monografia jauner torquato

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Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Curso de Jornalismo REFLEXOS CULTURAIS E IDENTITÁRIOS DA COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA: uma análise da revista piauí. JAUNER TORQUATO RODOVALHO Belo Horizonte, dezembro de 2008

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Page 1: Monografia Jauner Torquato

Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte

Curso de Jornalismo

REFLEXOS CULTURAIS E IDENTITÁRIOS DA COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA:

uma análise da revista piauí.

JAUNER TORQUATO RODOVALHO

Belo Horizonte, dezembro de 2008

Page 2: Monografia Jauner Torquato

JAUNER TORQUATO RODOVALHO

REFLEXOS CULTURAIS E IDENTITÁRIOS DA COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA:

uma análise da revista piauí.

Projeto Experimental apresentado em cumprimento parcial às exigências do curso de graduação em

Comunicação Social – Jornalismo da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte para

obtenção do grau de bacharel.

Orientadora: Professora Luciana de Oliveira

Belo Horizonte, dezembro de 2008

Page 3: Monografia Jauner Torquato

ATA DA DEFESA DE PROJETO EXPERIMENTAL DE

JAUNER TORQUATO RODOVALHO

Page 4: Monografia Jauner Torquato

Agradecimentos

Resumir a construção e desconstrução de nossas vidas em meras referencias a todos

aqueles que integraram esse processo talvez seja a tarefa mais difícil desse trabalho. Lembrar

e relembrar de todos sem prescindir o apontamento de nenhum ente querido dessa estrada que

percorro é para mim tão perturbador quanto saber que vários deles podem me deixar sem o

meu consentimento.

Dito isso, começo esse compilado, e pretendo ser breve, não só citando como

homenageando meus grandes, queridos e saudosos avos. São, para tudo que sei, exemplos que

guardo no coração para sempre.

Porém, assim como me vi sem eles, quase que brevemente encontrei com as duas

pedras mais raras da minha vida, Pedro e Davi. Meus filhos que impulsionam e alimentam

esse espírito que até sua chegada vagava sozinho.

À minha mãe atribuo toda força e determinação que correm por essas veias tão

medicadas pelo longo período da minha infância diante do seu olhar sempre atento, cuidadoso

e determinado a superar tudo.

Minha linda irmã e todos os meus tios, tias, primos e primas que compõem essa

imensa e fraterna família que segue o legado de seu Severino, exemplo maior para todos.

Guardo cada um no coração.

Nos capítulos mais recentes da vida, agradeço imensamente às duas famílias que me

incorporei. Dedé, Carlin e Pedro Ivo se encarregaram de parte dessa trilha, junto a Ronaldo e

Telma que souberam me entender nas horas mais improváveis do mundo.

Por fim, minha musa inspiradora dessas linhas desconstrutivas, mais do que querida,

a tenho guardada como mestra e exemplo de dedicação e, principalmente, sinergia com os

meus pensamentos. Lu, obrigado por conduzir esse fluxo de sinapses e se empenhar na

consolidação desse trabalho tão valioso para mim.

Amo todos vocês.

Page 5: Monografia Jauner Torquato

Resumo

O presente trabalho se volta para a compreensão das manifestações editoriais no

contexto da pós­modernidade. Para tanto, sua estrutura se divide em três eixos principais: uma

breve descrição das mudanças ocorridas no âmbito social entre a modernidade e a pós­

modernidade abordando questões relativas às novas estruturas da vida em sociedade; a

evolução tecnológica dos meios de comunicação e seus reflexos na estruturação das paisagens

culturais que resultam em identidades indissociáveis desse fluxo; por fim, a análise de piauí,

revista que concretiza essas mudanças na esfera das publicações editoriais.

Page 6: Monografia Jauner Torquato

Lista de Figuras

Figuras...........................................................................................................................45

Figura 01: Estrutura aleatória das editorias.......................................................45

Figura 2: Fotos com intervenções artísticas......................................................46

Figura 3: Capas das edições selecionadas.........................................................47

Figura 4: Fotojornalismo subjetivamente exposto............................................48

Figura 5: Fotojornalismo subjetivamente exposto............................................49

Figura 6: Única menção da edição de natal à festa tradicional.........................50

Figura 7: Seqüência de quadrinhos distribuídos pelas páginas da revista........51

Figura 8: História em quadrinhos, paródia da

consagrada história de Hamlet..........................................................................52

Figura 9: Simulacro representado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche........................................................................53

Figura 9.1: Simulacro representado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche........................................................................54

Figura 9.2: Simulacro representado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche........................................................................55

Figura 10: Charges da editoria esquina.............................................................56

Page 7: Monografia Jauner Torquato

Sumár io

Introdução.................................................................................................................08

Capítulo I – Uma Odisséia Social............................................................................10

Capítulo II ­ Panorama da comunicação contemporânea e suas relações com a cultura

e os indivíduos...............................................................................................................18

Capítulo III – Desconcertante Construção....................................................................30

3.1 Dimensão de análise produto e contexto.............................32

3.2 Dimensão de análise cânone jornalístico – objetividade e

subjetividade.............................................................................35

3.3 Dimensão de análise jornalismo literário.............................39

3.4 Dimensão de análise figuras de linguagem..........................43

3.4.1 Simulacro..............................................................43

Considerações Finais....................................................................................................57

Referências Bibliográficas............................................................................................59

Page 8: Monografia Jauner Torquato

8

Introdução

Há algo de muito perturbador nesse trabalho. No que concerne aos problemas da

dialética, por maior que seja o número de elementos inseridos no processo de análise algum

aspecto sempre inclina­se para tencionar contrariamente ao proposto.

De forma elementar, o que será trazido nessas linhas é um breve retrato ou

representação fragmentada dos processos culturais e sua relação com a sociedade e o

elemento institucional dos meios de comunicação.

O primeiro capítulo traça um breve panorama da transição experimentada entre a

modernidade e a pós­modernidade. Resultante de uma série de alterações na esfera social, a

pós­modernidade está repleta de controvérsias, principalmente quando referenciada em

função do tempo que lhe antecedeu.

No entanto, a trajetória do homem moderno, iniciada a partir da ideologia iluminista,

que proveu o alicerce para o desenvolvimento técnico­científico, racionalização e

emancipação, se projetou até os dias de hoje resultando em profundas mudanças dos atributos

culturais.

Para arquitetar essa análise, a cultura e os meios de comunicação se apresentam

sempre de forma transversal. Essa relação é concebida a partir da colocação de Castells (1999,

p. 354), ele enuncia que “a comunicação, decididamente, molda a cultura”.

Tendo a apreciação dessa constatação como desafio, a modernidade é trazida a partir

dos seus elementos expostos pelas metanarrativas. Se durante o período de intenso culto à

prosperidade e ufanismo científico reinavam os profundos esforços interpretativos, na pós­

modernidade, todo o conjunto de gêneros, fronteiras, linguagem e tipos historicamente

estáveis se misturam. Seus fragmentos deram origem a infinidades de intertextualidade,

hibridismo através de recursos como simulacro, paródia, pastiche, colagem/montagem, entre

outros. Featherstone caracteriza esse fenômeno como “uma superprodução de bens culturais,

difícil de controlar e ordenar, que desestabiliza as hierarquias simbólicas existentes”.

Esses bens culturais estão inseridos tanto no contexto social, pelas vias da mediação,

quanto na esfera econômica, representada pelo capitalismo que se serve, junto às demais

instituições, da possibilidade de atribuição dos valores simbólicos aos seus produtos.

Page 9: Monografia Jauner Torquato

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A partir desse movimento, novas rupturas sociais são expostas de forma cada vez

mais constante. O tempo assume modelos frenéticos, seja no transporte físico ou virtual, e a

nova relação do homem com o passado traz uma inconstância e por conseqüência o que Hall

(2001, p.8) denomina de fragmentação das “paisagens culturais de classe, gênero,

sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas

localizações como indivíduos sociais”.

O capítulo 2, por sua vez, expõe um histórico sobre a evolução dos meios de

comunicação e a relação mais direta entre seus desdobramentos na representação do poder

simbólico e a questão da “crise de identidade”. (HALL, 2001)

A discussão sobre identidade e cultura remete ao capítulo 3 responsável pela análise

do objeto proposto, a revista piauí. Com o objetivo de compreendê­la tanto perante os

padrões institucionais dos meios de comunicação, quanto ao que concerne às questões

técnicas, foram estipulados quatro eixos: produto e contexto, o cânone jornalístico, jornalismo

literário e figuras de linguagem.

Page 10: Monografia Jauner Torquato

10

Capítulo I

Uma Odisséia Social

Compreender o contexto atual das transformações sociais vigentes parece muito mais

um exercício de experimentar os diferentes fluxos observados na informação, no

deslocamento pelas cidades espalhadas ao redor do globo, diagnosticar nas paisagens urbanas

os fragmentos dos quais fazemos parte do que tentar fixar padrões simbólicos que possam nos

seguir referendando da infância ao fim da vida. O presente capítulo introduz um panorama

sobre a transição dos contextos sociais a partir de uma sociedade representada pela produção

industrial, bens materiais, situada na modernidade, até o seu modelo informacional, cujo papel

é o da abstração virtual, da velocidade instantânea, das representações simbólicas manifestas,

da completa efemeridade e descomprometido estado de ser vivenciados na pós­modernidade.

A reconstrução das paisagens contemporâneas dessa “realidade complexa” tem se

processado de forma tão abissal que não só a estrutura física dos objetos é totalmente mutante

como a referência que temos dele é da mesma forma fluida e instável. (HARVEY, 1989, p.

46)

Os meios de comunicação através do seu domínio das esferas lingüísticas e de

expressão têm relevância fundamental nessas transformações. A contínua evolução que

permitiu a sua presença cada vez mais ubíqua através das “novas mídias” (CASTELLS,

1999), responsáveis pela segmentação no consumo e participação produtiva, resultou em uma

recombinação dos elementos culturais construídos pela sociedade ao longo do tempo.

Conforme analisa Santos (1980, p. 15), “a linguagem dos meios de comunicação dá

forma tanto ao nosso mundo (referente, objeto), quanto ao nosso pensamento (referencia,

sujeito)”. Diante da onipresença desses meios, “para serem alguma coisa, sujeito e objeto

passam ambos pelo signo... palavra, número, imagem” ali representados.

Hall (2001) atribui a esse processo de “desreferencialização” (SANTOS, 1980) a

fragmentação das “paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos

sociais”. (HALL, 2001, p. 8)

Isso é fruto da sociedade contemporânea denominada a partir de várias terminologias

como: Sociedade da informação, sociedade em rede, sociedade pós­industrial, sociedade pós­

moderna, sociedade de consumo ou simplesmente sociedade globalizada.

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Mas a sociedade industrial e a modernidade que antecederam o contexto pós­

moderno e se posicionam como ponto de referência para tal caracterização, ergueram pelas

vias do contrastante e “sentidos conflitantes” permeados pelo ímpeto de mudanças profundas

da tradição, dos meios de produção, entre outros aspectos vigentes. (HARVEY, 1989, p. 21)

A modernidade foi um projeto de ideologia humanista estruturada a partir das

concepções iluministas. “Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos

pensadores iluministas ‘para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a

arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas’”. Resultando em um movimento

que proveu o alicerce para o desenvolvimento técnico­científico, racionalização, emancipação

e, principalmente, da individualização. (HARVEY, 1989, p. 23)

O ideal de liberdade política pautado na racionalidade humana tinha como desafio o

rompimento das estruturas sociais vigentes no antigo regime, os estamentos. A dispersão do

modelo de vida comunitário refletida no plano social paralela à dissociação entre público e

privado, com o surgimento do Estado burocrático, representando um novo ordenamento

político, foram vias para o surgimento da propriedade e por conseqüência de um senso de

empreendedorismo individual.

O trabalho, as “mudanças técnicas, cientificas e políticas” (BAUDRILLARD, 1982

p. 1) instituem um novo paradigma para a delimitação dos objetivos da vida. Perpetuar adota

uma conotação de transitoriedade do vigente, em substituição aos moldes antes consolidados

da tradição, agora tidos com residual.

A dinâmica espaço­temporal moderna também incide profundamente na

compreensão do passado, presente e futuro. Esses elementos da tradição considerados

residuais são incorporados à vida como “um passado (tempo findo)” em oposição a um futuro

constantemente projetado à luz das rupturas que passam a ser cotidianas. (BAUDRILLARD,

1982, p. 3)

Essa dialética conflituosa do tempo, que se configura como ponto de partida da

tradição em uma progressiva linha rumo ao moderno, é acompanhada pelo “aspecto

cronométrico” da produção industrial. A vida antes compreendida pelas estações, celebrações

comunitárias em dias tradicionalmente reconhecidos por datas festivas, e até mesmo pela

paisagem social bem delimitada, que possibilitava o acompanhamento do desenvolvimento

infantil até envelhecimento do adulto, é remontada sob escalas cronométricas. Os critérios do

novo tempo abstrato se apóiam no trabalho, na produtividade e se apoderam também do

“tempo “livre”” e dos “lazeres”. (BAUDRILLARD, 1982, p. 3)

Page 12: Monografia Jauner Torquato

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Conforme Baudrillard (1982, p. 2) afirma, esse presente próspero atendia a

amplitudes e “simultaneidade mundial”. Berman descreve a total ausência de fronteiras:

Ser moderno é encontrar­se num ambiente que promete aventura, poder, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernos cruzam todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia; nesse sentido, pode­se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas trata­se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angustia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, “ tudo que é sólido desmancha no ar. (Berman apud HARVEY, 1992, p. 21)

Mas esse contexto do desenvolvimento dos processos produtivos, oportunidades de

conquista da autonomia pelo trabalho também foi palco para as críticas a essa liberdade e

mesmo às suas impossibilidades já que novos constrangimentos substituem os antigos na

mesma proporção em que produzia riquezas e inaugurava um novo tipo de desigualdade:

(...) nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os estamentos já dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e perspectivas de vida e determinavam o âmbito dos projetos e estratégias realistas de vida. A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar. (BAUMAN, 2001, p.13)

O conflito trazido ao espírito empreendedor do homem também pôs em dúvida os

meios e fins, aprofundando a descrença ainda maior. O legado de críticas às concepções

iluministas em torno dos usos e da aplicabilidade da racionalidade e do desenvolvimento da

ciência é trazido por Max Weber e Nietzsche com tamanha veemência que suas palavras

parecem traduzir “o epitáfio da razão iluminista” (HARVEY, 1992, p. 25).

“Weber alegava que a esperança e a expectativa dos pensadores iluministas era uma amarga e irônica ilusão. Eles mantinham um forte vínculo necessário entre o desenvolvimento da ciência, da racionalidade e da liberdade humana universal. Mas, quando desmascarado e compreendido, o legado do Iluminismo foi o triunfo da racionalidade....proposital­instrumental. Essa forma de racionalidade afeta e infecta todos os planos da vida social e cultural, abrangendo as estruturas econômicas, o direito, a administração burocrática e até as artes. O desenvolvimento da [racionalidade proposital­instrumental] não leva à realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma “ jaula de ferro” da racionalidade burocrática da qual não há como escapar” (Bernstein apud HARVEY, 1992, p. 25).

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A pós­modernidade tem grande fundamentação no ceticismo anunciado por

Nietzsche anos antes da sua manifestação. Surge um tempo onde impera a pluralidade

expressa em sistemas abertos de expressão, interpretação e entendimento. As figuras

representativas que perduraram durante a modernidade (o socialismo, o sujeito cartesiano, o

urbanismo), através de tentativas de unificação por teorias de abrangência universal, as

metanarrativas, manifestaram pela espontânea impossibilidade de abarcar toda humanidade e

circunscrevê­la em uma estrutura determinista, que a “gaiola de ferro” da racionalidade

apontada por Weber é incapaz de conter todas as complexas e diversas relações sociais que

permeiam o contexto da vida humana.

A trajetória delimitada pelo indivíduo passou a reconhecer, também, as

particularidades inseridas em todos os contextos. Dessa forma, foi possível perceber que as

várias “realidades existentes podem coexistir, colidir e se interpenetrar”. (HARVEY, 1989, p.

46)

Ao tratar do pós­modernismo, Harvey sugere a documentação de “mudanças desse

tipo em toda uma gama de campos distintos”. Em análise ao “romance pós­moderno” através

da “passagem de um dominante “epistemológico” a um “ontológico” ele retrata o surgimento

de um “tipo de perspectvismo que permitia ao modernista uma melhor apreensão do sentido

de uma realidade complexa”. (HARVEY, 1989, p. 46)

Com a percepção da interseção de realidades e principalmente de um novo

entendimento das instituições que alavancaram a modernidade, o pós­moderno traz à tona

uma série de incertezas por aceitar com certa naturalidade a existência do transitório, fugidio e

contingente, fatores atribuídos à modernidade por Baudelaire, mas conforme conclui Harvey:

“contudo, não implica que o pós­modernismo não passe de uma versão do modernismo;

verdadeiras revoluções da sensibilidade podem ocorrer quando idéias latentes e dominadas de

um período se tornam explicitas e dominantes em outro”. (HARVEY, 1989, p. 49)

O questionamento a essas instituições representadas na economia pelo capitalismo e

na política pelo Estado­Nação, trouxe dispersão para o contexto social homogêneo das

metanarrativas totalizantes.

A ênfase à interseção e à flexibilização da rigidez dos discursos modernos resultou

na busca por formas de expressão que pudessem dar conta da pluralidade existente. O

isolacionismo lingüístico que por muito tempo imperou pelo estabelecimento de “fronteiras” e

“gêneros” (Hassan apud HARVEY, 1989, p. 22) foi se descentralizando no discurso pós­ moderno “no qual a “anarquia” e o “acaso” podem jogar em situações inteiramente “abertas”.

(HARVEY, 1989, p. 49)

Page 14: Monografia Jauner Torquato

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Para dar conta de retratar o conjunto de elementos que compõem a realidade, a idéia

do fragmento foi evocada na construção desses discursos. Conforme o entendimento de que a

“significação não poderia ser unívoca e nem estável” (Derrida apud HARVEY, p. 55) modalidades como colagem/montagem reuniram elementos em combinações que recorrem ao

hibridismo. Se na metanarrativa o texto existia por si e para si, “o impulso desconstrucionista

é procurar dentro de um texto por outro, dissolver um texto em outro ou embutir um texto em

outro”. (HARVEY, 1989, p. 54)

O que Harvey traz como a caracterização da “minimização da autoridade do produtor

cultural” traduz a ascensão da “produção de sentido” nesse jogo aberto. A recusa de

consumidores em aceitar o produto como algo pronto e com um fim em si mesmo, aliada à

despretensão de quem cria em fazê­lo, atribui a importância da contemplação “no processo”

na “performance”, no “happening”. (HARVEY, 1989, p. 55)

Essa nova postura do sujeito perante os diversos contextos se origina de mudanças no

surgimento da sociedade pós­industrial. As tecnologias de disseminação trazem “uma

dramática transição social e política nas linguagens e comunicação em sociedades capitalistas

avançadas”. (HARVEY, 1989, p. 53)

Paralelo à ênfase dada à performance, a tecnologia dos meios de comunicação trouxe

o denominado por Santos como “hiper­real”, ou “real intensificado”. Os simulacros cada vez

mais fiéis à realidade aliados a um desenvolvimento econômico pautado no uso dos bens e

serviços resultaram na ascensão de um “moral hedonista” (SANTOS, 1980, p. 10).

Nessa relação econômica e de produção de bens culturais, Featherstone (1996, p.

107) analisa o pós­modernismo como:

uma superprodução de bens culturais, difícil de controlar e ordenar, que desestabiliza as hierarquias simbólicas existentes. Essa tendência, que Simmel definiu como um acúmulo exagerado de cultura objetiva, difícil de lidar, não é apenas um problema intelectual. Com o desenvolvimento da cultura de consumo, costuma se dizer que aumentou não só a oferta de bens como também a de imagens e signos. O consumo ficou mais difícil de decodificar porque aumentou o problema de interpretar um campo mutável de signos.

A evolução tecnológica trouxe, portanto, alterações cada vez mais profundas na

maneira de experimentar situações cotidianas. A dissociação do espaço e do tempo observada

na sociedade industrial com a invenção dos automóveis e posteriormente dos aeroplanos

deslocou­se na pós­modernidade para a escala virtual das mensagens eletrônicas.

Bauman (2000) analisa criticamente essa evolução do ordenamento produtivo, que

deslocou, também, a perspectiva da luta de classes com a presença do operariado, agora quase

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15

extinto, através de três elementos que dizem respeito aos aparatos disponíveis. A partir do que

ele denomina como “wetware”, as atividades reduzidas às aptidões físicas do homem,

potencializada com a invenção dos “hardwares”, instrumentos responsáveis pela diminuição

do esforço físico, até a chegada do “software”, que reduz o tempo e produção a quase total

instantaneidade, é possível perceber a valorização do ato, “mas também a exaustão e

desaparecimento do interesse” (BAUMAN, 2000, p.134)

Estabelecendo uma relação desses meios trazidos pelo “software” e a valorização do

happening, a análise de Harvey (1989) sobre a esquizofrenia pós­moderna é corroborada.

Harvey propõe para que a reflexão sobre o contexto pós­moderno tenha validade, há

necessidade de identificar o “modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo”.

(HARVEY, 1989, p. 56)

A esquizofrenia é fruto então de “um agregado de significantes distintos e não

relacionas entre si”. Esse problema de “uma série de presentes puros e não relacionados no

tempo” associa essa ênfase à performance como ausência de profundidade. Diante disso, a

ausência de memórias passadas ou projeções futuras aliada à eminência do presente

impossibilita a unificação desses três tempos e como conseqüência da completude do

indivíduo, agora caracterizado pelo modelo esquizóide. (Jameson apud HARVEY, 1989, p.

56)

Segundo sua análise da teoria proposta por Jameson:

Quando essa cadeia se rompe, ‘temos esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si’. Se a identidade pessoal é forjada por meio de ‘certa unificação temporal do passado e do futuro com o presente que tenho diante de mim’, e se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de unificar passado, presente e futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante de ‘unificar o passado, o presente e futuro na frase da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica’. Isso de fato se enquadra na preocupação pós­moderna com o significante, e não com o significado, com a participação... em vez de com um objeto de arte acabado. (HARVEY, 1989, p.56)

Estabelecendo um paralelo entre o sujeito anteriormente unificado do modernismo e

o novo sujeito fragmentado da pós­modernidade Harvey (1989, p. 57) diz:

O modernismo dedicava­se muito à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia. Mas o pós­modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar­se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as instabilidades (inclusive lingüísticas) que nos impedem até mesmo de representar coerentemente, para não falar de conceber estratégias para produzir, algum futuro radicalmente diferente.

Page 16: Monografia Jauner Torquato

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A conflituosa negação do passado e a ausência de perspectivas na pós­modernidade

ilustram a postura hedonista. A cultura que deve estabelecer uma construção representativa da

sociedade com realces históricos se reduz ao presente. A “lógica cultural do capitalismo

avançado” que muito utiliza da cultura pela “‘experimentação estética’ com intuito de

produzir novas ondas de bens com aparência cada vez mais nova” (Mandel apud HARVEY,

1989, p. 65) constrói essa representação histórica por “simulacros pop dessa história”. (Hewsison apud HARVEY p. 64)

Há uma relação intrínseca entre o modo peculiar de compreensão dos diferentes

tempos na pós­modernidade e a conseqüente mudança na maneira de caracterizar e

contemplar a experiência em sociedade. A idéia dos “presentes puros e não relacionados no

tempo” induzem ao aumento da intensidade vivida, que resultam em “uma ilusão

estereoscópica”. A presença dessa conjuntura no tecido social dá consistência ao “caráter

imediato dos eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político, científico, militar, bem como

de diversão) se tornam a matéria de que a consciência é forjada.” (HARVEY, 1989, p. 57)

Além do simulacro, outros vários códigos de linguagem, às vezes isolados outras em

presença concomitante, são responsáveis pela “dissolução de algumas fronteiras e divisões

fundamentais”. A “sociedade de consumo” fruto da “emergência de um novo tipo de vida

social e de uma nova ordem econômica” põe fim à fronteira entre “cultura erudita e cultura

popular (a dita cultura de massa)”. (JAMESON, 1985, p. 17)

A paródia, segundo analisa Jameson (1985), não só traça um paralelo entre as

diferenças nos modelos de expressão moderna e pós­moderna como reafirma a importância

das figuras de linguagem na construção dos elementos culturais como expressão do contexto

social e também a relação inversa.

Conforme ele propõe, a fragmentação está presente também na modernidade.

Manifestada na individualidade da “norma lingüística” o que caracteriza como “privatização

da literatura moderna – sua explosão em um bando de estilos privados e maneirismos

distintos”. Essa fragmentação autoral das metanarrativas deu origem a um perturbado

isolacionismo lingüístico. (JAMESON, 1985, p. 18)

Ao descrever a impossibilidade da paródia frente a esse movimento, por

incapacidade de inserir qualquer idiossincrasia que pudesse originar a partir da interpretação

das obras, Jameson descreve o pastiche como “paródia lacunar”. Tal lacuna origina­se da

impossibilidade do parodista em desenvolver qualquer “simpatia tácita pelo original”.

A aversão a esse modelo metanarrativo de linguagem conduz as análises do seu uso

na esfera social pela inserção plural apoiadas pelo que Focault denomina de “poder de

Page 17: Monografia Jauner Torquato

17

discurso”. Conforme aponta em sua análise, o autor descreve uma “íntima relação entre os

sistemas de conhecimento (“discursos”) que codificam técnicas e práticas para o exercício do

controle e do domínio sociais em contextos localizados particulares”. (Focault apud HARVEY, p. 50)

Sem adentrar ao viés político de Focault, é possível perceber o valor atribuído ao

domínio da codificação como técnica básica da interpretação e por conseqüência do uso da

língua como código universal para o domínio cultural.

Sendo a pós­modernidade palco das manifestações plurais, que tendem à

superficialidade fragmentada culturalmente e descentralizada em seus meios de produção, os

grupos representativos buscam formas de apresentar sua voz como “autêntica e legítima”.

(HARVEY, 1989, p. 52)

Nesse contexto eles estruturam o que consideram conhecimento válido. Como

conseqüência, temos a criação dos:

(...) ‘determinismos locais’... compreendidos... como ‘comunidades interpretativas’, formadas por produtores e consumidores de tipos particulares de conhecimento, de textos, com freqüência operando num contexto institucional particular (como a universidade, o sistema legal, agrupamentos religiosos), em divisões particulares do trabalho cultural (como a arquitetura, a pintura, o teatro, a dança) ou em lugares particulares (vizinhanças, nações etc.). (HARVEY, 1989, p.57)

O novo panorama que se desvela para a linguagem é o da fragmentação cultural.

Todas as singularidades concebidas na modernidade são fruto do indivíduo unificado, mas

que na pós­modernidade sofre todo processo de descentralização, conforme será abordado no

próximo capítulo.

Na pós­modernidade, o eu singular se perde em fragmentos das mudanças estruturais

dos modelos de produção, reprodução, relações sociais, consumo, entre outros. Com a

dissolução das fronteiras entre os gêneros, esgotamento das produções individuais, a cultura

passa a se alimentar dos códigos híbridos, do simulacro, do pastiche e da paródia para traduzir

o novo contexto onde as produções editoriais se encontram.

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Capítulo II

Panorama da comunicação contemporânea

e suas relações com a cultura e os indivíduos

A compreensão do papel e da presença dos meios de comunicação, em suas diversas

formas tecnológicas e processos lingüísticos nas sociedades dos últimos séculos, é fator

determinante para situar no contexto atual a identificação dos aspectos presentes nas

mudanças de expressão, intercâmbio e características culturais que compõem os atributos

identitários.

O olhar que se estende sobre a análise desses meios pode ser delimitado, com intuito

de estabelecer uma lógica didática, em dois aspectos preponderantes: o de cunho técnico e o

de viés social. Inseridos na perspectiva tecnológica, os meios de comunicação atuam na vida

da humanidade tecendo novas formas de lhe dar com o tempo, espaço e por conseqüência de

compreender globalmente contextos diversos, enquanto seus reflexos sociais são atuantes, na

maioria das vezes, sob condições latentes de expressão que passam a se apropriar

dialeticamente dos códigos vigentes em um processo de retroalimentação. À medida que o

meio se abastece desses códigos, os reproduz em novas formas de expressão que também

criam novos códigos, ilustrando um ciclo hermético em sua ação, mas extremamente aberto à

configuração e captação de novos elementos. Essa dinâmica tende a se clarear durante a

análise seguinte.

À medida que sua abrangência, principalmente a partir do século XIX, se expandia,

os meios de comunicação assumiram traços cada vez mais relevantes em todos os aspectos

cotidianos. Essa abrangência, interligando pontos distantes ao redor do globo e suprimindo

distâncias, propiciou a “disjunção espaço temporal” (THOMPSON, 1998). A redução do

tempo ao estado quase virtual no transporte das mensagens resultou em uma nova dinâmica

de mediação. As telecomunicações interligaram todo o globo e dissociaram a idéia de

presença e contato como atos simultâneos.

Novas formas de intercambiar as experiências e fatos do passado foram surgindo

pelo registro e reprodução dessas experiências. Se nas tradições orais era necessário o diálogo

face a face ilustrando o testemunho como força maior de expressão, pelos meios de

comunicação o sentido do passado é determinado pela “historicidade mediada”

(THOMPSON, 1998). O conteúdo simbólico da mídia é transformado em elemento de

perpetuação dos fatos. Uma vez que a fixação em um substrato qualquer estava ao alcance do

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19

homem, o fluxo da história e o “nosso sentido do passado e como ele nos alcança”

(THOMPSON, 1998, p. 38) trouxe, também, novas experiências de compreensão do mundo.

A caracterização de Thompson para o termo genericamente chamado comunicação

de massa, dividida em cinco partes integrantes, evoca, ao mesmo tempo, as vertentes

tecnológicas e sociais dos meios e estabelece contextos de interseção entre as duas. No plano

social, a primeira das cinco características define os meios de comunicação como instituições

alicerçadas por aparatos técnicos que atuam em consonância com a busca do “poder

simbólico” 1 . Institucionalizar significa estabelecer um “conjunto relativamente estável de

regras, recursos e relações sociais”. (THOMPSON, 1998, p. 21)

A partir desse conjunto estável, as instituições, jornais, revistas, rádios, redes de TV,

tendem a atribuir certo valor aos produtos da comunicação, definindo a segunda característica

como a mercantilização dos meios. O potencial de abrangência atende, principalmente, aos

anseios da sociedade moderna que passa a entender o mundo como um lugar sem fronteiras.

A necessidade de difundir produtos, valores, formas sociais de convívio, métodos de

produção, atribui uma valorização tanto econômica como simbólica desses elementos.

Com a produção desses bens simbólicos e a necessidade de difundi­los por toda

extensão do globo evidencia­se uma dissociação entre a produção e a recepção das formas

simbólicas. A terceira característica volta às atenções para o fluxo das mensagens transmitidas

para contextos distantes de onde foi produzida.

Acrescentado a isso o fato da disponibilidade dessas produções e sua permanência no

tempo e no espaço, como sendo quarta característica, reforça o teor da produção e sua

distribuição por terras distantes.

Como quinta e última característica, a comunicação implica “a circulação pública de

formas simbólicas mediadas” (THOMPSON, 1998, p.32). Com isso ela assume a condição de

quase onipresença nos espaços públicos de maneira geral. Passa, então, a registrar o mundo.

Em decorrência dessas características, a comunicação passa a alterar de forma cada

vez mais incidente a compreensão da experiência além do campo de vivência do homem. A

“mundanidade mediada” (THOMPSON, 1998) como propriedade de retratar a realidade de

forma global e por conseqüência dilatar os horizontes espaciais alterou o sentido de

comunidade onde indivíduos atribuem, através de um senso de pertencimento, valores às

1 Thompson (1998) descreve em caráter analítico quatro formas de poder manifestadas nas sociedades, cada uma atuando através de recursos que lhes competem. Esses poderes e seus respectivos recursos são: poder econômico, poder político, poder coercitivo e poder simbólico, exercidos através dos recursos materiais e financeiros, autoridade, força física e armada, além dos meios de informação e comunicação.

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histórias vivenciadas em um passado comum. O panorama da vida passa a ser delimitado por

diversas formas simbólicas da mídia que retratam contextos distantes e os tornam presentes

em espaços diferentes.

(...) à medida que nossa compreensão do passado se torna cada vez mais dependente da mediação das formas simbólicas, e a nossa compreensão do mundo e do lugar que ocupamos nele vai se alimentando dos produtos da mídia, do mesmo modo a nossa compreensão dos grupos e comunidades com que compartilhamos um caminho comum através do tempo e do espaço, uma origem e um destino comuns, também vai sendo alterada: sentimo­nos pertencentes a grupos e comunidades que se constituem em parte através da mídia. (THOMPSON, 1998, p.39)

Essas formas simbólicas são expressas em linguagens que durante toda a trajetória

ascendente da integração dos meios de comunicação ao convívio social se alternaram entre

sistemas expressos ora pela escrita, ora pelo audiovisual, até reuni­los em um sistema

unificado.

O que Castells (1999) denomina como “Galáxia de Gutenberg... um sistema de

comunicação essencialmente dominado pela mente tipográfica e pela ordem do alfabeto

fonético” é a primeira manifestação instrumental e como meio técnico da comunicação

mediante o advento da imprensa e do papel que trouxeram consigo a produção e distribuição

em larga escala.

Mas a relação entre linguagem, comunicação e cultura, se dá de forma intrínseca.

Para compreender o papel da evolução desses sistemas tipográficos e audiovisuais é

necessário acompanhar sua incidência na esfera cultural. Para tanto Castells (1999, p. 354)

enuncia que

(...) a comunicação, decididamente, molda a cultura porque, como afirma Postman ‘nós não vemos... a realidade ... como ela é, mas como são nossas linguagens. E nossas linguagens são nossas mídias. Nossas mídias são nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de nossa cultura’. Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com passar do tempo.

A difusão em larga escala dos impressos proporcionou grandes mudanças nos

aspectos culturais uma vez que estabeleceu a lógica cumulativa do conhecimento e da

informação. No entanto, durante todo o tempo em que prevaleceu, a comunicação escrita

condicionou o sistema audiovisual a um estado de pouca expressão delegando a ele os

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“bastidores das artes, que lidam com o domínio privado das emoções e com o mundo público

da liturgia”. (CASTELLS, 1999, p. 353)

Com o advento da televisão, porém, a incidência dessas transformações na expressão

cultural se intensificou de forma jamais vista, ensejando o surgimento dos termos

comunicação de massa e delimitando novos traços na abrangência dos meios de comunicação.

Esse “sistema de crenças e códigos”, como Castells caracteriza a cultura, é

veementemente alterado pelo novo arranjo sistêmico da comunicação trazido pela televisão,

que assume o “epicentro cultural de nossas sociedades... um meio fundamentalmente...

caracterizado pela sedução, estimulação sensorial da realidade e fácil comunicabilidade”.

(CASTELLS, 1999, p. 358) O seu poder, continuando a linha de análise de Castells, está no

fato de que ela “arma o palco para todos os processos que se pretendem comunicar à

sociedade em geral, de política a negócios, inclusive esportes e arte”. (CASTELLS, 1999, p.

361)

A televisão como aparato técnico surge em meio ao rádio, aos filmes, as artes,

jornais, revistas e livros, tornando­se o centro de todas as vertentes técnicas e suportes da

comunicação. Seu aspecto informativo, de entretenimento, fixação, transmissão, entre outros,

logrou de um poder de capilarização e penetração em escalas jamais experimentadas. O

impacto disso foi visto por muitos como uma tentativa de homogeneização que

inevitavelmente ocorreria mediante e existência de uma massa consumidora portando­se

como receptáculos passivos a todo tipo de veiculação arbitrária.

A televisão não só inseriu o sistema audiovisual em um contexto abrangente como

seduziu a todos pelo tipo de postura que deveriam assumir perante a sua existência. Segundo

analisa Castells, a denominada lei do menor esforço decorre não da sedutora condição da TV,

e sim de um contexto social permeado por novas condições de vida, trabalho, família, “falta

de alternativas o envolvimento pessoal/cultural” (CASTELLS, 1999), que de certa forma

delegaram ao homem o poder de escolha cercado por situações que o impeliam a uma opção,

assistir as exibições da nova tela desenhada por elétrons.

A relação entre o conceito de cultura de massa e a TV está basicamente apoiada no

controle tecnológico da comunicação eletrônica. No entanto, a relação entre o telespectador e

a televisão segue uma lógica não de opressão e sim emocional, conforme anuncia Castells

(1999, p. 357)enfocando as idéias de McLuhan:

(...) os telespectadores têm de preencher os espaços da imagem e por isso aumentam seu envolvimento emocional com o ato de assistir (o que ele, paradoxalmente, caracterizou como um “meio frio” ). Tal envolvimento não contradiz a hipótese do

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mínimo esforço, porque a TV apela à mente associativa/lírica, não envolvendo o esforço psicológico da recuperação e análise da informação (...)

Esse enfoque do poder de penetrabilidade social da televisão é fruto da afirmação de

McLuhan que o diz o “meio é a mensagem”. Essa supervalorização do meio, como

significante, é desmistificada por Umberto Eco que diz:

Existe, dependendo das circunstâncias socioculturais, uma variedade de códigos, ou melhor, de regras de competência e interpretação. A mensagem tem uma forma significante que pode ser completada com diferentes significados... Assim, havia margem para a suposição de que o emissor organizava a imagem televisual com base nos próprios códigos, que coincidiam com aqueles da ideologia dominante, de acordo com seus códigos culturais específicos.... aprendemos uma coisa: não existe uma Cultura de Massa no sentido imaginado pelos críticos apocalípticos das comunicações de massa, porque esse modelo compete com os outros (constituídos por vestígios históricos, cultura de classe, aspectos da alta cultura transmitidos pela educação, etc.) (Eco apud CASTELLS, 1999, p. 360)

Conceituando o processo dessa maneira, Eco introduz a percepção de que há,

inserida em todas as relações entre receptores e os meios de comunicação, uma autonomia de

significação. O meio (significante) conduz a mensagem que por sua vez é transmitida até o

receptor, apoiado por uma gama de códigos culturais que embasarão seu viés de compreensão,

elevando o seu papel na construção final do significado referencial.

A TV, no entanto, é um meio de comunicação que atua, como todos os outros, de

forma institucionalizada e com total ausência de neutralidade. Apesar da autonomia dos

indivíduos frente à construção final dos significados, as mensagens veiculadas são carregadas

dos mais variados artifícios subliminares ou explícitos e talhadas visando uma maior

penetração e identificação nos contextos sociais. O emissor, então, fica longe da imaginada

opressão que poderia ter em uma conceituação mais simplista dos meios de comunicação, a

conseqüência disso é:

(...) aceitar ser misturado em um texto multissemântico, cuja sintaxe é extremamente imprecisa. Assim, informação e entretenimento, educação e propaganda, relaxamento e hipnose, tudo isso está misturado na linguagem televisiva. Como o contexto do ato de assistir é controlável e familiar ao receptor, todas as mensagens são absorvidas no modo tranqüilizador das situações domésticas ou aparentemente domésticas (...) (CASTELLS, 1999, p. 361)

Esse aspecto multissemântico é corroborado “mediante... práticas coletivas ou

preferências individuais” (CASTELLS, 1999). O caracterizado por Castells, “sistema de

feedbacks entre espelhos deformadores”, é a estrita, contínua e inerente relação entre a cultura

e a sua representação mediada pelos meios de comunicação. Com o crescimento da

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abrangência desses meios, essa relação construtiva, onde a mídia expressa a cultura e essa por

sua vez se constrói, em parte, por elementos midiáticos, passou a ser preponderante na ênfase

ao receptor, antes descrito como receptáculo passivo e agora dotado de crescente autonomia.

O período compreendido entre a eminência da escrita até o advento da televisão é,

então, descrito como “Da galáxia de Gutenberg à Galáxia de McLuhan” (CASTELLS, 1999).

No entanto, a compreensão da mídia de massa seguiu sua trajetória alicerçada em novos

fatores que modificaram, ainda mais, a sua conceituação.

Nos anos de 1980, tendências tecnológicas representaram o impulso para as

transformações dos atributos interativos das mídias. Jornais impressos com edições

simultâneas e sob medida para áreas diversas, rádios e equipamentos de reprodução portáteis,

novos canais de TV a cabo e o aumento expressivo dos canais da TV aberta, o videocassete,

as máquinas fotográficas, tudo isso implicou em uma nova via para o consumo segmentado,

controle e direcionamento dos conteúdos e, principalmente, um alento para a interatividade e

maior efetividade na adequação das mensagens.

Esse novo panorama que se desenhou tornou o que para muitos se apresentava de

forma obscura em cristalinas porções de água. O reflexo da divisão do grande bojo midiático,

que abarcava a sociedade de massa, em pequenos nacos de conteúdos heterogêneos entre si, a

exemplo dos canais de televisão, implicou que:

(...) a nova mídia determina uma audiência segmentada, diferenciada que, embora maciça em termos de números, já não é uma audiência de massa em termos de simultaneidade e uniformidade da mensagem recebida. A nova mídia não é mais mídia de massa no sentido tradicional do envio de um número limitado de mensagens a uma audiência homogênea de massa. Devido à multiplicidade de mensagens e fontes, a própria audiência torna­se mais seletiva. A audiência visada tende a escolher suas mensagens, assim aprofundando sua segmentação, intensificando o relacionamento individual entre o emissor e o receptor. (Sabbah apud CASTELLS, 1999, p. 361)

O reflexo do papel fundamental e atuante do receptor pela descentralização do

processo e dos instrumentos de mediação, diversificação de conteúdo e, principalmente,

adequação ao público alvo, concebeu o novo viés da conhecida frase de McLuhan, porém pela

visão trazida pertinentemente por Castells, “a mensagem é o meio”. É ela quem dita e

determina as formas de estruturação tecnológica, interfacial, profissional, imagética, de

conteúdo, produção, transmissão, entre outros elementos dispostos em canais de TV, produtos

musicais, programas de rádio e a infinidade de processos abarcados por essa “nova mídia”

(CASTELLS, 1999). Em torno dela, a aldeia global se posiciona estruturando­se por

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24

“domicílios sob medida, globalmente produzidos e localmente distribuídos” (CASTELLS,

1999).

Não obstante a tudo isso, um novo movimento tenciona esse contexto, a “formação

de megagrupos e alianças estratégicas para conseguir fatias de mercado” (CASTELLS, 1999).

Observando as novas iniciativas desse cenário de mudanças, os veículos de comunicação com

grande expressividade iniciaram fusões para acompanhar a lógica de produção de conteúdo e

a conseqüente exposição a eles.

“O resultado da concorrência e concentração desse negócio é que, embora a audiência tenha sido segmentada e diversificada, a televisão tornou­se mais comercializada do que nunca e cada vez mais oligopolista no âmbito global. O conteúdo real da maioria das programações não é muito diferente de uma rede para outra, se considerarmos as fórmulas semânticas subjacentes dos programas mais populares como um todo. No entanto, o fato de que nem todos assistem à mesma coisa simultaneamente e que cada cultura e grupo social tem um relacionamento específico com o sistema de mídia faz uma diferença fundamental vis­à­vis o velho sistema de mídia de massa padronizado.” (CASTELLS, 1999, p. 365)

Os impactos dessa “nova mídia” incidiram de forma definitiva na comunicação. No

entanto, a TV como representação de maior amplitude e difusão global, até então, não

conseguiu se livrar desse padrão unilateral e com ausência de feedback dos telespectadores,

salvo manifestações de prescindir o consumo. A rede de interatividade foi, então, trazida pela

internet.

A irrupção da multimidialidade que culminou na rede com milhões de computadores

interligados em todo mundo ensejou mudanças que tomaram proporções, mais uma vez, de

propagação global, já amplamente vivenciadas no século XXI. A internet em função do

espectro amplo de sua concepção até a plena existência seria objeto de outra análise dada a

sua complexidade.

Porém, a multimidialidade inseriu uma nova perspectiva global no que diz respeito à

cultura e os meios de comunicação, o que norteia o cerne desse estudo. A inserção definitiva

das pluralidades dependia de instrumentos mais efetivos para a expressão. Captar, produzir e

reproduzir são ações no processo comunicativo que assumiram novos formatos e perspectivas

de inserção e hibridização. Assim como uma profunda mudança foi sentida diante da

presença sedutora do sistema audiovisual trazido pela televisão, a multimídia rompeu com as

condições vigentes em sua chegada criando um “supertexto histórico gigantesco”

(CASTELLS, 1999). Tudo isso resulta em um “novo ambiente simbólico” abrangendo a

virtualidade e implicando na sua presença na realidade.

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25

Essa “virtualidade real” (CASTELLS, 1999) é o elemento ratificador do binário

“presença/ausência no sistema multimídia de comunicação” (CASTELLS, 1999). Seria

entender que o virtual, exibido imagético e simbolicamente nos meios de comunicação, a

exemplo dos personagens, é fruto do reflexo de padrões e códigos culturais, mas ao mesmo

tempo incidem mudanças nesses padrões e códigos e, portanto, faz parte deles. É de se

imaginar que com o crescimento da quantidade de “espelhos deformadores” (CASTELLS,

1999), a multimídia, e de um acentuado aumento na autonomia dos feedbacks, essa relação

cultura/meios de comunicação assume uma consistência fragmentada impossível de ser

acompanhada.

O fato preponderante é que sobre um “sistema de comunicação, baseado na

integração em rede digitalizada de múltiplos modos de comunicação” e “sua capacidade de

inclusão e abrangência de todas as expressões culturais” (CASTELLS, 1999) esse processo

tende a se consolidar e realimentar­se eternamente.

Tendo proposto essa breve descrição do panorama da comunicação contemporânea e

sua relação com os aspectos culturais das sociedades, um ponto torna­se crucial: o indivíduo

inserido nesse contexto de intensa mudança dos elementos identitários, sendo, portanto,

objeto de análise das próximas linhas.

O que genericamente se propõe como pauta discursiva no campo atual das

identidades é a recorrente tradução da “crise de identidade” (HALL, 2001). Essa terminologia

crise dedica­se mais a confrontar a dinâmica referencial que se percebeu durante algum tempo

do possível ser unificado com a dinâmica referencial atual que, em decorrência de vários

fatores de mudanças sociais, ou um panorama cultural difícil de precisar e perpetuar, o que

criou, através da fragmentação e hibridismos, processos de referenciação mais abertos e

permeáveis. A tendência que antes prevalecia, de busca incessante da precisão referencial era

apoiada por um centro que em seu cerne pairavam as instituições bem delimitadas de certo

período histórico, a família, o estado­nação, o mercado, entre outras. A partir delas se

derivaria todo estado incipiente de análise para então compor as linhas de observação e

formação identitária.

O desenvolvimento de uma nova mídia descentralizada, segmentada e composta por

múltiplos meios de comunicação apresenta uma profunda relação com o processo de

constante reestruturação das paisagens identitárias. Segundo a definição de Castells, a

identidade pode ser entendida como um processo de “construção de significado com base em

um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter­relacionados, o(s)

qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado.” (CASTELLS, 1999, p. 22). À

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26

medida que a pluralidade de expressões torna­se cada vez mais acessível, as manifestações

culturais remontam a ausência de um centro ou atributo uniforme na sociedade, situando

vários elementos aleatoriamente posicionados.

Essa ausência de um centro referencial tida como a “descentração do sujeito”,

implica a perda de um “sentido de si” e o deslocamento “tanto do seu lugar no mundo social e

cultural quanto de si mesmo”. (HALL, 2001, p. 9) Esse fenômeno é um dos elementos da

discussão sobre a aventada crise das identidades analisada por Stuart Hall.

É pertinente retroceder um pouco no tempo para traduzir como os aspectos técnicos

da comunicação têm desdobramentos profundos na análise social das identidades. Hall, em

sua linha de raciocínio para explicar quando o sujeito realmente pôde ser concebido como

unificado, menciona uma importante definição trazida pelo iluminista John Locke que dizia:

“a identidade da pessoa alcança a exata extensão em que sua consciência pode ir para trás,

para qualquer ação ou pensamento passado”. (Locke apud HALL, 2001, p.27­28).

Apoiado nessa perspectiva, depreende­se que se hoje tendemos a uma expansão

vertiginosa no aprofundamento do passado graças à lógica cumulativa dos meios de

comunicação e se a presença de todos esses elementos registrados tem um caráter infinito de

existência temporal em função dos diversos suportes hoje existentes, é notório perceber que

essa unidade de alcance, mencionada por Locke, atualmente vai tão além do poder de

mensuração do sujeito que a consequente formação identitária se multiplica também em

proporções difíceis de acompanhar e impossíveis de precisar. As fontes de significado se

entrelaçam para conceber uma rede na qual valores, crenças e símbolos se conjugam para a

formação de novos valores, novas crenças e novos símbolos altamente permeados pela idéia

do simultâneo e passageiro.

O esquema proposto por Hall (2001) para caracterizar os três tipos de sujeito 2

existentes segundo a sua concepção registra as primeiras grandes alterações a partir do

“sujeito sociológico”. O autor pondera que a partir desse sujeito tivemos a introdução da

lógica da mediação dos sentidos, valores e símbolos atuando permanentemente no

desenvolvimento do homem. Esse repertório exibido através das paisagens culturais dava

origem à identidade que preenchia o “espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo

pessoal e o mundo público.” (HALL, 2001, p.11)

2 Hall elenca os três sujeitos a partir de determinados momentos históricos. Devido à relevância dos sujeitos sociológico e pós­moderno, esse último de forma mais abrangente, vou prescindir e menção do sujeito do iluminismo, de igual importância, porém que estenderia a análise desnecessariamente.

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Mesmo visto dessa forma, o sujeito ainda era compreendido como unificado, pois

nascia com um “núcleo interior” que se desenvolvia na “relação com “outras pessoas

importantes para ele”. (HALL, 2001, p.11)

No entanto, essa miríade de elementos subjetivos que deveriam ser alinhados

socialmente sofreu mudanças intensas introduzidas pela idéia de que o sujeito não possui mais

uma identidade fixa ou permanente, assim se define o “sujeito pós­moderno”. O processo de

identificação tornou­se “provisório, variável e problemático”, pois “à medida em que os

sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma

multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais

poderíamos no identificar – ao menos temporariamente.” (HALL, 2001, p. 13)

Além do processo de identificação, outro fator de mudança estrutural compete para a

fragmentação do sujeito. As várias instituições do mundo pós­moderno exigem dele posturas

diferentes em momentos diferentes. Dessa forma, os papéis sociais que segundo Castells são

definidos “pelas normas estruturadas” por essas instituições e organizações refletem na

caracterização da identidade, resultando em “identidades diferentes em momentos diferentes”.

(HALL, 2001, p.13)

A crise da identidade resultante da descentração do sujeito pós­moderno é fruto desse

novo contexto. Para corroborar essa total desagregação, Hall enumera cinco avanços na teoria

social e nas ciências humanas, mas pela pertinência abordaremos somente três.

O primeiro deles parte da estrutura lingüística e está associado ao trabalho de

Ferdinand de Saussure. A língua, assim como os diversos instrumentos de produção de

significado, possui uma dinâmica autônoma que independe de quem está produzindo as

mensagens. Assim como as identidades se comportam, as palavras estão sempre apoiadas em

um referencial que é um objeto externo às relações estruturadas em similaridade e diferença.

É nítido, portanto, que não há uma determinação final do significado e nem da identidade por

não haver mais uma determinação categórica de similaridade e nem diferença. Na mesma

proporção em que se tenta estabilizar esse significado em uma vertente cabal, a multiplicação

dos códigos e objetos referenciais perturbam pelo seu ininterrupto movimento multidirecional,

se situando como se estivesse em uma câmara espelhada observada por dentro sempre a partir

de diferentes pontos.

Nesse aspecto, a produção lingüística em geral, que venha expressar os códigos

culturais, por maior precisão que se busque por parte do emissor, a recepção, conforme já foi

dito, é um ato cada vez mais dissociado da produção e altamente subjetivo. O que torna

imprevisível os resultados da assimilação.

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Outra teoria discutida é o processo denominado por Michel Focault de “poder

disciplinar” (Focault apud HALL, 2001). Esse poder é exercido por instituições

contemporâneas como escolas, prisões, hospitais, entre outras, interessa para essa análise

tendo como foco as instituições midiáticas.

O processo discutido anteriormente quanto à ausência de neutralidade dos meios de

comunicação e as possíveis iniciativas frente ao consumo segmentado são estratégias, na

maioria das vezes de individualização em meio ao coletivo, exatamente como ocorre quando

se busca esse poder disciplinar.

Assim como hospitais possuem prontuários com excessiva carga descritiva em busca

de delimitação do indivíduo em meio ao coletivo para fins de controle, esses meios de

comunicação ainda tentam descobrir mecanismos para estabelecer certos denominadores

comuns de modo a interromper a segmentação ou pelo menos abrandar esse processo.

Por outro lado, alguns veículos, como a revista piauí, se integram ao fluxo

imprevisível de montagem das paisagens culturais para expressar a impossibilidade de se

fechar em um significado, ao contrário, se entrega a todos eles em uma dinâmica oposta,

partindo da comunhão de várias individualidades para a composição de uma conteúdo voltado

para um coletivo socialmente segmentado e fragmentado.

A última teoria diz respeito ao impacto social do feminismo. Esse movimento

representou, junto aos movimentos de luta racial, gays, lésbicas, antibelicistas, uma

contestação social que permeou todas as esferas de convivência, mas que trouxe,

principalmente, em função da sua amplitude, a idéia da “política de identidade – uma

identidade para cada movimento”. (HALL, 2001, p. 45)

Como encerramento é preciso trazer a nova lógica das formações identitárias

proposta por Castells. O autor aponta três formas e origens de construção de identidades:

Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais...dá origem a uma sociedade civil, ou seja, um conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de atores sociais(..). Identidade de resistência: criada por atores que encontram em posições/condições desvalorizadas(...)Leva à formação de comunas, ou comunidades... Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando­se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade (...) (CASTELLS, 1999, p. 24)

Há um ponto crucial a ser pensado considerando esses processos de construção.

Segundo a linha de raciocínio do próprio Castells, durante a modernidade, as identidades de

projeto se formavam a partir da sociedade civil com o intuito de propor novas lógicas às

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instituições dominantes, grande exemplo disso foi o socialismo. Com o advento dessa série de

movimentos sociais que fragmentaram as identidades em uma perspectiva política, a

identidade de projeto passa a se desenvolver a partir das identidades de resistência. É o que

ele chama de “transformação social na era da informação.” (CASTELLS, 1999, p. 28)

Com a finalidade de identificar essas manifestações linguísticas características da

pós­modernidade, o pastiche, a paródia e o simulacro, que visam determinar um público de

consumo, representando segmentações tanto produtivas, quanto receptivas, a proposta de

análise é a revista piauí. Além de se dirigir a um segmento de indivíduos, pelo uso de códigos

e elementos culturais específicos, piauí reforça o papel das identidades na determinação das

novas vertentes de produção editorial.

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Capítulo III

Desconcer tante construção

O presente trabalho encarregou­se, até agora, de apontar algumas mudanças

ocorridas tanto nas dinâmicas sociais quanto nos aspectos técnicos da comunicação e seus

desdobramentos e relações com os processos identitários. Para consolidar esse panorama

exposto até então, é imprescindível referenciá­lo em um produto que possa espelhar e traduzir

esses aspectos que serão exemplificados pela análise da revista piauí.

A modernidade foi descrita pela sua rigidez no estabelecimento de fronteiras claras

entre os gêneros, que se fundiram na pós­modernidade e deram origem a uma tensão contrária

ao isolacionismo lingüístico e disciplinar das metanarrativas. A pluralidade manifesta na

desrefencialização identitária implicou em novas maneiras de projetar culturalmente minorias

no âmbito social. Novas tendências eclodiram nos meios de comunicação pelo consumo

segmentado e pela maior participação do receptor na produção dos significados. A cultura foi

apresentada como detentora de traços da sociedade assim como a sociedade incorpora traços

da cultura para se completarem mutuamente. Tudo isso resultou em perspectivas de uso das

figuras e métodos de linguagem em novos moldes como o desconstrucionismo, a colagem e

montagem, o simulacro, o pastiche e a paródia e, principalmente, a concepção da estrutura

mutante dos signos sob a ótica dos atores sociais. Essas foram algumas mudanças que

eclodiram nessa transição.

O termo gramática é recorrentemente utilizado nas elucidações sobre a pós­

modernidade e suas várias manifestações lingüísticas que se relacionam com o meio em uma

dinâmica de recriação e rompimento com hierarquias e padrões de expressão. Gramática tem, como uma de suas definições “em lingüística descritiva, estudo objetivo e sistemático dos

elementos (...) e dos processos (de formação, construção, flexão e expressão) que constituem

e caracterizam o sistema de uma língua” (Dicionário de Língua Portuguesa, p. 1474)

Essa ênfase aos processos de formação e caráter sistêmico da gramática reforça o

valor atribuído ao significante na pós­modernidade e situa o objeto em questão como

importante instrumento para identificar de que forma as novas manifestações editoriais se

apropriam dos padrões vigentes relacionando­os em torno de novos significados.

O jornalismo como autêntica forma de expressão e retratação dos fatos segue a sua

própria gramática e se resguarda, em seu valor institucional, nos cânones, ou regras

particulares, incumbidas de mediar as mensagens de forma mais familiar e pragmática ao

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receptor. Mesmo compreendendo a vivacidade da língua, manuais de redação, extensas obras

sobre técnicas de escrita, entre outras publicações, permeiam o cotidiano da produção

jornalística.

Conforme já elucidado no capítulo anterior, há uma crescente tensão entre o fator

institucional dos meios de comunicação e as formas participativas, interativas e

descentralizadas impostas pela nova ordem de exposição do receptor às mensagens. É fato

que a institucionalização depende, conforme caracteriza Thompson (1998), de certa

estabilidade e projeção no tempo. No entanto, a própria desrefencialização identitária dos

sujeitos sociais incide nos mais diversos substratos de maneira divergente a essa estabilidade

que anteriormente utilizava da comunicação de massa travestida nos recém trazidos aparatos

tecnológicos, a exemplo da televisão.

Seguindo a lógica cultural de relacionamento entre o “sistema de crenças e códigos

historicamente produzidos” e os sujeitos sociais que referendam o seu uso e a sua

perpetuação, a tendência das novas manifestações editoriais é justamente de seguir esse fluxo

pluralista e aberto, não obstante presenciarmos constantemente produtos que resistem em

ceder e deslocar­se do seu cânone, representação típica desse fator institucional. (CASTELLS,

1999, p. 34)

Compreendendo tais obras como as metanarrativas, mencionadas anteriormente

como os amplos esquemas interpretativos que norteavam os pensadores modernos, a revista

piauí remonta o movimento desconcertante da pós­modernidade ao reunir aspectos da cultura

erudita, porém em uma vertente contrária ao isolacionismo lingüístico e a concepção de

gêneros totalitários. Ela se insere na perspectiva segmentada de produção voltada para um

público específico, projetado à luz da afinidade e identificação com seus conteúdos

discursivos. Se as paisagens culturais conforme pressagiou Hall (2001) se fragmentaram, as

nuances editorias tendem a se expandir para atender as novas demandas lançadas por esse

fenômeno, de maneira que a segmentação muito acentuada não torne se exageradamente

individualizada para resultar em publicações quantitativamente inviáveis.

Ao tratar das instituições, tão dependentes da estabilidade e antes apoiada pelas

fronteiras, Harvey (1989) sugere que a explosão de gêneros e sua conseqüente

heterogeneidade de jogos linguagem dá “origem a instituições em pedaços – determinismos

locais”. (Lyotard apud HARVEY, 1989, p. 57). No entanto, a estabilidade, nesse caso, é conferida coletivamente dentro daquilo que

os indivíduos “consideram conhecimento válido”. “Determinismos locais” são

compreendidos, nessa abordagem, como “comunidades interpretativas”. Com isso Harvey

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32

ilustra o poder de constante recriação advinda tanto dos produtores quanto consumidores uma

vez que constroem mutuamente seu repertório de códigos inseridos nessas comunidades.

Analogamente, a análise proposta se aproxima da apreciação elaborada por ele de Soft City. Essa obra, conforme propõe, por mais ingênua que pareça, uma vez que foi concebida por um jovem recém chegado a Londres, ilustra um importante destaque diante do

contexto que se pensava existir. Quando se propunha que o espaço urbano era dominado pela

síntese totalizante e que pelas ruas circulavam somente acadêmicos dignos de interpretações

abissais, Soft City constrói uma nova visão. Novas produções de significados eram realizadas pela parte viva da cidade, o caos urbano que se apresenta como impossível de ser controlado,

a autonomia de cada um dos atores os destaca em meio aquilo que foram gestados.

Para compreender melhor, é necessário traçar um panorama histórico do surgimento

de piauí. As edições selecionadas para apreciação foram as duas primeiras, a mais recente

datada (outubro de 2008) tendo como referência a conclusão desse trabalho, além de outros

dois números que abordam duas tradições mundialmente reverenciadas, o natal e as

olimpíadas, essas selecionadas para fundamentar o enfoque dado às pautas de temas sazonais

e amplamente retratados.

É importante para essa análise compreender que, dentro de um processo aberto de

construção, não há determinações a serem seguidas durante a trajetória da revista. Sendo

assim, o interstício que separa suas primeiras edições da mais atual reflete, em diversos

aspectos, mudanças em algumas de suas características identitárias. Foram escolhidas quatro

dimensões de análise: produto e contexto, cânone jornalístico – subjetividade e objetividade,

Jornalismo literário, figuras de linguagem.

Tradicionalmente o jornalismo enfatiza, quase sempre, as mesmas questões dentro

das coberturas de grandes datas ou eventos. Entender como a revista ressalta outros elementos

desse pragmatismo é, também, de fundamental importância para caracterizá­la.

3.1 Produto e contexto

Piauí foi concebida há dois anos, em 2006, fruto de um projeto idealizado pelo

documentarista João Moreira Salles e teve sua primeira edição publicada em outubro daquele

ano. Alguns aspectos de sua identidade trazem dificuldades para uma caracterização fixa, o

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que, no entanto, lhe atribui a singularidade necessária ao reunir várias vertentes e um

anarquismo aleatório.

“A piauí é saudavelmente anárquica. Ela muda muito; é muito dinâmica. Acho que dá pra dizer que a revista é centrada na singularidade. Não temos temas gerais, mas sempre uma pessoa, uma instituição. Generalização no Brasil é algo muito complicado, acaba sendo contraditório. Estamos com sete meses de revista e ainda procuramos a cara dela. É difícil definir a piauí, assim como é difícil definir o Brasil” (SALLES, 2007)

O conteúdo da revista é elaborado, a cada edição mensal, por colaboradores,

inclusive internacionais, se aproximando do modelo de produção em rede, autônomo,

descentralizado e subjetivo. Escritores, médicos, atores, humoristas, entre outros, dão

consistência ao expediente que não busca uma completude na perpetuação, mas no caráter

aberto de novas possibilidades e participações.

Reflexo dessa ausência de rigidez, as editorias de piauí, ou não editorias, seguem a

mesma lógica aleatória. As denominações, ordem seqüencial de indexação e a própria

publicação em si não são perenes, salvo exceções como Chegada, Despedida, Diário e Esquina (Figura 1). A primeira, conforme o próprio nome já caracteriza, aborda sempre temas novos colocados em pauta, já despedida, que talvez pudesse referenciar as seções de óbito do jornalismo convencional, retrata uma espécie memórias póstumas de algum fato, tratando

tanto de pessoas quanto de objetos inanimados. Dois exemplos estão na edição de agosto e

outubro de 2008 que trazem, respectivamente, os textos ATÉ TU, ITAIPULÂNDIA e o discurso de paraninfo para formandos A LIBERDADE DE VER OS OUTROS, do escritor americano David Foster.

Esquina poderia ser a seção que, em função de uma peculiaridade, a ausência de

assinaturas, se aproxima dos editoriais, inexistentes na revista, salvo exceção da edição de

outubro de 2008 que trouxe o primeiro deles. Composta por pequenas histórias que trazem os

mais diversos assuntos, Esquina, representaria, portanto, o olhar da revista diante de alguns fatos da realidade, porém sem a pretensão de expor nenhuma opinião sobre eles, se

encarregando somente de retratar os acontecimentos, em sua grande maioria totalmente

avessos aos parâmetros de relevância e noticiabilidade.

A discussão em torno da temporalidade em piauí é fator recorrente em função de sua

evocação a temas inusitados. Pena (2006) trata dessa questão temporal e de acordo com suas

considerações “temporalidade não se refere ao fato, mas à forma como é transmitido, ou

melhor, mediado. É o instante da mediação que realmente conta”. (PENA, 2006, p. 39)

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A pluralidade de temas contidos em Esquina está paralelamente ligada aos conceitos

de atualidade e novidade. A quantidade de informações veiculadas pela mídia e o interstício

com que são produzidas trazem uma dinâmica frenética às publicações diárias do jornalismo.

Sendo uma revista mensal, piauí tende a se apropriar do fator novidade e o faz com muita

destreza. O texto Edemar,o artista (edição outubro de 2008) trabalha com detalhes do tema

abordado transitando entre o presente e o passado com enorme riqueza de detalhes que Pena

considera como fundamental na atribuição de relevância a temas já tratados ou ressaltados de

forma diferente.

Outra confusão muito comum é entre o novo e o desconhecido. É evidente que o fato de você desconhecer o assunto não significa que ele seja novo. Você pode simplesmente ter ignorado o tal assunto por algum tempo enquanto outras pessoas tomavam conhecimento dele, deixando portanto de ser novidade. Mesmo assim, na primeira vez que a informação chegar até você, na sua acepção será sim uma novidade. (...) Em outras palavras, não só novidade e atualidade são conceitos diferentes como só podem ser entendidos por meio de contextualizações e gradações. E as mais importantes são a intensidade e imprevisibilidade, sob a perspectiva da recepção. (PENA, 2006, p. 40­41)

O Diário, que como o próprio nome diz, relata o cotidiano de quem escreve, ilustra o aspecto não hierárquico da produção de piauí, já referendado pela colaboração em rede, mas

que se substancia através inserção de cidadãos comuns experimentando a oportunidade de

difundir os registros do seu dia a dia.

A edição de outubro de 2008 traz o diário de uma gari intitulado “Deita a vassoura,

gari!”. Uma personagem, Vânia Maria Coelho, que talvez pouco tendesse a agregar valores

lingüísticos à revista, no entanto, a despretensão editorial de piauí se realça nesses detalhes,

que ao longo dos textos apresentam sua pertinência. Vânia completou dez anos de profissão

enquanto a revista completava dois anos na oportunidade do lançamento dessa edição.

Esteticamente piauí se destaca, primeiramente, pelas grandes dimensões que possui.

Todo o conteúdo de texto é dividido em quatro colunas acompanhadas de ilustrações que se

misturam aos caracteres sem pretensão de referenciar o disposto em suas proximidades. Ao

mesmo tempo em que provocam certa dispersão, essas ilustrações convidam o leitor a

revisitar as páginas já percorridas através de uma nova abordagem, podendo apreciar essa

conjugação de forma dissociada e em vários tempos.

Com relação às fotos, também não há fronteiras em seu uso na revista. Se no

fotojornalismo o objetivo é a captura do momento crucial, em piauí esse momento pode ser

sintético ou simplesmente revigorado pela ação de intervenções construtivas através de filtros,

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distorções, ênfases, entre outras estetizações fruto do crescente desenvolvimento dos aparatos

tecnológicos de intervenção imagética. (Figura 2)

A análise de piauí depende muito do relacionamento com algumas teorias e

caracterizações do cânone jornalístico, principalmente a polissêmica definição de jornalismo

literário.

3.2 Cânone jornalístico – subjetividade e objetividade

Os meios de comunicação já foram mencionados anteriormente como possuidores de

duas características imprescindíveis em sua análise, a de cunho social, referente às

instituições, e a de vertente técnica que diz respeito aos mecanismos de expressão, difusão e

propagação.

Sendo a gramática um objeto de estudo sistêmico dos elementos que compõem um

vernáculo, pela ótica jornalística, outra obra se encarrega de complementá­la e contextualizá­

la dentro na esfera institucional.

Os manuais de redação, conforme o Manual de Redação de Estilo do jornal Estado

de São Paulo descreve, têm como objetivo “(...) expor, de modo ordenado e sistemático, as

normas editoriais e de estilo (...) não pretende, com isso tolher a criatividade (...) Seu objetivo

é claro: definir princípios que tornem uniforme a edição do jornal.” (MARTINS FILHO,

1997, p. 9)

A preocupação com a uniformidade resulta, também, em um contínuo

acompanhamento das mudanças advindas dos códigos produzidos e perpetuados em

sociedade, esse mesmo manual, para tanto, enuncia que a razão de uma nova edição é

necessária “para corrigir omissões ou incluir assuntos que passaram a ocupar o noticiário nos

últimos anos.” (MARTINS FILHO, 1997, p. 9)

Registrar possíveis omissões aponta que dar conta de todas as manifestações

lingüísticas no tempo e dinâmica com que surgem é quase tão improvável quanto a existência

de uma edição perene. No que tange às inclusões, é um apontamento do processo de

moldagem cultural da mídia em relação aos sistemas de códigos vigentes.

Os periódicos necessitam dessa uniformidade institucional para representarem algo

além da mensagem que veiculam, um padrão identitário. Apesar da maior liberdade

linguistica com que contam as revistas, conforme será discutido posteriormente, a unidade

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institucional deve ser preservada não implicando em tolhimento, mas talvez adaptações de

redações e formas de escrita.

As capas de piauí (Figura 3) são o ícone mais representativo do seu deslocamento

em relação ao fluxo proposto pela linguagem estruturada firmada pelo cânone. Conforme

Salles reforça,

a capa (de piauí) é como se fosse mais uma colaboração. É muito difícil ela ter relação com o conteúdo. Tem que ser interessante por si só. Chamar atenção e ser divertida. A capa da primeira edição foi feita pelo Angeli em dois dias. Ele perguntou o que tinha na revista. Respondemos que ele não precisava saber. (SALLES, 2007)

O símbolo mais impactante dos periódicos em termos de primeiro contato com o

leitor são as capas. Nelas, além das fotos, artes ou ilustrações que de certa maneira anunciam

o tema principal, também estão discriminadas as chamadas para outros conteúdos mais

relevantes. Uma boa revista precisa de uma capa que a ajude a conquistar leitores e os convença a levá­la para casa. “Capa”, como diz o jornalista Thomaz Souto Corrêa, “é feita para vender revista” . Por isso, precisa ser o resumo irresistível de cada edição, uma espécie de vitrine para o deleite e a sedução do leitor. (...) A chamada principal e a imagem da capa devem se complementar, passando uma mensagem coesa e coerente. (SCALZO, 2006, p. 62­63)

Três aspectos das capas de piauí são, portanto, desconcertantes. Primeiro, a ausência

de fotos desconstrói a temporalidade, não existem fatos que caracterizaram períodos ou datas

específicas representados ali. As ilustrações são, dessa forma, realces estritamente estéticos,

dois apontamentos que contrariam a objetividade jornalística.

Segundo, os títulos relacionados não são colocados pela lógica das possíveis

editorias, sendo efetivamente chamadas consistentes e mote de um supertexto que inicia, já na

própria capa, a navegação pela estrutura do texto interno. Mas o que chama atenção são os

nomes dos autores apontados logo abaixo resultando na ênfase à subjetividade de seus

colaboradores.

Já o próprio nome da revista, diferentemente de outras publicações, se posiciona a

deriva em qualquer um dos cantos do layout. Essa configuração que em outras publicações do

gênero se apresentam de forma estática é na verdade alheia à padronização.

As questões que permeiam a objetividade e subjetividade jornalísticas, mais

enfaticamente o conceito dessa primeira “é um dos mais discutidos em jornalismo” (PENA,

2006, p. 49)

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Objetividade e a presença, aguda ou não, de idiossincrasias possuem grande relação

com a variedade lingüística e a flexibilidade de registro das observações realizadas pelos

jornalistas. Pena (2006, p. 50) analisa que:

A objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro, pois ela surge não para negá­la, mas sim por reconhecer a sua inevitabilidade. Seu verdadeiro significado está ligado à idéia de que os fatos são construídos de forma tão complexa que não se pode cultuá­los como a expressão absoluta da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e criar um método que assegure algum rigor cientifico ao reportá­los. A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo (...) E como essas coisas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma metodologia de trabalho.

É interessante observar a análise da relação entre objetividade, subjetividade e

idiossincrasias. Ao estruturar o processo da concepção do texto jornalístico ideal, três atores

são apontados: o jornalista, a fonte, que tem papel de testemunho e/ou ratificador dos

acontecimentos, e o receptor.

As idiossincrasias são inseridas na produção e recepção por todos os três atores.

Porém, há certa peculiaridade concernente ao jornalista como Pena (2006, p. 51) aponta:

Mas o que o se observa no jornalismo atual é uma simbiose, não uma separação. A noticia nunca esteve tão carregada de opiniões. E um dos motivos é justamente atender ao critério de objetividade que obriga o jornalista a ouvir sempre os dois lados da historia. Os jornais valorizam mais as declarações do que os próprios fatos. Ou seja, preocupam­se mais com os comentários sobre os acontecimentos do que com os acontecimentos em si.

Isso demonstra uma intensa destituição de relevância ao papel do jornalista e seu

ângulo de observação. Se o testemunho do jornalista é prescindido, sua análise passa a

remeter a uma simples justaposição e intercalação coerente dos fatos.

Essa angulação é o que Salles trata quando enfatiza ter em Piauí

(...) uma preocupação da forma, que é uma preocupação cada vez maior (...) quanto ao documentário, é também uma preocupação da revista em relação aos textos que são escritos, não interessa só a história, interessa a maneira como ela é contada. (SALLES, 2007)

Duas reportagens da edição de agosto de 2008 revelam as preocupações com os

aspectos do ato de reportar objetiva e, principalmente, subjetivamente em piauí. ACM de adereços fluorescentes já traz no próprio título idiossincrasias presentes na cobertura

jornalística.

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A reportagem inicia, em seus dois primeiros parágrafos, traduzindo certa onipresença

da jornalista Daniela Pinheiro que não poupa descrições no parágrafo seguinte, uma delas que

dá origem ao título.

No cemitério do Campo Santo, em Salvador, há uma lápide branca na qual está escrito: “A Bahia sempre foi e será a razão da minha vida.” Uma foto antiga do morto está manchada de água de chuva e desbotada pelo sol. Vasos velhos com margaridas murchas e ressecadas são as únicas homenagens. Sacos plásticos e duas garrafas jogadas reforçam o abandono do túmulo do governador Antonio Carlos Magalhães, que morreu há um ano. “No começo ficava cheio, mas agora parece que esqueceram dele” , disse um funcionário do cemitério numa manhã de julho. A 10 quilômetros dali, no estacionamento de um supermercado, duas camionetes aguardavam a comitiva do deputado Antonio Carlos Magalhães Neto, o candidato melhor situado nas pesquisas de intenção de voto nas eleições para a prefeitura de Salvador. O grupo seguiria para o cortejo de 2 de julho, que comemora o fim da guerra que, em 1823, expulsou os portugueses da Bahia. Para os políticos, o feriado serve de termômetro de popularidade. É a hora em que eles se misturam ao povo, são apalpados, agarrados, puxados, espremidos, aclamados – ou vaiados. Também é a boa hora para gravar cenas do programa eleitoral na televisão. Antonio Carlos Magalhães Neto chegou de tênis branco com adereços fluorescentes. “Olha o tênis dele: igualzinho ao meu! Só que o dele fala inglês e o meu é pirata mesmo” , brincou o ex­governador César Borges, colando o pé direito ao esquerdo do candidato. De um carro saiu o senador Antonio Carlos Magalhães Júnior, o pai de Neto, que cumprimentou o filho com um beijo na cabeça. (PIAUI, Agosto 2008, p. 21)

O objeto ou personagem protagonista da abordagem em questão é o político ACM

Neto. Sua rotina política é descrita de perto, no entanto, a objetividade é trabalhada pelo seu

histórico familiar, abordado pela ótica subjetiva tanto da jornalista, quanto de fontes

potenciais, sem comprometer o teor do texto.

O outro exemplo em questão, de título Silhueta olímpica é objetivamente descrito, porém o enfoque da pauta jornalística diz muito sobre a subjetividade e preocupação com a

dinâmica na abordagem do acontecimento em voga. O conteúdo do texto relaciona a

arquitetura do complexo olímpico com aspectos políticos dos jogos de Pequim.

Para entender a importância dos XIX Jogos Olímpicos para a China, basta ver onde foi construído o Parque Olímpico. Durante o primeiro boom imobiliário de Pequim – seiscentos anos antes do atual –, a cidade se distribuía simetricamente dos dois lados de um eixo norte­sul. Como ocorre em Paris – onde o Louvre está alinhado com o Jardim das Tulherias, o Arco do Triunfo e a avenida dos Champs­Elysées –, as estruturas de maior importância simbólica de Pequim sucedem­se ao longo de um eixo principal. No centro fica a antiga residência imperial da Cidade Proibida. Ao norte fica o Jingshan, um parque que cerca um morro artificial onde dizem que se enforcou o último imperador da dinastia Ming, e, além dele, a Torre do Tambor e a Torre do Sino, que por muitos séculos indicaram a hora aos moradores da cidade. (PIAUI, Agosto 2008, p. 43)

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Mas piauí trouxe em sua primeira edição o que pode ser considerado como o ápice

da simbiose descrita por Pena. A objetividade do fotojornalismo acrescida do momento

subjetivamente escolhido pelo fotografo Orlando Britto deu origem ao portfólio intitulado Vultos da Republica (Figuras 4 e 5). O texto de Orlando Britto descreve com clareza.

As fotos de Orlando Britto captam vultos sombrios do poder. Captam a tensão entre o que é dito nos palanques e para as câmeras da televisão e aquilo que, nos bastidores, é urdido de fato. As fotos estão além da retórica política, da imagem que os políticos fazem de si mesmos. Elas mostram o desespero da política. (PIAUI, Outubro 2006, p. 43)

A objetividade jornalística, no entanto, é traduzida em grande parte pelo lead, descrito por Pena (2006, p.42) como “relato sintético do acontecimento”. As revistas pela sua

relação distinta com o factual tendem a difundir as informações contidas no lead e distribuí­

las aleatoriamente pelo texto. Isso ocorre em função, principalmente, da periodicidade com

que são publicadas.

(...) não vemos numa revista fórmulas de redação muito rígidas, como no texto de um jornal diário. Nas magazines de informação­geral, o texto é organizado em tópicos frasais e documentações. Trata­se de abordar o assunto, não o fato. (...) Geralmente, é uma estrutura baseada em antíteses: o fato e sua causa surpreendente, a aberrante aproximação de dois casos; do fato e sua circunstancia, do fato e sua conseqüência. (VILAS BOAS, 1996, p. 72)

Essa flexibilidade de abordagem dos assuntos é o que, mais uma vez, distância piauí

até mesmo das características do seu tipo de publicação. As duas edições escolhidas com a

finalidade de analisar o enfoque da revista aos grandes temas em voga elucidam bem esse

distanciamento.

A revista de dezembro de 2007 retrata o natal apenas na editoria, nem sempre

presente, The piauí Herald´s. Com estrutura de paródia, figura linguagem foco do quarto tópico dessa análise, o número referência o natal caricatamente através de um guia de

compras com produtos inexistentes e que ridicularizam autoridades e celebridades. (Figura 6)

A olimpíada de Pequim, que esteve tão presente em todo noticiário durante sua

realização, também teve foco completamente avesso aos padrões jornalísticos. A já

mencionada matéria que retratou as construções do complexo olímpico foi acompanhada da

intitulada Atletas, Dopai­vos. Sem nenhum aspecto pragmático da competição, sua abordagem descreveu, estritamente, o histórico da prática do doping de atletas consagrados e a

conseqüente perda das medalhas.

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3.3 Jornalismo literár io

A complexidade pós­moderna e sua dinâmica aberta de jogos de linguagem já foi

mencionada nesse trabalho como contexto fundamental para compreender em qual conjuntura

as relações lingüísticas, bem como as produções editoriais, se encontram.

A complexidade retratada por Featherstone (1996, p.17) da “superprodução de bens

culturais” paralelo à fusão de gêneros se espelha, também, nas tentativas de caracterização do

jornalismo literário.

Pena (S/D) propõe uma ampla discussão desse conceito, tanto histórica, retrocedendo

aos tempos nos quais o jornalismo literário se servia apenas da veiculação de romances em

periódicos, quanto técnica, a partir da qual define:

(...) o jornalismo literário como linguagem musical de transformação expressiva e informacional. (...) Não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas sim de uma verossimilhança possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de jornalismo, nem de literatura, mas sim de melodia. (PENA, S/D , p. 14)

Essa melodia pode ser entendida pelo agregado de atributos literários a serviço da

redação jornalística produzindo textos híbridos que não se rendem à objetividade

preeminente, mas que também não se enveredam pelo caminho da subjetividade determinista

responsável pelo isolacionismo interpretativo das metanarrativas.

O conceito utilizado para relacionar jornalismo e literatura é a “estrela de sete

pontas” 3 (PENA, S/D). Em função da abrangência e extensão a que se prestariam essas sete

pontas, no emprego da análise de piauí, para fins de síntese, serão abordados quatro desses.

Primeiramente, a potencialização dos recursos do jornalismo representa a

apropriação dos “princípios da redação (...), a apuração rigorosa, a observação atenta, a

abordagem ética e a capacidade de se expressar claramente” de forma a contribuir para uma

composição harmônica.

A iniciar pela escolha pertinente do personagem, a matéria, estilo perfil, publicada na

edição de outubro de 2008, intitulada “Onze bilhões de reais e um barril de lágrimas” refere­

3 As sete pontas são em resumo: potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites do acontecimento cotidiano, a visão ampla da realidade, exercitar a cidadania, romper com a estrutura do lead, evitar os definidores primários (fontes oficiais) e a perenidade.

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se não só a essa potencialização, como também a outra ponta da estrela a ser abordada, a visão

ampla da realidade.

Com traços firmemente apoiados na descrição da trajetória de vida do especialista

em mercados, Luis Stuhlberger, a matéria mistura informações biográficas com uma

importante questão em pauta, os fundos monetários, bolsas de valores, cotações e a crise

financeira mundial.

Além de retratar o cotidiano de alguém que lida com o mercado financeiro, o texto se

encarrega, também, de coletar prenúncios sobre o contexto de crise mundial de alguém com

ampla bagagem profissional.

Stuhlberger não se destaca numa sala, e muito menos numa multidão. Magro, nem alto nem baixo, está com 54 anos. Os cabelos pretos são cortados rente à cabeça, revelando duas entradas. Seus olhos são grandes e passam a impressão de constante surpresa. O raciocínio é rápido e nervoso como a sua fala e os gestos. Na comprida mesa de jantar, ele tem pilhas de relatórios, anotações manuscritas, uma calculadora financeira HP e um enorme mapa de São Paulo. Em um nicho espelhado na parede atrás dele, há mais relatórios, com trechos marcados à caneta, uma infinidade de gráficos e livros de assuntos disparatados: Brasil: Raízes do Atraso, do economista Fabio Giambiagi, Um Barril de Risadas, um Vale de Lágrimas, do cartunista e humorista americano Jules Feiffer, e The Year of Living Biblically, de A. J. Jacobs. (...) No final de agosto, Stuhlberger teorizou: “Está claro que o governo americano não vai deixar o sistema financeiro quebrar. Quem vai começar a sofrer agora é a Europa, porque está com problemas no sistema financeiro. Por isso fiz operações de dólar contra euro.” Ele pegou um papel e começou a desenhar o cenário que projetou. Traçou um boneco sobre uma linha reta representando o euro. Fez uma linha levemente inclinada para explicar como o mercado está vendo a queda da moeda européia. Depois, traçou um risco vertical, para baixo, explicando sua visão: o euro despencando. “Essa é uma enorme oportunidade que ninguém está vendo.” Há meses ele vem comprando papéis e moeda americanos a preços baixos para seu fundo internacional, o Global. É assim que ele ganha. “Tudo o que eu faço é comprar barato.” No Verde, ele tem posições compradas em câmbio na BM&F. Está convencido de que o dólar, no Brasil, não volta para os patamares inferiores a 1,70 real. Já as ações, ele acredita que devem apresentar uma estabilização nos preços. “Não terão mais as grandes altas de 2007.” O que o faz acertar quando boa parte do mercado erra? Ele credita seus acertos, primeiro, a análises exaustivas das conjunturas econômicas brasileira e mundial. “Eu sou muito disciplinado nos meus estudos, leio uma quantidade absurda de relatórios e depois tiro minhas conclusões”, disse. E filosofou: “O mercado tenta o tempo todo prever o futuro. Só que a maioria dos gestores faz isso olhando para o mundo de forma setorizada, através das informações que chegam pela tela do computador. Eu tento olhar esse mundo um pouco mais de cima. Não tão do alto que não enxergue a cidade e nem da rua. Faço uma análise macro e uma análise micro de cada setor, e vou para a economia real ouvir as pessoas.” Seu segundo ponto forte, avalia, é trabalhar com várias teses de investimento: “Sempre faço um investimento protegendo o outro. Se perco numa ponta, ganho na outra.” (PIAUI, Outubro 2008, p. 26­32)

A reunião de abrangência contextual também está ligada a outra ponta da estrela que

aponta para a necessidade de superar os fatores da periodicidade e atualidade. Conforme já

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discutido, a novidade traz um ritmo frenético ao jornalismo. Não só o jornalista responde por

isso, se submetendo aos prazos de entrega, como o próprio leitor tenciona pela exigência de

estruturas de lead cada vez mais concisas, objetivas e eficiente na abordagem de todo espectro

informacional.

O jornalismo literário deve, portanto, convidar o leitor para perspectivas mais amplas

de atualidade e romper com a estrutura do lead permitindo uma melhor distribuição de todos

os dados a serem transmitidos ao longo da composição harmônica do texto.

Em sua segunda edição, piauí evidenciou um tema atual em função da relevância e

não temporalidade, recorrendo, já inicialmente, a outra forma de iniciar o texto, prescindindo

o tradicional lead.

Quem faz a cabeça do brasileiro é o Toxoplasma gondii. Não adianta dizer que nunca o viu mais gordo. O Toxoplasma gondii é assim mesmo, “ incrivelmente comum e incrivelmente obscuro” , segundo o jornalista Carl Zimmer, que outro dia o apresentou aos leitores do New York Times numa página cheia de superlativos. Zimmer tratou­o como uma “criatura extraordinária” e “espantosamente bem­ sucedida”. E lançou no caminho da fama esse personagem onipresente mas discreto, ainda que prive da intimidade de pelo menos um terço da humanidade. Sem conhecê­lo, no mínimo 2,2 bilhões de pessoas convivem diariamente com o Toxoplasma gondii. (...) Os parasitas são vítimas de uma longa história de incompreensão. A começar pelo nome. “Parasita” vem da palavra grega para designar o criado que servia comida em banquete. Eles fazem o contrário: servem­se num banquete de vida alheia. Os cientistas hesitaram muito em levar os parasitas a sério. Charles Darwin baniu­os do esquema geral da seleção natural, supondo que essas criaturas “ rastejantes” eram desvios regressivos no curso natural da evolução. Logo eles, que parecem estar na vanguarda dos processos evolutivos, mudando tantas vezes de forma quantos forem os desafios ao seu talento adaptativo e habilitando­se a viver nos ambientes mais impróprios. Nós, por exemplo. Bilhões de seres humanos são ninhos inconscientes de Toxoplasma gondii. Esse parasita oblíquo e dissimulado pode varar a membrana das células de autodefesa e penetrar seu núcleo como clandestino, iludindo as barreiras imunológicas do cérebro, tido como o último bastião do organismo contra micróbios patogênicos. Ele fura as muralhas orgânicas como “cavalos de Tróia” , diz Zimmer. Uma vez no cérebro, dali ninguém o tira, entre outros motivos porque o Toxoplasma gondii se esmera em perturbar o mínimo possível a vida de seu anfitrião. “Ele simplesmente vai ficando por lá, e o hospedeiro não o reconhece como um invasor que deveria ser destruído” , afirma David Sibley, professor de microbiologia molecular. (PIAUI, Novembro 2006, p. 34)

Fica claro, portanto, que piauí dentro da perspectiva trazida por Pena reúne as

características do jornalismo literário. A revista traz uma gama de informações em estruturas

de texto com inteligibilidade própria da perenidade da redação literária, contextualiza temas

relevantes pouco abordados se apropriando das faculdades jornalísticas. Prescinde ao uso do

lead tradicionalmente presente nos periódicos diários. Evidencia que a periodicidade e

atualidade efetivamente se relacionam em torno da ciência dos temas em tempos diferentes a

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depender do contato com as informações bem como do interesse, momentâneo ou não, do

leitor por aqueles temas específicos.

3.4 Figuras de Linguagem

Fator preponderante da pós­modernidade, a enfática valorização do happening e da performance redundam em um novo interesse na produção de mensagens, ou mesmo da arte,

em prover ao objeto veiculado um estrutura que permita a adequada apreciação e valorização

por parte do receptor.

A enorme quantidade cambiante de significantes, fruto da superprodução cultural,

dedica aos meios uma atenção à estética como poderoso instrumento para potencializar

significados.

Piauí não ingressa no mercado de forma tímida, ao contrário, despoja em artigos

gráficos, imagéticos, recorre a estilos consagrados, mistura texto, fotos e ilustrações. O

resultado disso é ampla presença das figuras de linguagem típicas da pós­modernidade:

pastiche, paródia, colagem/montagem, simulacro. Esse encadeamento de signos transita entre

o referente (objeto) e a referencia (sujeito) traduzindo em formas aleatórias de significação.

A primeira edição de piauí trouxe dispersa em suas páginas uma história em

quadrinhos (Figura 7) que traduz muitos aspectos da utilização de imagens na revista, sejam

elas fotos ou ilustrações. A presença de ilustrações sem nenhuma conexão com os textos

remonta a idéia da revista como objeto de apreciação por várias formas e condutas. A leitura

apurada de todos os textos seria uma forma de consumo e apreciação. Paralela a ela, o simples

trânsito entre as páginas permitiria outra maneira de entendimento. Como significante, isso

traz o contato com todo o conteúdo compartilhado através de inúmeras possibilidades.

Seguindo as determinações pós­modernas relativas à fusão de gêneros, o uso de

imagens e ilustrações na revista reúnem quadrinhos, charges, simulacros, em perspectivas de

uso da linguagem envolvendo a paródia, o pastiche, além da colagem e montagem. (Figura 8)

3.4.1 Simulacro

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A editoria The piauí Herald é um simulacro que mistura recursos de paródia,

pastiche, colagem/montagem resultando em uma nova versão da revista Caras. (Figura 9)

Reproduzido com enorme fidelidade pela sua diagramação, além de apropriação da estrutura

de texto, o simulacro satiriza personalidades conhecidas, sejam elas presentes como de

costume na versão original, Galisteu e Luana Piovani, sejam figuras de grande apelo político,

cientifico ou filosófico como Che Guevara, Einstein e Freud.

Os recursos de colagem\montagem se desdobram em fotomontagens que

substanciam o conteúdo junto aos textos divididos em elementos de pastiche e paródia.

A mistura de ilustrações junto aos textos é também mais uma peculiaridade de piauí.

A editoria esquina é sempre composta por desenhos como espécie de charges representativas dos textos. (Figura 10)

Como último objeto de análise, os quadrinhos se encarregam de compor a

pluralidade expressa na revista. Ao tratar de fusão de gêneros, piauí é um compêndio não só

de figuras de linguagem, como publicações jornalísticas de cunho informacional, de

entretenimento e puramente artístico.

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Figura 01: Estrutura aleatór ia das editor ias.

Fonte: Revista piauí edições: outubro e novembro de 2006, dezembro 2007, agosto e outubro de 2008

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Figura 2: Fotos com intervenções artísticas.

Fonte: Revista piauí edições de outubro e novembro de 2006

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Figura 3: Capas das edições selecionadas

Fonte: Revista piauí edições de outubro e novembro de 2006, dezembro 2007, agosto e outubro de 2008

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Figura 4: Fotojornalismo subjetivamente exposto

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2006

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Figura 5: Fotojornalismo subjetivamente exposto

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2006

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Figura 6: Única menção da edição de natal à festa tradicional

Fonte: Revista piauí edição dezembro de 2007

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Figura 7: Seqüência de quadr inhos distr ibuídos pelas páginas da revista

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2006

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Figura 8: Histór ia em quadr inhos, paródia da consagrada histór ia de Hamlet

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2008

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Figura 9: Simulacro r epresentado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2008

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Figura 9.1: Simulacro r epresentado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2008

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Figura 9.2: Simulacro r epresentado por colagem/montagem,

paródia e elementos de pastiche

Fonte: Revista piauí edição outubro de 2008

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Figura 10: Charges da editor ia esquina

Fonte: Revista piauí edições (de cima para baixo) de outubro e novembro de 2006, dezembro 2007, agosto e outubro de 2008

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Considerações Finais

A premissa que norteou o escopo desse trabalho foi se desvelando à medida em que

dentro das reflexões teóricas surgiram, espontaneamente, os enquadramentos relativos ao

objeto de análise empírica.

Dessa forma, a cultura foi retratada a partir de códigos que propiciam e conferem aos

atores sociais conhecimentos para decodificação das mensagens. A partir da relação

estruturada entre repertório cultural e os meios de comunicação foi possível compreender que

as mensagens vinculadas nos diversos contextos se distribuem em duas vertentes, a de cunho

técnico e a de viés social.

Nesse ciclo, a abordagem social remete ao entendimento de que assim como cultura

alimenta o conteúdo da produção simbólica, essa por sua vez, ao espelhar o repertório de

códigos vigentes, produz novos significados em um processo dialógico. A partir da ênfase

determinada ao conjunto de significantes, a pós­modernidade catalisa esse processo abarcando

todos os signos, transformando­os constantemente sob novas formas de veiculação,

manipulação ou intervenção.

Os aspectos técnicos agregaram a essa conjuntura o potencial instrumental para

difundir essas iniciativas ao redor do globo, interligando distancias e reunindo a humanidade

na grande aldeia global.

No entanto, o fato do domínio tecnológico dos meios de comunicação,

principalmente da televisão pela sua característica de imensurável de amplitude e assimilação,

perdurou durante muito tempo como razão para a existência da denominada comunicação de

massa.

Aos poucos esse conceito foi adotando novas nuances e com o surgimento das novas

mídias percebeu­se uma ampla e crescente participação e autonomia do receptor no processo

de significação das mensagens veiculadas. Ao possibilitar a descentralização produtiva, os

novos aparatos técnicos da comunicação romperam com parte das hierarquias que

condicionavam a audiência como meros receptáculos.

Uma nova tensão foi se desenhando e o fator institucional dos meios de comunicação

voltou­se para o processo de difusão com a intenção de adotar dinâmicas centralizadoras que

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possam estruturar as identidades das produções editoriais e impor pelas vias do poder

simbólico repertórios culturais específicos.

No entanto, paralelo a esse amplo desenvolvimento tecnológico e a conseqüente

redução das distancias pela virtualidade de transmissão das mensagens pelos meios de

comunicação, as identidades dos sujeitos sociais assumiram novas formas de estruturação. A

chamada “crise de identidade” resultou na desreferencialização do homem pós­moderno.

Com isso, as paisagens culturais se fragmentaram e os valores consistentes evocados

pela vida comunitária se diluíram a partir da instituição dessa aldeia global. Os atores sociais

foram se posicionando de formas diferentes tendo em vista a relativização de suas intenções e

papéis nessa sociedade.

A partir do que Castells (1999) trata como identidade legitimadora, identidade de

projeto, identidade de resistência constata­se diferentes formas de relação desses atores com

os meios de comunicação.

Esse novo sujeito fragmentado parte, então, para um processo de releituras e

interseções de todos os valores que compõem seu repertório cultural. Na comunicação esse

fenômeno é acompanhado pela segmentação do consumo, mote para o surgimento de novas

produções profundamente diferentes do modelo canônico institucionalmente existente.

Piauí surge como grande exemplo desse fenômeno. Uma revista que transita pelo

descontrucionismo pós­moderno e rompe com as barreiras dos gêneros através da fusão de

aspectos isolados e deterministas.

A pluralidade expressa no âmbito social passa também a refletir nos produtos

editoriais. O aspecto técnico é incorporado a esse movimento e as possibilidades de

intervenções artísticas e lingüísticas tornam o processo de significação cada vez mais aberto

para construções coletivas.

Ao abandonar o cânone jornalístico, piauí se destaca como produto pós­moderno que

reúne aspectos de várias estruturas lingüísticas de expressão. O pastiche, a paródia, a

colagem/montagem, o simulacro se encarregam de conjugar textos, imagens e outras formas

de representação, relacionando os temas abordados sob um novo perspectivismo.

Além de todos esses aspectos, o modelo de produção em rede da revista descentraliza

e fragmenta sua identidade. Finalmente, a intensa preocupação com a composição estética

traduz a ênfase ao significante extremamente anárquico na significação. O fluxo da leitura de

piauí é ao mesmo tempo difuso pela quantidade de signos cambiantes e cativante pela

qualidade dos textos, imagens e demais manifestações inusitadas.

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