vale das Éguas 3 (s. salvador, serpa): fragmentação de materiais cerâmicos e enchimento de...

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597 Vale de Éguas 3 (S. Salvador, Serpa): fragmentação de materiais cerâmicos e enchimento de estruturas Lídia Baptista Sérgio Gomes RESUMO: Lídia Baptista Sérgio Gomes ** - CEAUCP–CAM, Aluna de Doutoramento da FLUP, Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (lidiabap@gmail. com) - CEAUCP–CAM, Aluno de Doutoramento da FLUP, Arqueologia & Património Lda. (sergiogomes@arqueologiaepatrimo- nio.pt) Vale das Éguas 3 foi identificado aquando dos trabalhos de acompanhamento arqueológico levados a cabo no âmbito da execução do Bloco de Rega de Brinches-Enxoé, em Serpa (Beja). Trata-se de um sítio com estruturas em negativo do III.º Milénio a.C. cujos limites estão para além da área intervencionada. este artigo iremos apresentar os principais resultados obtidos na intervenção e, na análise da Estrutura N.º , discutiremos a articulação entre as práticas de enchimento/construção da estrutura e as práticas de fragmentação de recipientes cerâmicos. ABSTRACT: In the poster about Vale das Éguas 3 we discuss some topics aspects of fragmentation and how it connects with architecture. We highlight a case of a deposition of a fragment, and a case of a entire vessel, that was put inside as an assemblage of sherds in a process that, multiplying / fragmenting a unit, divided it, according to a configuration, previously acquired, (the parts of the container), for later re-assemble it in a deposition, not as a unit, but as units, that once were part of the same element. 1. INTRODUÇÃO Neste texto são apresentados, de modo sucinto, os resultados dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos na estação pré-histórica de Vale das Éguas 3. No âmbito dos contextos identificados, salientamos a importância de um deles – a Estrutura N.º – na discussão acerca das práticas de deposição, fragmentação e arquitectura do III.º Milénio a.C.

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Este texto focaliza-se na análise do enchimento de uma estrutura em negativo de Vale de Éguas 3 onde se discute a articulação entre as práticas de enchimento/construção da estrutura e as práticas de fragmentação de recipientes cerâmicos no Calcolítico.

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  • 597

    Vale de guas 3 (S. Salvador, Serpa):fragmentao de materiais cermicos e enchimento de estruturas

    Ldia Baptista

    Srgio Gomes

    ReSumo:

    - CEAUCPCAM, Aluna de Doutoramento da FLUP, Bolseira da Fundao para a Cincia e a Tecnologia ([email protected])

    - CEAUCPCAM, Aluno de Doutoramento da FLUP, Arqueologia & Patrimnio Lda. ([email protected])

    Ldia Baptista

    Srgio Gomes**

    - CEAUCPCAM, Aluna de Doutoramento da FLUP, Bolseira da Fundao para a Cincia e a Tecnologia ([email protected])

    - CEAUCPCAM, Aluno de Doutoramento da FLUP, Arqueologia & Patrimnio Lda. ([email protected])

    Vale das guas 3 foi identificado aquando dos trabalhos de acompanhamento arqueolgico levados a cabo no mbito da execuo do Bloco de Rega de Brinches-Enxo, em Serpa (Beja). Trata-se de um stio com estruturas em negativo do III. Milnio a.C. cujos limites esto para alm da rea intervencionada.

    este artigo iremos apresentar os principais resultados obtidos na interveno e, na anlise da Estrutura N. , discutiremos a articulao entre as prticas de enchimento/construo da estrutura e as prticas de fragmentao de recipientes cermicos.

    AbStRAct:

    In the poster about Vale das guas 3 we discuss some topics aspects of fragmentation and how it connects with architecture. We highlight a case of a deposition of a fragment, and a case of a entire vessel, that was put inside as an assemblage of sherds in a process that,

    multiplying / fragmenting a unit, divided it, according to a configuration, previously acquired, (the parts of the container), for later re-assemble it in a deposition, not as a unit, but as units, that once were part of the same element.

    1. IntRoduo

    Neste texto so apresentados, de modo sucinto, os resultados dos trabalhos arqueolgicos desenvolvidos na estao pr-histrica de Vale das guas 3. No mbito dos contextos identificados, salientamos a importncia

    de um deles a Estrutura N. na discusso acerca das prticas de deposio, fragmentao e arquitectura do III. Milnio a.C.

  • 598

    V Encontro dE ArquEologiA do SudoEStE PEninSulAr

    2. VAle dAS guAS 3: ApReSentAo SumRIA doS ReSultAdoS doS tRAbAlhoS ARqueolgIcoS

    Vale de guas 3 foi identificado no mbito do acompanhamento arqueolgico dos trabalhos de abertura de valas inerentes execuo do Bloco de Rega de Brinches-Enxo. Estes trabalhos arqueolgicos foram promovidos pela EDIA SA. A estao localiza-se, do ponto de vista administrativo, na freguesia de Salvador, concelho de Serpa, distrito de Beja (Figura ). Geomorfologicamente, a regio corresponde peneplancie alentejana. A paisagem descreve um ondulado pontuado por colinas, permitindo a percepo de uma longnqua e extensa linha de horizonte. Do ponto de vista geolgico, de salientar que esta rea corresponde ao macio Antigo ou Hesprico, na Zona da Ossa Morena, no sector Montemor-Ficalho. Trata-se de uma zona muito afectada por falhas e lineamentos, e por alguns alinhamentos com a orientao E-W a WNW-ESE.

    Durante os trabalhos de acompanhamento arqueolgico, aps a remoo das terras de lavra, foi definido o topo do substracto geolgico local (calios) no qual foram identificados sete possveis contextos

    de interesse arqueolgico (Figuras e 3). No sentido de averiguar a natureza destes elementos e assegurar a sua caracterizao, foi definida a realizao de sete sondagens, tendo-se constatado que tais contextos correspondiam a estruturas em negativo cujos conjuntos artefactuais remetiam para uma cronologia pr-histrica (III. Milnio a.C.).

    Na anlise do enchimento das estruturas e dos conjuntos artefactuais exumados (Figura 4 e Tabela ), constatou-se que a Estrutura N. se destacava das restantes por duas razes: a primeira prende-se com a maior expresso nmerica dos seus elementos; a segunda diz respeito distribuio de tais elementos no interior da estrutura. Neste poster iremos apresentar este contexto tentando problematizar a sua especificidade quando pensada no mbito das questes que se colocam fragmentao e deposio de materiais durante a Pr-histria Recente (Chapman 000; Pollard 00; Jones 00; Garrow,Beadsmoore, Knight 005; Jorge 005, Valera 00, McFayden no prelo, por exemplo).

    est.dimetro do topo

    dimetro da base

    Altura mxima

    morfologia enchimentoconjunto

    artefactual

    N. ,0 m x 0,90 m

    ,0 m x m

    0,40 mEstrutura de planta sub-circular. Paredes regulares ligeiramente inclinadas (ngulo obtuso). Base plana. Forma aberta.

    (matriz argilosa)

    sem qualquer elemento

    N. ,80 m x ,60 m

    ,60 x ,0 m

    ,0 mEstrutura de planta sub-oval. Paredes irregulares ligeiramente inclinada (ngulo obtusos). Base plana. Forma aberta.

    5 (matriz argilosa)

    03 frag. Cermicos

    N. 3,50 m x ,40 m

    ,0 m x ,0 m

    ,40 m

    Estrutura de planta sub-circular. Paredes regulares ligeiramente inclinadas (ngulo agudo); em perfil trata-se de um forma composta: ao nvel do topo apresenta um cilindro, com cerca de 0 cm de altura, que encaixa num corpo semi-esfrico. Base plana. Forma fechada.

    4 (matriz argilosa)

    3 frag. Cermicos; frag. De um dormente

    N. 4,0 m x ,0 m

    ,40 m x ,30 m

    0,40 mEstrutura de planta sub-circular. Paredes regulares ligeiramente inclinadas (ngulo agudo). Base plana.Forma fechada.

    (matriz argilosa)

    sem qualquer elemento

    N. 5,50 m x ,50 m

    ,80 m x ,70 m

    m

    Estrutura de planta circular. Paredes irregulares; em perfil trata-se de um forma composta: ao nvel do topo apresenta um cilindro, com cerca de 0 cm de altura, que encaixa num corpo semi-esfrico. Base plana. Forma fechada.

    (matriz argilosa)

    6 frag. Cermicos

    N. 6,30 m x ,0 m

    ,80 m x ,70 m

    0,70 mEstrutura de planta sub-circular. Paredes regulares ligeiramente inclinadas (ngulo agudo). Base plana.Forma fechada.

    (matriz argilosa)

    frag. Cermico

    Tabela Descrio dos principais aspectos das estruturas identificadas.

  • 599

    O topo do enchimento da Estrutura N. correspondia a um depsito argiloso (UE 00) com incluso de pequenas pedras concentradas na parte superior do depsito. Aps a remoo da UE 00, foi identificado o topo da UE 0 um depsito semelhante UE 00, mas de tonalidade mais clara. Durante a sua escavao, definiu-se um plano intermdio a propsito da presena de parte de um prato de bordo espessado. Este recipiente apresentava-se colocado num plano horizontal (Figura 5 e 6). Para alm deste fragmento (de maiores dimenses), foram tambm recolhidos 5 fragmentos cermicos muito reduzidos, trs dois quais colam entre si. Os restantes depsitos de enchimento da Estrutura N. (UEs 0, 03 e 04) apresentam uma matriz argilosa variando entre si na colorao. Nos vrios depsitos foram recolhidos fragmentos cermicos correspondentes a um nico recipiente esfrico fechado. de salientar que, ao contrrio do prato identificado na UE 0, os fragmentos encontram-se espalhados no interior da estrutura, contrastando assim, tanto no que diz respeito sua integridade, como na formalizao da sua ocorrncia.

    O grau de fragmentao e a integridade dos dois recipientes muito distinta. Por um lado, do prato apenas est presente cerca de metade do recipiente, porm na sua deposio a integridade deste fragmento mantida, isto , a unidade de deposio o prprio fragmento. Por outro lado, a disseminao dos fragmentos do recipiente esfrico fechado remete para uma transformao da unidade do recipiente, sendo que, na sua deposio, ao contrrio do fragmento do prato que polariza um nvel de enchimento formalizado, os fragmentos ocorrem de uma forma aparentemente aleatria. Porm, aquando da remontagem do recipiente, constatou-se que na aparente aleatoriedade da distribuio destes fragmentos existia um aspecto que ordenava a distribuio: existe uma tendncia de concentrao das das partes do vaso (fundo, bojo e bordo) nas trs UEs consideradas, ocorrendo tendencialmente os fragmentos da parte inferior do recipiente nas UEs 0 e 03 e os fragmentos da parte superior na UE 04 (Figura 7). Deste modo, de salientar que, na mesma estrutura, uma prtica comum de fragmentao de unidades encerra duas variantes que nos expressam distintas dinmicas.

    No caso do prato, a integridade do fragmento (e

    a formalizao do nvel em que ocorre) sugere um cenrio em que o seu processo de fragmentao pode ter participado numa dinmica social que J. Chapman (000) designa por enchainment (encadeamento). Tal interpretao justape o processo de fragmentao a uma dinmica de produo de um lao social baseado na multiplicao das relaes de troca, em que a fragmentao de objectos torna-se uma forma de multiplicar a invocao de pessoas, lugares e momentos. A biografia do fragmento faz, desse mesmo fragmento, um protagonista do encadeamento, condensando (pelas suas relaes) os multiplos elementos que compem essa rede. J. Chapman (ibid.) distingue o processo de encadeamento de uma forma diferente de representao da biografia dos objectos em que a operao se d pela acumulao de relaes num objecto inteiro, isto , os objectos transformam-se em elementos catalizadores da rede de relaes, no pela sua fragmentao, mas, porque, enquanto unidade, congregam os restantes participantes do lao social que suporta uma determinada comunidade. Esta diferenciao proposta por J. Chapman (ibid.) torna-se especialmente relevante no caso do recipiente esfrico fechado, dado que, a sua ocorrncia articula as duas possibilidades. Com efeito, se considerarmos que a disseminao dos fragmentos cermicos decorrente de fenmenos ps-deposicionais de uma eventual deposio do recipiente numa posio invertida, a Estrutura N. congrega objectos cujas biografias so construdas e socializadas de modo muito distinto. A construo do seu enchimento remete-nos assim para uma multiplicidade de ontologias (parafraseando A. Valera (00)) em que se tecem o territrio e a identidade de uma comunidade. Porm, se considerarmos que a disseminao dos fragmentos deste recipiente correlativa de diferentes momentos de enchimento da estrutura, multiplicamos os cenrios do seu processo de fragmentao. A este propsito, refira-se que podemos pensar a deposio na estrutura enquanto uma aco que no foi polarizada por objectos, mas, por depsitos que contm objectos, multiplicando assim o nmero de elementos participantes na deposio. Esta possibilidade torna exponencial a complexa relao entre deposio, arquitectura e fragmentao. Neste caso, um processo que, multiplicando/fragmentando uma unidade, a divide de acordo com uma configurao

    VAlE dE guAS 3 (S. SAlVAdor, SErPA):frAgmEntAo dE mAtEriAiS cErmicoS E EnchimEnto dE EStruturAS

    3. eStRutuRA n. 2: ApontAmentoS SobRe pRtIcAS de depoSIo, ARquItectuRA e fRAgmentAo

  • 600

    V Encontro dE ArquEologiA do SudoEStE PEninSulAr

    anteriormente adquirida (as partes do recipiente) para, posteriormente, voltar a reuni-las numa deposio, no enquanto uma unidade, mas enquanto unidades que

    outrora fizeram parte de um mesmo elemento. E que fazem parte de uma prtica de arquitectura em que se constri o sentido destas estruturas em negativo.

    AgRAdecImentoS:

    Este trabalho no teria sido possvel sem o empenho de todos os elementos que compem a equipa de campo e de gabinete. As fotografias de esplio ficaram a cargo de Joo Molha. O estudo e inventrio do esplio

    recuperado foi efectuado por Ldia Baptista e Nelson Vale, com o apoio de Francisco Barros, Jos Grilo e Cludio Jorge. As ilustraes foram realizadas por Lidia Baptista e Rodry Mendona. A todos, o nosso agradecimento.A todos, o nosso agradecimento.

    CHAPMAN, J. (000), Fragmentation in Archaeology: people,

    places and broken objects in the Prehistory of South-Eastern

    Europe, London, Routledge.

    GARROW, D., BEADSMOORE, E., KNIGHT, M. (005), Pit

    clusters and the Temporality of Occupation: an Earlier

    Neolithic Site at Kilverstone, Thetford, Norfolk, Proceedings

    of the Prehistoric Society 7: 39-57.

    JONES, Andrew (00), Archaeological Theory and Scientific

    Practice, Cambridge, Cambridge university Press.

    JORGE, Susana Oliveira (005), O Passado Redondo.

    Dialogando com os sentidos dos primeiros recintos

    monumentais, Porto, Edies Afrontamento.

    MCFAYDEN, Lesley (no prelo), Fragmentation in Castelo Velho

    POLLARD, J (00), The aesthetics of depositional practice,

    World Archaeology, vol.33(): 35-333. Stable URL: http://Stable URL: http://

    www.jstor.org/stable/87905 , accessed 4/0/009.

    VALERA, Antnio (00), Marfim no recinto calcoltico dos

    Perdiges: Lnulas, Fragmentao e ontologia dos

    artefactos, Apontamentos 5, NIA: 3-4.

    bIblIogRAfIA

  • 601

    fIguRAS

    VAlE dE guAS 3 (S. SAlVAdor, SErPA):frAgmEntAo dE mAtEriAiS cErmicoS E EnchimEnto dE EStruturAS

    Figura Localizao de Vale das guas 3.

    Figura Planta relativa distribuio das estruturas.

  • 602

    V Encontro dE ArquEologiA do SudoEStE PEninSulAr

    Figura 4 Sequncia de enchimentos das estruturas.

    Figura 3 Vista geral da rea intervencionada.

  • 603

    Figura 6 Metade de um prato de bordo espessado.

    Figura 5 Plano intermdio da UE 0: nvel de deposio de metade de um prato de bordo espessado.

    Figura 7 Sequncia de imagens de rotao do recipiente cermico esfrico fechado. Os fragmentos exumados na UE 0 esto assinalados a amarelo, os da UE 03 a azul e os da UE 04 a laranja.