres e sociabilidades), não havia uma consciência

socioespacial de pertencimento, uma “comunidade de destino” que valorizasse a condição

ribeirinha. Somente com o fortalecimento da Colônia é que se inicia um processo de

politização da cultura e do modo de vida ribeirinho, que afirma o rio como espaço de

referência identitária. Isso só vai a acontecer quando a afirmação do que é “semelhante”

torna-se “interessante”, quando “ser pescador” implica na afirmação de direitos e acesso a

recursos da sociedade. Isso mostra que a identidade não é construída em torno de um núcleo

de autenticidade, de uma experiência cultural primordial (Silva, 2003), mas é uma construção

histórica de caráter estratégico e posicional (Hall, 2004) mobilizada na afirmação de um

determinado grupo social na disputa por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade.

Pois, como nos afirma Silva (2004:81):

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Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa por outros recursos

simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação

da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente

situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a

diferença estão em estreita conexão com as relações de poder. O poder de definir

a identidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações mais

amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (Silva,

2004:81 grifo nosso).

Dessa forma, a afirmação de uma identidade de pescador não se tratava da busca de

um mero reconhecimento. A afirmação dessa identidade implicava em direitos que garantiam

ter acessos a bens materiais e a melhoria de vida dessas populações como: a aposentadoria, o

benefício ao seguro desemprego no período em que fica proibida a pesca e ainda acesso a

financiamento de recursos do FNO via BASA (Banco da Amazônia), bem como o acesso a

recursos oriundos de projetos advindos da cooperação internacional através de parcerias com

OGNs locais. Isto explica o vertiginoso crescimento do número de associados e do grande

fortalecimento da Colônia dos Pescadores Z-16, passando de 30 sócios para mais de 7 mil em

pouco mais de uma década.

A colônia hoje tem um papel diferenciado né, ela deixa de trabalhar o

assistencialismo e parte para a questão de organização da busca de alternativa,

porque com a construção da barragem ai modificou muito a nossa região, teve um

impacto muito grande, esse impacto ai, ele causou o assoreamento do rio, a escassez

do pescado; nós não temos uma água de qualidade para a população ribeirinha, a

educação sempre foi muito precária, sem falar na saúde que sempre foi muito ruim.

Então, nós achamos o seguinte, dentro do nosso planejamento, a colônia não deve

estar apenas, podemos dizer assim, a serviço da busca de benefícios da previdência

e do seguro desemprego né, que também são benefícios que ajuda né, a

aposentadoria mas a gente ir mais além, procurando trabalhar fazer parcerias com

governos, entidades, OGNs na busca de alternativas para melhorar a condição de

vida dos pescadores ( Iracy de Freitas Nunes, presidente da Colônia dos Pecadores

de Cametá –z16, entrevista concedida ao autor: junho de 2005).

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A força política do papel da colônia na busca da melhoria da qualidade de vida das

populações ribeirinhas está expressa na quantidade significativa de recursos que tem

convergido para a região das ilhas de Cametá, como demonstra o estudo de Costa (2003):

[...] A quantidade total de recursos recebidos na forma de projeto (produtivo,

manejo e/ou conservação ambiental e infra-estrutura) pelos camponeses das ilhas de

Cametá, nos últimos 10 anos, estima-se que possam chegar a R$ 1,7 milhões de reais

(incluindo os investimentos nacionais que conta com recursos da Prelazia,

FNO/BASA e FNMA/MMA e estrangeiros a partir do PD/A e da casa familiar rural,

com recursos do Banco Mundial, BIRD, PPG-7 e União Européia), esse dado não

inclui os investimentos carreados pelas ONG’s que atuam nas regiões das ilhas

como IDEAS, o MIRITI e a APACC, entre as mais representativas e eficientes em

captação de recursos, assim como não incluem os investimentos da Prefeitura

Municipal de Cametá (PMC) nesta comunidade (Costa, 2003: 197).

Diante dessas significativas conquistas de recursos e de melhoria das condições de

vida das populações ribeirinhas, essa identidade de “pescador”, ou melhor, “pescador

artesanal” é a auto-identificação mais presente e mais usada entre os ribeirinhos, sobretudo,

aqueles ligados a militância na colônia, trata-se de uma forma de identificação ligada a sua

função ou a sua atividade produtiva. Essa afirmação da identidade de pescador é reforçada

pelo discurso oficial dos órgãos estatais como os Bancos, o Ibama, a Previdência Social e,

agora, pela Secretaria da Pesca que possui um status de ministério no governo Lula. Esses

órgãos constróem um conjunto de discursos e representações que influencia na maneira

cotidiana de afirmação da identidade de “pescador” entre as populações ribeirinhas, pois em

todas as falas e documentos dessas entidades a identificação de “pescador artesanal” aparece

como forma de identificar essas populações.

Contudo, a afirmação de uma identidade ribeirinha ultrapassa e extrapola o espaço de

organização e luta da colônia dos pescadores e se situa em uma dimensão mais ampla, pois

nos últimos anos em Cametá ocorreram algumas modificações em diversos setores da

sociedade que vem contribuindo para uma maior visibilidade da identidade ribeirinha.

Um marco decisivo nessa construção foi a chegada ao poder municipal do Partido

dos Trabalhadores que tem sua base de sustentação nas organizações ligada as populações

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rurais (Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR) e as populações ribeirinhas (a Colônia dos

Pescadores Z -16).

Após sucessivas candidaturas do PT, seja para o mandato de vereador26, seja para a

Prefeitura Municipal, ampliou de maneira consistente o acúmulo de força eleitoral nas

eleições de 2000, contribuindo para que a chapa Frente Popular Democrática Cametaense

conseguisse vencer as eleições municipais. Nesse momento têm-se então no governo um

representante forjado na intensa mobilização dos movimentos sociais, na luta pela melhoria

das condições de vida das populações rurais e ribeirinhas. A chegada de um trabalhador (José

Rodrigues Quaresma) à frente da administração do município, significou, pelo menos em tese,

uma conquista dos trabalhadores.

Assim, de 2001 a 2004 instala-se no município o “governo popular”. Essa

administração que tem à frente o Partido dos Trabalhadores foi marcada por controvérsias,

avanços e recuos, cuja análise foge ao objetivo desse trabalho, pois o que nos interessa em

particular é verificar o que significaram as ações desse governo no processo de politização da

cultura rural e, em especial, ribeirinha, e ainda qual o significado da ascensão dessas novas

forças políticas na construção do discurso identitário em Cametá.

Nessa perspectiva, queremos rapidamente apontar alguns aspectos que consideramos

importantes do “governo popular” para afirmação da identidade ribeirinha. Primeiramente foi

criado um conjunto de conselhos municipais que funcionavam como fóruns de formulação e

fiscalização de políticas públicas, tais como: Conselho Municipal do Desenvolvimento Rural

Sustentável, Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Educação entre outros,

onde os representantes das populações ribeirinhas estavam presentes de maneira atuante. Esse

processo teve algumas importantes conseqüências, é o caso da criação de uma Secretaria da

Pesca ligado à Secretaria Municipal de Agricultura, apontando pela primeira vez na história

local para uma atuação sistemática de órgão público em políticas voltadas para pescadores

nesse município.

Ainda resultante desse processo podemos destacar a descentralização das políticas de

saúde e educação para as “vilas”, “povoadas” e “Ilhas”, o que proporcionou um maior acesso

aos recursos pelas populações rurais e ribeirinhas. No campo da educação, onde as

repercussões na construção do discurso identitário são mais significativas, visto que o papel

do currículo e das práticas pedagógicas são importantes elementos na construção de novas 26 Registra-se que a Câmara Municipal de Cametá já vem integrando representantes do Partido dos Trabalhadores desde o mandato 1989 a 1992, tendo sido eleitos vereadores nesse mandato os nomes de Manuel Maria Rodrigues Louzada e José Maria de Jesus Cordeiro.

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formas de representação, essenciais na construção ou contestação de discursos identitários,

podemos verificar iniciativas importantes. É o caso da construção coletiva de um amplo

projeto de educação para o município denominado de Escola Caá-mutá que teve a presença

dos movimentos sociais e dos representantes das populações rurais e ribeirinhas do município

como atores protagonistas nesse processo.

Como conseqüência da participação dos representantes das populações rurais e

ribeirinhas na formulação do projeto educacional Escola Caá-mutá, pode-se destacar o

Projeto Porto Feliz. Trata-se da estruturação do transporte escolar para a região das ilhas no

município. Este projeto, segundo a Secretária de Educação ajudou a diminuir

consideravelmente a evasão escolar e a repetência nas ilhas. As escolas ribeirinhas chegaram

a ser atendidas com 120 barcos que faziam o transporte dos estudantes, atingindo um total de

6.891 alunos. Isso fez toda diferença numa realidade em que os alunos precisam remar numa

canoa durante horas para chegar à escola e aponta para o fato de que pela primeira vez se

pensou numa política educacional que tivesse o mínimo de preocupação com a especificidade

das comunidades ribeirinhas, o que está expresso na fala da secretaria de educação na época

do “governo popular”:

[...] a educação ribeirinha têm uma atenção especial, inclusive a gente inverte as

demandas da cidade, como construção das escolas para educação ribeirinha, e a

gente ás vezes é tão incompreendido, porque é na cidade que se faz um pouco de

lobby, é na cidade que aparecem com mais intensidade as ações, por estar aqui

situado os meios de comunicação. Mas é prioridade do Governo Popular inverter

aquelas demandas que vinham mais para a cidade [agora repassados pra a região

das ilhas] escola, carteira, inclusive professores capacitados. Então a gente hoje tem

essa proposta para o meio rural, a maioria das ações da Secretaria de Educação são

voltados para atender o povo do meio rural (...) Estamos intensificando uma

formação para os professores ribeirinhos. Muito mas capacitados para educarem,

com instrumentos melhores para que realmente a população ribeirinha seja de fato

contemplada com educação neste município. (Salete Aquime, Secretária Municipal

de Educação, entrevista cedida ao autor, em junho de 2005).

Mas para além dessas políticas públicas que permitiram melhoria das condições

materiais de acesso das populações ribeirinhas aos serviços básicos de educação, essas

mudanças tiveram importantes conseqüências no campo da construção de novas

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representações que valorizam a cultura ribeirinha, que politizam o modo de vida dessas

populações, que demarcam a importância do rio como espaço de referência identitária, pois há

uma clara perspectiva curricular que privilegia a cultura local e as histórias e memórias até

então invisibilizadas.

Nessa direção, um dos projetos mais significativos da Escola Caá-mutaá foi o

chamado Cametá-tapera. Voltado para elevação da escolaridade de pessoas adultas e, em

especial, para a zona rural e das ilhas, este projeto teve um papel importante no reforço da

cultura e da identidade das populações rurais e ribeirinhas. Esse projeto tinha como uma de

suas marcas fundamentais a proposta de resgatar as memórias e histórias das populações

trabalhadoras e, desse modo, afirmar o modo de vida e a identidade dessas populações. Tendo

em vista que uma parcela significativa da clientela desse projeto eram lideranças com grande

experiência de militância no movimento organizado, isso aumentou o grau de politização da

cultura. Essa perspectiva identitária está colocada no próprio nome do projeto, como nos diz o

coordenador do mesmo:

Projeto Cametá Tapera: Cametá voltando às origens para fazer a escola

cidadã. Por isso, Cametá Tapera. Nós tivemos que voltar a nossa origem,

porque Cametá Tapera foi onde tudo começou a historia de Cametá, para

gente construir a escola Caa-mutá. E aí nós fizemos o projeto que elevava a

escolaridade, baseada na teoria de Paulo Freire, da idéia de elevação de

escolaridade do trabalho e de reafirmação da identidade do trabalhador. O

projeto era mais ou menos isso, elevava a escolaridade, mas ao mesmo tempo

qualificava para o trabalho. (José Domingos Barra, pedagogo, professor

universitário e ex-coordenador do projeto Cametá-Tapera, entrevista cedida ao

autor, em junho de 2005, grifos nossos).

A metodologia, o currículo, a forma de organização do referido projeto tinha uma

clara intenção de afirmação do protagonismo dos trabalhadores. Nesta perspectiva, o currículo

foi construído buscando viabilizar uma aprendizagem significativa, onde fosse possível

relacionar a cultura, o saber e as experiências de vida, trabalho e luta social acumulada pelos

trabalhadores com o saber acadêmico das várias áreas do conhecimento, tornando o saber um

instrumento de desvendamento da realidade e de construção de novos cenários sociais

(Cametá-tapera, 2002). A entrevista feita com o ex-coordenador detalha melhor esse processo:

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O projeto foi elaborado a partir do que nós chamamos de temas geradores. Para

isso nós fizemos uma pesquisa sobre o tema que os trabalhadores de Cametá

queriam estudar que seria o tema gerador para discutir. Nós detectamos que eles

queriam estudar a vida do trabalhador e da trabalhadora em Cametá. A partir

desse tema nós desempenhamos o projeto Cametá Tapera em seis eixos temáticos

com a discussão em doze módulos, um eixo para cada dois módulos. O primeiro

tema era identidade, o segundo era o desenvolvimento sustentável e solidário, o

terceiro era o desenvolvimento, políticas públicas e cidadania, o quarto era trabalho

e produção na Amazônia, o quinto era Gestão democrática e participação popular e

o sexto era o meio ambiente e a sua diversidade. (José Domingos Barra, pedagogo, e

ex-ordenador do projeto Cametá-Tapera, entrevista cedida ao autor, em junho de

2005, grifos nossos).

Valorizando a memória e a identidade dos trabalhadores rurais e ribeirinhos, o

projeto representa um questionamento do processo de enquadramento e disciplina da memória

que privilegia a hegemonia das oligarquias familiares em Cametá (os “notáveis”).

Questionando desse modo, o processo de “tradição seletiva” que busca definir o que é o

“passado significativo” na história do Município, e assim contestando a afirmação da

trajetória e a memória dos “homens notáveis” como história universal.

Assim, uma vez rompido o tabu da memória e da identidade dos “notáveis”, vem

ocorrendo uma “irrupção” das memórias subterrâneas e subalternizadas, “memórias

caboclas”, que agora conseguem invadir o espaço público, ganhando uma nova visibilidade e

dizibilidade iluminada por outras formas de representação e a enunciação de outros discursos,

que trazem à tona lembranças, significados, subjetividades que durante muito tempo foram

confinadas ao silêncio e suprimidas pelo disciplinamento da memória, que afirmava um

discurso histórico e identitário dos “homens notáveis” em Cametá.

Esse processo está representado numa valorização e politização da cultura e modos

de vida rural e ribeirinho, visto que como já afirmamos, uma considerável parte das pessoas

que participavam desse projeto eram trabalhadores(as) rurais e ribeirinhos(as), pescadores(as)

com uma grande experiência de participação nas lutas sociais através do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais e da Colônia dos Pescadores. Os modos de vida locais e essa cultura

política de participação constituem a base do currículo, que tinha o objetivo de problematizar

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o papel dos trabalhadores na construção de um “desenvolvimento sustentável e solidário” da

Amazônia:

A concepção do processo de formação do programa insere a socialização, a

produção e a construção de conhecimentos articulados as experiências de vida, de

luta social e do mundo do trabalho dos sujeitos, que permite a construção de um

novo conhecimento sobre o trabalho, as relações de trabalho, a organização social e

sindical, visando ao desenvolvimento sustentável e solidário na Amazônia. O ponto

principal dessa formação é a Amazônia nas dimensões culturais, espaciais e

temporais, que ela se insere, a partir do olhar regional dos trabalhadores e

trabalhadoras das áreas rurais e urbanas, na direção do desenvolvimento

sustentável e solidário (Projeto político pedagógico do Cametá-Tapera, 2002:14,

grifos nossos).

A afirmação da identidade tem uma clara perspectiva territorial, circunscrita a

especificidade espaço-temporal da Amazônia, bem como numa escala menor afirma o papel

do meio rural, em especial do rio como espaço de referência identitária. A construção da

identidade também tem uma clara alusão à dimensão do “vivido”, pois a construção do

currículo está arraigada na experiência imediata do espaço vivido, na densidade e espessura

de um cotidiano compartilhado localmente, em sua multiplicidade de usos do espaço e do

tempo, pautado nos saberes, fazeres, sociabilidades, valores e costumes em comum.

Esse processo vem se somar à construção de uma consciência socioespacial de

pertencimento, que já vem sendo produzida pelos movimentos sociais em Cametá através da

politização da condição ribeirinha, como já comentamos anteriormente. Contudo,

diferentemente da configuração identitária centrada na representação do pescador, essa

representação construída numa escala mais ampla pelo projeto educacional em Cametá

envolvendo professores, intelectuais, políticos e também lideranças ligadas ao movimento

organizado, aponta para uma outra configuração identitária, na qual as práticas discursivas

constroem uma representação desses sujeitos como ribeirinhos, que é uma identificação mais

ampla do que a identidade de pescador.

O projeto Cametá-taperá é um marco capital nesse processo, na medida em que a

elevação da escolaridade aumenta o “capital simbólico” dessas populações, permitindo-lhes a

possibilidade da valorização de suas memórias, costumes, da politização de suas culturas,

abrindo a possibilidade de construir outras formas de representação de sua identidade que não

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seja aquela marcada por uma visão estigmatizante pautada nos estereótipos mutilantes e

reducionistas que servem de justificativa para os processos de exploração, dominação e

discriminação sofridos historicamente por essas populações.

Esse processo também ganha eco e amplitude com o crescimento de um número do

professores, pesquisadores, intelectuais no município que não são de origem oligárquica, visto

que desde 1988 existe um campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) em Cametá e a

cada ano o número de pessoas de origem rural e ribeirinha que chega a universidade é

crescente. Isto se materializa no aumento de trabalhos de monografia que tratam de diferentes

aspectos da cultura e história dessas populações, implicando a construção e ampliação do

processo de politização da cultura e fortalecimento de um discurso identitário que extrapola a

dinâmica dos movimentos sociais. Essa representação da identidade ribeirinha abarca um

universo referencial maior do que as regiões de várzeas e ilhas, sendo produzida e também

reproduzida por pessoas que vivem na cidade, uma camada da população urbana, em especial

intelectuais e artistas, que apontam para a importância do rio como referencial na construção

do modo de vida e do imaginário urbano local.

Há também no campo “estético” uma crescente valorização da cultura rural e

ribeirinha, visto que em Cametá temos alguns grupos artístico-culturais que fazem um trabalho

de pesquisa sobre as manifestações da cultura popular do Município, montando espetáculos de

danças, teatro, músicas etc. Além disso, estes grupos trabalham num processo de divulgação da

cultura popular que vem ganhando destaque na mídia nos últimos anos, chegando a ser

atrações de programas televisivos a nível nacional como: Domingão do Faustão e Fantástico.

Esta valorização aponta para uma espécie de idealização romântica do ribeirinho, que tem

ganhado força nos dias atuais, sobretudo através da indústria do turismo que vive da venda do

exótico; nesse sentido, vem ocorrendo uma espécie de mercantilização da alteridade e da

diferença (Hall, 1997), com uma conseqüente (re)valorização das singularidades das culturas

não-urbanas, ou “culturas tradicionais”, criando-se assim verdadeiros “mercados étnicos”, a

venda de “estilos de vida” e o estímulo ao “consumo de identidades” (Yudice, 2004) .

Mas essa valorização das populações ribeirinhas é construída com base na

representação do “caboclo”, uma representação muito complexa e ambígua que historicamente

esteve ligada a um forte estereótipo e estigma, embora, hoje esteja passando por um processo

de tentativa de re-significação e valorização estética, sobretudo por artistas, que às vezes

assumem uma clara perspectiva de idealização, como podemos verificar a partir da fala de um

dos pesquisadores da cultural popular cametaense:

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Eu sempre falo da genialidade do caboclo. O caboclo na sua simplicidade e na sua

genialidade ele consegue ver o mundo de uma forma diferente, ou seja, ele consegue

ver o mundo com os olhos da alma, tudo o caboclo canta... O caboclo canta os

encantos e desencantos da vida (...) O mundo do caboclo é encantado, o mundo

dele é diferente de tudo, esse mundo caboclo das lendas, por exemplo, quando venta

muito no rio, o rio tá brabo, ou então vai chover, o pessoal tem medo do fogo do

mar, se aquieta, ninguém sai para caça, ninguém sai para o campo, a mulher não

toma banho menstruada na beira do no rio porque tem medo do boto... O caboclo

está junto da floresta, ele tá junto do rio... (Manuel Valente, artista e pesquisador da

cultura popular cametaense, entrevista cedida ao autor, em junho de 2005, grifo

nosso).

Nesta perspectiva, busca-se afirmar uma identidade “cabocla” como “autenticidade”,

“originalidade” frente ao “urbano” “artificial”. Essa representação identitária vai afirmar o

modo de vida ribeirinha, a territorialidade ribeirinha, o imaginário povoado por mitos e lendas

ligadas ao mundo das águas, onde o natural e sobrenatural se entrelaçam, como podemos

verificar nos poemas abaixo:

Vem meu amor na flor do meu cantar.

Nas águas do Tocantins á beira mar

Ver o boto e a cobra grande que me encantou,

Tomar banho de cheiro em Cametá

(Valente, 2001:1).

Sou “Cá”

de cabano revoltado

do caboclo engraçado

de um povo tão amante

Sou “em”

do encanto do boto

do encostar do porto...

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[...] Sou Cametaense nato

sou filho deste mato

Sou Pérola do Tocantins

(Barata, 2001:1)

Busca-se nessa forma de representação afirmar a identidade a partir de uma

dimensão estética dotada de grande significação simbólica, que tem sua “matéria prima” na

rica diversidade de manifestações da arte popular e numa dimensão lúdica do modo de vida

ribeirinho, onde o mundo da arte e o mundo do trabalho se entrecruzam como verificamos na

fala abaixo:

Uma das principais linhas da identidade do caboclo cametaense é na verdade a sua

cultura popular, são as suas manifestações artísticas (...) em especial o samba de

cacete que é a célula mãe de todas essas outras manifestações culturais. Que a

partir do samba de cacete o caboclo na sua simplicidade, na sua genialidade, na sua

sabedoria popular ele começou a reconstruir o seu mundo e a construir um mundo

diferente. O caboclo consegue (...) fazer a união da arte e do trabalho e consegue

que a arte e o trabalho vivam ali juntos numa única manifestação. (Manuel

Valente, artista e pesquisador da cultura popular cametaense, entrevista cedida ao

autor em junho de 2005, grifos nossos).

Essa forma de representação da identidade ribeirinha desloca-se de uma dimensão

mais política para a valorização de elementos de natureza estética e poética, mas também

trazem à tona memórias subterrâneas de r-exitência às formas de exploração, dominação e

estigmatização sofridas historicamente por essas populações, apontando uma certa conotação

política e para uma dimensão étnica e de classe no discurso identitário, como podemos

verificar através da fala de Manuel Valente, coordenador de um dos mais importantes grupos

artístico-cultural de Cametá:

Nós criamos a ópera cabocla que conta as histórias dos negros, das nossas

comunidades quilombolas (...) tem aquelas operas épicas, ai nós resolvemos

construir e montar uma ópera cabocla que fale do caboclo. Quais são nossos

instrumentos: os tambores de samba de cacete, os cacetes, maracá, banjo, violão e

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flauta, instrumentos caboclos. Como que a gente canta as músicas? Em quatro vozes

assim como é cantando no bangüê. Quais os ritmos das músicas ? Samba de cacete,

Banguê, bambaê, mariarê e boi. Esses são nossos ritmos, puxa! Tem aquela opera

do malandro que mostrou aquela identidade do malandro carioca, ai nós decidimos

criar a ópera cabocla que é pra mostrar a nossa identidade cultural (...) A ópera

conta história da formação de nossas comunidades quilombolas, da luta dos

nossos negros , dos nossos caboclos para manterem essa identidade cultural viva

(...) (Manuel Valente, artista e pesquisador da cultura popular cametaense, entrevista

cedida ao autor, em junho de 2005, grifos nossos).

A fala acima, aponta para afirmação da identidade “cabocla” como uma identidade

de r-existência, contudo, é difícil avaliarmos se o conteúdo político dessa representação do

“caboclo” tem um significado progressista, ou simplesmente, é uma reiteração de uma

representação marcada pelo imaginário moderno/colonial, que sempre subalternizou tais

populações. Neste sentido, cabe perguntar: o termo “caboclo” remete à construção de uma

identidade sociocultural em Cametá? É possível afirmar que a construção da identidade

“cabocla” em Cametá possui um conteúdo emancipatório? Parece uma questão de difícil

resposta, pois, a representação do “caboclo” tem uma intrigante e ambivalente herança

histórica, suas “raízes”, sua tradição aponta para um imaginário arraigado numa visão racista

e colonialista. Contudo, nos parece que essa representação vem tomando novas “rotas”,

“rumos” e seu conteúdo parece estar sofrendo um processo de “tradução”, de re-significação,

apontando para um outro horizonte que assinala para um processo de desestabilização dos

ranços colonialistas. Vale determo-nos um pouco mais nessas questões.

O termo “caboclo” é dotado de uma grande ambigüidade semântica e de uma

densa carga histórica de significados ambivalentes. Neste sentido, podemos identificar

diferentes formas de uso e significado desse termo. Segundo Lima Ayres (1999) podemos

apontar pelo menos duas grandes perspectivas de uso do termo: uma é a nível conceitual no

campo da Antropologia e a outra como categoria de classificação social de uso coloquial. No

que se refere ao uso do termo numa perspectiva conceitual, ele aponta para uma categoria

social fixa: o campesinato histórico da Amazônia. Já o uso do termo no sentido coloquial se

apresenta como uma categoria relacional de classificação social, marcada por um forte

estereótipo e estigma usado para identificar a categoria de pessoas que se encontram numa

posição inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica.

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Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem qualidades rurais,

descendência indígena e “não civilizado” (ou seja, analfabeta e rústica), que

contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada. Como categoria

relacional, não existe um grupo fixo identificado como caboclo. O termo pode ser

aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou

rústica em relação ao locutor ou locutora (Lima Ayres 1999: 7).

Assim, segundo Lima Ayres (1999) o uso do termo “caboclo” para a designação de

alguém é sempre transferido para a categoria social seguinte, que se situa em uma posição

inferior à do orador, até que alcance o índio: “o termo caboclo transmite o significado de que

o outro é inferior ao locutor ou à locutora, sua utilização também constitui um meio de

atribuir a identidade de branco a si mesmo” (p.11). Neste sentido, trata-se de um termo que

nomeia a alteridade subalternizada, seja em termos raciais, de classe social ou de origem

geográfica; quanto mais pobre, mais mestiço e mais rural ou ribeirinho, mais se chega

próximo da idéia do que seria o “verdadeiro caboclo”.

Prosseguindo em suas reflexões a autora (1999) ressalta que os atributos que definem

o termo “caboclo” categoria social de pensamento analítico são econômicos, políticos e

culturais. Neste sentido, o termo refere-se aos pequenos produtores familiares da Amazônia

(agricultores, extrativistas e pescadores) que vivem da exploração dos recursos da floresta. Os

principais atributos culturais que distinguem os caboclos dos pequenos produtores de

imigração recente são os conhecimentos da floresta, os hábitos alimentares e os padrões de

moradia.

O arquétipo do caboclo é também composto de traços culturais que distingue seu

modo de vida de uma existência branca e urbana. As características de uma

arquitetura distinta, os meios de transporte que ele usa, seus instrumentos de

trabalho, seu conhecimento e modo de manejar os recursos da floresta, seus hábitos

alimentares, sua religiosidade, mitologia, sistema de parentesco e diversos

maneirismos sociais expressam a existência de uma cultura cabocla que é básica

para o conceito desse típico amazônida (Lima Ayres, 1999:13).

Diante dessas formas e usos do termo, a autora descarta a possibilidade do termo

“caboclo” ser considerado uma forma de auto-identificação e afirmação identitária, pois, para

ela, o termo “caboclo” é uma categoria de classificação social empregada por “estranhos”,

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com base no reconhecimento de que a população amazônica compartilha de um conjunto de

atributos comuns. Mas esta não é uma categoria social homogênea nem absolutamente

distintiva, trata-se, segundo a autora, de um termo de natureza conceitual e não uma referência

de auto-identificação social.

No entanto, o conceito regional do “caboclo” é mais que uma referência a esta

população ou ao seu estilo de vida, ele se entrelaça e inclui um estereótipo que sugere que

esse habitante da Amazônia é preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os

mesmos traços culturais que distinguem os caboclos (a casa de paxiúba, a agricultura de

rodízio, os métodos indígenas de pesca e caça, entre outros) são tomados como evidência de

inferioridade, pois são vistos como “primitivos”.

A idéia de que os caboclos devem levar a culpa por sua situação social baseia-se no

estereótipo étnico do ameríndio. Como os caboclos são herdeiros de uma bagagem

cultural indígena acredita-se que eles sigam a mesma indisposição que se atribui ao

índio para desempenhar trabalhos árduos. Nessa extensão do preconceito,

considera-se que os caboclos possuem a característica estereotipada da ociosidade

indígena (em oposição ao ideal de produtividade). Comprova-se essa indolência

fazendo referência à modéstia de sua moradia e às suas poucas conquistas

econômicas. Suas condições de vida, por outro lado não são levadas em conta. A

exuberância da floresta e a magnitude do meio ambiente amazônico impõem um

contraste em relação à pobreza e, junto com a questão da raça, essa comparação é

responsável pelo fato de os caboclos serem julgados preguiçosos e em muitos casos

como fracassos (Lima Ayres, 1999:14).

Esse mito e essa ideologia se atualizam em vários momentos da história da Amazônia,

mas se intensificam com a expansão da fronteira capitalista e a chegada do projeto de

modernidade/colonial, a partir dos anos 1960, em que, junto com os violentos processos de

modernização do território, foi trazido um projeto civilizatório pautado nas ideologias do progresso

e do crescimento econômico, que busca afirmar o modo de vida urbano-industrial pautado na

lógica do consumo e no ideal da produtividade. Na verdade, de maneira mais profunda, essa

criação do estereótipo do “caboclo” se constrói e se justifica no âmago do próprio projeto

civilizatório e moderno/ colonial que se constitui baseado no etnocentrismo, presente desde o início

das descobertas imperiais que inventou o “outro” como a “alteridade subalternizada” Essa visão

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racista e colonialista foi reforçada ao longo da história e permaneceu mesmo após a colonização

através da colonialidade do poder e do saber (Mignolo, 2003; Quijano,2005).

Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e

do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência,

colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior

e universal. Mas é ainda mais que isso. Este metarrelato da modernidade é um

dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade

de povos, tempo e espaço como parte da organização colonial/imperial do mundo.

Uma forma de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este

dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano e da

sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade,

as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em

carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num

momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (Fabian, 1983), o

que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade. Existindo uma forma

“natural” do ser da sociedade e do ser humano, as outras expressões culturais

diferentes são vistas como essencial ou ontologicamente inferiores e, por isso,

impossibilitadas de “se superarem” e de chegarem a ser modernas (devido

principalmente à inferioridade racial). (Lander, 2005:34)

É fundamentado nesse imaginário que é construído a representação do “caboclo” ao

longo do tempo na história da Amazônia, Lima Ayres (1999) fazendo um balanço da

construção do termo, conclui que o caboclo é uma construção histórica de quem é nativo num

dado momento na Amazônia:

O amazônida típico de uma época é sempre definido em contraste com aqueles que

são migrantes recentes e os povos indígenas, de um lado, e o grupo social

identificado como branco, urbano e rico, de outro. O termo se constitui uma

categoria intermediária no sistema de classificação social, situada entre categorias

sociais opostas. Inicialmente, a oposição era designada exclusivamente em termos

de raça. Agora, a definição de caboclo implica numa série de oposições: pobre

versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade, e, na avaliação

moral, indolente versus empreendedor (Lima Ayres, 1999: 20).

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Diante da análise exposta podemos verificar, segundo Lima Ayres (1999), que em

ambas as formas de uso do termo, tanto na acepção acadêmica (conceito), quanto de uso

coloquial (estereótipo), constituem categorias de classificação social empregadas por pessoas

que não se incluem na sua definição. Conforme a autora (1999), com raras exceções esta

identificação “caboclo” é usada como auto-identificação, normalmente a palavra “caboclo” é

usada em discursos indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo, ou seja, é usada

somente para identificar o “outro”, a alteridade subalternizada.

O fato do “caboclo” não ser um termo de auto-designação está relacionado, em

primeiro lugar, com a conotação pejorativa que esta ligada ao próprio imaginário

moderno/colonial no seio do qual esse categoria foi criada com clara conotação racista. Em

segundo lugar, pelo fato do termo caboclo nunca ter sido associado a um movimento político,

como ocorreu, por exemplo, com os termos como o índio, seringueiro, ribeirinho, pescador

etc. (Lima Ayres, 1999).

Diante dessa contextualização Lima Ayres (1999) é categórica ao afirmar que o

termo ”caboclo” não pode ser compreendido como identidade, pois segundo a autora não há

uma identidade clara, forte e socialmente valorizada relacionada ao termo, senão “uma

encenação pré-fabricada, uma aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e

que este só adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele lhe considere)

superior” (p.26).

Assim, segundo a autora, as populações rurais e ribeirinhas da Amazônia não usam o

termo para afirmarem sua identidade, pois estes mobilizam outros referenciais como sendo

ligados à sua condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal,

agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra-

firme), aos laços de parentesco locais (“comunidades” de parentes), à cosmologia e à religião

que professa (o mundo dos encantados, o catolicismo popular ou as pentecostais de várias

denominações) (Lima Ayres, 1999).

Prosseguindo em suas reflexões, a autora afirma que as noções de identidade,

acima citadas, estão presentes no discurso direto quando essas populações “falam de si por

si”, diferente do uso da identificação de “caboclo” que sempre remete ao “outro”. Diante

dessa densa História, na qual se atribui um sentido negativo, pejorativo de natureza

colonialista e racista para o termo “caboclo”, a autora finaliza sua análise sentenciando a

impossibilidade de pensarmos o termo “caboclo” como identidade sociocultural e até mesmo

como categoria analítica.

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Concordamos com a grande maioria dos argumentos de Lima Ayres, no entanto,

elementos teóricos e empíricos da nossa pesquisa apontam para a possibilidade de pensarmos

o termo “caboclo” de maneira mais ambivalente, no qual o seu significado não pode ser

compreendido de forma completamente estável e fixo, encerrando definitivamente uma

conotação conservadora baseada na colonialidade do poder e no imaginário moderno/colonial,

mas como um termo cujo significado vem sendo desestabilizado, negociado e disputado,

mesmo que de maneira assimétrica.

Nessa perspectiva, gostaríamos de colocar algumas questões no sentido de

relativizar a afirmação da impossibilidade de pensarmos o termo “caboclo” como identidade

sociocultural. São argumentações preliminares que precisam ser aprofundadas, mas que

apontam para a possibilidade de pensamos uma perspectiva mais múltipla e ambivalente do

significado do termo “caboclo” na realidade Amazônica. Pois como vimos a há um claro

movimento em Cametá e de maneira geral por toda região que aponta para uma valorização

estética. Desse modo, é importante pensar até que ponto essa valorização não tem

ressonâncias políticas numa re-significação do termo.

Do ponto de vista teórico, entendemos que a reflexão desenvolvida pela autora se

assenta numa concepção que às vezes indica para uma visão essencialista e fundacional da

identidade. Assim, em alguns momentos, ela parece não levar em conta o caráter relacional e

contrastivo da identidade, na medida em que não atenta para o papel da diferença do “outro”,

daquilo que está “fora”, do “exterior” como elemento constitutivo das identidades das

populações rurais e ribeirinhas na Amazônia.

Partindo dessa compreensão, não é possível estudarmos a identidade de qualquer

grupo social apenas com base na sua cultura, ou no seu modo de vida, nas suas representações

de forma introvertida e auto-referenciada, pois as identidades e os sentimentos de

pertencimento são construídos de maneira relacional e contrastiva e, muitas vezes, conflitiva

entre uma auto-identidade (auto-atribuição, auto-reconhecimento) e uma hetero-identidade

(atribuição e reconhecimento pelo “outro”). São nessas teias complexas de valorações e

significados de reconhecimento e alteridade que se estabelece o diálogo e o conflito entre os

grupos, forjando as identidades.

Neste sentido, precisamos levar em conta a representação estereotipada e

estigmatizada do ”caboclo” na construção das identidades das populações rurais e ribeirinhas

da região. A auto-identificação dessas populações é influenciada pelas representações feitas

pelo “outro”, pois estamos falando não de simples relação harmoniosa, mas de disputas

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assimétricas envolvendo relações de poder, nas quais é preciso pensar: Quem tem poder de

representar?

Uma outra questão relevante para pensarmos o uso do termo caboclo como

identidade sócio-cultural é a forma como a autora trabalha a relação entre a “experiência” e a

“representação”, visto que o seu entendimento assinala uma necessidade de reprodução

mimética entre o “real” e a representação discursiva das identidades. Contudo, como

argumentamos ao longo desse trabalho, a identidade é construída com base na dimensão do

“vivido” e do “concebido”, de modo que envolve os espaços de representação (as vivências,

as sociabilidades, a imaginação, a subjetividade) articulados dialeticamente com as

representações do espaço (conceitos, teorias, ideologias).

Neste sentido, as representações marcadas pelo estereótipo, a ideologia colonialista,

as teorias antropológicas, todo este misto de “saber e ideologia”, contidos no termo “caboclo”,

tem uma importância fundamental na produção de uma consciência de pertencimento e na

construção das identidades. Podemos ter casos extremos de identidades construídas quase que

completamente deslocadas da dimensão do “vivido”, neste sentido apesar da identificação de

“caboclo” não ser assumida como auto-identificação no cotidiano das comunidades rurais e

ribeirinhas, isso não significa que ela não possa vir a ser um elemento de constituição de uma

identidade sociocultural.

Não se trata de julgarmos se é falso ou verdadeiro a relação entre o “real” e a

representação sobre uma identidade “cabocla”, pois como nos sugere Lefebvre (1980),

representações tanto revelam quanto encobrem relações sociais, tanto agem por simulação

como por dissimulação; neste sentido podem forjar a crença de que algo existe, mesmo

quando é inexistente, assim como podem fazer acreditar que algo não existe, mesmo

existindo, pois as representações não são nem falsas nem verdadeiras, mas, a um só tempo,

falsas e verdadeiras: verdadeiras como respostas a problemas reais e falsas na medida em que

dissimulam objetivos reais (Lefebvre, 1983).

Como em Cametá esse problema da representação do “caboclo” pode assumir um

outro significado? Qual relação do termo com a construção de uma identidade ribeirinha?

O que podemos verificar que o significado do termo “caboclo” assume uma clara

dimensão “estética” que remete a cultura rural e em especial a cultura ribeirinha, ao modo de

vida, ao imaginário, aos mitos mas de alguma forma subtrai o mundo do trabalho e sua

dimensão concreta o que acaba enfraquecendo o significado político do termo, o que implica

no não uso pelos movimentos sociais que trabalham com denominação pescador.

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Mas a afirmação dessa estética acaba tendo um significativo rebatimento na

construção de uma consciência socioespacial de pertencimento que valoriza a condição

ribeirinha, isto está expresso, por exemplo, na forma como os jovens que vivem na cidade de

Cametá, em especial, universitários se auto-identificam. Pois quando se pergunta qual é a

identidade do cametaense, os elementos mobilizados nas respostas indicam para uma

representação que sempre remete a cultura ribeirinha e a uma “estética cabocla”, tal como foi

descrito em nossas entrevistas. E mais, quando se projetou a imagem de Cametá a nível

nacional em programas televisivos, a representação mobilizada foi a do “caboclo” e a grande

maioria da população se reconheceu nesta representação. Neste sentido, compreendemos que

a representação do “caboclo” constitui um dos elementos da configuração da identidade

ribeirinha em Cametá.

A partir das diversas representações produzidas pelos diferentes agentes, podemos

verificar que a identidade ribeirinha em Cametá assume três configurações que se condensam

nas representações de pescador, ribeirinho e de caboclo. Essas identificações têm como

elemento em comum o papel do rio como espaço de referência identitária. Tais configurações

se constituem num processo de acúmulo e sedimentação de experiências, práticas discursivas

e significados que forjam uma consciência socioespacial de pertencimento, consciência essa

que valoriza e politiza a condição social, geográfica e cultural ribeirinha. Em linhas gerais

podemos verificar que cada uma dessas representações traz uma especificidade:

Pescador: Está ligada a função e atividade produtiva da pesca artesanal, sendo uma auto-

identificação mais usada no cotidiano pelas populações ribeiras. Essa identidade é bastante

reforçada pelos movimentos sociais, em especial, pela colônia de pescadores da Z-16, bem

como pelo discurso oficial dos órgãos estatais com quem essas populações se relacionam

como entidades financiadoras como bancos, a previdência social etc. A base dessa

identificação esta no mundo do trabalho, circunscrito à escala local das pessoas que vivem nas

ilhas e na região de várzea em Cametá. É uma identidade acionada com um alto grau de

funcionalidade estratégica, possuindo uma clara conotação política.

Ribeirinho: É uma representação presente no discurso das entidades ligadas ao campo da

educação, tais como a Secretaria Municipais de Educação, a Universidade, as ONGs, os

intelectuais e também os políticos. Esta expressão se refere ao mundo do trabalho e a cultura

como modo de vida e envolve uma escala mais ampla, abarcando também a dimensão do

urbano, visto que até na própria cidade o rio aparece como elemento fundamental na cultura e

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no modo de vida. Essa representação tem uma conotação e um significado político, contudo

sua mobilização é usada em menor grau nas lutas sociais por recursos e reconhecimento do

que a identidade de pescador.

Caboclo: O termo “caboclo” é dotado de uma grande ambigüidade semântica e de uma densa

carga histórica de significados ambivalentes. A representação do “caboclo” envolve ao

mesmo tempo um entrelaçamento entre um estereotipo construído historicamente e usado de

forma coloquial, com o conceito antropológico usado academicamente. O estereótipo e a

visão estigmatizante está profundamente arraigada no imaginário social, contudo vem

ocorrendo um processo de re-significação dessa representação negativa a partir de uma

valorização estética por artistas e intelectuais locais que têm construído um processo de

valorização positiva e, as vezes, idealizada do “caboclo”. Essa representação é mais ampla do

que a representação de “pescador” e de “ribeirinho”, pois abarca uma escala de toda a

Amazônia e incorpora a identificação de todas as populações “tradicionais“ da região. Esta

representação envolve ao mesmo tempo uma dimensão geográfica (rural e ribeirinha) uma

dimensão étnica/racial (negros, índios e mestiços) e uma dimensão de classe (população

pobre explorada e marginalizada). Contudo, a conotação e o significado político do termo é

muito problemática e ambivalente, apontando ora para um significado racista e colonialista,

ora esboça perspectivas progressistas no sentido de valorização da cultura ribeirinha .

Portanto, a identidade ribeirinha em Cametá envolve essa complexa relação entre

representações de pescador, ribeirinho e caboclo que se entrelaçam, se justapõem e

sobrepõem contraditoriamente de maneira dialética e ambivalente a partir de um jogo de

escalas, dimensões e interesses, no qual elementos do “vivido” e do “concebido” se fundem

na construção de uma consciência socioespacial de pertencimento que tem no rio o seu espaço

de referência identitária.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho buscamos abordar o a questão das identidades territoriais na

Amazônia apontando para a produção das identidades como elemento fundamental para

compreendermos a complexa dinâmica social e territorial da Amazônia contemporânea.

Analisamos como as “populações tradicionais” vêm construindo “políticas culturais”, ou seja,

um processo de politização de suas culturas e “costumes comuns” produzindo uma espécie de

“consciência costumeira” 27 que implica a afirmação de suas territorialidades e de suas

identidades territoriais nas lutas de r-existência contra o processo de modernização/colonial

implantado na região.

Essa realidade emergente está expressa nas lutas das populações indígenas,

populações quilombolas, das populações extrativas como seringueiro, mulheres quebradeiras

de coco de babaçu, dos pequenos agricultores e dos pescadores ribeirinhos, entre outros. O

protagonismo político e a constituição de novos sujeitos políticos a partir da produção de

novas identidades, bem como a construção de redes políticas internacionais resultantes da

“ambientalização” e da “etnização” das lutas sociais na Amazônia vêm redefinindo as formas

de lutas e r-existência na região .

Essa nova realidade coloca a questão do reconhecimento e da diferença (lutas contra

as formas de dominação, opressão e discriminação) como um importante elemento para a

compreensão das lutas sociais na região, colocando a necessidade de irmos para além das

interpretações usuais da questão das lutas sociais como lutas de classe pela redistribuição

material de recursos (lutas contra formas de exploração, marginalização e privação).

Contudo, isso não significa que menosprezamos a contradição de classes na dinâmica

conflitiva da região e, sim, compreendemos que ela é mais complexa e envolve uma dimensão

da alteridade que se materializa nas diferenças étnicas e culturais expressas nos diferentes

modos e de vida e de territorialidades.

Essa especificidade da formação socioespacial Amazônia deriva da sua condição de

uma região de fronteira, entendida como espaço onde resultantes do (des)encontro de

temporalidades na contemporaneidade (Martins,1996), produzindo muitas vezes

incomensuráveis diferenças de subjetividades históricas e sensibilidades políticas. Assim na

27 Expressão usada por Thompsom (1998) para se referir a emergência de uma consciência política e de cultura plebéia rebelde que buscava nos costumes e na tradição a legitimidade das suas lutas para afirmação de determinadas formas do direito consuetudinários e da economia moral e oposição a economia capitalista e do direito liberal . Trata-se de atribuir um conteúdo emancipatório para as culturas tradicionais normalmente vistas como sinônimas de conservadorismo.

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fronteira, as temporalidades históricas, as “concepções de destino”, as matrizes de

racionalidades são confrontadas de maneira mais sensível e dramática, pois como o processo

de modernização/colonial é recente as linhas de fratura que configuram as divisões sociais,

étnicas, econômicas, territoriais e políticas estão expostas de maneira mais contundente

resultando numa realidade de grande conflitualidade.

Desse modo, essa nova ordem social e territorial moderna/colonial ainda não se

sedimentou e cristalizou. Essa ordem produzida pelos novos atores sociais hegemônicos com

suas temporalidades e racionalidades não conseguiram suprimir os “territórios da diferença”,

expressos nas práticas, nos saberes, nas sociabilidades e no modo de vida das “populações

tradicionais” que permanecem num processo de r-existência ao avanço da fronteira. Pois,

como destaca Gonçalves (2001), faltou a dimensão temporal para que fosse sedimentado um

novo “mapa de significações” que atribua sentido a essa ordem instituída:

O novo padrão espacial que tenta se implantar na região pós década de sessenta,

não chegou propriamente a se efetivar com aqueles atributos que nos indicassem a

conformação de um padrão de organização do espaço estrada-firme firme-subsolo.

Não que não tenha sido tentado. Faltou-lhe a dimensão temporal que pudesse ter

ensejado a subjetivação de um novo mapa de significações, forjando na paisagem

geográfica o mínimo de permanência e estabilidade, que conformasse em todos e em

cada um o quadro que desse sentido às suas vidas (Gonçalves, 2001, p. 114).

Diante desse quadro onde não ocorreu a “sedimentação” do novo “mapa de

significações” a ponto se fundir as temporalidades e se matar a alteridade, permaneceu um

híbrido complexo com múltiplos tempos-espaços e identidades que abre espaço para

emergência de diversos antagonismos socais. Esse contexto coloca o papel das

territorialidades e das identidades territoriais no centro da compreensão das lutas e conflitos

na Amazônia.

É nesta perspectiva que buscamos compreender a emergência da construção da

identidade ribeirinha em Cametá, nesse processo procuramos trabalhar a especificidade da

construção identitária nesse município, bem como compreender tal processo dentro de uma

escala mais ampla da região, mostrando como o processo de construção das identidades é uma

questão eminentemente política.

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A título de síntese, para o desfecho deste trabalho, gostaríamos de retomar os

pressupostos teóricos enunciados no final do primeiro capítulo, no qual esboçamos um

conjunto de hipóteses teóricas e gerais sobre a construção das identidades territoriais na

Amazônia. Para finalizarmos esse trabalho retomaremos essas questões a luz da

especificidade empírica da construção da identidade ribeirinha em Cametá.

Essa síntese apresenta um caráter provisório, mas representa os contornos dos

resultados da pesquisa; temos consciência da precariedade de algumas de nossas formulações,

sendo necessários desdobramentos teóricos e empíricos para traçarmos uma gramática mais

sofisticada das lutas sociais e da construção das identidades territoriais na Amazônia.

● A identidade ribeirinha é uma construção histórica:

A identidade ribeirinha não é uma essência, não é uma substância, nem é

naturalmente construída, ela é, sim, uma construção histórica e social que teve seu conteúdo

re-definido e re-significado pelas mudanças na história, pois mesmo que a condição social,

cultural e geográfica ribeirinha seja um produto de uma longa duração resultante de processo

de adaptação das populações na relação com a natureza, a consciência socioespacial de

pertencimento ribeirinha e a afirmação de um discurso identitário que valoriza essa condição é

recente.

É somente a partir final dos anos de 1980, a partir das lutas pela afirmação material e

simbólica, que as populações ribeirinhas de Cametá vão começar a politização de sua cultura,

é no processo de lutas e conflitos sociais que vai se forjar essa identidade. Trata-se de uma

identidade que busca se afirmar num duplo movimento: está ancorada nas “raízes” “tradições”

(daquilo que é profundo, permanente, único e singular, ou seja, daquilo que é próprio da

cultura ribeirinha e foi moldado a partir de uma moldura temporal de longa duração) bem

como de “rotas”, “opções”, “traduções” que envolvem aquilo que é efêmero, substituível e

circunstancial28 (trata-se da afirmação de estratégias que mobilizam elementos de oposição e

negociação no presente imediato ou ainda projetos futuros, como por exemplo a afirmação da

condição de “atingidos” da hidrelétrica de Tucucuí).

● A identidade ribeirinha é uma construção relacional e contrastiva:

28 Essa caracterização da identidade como uma construção entre raízes e opções é inspirada na discussão de Boaventura de Souza Santos (1997) sobre uma nova concepção da história a partir das teses sobre a história de Walter Benjamin.

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A identidade ribeirinha não é uma “coisa em si” ou “um estado ou significado fixo”,

mas uma relação, uma posição-de-sujeito, construída de forma relacional e contrastiva visto

que os processos de identificação e a consciência socioespacial de pertencimento ribeirinha e,

conseqüentemente, a identidade, vem sendo construída na/e pela diferença e não fora dela.

Desse modo, podemos verificar que a identidade ribeirinha em Cametá vem se

construindo de maneira relacional e contrastiva em relação à identidade das elites oligárquicas

que historicamente afirmaram um discurso identitário dos homens “notáveis”. É na luta contra

a hegemonia das formas de exploração, dominação e discriminação exercida pelas oligarquias

que essas populações vêm configurando sua identidade. Essa identidade também tem se

afirmado como forma de r-existência ao processo de modernização e expansão da fronteira

que trouxe graves conseqüências materiais e simbólicas para a vida dessas populações,

sobretudo, pelo impacto resultante da construção da UHT. Pois o processo de

modernização/colonial trouxe consigo um novo imaginário que valorizava o modo de vida

“moderno” e urbano representado na figura do migrante “pioneiro” “empreendedor” que é

uma espécie de antítese do “caboclo” que personifica a cultura e o modo de vida rural

ribeirinho.

Mas também a identidade ribeirinha se constitui contrastivamente em relação a

identidade de “trabalhador rural” e “agricultor”, identificações mais comuns e tradicionais

nos movimentos sociais camponeses. É nesses encontros/confrontos, na oposição e

negociação com essas outras identidades que as populações ribeirinhas vêm se constituindo

como sujeitos políticos em Cametá.

A própria identidade ribeirinha acaba por assumir diferentes configurações

relacionais, diferentes posições-de-sujeito, tais como: “pescador”, “ribeirinho” e “caboclo”.

Essas posições-de-sujeito envolvem uma complexa relação de dimensões, escalas e interesses

que se complementam e se antagonizam na construção de uma consciência socioespacial de

pertencimento que tem o rio como espaço referencial de construção identitária.

● A identidade ribeirinha envolve uma dimensão material e simbólica:

A identidade ribeirinha é representação, linguagem, discurso a partir do qual se

constroem os sistemas de classificações simbólicas que lhes dão sentidos e significados,

embora esta identidade não seja algo puramente subjetivo e não se restrinja à “textualidade” e

ao “simbólico”. Desse modo, mesmo que a identidade ribeirinha ganhe existência e

concretude pela formas de representação e discursos construídos pelos agentes, ela não é uma

construção puramente imaginária que despreza a realidade material e objetiva das

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experiências e das práticas sociais, pois tais discursos se forjam a partir das experiências

cotidianas vivenciadas pelas pessoas nas diversas dimensões da vida social.

Neste sentido, a construção da identidade ribeirinha envolve elementos de natureza

simbólica e subjetiva (as representações, os discursos, os símbolos, os sistemas de

classificação simbólica) bem como seus referentes mais “objetivos” e “materiais” (a

experiência social em sua materialidade: o modo de vida ribeirinho com seus fazeres, saberes

e sociabilidades).

Portanto, a identidade ribeirinha vem sendo construída tanto pelas diferenças

culturais e por sistemas simbólicos de classificação (diferença de natureza) quanto pelas

formas de classificação social: desigualdade e exclusão social (diferenças de grau), ou melhor,

pelos dois processos concomitantemente, a partir da imbricação entre a produção das des-

igualdades sociais, bem como da marcação das diferenças culturais.

● A identidade ribeirinha é estratégica e posicional:

As identidades estão estreitamente ligadas às relações de poder (Hall 2004; Silva,

2004). Assim, todos os sistemas simbólicos de classificação que organizam e dão sentido e

significado à marcação das diferenças culturais e das desigualdades sociais na construção das

identidades são impregnadas de poder (Woodward, 2004).

Assim, longe de qualquer forma de essencialismo ou autenticidade fundacional o que

verificamos é que a afirmação de uma identidade ribeirinha em Cametá se constitui como

estratégia funcional e simbólica de afirmação do modo de vida e cultura ribeirinha. O jogo de

poder para a representação da identidade está em conexão com as modalidades mais amplas

do exercício do poder na sociedade cametaense e isso implica em compreender a identidade

ribeirinha como produto e produtora das lutas e conflitos sociais, políticos e culturais.

A afirmação da identidade ribeirinha não busca somente o reconhecimento simbólico

e o respeito contra as formas de discriminação, desrespeito e estigmatização contra a cultura e

modo de vida ribeirinho, o que está em jogo nas lutas pela afirmação da identidade ribeirinha

em Cametá não é somente o reconhecimento, mas também a garantia de direitos, são lutas

pela redistribuição dos recursos materiais da sociedade para melhoria das condições de

exploração, marginalização e privação socioeconômica sofrida historicamente por essas

populações.

● A identidade ribeirinha é uma identidade territorial.

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A identidade ribeirinha é uma identidade territorial visto que é uma identidade

construída a partir da relação concreto/simbólica e material/imaginária com o territó(rio), ou

seja, o rio é o referente central da sua construção. A identidade ribeirinha envolve dois

elementos fundamentais:

a) O rio como espaço de referência identitária. Apesar da identidade em Cametá assumir

diferentes configurações como “pescador”, “ribeirinho” e “caboclo”, o rio é o referente

espacial central tanto no sentido concreto quanto simbólico para a construção das diferentes

configurações da identidade ribeirinha, pois é nele que se ancora a construção da identidade

social e cultural das populações ribeirinhas. Ele é matriz espaço-temporal (os meios e os

ritmos) onde se realiza a experiência social e cultural, é nele que são forjadas as práticas

materiais (formas de uso, organização e produção do espaço) e as representações espaciais

(formas de significação, simbolização, imaginação e conceituação do espaço) que constroem

o sentimento e o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em relação a um

território.

b) A consciência socioespacial de pertencimento ribeirinho: O sentido de pertença, os laços

de solidariedade e de unidade que constituem o sentimento de pertencimento e de

reconhecimento dos ribeirinhos como sujeitos coletivos, como grupo: como uma

“comunidade de vida” e uma “comunidade de destino”, uma “comunidade imaginada”

pertencente a um lugar e a um territó(rio), não é algo natural ou essencial, é uma construção

histórica, relacional/contrastiva e estratégica /posicional.

Esta consciência de pertencimento a um lugar, a um território foi e é construída a

partir das práticas e das representações espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio

funcional-estratégico sobre o rio (finalidades/funções) e a apropriação simbólico/expressiva

do rio (afinidades/afetividades/simbolizações).

A possibilidade da emergência dessa consciência de pertencimento se deu na luta, no

conflito e na busca de segurança e liberdade para reprodução do modo devida dessas

populações contra as diferentes formas de exploração, dominação e discriminação. É no

processo de r-existência que vem se forjando a identidade ribeirinha, pois é no processo de

disputa e de batalha que a identidade torna-se uma questão importante e de visibilidade.

● A construção da identidade ribeirinha envolve a dimensão do “vivido” e do “concebido”.

A identidade ribeirinha em Cametá é construída a partir de uma relação dialética

entre o “vivido” e “concebido”. Neste sentido a produção da identidade ribeirinha é

construída a partir de uma apropriação simbólico-expressiva do rio tendo como referencial a

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subjetividade e a experiência do “espaço vivido” das populações ribeirinhas. O sentido de

pertencimento é tecido na densidade e espessura de um cotidiano compartilhado localmente

com fazeres, saberes e sociabilidades amalgamadas na memória e no imaginário coletivo.

Do mesmo modo, essa mesma identidade envolve um conjunto de “representações

do espaço” que se refere a um domínio lógico-racional do rio, que se materializa no “espaço

concebido”, um produto de “códigos espaciais” produzidos intelectualmente através de

teorias, conceitos e ideologias produzidas pelo Estado (através do discurso dos diversos

organismos que se relacionam com as populações ribeirinhas) pelo grande capital (com seus

projetos e ideologias como, por exemplo, a parte das discussões sobre biodiversidade e

desenvolvimento sustentável) pelos cientistas sociais (com suas teorias e conceitos sobre as

populações ribeirinhas, no caso do conceito de “caboclo”, “populações tradicionais” etc),

pelos burocratas e os políticos (com seus discursos e projetos que impõem determinadas

formas de representar a realidade dessas populações) e pela mídia (através de seus programas

que criam imagens, idealizações, estigmas nas representações do ribeirinho como “caboclo”).

Esse conjunto de representações que é “misto de saber e ideologia”, nos termos de Lefebvre

(1986), têm sido fundamentais na construção da consciência socioespacial de pertencimento

ribeirinha.

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