valor, preÇos e distribuiÇÃo: de ricardo a marx, de

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  • 1SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTOFUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICASiegfried Emanuel Heuser

    A Fundao de Economia e Estatstica Siegfried Emanuel Heuser (FEE) tem estimulado e apoiado as iniciativasde aprimoramento tcnico e acadmico de seus pesquisadores. Dentro dessa perspectiva, a titulao represen-ta a elevao do patamar de competncia do corpo tcnico e, tambm, um elemento estratgico frente sexigncias institucionais que se colocam no campo da produo de conhecimento. Na ltima dcada, o esforocoletivo da FEE tem-se direcionado para o Doutorado. A srie Teses FEE foi criada para divulgar as teses deDoutorado recentemente produzidas pelos pesquisadores da FEE.

    VALOR, PREOS E DISTRIBUIO:DE RICARDO A MARX,

    DE MARX A NS

    Carlos guedo Paiva

    TESES FEE N 9

    Porto Alegre, 2008

    ISBN 978-85-7173-080-9 ISSN 1676-4994

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    FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA Siegfried Emanuel Heuser

    CONSELHO DE PLANEJAMENTO: Presidente: Adelar Fochezatto. Membros: Andr LuisCampos, Ernesto Dornelles Saraiva, Leonardo Ely Schreiner, Nelson Machado Fagundes, PedroSilveira Bandeira e Thmaz Nunnenkamp.

    PRESIDENTE: ADELAR FOCHEZATTODIRETOR TCNICO: OCTAVIO AUGUSTO CAMARGO CONCEIODIRETOR ADMINISTRATIVO: NRA ANGELA GUNDLACH KRAEMER

    CENTROS:ESTUDOS ECONMICOS E SOCIAIS: Snia Unikowsky TeruchkinPESQUISA EMPREGO E DESEMPREGO: Roberto da Silva WiltgenINFORMAES ESTATSTICAS: Adalberto Alves Maia NetoINFORMTICA: Luciano ZanuzEDITORAO: Valesca Casa Nova NonnigRECURSOS: Alfredo Crestani

    SECRETARIA DO PLANEJAMENTO E GESTO

    Toda correspondncia para esta publicao dever ser endereada :FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA Siegfried Emanuel Heuser (FEE)Rua Duque de Caxias, 1691 Porto Alegre, RS CEP 90010-283Fone: (51) 3216-9049 Fax: (51) 3216-9134E-mail: [email protected]

    Tiragem: 100 exemplares.

    CIP Ivete Lopes Figueir CRB10/509

    P149 Paiva, Carlos guedo Nagel

    Valor, preos e distribuio: de Ricardo a Marx, de Marx a ns / Carlos guedo Nagel Paiva. Porto Alegre: FEE, 2008. (Teses FEE; n.9).

    452p.: tab.

    Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia, 1998. 1. Valor. 2. Preos. 3. Trabalho. I. Ttulo. II. Fundao de Economia e Estatstica Sieg- fried Emanuel Heuser. III. Srie.

    ISBN 978-85-7173-080-9

    ISSN 1676-4994

    CDU 331.105.24:502.3 628.46:504

    CONSELHO CURADOR: Carla Giane Soares da Cunha, Flvio Pompermayer e Lauro NestorRenck.

    DIRETORIA:

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    Tese de doutoramento de Carlosguedo Nagel Paiva apresentada aoInstituto de Economia da UniversidadeEstadual de Campinas sob a orientaoda Professora Doutora Maria SilviaPossas.

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    Para Caio, Samuel e Isadora,porque so a minha fonte diria

    de felicidade.

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    AGRADECIMENTOS

    Um trabalho to longo quanto este (no ouso revelar o nmero de anosque o mesmo me atormenta) recebeu a influncia e a contribuio de umsem-nmero de pessoas. As razes do captulo sobre Ricardo esto l na minhagraduao, no Grupo de Estudos do Princpios de Economia Poltica eTributao, nos debates com o Ickx e o Hlio, nas aulas do Pedro, nas conversascom o Achyles. Obrigado.

    Cada um dos meus professores da Unicamp encontra-se um pouco nestaspginas. H muito do Fred no segundo captulo, muito do Alonso no quarto, e hmuito do Possas em todos. Obrigado.

    A influncia do Possas neste trabalho s encontra paralelo na influnciada Glucia. Sem ela, o Captulo 4 seria impossvel. E sem o Captulo 4, a teseno teria qualquer sentido. Obrigado.

    Muitas vezes, eu s consigo pr em ordem as minhas idias falando. Eeu preciso de algum que me escute. Felizmente (para mim, claro), Deus pso Brando no meu caminho. Obrigado, amigo, pela pacincia, pela ateno epelos questionamentos.

    Quem me conhece, sabe que eu no vivo sem msica. Para mim, o grandeerro da Criao (parcialmente corrigido por Hollywood) a ausncia de fundomusical. Quando no estou ouvindo nada, canto (para o desprazer dos queesto por perto). Mas cantar, refletir sobre teoria dos preos e escrever nemsempre combinam. O meu grande amigo Flores abriu-me sua discoteca, e estatese foi escrita ao som de Gershwin. Se ela tem algum mrito, tenho de dividi-locom Ira, George e Zezinho. Obrigado aos trs.

    Finalmente, gostaria de agradecer a uma pessoa muito especial, que mefez ver o quanto eu ainda tenho que aprender como orientador. A leitura da Silviano meramente atenta: meticulosa. Suas crticas so sempre corretas ericas. E o mais importante: quando ela (finalmente) gosta, no poupa elogios.Muito obrigado, Silvia.

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  • 9AGRADECIMENTOS

    "O verdadeiro e o falso pertencem aospensamentos determinados que,privados de movimento, valem comoessncias prprias que permanecemcada uma no seu lugar, isoladas efixas, sem se comunicar uma com aoutra. [...] Assim como no h um mal,assim tambm no h um falso."G. W. F. Hegel. A Fenomenologia doEsprito.

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    PREFCIO

    O trabalho aqui publicado minha tese de Doutorado, desenvolvida soborientao da Professora Doutora Maria Silvia Possas e defendida no Institutode Economia da Unicamp. Se se desconsiderar este Prefcio, a nica alteraofeita ao trabalho original encontra-se no Apndice, aposto Concluso. A funodesse Apndice preencher uma lacuna do trabalho original, que s se revelouplenamente aps a defesa do mesmo.

    Minha proposta original de pesquisa no Doutorado era avaliar a consistnciae a capacidade explicativa da teoria kaleckiana dos preos e da distribuiovis--vis evoluo da distribuio da renda no Brasil, ps 70. Para tanto,propunha-me a fazer uma exposio dessa teoria centrada no resgate dasubordinao funcional da distribuio aos preos, no sistema de Kalecki.

    Na primeira verso do que deveria ser o captulo introdutrio da tese, abriuma nota de rodap em que comentava o fato de a tese kaleckiana daindissociabilidade entre preos e distribuio subverter, de forma radical eabsoluta (por no deixar qualquer espao a snteses dialticas), a teoria ricardianados preos e da distribuio, toda ela assentada na pretenso da independnciados dois sistemas. E isso, a despeito de, no plano estritamente metodolgico(e, at certo ponto, no plano utpico-ideolgico), Ricardo e Kalecki apresentaremmais afinidades do que oposies.

    A tomada de conscincia dessa inverso terica peculiar (porquanto toradical quanto assentada na eleio de referenciais metodolgicos similares)gerou todo um conjunto de questionamentos que foram ganhando vida prpria erevolucionando o projeto original. Meu primeiro movimento foi tentar entenderqual trajetria de investigao (se que houve tal trajetria!) permitiu a (gradual?)inverso de posies tericas entre Ricardo e Kalecki, uma questo que tomoua seguinte forma: como a relao entre preos e distribuio foi pensada,desde Ricardo at Kalecki, pelos principais autores e correntes dopensamento econmico? Esse seria o objeto do primeiro captulo da tese,que segundo o plano original deveria tratar, nos demais, de Kalecki e desua pertinncia emprica ao caso Brasil

    Ledo engano. A obra de Ricardo gera um conjunto to amplo e atraente dequestes que me vi envolvido com o tema por alguns meses de trabalho,sintetizados em 40 pginas de texto. E se a obra de Ricardo j sedutora, a deMarx apaixonante. Quando, finalmente, cheguei a este autor, simplesmenteme deixei levar pelo prazer de estudar a obra daquele que o maior pensador

  • 12dentre todos os economistas e o maior economista dentre todos os pensadores.Trs captulos e, dois anos e meio depois, comecei a sistematizar o pensamen-to neoclssico sobre preos e distribuio, onde descobri uma riqueza e umacomplexidade representadas, dentre outras, nas obras de autores da estaturade Hicks, Knight e Schumpeter usualmente ocultadas pela simploriedadedos manuais e pela vulgaridade ideolgica dos idlatras do mercado e damodelstica elegante. Mais um ano se passou, at que fosse possvel tratar doSchumpeter ps-marginalista, de Sraffa, de Joan Robinson, de Kaldor, de Hall eHitch, etc. E o resultado dessa longa e agradvel viagem pelo PensamentoEconmico que Kalecki nosso protagonista original acabou relegado apouco mais de duas sees do captulo final.

    primeira vista, pode parecer que Kalecki tenha recebido a ateno devida.Eu mesmo me sentia confortvel com a ateno dada a ele, quando levei otrabalho defesa. Afinal justificava eu, ento, a rotao de perspectiva ,era o prprio tema que havia mudado. A tese, agora, tinha por objeto o desenvolvi-mento das concepes acerca do valor, dos preos e da distribuio bemcomo da relao entre essas categorias no interior do Pensamento Econmico.Colocar Kalecki no ponto conclusivo desse amplo debate, ao lado (e, ousadiadas ousadias, um pouco acima!) de Schumpeter e Keynes, parecia umaapreciao correta e suficiente da sua contribuio. Uma apreciao corroboradapela banca. Afinal, excetuada uma observao to rpida quanto discreta doProfessor Mrio Possas (na verdade, mais uma crtica minha pretensasobrevalorizao da ontologia do trabalho em Marx do que subestimao deKalecki), no alcano lembrar de qualquer outra sinalizao negativa com relaoao tratamento dispensado a Kalecki.

    Logo aps a defesa de minha tese de Doutorado, contudo, fui convidado atrabalhar no detalhamento e na operacionalizao do Programa deDesenvolvimento Econmico da Gesto Olvio Dutra (1999-2002), do Governodo Estado do Rio Grande do Sul. A necessidade de debater com o conjunto dosassessores economistas das diversas Secretarias de Governo, argumentandoem prol da viabilidade de uma estratgia de desenvolvimento regionalredistributiva e empregadora, baseada no apoio s micro, pequenas e mdiasempresas, obrigou-me a revisitar Kalecki. E, para minha surpresa, o autor mostroufacetas e potencialidades que eu havia desconhecido, ao privilegiar a comparaode sua obra com a de seus antecessores, ao invs de privilegiar suas dimensesmais originais e, por isso mesmo, incomparveis.

    No Apndice acrescentado a esta edio, fao um esforo para expor oque me havia escapado originalmente. Num primeiro momento, pensei que omais correto seria alterar o corpo do texto. Depois, percebi que no. Em primeirolugar, porque no h nada de incorreto na exposio anterior, nada que exija

  • 13modificao. Apenas no foram extradas todas as conseqncias do sistemakaleckiano para uma poltica de desenvolvimento econmico que tenha porobjetivo o crescimento com distribuio de renda. Em segundo lugar, porque aintroduo, agora, no corpo do texto, daquelas conseqncias que foram deixadasde lado originalmente apenas serviria para diminuir a visibilidade das mesmas,o que no redimiria o equvoco: o obscureceria. E, pelo contrrio, fao questode ilumin-lo. Afinal, muito menos importante do que a imagem que o leitorpossa fazer da competncia intelectual do autor desta tese, a contribuioque a mesma pode trazer para a compreenso do complexo (e algo triste) mundoem que vivemos. Sem falsa modstia, acredito que sua verso original colaborapara tanto e se sustenta sem transformao. Mas incorre num equvoco queprecisa ser salientado.

    Por fim, aproveito a oportunidade deste Prefcio para agradecer a algumaspessoas que permitiram a publicao deste trabalho. Em primeiro lugar, gostariade agradecer ao Diretor Tcnico da FEE, Sr. lvaro Louzada Garcia, que defendeue obteve o apoio institucional para sua publicao na srie Teses, a despeito dea mesma haver sido desenvolvida antes de meu ingresso na Fundao. Emsegundo lugar, gostaria de agradecer toda a equipe da Editoria da FEE e, emparticular, equipe de revisores Rose, Breno, Rosa, Sidonia e Susana ,cujas ateno e competncia me fazem ter orgulho do servio pblico. Finalmente,gostaria de agradecer a trs adolescentes que traduziram para o portugustodas as citaes em ingls da verso original deste trabalho: os meus filhos.Que me perdoem aqueles que, corretamente, tomam o orgulho por um pecado.Em minha defesa, s tenho um argumento: os trs do-me motivo para terorgulho. E eu s posso agradecer-lhes por isso. Muitssimo obrigado aos trs.

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    SUMRIO19

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    INTRODUO ...............................................................................1 OS DOIS RICARDOS ................................................................1.1 Introduo ..............................................................................1.2 A teoria ricardiana pura da distribuio e dos preos (ou o Ricardo de Schumpeter e Sraffa) ...........................................................1.2.1 A verso simplificada da teoria ricardiana dos preos e da distribuio .............,..............................................................1.2.2 Um primeiro passo em direo ao complexo: para a crtica da identidade valor-preo .............................................................1.3 A interface produo/distribuio em Ricardo (ou o Ricardo de Marx e Marshall) ......................................................................2 MARX E O RICARDIANISMO DE ESQUERDA ..............................2.1 Introduo ..............................................................................2.2 Para a crtica do projeto transformacionista ...............................2.3 "Desricardianizando" Marx ......................................................3 A LEITURA SINCRNICO-SCHUMPETERIANA DA TEORIA MARXIANA DO VALOR E DA DISTRIBUIO ..............................3.1 Trabalho e valor ......................................................................3.2 Valor e forma do valor (ou valor de troca) em Marx .....................3.3 A teoria marxiana da distribuio ..............................................3.3.1 Assalariamento e lucro normal em Marx ..............................3.3.2 Concorrncia e progresso tcnico em Marx ............................3.3.3 Generalizando a interpretao schumpeteriana do lucro em Marx como um fenmeno de desequilbrio .............................3.3.4 Concluso: o assalariamento como condio suficiente do lu- cro ........................................................................................4 O PROCESSO DE ABSTRAO DO TRABALHO E A HISTORICI- DADE DO VALOR E DA EXPLORAO ......................................4.1 Introduo ..............................................................................4.2 Trabalho, ontologia e histria em Marx .....................................

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    4.3 Trabalho, intercmbio e valor ....................................................4.3.1 Marx e a posio lgico-histrica do intercmbio especificamen- te mercantil .............................................................................4.3.2 Abstrao do trabalho e desenvolvimento histrico da socieda- de mercantil simples ................................................................4.4 O devir das categorias capitalistas de apropriao ......................4.4.1 Valor, preo e concorrncia ....................................................4.4.2 Explorao, lucro e leis de tendncia do capital .......................5 A REVOLUO MARGINALISTA E A TEORIA NEOCLSSICA DA DISTRIBUIO ......................................................................5.1 Introduo ...............................................................................5.2 Os fundamentos lgico-histricos da escola neoclssica .............5.2.1 A influncia de Say e a subordinao da teoria da distribuio teoria dos preos ...............................................................5.2.2 A influncia de Ricardo e a teoria da produtividade marginal dos fatores de produo ..................................................................5.2.3 A antiinfluncia de Marx ..........................................................5.3 Para a (auto)crtica da teoria neoclssica da distribuio .............5.3.1 John Hicks e a funo oferta de trabalho malcomportada ..........5.3.2 Schumpeter e a crtica da teoria neoclssica do juro e do capital5.3.3 Frank Knight e a desequilibrada teoria do lucro da teoria econ- mica equilibrista .......................................................................6 A TEORIA PS-MARGINALISTA DOS PREOS E DA DISTRI- BUIO ......................................................................................6.1 Introduo ................................................................................6.2 Ps-marginalismo: da crtica da teoria do valor ao empirismo auto- crtico ......................................................................................6.3 A teoria kaleckiana dos preos: para a sntese crtica de Oxford e Cambridge .................................................................................6.3.1 Kalecki e a tradio oxfordiana ...............................................6.3.2 Kalecki sob a influncia de Cambridge .....................................6.3.3 Kalecki e a curva de oferta de uma indstria sob concorrncia imperfeita (ou o modelo de 1939/40) ......................................6.3.4 A funo colusiva da diferenciao (ou o modelo de 1954) .......6.4 A(s) teoria(s) ps-marginalista(s) da distribuio.......................6.4.1 Unidade na diversidade: a teoria da distribuio de Schumpeter a Kaldor .................................................................................6.4.2 A teoria kaleckiana da distribuio .........................................

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    6.5 Negao do trabalho assalariado, acelerao do progresso tc- nico e financeirizao da riqueza: a teoria kaleckiana da distribui- o resiste ao teste da atualidade? ..........................................6.5.1 Os limites da recuperao da teoria distributiva schumpeteriana6.5.2 As teorias schumpeteriana, keynesiana e kaleckiana do juro e do financiamento produtivo ....................................................CONCLUSO ...............................................................................

    REFERNCIAS ...............................................................................

    APNDICE .................................................................................

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    INTRODUO

    Este trabalho , simultaneamente, um trabalho sobre a Histria doPensamento Econmico, sobre teoria da distribuio e sobre Marx. A intersecodesses trs objetos define o que poderia ser caracterizado como o ncleo domesmo: a demonstrao da importncia e da atualidade de Marx no interior daEconomia atravs do resgate de suas contribuies teoria da distribuio, queso to revolucionrias quanto, usualmente, malcompreendidas e subvalorizadas.

    Porm, se esse o ncleo de nosso trabalho, ele est muito longe deesgot-lo. Enquanto um trabalho especfico de Histria do PensamentoEconmico, procuramos defender aqui uma tese que no nova, mas, de toinusual, chega a ter sabor de novidade. Trata-se da tese de Schumpeter de quea cincia econmica , em sua pluralidade mesma, uma cincia de cursonormal (se nos permitido o uso de uma terminologia extempornea queleautor). Uma tese que buscamos defender no interior do campo aparentementemenos apropriado: o campo do debate secular em torno do valor, dos preos eda distribuio.

    , em grande parte, da perenidade do debate em torno da trade valor--preo-distribuio que se alimenta o ceticismo de parcela expressiva doseconomistas a respeito da possibilidade de caracterizar a Economia como umacincia no sentido rigoroso do termo. Usualmente, o economista que admite talcaracterizao sem titubear aquele cuja filiao dogmtica a uma nica corrente(em geral, ao mainstream) lhe permite relegar as alternativas tericas e discursivasao limbo das construes superadas ou meramente ideolgicas.

    Por oposio a esse intrprete, levantam-se vozes (usualmenteheterodoxas) para saudar o carter pluriparadigmtico dessa cincia. S queesse saudar, via de regra, se associa ao argumento de que seria impossvelsuperar a pluralidade paradigmtica, na medida em que esta traduziria refernciasutpico-ideolgicas impermeveis crtica cientfica. Vale dizer: contra os quesadam a cientificidade de uma nica escola da Economia, desterrando aproduo concorrente para o campo da ideologia, levantam-se os querecuperam toda a produo, sob o argumento nada estimulante de que,no apenas uma parcela, mas toda a Teoria Econmica ideolgica!

    Nada mais estranho leitura de Schumpeter do que essa unidadecontraditria dos ideologizadores da Economia. Na perspectiva desse autor,tanto o dogmatismo excludente abraado pela parcela mais medocre e ignorantedos afiliados ao mainstream quanto a emasculada "defesa" da universalidade

  • 20ideolgica da Economia que caracteriza uma certa heterodoxia so ndicesdistintos de um mesmo mal: a subestimao do denso e complexo processoterico que alimentou os diversos momentos de emergncia e crise (e resgatecrtico) dos distintos modelos, escolas e perspectivas analticas na Economia. dessa subestimao que se alimenta a incapacidade tanto para tomar adiversidade como signo de riqueza, quanto para desvelar a unidade que subjazquela.

    Na esteira de Schumpeter, procuramos demonstrar, neste trabalho, queh mais classicismo no pensamento moderno e mais modernidade nopensamento clssico do que a aparncia revela. Mais do que isso: procuramosdemonstrar que, para alm de unidade, h tambm desenvolvimento na cinciaeconmica. E isso, na medida em que se desenvolve no apenas o instrumentalterico-analtico da cincia, mas a conscincia dos economistas da complexidadee do carter sistmico do seu objeto.

    S que o nosso reconhecimento da unidade e do desenvolvimento dacincia se articula ao reconhecimento do carter contraditrio de ambos. Umacontraditoriedade que se manifesta, de um lado, numa pluralidade de temticase mtodos que (sem serem irreconciliveis) so efetivamente alternativos, e,de outro, em recorrentes (e, muitas vezes, cansativas) redescobertas deconstrues tericas que tiveram seu desenvolvimento podado em determinadomomento da histria da Economia, sem a extirpao da raiz pulsante e viva.

    Como j apontamos, resgatar o debate sobre a trade valor-preo--distribuio resgatar o ncleo temtico da cincia econmica, onde os limitese as possibilidades de desenvolvimento de um curso normal nela se deveriammanifestar da forma mais evidente. Afinal, h aqui no um debate, mas umconjunto deles. Demonstrar a unidade por trs dessa diversidade a rduatarefa a que nos propomos.

    Caber ao leitor avaliar o nosso sucesso ou insucesso nessa empreitada.A ns, cabe, aqui, apenas anunciar (ainda sem demonstrao) o resultadoalcanado: identificamos uma unidade to marcante no tratamento dispensadopelas distintas escolas questo distributiva que ousamos pretender estar muitoprximos da construo de uma teoria (no necessariamente exaustiva)articulada e consensual sobre o tema. Afinal, com exceo da categoria juro que os clssicos no teorizam, os neoclssicos derivam da escassez do fatordo capital/abstinncia, e Marx, Schumpeter e Keynes (a partir de modelosdistintos e parcialmente divergentes) derivam das particularidades do mercadofinanceiro/monetrio , os fundamentos mais gerais das trs categoriasbsicas de rendimento salrio, renda/aluguel e lucro so praticamenteconsensuais na literatura econmica. Assim que a categoria renda virtualmentedeixou de ser objeto no s de polmica, mas de pesquisa terico-cientfica

  • 21desde o incio do sculo XX. De outro lado, independentemente de se consideraro salrio uma compensao pela desutilidade do trabalho ou um custo associado recomposio da fora de trabalho, a relao funcional dessa categoria com odispndio efetivo de trabalho to consensual que se torna uma platitude.Finalmente, de Ricardo a Walras, de Marx a Marshall, de Schumpeter a Kalecki,no h autor que ouse negar a dimenso rigorosamente excedente (enquantobenefcio apropriado sem equivalente e signo de desequilbrio) do lucro.

    bem verdade que essa unidade menos notvel no que diz respeitoaos determinantes da participao relativa das distintas categorias de rendimentona renda global. Mas, mesmo aqui, manifestam-se elementos de unidadeabsolutamente surpreendentes. Assim que, no h, entre os autoressupracitados (cuja representatividade das escolas fundamentais de pensamentoeconmico supomos estar fora de dvida), quem negue a tenso (que no podeser confundida com oposio simples) entre salrio real e emprego. Na verda-de e tal como procuramos demonstrar ao longo dos seis captulos destetrabalho , a contradio (simples ou dialtica) entre salrio real e emprego admitida por todas as correntes do pensamento econmico.

    Mas, se o exposto acima corresponde verdade, haveria que se perguntarpor que a alegada unidade no usualmente admitida. E, no nosso ponto devista, o que obstaculiza a tomada de conscincia dessa unidade a enormecomplexidade da questo distributiva; complexidade esta que tende a se resolverna absolutizao, por distintos intrpretes e escolas, de dimenses verdadeiras,mas parciais do objeto terico trabalhado.

    Tomemos, por exemplo, a supra-referida contradio entre salrio real eemprego. Ela, de fato, admitida por todas as correntes tericas, mas com operdo da contradio nem todas as correntes a admitem conscientemente.Em particular, poucas escolas admitem-na enquanto uma contradio dialtica.Pelo contrrio: premidos pelo temor contradio, ocultam a dimenso dialticada mesma atrs de falsas absolutizaes. o que ocorre, de um lado, com umcerto ricardianismo, que absolutiza a dimenso no contraditria da relaosalrio/emprego, a despeito de Ricardo haver sido o primeiro grande autor ateoriz-la no captulo Sobre a Maquinaria de Princpios de Economia Polticae Tributao. E tambm o que ocorre, de outro lado, com um certoneoclassicismo que absolutiza a oposio no interior daquela relao, ignorandotodo um amplo conjunto de situaes analisadas exausto por autores daestatura de Schumpeter, Hicks, Stigler, Kalecki, Buchanan, dentre outros emque a mesma no se impe.

    Ora, esse jogo de abstrao do complexo e absolutizao do parcial eminentemente ideolgico. Contudo defendemos o ponto de vista de que essa

  • 22dimenso ideolgica no alcana abafar a dimenso rigorosamente cientficadas distintas construes. E isso, na medida em que esse jogo de abstrao dacomplexidade que aproxima (no exemplo citado acima e a despeito dasconcluses opostas) ricardianos e neoclssicos analiticamente inatacvel.Na verdade, as concluses antagnicas das distintas escolas no so obtidas(pelo menos no usualmente) a partir de viciosas manipulaes lgicas, masda introduo de convenientes clusulas simplificadoras (via de regra, do tipocoeteris paribus). Aceitas essas clusulas, as concluses que lhes sopertinentes se impem com o rigor da lgica, um resultado que pode parecerinsuficiente para um cientista de inflexo realista, mas que um passo damaior importncia na construo de uma cincia. Na verdade, para no poucostericos que limitam a prtica cientfica construo de modelos logicamenteconsistentes , esse todo o passo que se pode almejar.

    Ns mesmos ousamos pedir mais da cincia. No porque neguemos quea consistncia lgica seja uma exigncia essencial da prtica cientfica. Naverdade, admitimos que j h cincia onde essa exigncia cumprida. E esse um dos motivos pelos quais contra seus ideologizadores defendemos acientificidade da Economia. S que, simultaneamente, entendemos que a plenaconstituio de um saber cientfico envolve mais do que consistncia lgica;envolve consistncia terico-emprica. E isso, na medida em que, para ns, overdadeiro objeto da cincia o concreto, ou melhor, seu verdadeiro objeto eproduto, porquanto o concreto no mais do que a sntese terico-operativadas mltiplas e contraditrias determinaes do real.

    Mas, tambm por isso, a Economia j cientfica. Porque ela j alcanouum patamar de desenvolvimento especulativo que permite a superao objetivada dogmtica logicista avessa a qualquer contradio. A produo terica deMarx onde a recusa ao logicismo dogmtico se resolve num projeto detotalizao/dinamizao das determinaes simultneas e contraditrias doreal a expresso maior desse desenvolvimento, o qual tambm se dizpresente no empirismo de inflexo pragmatista e estruturalista de autores que(como Schumpeter, Keynes e Kalecki) do a tnica da Economia propriamentemoderna, marcada pela apropriao sem preconceitos dos acmulos do passadoe pela operao (algo ecltica) com categorias e instrumentais tericosdesenvolvidos no interior das escolas clssicas, marxistas e neoclssicas.

    bem verdade que, diferena de Marx, os modernos no tomam atotalizao dialtica de determinaes contraditrias como um fim em si, comoa condio para a (re)construo do concreto. Isso significa que, quando a mesmase impe, ainda o faz inconscientemente (ou, pelo menos, subconscientemente,como em Schumpeter). Essa , no nosso ponto de vista, uma limitao que se

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    reflete na incapacidade de os modernos desenvolverem uma teoria econmicada transformao sistmica, capaz de dar conta, inclusive, das transformaesdo processo distributivo.

    S que tambm acreditamos que a superao dessa limitao dosmodernos no apenas possvel, mas j se inicia. E o caminho para tantoenvolve o resgate da ousadia dos tericos novecentistas, que, a despeito dasdiferenas de referncia terico-metodolgica no fugiam da tarefa de produzirsistemas tericos voltados ao resgate da lgica imanente/tendencial do sistemareal. Em particular (mas no exclusivamente), passa pelo resgate de Marx. Eisso no apenas porque o seu mtodo onde a sntese dialtico-totalizante buscada conscientemente seja superior a todos os demais. Se o mtodomarxiano solicita resgate porque sua produtividade manifesta na riqueza ena atualidade particular da teoria da distribuio desse autor objetiva eainda no foi totalmente explorada. Demonstrar esta ltima assertiva o tercei-ro e talvez o mais rduo objetivo deste trabalho. Que os deuses da cincianos iluminem.

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    1 OS DOIS RICARDOS

    David Ricardo. Carta a McCulloch.

    1.1 IntroduoMui justamente, Ricardo divide com Smith o ttulo de "pai da Economia

    Poltica". bem verdade que o segundo, alm da prioridade temporal, trabalhaem um campo terico mais amplo que o primeiro, demonstrando, inmeras ve-zes, uma audcia e uma fecundidade intelectuais que Ricardo no alcanadisputar. Contudo, e at mesmo em funo de sua anterioridade e amplitudeterica, a obra de Smith muito menos sistemtica que a de Ricardo. E osreflexos dessa assistematicidade no se resumem s (tantas vezes aponta-das) contradies tericas do autor. Muito mais importante que tais contradi-es1 o fato de que o tratamento impressionista que Smith dispensa a suasidias mais originais cerceia a transformao das mesmas em categorias emodelos aptos a funcionarem como plos atratores de uma reflexo coletiva,condio sine qua non para a constituio de uma (sintomaticamente inexistente)escola smithiana de pensamento econmico.

    Diferentemente, os desenvolvimentos tericos de Ricardo so objeto deum tratamento to rigoroso que se poderia dizer que eles virtualmente solicitamformalizao. S que, simultaneamente, o rigor ricardiano no se impe de for-ma abstrata ou dogmtica; ele no trabalhado como um instrumento de simpli-ficao forada da complexidade imanente ao seu objeto terico. Antes, pelocontrrio, Ricardo faz questo de explicitar as contradies tericas comas quais se depara, medida que, justamente, busca enfrentar de forma rigo-

    1 Que, indubitavelmente presentes, no traduzem qualquer fragilidade lgica de Smith, mas oprofundo desequilbrio entre sua fecundidade terica e a debilidade do instrumental analticoe categorial de que dispunha.

    "Apesar de tudo, as importantesquestes da renda, dos salrios e doslucros devem ser explicadas pelas pro-pores nas quais a totalidade da produ-o dividida entre proprietrios de ter-ra, capitalistas e trabalhadores, que noesto" de maneira essencial vinculadas doutrina do valor."

  • 26rosa a questo da dinmica das categorias de rendimento em uma economiacapitalista fechada que se reproduz de forma ampliada.

    Essa sntese mpar de rigor e rica contraditoriedade vai transformar a obrade Ricardo no plo atrator da reflexo terica em Economia que a obra de Smithno alcanou ser. E a expresso mais clara desse fato que, em torno deRicardo, se consolidou a primeira grande escola de Economia, cuja hegemoniaser inconteste durante quase meio sculo aps sua morte.2 Como se isso nobastasse, as distintas tentativas ricardianas de dar soluo contradio valor--preo e questo da demonstrao da oposio lucro/salrios estaro noepicentro de todo o desenvolvimento da cincia econmica ps-clssica. Valedizer: no nosso ponto de vista, se o pensamento econmico moderno hegemonizado por correntes (de alguma forma) crticas ao ricardianismo, a pr-pria emergncia dessas correntes s plenamente compreensvel quando setm em considerao tanto as questes abertas quanto as contribuies posi-tivas postas na obra de Ricardo.3

    bem verdade que, aps o aparecimento da obra maior de Sraffa (ou,talvez, desde a publicao da clebre Introduo do mesmo autor de Princ-pios de Ricardo4), uma interpretao to inclusiva e deferente da obra ricardianacaiu em desuso. como se o resgate de Ricardo feito por Sraffa ao formali-zar e encapsular a construo terica daquele primeiro em uma modelagemparticularmente rgida tenha servido para "jogar gua no moinho deSchumpeter", que j ousou pretender contra Marx e Marshall que a "[...]obra [de Ricardo] constitui, de fato, um desvio e fica fora da linha histrica dosesforos dos economistas" (Schumpeter, op. cit., livro 3, p. 232).

    2 Um tal desenvolvimento no pode ser subestimado em uma cincia como a Economia,marcada pela controvrsia e pela ausncia de unidade paradigmtica. Na verdade, pode-sepretender que o nico perodo tipicamente "normal" (em termos kuhnianos) da cinciaeconmica foi o "ricardiano". Diga-se de passagem, s o fato de ser o articulador dessa"normalidade" (em certo sentido precoce e at certo ponto fugaz) j garantiria a Ricardo odireito de dividir com Smith os crditos de "pai da Economia".

    3 No nosso ponto de vista, mesmo uma corrente to aparentemente anti-ricardiana como okeynesianismo , em nvel metodolgico, amplamente devedora da tradio terica abertapor Ricardo. Essa tese no nova. Repetidamente esgrimida por Schumpeter (com objeti-vos crticos aos dois autores assim vinculados), ela encontra em Pasinetti uma formulaorigorosa. Ver, a esse respeito, Schumpeter (1964, livro 3, p. 175; livro 5, p. 494) e Pasinetti,em A Economia da Demanda Efetiva (1979a), especialmente a sexta seo desse texto,intitulada Caractersticas Ricardianas da Anlise de Keynes. Voltaremos a esse ponto nosexto captulo deste trabalho.

    4 Ver Sraffa (1982, p. 3 e segs.)

  • 27Ora, que a leitura sraffiana de Ricardo que transforma esse autor num

    precursor da moderna crtica teoria neoclssica do capital (quando no daprpria teoria do valor-trabalho!) seja capaz de fazer o legtimo fundador da"ortodoxia econmica" parecer o mais heterodoxo dos economistas do sculoXIX no pode ser motivo de estranhamento. uma interpretao possvel ecompreensvel, quando tem origem em um autor cujas contribuies tericasvo justamente no sentido de desenvolver aquela crtica. O que deve ser ques-tionado a ampla absoro dessa leitura entre os intrpretes contemporneosda histria do pensamento econmico.

    Para que se entenda esse ponto, contudo, preciso que se note que,antes de Sraffa, j Schumpeter fazia uma interpretao de Ricardo que no otornava apenas heterodoxo, mas um legtimo pr-sraffiano. E, como a anliseque Schumpeter faz de Ricardo absolutamente crtica a esse autor e anterior famosa Introduo de Sraffa a Princpios, razovel pretender-se que es-ses dois intrpretes no tenham sido influenciados um pelo outro, o que faz daconvergncia de perspectivas analticas (que contrasta com a firme oposiona avaliao dos mritos tericos de Ricardo) desses intrpretes particular-mente argutos um forte indicador da consistncia da leitura "neo-ricardiana deRicardo". Na verdade, afirma-se mesmo (e defender-se- adiante) que essa aleitura mais imediata, mais simples, que brota de forma mais natural na obradesse autor.

    S que tambm preciso que se entenda que, se a leitura sraffiana (eschumpeteriana) de Ricardo no falsa, tampouco o a leitura de Marx eMarshall, dois autores de capacidade e produtividade intelectuais inquestionveis,que insistem em tomar os Princpios daquele primeiro como referncia tericaprivilegiada de suas prprias (e to distintas) obras, o que, desde logo, leva apensar que no deve haver um nico Ricardo; mas, pelo menos, dois, e,qui, mltiplos.

    interessante observar que essa hiptese consistente com os desdo-bramentos lgicos de nosso diagnstico anterior do carter tenso da relaoentre rigor e contradio no interior da obra ricardiana. Como apontado acima,Ricardo no trabalha no sentido do escamoteamento das contradies queemergem em sua obra, tampouco as interpreta como um sinal de riqueza teri-ca, mas, sim, como fruto de insuficincias analticas que exigem enfrentamento.E o prprio Ricardo define uma estratgia de enfrentamento dessas contradi-es que to insuficiente quanto capaz de gerar confuso e que s se justificapela imaturidade da cincia econmica do perodo e pelas debilidades instru-mentais e terico-modelsticas dele prprio: aps apresentar a complexidade doobjeto, reiterando o equvoco do escamoteamento da mesma, o autor "pedelicena" para (re)introduzir um conjunto de hipteses simplificadoras, que lhe

  • 28parecem essenciais para a determinao de um sistema terico dinmico ca-paz de gerar resultados unvocos ao longo de uma trajetria "bem-comportada".

    Assim, a depender dos interesses tericos que orientam a leitura da obrade Ricardo, possvel centrar-se a ateno, seja no resgate da "complexidade"do real feita por esse autor, seja nas "simplificaes foradas" que o mesmoimpe realidade com vistas a obter resultados unvocos. Marx opera na pri-meira perspectiva; Schumpeter, na segunda. E baseado nessa perspectivaque o ltimo autor diz:

    A viso integrada da interdependncia universal de todos os elementosdo sistema econmico, que aparecia constantemente a Thnen, nuncatirou a Ricardo mais do que uma hora de sono. Seu interesseconcentrava-se no resultado claro, de significado direto e prtico.A fim de conseguir isso, ele cortava em pedaos o sistema geral, juntava,tanto quanto possvel, largas partes deste e punha-as no congelador de forma que o mximo de coisas possvel pudesse ser congelado econsiderado "dado". Empilhava, ento, as hipteses simplificativas, umassobre as outras, at que, tendo de fato estabelecido tudo atravs dessashipteses, ficava apenas com umas poucas variveis agregativas, entreas quais, dadas aquelas hipteses, estabelecia relaes unidirecionais,de forma que, no fim, os resultados desejados surgissem comotautologias. Por exemplo: uma famosa teoria ricardiana a de que oslucros "dependem do" preo do trigo. E sob suas hipteses implcitase no sentido particular no qual os termos da proposio devem serentendidos, isto no s verdade, mas tambm uma verdadeincontestvel e mesmo trivial. Os lucros nunca poderiam dependerde outra coisa, uma vez que tudo o mais era "dado", isto ,congelado. uma teoria excelente que no pode ser refutada, enada lhe falta, exceto sentido. Ao hbito de aplicar resultadosdesta espcie soluo do problema prtico chamaremos "vcioricardiano" (Schumpeter, op. cit., livro 3, p. 124, grifos nossos).

    H quem possa se incomodar com o tom jocoso e desrespeitoso com queSchumpeter trata a obra de Ricardo. Mas no h como negar consistncia suacrtica, cuja essncia dada pela recusa imposio de clusulas coeterisparibus teoricamente indefensveis para obter resultados determinados.

    E, nesse sentido, importante observar que a crtica de Marx a Ricardo cuja essncia tambm de carter metodolgico tem uma interface signifi-cativa com a crtica de Schumpeter. bem verdade que, menos do que o usoda clusula coeteris paribus, Marx centrou suas crticas no abuso da clusulaas if 5. Assim que Marx, repetidas vezes, atacou as snteses apressadasricardianas, suas tentativas vs de "varrer para baixo do tapete" a complexida-

    5 Tal como a clusula coeteris paribus (ou, talvez, at mais do que esta), o uso da clusula asif como instrumento analtico caracteriza o padro neoclssico de modelagem. O uso dessaclusula funda-se na presuno racionalista de que possvel se extrarem projees

  • 29de real, de abafar as contradies imanentes aos fenmenos concretos, bus-cando "[...] de imediato provar a congruncia entre as categorias econmicas"(Marx, 1980, p. 597). dentro desse quadro mais geral que se situam (e podemser compreendidas) as crticas particulares de Marx s equivocadas tentativasricardianas de subsumir os preos aos valores, os preos de mercado aospreos naturais, a renda em geral renda diferencial, a mais-valia ao lucro, etc.E, para Marx, quando esse conjunto de equvocos enfrentado, o que ficatransparente a inconsistncia da teoria ricardiana da distribuio e de seudesdobramento fundamental, a lei da queda da taxa de lucro6.

    S que, para Marx diferena de Schumpeter , a obra de Ricardo nopode ser avaliada com base to-somente em sua viciosa tendncia de subsumiro concreto no abstrato, e isso na medida em que as tentativas ricardianas deescamotear o complexo a partir de "abracadabras" analticos no revelam ocontedo profundo da obra desse autor. Nesta, o movimento que conduz sim-plificao da realidade sempre (re)negado pela (re)afirmao de sua complexi-dade essencial.

    O problema que Ricardo realiza esse segundo movimento quase a con-tragosto e de forma apenas parcialmente consciente: como um movimento quese impe ao prprio autor, que est em si na obra ricardiana, mas que no genuinamente para si. Na verdade, Marx ousa pretender e aqui est oncleo legtimo de sua diferena interpretativa com Schumpeter queRicardo no tem plena conscincia sequer do efetivo contedo de seuobjeto de pesquisa.

    Ricardo, a quem interessava conceber a produo moderna na suaarticulao social determinada e que o economista da produo porexcelncia, afirma mesmo assim que no a produo, mas, sim, adistribuio que constitui o tema propriamente dito da Economia moderna.Aqui ressurge novamente o absurdo dos economistas que consideram

    econmicas (e recomendaes de poltica econmica) de modelos tericos assentados naabstrao de aspectos particulares de uma dada realidade econmica, uma vez que estesltimos a despeito de detectveis empiricamente no so "universais", mas contin-gentes e no essenciais. Como a direo e o sentido do movimento econmico so defini-dos pelas determinaes universais-essenciais, a modelagem cientfica aquela que pre-serva essas determinaes, ao mesmo tempo em que pretende que a economia se reproduzacomo se se encontrasse nas condies competitivas, institucionais, tecnolgicas, etc. maissimples. Para a defesa desse ponto de vista, ver Friedman (1953). Voltar-se- a discutir omesmo no Captulo 5 desta tese.

    6 Ver, a esse respeito, o Captulo XVI de Teorias da Mais-Valia, em particular, o primeiro itemda terceira seo desse captulo, intitulado Pressupostos Falsos da ConcepoRicardiana da Taxa Decrescente de Lucro (Marx, op. cit., p. 868 e segs).

  • 30a produo como uma verdade eterna, enquanto proscrevem a Histriaao domnio da distribuio. (Marx, 1978, p. 113).7

    Vale a pena observar que essa crtica marxiana da inconscincia do objeto, na verdade, apenas a outra face da crtica da inconscincia (e inconsistn-cia) do mtodo em Ricardo. E isso desde logo, porque, ao postular que "[...]determinar as leis que regulam [...] [a] distribuio a principal questo daEconomia Poltica" (Ricardo, 1982, p. 39), Ricardo sente-se obrigado a propor-cionar um tratamento analtico do tema, com vistas articulao de um modelodistributivo. E o que se quer desse modelo no pouco: ele tem de ser capaz degerar previses bem determinadas da evoluo relativa das categorias de rendi-mento em uma economia expansiva, o que s possvel como regra geral a partir da imposio de algum tipo de simplificao e de clusulas coeterisparibus. E aqui que o problema se coloca: tendo em vista o estreito e limitadoarcabouo terico-analtico e metodolgico ricardiano, a regra geral supracitadase impor a partir do congelamento relativo da produo (via Lei de Say epressuposio de estabilidade do padro tcnico-produtivo) associado su-presso terica dos elos entre os processos produtivo e distributivo. E o resul-tado de todo este movimento no poderia ser outro: o (autodeclarado) centroobjetal de Ricardo aquele onde seus desvios metodolgicos se manifes-tam de forma mais cabal.

    Por isso mesmo e contraditoriamente , na (pretensa) periferiade sua obra vale dizer, na teoria da produo, que vai da teoria do valorstricto sensu teoria do progresso tcnico que Ricardo reconhece etrabalha teoricamente a complexa inter-relao entre as diversas dimen-ses do processo de reproduo econmica. a que se abre mo das"hipteses hericas", e a interao dinmica entre produo, distribuio

    7 No se pode subestimar a importncia dessa crtica marxiana inconscincia de Ricardo doverdadeiro sentido terico de sua obra. E isso na medida em que ela no lana luz apenassobre a obra de Ricardo, mas sobre a do prprio Marx. Como se ver no prximo captulodeste trabalho, ela a chave para que se entenda o carter essencialmente equivocadodos que (consciente ou inconscientemente) identificam em Marx um discpulo de Ricardoque herda no s suas questes tericas (como a relao valor/preo), mas seu mtodo deenfrentamento daquelas. Nesse sentido, os verdadeiros herdeiros de Ricardo so aquelesautores que, como Stuart Mill, sustentam a ciso ricardiana entre produo/tcnica/neces-sidade e distribuio/arbtrio/liberdade mesmo aps a demonstrao cabal da inconsistn-cia da teoria dos preos relativos que deita razes naquela ciso. apenas em Mill (e, qui,entre os neo-ricardianos modernos) que se podem encontrar declaraes do tipo: "Diver-samente do que ocorre com as leis da produo, as que regem a distribuio da mesma so[...] de instituio humana, j que a maneira de se distribuir a riqueza em qualquer sociedadeespecfica depende das leis ou usos nela vigentes" (Mill, 1983, p. 39). Para Marx, uma talciso a legtima fonte de todos os equvocos especificamente ricardianos.

  • 31e intercmbio impe-se. E o resultado deste interagir , nada mais, nada me-nos, do que pr por terra a concluso de que, "em ltima instncia", o lucro funo do preo do trigo. Este o Ricardo rico; e este o Ricardo de Marx.

    Mas se h (pelo menos) dois Ricardos, preciso dar a ambos o tratamen-to que merecem no interior do Histria do Pensamento Econmico. E no sedevem temer as contradies que possam emergir desse tratamento (algo"esquizofrnico") da obra de Ricardo. Afinal, tal contradio da ordem do real,e no da interpretao. Pois, de fato, h dois Ricardos; dois Ricardos que geramfrutos distintos, deixam marcas distintas e abrem caminho para distintosparadigmas econmicos. essa dualidade real que se procurar fazer emergirnas duas sees subseqentes.

    1.2 A teoria ricardiana pura da distri- buio e dos preos (ou "o Ricardo de Schumpeter e Sraffa")

    Como se viu, por oposio ao "Ricardo de Marx", o "Ricardo de Schumpetere Sraffa" o Ricardo oficial, o Ricardo que toma no apenas a distribuiocomo o objeto da cincia econmica, mas que busca determinar esse objeto apartir da supresso dos (complexos) elos entre distribuio e produo.

    As razes dessa dimenso (real, mas no absoluta) da obra de Ricardoencontram-se tanto no pragmatismo reformista desse autor, quanto em umacerta subordinao ao "fetiche da mercadoria" e pretenso (que lhe imanente)de que os preos sejam um atributo das coisas.

    Na realidade, toda a perspectiva terica de Ricardo essencialmente prag-mtica, e s dentro dessa perspectiva que se pode compreender tanto seuinteresse pelo tema distribuio, quanto o papel que a teoria dos preos ocupano interior de sua construo. Ou, para ser mais claro: a eleio da distribuiocomo tema central de suas reflexes diz respeito a uma leitura mais geral des-se objeto como sntese da dimenso especificamente social-histrica (e, por-tanto, passvel de transformao consciente) da Economia. Nesse sentido, apresena da distribuio como objeto que torna o mundo da Economia, o mun-do da Economia Poltica; a distribuio que justifica a emergncia de umdiscurso cientfico sobre a economia. Um discurso que se volta essencialmentepara o Estado, enquanto a nica instituio capaz de (a partir, prioritariamente,

  • 32da poltica fiscal) alterar e regular a dinmica de realizao das leis tendenciaisde desenvolvimento da distribuio da renda.8

    Da que os preos no so um objeto em si para Ricardo. So, antes, umaespcie de "antiobjeto", um objeto que s se impe para ser descartado; valedizer, que s se impe na medida em que se faz necessrio demonstrar deforma rigorosa a autonomia do processo distributivo vis--vis ao processo deproduo e, conseqentemente, ao processo de formao de preos.9 Afinal,diferentemente da distribuio que, desde logo, aparece como referida aosagentes econmicos , o processo de formao de preos no aparece comoum processo social e histrico, mas como um processo referido diretamente scoisas. Em particular, se se reduz o processo de troca ao intercmbio de bensreprodutveis sob condies tcnicas dadas, o processo de formao de pre-os parece se reduzir incorporao dos custos de (re)produo das distintasmercadorias. Ou seja, os preos aparecem intuitivamente como referidos nicae exclusivamente s condies de produo, que seriam tecnicamente deter-minadas e invariveis frente s eventuais variaes da estrutura distributiva.

    O problema que, ao longo de sua investigao sobre a questo dospreos, Ricardo apercebeu-se da profundidade e da complexidade dos elos queligam o processo distributivo queles primeiros. Mais especificamente, Ricardoapercebeu-se de que variaes na relao salrio/lucro devem afetar os preosrelativos de mercadorias produzidas com distintas distribuies temporais detrabalho e, conseqentemente, devem afetar a relao de intercmbio do con-junto das mercadorias com a unidade de conta do sistema e o valor da renda

    8 E isso na medida em que, mesmo sendo portadora de uma "histria" e estando prenhe dedeterminaes especificamente sociais, a distribuio em Ricardo no deixa de ter "leis"especificamente econmicas, que se faro sentir de forma to mais cega, quanto menos sefizer presente a interveno reguladora do Estado. Nesse sentido, a poltica econmica em particular, as polticas fiscal e tarifria, com seus efeitos redistributivos potencialmentebenficos aos lucros acaba sendo essencial na sustentao do crescimento econmico.No deixa de ser interessante observar que esse apelo (e apego) pr-terico ao Estado(que s percebido abstratamente, como uma "estrutura de regulao", sem que se ponhaem questo quem controla essa "estrutura") mais um ponto de aproximao entre Ricardoe Keynes. Infelizmente, porm, esse ponto que ajuda a explicar a existncia (aparente-mente paradoxal) de tantos keynesianos ricardianos no objeto de tratamento sistem-tico na literatura econmica. Nem mesmo Schumpeter d a esse vnculo a dimenso que lhecabe (ainda que no lhe escape tal conexo, como se pode ver em Schumpeter (op. cit., p.125; 175)).

    9 Tem-se de Sraffa: "O principal problema da Economia Poltica [para Ricardo] era a diviso doproduto nacional entre as classes, e durante essa investigao ele teve dificuldades com ofato de que o montante desse produto parecia se alterar quando a diviso se alterava. [...]Assim, o problema do valor que interessava a Ricardo era como encontrar uma medida devalor que permanecesse invarivel face a alteraes na diviso do produto" (Sraffa, op. cit.,p. 25).

  • 33nacional expressa naquela unidade. A adequada compreenso desse problemae da(s) soluo(es) ricardiana(s) para o mesmo envolve, primeiramente, o res-gate e a plena compreenso da verso simplificada do sistema distributivo e deformao de preos em Ricardo. Esse o objeto da subseo a seguir.

    1.2.1 A verso "simplificada" da teoria ricar- diana dos preos e da distribuio

    A associao entre preos e distribuio to antiga quanto a EconomiaPoltica. Todo o captulo sexto de A Riqueza das Naes (intitulado Fatoresque Compem o Preo das Mercadorias) volta-se para a demonstrao deque os preos se reduzem s diversas categorias de rendimento econmico.10

    Smith, porm, no deixava claro qual a qualidade da relao entre rendimentose valor de troca. Havendo uma relao funcional entre ambos, qual(is) seria(m)a(s) varivel(is) independente(s) e qual(is) a(s) dependente(s)? As alteraesnas taxas de salrio ou de lucro afetariam os "preos naturais"? Ou seriam asalteraes nestes ltimos que afetariam as categorias de rendimento?

    bem verdade que sua verso "trabalho incorporado" da teoria do valor(que sistematizada no captulo imediatamente anterior quele em que Smithapresenta a reduo dos preos aos rendimentos) fornece uma indicao dequal deveria ser a relao funcional entre essas duas categorias. Nesse captu-lo, Smith apresenta o trabalho como "o preo real de cada coisa"; um resultadoque claramente associado identificao do trabalho como o nico custosocial de produo.11 Mas essa indicao dbia, na medida em que Smithparece reduzir a pertinncia do trabalho incorporado como critrio do inter-

    10 Segundo Smith: "No preo do trigo [...] uma parte paga a renda devida ao dono da terra, umaoutra paga os salrios ou manuteno dos trabalhadores [...] e a terceira paga o lucro doresponsvel pela explorao da terra. Essas trs partes perfazem [...] o preo total do trigo.Poder-se-ia talvez pensar que necessria uma quarta parte, para substituir o capital doresponsvel direto pela explorao da terra, [...]. Todavia, deve-se considerar que o prpriopreo de qualquer equipamento ou instrumento agrcola [...] se compe tambm ele dosmesmos trs itens enumerados: a renda [...] , o trabalho [...] e os lucros [...]" (Smith, 1982,p. 79). Para Schumpeter, essa a mais valiosa e a mais original das contribuies de Smithpara a teoria do valor e dos preos. A respeito, ver Schumpeter (1964, livro III, p. 221). Aforma como essa reduo dos preos s categorias de rendimento influencia e determinaa teoria ricardiana dos preos e da distribuio ser objeto de tratamento sistemtico logoadiante.

    11 Segundo Smith: "O preo real de cada coisa ou seja, o que ela custa pessoa que desejaadquiri-la o trabalho e o incmodo que custa a sua aquisio. O valor real de cada coisa,para a pessoa que a adquiriu e deseja vend-la ou troc-la por qualquer outra coisa, o

  • 34cmbio quelas sociedades em que ainda no se realizou qualquer acumula-o de capital e onde a nica categoria de rendimento seria a remunerao dotrabalho.12

    Ora, a primeira interveno de Ricardo no debate sobre o valor pode serlida como a tentativa de demonstrar a pertinncia do trabalho como nicodeterminante do valor de troca mesmo no interior da sociedade capitalista. Eessa interveno envolve um movimento extremamente original (ainda que,como o prprio Ricardo percebeu mais adiante, formalmente equivocado) deintegrao da teoria smithiana dos preos enquanto somatrio das categoriasde rendimento e da teoria smithiana do valor-trabalho enquanto nico custosocial real de produo.

    O ponto de partida do sistema ricardiano o resgate da reduo smithianado processo de produo ao processo de trabalho. E isso na medida em queessa reduo capaz de gerar, num nico movimento, tanto uma particular-mente original medida de quantum da produo social quanto uma (embrion-ria) teoria do valor de troca enquanto "preo real". Mais especificamente, aidentificao do trabalho como nica contribuio humana e nico "custo real"do processo de produo gera dois instrumentos analticos imbricados: (a) per-mite mensurar/quantificar o conjunto dos distintos valores de uso a partir deuma nica unidade as horas de trabalho envolvidas em sua produo ,

    trabalho e o incmodo que a pessoa pode poupar a si mesma e pode impor a outros. O que comprado com dinheiro ou com bens adquirido pelo trabalho, tanto quanto aquilo queadquirimos com o nosso prprio trabalho. Aquele dinheiro ou aqueles bens na realidade nospoupam este trabalho. Eles contm o valor de uma certa quantidade de trabalho que permu-tamos por aquilo que, na ocasio, supomos conter o valor de uma quantidade igual. Otrabalho foi o primeiro preo, o dinheiro de compra original que foi pago por todas as coisas"(Smith, op. cit., p. 63). de se notar que Ricardo reproduz elogiosamente essa passagem deSmith na primeira seo do primeiro captulo de Princpios de Economia Poltica e Tribu-tao. Voltar-se- a esse ponto na terceira seo deste captulo, dedicado s interpreta-es marxiana e marshalliana de Ricardo, quando a questo do valor propriamente dita,nesse autor (enquanto uma questo distinta dos preos), ganha substncia.

    12 Segundo Ricardo: "[...] embora Smith reconhea plenamente o princpio de que as propor-es entre as quantidades de trabalho necessrio para adquirir objetos diferentes sejam anica circunstncia que pode proporcionar uma regra para a nossa troca de um por outro,ele limita, no entanto, a aplicao deste princpio 'quele primitivo e rude estado da socieda-de que antecede tanto a acumulao de capital como a apropriao da terra'; como se,quando tiverem de ser pagos lucros e renda da terra, estes tivessem alguma influnciasobre o valor relativo das mercadorias. Adam Smith, no entanto, no analisou em lugaralgum os efeitos da acumulao de capital e da apropriao da terra sobre o valor relativo. importante, todavia, determinar em que medida os efeitos reconhecidamente produzi-dos sobre o valor de troca das mercadorias pela quantidade comparativa de trabalhoempregada na sua produo so modificados ou alterados pela acumulao de capital epagamento da renda da terra" (Ricardo, op. cit., p. 49, nota 8).

  • 35possibilitando, assim, a agregao das distintas mercadorias sem qualquer con-siderao em torno das distintas formas fsicas (e medidas usuais de quantida-de) das mesmas13; e (b) d os fundamentos para uma teoria dos preos naturaisenquanto determinados pelos custos de produo reais das distintas mercado-rias. Dessa forma, a agregao/determinao do produto social pelo trabalhodespendido em sua produo e a agregao/determinao do produto socialpelo valor de troca do mesmo parecem ser um nico e mesmo movimentoterico.

    Demonstrar a consistncia terica dessa aparncia envolve, contudo,enfrentar a pretenso smithiana de que, no capitalismo, no vigeria mais a iden-tificao/determinao do valor de troca pelo princpio do trabalho contido, oque impe a Ricardo o resgate da equao smithiana em que os preos (ou, deforma mais geral, o valor monetrio total de um dado quantum de mercadoriasproduzidas) so reduzidos, por integrao vertical perfeita, ao somatrio dascategorias de rendimento pagos nos diversos perodos produtivos. Nesse mo-vimento que , no nosso ponto de vista, absolutamente nuclear e parti-cularmente original na construo de Ricardo , o autor busca, simulta-neamente, rederivar a teoria do valor-trabalho enquanto teoria dos preosrelativos e comprovar, em termos rigorosos, a oposio entre salrios elucros no sistema capitalista. Infelizmente, porm, as ambigidades expositivasde Ricardo so tantas que no podem deixar de confundir o leitor menos atento.Por isso mesmo, quer parecer que a formalizao desses desenvolvimentospode ser de alguma utilidade.14

    Seja V o valor total da produo de uma firma capitalista qualquer; L, olucro total; C, os custos totais (que, no modelo ricardiano mais simples, ondeno h capital fixo, idntico ao capital total); S, o dispndio salarial total; R, arenda total; Rd, a renda diferencial; s, a taxa de salrio; T, o trabalho total em-

    13 Vale dizer: se a produo de um metro de tecido exige seis minutos de trabalho, um estoquede 10 metros de tecido equivale a uma hora de trabalho em tecido; e duas horas de trabalhoem tecido so 20 metros de tecido. De outro lado, se a produo de 10kg de prego resultade 12 minutos de trabalho, uma hora de pregos so 50kg de pregos. E, finalmente, duashoras de trabalho so tanto 100kg de pregos quanto 20 metros de tecido, quanto, ainda,qualquer combinao desses dois produtos passveis de serem obtidos em duas horas deproduo.

    14 Tanto mais quando, surpreendentemente, sequer os maiores intrpretes da teoria pura dadistribuio de Ricardo, como Schumpeter e Sraffa, procuraram formalizar esse movimentode rederivao dos preos no capitalismo a partir do trabalho em Ricardo. Esse estranhosilncio tornou-se corriqueiro na literatura, impondo-se mesmo ao trabalho clssico dePasinetti de formalizao do sistema ricardiano (Pasinetti, 1979), onde a relao funcionalentre trabalho e preos em Ricardo tratada como uma suposio admitida quase pelo

  • 36

    peso da tradio, e no como um resultado (reconhecidamente problemtico e formalmenteequivocado) da tentativa ricardiana de integrar as teorias smithianas do valor-trabalho(enquanto custo real) e dos preos no capitalismo (enquanto somatrio das categorias derendimento).

    15 Esta equao (evidentemente, expressa de forma no algbrica) aparece claramente emRicardo apenas no sexto captulo de Princpios de Economia Poltica e Tributao,intitulado Sobre os Lucros. No segundo pargrafo desse captulo, l-se: "Nem o agricultorque cultiva a [...] terra que regula o preo, nem o fabricante de manufaturados sacrificamqualquer parcela do produto para pagar renda. O valor total de suas mercadorias dividido apenas em duas pores: os lucros do capital e os salrios dos trabalhado-res" (Ricardo, op. cit., p. 91, grifos nossos). Da mesma forma, a maior parte dos desenvol-vimentos formais que se seguem encontram sua expresso verbal mais clara neste, que o ltimo dos captulos de Princpios de Economia Poltica e Tributao dedicados espe-cificamente questo da interao entre valor, preos e distribuio. Acredita-se que essaseja uma das razes pelas quais, usualmente, os intrpretes de Ricardo no tomam a"equao de Smith" como um (outro) ponto de partida da teoria do valor de Ricardo, prefe-rindo trat-la como um axioma aceito pelo peso da tradio clssica.

    pregado; e I, a taxa mdia (de equilbrio) de lucro, nesse caso,V = L + C (1)Supondo-se integrao vertical perfeita, atingi-se a equao de Smith,

    onde o conjunto dos custos de insumos fsicos se traduz em rendimentos pes-soais, e o valor toma a forma de

    V = L + S + R (2)Se R = Rd, o valor da produo em geral (e agrcola em particular) pode

    ser calculado tomando por base a terra marginal, que no paga renda, onde

    V = L + S15 (3)Mas, se os custos e o capital empregado se reduzem massa de salrio

    (C = S), o valor V da produo torna-se uma funo simples e direta de T, poisS = s T (4)L = I C = I s T (5)V = (1 + I) s T (6)Nesse sistema, j fica claro que o valor da produo de cada firma

    funo direta de T, mas no fica claro se tambm uma funo unvoca de T.Para tanto preciso definir-se se I e s so variveis independentes (entre si)que afetam V, ou se T a nica varivel com tais caractersticas. A resoluodessa questo envolve recuperar o sentido da varivel V. Ela nada mais do

  • 37que o preo unitrio p multiplicado pela quantidade total Q de uma mercadoria xqualquer. De outro lado, a taxa de salrio s o preo pago ao trabalhador poruma hora de seu trabalho. E esse preo da hora de trabalho no precisa serexpresso em moeda. Se se tomar, por exemplo, a mercadoria da firma em ques-to como unidade de conta do sistema, o preo p de x fica sendo 1, e o salrios torna-se o quantum da mercadoria produzida na referida firma, que deveria serentregue ao trabalhador para que o mesmo trabalhasse uma hora. E o sistematorna-se:

    Q = (1 + I) s T (7)Mas isso introduz a questo da contabilizao do quantum de mercado-

    rias produzidas. O ideal seria se se pudessem contabilizar essas quantidadesde uma forma universal, pois isso permitiria a agregao de mercadorias dife-rentes. E a proposta de Ricardo resgatando a teoria smithiana do valorenquanto teoria da produo a de mensurar essas quantidades a partir daquantidade de trabalho gasta em sua produo. Assim sendo, a taxa de salrios que corresponde ao quantum de mercadoria que deve ser entregue por umahora de trabalho passa a ser definida em horas de trabalho por hora detrabalho, de forma que a taxa de salrio s toma a forma de um nmeroadimensional menor do que a unidade (supondo-se um lucro positivo), e a equa-o anterior se transforma em

    T = (1 + I) s T que gera (8)1 = (1 + I) s e (9)1/s = 1 + I (10)Vale dizer: quando se expressam as quantidades dos mais diversos

    produtos em termos de trabalho, a oposio entre salrio e lucro clara; eo resultado da elevao do salrio a queda do lucro, na proporo ne-cessria ao esgotamento de um produto que dado em termos de traba-lho.

    Mas o que vlido em nvel do valor-trabalho deve s-lo igualmente emnvel dos preos. E a estratgia de Ricardo para provar essa correspondncia a de criar uma unidade de conta chamada ouro, que produzida sempre com amesma quantidade de trabalho.16 Suponha-se, a ttulo de exemplo, que um gra-

    16 A esse respeito, ver a sexta seo (Sobre uma Medida Invarivel do Valor) do Captulo Ide Princpios de Economia Poltica e Tributao (Ricardo op. cit., p. 59 e segs.).

  • 38ma de ouro, ou 1go doravante a nossa unidade de conta seja produzidocom uma hora de trabalho ou 1ht. Como o preo de um grama de ouro neces-sariamente igual unidade, a equao produtiva e a equao de preos souma s; qual seja:

    1go = (1 + l) s 1ht (11)Agora s a taxa de salrio medida em unidade de conta por hora de traba-

    lho, vale dizer, go/ht. Como uma hora de trabalho gera to-somente um gramade ouro, s ter de ser menor que 1, ou a produo no geraria lucros,mas prejuzos. Imagine-se que s seja igual a 0,5 go/ht. Nesse caso, o lucropor hora de trabalho ser igual a 1 go (igual produo total de uma hora) menos0,5 go (salrio de uma hora), ou seja, 0,5 go. E a taxa de lucro ser (0,5 go/ht)//(0,5 go/ht) = 100%. Se, porventura, a taxa de salrio se elevar para 0,8 go/ht, ataxa de lucro ter de cair para 25%, dado que 1 hora de trabalho continua sus-tentando uma produo de to somente 1 grama de ouro. Assim (1 + I) s umaconstante dadas as hipteses, uma constante de valor unitrio cuja unida-de de medida a mesma de s, ou seja, go/ht. Donde

    (1 + I) s = 1 go/ht e (12)1 go = 1 go/ht . 1 ht (13)Mas o que vlido para a produo de ouro vlido para todo e qualquer

    setor. E isso j na medida em que o valor do produto de qualquer setor, se no medido diretamente em horas de trabalho, deve s-lo na unidade de conta dosistema: gramas de ouro. A questo que se coloca, ento, : qual a quantidadede produto de um setor qualquer que vale 1 go? E a resposta simples: emequilbrio supondo-se que a taxa de salrio (para o trabalho simples, tomadocomo padro) e a taxa de lucro sejam uniformes em todos os setores , oquantum de produto que equivale a 1 go aquele quantum que o produto de1 ht. Ou seja, se QX for a quantidade Q de uma mercadoria x qualquer, e pX foro preo unitrio da mesma, ento, QX . pX = 1 go se e somente se

    QX . pX = (1 + l) s 1 ht = 1 go (14)O que equivale a dizer que QX vale 1 go porque produzido em condies

    tcnicas equivalentes; ou seja, porque produzido com o mesmo dispndio dehoras de trabalho. Pretender a equivalncia de Qx com 1go sem a equivaln-cia de horas de trabalho (dada a modelagem acima) entraria em contradio

  • 39com a exigncia de igualdade das taxas de lucro ou de salrio; pois, se Qxfosse produzido, por exemplo, com duas horas de trabalho e fosse avaliado emapenas 1 go, dado que a taxa de salrio por ht de 0,5 go, ento, os custos deproduo nesse setor j seriam de 1 go, e no haveria lucro.

    Portanto, enquanto forem estveis as condies de produo dos diver-sos bens, as relaes de intercmbio entre os mesmos sero igualmente est-veis, independentemente de quaisquer variaes na distribuio da renda entresalrios e lucros, que apenas se compensaro reciprocamente. Por outro lado, medida que as condies de produo variarem como ocorre com a produ-o agrcola, ao se tornar impositivo o cultivo de terras menos frteis e maisdistantes dos centros consumidores , as relaes de intercmbio entre asmercadorias variaro, de tal forma a garantir um poder de compra maior para asmercadorias produzidas com um dispndio de trabalho maior.

    O equacionamento da questo dos preos, dessa forma, d a Ricardo achave para o enfrentamento da questo distributiva em nvel nacional. Afinal,se o valor da produo de toda e qualquer mercadoria funo exclusiva daquantidade de trabalho, o valor da produo nacional tambm o ser. Vale dizer:se se somar o valor da produo de todas as firmas produtoras de bens finais(ou seja, o valor da produo que restou a todas as firmas aps o procedimentoterico de integrao vertical), o que se obter uma equao do tipo:

    VY = Qi . p i = (1+ l) s Ti (15)onde, VY o valor da renda nacional; Qi a quantidade total produzida de cadabem final i em seu respectivo mercado; pi o preo unitrio do mesmo bem, e Ti a quantidade total de trabalho incorporado em nvel nacional. Na medidaem que o valor da renda nacional dado, a contradio entre lucros e salriosfica manifesta. E como a equao (15) um mero somatrio das diversas equa-es do tipo da (14) j agregadas em termos setoriais, o valor da constante(1 + I) s ser o mesmo definido anteriormente 1 go/ht , e a renda nacionalser go/ht Ti .

    Finalmente e estando definida a relao funcional entre salrios e lu-cros , cabe determinar a magnitude da taxa de salrio real (que funcionacomo varivel independente do sistema) a cada momento. E esse um movi-mento que Ricardo realiza em duas etapas, distinguindo o preo de mercado eo preo natural do trabalho. Segundo o autor:

    O preo de mercado do trabalho aquele realmente pago por este,como resultado da interao natural das propores entre oferta e ademanda. O trabalho caro quando escasso, e barato quandoabundante. [Porm], por mais que o preo de mercado do trabalhopossa desviar-se do preo natural, ele tende a igualar-se a este, comoocorre com as demais mercadorias.

  • 40Quando o preo de mercado do trabalho excede o preo natural, acondio do trabalhador prspera e feliz, e ele pode desfrutar degrande quantidade de bens de primeira necessidade e dos prazeres davida, e, portanto, sustentar uma famlia saudvel e numerosa. Quando,entretanto, pelo estmulo que os altos salrios do ao aumentopopulacional, cresce o nmero de trabalhadores, os salrios baixamoutra vez at seu preo natural e, s vezes, por um efeito de reao, atabaixo dele. [...]Numa sociedade em desenvolvimento [contudo], apesar de os salriostenderem a ajustar-se sua taxa natural, sua taxa de mercado podepermanecer acima deste nvel por um perodo indefinido, pois, mal oimpulso dado por um acrscimo de capital aumente a demanda detrabalho, pode surgir um novo acrscimo que produza o mesmo efeito.Assim, se o aumento de capital for gradual e constante, a demanda detrabalho pode ser um estmulo contnuo para o crescimento da populao(Ricardo, op. cit., p. 81-82, grifos do autor).

    Vale dizer: a taxa de salrio real determinada, no mercado de traba-lho, em funo da oferta e da demanda dessa mercadoria (nem to) espe-cial, e tal como para as demais mercadorias que so objeto de reproduoem condies tcnicas estveis 17 existiria uma funo oferta de trabalho decurto prazo, que seria positivamente inclinada (de forma que, em perodos deacumulao acelerada de capital, a taxa de salrio real tende a se elevar), euma oferta de trabalho de longo prazo, que seria virtualmente horizontal, emfuno dos movimentos de ampliao da oferta de trabalho estimulados peloprprio aumento do salrio real no curto prazo.18

    de se notar, contudo, que, diferena das demais mercadoriasreprodutveis, o preo do trabalho se pode manter durante longos perodos aci-ma do preo natural. E isso nem s pela temporalidade particularmente alargada

    17 A esse respeito, ver o Captulo XXX de Princpios de Economia Poltica e Tributao,intitulado Sobre a Influncia da Demanda e da Oferta Sobre os Preos, em Ricardo (op.cit., p. 257 e segs.).

    18 E de se notar que, a despeito do que pretende um certo senso comum, para Ricardo, osdeslocamentos da oferta de trabalho de curto prazo so irredutveis lei malthusiana dapopulao, mas envolvem as migraes interna e externa de mo-de-obra em direo aosmercados onde a taxa de salrio superior. A esse respeito Ricardo diz, por exemplo, que:"Em novas colnias, onde se introduzem as tcnicas e conhecimentos de pases muitomais adiantados, o capital tende provavelmente a crescer mais rapidamente que a popula-o. Se essa falta de trabalhadores no fosse superada por intermdio de pases maispopulosos, aquela tendncia provocaria uma grande elevao no preo do trabalho" (Ricardo,op. cit., p. 84). Vale dizer: a imigrao de trabalhadores e a diminuio da taxa de lucro(definida pela elevao salarial, associada presso de demanda sobre o trabalho e produo em terras menos frteis) cumprem papis to importantes (ou mesmo mais)quanto a "lei da populao de Malthus" na limitao (e autoajustamento) das discrepnciasentre a taxa de mercado e a taxa natural de salrio.

  • 41de reproduo da mercadoria trabalho, mas, em particular, porque a compulso acumulao dos lucros implica um deslocamento contnuo e acelerado dafuno demanda de mo-de-obra19, uma observao que, por sua vez, colocaduas novas questes: (a) se, mesmo em condies de estabilidade dos pa-dres tcnicos de produo, o processo de acumulao no seria de ordem aalimentar uma tal elevao de salrios e uma depresso dos lucros que condu-zisse o sistema ao estado estacionrio; e (b) se a possibilidade da permannciada taxa de salrio de mercado em um patamar cronicamente superior "taxanatural" no retiraria desta ltima categoria qualquer sentido determinado e rigo-roso.

    Ora, Ricardo no responde a nenhuma dessas questes com clareza. Massinaliza um sentido que fez escola. Em primeiro lugar, reconhece a possibilida-de de um (por assim dizer) profit squeeze alimentado pela acelerao da acu-mulao20, mas compreende que esse movimento tem sua auto-resoluo defi-nida pela prpria desacelerao do processo de acumulao, que no acom-panhada por uma desacelerao coetnea do crescimento da oferta de traba-lho, cujas determinaes seriam, em grande parte, exgenas.21 E, aparente-mente, essa mesma "taxa normal" de crescimento da populao referencia acategoria taxa natural de salrio em Ricardo. Mais exatamente, o salrio est noseu nvel natural, quando no estiver impulsionando nem a acelerao da taxade crescimento da populao para alm do nvel normal, nem seu decrscimopara aqum desse nvel.

    19 "Calcula-se que, em circunstncias favorveis, a populao pode dobrar em 25 anos. Sobas mesmas circunstncias favorveis, contudo, a totalidade do capital de um pas podedobrar possivelmente num perodo menor. Nesse caso, os salrios tendero a aumentardurante todo o perodo, pois a demanda de trabalho crescer mais rapidamente do que suaoferta." (Ricardo, op. cit., p. 83).

    20 "Assim como o trabalhador no pode viver sem salrios, o arrendatrio e o industrial nopodem viver sem lucro. A motivao para a acumulao diminuiria a cada reduo do lucro,e cessaria totalmente quando os lucros fossem to baixos que j no compensassem osesforos do arrendatrio e do industrial, nem o risco que devessem enfrentar no empregoprodutivo de seu capital." (Ricardo, op. cit., p. 98).

    21 Por diversas vezes, ao longo do captulo Sobre os Salrios de Princpios de EconomiaPoltica e Tributao, Ricardo aponta a existncia de uma taxa normal de crescimento dapopulao, qual se sobreporiam os efeitos estimulantes (ou desestimulantes) das dinmi-cas articuladas da acumulao de capital e da variao dos salrios reais. E a rigidez dessataxa normal, para Ricardo, no pode ser subestimada. Ela de ordem a impor um crescenteestado de pauperismo populao trabalhadora, uma vez esgotadas as potencialidadestcnicas de sustentao da acumulao ampliada sistmica. Vale dizer, para Ricardo, umavez atingido o estado estacionrio stricto sensu, "[...] com o desenvolvimento natural dasociedade, os salrios do trabalho, sendo regulados pela oferta e pela demanda, tendem adiminuir, pois a oferta de trabalhadores continuar a crescer mesma taxa, enquantoa demanda aumentar a uma taxa menor" (Idem, p. 84, grifos nossos).

  • 42 bem verdade que uma tal determinao ela mesma subdeterminada,

    mas a nica que resta em Ricardo, na medida em que, inteligentemente, serecusa a determinar a taxa natural de salrio a partir da identificao de umpatamar rgido e trans-histrico de subsistncia. Pelo contrrio, segundo o au-tor:

    No se deve entender que o preo natural do trabalho, embora estimadoem alimentos e em gneros de primeira necessidade, seja absolutamentefixo e constante. Varia num mesmo pas, em pocas distintas, e diferesubstancialmente em pases diferentes, dependendo essencialmentedos hbitos e costumes dos povos. Um trabalhador ingls considerariaseu salrio abaixo do nvel normal e demasiadamente reduzido parasustentar uma famlia, se no lhe permitisse comprar seno batatas,nem viver numa habitao melhor que um casebre de barro. No entanto,mesmo essas elementares exigncias da natureza so freqentementeconsideradas suficientes em pases onde a "vida humana barata", eonde suas necessidades se satisfazem facilmente. Muitas comodidadesdesfrutadas hoje numa modesta moradia inglesa seriam consideradascomo luxo num perodo anterior de nossa histria (Ricardo, op. cit.,p. 83).22

    O interessante que essa flexibilizao do "preo natural do trabalho"permite redeterminar a influncia da "oferta e da procura" sobre a taxa de sal-rio. Afinal, como visto acima, a dinmica da acumulao de capital e atemporalidade alargada do ajustamento da oferta de mo-de-obra de ordem apermitir a sustentao, no longo prazo, do afastamento entre preo de mercadoe preo natural do trabalho. Mas v-se agora que o preo natural ele mesmomutvel, sendo influenciado por hbitos e costumes dos povos, que se voconsolidando ao longo do tempo, o que significa que a manuteno, por umlargo perodo de um preo de mercado acima do natural acaba por conduzir redeterminao desse mesmo preo natural, ou seja, acaba por impor a socia-lizao de novas referncias sobre o que o nvel mnimo de subsistncia daclasse trabalhadora, bem como sobre o que um nvel salarial extraordinaria-mente elevado, capaz de estimular (via imigrao e/ou reproduo da classetrabalhadora) a acelerao do crescimento da oferta de mo-de-obra.

    Infelizmente, porm, o otimismo imanente historicizao ricardiana donvel de subsistncia da classe trabalhadora no sobreviveu endogeneizaodo ltimo dentre os determinantes da taxa de salrio real no sistema desse

    22 Essa dissociao entre taxa natural de salrio e nvel de subsistncia stricto sensu no podeser subestimada em Ricardo. Ela , em grande parte, responsvel pelas atratividades elongevidade do ricardianismo como escola do pensamento econmico. Afinal, com taldissociao, o sistema no fica apenas mais aberto, ele se abre especificamente para umcerto institucionalismo de inflexo culturalista e politicista que caracteriza o iderio de parce-la no desprezvel da esquerda no marxista.

  • 43autor: o preo dos bens agrcolas. Na concepo de Ricardo (que, nesse parti-cular, se mostra um legtimo discpulo de Malthus), o desenvolvimento capita-lista da produtividade do trabalho no de ordem a contra-arrestar os limitesnaturais de oferta de terras frteis e matrias-primas. Mais especificamente, odesenvolvimento da acumulao e do nvel de emprego compromete o sistemacom um nvel de demanda de matrias-primas e alimentos que s pode seratendida pela explorao de terras (e minas23) de produtividade inferior, o queredunda, primeiramente, na elevao do valor unitrio e dos preos dos bensprimrios e, posteriormente, na elevao da taxa de salrio em valor (por oposi-o elevao em valores de uso) e na depresso da taxa de lucro e da taxa deacumulao sistmicas.

    A consistncia emprica da hiptese malthusiana de limitao estruturaldos recursos naturais, bem como dos desdobramentos tericos que Ricardoextrai dessa hiptese, j foi objeto das mais distintas polmicas. A ns, essasquestes no interessam minimamente. Apenas interessa entender a lgicainterna do sistema distributivo ricardiano. E, dentro desse sistema, a elevaodos custos de produo dos bens-salrio tem de conduzir a uma elevao dataxa de salrio em valor e consequente queda da taxa de lucro.

    O mais importante a entender aqui que o crescimento da renda paga aosproprietrios das terras inframarginais, associado ao deslocamento da fronteiraagrcola e ocupao das terras menos frteis, tem um papel meramente refle-xo e passivo no interior do sistema.24 Na verdade, a renda s cresce na medidaem que a concorrncia intercapitalista determina a igualao da rentabilidadedo agricultor das terras mais frteis rentabilidade obtida pelo agricultor daperiferia do sistema. E a rentabilidade deste ltimo s cai na medida em que oaumento dos preos dos bens agrcolas que resulta da elevao do (valor)trabalho por unidade de produto inferior ao aumento dos custos sala-riais totais com que se depara o agricultor. De fato, esse aumento de preoss compensa a elevao da relao trabalho/produto, mas no a elevao da

    23 A esse respeito, ver o captulo terceiro de Princpios de Economia Poltica e Tributao,Sobre a Renda das Minas, em Ricardo (1982, p. 75-76).

    24 Isso no significa que os desenvolvimentos ricardianos em torno da renda fundiria sejamteoricamente irrelevantes e inconseqentes. Pelo contrrio, como se procurar demonstrarno Captulo 5 deste trabalho, a alegao de que tais desenvolvimentos se encontram nocerne da teoria marginalista da produo e da distribuio no infundada. Contudo, econtraditoriamente, a teoria ricardiana da renda no cumpre qualquer papel de destaque nateoria ricardiana da distribuio. Aqui, o centro da cena ocupado pela oposio salrio//lucro, e o nico papel da renda o de ser diferencial e, como tal, de ser ausente na terramarginal, onde o preo dos bens agrcolas definido.

  • 44taxa de salrio em valor, que a verdadeira responsvel pela queda da taxa delucro.25

    Mas, quando se tem claro esse ponto, tambm se torna claro que a teoriaricardiana da queda da taxa de lucro no passa de um modelo de profitsqueeze por presso salarial. Na verdade, se a elevao dos preos dos bensagrcolas no implicar qualquer elevao da taxa de salrios, os lucros sistmicosno tm por que cair, como bem reconhece Ricardo:

    Poder-se-ia dizer que parto do princpio de que os salrios monetriosaumentaro quando aumentar o preo dos produtos agrcolas, mas queisso no , de modo algum, uma conseqncia necessria, j que otrabalhador pode contentar-se com um consumo mais reduzido. verdade que os salrios podem ter estado anteriormente num nvel maisalto, podendo suportar alguma reduo. Assim sendo, a queda doslucros seria contida. impossvel admitir, porm, que o preo emdinheiro dos salrios viesse a diminuir, ou permanecer estacionrio, comum aumento gradual do preo dos bens de primeira necessidade. Portanto,podemos tomar como certo que, em circunstncias normais, todoaumento permanente dos bens de primeira necessidade ocasiona umaumento de salrios, ou por este ocasionado.Os efeitos sobre os lucros seriam os mesmos [...] se houvesse umaumento naqueles outros produtos de primeira necessidade, alm dosalimentos nos quais se gastam os salrios. [...] Supondo, contudo,que o preo [...] de [...] mercadorias no exigidas pelo trabalhadoraumentasse, [...] isso afetaria os lucros? Certamente no, pois nadaos afeta, salvo o aumento dos salrios (Ibid. p. 96, grifos do autor).

    E poder-se-ia acrescentar , nessa verso do modelo ricardiano, nos verdade que apenas o aumento de salrios capaz de afetar os lucros,

    25 Na verdade, no modelo de Princpios de Economia Poltica e Tributao (por oposioao modelo do Ensaio de 1815, onde a queda da taxa de lucro era demonstrada em termosfsicos), o fato de os bens agrcolas terem seus preos elevados com a queda da produti-vidade do trabalho nas terras marginais complexifica a demonstrao da queda da taxa delucro na agricultura, por oposio ao setor industrial, onde ela segue imediatamente elevao salarial. Nos termos de Ricardo (1982, p. 91-92, grifos do autor): "Se um fabricantesempre vendesse seus produtos pela mesma quantidade de dinheiro, por 1.000 libras, porexemplo, seus lucros dependeriam do preo do trabalho necessrio para manufatur-los.Seus lucros seriam menores, quando os salrios atingissem 800 libras do que quando elepagava 600 libras. Assim, na medida em que os salrios aumentassem, os lucrosdiminuiriam. Mas algum poderia perguntar: se o preo dos produtos agrcolasaumentasse, no poderia o arrendatrio obter pelo menos a mesma taxa de lucros,embora pagando um acrscimo salarial? Certamente no, pois ele no apenas teria depagar, da mesma forma que o fabricante, um salrio mais elevado a cada trabalhador queempregasse, mas ainda seria obrigado a pagar renda ou a empregar um nmero adicionalde trabalhadores para obter o mesmo produto. Como o aumento no preo dos produtosagrcolas seria proporcional apenas renda ou ao aumento no nmero de trabalhadores,no poderia compens-lo pela elevao dos salrios".

  • 45como um tal aumento afeta apenas os lucros, sem qualquer conseqncia so-bre os padres tcnicos de produo ou sobre o nvel de emprego, o que tornaesse modelo objeto de apego e de recusa irracionais. Em particular, ele areferncia privilegiada de uma certa esquerda que v no mesmo a prova cabalda eficcia de curto e mdio prazos da ao sindical, enquanto, de outro lado(ideolgico, mas no terico), ele percebido por uma certa direita como umapea terica perigosa e estimuladora da luta de classes.

    Infelizmente para os que insistem em polemizar em torno do mesmo, eleno resistiu (como se ver logo adiante) sequer crtica de seu prprio autor. Eisso no gratuito. A despeito de sua elegncia e de sua importncia no interiorda histria do pensamento econmico, ele um modelo demasiadamente sim-ples, o que equivale a dizer que, dada a enorme complexidade da economiareal, ele um modelo enganador. E no por outro motivo que Schumpeter numa das passagens mais rigorosas, econmicas e mordazes da Histria daAnlise Econmica o caracteriza como um remendo. Segundo Schumpeter(op. cit., p. 233-234):

    [...] [Ricardo] quase identifica a Economia com a teoria da distribuio,pretendendo que nada ou pouco tinha a dizer sobre [...] "as leis queregulam a produo total". Esta opinio estranha, embora deva serdesde logo acrescentado que ele nem sempre se fixava nela, como osseus captulos sobre o comrcio externo e a maquinaria mostram. Amesma nos permite, entretanto, formular o problema fundamental queRicardo queria resolver em termos de uma equao a quatro vari-veis a produo lquida igual ao aluguel da terra, mais os lucros,mais os salrios (tudo medido em valores ricardianos). E ainda faz maispor ns. Livra-nos de uma dessas quatro variveis. Pois, uma vez quenada temos a dizer sobre a produo lquida total, podemos considerarseu montante, qualquer que seja, como dado. Destarte, partimosrealmente de uma equao que s contm trs variveis. Mas umaequao a trs variveis ainda um problema insolvel. Assim sendo,Ricardo (cap. 2) coloca-se numa margem da produo agrcola cujoaluguel da terra zero. [...] Tendo essa teoria do aluguel da terra preenchidoseu nico objetivo que o de eliminar uma outra varivel em nossaequao, ficamos, na margem da produo, com uma equao e duasvariveis um problema ainda insolvel. Todavia, [...] os salrios tambmno so uma varivel, pelo menos dentro dessa equao. Ele pensavasaber, por consideraes externas, o que os mesmos sero no longoprazo: entra aqui a velha teoria de Quesnay, reforada pela teoria dapopulao de Malthus os salrios sero